A arquitetura do Palácio Itamaraty (1959-1970)*
Eduardo Pierrotti Rossetti
*Este artigo é uma versão revista do artigo Palácio do Itamaraty: questões de história, projeto e documentação
(1959-70) apresentado originalmente no I Seminário Latino-Americano de Arquitetura e Documentação (2008) e
posteriormente publicado no Portal de Arquitetura Vitruvius (2009).
Eduardo Pierrotti Rossetti, arquiteto e urbanista, Técnico da Superintendência do Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional no Distrito Federal – IPHAN-DF; doutor em arquitetura e urbanismo,
pesquisador-pleno da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília, onde desenvolve
pesquisas de Pós-Doutorado.
“Não se revoluciona revolucionando.
Revoluciona-se solucionando“
Le Corbusier
O projeto de arquitetura de Oscar Niemeyer para a nova sede do Ministério das Relações
Exteriores do Brasil —o Palácio do Itamaraty (1959-1970)— em Brasília, revela questões sobre o
seu projetar e sobre sua trajetória pessoal e profissional na trama da arquitetura brasileira pósBrasília. Para a construção da história de uma arquitetura, Manfredo Tafuri propõe uma
abordagem que toma o fato arquitetônico considerando seu caráter fragmentário, para explorar os
valores espaciais e simbólicos, além das questões sócio-políticas correlatas à sua produção e sua
construção, para então instaurar novas instâncias para sua compreensão e estabelecer novos
nexos latentes do projeto arquitetônico.
Para revelar a arquitetura do Palácio do Itamaraty é importante analisar os desenhos do projeto,
os croquis, as soluções construtivas e suas fotografias, além das abordagens historiográficas
sobre o discurso e a obra de Oscar Niemeyer. É igualmente pertinente considerar os
depoimentos de jornalistas e diplomatas e a a história da própria instituição que o edifício abriga.
O Palácio do Itamaraty de Brasília permanece como um projeto arquitetônico não publicado nas
páginas das revistas nacionais de arquitetura, com a devida relevância que possui dentro da vasta
obra de Oscar Niemeyer. Nos anos 70 o Palácio foi registrado pela revista L'Architecture
D'aujord'hui1. A difusão de sua importância se deve ao livro de Yves Bruand “Arquitetura
Contemporânea no Brasil” e tampouco foi retomado criticamente em publicações congêneres. Só
recentemente, no livro “Patrimônio Construído. As 100 mais belas edificações do Brasil” é
que os dois palácios da diplomacia brasileira foram incluídos numa mesma publicação, mas
abordados sem as devidas correlações.2 Apesar da valiosa contribuição das dissertações e teses
sobre Niemeyer, a nova sede do Itamaraty em Brasília também não tem sido objeto de uma
abordagem mais exclusiva, justificando novas aproximações acerca de sua complexidade
arquitetônica.
A abordagem de Yves Bruand se desenvolve através de seus contatos diretos com Niemeyer,
visitando o edifício quando já concluído. Bruand não assinala as contribuições e colaborações de
outros arquitetos, calculistas e artistas, referindo-se, apenas a Lucio Costa e Le Corbusier. As
omissões a Burle Marx e a Wladimir Murtinho3 são quase injustificáveis, pois além de registrar os
1
Exemplar n.171, jan-fev/1974. No caderno especial sobre Niemeyer, publica-se apenas a planta do
térreo.
2
Patrimônio Construído. As 100 mais belas edificações do Brasil. p.352-355; p.424-427.
Wladimir do Amaral Murtinho é o diplomata designado pelo Itamaraty para comandar as ações
relativas a transferência do Palácio entre 1959-61 e entre 1963-69, auxiliado por outros membros do corpo
diplomático.
3
jardins, afirma que o projeto do palácio é formulado a partir de nossas “tradições diplomáticas”.
Bruand tampouco considera a indicação para ministérios diferenciados já apontada no Plano
Piloto de Costa. Contudo, ele ressalta a “verdade estrutural” do Palácio e resiste ao encantamento
formal das arcadas. Bruand aponta uma “reviravolta” na obra de Niemeyer devido ao uso do
concreto aparente. A carga representativa do programa arquitetônico da sede da diplomacia
nacional não lhe escapa, mas ele pouco explora da dinâmica espacial interna entre os salões
sociais, a integração das obras de arte e os móveis, que configuram a beleza sem ostentação, a
que se refere. Bruand também deixa ainda de explorar as correlações fundamentais entre a nova
sede da diplomacia e sua velha matriz carioca —um expressivo palacete neo-clássico de filiação
francesa, publicado inclusive no livro Brazil Builds.4 Ainda assim, a contribuição de Bruand é
inegável, pois o Palácio do Itamaraty é abordado junto com os demais palácios de Brasília,
definindo uma perspectiva de compreensão comparativa frequente destas arquiteturas.
Brasília pós-JK
Superada a euforia da inauguração da nova Capital Federal, seu plano urbanístico sofreu abrupta
interrupção no ritmo de implementação, alterando o andamento das obras arquitetônicas em
curso. Diferentemente do Presidente Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros estancou os
cronogramas que demandavam ações governamentais coesas para a consolidação da cidade. O
contexto político somente se agravaria com a renúncia de Jânio Quadros, sucedido por João
Goulart, com um interregno parlamentarista, cujas atitudes ampliaram a instabilidade em diversos
setores da sociedade civil e consolidaram a insatisfação dos setores militares, deflagrando o golpe
de Estado de 1964. Apesar da grita reacionária pelo abandono ou adiamento da transferência da
capital, JK havia deixado Brasília numa condição irrevogavelmente implantada. É neste contexto
de impasses —quando as obras de Niemeyer sofreriam atrasos, vetos e ingerências— que o
projeto arquitetônico do Ministério das Relações Exteriores será revisto, refeito e desenvolvido,
para tornar-se a sede governamental mais relevante no funcionamento pleno da nova Capital.
Será nas circunstâncias políticas pós-64 em que o projeto e a obra do Palácio do Itamaraty serão
implementadas. Houve interesse do novo chanceler pelas obras do novo palácio, assegurando a
continuidade e a manutenção da equipe de arquitetos, técnicos e funcionários já comandada pelo
diplomata Wladimir de Murtinho, cuja expectativa inicial pós-64 indicava um temor contrário, pois
como relata em seu depoimento: “...a primeira coisa que eu fiz foi retirar os planos, as plantas,
resguardar, [com] medo de que queimassem os projetos, e retardassem a construção...”(sic).5
1964 é um ano decisivo na consolidação do Itamaraty em Brasília. As obras do Palácio passam a
fazer parte das visitas oficiais de autoridades estrangeiras, numa rotina semanal sob os cuidados
de Murtinho, que se fazia acompanhado de jornalistas e fotógrafos. Havia inclusive, uma sala
“decorada” com a maquete do palácio e desenhos afixados na parede
A consolidação efetiva de Brasília estava condicionada à transferência do Itamaraty. Mais do que
um ministério transplantado do Rio de Janeiro para o Cerrado, o novo palácio deveria
corresponder às expectativas e às perspectivas políticas da diplomacia brasileira, abrigando as
funções daquela instituição que fora o baluarte da formação e da constituição do Estado nacional,
e que então deveria contribuir na consolidação da Capital com seu capital simbólico.6 A força
institucional da “Casa”7, transcende em muito as funções comuns da diplomacia —representar,
negociar e informar— pois a história de sua primeira sede no Rio de Janeiro se confunde com a
própria consolidação da República. O Palácio do Barão do Itamaraty foi a sede do governo
republicano desde o governo do Marechal Deodoro da Fonseca até o presidência de Prudente de
Morais, quando a sede do poder executivo é transferida para o Palácio do Catete. A partir de 1897
4
GOODWIN. Brazil Builds: architecture new and old. 1652-1942. p.28-29. Trata-se de uma obra do
arquiteto José Maria Jacinto Rabelo, além dos mestres-de-obra não identificados.
5
MURTINHO. Depoimento ao Arquivo Público do Distrito Federal. p.36
6
RIBEIRO. Os bastidores da diplomacia: o bife de zinco e outras histórias. p.36. O autor afirma que
“Graças à excelência dos quadros do Itamaraty, a diplomacia brasileira se posiciona entre as melhores e
mais respeitadas do mundo.”
7
Idem. p.12; a expressão “a Casa” se refere à instituição que o Itamaraty representa.
a ex-residência do Barão do Itamaraty passa a pertencer à chancelaria brasileira, onde
permaneceria instalada até 1970, emprestando-lhe também o nome de seu título nobiliárquico.
O Plano Piloto, o novo Itamaraty e seu lugar na Esplanada
A construção do novo Palácio do Itamaraty em Brasília representa uma oportunidade efetiva de
modernizar a Casa, correspondendo à expansão administrativa em curso.8 Neste sentido,
Murtinho afirmaria que “...estamos não apenas transferindo um Ministério, mas provocando uma
revolução administrativa, uma experiência única no Brasil.”9 Em setembro de 1960, em meio a
terra vermelha do canteiro de obras e na presença de muitas autoridades, a pedra fundamental é
lançada pelo Presidente JK, iniciando uma cruzada construtiva que perduraria uma década.
O novo palácio já era objeto de reflexão de Oscar Niemeyer, ao menos desde 1959, pois em junho
a revista Brasília apresenta duas fotografias do futuro palácio.10 Diferentemente da divulgação de
outras obras do arquiteto, não havia nem desenhos, nem croquis, nem textos, somente a legenda
sobre duas fotos do futuro palácio, deixando a imagem em estado latente para ser interpretada.
Este primeiro projeto do Palácio divulgado abre possibilidades a muitas especulações sobre o
conteúdo inédito de seus desenhos. A partir das fotografias contata-se que este palácio já
apresenta um esquema que caracterizaria sua versão final, ou seja: já se tratava de um edifício
representativo articulado com um edifício administrativo. A colunata no bloco representativo
remete à solução do Palácio do Supremo Tribunal Federal: uma sucessão de colunas nas faces
Leste e Oeste, recuadas sobre a cobertura de uma volumetria que abriga uma caixa vítrea
suspensa, com planta aparentemente quadrada. A face envidraçada Norte fica voltada para o Eixo
Monumental, no limite da projeção da laje de cobertura, sem recuos. O bloco administrativo possui
cinco pavimentos, correspondendo à metade da altura do ministério-tipo da maquete.
O térreo da maquete apresenta mudança de textura, sugerindo diferentes pisos e um espaço mais
acessível e permeável que os demais palácios. Junto ao Eixo Monumental fincam-se nove
mastros de bandeiras. Os pilares e as colunas são retilíneos, com arranque destacado para
receber as vigas. Há modulação da caixilharia e não há indicação de espelho d'água, assim como
parece não haver conexão externa entre os blocos, talvez restrita ao subsolo. A linguagem da
maquete sugere um edifício em concreto branco e não uma solução que utiliza o concreto
aparente. Destaca-se a presença significativa de um último piso livre de vedações como uma
grande varanda, coberto por uma laje com três vazios retangulares. Esta proposição de 1959
também apresenta grande relação com a pré-figuração do palácio contida no Relatório do Plano
Piloto de Lucio Costa. Neste relatório Lucio Costa pondera sobre a distinção do Ministério das
Relações Exteriores e do Ministério da Justiça em relação aos demais blocos ministeriais. Assim,
Lucio Costa, corrobora Murtinho quando afirma que “O Ministério das Relações Exteriores é uma
instituição extremamente diferente dos outros ministérios...”11 Vale lembrar que Costa havia
pertencido aos quadros da Casa, possuindo certa intimidade com o cotidiano diplomático e suas
especificidades.
Assim, ao menos no Plano Piloto o lugar do futuro Palácio do Itamaraty já estava localizado,
implantado na cabeceira da Esplanada dos Ministérios, estruturando a transição entre o núcleo
central da espacialização do poder da Praça dos Três Poderes, com a Esplanada dos
Ministérios.12 Murtinho pondera que “...a posição do Ministério das Relações Exteriores é toda
8
Vide Revista Manchete nº.373, 13/junho/1957. p.66-69. A reportagem aponta a expectativa do
Itamaraty de ampliar seus quadros. Seu quadro formado por então “menos de 500 diplomatas de carreira”
se ampliaria para consolidar a criação de futuras missões diplomáticas em diferentes lugares: Tunísia,
Marrocos, Tailândia, Arábia Saudita e Alemanha. O Itamaraty já possuía planos de expansão com o objetivo
de fortalecer as atividades do comércio internacional, de exportações e não se restringindo às atividades
burocráticas rotineiras, estando em pleno acordo as metas desenvolvimentistas de JK.
9
Murtinho, em 06/junho/1968, apud MENDES. O Cerrado de Casaca. p.81. Grifos adicionais.
10
Revista Brasília nº. 30, junho/1959, s/p.
11
MURTINHO. Op. cit., p.01
12
Vide o “Ponto 9” do Relatório do Plano Piloto de Lucio Costa.
peculiar, ele está justo na entrada da Praça dos Três Poderes, ou seja, é quase uma portaria.”13 O
novo palácio foi concebido de acordo com o conceito de “unidade arquitetônica” postulado por
Niemeyer para articulá-lo com os palácios junto à Praça dos Três Poderes. Esta unidade
arquitetônica se estabelece com a equivalência plástico-formal entre os diferentes projetos dos
palácios, articulando-os. As colunatas e as arcadas dos Palácios estruturam esta correlação,
formando um conjunto arquitetônico que resguarda suas diferenças dentro de uma unidade. Nesta
estratégia projetual, o Palácio do Itamaraty e o Palácio da Justiça subvertem a brancura das
estruturas por concreto armado aparente. Para salvaguardar a unidade, Niemeyer valoriza a
arcada como fator de diálogo do Itamaraty com as colunatas dos demais palácios da Praça.14
Lucio Costa enfatiza a importância cerimonial das relações entre os poderes políticos do Estado e
sua organização no território da cidade, pois o Plano Piloto valoriza a perspectiva do conjunto
arquitetônico da Esplanada, organizando a espacialização de tais poderes.15 Contudo, os poderes
democráticos demandavam mais que os edifícios dos “Três Poderes”, uma vez que “...a parte
representativa da Presidência da República não é feita no palácio [do Planalto], mas sempre feito
no Ministério das Relações Exteriores...”16 Entre 1958-60, Murtinho discutira o palácio com
Niemeyer, acompanhando-o na elaboração do primeiro projeto, que provavelmente corresponde
àquele da maquete publicada. Para tanto, Murinho lhe fornece um precioso dossiê contendo
informações referentes ao funcionamento, às demandas e aos aspectos programáticos do
Ministério, mas Oscar Niemeyer perde este dossiê!17 Para sorte do futuro palácio, havia uma
explícita cumplicidade entre Costa, Niemeyer e Murtinho, além daquelas colaborações que não
tramitavam nos domínios exclusivos da prancheta de seu autor.
O Palácio dos Arcos de Oscar Niemeyer
É inegável que autoria do projeto arquitetônico é de Oscar Niemeyer. No entanto, a contribuição
de Wladimir Murtinho se estende além de sua função oficial designada pelo Itamaraty,
empenhando-se pessoalmente para transferir a Casa do Rio Branco para o Planalto Central. Ele
formou uma tríade com Luiz Brun de Almeida Souza e Rubens Antonio Barboza para atuarem
junto às autoridades locais, fazendárias e do Executivo.18 Os três diplomatas trabalhavam
inicialmente nas salas do Ministério da Saúde, ou seja, ao lado das obras, acompanhando
diretamente a rotina do canteiro. Será amparado por tais colaborações nos âmbitos burocráticos e
jurídicos, que Niemeyer poderá efetivamente projetar o seu Palácio do Arcos.
Simultaneamente, havia uma equipe de arquitetos, engenheiros, calculistas e artistas plásticos
trabalhando no projeto do novo palácio. Na condução dos desenhos estava o arquiteto Olavo
Redig de Campos —integrante dos quadros do Itamaraty— que se reportava à Murtinho e, ao
mesmo tempo, também coordenava as ações do arquiteto Jayme Zettel e de Roberto Scorzelly,
que pertenciam à equipe do Ministério.19 Já o arquiteto Milton Ramos, além de estar vinculado à
Construtora Pederneiras que construiria o palácio, também representava o próprio Oscar
Niemeyer no canteiro da obra em Brasília, atuando com desenvoltura e empenho para
corresponder ao cargo que lhe fora investido.20 A presença de Milton Ramos é tão fundamental,
que Murtinho ratifica: “Milton Ramos, fez um trabalho admirável (...) ele dedicou corpo e alma à
13
MURTINHO. Op. cit., p.02
VALLE. Desenvolvimento da forma e procedimentos de projeto na arquitetura de Oscar Niemeyer
(1935-1998). p.514-515.
15
MUNFORD. A cidade na história. Vide especialmente o capítulo XIII: “A corte, a parada,a capital”.
16
MURTINHO. Op. cit., p.02.
17
Idem. p.03.
18
MENDES. O Cerrado de Casaca. p.44.
19
MURTINHO, Op. cit., p.06. É possível que esta equipe seja maior, pois de acordo com a dinâmica
de construção vigente, havia participações pontuais e momentâneas de arquitetos e outros profissionais
durante a obra, ampliando e reduzindo da equipe.
20
A partir de 1962, Niemeyer inicia um ciclo de projetos fora do Brasil, afastando-se das obras
regularmente.
14
execução do prédio, à construção . Não há um detalhe que não tenha sido desenhado, pensado e
feito.”(sic)21
Se a autoria é inquestionavelmente de Niemeyer, os dividendos do grande feito em que o Palácio
do Itamaraty se consubstancia paulatinamente, precisam ser diplomaticamente repartidos, de
acordo com as especificidades de cada um dos colaboradores, desde os arquitetos, até os artistas
plásticos, Burle Marx, desenhistas e os engenheiros. Murtinho reconhece que Niemeyer “... teve
um admirável arquiteto para desenvolver e assistir a execução do projeto, que era Milton Ramos
(...) Tínhamos uma série de arquitetos do Itamaraty, que faziam a parte de complementação,
explicações, desenvolvimento, especialmente da parte de decoração. Então o principal deles era
o Olavo Redig de Campos.”22 Deste modo, ele também diferencia as incumbências dos arquitetos
e colaboradores, indicando maior participação de Olavo na qualificação dos espaços internos e
nas soluções dos salões sociais, considerando que sua formação em Roma lhe diferenciava.
Havia ainda as colaborações ad hoc de funcionários que oficialmente pertenciam a NOVACAP,
como o calculista Samuel Rawet. Em todas as instâncias do projeto, nota-se um respeito
incondicional dos colaboradores a Niemeyer, cujo distanciamento do canteiro de obras —seja por
motivos profissionais ou políticos— não comprometeu a execução do projeto de acordo com o seu
traço.
Além da forma, da função e do programa
O projeto do Palácio do Itamaraty se configura através da articulação de um edifício representativo
com outro edifício administrativo, sem pretender abarcar todo o programa arquitetônico num único
edifício. O projeto prevê ainda um terceiro edifício a ser feito posteriormente, com muitas
restrições de abertura ao exterior, propício para abrigar documentos e arquivos sigilosos. Destacase então que esta articulação entre os dois edifícios existe desde sua gênese, não sendo o Anexo
1, meramente de um bloco secundário acoplado ao magnífico palácio. O raciocínio projetual do
Palácio é desenvolvido a um só tempo, com esta articulação entre as edificações, havendo
somente uma diferença no cronograma de construção, em que o bloco representativo teve
precedência. Ou seja, o Palácio sempre possuiu um bloco horizontal que define um fundo, contra
o qual se destaca a super-estrutura com suas arcadas.
Esta simultaneidade e equivalência projetual foi pouco destacado por Yves Bruand, causando
uma interpretação errônea do partido arquitetônico do Palácio. O bloco administrativo é
tipicamente denominado Anexo I, abrigando gabinetes, sub-secretarias, departamentos e divisões
do Ministério. Neste sentido, Murtinho afirma que “...o palácio é extremamente funcional, tem essa
interligação da parte administrativa, com a parte representativa, que funciona muito bem.”23
Diferentemente da ideal neutralidade simbólica dos programas arquitetônicos modernistas, um
palácio se apresenta como um programa, cuja natureza é ser representativo, ter um caráter
atemporal.24 Neste sentido, de acordo com Bruand, a viagem de Niemeyer à Europa, em 1955, é
um momento fundamental em que ele “Compreendeu o proveito que seus predecessores tinham
conseguido tirar da galeria de arcadas ou de colunas que sustentam um arquitrave; aprendeu
imediatamente que esse meio de expressão (...) conservava um valor permanente tanto no plano
funcional, quanto no estético.”25 A ênfase crescente na valorização do simbólico nos projetos para
Brasília, corresponde à guinada crítica de Niemeyer, que se faz mediante o controle do programa
arquitetônico.26 Assim, o arquiteto hierarquiza e subordina as questões e soluções que merecem
exploradas no projeto do palácio.
21
22
23
24
25
26
MURTINHO. Op. cit., p.18.
Idem. Op. cit., p.06
MURTINHO. Op. cit., p.16
ARGAN. História da arte como história da cidade. p.244
BRUAND. Arquitetura contemporânea no Brasil. p.184
VALLE. Op. cit., p.466.
Paradoxalmente, no Palácio do Itamaraty a carga simbólica do Palácio do Itamaraty é muito
densa, enquanto que os usos de suas dependências precisam ser muito flexíveis, tratando-se de
um programa arquitetônico mais complexo que o demais ministérios-tipo que Niemeyer já
projetara. O próprio Murtinho ressalva também que tal complexidade programática já havia sido
experimentada por décadas, apontando o palácio carioca como uma matriz inequívoca para os
novos espaços da Casa do Rio Branco: “Na realidade, embora não pareça, o ministério é
extremamente inspirado no palácio que nós temos no Rio de Janeiro.”27 Os arcos da fachada
principal assobradada, que se abriam em balcões para a paisagem urbana carioca,
transformaram-se num terraço-jardim, abrindo-se para a Esplanada dos Ministérios. A frontaria
alinhada ao logradouro é transformada numa arcada sobre um espelho d’agua que contorna todo
o edifício. Também é comum aos dois edifícios a existência de um átrio que valorize a escada,
hierarquizando os ambientes que ela conecta: Salão nobre, Salão de bailes, Salão de banquetes
e outros salões. Ao invés das palmeiras imperiais, em Brasília há um renque de buritis e plantas
aquáticas nos jardins que foram projetados por Burle Marx.28 Também nos cuidados com os
espaços internos se mantêm a preocupação de articular móveis antigos e obras de arte, mas
incluindo móveis modernos e obras contemporâneas. Some-se a estas equivalências, a
implantação dos gabinetes do Ministro e do Primeiro Secretário em alas distintas, mantendo o
gabinete do Ministro numa planta quadrada, que remete à sala do próprio Barão do Rio Branco.
No Itamaraty, a função do diplomata é representar, negociar e informar, empreendendo um
conjunto de ações representativas que ratifiquem a presença ou compromisso do Estado em
nome do qual se atua.29 Ou seja, as atividades profissionais implicam em despachar, fazer
reuniões, condecorar, homenagear, protocolar, assinar atos, conceder entrevistas ou fazer
pronunciamentos. Além disso, organizar e participar de recepções, coquetéis, almoços, jantares e
banquetes também são parte da rotina do trabalho diplomático. Deste modo, o novo palácio
possui um programa arquitetônico que deve qualificar as atividades diplomáticas demandadas ao
bom funcionamento da política internacional. Para tanto, o novo Palácio deveria possuir espaços
para que o Brasil exercitasse sua habilidade diplomática entre as demais nações, com espaços e
ambientes para consagrar as trocas simbólicas, mediante a encenação protocolar de sua praxe. A
observação é do próprio Murtinho: “...o Ministério das Relações Exteriores é extremamente
encenado...” ou seja, faz parte de sua concepção do programa do Palácio “... permitir a pompa e
fazer com que isto seja o elemento que, talvez, caracterize o palácio.”30
No desdobramento destas cerimônias e eventos sociais, diferentes graus de formalidade são
demandados, fazendo com que o uso do Palácio do Itamaraty seja intermediado pelos códigos
culturais e comportamentais daqueles que habitam e se apropriam de seus espaços. Através da
arquitetura do Palácio do Itamaraty, Niemeyer assegura que deve haver condições simbólicoespaciais singulares para o exercício das atividades diplomáticas. Os espaços do Palácio se
correlacionam através de ambientes com diferentes graduações de acesso e permanência, de tal
modo que os vestíbulos, os salões, o jardim e a varanda possuem escalas de intimidade e
formalidade que se transformam não somente pelo cerimonial, mas sobretudo, pelo
comportamento dos convidados e anfitriões.
As arcadas do Itamaraty
“O clássico e o moderno se harmonizam, numa façanha inédita.”
Revista Manchete
Embora Oscar Niemeyer afirme que “...não se faz o novo inspirando-se no antigo...”31 a análise de
Yves Bruand defende a hipótese de um “partido grego” como a referência de Niemeyer nas
27
MURTINHO. Op. cit., p.02
O buriti é uma espécie típica do cerrado, cujas veredas indicam a presença de água, conforme
apontam as passagens de Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa, que era diplomata.
29
Calvet de Magalhães apud RIBEIRO. Op. cit, p.165
30
MURTINHO. Op. cit., p.18
31
Niemeyer apud PETIT. Niemeyer poeta da arquitetura. p.419
28
soluções dos diferentes palácios governamentais de Brasília. Para Bruand, o Itamaraty seria
“...uma realização tipicamente contemporânea, tanto técnica, quanto esteticamente...”32 pois nele
o concreto adquiriu uma “nobreza e delicadeza sem igual”. Assim, a inovação não é o material,
mas está no fato de que a rudeza do concreto armado foi sublimada, destacando-se a estrutura —
denominada por Bruand de “colunata”— para sustentar o “partido grego” antes enunciado. A
colunata é uma das estratégias projetuais pertinentes à formação do repertório de Niemeyer
desde o Palácio da Alvorada, fato que também não escapa à grande imprensa, como a
reportagem da revista Manchete destaca.33 Contudo, de acordo com Argan, é mais preciso
denominar a estrutura do Palácio do Itamaraty de “arcada”, uma vez que se trata de uma
sucessão ritmada de arcos plenos.34
Embora a arcada não tenha uma função estrutural absoluta de sustentar as lajes de todos os
pavimentos do Palácio, a arcada possui sim, a função estrutural de sustentar toda a carga
simbólica do Itamaraty.35 A super-estrutura da arcada define a força imagética do Palácio do
Itamaraty na Esplanada dos Ministérios e no espaço público de caráter cívico e monumental de
Brasília. A arcada mantém a referência da sede carioca, sem retomar sua linguagem neoclássica.
Ao mesmo tempo, o uso efetivo da referência clássica reforça a função comunicativa de uma
arquitetura moderna, assinalada por Argan: “Os monumentos urbanos uma razão não apenas
comemorativa, mas também didática: comunicavam a história das cidades, mas comunicavam-na
em uma perspectiva ideológica...”36
O controle da estrutura do Palácio se faz através da modulação dos vãos da estrutura da arcada.
A arcada é constituída por uma sucessão de 12 arcos plenos com raios idênticos (R=2,80m),
arrematados por dois arcos diferenciados —ligeiramente menores (R=2,497m)— em cada uma
das faces de suas extremidades, totalizando 14 arcos em cada uma de suas quatro faces.37
Assim, a extensão da arcada corresponde à 14M acrescidos da diferença dos arcos da
extremidade. Cada lado da arcada tem o comprimento de 86m, delimitando uma planta
rigorosamente quadrada de 86x86m. A arcada define também uma trama geométrica com módulo
(M) de 6m entre seus eixos, que balizará oaq solução e o agenciamento das plantas, a partir desta
trama de 6x6m. Os 14 arcos correspondem ao dobro dos arcos da fachada da antiga sede, cuja
frontaria alinhada ao logradouro está na razão 1:2:1. No novo Palácio, esta proporção é reestabelecida pelo sistema estrutural das coluna internas que perpassam a laje e se solidarizam
com a super-estrutura da arcada, definindo espaçamentos na razão de 3:6:3 arcos, ou seja, a
mesma razão 1:2:1 do velho palácio neoclássico. Porém, a sutileza da solução de revestimento
em madeira das colunas internas relativiza esta razão compositiva, para revigorar, justamente, a
arcada da Palácio.
Tal qual Fídias no Parthenon, o arquiteto Milton Ramos foi responsável por ajustar as relações
construtivas e ópticas entre os arcos plenos e os arcos das extremidades, através da solução da
correção visual. Esta correção visual estrutura a percepção dos arcos sem romper com o ritmo
dos vazios da própria arcada.38 Para tanto, há uma sensível redução do seu raio de 2,80m para
R=2,497m, definindo um arco com sutis alterações no traçado de sua curvatura. De acordo com o
desenho, a altura do arranque dos arcos é a mesma, porém, no término do arco da extremidade, a
linha curva tangencia a coluna num ponto inferior àquela altura do arranque, com uma diferença
de 1,06m. Assim, este arco diferenciado da extremidade termina seu desenho abaixo do arco
pleno, mas ainda nivelado com a altura da laje do piso da varanda, fato que sustenta o ritmo da
arcada. O desenho deste arco da extremidade é formado por segmentos de curva com 3 raios
32
BRUAND. Op. cit., p.200
Revista Manchete, edições de 13/junho/1957, 28/março/1970 e 25/abril/1970.
34
Para as definições de arcada e colunata: ARGAN. De Michelangelo ao futurismo. p.462 e 440,
respectivamente.
35
Somente no projeto da Editora Mondadori, a arcada sustentaria os pavimentos nela atirantados.
Vide as fotos da L'Architecture d'Aujourd'hui 171, jan-fev/1974, caderno especial sobre Niemeyer.
36
ARGAN. Op. cit., p.244
37
Nos 12 arcos plenos R=2,80m; e nos 2 arcos da extremidade R=2,497m
38
“correção visual” é o termo utilizado na planta, que não possui texto algum, deixando o desenho
livre para ser virtualmente reconstruído para perceber a construção de sua geometria.
33
distintos, traçados a partir de uma linha 15cm abaixo da linha-base do arco pleno, a fim de ajustar
a curvatura e sua tangência com a coluna da extremidade que possui, em planta, um inclinação
de 45º em relação ao alinhamento da arcada. Tratam-se de os recursos construtivos e ópticos que
influem na percepção da arcada para fortalecer a própria forma do Palácio do Itamaraty,
ratificando o cuidado de Oscar Niemeyer e seus colaboradores na construção de uma arquitetura
moderna que se apropria de um procedimento de caráter clássico inconteste.
A qualidade expressiva do concreto da arcada —que define a um só tempo estrutura e forma— é
obtida a partir de um minucioso desenho das fôrmas39 de seu processo construtivo, qualificando a
sua textura final. Milton Ramos estudou o desenho das fôrmas das arcadas, construindo inclusive
modelos de três arcos em escala 1:1, para definir um arranjo padronizado das peças de madeiras
e imprimir no concreto a textura desenhada por Niemeyer. Através deste modelo foi possível
também averiguar os efeitos de luz e sombra e os contrastes da luminosidade do cerrado.40 O
desenho dessa textura é marcado por frisos horizontais estreitos —como uma anti-canelura— ao
longo de toda a coluna e do arco, sem interrupções, desde o arranque que emerge do espelho
d'água até o meio de sua curvatura, sendo simetricamente completado. Os frisos no concreto
evocam o ponto central que gerou o desenho do arco pleno da arcada. A força da arcada está em
dissolver o contraponto entre uma textura cuidadosa e o tônus estrutural. Ou seja, a fôrma
contribui para a força da forma.
A solução do projeto contrapõe a presumida rudeza do concreto armado aparente com uma
solução brutalmente delicada. A esbelta dimensão das colunas dos arcos acentua o contraste
entre a solidez da estrutura e a leveza da forma.41 Seu caráter estático adquire um efeito mutante
através das perspectivas que seus arcos abrem e fecham, com o deslocamento do ponto de vista
do observador, tanto externa como internamente. Os arcos do Itamaraty adquirem e perdem
espessura e peso, movendo-se dinamicamente de acordo com o olhar de quem vivencia seus
espaços, ou para quem contempla sua própria escala monumental. Sua forma adquire uma força
plástica ainda maior quando de seu espelhamento na superfície das águas, quando emerge como
um palácio flutuante em pleno cerrado, como o Meteoro de Bruno Giorgi.
É preciso ainda destacar o esmerado cuidado com a cor do concreto do Palácio do Itamaraty. A
cor ocre do concreto tem a capacidade de qualificar sua textura, dignificando o projeto.42 Um
estudo do traço do concreto foi fundamental para ajustar sua particularidade cromática, tornando-o
um concreto exclusivo. Tal expressividade do concreto adveio dos testes realizados com cimentos
variados e com os agregados grosso e fino que são utilizados na “massa” do concreto, para atingir
a cor que confere ao Palácio uma carga de significado latente telúrico: como se metaforicamente a
terra do Cerrado estivesse impregnada na própria arcada.43 Em função desta pigmentação do
concreto, a arcada adquire variados efeitos de douramento, quando iluminada pela luz solar ou
artificialmente, o que revigora também sua inserção na paisagem noturna da Esplanada. O
contraste com os alvos palácios da Praça dos Três Poderes é assim estabelecido e Niemeyer
amplia a percepção da potência formal da arcada do Palácio do Itamaraty, redimensionando seu
impacto formal e imagético, sem nada reduzir a qualidade de seus espaços.
A modulação: soluções e dimensões do Palácio
A modulação da arcada e sua trama de 6x6m é tomada como referência na resolução dos
espaços internos, nas divisões e no arranjos das plantas. Esta modulação funciona como uma
39
Para maior precisão, é necessário adotar o uso do cento diferencial para “fôrma” e “forma”.
MENDES. Op. cit., p.49-50. Milton Ramos constrói um modelo com três arcos para estudar a fôrma
da concretagem, bem como a incidência sol e a projeção das sombras relativas à futura arcada. Estes jogos
de luz e sombra foram inclusive fotografados em horários diferentes: 9h, 12h e 16h. O modelo construído no
canteiro pode ser visto nos registros filmados da obra, vide filme “Copião” do Arquivo do Distrito Federal.
41
A coluna da Arcada tem perfil trapezoidal: no desenho ela tem 40cm de base e 5cm na outra, mas
a dimensão construída, isso vale 42cm e 7cm respectivamente. Seu comprimento é de 1,20m, ou seja 1/5M.
42
BRUAND. Op. cit., p.197
43
Para maiores especificidades sobre este aspecto e detalhes construtivos e estruturais da
construção do Palácio vide: SANTOS JÚNIOR. A estrutura do Palácio do Itamaraty.
40
regra projetual a ser respeitada, mas também oportunamente subvertida, através de seu múltiplos
e sub-múltiplos. Ou seja, 6x12, 6x18, 12x18, 12x12, 18x18... ou 3x3, 1,5x3, 3x4,4, 1,2x6... Dentro
de uma modulação com módulo M=6m, se inscrevem as dimensões do gabinete do ministro, os
planos de parede dos salões sociais ou o “Ponto de encontro” de Mary Vieira. Niemeyer concebe
as plantas do Palácio, organizando seus espaços em função desta trama de 6x6m. Enquanto o
valor simbólico da arcada e da modulação subordinam as demais decisões projetuais, as relações
entre a verdade estrutural e o funcionamento do edifício podem ser aferidas através da rigorosa
construção das plantas do Palácio.
Todas as áreas são derivações desta modulação: 3x6m, 6x4,5m, 6x9m, 12x30m, 18x18m até
30x54m. Esta organização da planta que subordinada a modulação se faz notar na definição do
vestíbulo do térreo que tem uma dimensão equivalente a 5Mx9M, ou seja, 30mx54m, totalizando
1620m². A dedução lógica das áreas sociais surpreende quando se compara suas dimensões com
seu porte, qualificando assim, a escala de um palácio. Este rigor também está presente na
solução da caixilharia, que é modulada em 1/5M, com 5 partes de 1,20m cada, ou ainda na
caixilharia dos salões superiores em que cada porta pivotante mede ¼M, ou seja, 1,50m. O
controle que Niemeyer faz desta precisão geométrica se traduz como a ordem de seu próprio
tratado, em que a técnica deve potencializar a forma, como um recurso que define uma estrutura a
ser apreendida também como imagem. Neste sentido, de acordo com Sophia, “...poderíamos dizer
que Niemeyer é um clássico”.44
O Palácio desenhado por Niemeyer estabelece uma grande possibilidades de usos dos salões
sociais, adequadas às diferentes possibilidades espaciais que as escalas dos eventos
demandam. Assim, é possível fazer pequenas recepções ou grandes festas sem comprometer a
escala da ambiência de convívio que tais salões devem proporcionar para o exercício das
atividades diplomáticas. Este jogo de possibilidades permite usar combinadamente os diferentes
salões e a varanda, com a continuidade espacial desejada, para que o evento transcorra no
mesmo lugar: no Palácio do Itamaraty. Assim, é possível articular a a Sala D. Pedro I com Sala
Portinari e a varanda, ou articulá-la com a Sala Brasília e a varanda. Ou ainda, usar somente a
Sala Bahia, ou a Sala Duas Épocas. Esta combinação de salões corresponde à diferentes áreas,
provendo o Palácio de uma ampla gama de possibilidades espaciais, com áreas entre 140m²,
342m², 504m², 846m², ou 990m². Excetuando as duas salas de banquete, com caráter mais
reservado, a soma dos espaços dos salões, da varanda e de seu jardim, totaliza a impressionante
área de cerca de 3.300m². O resultado arquitetônico surpreende o próprio Murtinho: “O palácio
funciona muito bem. Há outros ministérios das Relações Exteriores que têm grandes salões, mas
nenhum tem estas facilidades com estas dimensões.”45
Com relação às alturas relativas aos diferentes pavimentos do Palácio, percebe-se claramente
que esta altura se amplia na medida em que o usuário dos espaços do Palácio se desloca para os
níveis superiores, com um acréscimo de 65 e 72 centímetros na altura inicial do Vestíbulo. Assim,
as alturas passam de 2,83m para 3,50m e para 4,22m, ou seja dimensões mais pertinentes com a
altura humana do que com a lógica da geometria que rege a solução do projeto. O pé direto do
vestíbulo possui 7,10m, que é praticamente metade da altura da arcada, 14m. Niemeyer prioriza o
agenciamento do projeto a partir das plantas organizadas por planos opacos, transparentes ou
reflexivos e das correlações espaciais que elas organizam e hierarquizam, fazendo da varanda a
grande surpresa espacial do Palácio do Itamaraty.
O cotidiano diplomático, o cerrado e a varanda
“...para conhecer a natureza dos povos,
é preciso ser Príncipe, e para conhecer
a [natureza] dos príncipes, ser do povo.”
Maquiavel
44
45
TELLES. Arquitetura Moderna no Brasil: o desenho da superfície. p.83
Murtinho. Op. cit., p.08
O cotidiano diplomático do Palácio do Itamaraty em Brasília inicia suas atividades públicas com
uma festividade pouco afeita à sua rotina: uma “festa da cumeeira”. Em 20 de abril de 1966, o
então Chanceler Juracy Magalhães inaugura as arcadas do Palácio, legitimando o feito
construtivo. Aquilo que poderia ser um evento de dividendos políticos adicionais se transformou
num sinal claro —inclusive à própria instituição— de que Brasília era, de fato, a nova Capital e
deveria portanto abrigar a Casa do Rio Branco. Para tanto, a festa promovida pelo Chanceler
contou com a presença do Presidente, o Gal. Castello Branco, ministros, autoridade locais e
representantes das cinquenta missões diplomáticas credenciadas junto à chancelaria brasileira.
Diferentemente deste evento, a rotina de funcionamento do Itamaraty é bastante marcada por
códigos, procedimentos e hierarquias que distinguem os comensais, os convidados oficiais, os
convidados especais, os homenageados, etc.
Para otimizar os fluxos e respeitar tais hierarquias, Niemeyer abre acessos do Palácio do
Itamaraty nos quatro lados de sua planta, enfatizando o rito do acesso principal do Palácio voltado
para a Esplanada: um plano rente ao espelho d’água perpassa três arcos e se apresenta como
convite aos dignos usuários oficiais de seus salões. Este usuário do Palácio pode ser individual,
como é o caso da visita de chefes de Estado, embaixadores, ministros, generais, adidos,
cônsules; mas também pode se multiplicar, tornando-se um usuário coletivo, quando consideradas
as suas respectivas comitivas, preenchendo o grande vestíbulo com assessores, tradutores,
secretárias, seguranças, além dos jornalistas. Enquanto os servidores que trabalham no Itamaraty
utilizam seus respectivos acessos, há ainda um outro universo de usuários visita e habita seus
espaços: os turistas, que entre a surpresa e o deslumbramento se encantam com toda a potência
formal e espacial do Palácio.
No entanto, qualquer que seja a categoria dos usuários, o percurso é a chave de compreensão
dos espaços da arquitetura do Palácio do Itamaraty. As restrições funcionais à livre relação
exterior/interior enfatizam os acessos, ao mesmo tempo em que isolam idealmente a arcada sobre
o espelho d'água e um jardim aquático. Apesar das restrições a um livre percurso, é necessário
explorar sua riqueza espacial através da “promenade architectural”. Para Murtinho, o Palácio
funciona bem justamente por ativar tais transições espaciais, demandadas pelo exercício do poder
que representa. A transição interior/exterior sofre controles para ser iniciada, mas uma vez
assentido o acesso, outro nível de percepção espacial é ativado. Deambular torna-se parte da
própria experimentação do Palácio do Itamaraty franqueada aos seus usuários: autoridades, reis,
príncipes, imperadores, ditadores, embaixadores, comitivas e turistas. O vestíbulo do térreo abrese em majestosas visuais proporcionadas pelo vão de 30m, com zonas de sombras contrapondose aos reflexos difusos da luz refletida ou filtrada pelas obras de Athos Bulcão. A cidade e a
paisagem urbana são emolduradas pela caixilharia. O estratégico “Ponto de encontro” de Mary
Viera se mostra no limite entre o escultórico e o funcional, mobiliando o ambiente como um banco.
O vazio sinuoso na laje superior amplia as visuais internas com a Sala dos Tratados, o mezzanino
e outros espaços vestibulares. O jardim com plantas amazônicas opera como fundo para a escada
escultórica, que se materializa como o ponto dramático do arranjo espacial, sendo seu índice
plástico marcante.
A escultórica escada em concreto aparente —implantada no vazio subtraído da laje— transforma
o percurso hierárquico num passeio, promovendo a transição dos amplos espaços de chegada
para as dependências dos andares superiores. O percurso pela escada proporciona um giro
completo do olhar, abarcando os espaços vestibulares, conforme o croqui do corte especula.
Durante este percurso de ascensão são refeitas as relações dentro/fora, através das visuais que a
Sala dos Tratados abre sobre a Esplanada. Espetacularmente, a escada ativa a participação do
usuário no espaço, no exato momento em que ele se desloca para desempenhar suas funções
representativas, ou a prosaica atividade turística. Na continuidade dos percursos, Niemeyer
aponta uma segunda escada que se destaca para fora da estrutura da parede branca, como um
plano azul acarpetado, desdobrando-se em degraus, onde estarão os espaços do pavimento
superior: os grandes salões de festas e recepções. Assim, depois do estreitamento dos ângulos
de visão e do direcionamento do percurso, segue-se uma situação espacial surpreendente. Neste
último andar, Niemeyer define um continuum espacial que transforma todo o pavimento num único
grande espaço de sociabilidade, integrando a Sala D. Pedro I, a Sala Portinari, a Sala Duas
Épocas e a Sala Brasília, que também se prolongam no Salão Nobre: a varanda com seu jardim.
A varanda é um recinto de estar e um espaço para a convivência, incorporado ao sentido de
habitar no Brasil de modo tão ancestral, que sua origem oriental já desembarcou aqui junto com o
linguajar português. Originalmente a varanda é caracterizada como sendo “...um local alpendrado
de permanência aprazível (...) varanda é um refrescante local de lazer, de estar, na casa
tropical....”46 Ainda que assuma significados regionais mais específicos, vinculando-se ora às
atividades de estar, ora às atividades de refeição, sua presença doméstica no cotidiano consolida
a varanda como um espaço brasileiro de caráter tradicional e próprio. Ou seja, a varanda é
brasileira. A varanda está vinculada aos hábitos culturais de sociabilidade e convivência pública,
coletiva ou familiar desde sua configuração tipológica nas sedes dos engenhos de cana-deaçúcar. A varanda é um ambiente suficientemente interno aos domínios do proprietário e de sua
família, porém estrategicamente distante dos graus maiores da intimidade familiar. Além disso, a
varanda sempre pode oferecer um ponto de vista privilegiado, abrindo amplas perspectivas sob a
paisagem, apurando o olhar de seus habitantes e freqüentadores como um mirante dessa
paisagem, do lugar, do território e das cidades para onde se abre.
A varanda do Palácio do Itamaraty é o Salão Nobre do Palácio. A partir dela, vislumbra-se o
“espetáculo arquitetural” do próprio Niemeyer, na escala monumental concebida por Lucio Costa.
Deste lugar de sociabilidade aberto sobre a Esplanada dos Ministérios, avista-se o Congresso
Nacional, o Palácio do Planalto, o Supremo Tribunal Federal, o Palácio da Justiça, e os demais
ministérios. Tal como um mirante, da varanda se vislumbra o lugar da Praça dos Três Poderes e
se reformula a própria presença formal do Palácio do Itamaraty em relação aos demais edifícios
cívicos da cidade. O aspecto estrutural do Palácio é retomando através da arcada que, de potente
estrutura, revela-se como anteparo marcante das relações entre o edifício e a paisagem que se
percebe de sua varanda. Da varanda, a arcada emoldura o horizonte do Cerrado que se integra
ao Palácio, assegurando intimidade a quem pode debruçar-se sobre a escala monumental da
cidade, recostando-se em seu peitoril, abrigado sob seu arcabouço.
Com a integração espacial plena das salas de recepção com a principal sala de banquetes —a
Sala Brasília— a varanda também se torna um ambiente especial na dinâmica das cerimônias do
Palácio do Itamaraty. Os hábitos e os modos de vida informais, inerentes à convivência específica
das varandas, contribuem para alterar o perfil comum de funcionamento do Ministério, assinalando
outras possibilidades de sociabilidade e convivência nesses espaços. Neste sentido, o diplomata
Leite Ribeiro considera que “...reuniões descontraídas facilitam a vida profissional...”47 pois quando
“...despidos da formalidade, relaxados, [os diplomatas ficam] propensos a confidências e trocas de
informações...”48 Ao fortalecer a presença da varanda como um lugar singular na dinâmica social
do Palácio, Niemeyer subverte a rigidez do protocolo e acrescenta uma outra referência de
códigos sociais e comportamentais aos espaços de exercício do cotidiano diplomático. Com esta
tensão, a arquitetura —e o arquiteto— questiona os graus de formalidade, deixando em estado
latente a possibilidade de modernizar as práticas sociais.
Mais do que apenas um espaço arejado e sombreado, Niemeyer faz da varanda do Palácio do
Itamaraty o espaço de articulação simbólica entre a força do lugar, o devir político e o valor da
tradição, compartilhando das grandes expectativas de protagonismo do Brasil e reafirmando sua
própria convicção ideológica. Enquanto a arcada legitima a forma, a varanda emerge como um
novo valor no discurso de Niemeyer. Retomando a epígrafe, a varanda é o lugar/espaço em que
as naturezas do povo e dos príncipes podem interagir e conviver, quer seja pelos comportamentos
que a varanda instiga, quer seja pela situação espacial que ela representa nas cerimônias
palacianas. A varanda destrona a pose dos convidados do país que ali se faz representar como
anfitrião, instaurando códigos comportamentais próprios de sua cultura híbrida, de gênese multiracial, em espaços relacionais, modernos.
46
47
48
Para a definição de varanda vide LEMOS. História da Casa Brasileira. p.29 et seq.
RIBEIRO. Op. cit., p.166
Idem. p.166
A dinâmica social do Palácio assim transcorre ambientada entre os salões e a varanda, em que se
destaca a solução do “jardim suspenso”: trata-se de um plano quadrado, ligeiramente sobrelevado
em relação à laje do piso, que define um lugar suspenso dentro da varanda, interpondo-se às
relações dentro/fora, ou seja, contrapondo-se à paisagem do Cerrado, com espécies vegetais de
outra plasticidade. Trata-se de um oásis, demarcado por pisos de seixos rolados brancos e pisos
de mosaico português branco, que desenham caminhos por entre o jardim —evocando as veredas
de Guimarães Rosa. As próprias vigas do sistema estrutural são também reveladas,
transformando-se numa pérgola, captando luz para toda a varanda, equilibrando a sombra das
arcadas, que também resguardam o Palácio do Itamaraty na estação das chuvas.
Obras de arte, pedras, tapetes e blindex®
Enveredar pelos salões do Itamaraty é compartilhar da sobriedade e do relativo despojamento de
seus vestíbulos, salas e salões. Trata-se de um sentido de elegância sem concessões à
extravagância. O Itamaraty proclama uma elegância decente sem opulência, evitando a
ostentação, ao subordinar o sentido de nobilidade às finalidades práticas e programáticas que
suas funções cívicas requerem. Para tanto, a importância dos espaços internos é patente, e em
1966 Murtinho já possuía as plantas do interior do Palácio anunciando: “Já estamos pensando nos
móveis!”49 No Itamaraty, os espaços internos são agenciados para valorizar a integração das
obras de artes à arquitetura, equipando o Palácio com móveis antigos e modernos, para fazê-lo
funcionar.
A concepção espacial do Palácio do Itamaraty prioriza o vazio como fator organizador do poder ali
representado. Entre a solenidade dos espaços de recepção, a festividade da varanda e os rituais
dos gabinetes e dos salões de banquete, configura-se um espaço contínuo por entre tapetes,
poucos móveis e muitas obras de arte. Trata-se de uma coleção de arte primorosa com Franz
Post, Bruno Giorgi, Debret, Tommie Ohtake, Athos Bulcão, Ceschiatti, Milton Dacosta, Manabu
Mabe, Candido Portinari, Mary Vieira, um afresco de Volpi, além de mapas, desenhos e objetos
presentes de visitantes, como um antigo biombo chinês. Assim, enfatiza-se uma lógica relacional
em que tanto as obras de arte como as peças do mobiliário são percebidas mutuamente. Os
quadros, as tapeçarias e as esculturas da coleção do Palácio convivem com arcazes, cadeiras,
aparadores, canapés, marquesas, papeleiras, além das louças, da prataria e dos tapetes. Menos
do que a finesse, vale a função imprescindível que os tapetes desempenham, caracterizando
ambiências em meio ao espaço contínuo, demarcando lugares —tal como o tapete preto de Mies
van der Rohe no Pavilhão de Barcelona em 1929, ou como o próprio Niemeyer resolvera o Salão
Verde do Congresso Nacional: tapetes circulares sobrepostos ao carpete.50 Assim, os espaços de
mobiliário rarefeito dos amplos salões do Palácio do Itamaraty tornam-se aptos para promover os
encontros entre diplomatas, comensais, autoridades e demais convivas, ora livremente
ambientados entre os salões e a varanda.
A materialidade do projeto arquitetônico é resolvida a partir da escolha de um seleto rol de
materiais, destacando-se, a maneira como tais materiais são tratados em suas relações múltiplas.
Com a finalidade de manter a sobriedade do Palácio, mas também fazer do Itamaraty uma
arquitetura inequivocamente brasileira, Niemeyer explorará madeiras, pedras, carpetes, tecidos e
vidros, além do próprio concreto. Além da treliça de Athos Bulcão, as madeiras serão utilizadas no
desenho dos peitoris instalados no prolongamento da caixilharia e no revestimento das faces
largas dos pilares internos, valorizando o concreto da arcada. Niemeyer usa os mármores e os
granitos como materiais que traduzam a perenidade inerente a um palácio. Niemeyer valoriza as
49
MENDES. Op. cit., p.56. Acrescenta-se que também foram encontradas plantas da OCA com
proposições para os espaços internos do Palácio.
50
O caráter fundamental dos tapetes pode ser aferido através de uma planta do Palácio com a
“distribuição dos tapetes” pelos salões e gabinetes. Esta planta é acompanhada por uma legenda que
contém os nomes dos tapetes —Mechhed rouge, Kagweenn brique, Kirman rouge, Kachan rouge, Parchallo
bleu, etc— suas dimensões, bem como os respectivos preços em dólar, assinalando as novas aquisições
em Beirute.
pedras de extração nacional,51 em que pese o valor do uso dos mármores e granitos como
material evocativo do poder.
A paginação dos pisos sob o controle de Athos Bulcão, assegura a continuidade entre os espaços
e ao mesmo tempo relativiza a percepção das grandes dimensões de suas superfícies. Os pisos
distinguem os salões do Palácio ao mesmo tempo que recuperam a importância dessas
superfícies. No Itamaraty, mármores e granitos são tomados como material de uso relacional —
cuja flexibilidade faz com que o mesmo material seja ora piso, ora parede, acentuando os
contrastes cromáticos entre a paginação dos pisos e a modulação do revestimento das paredes.
Também são explorados os graus de polimento de sua superfície, dando maior rendimento
plástico ao mesmo material, ampliando os contrastes e as texturas.
O alumínio é o material industrializado mais largamente utilizado. O desenho rigoroso da
caixilharia otimiza a produção dos perfis, bem como a execução da vedação de todo o Palácio,
num desenho de legível racionalidade. Além disso, a caixilharia fortalece a “unidade arquitetural”
do Itamaraty com os demais Palácios. As leves janelas em guilhotina mantém a autonomia dos
usuários, libertando os funcionários do controle exclusivo de suas aberturas. O vidro é outro
material industrial empregado, quer seja como vedação da caixilharia, quer seja como material de
revestimento. Vidros escuros —do tipo fumê— se diferenciam dos vidros verdes dos demais
Palácios, obstruindo a plena percepção do seu funcionamento interno visto de fora, embora esta
relação dentro/fora seja mantida em seu interior. Niemeyer valorizou a capacidade de
espelhamento dos planos de vidro na superfície da parede voltada para a face Oeste, explorando
as propriedades reflexivas de sua geometria, retomando o diálogo com os espelhos da sede
carioca sem fazer concessões. Destaca-se uma grande superfície de vidros planos junto às salas
D. Pedro I, Portinari e Duas Épocas, implantada precisamente no eixo médio do arco, que através
do reflexo amplia a dimensão e mantém a ambiência dos salões, ao mesmo tempo em que o jogo
de reflexos orienta os olhares para o espaço da varanda.
A inauguração de 1970: a conclusão de um projeto
Em abril 1967, finalmente mobiliado e equipado, o Palácio abriga sua primeira recepção oficial,
encerrando o mandato do Gal. Castello Branco, cujo último ato foi a assinatura do decreto que
batizava o palácio com o nome consagrado internacionalmente à chancelaria brasileira: Palácio do
Itamaraty. Num ato de reconhecimento da coisa pública que o Palácio representava para a cidade,
no dia seguinte —o feriado nacional e local de 21 de abril— Wladimir Murtinho abre o Palácio à
visitação pública, mantendo-o impecavelmente, como no dia anterior, recebendo um grande
número de visitantes, vinculando o Palácio do Itamaraty em definitivo com os moradores da
cidade.52 No ano seguinte, em 1968, em meio às tensões políticas, o Itamaraty receberia a Rainha
Elizabeth II da Inglaterra —evento que dominaria a vida social do Palácio e de Brasília até a
inauguração definitiva do Palácio, em 20 de abril de 1970. Nesta ocasião, o empenho de Murtinho
e seus então auxiliares foi reconhecido, numa das muitas atividades da agenda diplomática
daquele dia, que culminou com um baquete. Se é incerto o fato de JK ter conhecido o Itamaraty,
também não há indícios da presença de Lucio Costa, Niemeyer, Athos Bulcão ou Milton Ramos
nesta festa, mas sabe-se que Pelé era a grande personalidade que circulava sobre seus tapetes,
entre autoridades de diversas patentes, dominando a grande área dos salões e da varanda.
Quando desta inauguração derradeira, já haviam sido superadas as questões que dificultavam a
mudança do Itamaraty do Rio de Janeiro para Brasília: falta de comunicação direta com Nova
York e Genebra, a difícil articulação territorial aeroviária, os espaços adequados para os arquivos
e documentação confidencial. Porém outra questão que sempre dificultava a transferência —o
apartamentos funcionais para diplomatas— não havia sido resolvida. As superquadras com
51
Mármore branco Italva (polido), mármore branco Sto. Antônio (apicoado) e granito Andorinha
(polido).
52
MURTINHO. Op. cit., p.19. Nesta ocasião, Murtinho determina a abertura do Palácio à visitação
pública, mantendo as obras de arte e os tapetes, retorquindo: “...tapete é feito pra pisar por cima”.
unidades habitacionais para diplomatas que o diplomata Murtinho pretendia fazer utilizando um
sistema de pré-fabricação, haviam sido interrompidas, fato que ampliaria ainda mais a
contribuição institucional no desenvolvimento de novas questões do campo arquitetônico a partir
das obras de Brasília.53 Suplantando o longo processo de transferência, arrastado contra a
vontade de muitos diplomatas da própria Casa, Murtinho, tantos arquitetos e colaboradores
finalmente haviam consumado o projeto arquitetônico de Oscar Niemeyer.
Passados dez anos do início das obras, no contexto político do “milagre econômico” e das
grandes obras da Usina Hidrelétrica de Itaipu e da Rodovia Trans-amazônica, o Palácio do
Itamaraty de Niemeyer se instaura em definitivo no campo da arquitetura brasileira e na paisagem
de Brasília, quando a cidade também já se configurava plena de outras transformações urbanas e
sociais.54 Neste projeto, Niemeyer domina a complexidade arquitetural intrínseca ao programa e
sem exacerbar sua fala de praxe em defesa da liberdade da concepção formal. Ao mesmo tempo,
Niemeyer opera com a imagem do fato arquitetônico e mantém o vigor da qualidade dos espaços
e de sua materialidade construtiva. Enquanto a arcada permanece como o fator imagético
apreendido pelo visitante e pelo usuário, o arquiteto transforma o funcionamento da instituição.
Através dos usos intrínsecos à varanda, o arquiteto revoluciona sua própria arquitetura,
revigorando e subvertendo os significados que só ele mesmo pode instaurar na praxis de seu
discurso, ratificando sua convicção política, sem alarde.
O Palácio do Itamaraty conseguiu a proeza de sedimentar no cerrado a presença dos vetores
mais destacados do modernismo brasileiro —Lucio Costa, Niemeyer, Burle Marx, Portinari— num
contexto social, político e cultural que já não correspondia mais àquele projeto de modernização,
nem e àquela modernidade almejada outrora, materializada no Ministério da Educação. Contudo,
a investigação de novos documentos e referências do processo projetual e construtivo do Palácio
do Itamaraty contribuem para o reconhecimento dos próprios processos históricos da arquitetura
brasileira, instaurando outros nexos para abordar suas complexidades no campo arquitetônico
pós-Brasília. Assim, recobra-se também que a complexidade da obra arquitetônica não se origina
idealmente isolada dos contextos sociais, políticos e culturais, na prancheta de um arquiteto —
mesmo que ele seja genial. A arquitetura do Palácio do Itamaraty existe e passa a existir,
interagindo plenamente com estes contextos, quer seja concordando, quer seja negando, quer
seja subvertendo, quer seja atacando ou acatando seus valores, numa condição de tensão
permanente com todo o campo arquitetônico ao qual as obras de Oscar Niemeyer —
inexoravelmente— pertencem.
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53
MENDES. Op. cit., p.48 et seq. As superquadras para diplomatas seriam as SQN 107, 108, 307,
308. Mendes destaca que o processo de pré-fabricação foi especificado no edital para construção dos
blocos, totalizando 1800 apartamentos. O edital, formulado por Murtinho, apontava a “obrigação” do uso de
se construir uma usina de pré-fabricação para a produção dos edifícios, que seria posteriormente cedida
sem ônus para a NOVACAP. Vale destacar que havia uma comissão mista entre o Ministério das Relações
Exteriores, as construtoras e a Universidade de Brasília, a UnB —então representada pelo arquiteto Lelé.
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Para esta pluralidade vide FICHER. Brasílias.
JAMESON, Fredric. Pós-modernismo. A lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo, 1996.
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Desenhos do projeto arquitetônico do Palácio do Itamaraty. Arquivo do Departamento de Arquitetura do
Ministério das Relações Exteriores. Brasília; desenhos não publicados; consulta e uso restritos.
“Copião”, filme da Novacap, pertencente ao Arquivo do Distrito Federal com imagens feitas
aproximadamente entre 1967 e 1970 que registram diferentes etapas do Palácio do Itamaraty; duração de
apenas 43''.
Agradecimentos
Ministério das Relações Exteriores (MRE), Min. Paulo César de Camargo, Sec. Henrique A. Ferrari, Luiz
Antonio Ewbank (ERERio), Roberto Luiz Arraes Lopes (MRE), Arq. Antonio Aníbal da Motta e Arq. Patrício
Porto Filho (MRE), Antonio C. Xavier (MRE), Arquivo Público do Distrito Federal, Jornalista Conceição de
Freitas (Correio Braziliense), Arq. Carlos Henrique Magalhães, Prof. Dr. Hugo Segawa (FAU-USP), Profª.
Drª. Fernanda Fernandes (FAU-USP) e Profª. Drª. Sylvia Ficher (FAU-UnB).
FOTOGRAFIAS
FOTO_01: fonte: Eduardo Pierrotti Rossetti_2008
FOTO_02: Fachada posterior do palácio da antiga sede da
chancelaria brasileira no Rio de Janeiro: espelho d'água,
cisnes e palmeiras imperiais.
fonte: Eduardo Pierrotti Rossetti_2008
FOTO_03: Maquete do que seria o Ministério das Relações Exteriores em 1959: destacam-se os vazios da
laje de cobertura, uma volumetria de planta quadrada para o edifício representativo e a presença de um
edifício administrativo menor que um Ministério-tipo, com 5 pavimentos.
fonte: Revista Brasília nº.30, junho/1959. s/p
FOTO_04: O Itamaraty ainda em obras com a super-estrutura da arcada já completa.
fonte: Arquivo Público do Distrito Federal; 20/junho/1966
FOTO_05: O Itamaraty registrado cerca de um mês depois de sua
derradeira inauguração em 1970. Destaca-se conexão direta entre o
Palácio e a Esplanada, sem a presença do toldo que cobre este
nobre acesso.
fonte: Arquivo Público do Distrito Federal; maio/1970
FOTO_06: O Palácio flutuando sobre o espelho d'água com com
jardins aquáticos de Burle Marx, com destaque para o renque de
buritis à esquerda.
fonte: Arquivo Público do Distrito Federal; 11/janeiro/1970
FOTO_07: fonte: Eduardo Pierrotti Rossetti_2008
FOTO_08: Localização do Palácio do Itamaraty e do Palácio da Justiça na Esplanada dos
Ministérios, enfatizando a transição simbólica entre a Esplanada e a Praça dos Três
Poderes, articulada pelo Congresso Nacional.
fonte: Arquivo Público do Distrito Federal; 11/janeiro/1973
FOTO_09: fonte: Eduardo Pierrotti Rossetti_2008
FOTO_10: Itamaraty e o Palácio da Justiça: além dos espelhos d'água e do concreto armado
aparente, o valor da arcada estabelecia um vínculo mais forte entre ambos, até a reformulação
dos arcos do Palácio da Justiça pelo próprio autor, em meados nos anos 80.
fonte: Eduardo Pierrotti Rossetti_2008
FOTO_11: O Congresso Nacional visto da varanda do Itamaraty. Destaca-se o peitoril
definido pelo módulo da própria caixilharia com um apoio de madeira generoso e
estratégico para debruçar-se, recostar-se, deixar as taças...
fonte: Eduardo Pierrotti Rossetti_2008
FOTO_12: Desenho do arco da extremidade da arcada, que mostra a alteração do traçado
da curva do arco definida com 3 pontos diferentes.
Fonte: Arquivos do Setor de Arquitetura do Ministério das Relações Exteriores
FOTO_13: Desenho que mostra a articulação entre o arco padrão e o arco da extremidade da
arcada, em que se percebem as diferenças entre ambos. Destaca-se o desenho da textura do
concreto, com linhas bem marcantes para configurar a arcada.
Fonte: Arquivos do Setor de Arquitetura do Ministério das Relações Exteriores
FOTO_14: fonte: Eduardo Pierrotti Rossetti_2008
FOTO_15: A transparência da caixa de vidro quando iluminada revela os salões, a circulação e
o afresco de Volpi para a capela dedicada a D. Bosco.
fonte: Eduardo Pierrotti Rossetti_2008
FOTO_16: Textura e solução do concreto aparente do Palácio do Itamaraty.
fonte: Eduardo Pierrotti Rossetti_2008
FOTO_17: Desenho da planta do 3º pavimento, onde estão os salões do Palácio e a varanda. Destaca-se a
trama de eixos da modulação estrutural e espacial de 6x6m.
Fonte: Arquivos do Setor de Arquitetura do Ministério das Relações Exteriores
FOTO_18: Desenho da planta do térreo do Itamaraty em que se percebe o controle dos espaços baseado
na mesma modulação de 6x6m, com destaque para o Vestíbulo principal com seus 30m de vão e uma
área de 1.620m2. Notam-se os núcleos de circulação e de serviços simetricamente dispostos, bem como
os diferentes acessos ao Palácio. Trata-se de uma planta publicada num caderno especial sobre Niemeyer
na revista L'Architecture D'aujord'hui nº.171, 1974. s/p
FOTO_19: O Salão de Banquetes abrindo-se para a varanda e seu jardim através dos painéis
pivotantes. Ao fundo, enquadrado pela arcada, o Palácio da Justiça.
fonte: Eduardo Pierrotti Rossetti_2008
FOTO_20: A varanda: o Salão Nobre do Palácio do Itamaraty.
fonte: Eduardo Pierrotti Rossetti_2008
FOTO_21: O jardim e a varanda são iluminados por uma pérgola que decorre do não
fechamento do vão entre as vigas do sistema estrutural da laje de cobertura. Note-se que
as vigas da laje de cobertura ficam parcialmente rebaixadas, criando uma textura com
contrastes de claro/escuro sobre todo o pavimento.
fonte: Eduardo Pierrotti Rossetti_2008
FOTO_22: A majestosa escada de acesso ao vestíbulo superior —o mezzanino— que é
parte fundamental no percurso de acesso aos salões sociais do Palácio.
fonte: Eduardo Pierrotti Rossetti_2008
FOTO_23: Os dois vestíbulos conectados pela escada e o jardim ao fundo com plantas
amazônicas. Destaca-se o polivolume “Ponto de encontro” de Mary Vieira.
fonte: Eduardo Pierrotti Rossetti_2008
FOTO_24: A contribuição de Athos Bulcão: o baixo relevo da parede, a treliça e a paginação do piso.
fonte: Eduardo Pierrotti Rossetti_2008
FOTO_25: A Sala dos Tratados articula as duas alas em que se localizam os gabinetes
do Ministro e do Secretário Geral. Destaca-se a treliça de Athos Bulcão e a mesa em que
a Princesa Isabel assinou a Lei Áurea.
fonte: Eduardo Pierrotti Rossetti_2008
FOTO_26: A total transparência entre a varanda, a Sala Portinari, a Sala Duas Épocas é
duplicada com o espelhamento pela superfície de vidros escuros. O pilares são
revestidos em madeira, permanecendo como índices espaciais que se articulam com os
planos das paredes.
fonte: Eduardo Pierrotti Rossetti_2008
FOTO_27: Tapetes, móveis e obras de arte organizam os espaços sociais do Palácio. Estes
dois quadros de Portinari foram expostos no pavilhão brasileiro na Feira de Nova York, em
1939.
fonte: Eduardo Pierrotti Rossetti_2008
FOTO_28: o Meteoro de Bruno Giorgi, a transparência dos espaços internos durante a noite,
a treliça e a varanda.
fonte: Eduardo Pierrotti Rossetti_2008
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A arquitetura do Palácio Itamaraty