Caso Clínico
O tipo facial e a morfologia do
arco dentário no planejamento
ortodôntico
Alexandre de Almeida Ribeiro*
Resumo
A morfologia do arco dentário está relacionada diretamente com as demais partes que formam o complexo craniofacial,
que juntas determinam o tipo facial de
cada indivíduo. Reconhecer as características do arco dentário é essencial para
a manutenção, ao final do tratamento,
do estado de equilíbrio entre os dentes e
os tecidos musculares. Anomalias como
a agenesia dentária podem induzir alterações alveolares na base óssea, masca-
rar a sua verdadeira morfologia e causar
confusão no diagnóstico. No caso clínico
apresentado, as alterações indesejáveis
no início do tratamento foram causadas
por um diagnóstico incorreto, decorrente
da não-observação das partes que compunham o complexo craniofacial do paciente. Felizmente, tal situação pôde ser
revertida, o que evidencia ainda mais o
papel de destaque de um planejamento
correto como aspecto fundamental de
um bom tratamento ortodôntico.
Palavras-chave: Morfologia. Arco dentário. Tipo facial.
*Mestre e especialista em Ortodontia pela URFJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).
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Rev. Clín. Ortodon. Dental Press, Maringá, v. 8, n. 5, out./nov. 2009
Alexandre de Almeida Ribeiro
INTRODUÇÃO
O reconhecimento da morfologia do arco dentário é de fundamental importância para o sucesso do tratamento ortodôntico. O seu formato está relacionado diretamente com as demais
partes do complexo craniofacial, as quais, juntas, determinam o
tipo de face de cada indivíduo, que pode ser classificado como
braquifacial, mesofacial ou dolicofacial3.
Originário do grego brakhuképhalo, o termo braquicéfalo
tem o significado literal de “cabeça curta” (Dicionário Houaiss)
e indica claramente a preponderância da dimensão transversa
da face em relação à dimensão vertical. A determinação genética
para essa condição atua similarmente no comprimento e dimensão transversa da base do crânio, assim como no desenho parabólico do arco dentário. Essa premissa torna lícita a afirmação
de que indivíduos braquifaciais apresentem também arcos dentários onde a largura é predominante, determinando um aspecto
morfológico “quadrado”, considerando-se, é claro, que o crescimento tenha sido pleno e sem interferências funcionais2,3,4,5.
Já a categoria dos dolicofaciais apresenta a predominância
da altura em relação à largura da face, assim como arcos dentários mais atrésicos e de aspecto “triangular”. Enquanto isso, os
indivíduos mesofaciais tendem a apresentar um equilíbrio entre as dimensões transversal e vertical que formam o complexo
craniofacial2,3,4,5.
O reconhecimento das características morfológicas do arco
dentário é essencial para a correta abordagem ortodôntica – especialmente na ausência de atresias –, pois a preservação das
mesmas pouco afetará o estado de equilíbrio entre os dentes e
os tecidos musculares4,5. A negligência dessas características será
prontamente visualizada no decorrer do tratamento como alterações no posicionamento dos incisivos e na distância intercaninos.
Fatores ambientais, como hábitos nocivos de sucção digital
e/ou interposição lingual, podem originar alterações morfológicas, especialmente no arco dentário superior. No entanto, o
caso clínico que será apresentado parece sugerir que ausências
dentárias podem, também, levar a alterações esqueléticas alveolares e de posicionamento dentário, mascarando a verdadeira
caracterização genética que determina o tipo facial e, consequentemente, o padrão morfológico do arco dentário.
CASO clínico
A observação da face da paciente nas normas frontal e lateral demonstrava equilíbrio funcional musculoesquelético, inserido em um perfil reto, o que indicava uma má oclusão de origem
estritamente dentária, concentrada exclusivamente no aspecto
dentoalveolar (Fig. 1A). Tais características pressupunham o
correto posicionamento espacial das bases ósseas dentárias entre si e em relação à base do crânio, morfologicamente corroborado pelo aspecto de selamento labial passivo, ângulo nasolabial
adequado e sulco mentolabial bem formado, pela igual participação do mento e lábio na sua caracterização. A predominância
da dimensão transversa da face, em detrimento da dimensão
vertical, caracterizava o tipo facial da paciente como braquifacial (Fig. 1B).
Essa informação foi corroborada pela análise da radiografia
em norma lateral, que mostrava claramente a hipodivergência entre os planos cefalométricos representados pelas linhas S-N (base
do crânio), ENA-ENP (plano palatino) e da base óssea mandibular.
Além disso, o ângulo goníaco fechado era mais uma característica que denunciava a braquicefalia apresentada pela paciente.
Ainda nesse aspecto radiográfico, a relação entre o longo eixo
do incisivo superior e o plano palatino (ENA-ENP) se encontrava
ideal, com os incisivos centralizados entre as tábuas ósseas vestibular e palatina na base óssea maxilar. Já citada anteriormente, a
boa conformação do ângulo nasolabial estava diretamente condicionada a esse bom posicionamento dentário (Fig. 2).
A avaliação clínica intrabucal mostrava características distintas entre as formas dos arcos dentários superior e inferior. De
aspecto morfológico “retangular”, ou “quadrado”, o arco superior correspondia prontamente ao tipo facial da paciente, com
predominância da dimensão transversa em sua conformação.
Esse arco dentário se encontrava pleno, sem ausências dentárias,
e com pequeno apinhamento na região anterior. Paradoxalmente, o arco inferior se apresentava com morfologia “triangular”.
Na região anterior, além do leve apinhamento e da ausência de
dois incisivos, notava-se a pobre reabilitação proporcionada por
uma prótese adesiva atuando como um terceiro incisivo, localizado exatamente sobre a linha média (Fig. 3A, B). O diagnóstico
radiográfico confirmava a agenesia de dois incisivos inferiores,
mostrando ainda a inclinação do pôntico direito, o que inviabilizou a colocação de prótese sobre implante na época dessa
“reabilitação” (Fig. 4).
Na relação interarcos, verificou-se bases ósseas bem posicionadas e uma sobremordida profunda bem característica dos
indivíduos braquifaciais, assim como sua etiologia: incisivos
centrais superiores extruídos e arco inferior com acentuada curva de Spee. Em outras palavras, extrusão e retroinclinação dos
dentes anteroinferiores. Além, é claro, da óbvia discrepância de
Bolton por deficiência de massa dentária inferior (agenesia dos
incisivos) que, sabidamente, proporciona a ocorrência desse tipo
de má oclusão (sobremordida), podendo estar associada também
ao trespasse horizontal acentuado1,6,9 (Fig. 3C, D, E).
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A
B
FIGURA 1 - Fotografias faciais iniciais em normas: A) lateral e B) frontal.
A
B
D
E
FIGURA 3 - Fotografias intrabucais iniciais.
OBJETIVOS DO PLANO DE TRATAMENTO
Considerando-se as características da má oclusão apresentada, foi possível enumerar os objetivos do tratamento. Dentre
eles, a preservação das características essenciais, como o posicionamento anteroposterior dos incisivos superiores, devido ao
íntimo relacionamento com os lábios, assim como a correção dos
trespasses horizontal e vertical e a obtenção de espaço para a
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FIGURA 2 - Radiografia cefalométrica inicial, com
hipodivergência dos planos cefalométricos.
C
FIGURA 4 - Diagnóstico radiográfico confirmando
a ausência de dois incisivos inferiores e o malposicionamento do pôntico direito.
colocação de um implante na região dos incisivos.
A coordenação tradicional dos arcos de nivelamento, devido às características do arco inferior, se mostraria um equívoco
frente ao diagnóstico apresentado. As alterações indesejáveis
decorrentes desse ledo engano, assim como sua intervenção e
correção, são discutidas a seguir.
Alexandre de Almeida Ribeiro
DISCUSSÃO CLÍNICA
Ao levarmos em consideração a morfologia do arco superior
isoladamente, esse notadamente se encontrava “quadrado”, com os
incisivos centrais e laterais se apresentando praticamente em linha
reta, como se formassem um platô naquela área do arco dentário.
Ainda, a relação entre o longo eixo do incisivo superior e o plano palatino se encontrava ideal, com os incisivos centralizados entre as tábuas ósseas vestibular e palatina na base óssea maxilar. O
ângulo nasolabial bem formado comprovava tal fato e, além disso,
os lábios finos da paciente não suportariam qualquer vestibularização dos incisivos superiores.
Esse bom posicionamento podia ser também percebido pelo
ângulo reto formado, na radiografia em norma lateral, entre a
superfície vestibular do incisivo superior e a linha imaginária do
plano horizontal. Essa condição é essencial para a estética do sorriso, tanto na norma frontal quanto na lateral. Dessa maneira, em
nenhuma hipótese o torque dos incisivos superiores poderia ser
alterado.
Na relação interarcos, o relacionamento anteroposterior entre
as bases ósseas não poderia ser melhor, com molares e caninos
em relação de Classe I, condizente com o perfil facial apresentado. Os trespasses horizontal e vertical, no entanto, se encontravam
aumentados, o que se explicava pela diminuição do comprimento do arco dentário inferior em virtude da discrepância de Bolton
(deficiência de massa dentária pela agenesia de dois incisivos), da
acentuada curva de Spee e do apinhamento dentário anterior.
No planejamento ortodôntico típico, o arco superior deve se
ajustar ao arco dentário inferior. Para esse caso apresentado, no entanto, importante ressalva deveria ter sido levada em conta, já que
o arco inferior é que deveria ser coordenado ao superior. A justificativa para tal atitude é centrada na relação direta entre o tipo facial,
a morfologia da base do crânio e a forma dos arcos dentários.
Ao se considerar o arco inferior como modelo para a coordenação dos arcos dentários, problemas começaram a surgir, especialmente no posicionamento dos incisivos centrais superiores.
Além da clara inclinação vestibular – que empobrecia a estética do
sorriso e do suporte labial –, existia também o desalinhamento das
bordas incisais. A investigação da origem desses problemas trouxe ao cerne da questão a morfologia parabólica do arco superior,
que claramente estava sendo alterada de uma forma “quadrada”
para uma “triangular”. Essa mudança levava a uma diminuição da
distância intercaninos, e consequentemente do perímetro anterior
do arco para o nivelamento dos incisivos, gerando apinhamento e
inclinação dentária (Fig. 5A, B).
A correção para os problemas gerados no arco superior se
baseou na recuperação da morfologia original pela manipulação
do arco de nivelamento, restabelecendo a distância intercaninos
original e planificando a região anterior da parábola, o que paulatinamente dirimiu as irregularidades geradas pelo desrespeito à
morfologia natural do arco dentário (Fig. 5C).
A partir desse momento, e contra todas as prerrogativas do
tratamento ortodôntico convencional, o arco inferior é que passou
a ser coordenado de acordo com a morfologia do superior, já que
era esse que se encontrava pleno e em acordo morfológico com as
características braquifaciais da paciente em questão.
O arco inferior se apresentava “triangular” provavelmente pelo
reposicionamento mesial dos caninos inferiores em virtude das
duas agenesias encontradas. A morfologia triangular associada à
severa curva de Spee e ao apinhamento na região anterior foram,
de certo modo, acalentadores, já que o simples alinhamento e nivelamento do arco inferior naturalmente dirimiu tais irregularidades.
Isso é explicado a seguir.
Como o alinhamento e o nivelamento são de natureza expansiva e extrusiva, a simples sequência de fios corrigiu o problema
da curva acentuada e do apinhamento anterior à custa de forte
projeção dos incisivos e alguma expansão na área de caninos. A
anatomia da sínfise mandibular – farta em sua dimensão, como é
característica dos braquifaciais – favorecia esse tipo de movimento. A preservação da área de gengiva ceratinizada na região dos
incisivos, ao final do tratamento, corrobora tal fato. A inclinação
vestibular somada à nova morfologia “quadrada” do arco inferior
corrigiram os trespasses horizontal e vertical e propiciaram espaço
mesiodistal não só para o aumento das coroas dos incisivos, mas
também para a colocação da prótese sobre implante (Fig. 6). O aumento da massa dentária inferior por meio de um procedimento
de Dentística dirimiu a discrepância de Bolton, presente ao início
do tratamento devido à deficiência de massa dentária inferior6,7,8.
A projeção dos dentes anteriores favoreceu a correção do trespasse horizontal, assim como da sobremordida, por uma intrusão
relativa dos incisivos, causada pelo efeito de vestibularização desses dentes. A força de reação ao movimento dos incisivos estimulou alguma extrusão posterior, perfeitamente aceitável para as características musculares de um paciente braquifacial.
Degraus de intrusão associados ao torque vestibular na região
dos incisivos superiores auxiliaram na correção da sobremordida
profunda, pela intrusão por movimento de translação dos quatro
dentes anteriores (Fig. 7).
Previamente à remoção do aparelho fixo e da clareação dentária, procedeu-se a reabilitação estética inferior, pelo aumento
coronário, inserção do implante osteointegrado na linha média e
confecção da prótese sobre implante (Fig. 8).
Ao final do tratamento, os incisivos centrais superiores se
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encontravam muito próximos do posicionamento do início da
terapia ortodôntica (Fig. 9, Tab. 1), fundamental para a preservação do posicionamento do lábio superior. O arco superior mostra
A
B
a manutenção de sua morfologia, enquanto no inferior é nítida
a alteração morfológica, notadamente pelo ganho na dimensão
transversa (Fig. 10).
C
FIGURA 5 - A) Morfologia parabólica do arco superior de aspecto “quadrado”; B) alteração da morfologia natural para um aspecto “triangular”, causando a diminuição da distância intercaninos, assim como do espaço para a correta acomodação dos incisivos, que se encontravam desnecessariamente apinhados; C) correção
da forma natural do arco e do espaço para os incisivos, agora devidamente alinhados, pela simples manipulação do arco de nivelamento.
A
B
C
FIGURA 6 - A) Morfologia triangular inicial do arco inferior, B) mecânica preservando as características iniciais e C) arco finalizado, após a coordenação segundo
as características do arco superior, com expressivo ganho na dimensão transversa do arco.
A
B
C
FIGURA 7 - Degrau de intrusão entre os incisivos laterais e os caninos, e a acentuação do torque vestibular no arco retangular, o que possibilitou a intrusão por
movimento de translação dos incisivos superiores.
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tabela 1 - Medidas cefalométricas relacionadas ao posicionamento dos incisivos superiores e inferiores entre si e em relação às suas respectivas bases ósseas.
MEDIDAS
PRÉ-TRATAMENTO
PÓS-TRATAMENTO
1.NA
29°
32,5°
1-NA
8mm
8mm
1.PP
112°
116°
1.NB
19°
32°
1-NB
3mm
5mm
IMPA
92°
107°
1.1
132°
113°
A
FIGURA 8 - Reabilitação com prótese sobre implante na área dos incisivos inferiores.
B
FIGURA 9 - Radiografias cefalométricas inicial (A) e final (B): o posicionamento dos incisivos superiores
se encontra satisfatório ao final do tratamento, mantendo o padrão facial da paciente, enquanto é nítida a
inclinação vestibular dos incisivos inferiores em decorrência da mecânica ortodôntica aplicada.
FIGURA 10 - Fotografias intrabucais finais. Clareação dentária realizada, trespasses horizontal e
vertical corrigidos. Coroa provisória na prótese sobre implante, que aguardava o final da clareação
para ser substituída.
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O tipo facial e a morfologia do arco dentário no planejamento ortodôntico
FIGURA 11 - Fotografias intrabucais após um ano de contenção.
CONCLUSÃO
As alterações morfológicas apresentadas no arco inferior, possivelmente em decorrência das agenesias dentárias, mascararam,
no aspecto dentoalveolar, a verdadeira morfologia da base óssea
mandibular.
O equívoco de considerar como correta a forma do arco dentário inferior, indo contra todas as características anatômicas do
complexo craniofacial, trouxe alterações estéticas e funcionais indesejáveis ao longo do tratamento.
O planejamento inicial foi imprudente ao neglicenciar a
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localização real do problema oclusal, e poderia resultar facilmente em insucesso ao final do tratamento. Felizmente, tal situação
pode ser revertida, destacando ainda mais o papel do planejamento
como aspecto fundamental de um bom tratamento ortodôntico.
Reconhecer as características anatômicas de cada indivíduo, e
preservá-las ao longo do tratamento ortodôntico, é condição essencial para se atingir a estabilidade funcional ao longo do período
de contenção (Fig. 11). Essa condição somente será possível por
meio do equilíbrio musculoesquelético das partes que compõem o
sistema estomatognático.
Alexandre de Almeida Ribeiro
Facial type and dental arch morphology in orthodontic
treatment plan
Abstract
The morphology of the dental arch is directly related to
the other parts that form the craniofacial complex, which
together determine the facial type of each individual.
Recognize the characteristics of the arch is essential
for the maintenance, at the end of treatment, of the
equilibrium state between the teeth and muscle tissues.
Abnormalities such as tooth agenesis can induce alveolar
changes in the bone basis, masking their true morphology
and cause confusion in diagnosis. In the case presented,
the undesirable changes in the beginning of treatment
were caused by an incorrect diagnosis, due to the nonobservation of the component parts of the patient´s
craniofacial complex. Fortunately, this situation could
be reversed, which further highlights the important role
of a correct planning as a fundamental aspect of a good
treatment.
Keywords: Morphology. Dental arch. Facial type.
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Endereço para correspondência
Alexandre de Almeida Ribeiro
Rua Belisário Távora 221 / 303
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