H6 ESPECIAL DOMINGO, 27 DE SETEMBRO DE 2009 O ESTADO DE S.PAULO A soja chinesa virou brasileira e o Cerrado se tornou celeiro do País Epopeia científica dos pesquisadores da Embrapa permitiu a introdução da planta, originária da China, no bioma, transformando-a no principal produto nacional do agronegócio Herton Escobar ENVIADO ESPECIAL FORMOSO DO ARAGUAIA (TO) MELHORAMENTO A soja que brota hoje no Cerrado é muito diferente da que foi levada da China para os Estados Unidos, 200 anos atrás, e de lá trazida para o Sul do Brasil, no fim do século 19. O pacote nacional de conversão tecnológica incluiu sementes melhoradas, solos corrigidos, bactérias fixadoras de nitrogênio e boas práticas de manejo (mais informaçõesnestapágina).Masadiferença crucial está mesmo no DNA da planta, que os cientistas brasileiros retemperaram para adaptá-la ao cardápio climático tropical. O melhoramento genético Tecnologia tropical A soja, originalmente, é uma planta chinesa, de climas temperados. Foi preciso muita pesquisa e muita tecnologia para adaptá-la ao clima e aos solos do Cerrado. Veja as principais inovações feitas por cientistas da Embrapa e de outras instituições brasileiras nos últimos 50 anos 2 Correção de solos 1 Melhoramento genético Nas latitudes mais altas, os dias são mais longos no verão, o que beneficia a soja ZONA TEMPERADA N VERÃO TEMPERADO ATÉ HORAS DE LUZ POR DIA 17 PROBLEMA: Nos trópicos, os dias são constantes, prejudicando a soja 0 CHINA VERÃO TROPICAL HORAS DE LUZ POR DIA 12 ZONA TROPICAL BRASIL 0 Seleção e melhoramento genético de variedades de soja com ciclo reprodutivo longo (florescimento tardio), mais bem adaptadas ao fotoperíodo dos trópicos. A seleção deu tão certo que o Cerrado hoje é a região com a melhor produtividade de soja do mundo SOLUÇÃO: Animal sagrado da Índia é ícone do agronegócio animal mais fácil de ser avistado no Cerrado não é o tamanduábandeira nem o lobo-guará. É uma espécie exótica, de origem indiana, chamada Bos indicus – o famoso gado zebu, base de 80% da pecuária brasileira. Cerca de 75 milhões deles (45% do rebanho nacional) pastam pelo Cerrado, alimentando-se tanto de capim nativo quanto de capim africano – outra espécie disseminada pelo homem no bioma. Tudo começou com um plantel de 7.300 animais trazidos da Índia para o Brasil entre o início do século 19 e meados do século 20. Foi a salvação da pecuária nacional, que até aquele momento dispunha apenas de raças taurinas (do ti- O po Bos taurus), de origem europeia, trazidas pelos colonizadores ainda na época do Descobrimento. Acostumados ao clima temperado do Hemisfério Norte, os taurinos (simental, angus, hereford e outras raças) não suportavam o calor e os carrapatos dos trópicos brasileiros. Enquanto que os zebuínos (nelore, gir e guzerá), trazidos da Índia EXÓTICO - O gado zebu se adaptou melhor ao calor Al Ca Al Mg K PROBLEMA: Os Na P S solos nativos do Cerrado são extremamente ácidos (pH 4 a 5,5), ricos em alumínio e pobres em vários nutrientes essenciais, todos fatores nocivos à agricultura. O excesso de alumínio e a falta de cálcio prejudicam o crescimento das raízes tropical e já acostumados a tudo isso, sentiram-se logo em casa e proliferaram em velocidade espantosa. O animal sagrado da fé indiana virou o animal sagrado do agronegócio brasileiro. O gado que chega hoje ao açougue é muito diferente daquele que chegou da Índia para o Brasil um século atrás. Ficou maior, mais pesado, mais resistente, mais eficiente, mais fértil e mais precoce. Animais que na década de 70 eram mortos com cinco anos hoje já chegam ao peso de abate (18 arrobas) com dois anos e meio, graças a uma série de melhorias genéticas, nutricionais e sanitárias. “É um ganho de tempo e de qualidade, pois o animal mais jovem tende a ter uma carne mais macia”, diz Kepler Euclides Filho, da Embrapa Gado de Corte. Hoje o Brasil tem o maior rebanho comercial do mundo, com 170 milhões de cabeças (quase um boi por habitante), segundo o IBGE, e uma produção anual de carne que passa de 9 milhões de toneladas, segundo dados do Instituto FNP. ● Ca Mg K Na P S SOLUÇÃO: Cientistas criaram "receitas" eficientes de correção química do solo para torná-lo produtivo. Aplicações de calcário e gesso reduzem a acidez, neutralizam o alumínio, fornecem cálcio, magnésio, e melhoram a absorção de nutrientes pela planta naagriculturaobedeceaos mesmos princípios da evolução por seleção natural, segundo a qual os indivíduos mais adaptados ao ambiente sobrevivem e passam seus genes para as próximas gerações. A diferença é que, na agricultura, a seleção é feita pelo homem. É um processo lento, trabalhoso,quepassa por milharesde cruzamentos. A cada safra, pesquisadores da Embrapa selecionam 50 mil linhagens de soja e estabelecem 300 experimentos de campo, com 30 linhagens cada um. Cada variedade leva de oitoadezanosparaficarpronta. Como demonstração, Plinio Souza leva a reportagem do Estado até um galpão da Embrapa Cerrados onde estão armazenados milhares de saquinhos com amostrasdesoja selecionadas de várias regiões. Do ladodefora,técnicosdebruçados sobre uma mesa passam as mãos por uma pilha de grãos, catando e eliminando aqueles que apresentam defeito, como uma dona de casa que “cata feijão”. Só os melhores grãos permanecem para virar uma nova variedade. “É daqui que sai a sojaquees- DIDA SAMPAIO/AE Asárvoresde cascagrossa,caules retorcidos e o chão de terra poeirenta não deixam dúvidas: oCerradonão é lugarpara qualquer plantinha. Durante seis meses não cai uma gota de chuva nesse interiorzão brasileiro. E, mesmo quando chove, o solo nativoéimprestávelparaaagricultura: ácido, cheio de alumínio e pobre em quase todos os nutrientes essenciais. Só mesmo um louco para achar que esse ambiente surrado de sol poderia se tornar um dos canteiros mais férteis da agricultura mundial. Mas aconteceu. Foi obra da Embrapa. Trintaanosatrás, arecém-criada Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária cometeu sua maior“insanidade” científica: pegou uma planta de origem chinesa,típica declimas temperados,efezdelaarainhadaagricultura tropical. A soja, que até os anos 70 só podia ser plantada do Paraná para baixo, onde o clima é mais parecido com o da China, virouse para o norte e tomou conta doCerrado.InvadiuMato Grosso do Sul, avançou pelas bordas do Sudeste, conquistou Goiás, criou raízes em Mato Grosso, subiu pelo Tocantins, embrenhou-se no Maranhão e foi bater na porta da Amazônia. “Hoje temos tecnologia para cultivar soja em qualquer lugar do País, em qualquer época do ano”, diz o pesquisador Plínio Souza, da Embrapa Cerrados, um dos principais responsáveis pelo feito. “É uma tecnologia 100% brasileira.” Em pouco mais de três décadas,turbinadapelanovagenética verde-amarela, a oleaginosa transformou-se no maior produto do agronegócio nacional. Em2007,aindústriada sojamovimentou R$ 41,3 bilhões, o que equivale a 6,4% do Produto Interno Bruto agrícola e 1,6% do PIB do País, segundo cálculos daAssociaçãoBrasileiradasIndústrias de Óleos Vegetais (Abiove), a pedido do Estado. Apesardenãoservistatradicionalmente como “alimento” de consumo direto, a soja está embutida em boa parte da dieta brasileira. É ingrediente básico demuitosalimentosindustrializados e principal fonte de proteína na ração de suínos e aves. “Quando você come frango e porco, está comendo proteína de soja”, diz o secretário-geral da Abiove, Fabio Trigueirinho. No rastro da soja vieram o milho,ofeijão,oarroz,asmáquinas, os fertilizantes, as estradas, a construção civil e os vilarejos transformados em metrópoles com a riqueza do agronegócio.De meraperiferia agrícola, o Cerrado virou o celeiro de quase metade dos alimentos brasileiros. Segundo cálculos da Embrapa e da Companhia Nacional de Abastecimento, é das terras desmatadas do bioma que saem 47% dos grãos (soja, milho, arroz, feijão, sorgo e algodão caroço), 40% da carne bovina e 36% do leite produzidos no País. “A incorporação do Cerrado à agricultura foi a maior conquista do Brasil”, diz JoséGarciaGasques, coordenador de Planejamento Estratégico do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. tará no campo em dez anos.” Souzasabe doque está falando. Foi ele quem selecionou, no início da década de 80, a primeira variedade lucrativa de soja para o Cerrado, chamada Doko. Extremamente rústica e ao mesmo tempo produtiva, ela podia ser plantada em áreas recém-abertas (desmatadas), com bons retornos na primeira safra. Outras variedades precisavam de pelo menos três anos de cultivo de alguma outra lavoura (normalmente arroz) para dar o mesmo resultado, o que tornava o investimento inicial muito arriscado. “A Doko abriu de vez o Cerrado para a soja”, diz Souza. O resto da agricultura veio no embalo. Enquanto ele selecionava as plantas mais promissoras no campo, os cruzamentos genéticos eram feitos no laboratório da Embrapa Soja, em Londrina, pelo melhorista Romeu Kiihl. A Doko nasceu de uma misturadevariedadesamericanas e indonésias. “Pegamos o que tinha de bom em cada uma delas e juntamos”, conta Kiihl. Ele calcula que 50% dos ganhos de produtividade da soja nas últimastrêsdécadas devem-seao melhoramento genético. A média nacional, que era de 1.700 kg/hectarenadécada de80,saltou para 2.800 kg/hectare. A sojicultura do Cerrado é agora a mais produtiva do mundo. Em Mato Grosso, produtoreschegamaensacar4,6toneladas de grão por hectare. A China, país de origem da soja, hoje importa o produto do Brasil. ●