As Drogas e o Proibicionismo Andréa Costa Dias Ponto de Partida As drogas são compreendidas e consumidas de diferentes modos conforme momentos específicos da história humana (arbitrariedade). Mascar folha de coca tradição cultural inca reservada à corte andina. Beber café na Rússia, durante meio século, foi considerado crime punido com tortura e mutilação das orelhas. Algumas drogas associadas a imigrantes e minorias, instrumento de desqualificação de suas práticas: álcool e irlandeses, cocaína e negros americanos, maconha e mexicanos. Cada cultura elege e arbitra sobre o valor que uma determinada droga terá (vários interesses em jogo, para além da própria substância). O modo como se consome depende muito do que se pensa sobre a droga consumida em cada tempo ou lugar (Escohotado). Ponto de Partida Exemplo: crack – droga considerada refugo, resto, dejeto, não há processo de refino – usuário identificado à sua droga de consumo nesta posição de lixo social, de descarte – reforçando esta posição social e subjetiva. “Quanto mais marginal é a experiência de uma droga, mais sem limites ela é vivida” (Maria Rita Kehl). Qto mais execrada, proscrita, mais sem cuidado, uso que acresce de vulnerabilidade. É preciso levar o aspecto do valor em conta mais até do que sua propriedade farmacológica, que representa uma dimensão da questão. Hoje em dia a propriedade farmacológica parece explicar o todo da droga. Uma droga, por este raciocínio, se definiria por sua ação neuroquímica independentemente do sujeito implicado nesta experiência. Sujeito inserido na cultura (Ex: Freud e a cocaína utopia quimioterápica – se depara com o impossível da ciência). Ponto de Partida Lembrando que o universo das drogas não se restringe ao campo das dependências. Um dependente pode ser chamado de usuário de droga, mas nem todo usuário de droga é dependente. Território muito mais amplo. E, no entanto, o tema das drogas, atualmente traz um forte atravessamento moral e biopolítico. Discurso viciado, repetição irrefletida (“cartas marcadas”). A droga como um grande Mal. Nem sempre foi assim. Importante falar das condições que possibilitaram que o tema fosse tratado da forma como é tratado hoje e suas implicações. Ponto de Partida O que chamamos de “drogas” em nossa sociedade é o lugar de um tabu. Um dos sentidos do tabu alude a algo inabordável e que, portanto, supõe uma série de proibições (Freud). Não é à toa que os debates em torno da questão das drogas se realizam de modo tão restrito. A violação de um tabu não se dá sem que o próprio violador seja veementemente reprovado. Sempre há o risco de ao desmistificarmos as drogas enquanto objeto-tabu, sermos acusados de realizar sua apologia. Ponto de Partida Universo das drogas cercado de hipocrisia (“a gente finge que é assim”). Produção de uma fissura que separa dois mundos – o nosso e o deles. Separação artificial entre a noção de remédio e de droga. “Remédio é pro bem e a droga é pro mal”. Antigamente farmácias eram chamadas drogarias. O que existem são as drogas ofertadas e vendidas de forma autorizada e as não autorizadas, comércio clandestino. Usuário de droga lícita é usuário de substância prescrita ou consumidor social e usuário de droga ilícita é chamado de “drogado”. Ponto de Partida Não há indivíduo que não se relacione com alguma espécie de droga. Não significa que temos uma sociedade viciada. As drogas estão muito presentes na nossa vida, quer queiramos admitir ou não. O mal que a noção de droga representa não dialoga com a polissemia que ela comporta. Polissemia que está posta de desde a sua origem. Escohotado – noção grega – Pharmakon – traz consigo uma ambiguidade (não é endurecido, pode ser uma coisa, pode ser outra), um duplo – remédio – veneno. Uma coisa ou outra: articulação de diferentes fatores (dose, frequência, objetivo do uso, grau de pureza, condições de acesso a esse produto, quem consome, contexto cultural). Noção de Droga O mesmo ocorre com as medicações. Temos as reações adversos, o efeito rebote. Foi necessário esperar quarenta anos desde a introdução do ácido acetilsalicílico (a aspirina) para que se descobrisse que ele poderia causar hemorragia intestinal. Esperaram-se ainda quase meio século desde o advento da amidopirina (nome comercial da novalgina) até se verificar que ela poderia produzir agranulocitose (doença aguda do sangue). E o que hoje é tido invariavelmente como veneno já foi legitimado e utilizado para fins terapêuticos (substituídos na sequência por drogas consideradas mais seguras e eficazes). Noção de Droga O ópio já foi produto corriqueiro nas farmácias caseiras e era estocado com a naturalidade com que acumulamos provisões de antiácidos e antigripais em nossas prateleiras. Além de seu efeito sedativo foi empregado como antitussígeno, antidiarreico e analgésico. Em 1804 a morfina pôde ser isolada e continua sendo até hoje muito utilizada em processos cirúrgicos, emergências hospitalares e ferimentos de guerra. O cânhamo, anteriormente aos anos de 1930, possuía valor médico e figurava como um dos principais sedativos, sem contar sua ação antiespasmódica, analgésica, relaxante e estimuladora de apetite. A cocaína foi empregada durante anos como anorexígeno, inibidora do sono, da depressão e da fadiga. Sua utilização reconhecida pela comunidade médica como eficiente anestésico local, especialmente em cirurgias oculares. Também foi usada contra indisposições gástricas e outros males Noção de Droga Até o século XX não existiam proibições sistemáticas do ponto de vista do Estado em relação à utilização das mais variadas substâncias. O Proibicionismo é muito recente. O termo droga possui origem holandesa – droog - e se refere aos produtos secos do ultramar. Destacam-se as especiarias (século XVI) – cravo, canela, gengibre, açafrão. Altamente cobiçados, inicialmente considerados produtos de luxo. Posteriormente tornaram-se mercadoria de consumo de massa e foram se incorporando à dieta cotidiana dos europeus e povos indígenas. Aludiam ao prazer da degustação, da experimentação. As drogas tiveram papel bastante relevante no circuito de trocas do sistema colonial, com especial ênfase para o açúcar, aguardente e o tabaco (séc. XVII), além das bebidas quentes e excitantes: chá, café e chocolate (Séc. XVIII) (Henrique Carneiro). Noção de Droga Drogas: destaque nos grandes ciclos comerciais, na formação do sistema mercantil moderno. Droga – mercadoria – mercado – consumo. Para um filósofo chamado Christoph Türcke, na modernidade o mercado desenfreado se fez representar no consumo desenfreado das drogas. Se o mercado se torna absoluto (fim em si mesmo), também à droga como representante do mercado é dada a possibilidade de se tornar um absoluto. Território da sensação absoluta, estimular-se imediatamente. Está dada uma das condições fundamentais para as relações de consumo intensivas (vício, dependência). Separação festa e frenesi, banalização, perde especificidade, “pode ser tudo” (concentrado). Sociedade excitada – mania de emoção, sensação. A sensibilidade e a reflexão são desalojadas. Noção de Droga O mercado visa a difusão de mercadorias que multipliquem sua demanda (lucro). A droga puxa para uma repetição, gera demanda. A dependência de droga é a realização de desejo de qualquer empresário, comerciante, publicitário – modo de relação com um produto que você não consegue viver sem. O dependente é a personificação da radicalidade do desejo da nossa sociedade de consumo. Encontrar um bem na forma de um produto que preencha e satisfaça inteiramente. Voltando à riqueza da noção de droga: nunca dá pra pensar na droga como uma coisa só e nem tomá-la de modo isolado. Ela sempre vai participar de uma relação. A droga por si só não determina nada. “A droga faz o drogado” ? “Não se torna toxicômano quem quer” (Charles Melman). Noção de Droga Para Deleuze: a droga é um objeto sócio-técnico que permanece indeterminado até que se conheça a conjugação dos fatores que a constituem como tal. Ela comporta uma imensa variedade de possibilidades de consumo e de finalidades para este consumo. No entanto, na droga respinga a ideia de vício (filosofia) – excesso, descaminho, desmedida. Se vício é ruim, logo droga também é ruim. Na idade média – vida virtuosa era vida regrada, disciplinada, longe dos prazeres do corpo (São Tomás de Aquino). No período colonial, a embriaguez era uma prática que distanciava da razão e lançava o homem na animalidade, na bestialidade. Sinônimo de atraso cultural. Noção de Droga Acredita-se que a droga contém o vício. “Na droga está o vício”. O raciocínio de guerra às drogas se baseia nisso. “Precisamos acabar com as drogas para acabar com o vício, a dependência”. Caso assim o fosse teríamos de acabar com a comida, com o jogo, com a religião, etc. O que está em jogo é o tipo de relação que se estabelece com a comida, a droga, o jogo... Classificação: droga como um absoluto – fim em si mesmo. Coloca-se no lugar da vida que ela deveria ajudar a promover. Há uma relação cancelada com outras experimentações e esferas da vida. Noção de Droga Droga como um meio – uma ponte que promove o fluxo das trocas com o mundo. Sociedade que faz dos meios, da mediação um fim, que enrijece a relação com os meios. Droga como dispositivo (Giorgio Agamben) – aquilo que captura, que comporta uma atividade de governo, que comanda e que subjetiva dessubjetivando (fim de si, perde-se a capacidade de invenção própria ao sujeito da ação). Comanda o corpo e a subjetividade – fábrica, escola. Confere um lugar, um nome mas enfraquecendo, serializando, coisificando. Droga pode se tornar um dispositivo, como TV (transformados em índice de ibope), como telefone celular (transformados em números). Profanar: restituir ao livre uso. Consumo: impossibilidade de usar. Século XX A que se deve a visão atual das drogas, restrita e restritiva? Como o sentido da droga se transforma em criminalidade, violência, perigo? A partir do entrecruzamento entre Medicina e Direito. Regulamentações proibicionistas que vão atingir diferentes substâncias em diferentes momentos (começando pelo ópio, álcool). E pela oficialização e consagração do discurso da ciência que vem substituir o controle individual ou comunitário sobre o consumo. Consumo de drogas mediante prescrição médica. Século XX O discurso da ciência (encampado por setores da psiquiatria, psicologia), numa operação de restrição de sentido reduziu a droga a uma única idéia de toxicidade, de agente venenoso (da qual precisamos manter distância). A toxicidade passou de parte constituinte da relação sujeito-droga-contextocultura para virar o todo da droga. Também a noção de risco (categoria política moderna – ameaça) sobressai em relação a qualquer outra característica. Desta nocividade postulada como inerente à droga deriva o domínio da repressão jurídica. É o discurso científico que legitima a presença do direito a regulamentar os modos de uso que são ou não são permitidos. Século XX Ciência e Direito passam a definir as fronteiras do possível e do útil. Útil à serviço do avanço civilizatório, da extensão da vida, da vida em sociedade. O uso devido de uma droga inaugura na mesma medida o usuário indevido, o desvio, sinalizado pela figura do drogado-doente-criminoso. Desqualificação e desautorização. Nesta disputa pela retórica da droga, do “poder dizer” temos a violência simbólica - poder de fazer ver e fazer crer, de consolidar uma visão de mundo através da enunciação, de um discurso que se torna hegemônico. Como se nada mais a este respeito pudesse ser dito. Retórica que acaba por fornecer as categorias em torno das quais a questão será tratada, avaliada, debatida. Muito do conhecimento que se produz se construiu sob o ponto de vista do combate, enfrentamento. Século XX Temos um discurso totalitário em torno do tema com significações fechadas, transmitindo a sensação de que “assim é”. Não há brecha para que outras significações possam advir. Efeito disso: muita coisa fica de fora. Há um cerceamento do discurso. Foucault cita o termo logofobia: pavor pela massa de coisas ditas, pelo surgir da variedade dos enunciados, naquilo que desta variação possa advir de violento, de descontínuo, combativo, desordenado e perigoso. Medo brutal “desse grande zumbido incessante e desordenado do discurso”. Zumbido que se origina da diversidade e complexidade da realidade concreta. Século XX Curiosamente, voltando à ação da ciência no mundo. No caso da droga há algo que escapa de seu âmbito de gestão – corpo pulsional, intensivo (anatomizado, fragmentado) que goza dos produtos que ela fabrica. Com a introdução da química na Medicina (século XIX) – concentrados. Potência e rapidez do efeito: Pó de cocaína – folhas de coca Heroína – ópio Haxixe – cânhamo Multiplicação da eficácia. “Efeito colateral” do fazer científico no mundo, gadgets (o que sobra da operação da ciência). Desconhece o efeito de sua ação no mundo – proíbe o que ajuda a incitar – concentrados – indústria farmacêutica. Cria condições para a emergência de relações de consumo intensivas. Compulsão à regulamentação da vida Biopoder é entendido, em linhas gerais, como o poder sobre a vida e comporta dois pólos de desenvolvimento: As disciplinas do corpo (anatomo-política do corpo humano) . As regulações da população (biopolítica da população). Com o biológico refletindo-se no político alcançamos o “limiar de modernidade biológica”. E o homem moderno torna-se o “animal, em cuja política, sua vida de ser vivo está em questão”. A expansão desta modalidade de poder repercutiu no regime do discurso científico e no sistema jurídico da lei orientando sua incidência em torno de mecanismos reguladores e corretivos, como requer a gestão da vida. Mecanismos de normatização. Compulsão à regulamentação da vida Decorre daí que a lei passa a funcionar crescentemente como norma, “e que a instituição jurídica se integra cada vez mais num contínuo de aparelhos (médicos, administrativos) cujas funções são, sobretudo, reguladoras. Uma sociedade normalizadora é o efeito histórico de uma tecnologia de poder centrada na vida” (Foucault, 1988, pg. 156-7). Política moderna (Giorgio Agamben)– a polícia torna-se então política e a tutela da vida coincide com a luta contra o inimigo. Guerra às drogas – guerra às pessoas. Usuário transformado em inimigo a ser combatido (em nome da defesa da vida). Beneficiário da política se transforma em caso de polícia. Compulsão à regulamentação da vida É a vida banal inscrita na ordem estatal cuja força se faz sentir no poder de dispor sobre os destinos desta mera existência que acaba por se transformar no local por excelência das decisões soberanas. Ordem estatal intimamente conectada à figura do jurista e principalmente do médico. Este último integrado às funções do Estado e responsável pela economia dos valores humanos e gestão da riqueza vivente. Considerar a vida como um valor implica deliberarmos sobre seu desvalor. O ponto a partir do qual a vida é considerada indigna de ser vivida tornando-se ela mesma o local de uma intervenção, de um direcionamento. Nossa intervenção está sempre colocada neste limiar tênue entre a gestão e a tutela da vida e o direito à saúde, a abertura para uma vida mais expandida. Proibicionismo Corrente política que situa as drogas como as responsáveis pelas grandes mazelas e sucessivos atrasos sociais (IDH de cidades com maior prevalência de consumo, os mais altos). Os grandes obstáculos a serem combatidos. Atingir uma “sociedade livre das drogas”. Preocupante: onde tem proibição tem desejo. A proibição vem indicar um valor de gozo. Proibição não deixa, neste caso, de ser um modo de incitação, de indução. Em épocas puritanas o fluxo do dionisismo renasce se torna agudo (válvula de escape à repressão, transbordamento, descontrole pulsional). Proibicionismo Tensionamentos: Investir na redução da oferta traz como efeito um aumento da produção do tráfico contrabalançando o montante perdido (que sempre é previamente calculado) na repressão. Transferem-se as áreas de cultivo e as rotas de distribuição são diversificadas. Enquanto os Estados gastam muito dinheiro com a repressão, a quantidade apreendida, para o tráfico é pequena e seu prejuízo já está incluso nos custos da produção, aos moldes de um imposto embutido. Do ponto de vista do mercado empreendimento de risco (falando de ilicitude) é sinônimo de negócio rentável. O mercado premia e remunera o risco. Droga proibida é droga que dá lucro. Fortalece o tráfico. Proibicionismo Tensionamentos A repressão agrega ao empreendimento a marca do perigo. Perigo transforma a produção e venda reduto de poucos (os poucos que se arriscam). Estes poucos – sem concorrência ou regulamentação – “fazem a festa”. Onde há proibição não há regulamentação, onde não há regulamentação há droga adulterada e métodos violentos de gestão os negócios (Denis Russo Burgierman). Vide as mortes relacionadas ao contexto de uso do crack no Brasil. Proibicionismo Tensionamentos A clandestinidade acresce de vulnerabilidade o consumo. Colabora para a corrupção e a violência. Impede o controle de higiene e pureza. Dificulta a implantação de programas de redução de danos. Dificulta e impede a manutenção de locais de consumo seguros. Prática ilícita dificulta a procura por assistência e cuidado. Proibicionismo Há 2600 anos um pensador chinês Lao Tzu cunhou a seguinte frase: “Quanto mais proibições existirem, mais pobre será o povo”. Um ponto importante é verificar o quanto historicamente o Proibicionismo atende a interesses que vão muito além da droga ou do bem estar do usuário. A guerra às drogas (Convenções da ONU de 1961, 1971, 1988) encontra como alavanca histórica o movimento de Temperança no século XIX e a Lei Seca no século XX (temos a Convenção do Ópio em 1909). Curioso – Temperança na sua origem tem relação com noções da ética clássica – proporção adequada, controle, moderação. Só é possível exercitar o controle diante da possibilidade do uso dos prazeres. Temperança e Lei Seca Posteriormente ela ganha estatuto – dentro da tônica protestante – de condenação dos prazeres. Abstinência acena como atitude aceitável diante da comida (alimentação carnívora), da bebida, do fumo e do sexo. Em 1919 a Lei Seca é aprovada (revogada em 1933) e abre caminho para outras proibições. A Lei Seca coincide com o próprio capitalismo industrial onde o processo produtivo demandou “a elaboração de um novo tipo humano” (Antonio Gramsci). O trabalho racionalizado exigia do trabalhador o desenvolvimento de posturas mínimas e automáticas, dispensando a participação ativa da inteligência e da iniciativa pessoal. Lei Seca As operações produtivas se limitaram ao aspecto físico maquinal somente. “A indústria de Ford exige uma qualificação de seus operários que as outras indústrias ainda não requisitam. Um tipo de qualificação de novo gênero, uma forma de consumo da força de trabalho e uma quantidade de força consumida que são mais opressoras e mais extenuantes que em outros lugares, e que o salário não consegue compensar, nas condições dadas pela sociedade tal como está” (Gramsci em Americanismo e Fordismo). Neste estado de coisas o Proibicionismo – com seu verniz ideológico puritano - “veio a calhar”. Ele se ocupava de viabilizar a conservação, fora do ambiente de trabalho já esquadrinhado pela racionalização, do equilíbrio psicofísico necessário para prevenir o colapso fisiológico do trabalhador. Produzir como uma máquina. Lei Seca O que estava em jogo era a continuidade da eficiência muscular e nervosa através de um controle rigoroso da vida privada (gestão dos gastos). Por isso, o álcool – e em segundo lugar as funções sexuais – foi considerado o grande agente de destruição das forças de trabalho. E, por conta desta construção ideológica foi fortemente combatido. Em princípio ainda pelos empregadores e, em seguida, pelo Estado. O industrialismo se impôs como exercício sangrento da violência pela via da sujeição dos impulsos. Vale lembrar que até o final do séc.XIX aguardente era distribuído gratuitamente nas fábricas. Em muitas delas parte do salário era pago em bebida destilada. Estado Penal Ainda no século XX, a corrente Proibicionista migrou da função de apoio à produtividade para alicerce de um modelo repressivo-penal. Bauman, em “Vidas desperdiçadas” cita um grande “divisor de águas” ocorrido nas primeiras décadas do pós-guerra e que representou uma alteração profunda nas bases de sustentação da legitimidade estatal. O chamado “Estado de Bem-Estar Social” sofreu um expressivo recuo. Ele prometia defender o cidadão da exclusão e “dos golpes aleatórios do destino”. No caso dos acometidos por perdas sociais e econômicas, a idéia era de que haveria todo um aparato – providenciado pelo Estado – a socorrê-lo e ajudá-lo a se refazer do ocorrido. A competição de mercado e a instabilidade das condições de emprego, enormes fontes de incerteza, poderiam ser contrabalançadas pela ação estatal na direção de criar meios e seguros para tornar o “futuro mais garantido”. Estado Penal Com o enfraquecimento das funções econômicas e sociais do Estado surgiu a necessidade de se redefinir papéis e restaurar sua importância “como protetor aos olhos dos cidadãos”. Nasce daí um Estado “penal”, voltado para a repressão e a segurança pessoal. A resultante é o aumento do grau de militarização da vida, sendo que os problemas sociais passaram a ser cada vez mais criminalizados. “A repressão aumenta e substitui a compaixão. Problemas reais como a redução do mercado imobiliário e o desemprego maciço nas cidades – como causas da questão dos sem-teto, da ociosidade juvenil e da epidemia das drogas – são desprezados em favor de políticas associadas à disciplina, ao refreamento e ao controle”. Estado Penal Para Bauman, com o desmantelamento do Estado social a demanda passou a se centrar na projeção de locais adequados e distantes para depositar o excesso humano. O sistema penal é um destes dispositivos (dentre muitos outros). “Na melhor das hipóteses, a intenção de “reabilitar”, “reformar”, “reeducar” e devolver a ovelha desgarrada ao rebanho é ocasionalmente louvada da boca para fora. [...] De forma explícita, o principal e talvez único propósito das prisões não é ser apenas um depósito de lixo qualquer, mas o depósito final, definitivo. Uma vez rejeitado, sempre rejeitado. Para um ex-presidiário sob condicional ou sursis, retornar à sociedade é quase impossível, mas é quase certo retornar à prisão.” Estado Penal Loic Wacquant (2011) em “As Prisões da Miséria” também argumenta que existem laços orgânicos entre “o perecimento do setor social do Estado e o desdobramento de seu braço penal”. Para ele, os que ontem alardeavam por “menos Estado” em relação ao livre mercado são os que hoje exigem por “mais Estado”. Fala da grande expansão da doutrina norte-americana (nova yorquina) de tolerância zero que penaliza a pobreza e combate os “pequenos distúrbios cotidianos” e seus autores (sem-tetos, pequenos passadores de drogas, prostitutas, mendigos, pichadores). Pretende-se com isso cortar o mal pela raiz e desencorajar “as grandes patologias criminais”. Tudo isso em nome da “qualidade de vida” da população, daqueles cidadãos “de bem” que sabem se comportar socialmente. Estado Penal A retórica militar da guerra ao crime traz como uma de suas maiores vertentes a guerra às drogas e advoga a reconquista do espaço público das mãos de seus “usurpadores”. O Estado penal - onde o direito à segurança substitui o direito ao trabalho supõe a “remodelagem autoritária” de modos de vida considerados “disfuncionais e dissolutos”. Fornecendo um “contexto diretivo que lhes deve permitir (finalmente) viver de maneira construtiva”, e assim viabilizar a paga à sociedade de toda a carga ociosa que impuseram a ela. Neste Estado paternalista a concepção “social” de que os “maus pobres” devem ser acompanhados de perto pelos “olhos” do Estado - nada mais é do que um penal disfarçado. Mercado do Bem-Estar A cultura contemporânea valoriza o cultivo do bem estar ou, melhor dizendo do “estar mais que bem”. Determinados afetos que também integram nossa existência sucumbem à ditadura dos estados de humor – e perdem terreno. Tristeza e sofrimento enquanto emoções mal – ditas se desalojam de seu lugar nos domínios da vida e do mundo. Sofrer, hoje em dia, nos confronta com uma solidão e desamparo extremos, afinal de contas “ninguém sofre”, “isso já é coisa ultrapassada” e “só sofre quem quer”. Diante de afetos deserdados que não encontram inscrição no laço social, a indústria farmacêutica consagra-se como o grande bálsamo. Mercado do Bem-Estar Não deixando de lado as excepcionais conquistas da medicina que produziu medicamentos que ajudam as pessoas a viverem melhor. Com destaque, na saúde mental, para os neurolépticos, estabilizadores de humor. Estamos falando de um mercado, de uma indústria do bem-estar que endossa a redução da psique a explicações de ordem fisicalista e que alardeia que sofrimento é resultado de uma engrenagem que funciona mal. Imbuindo-se da função corretiva, sustenta a promessa de uma vida sem sofrimento. Na lógica da felicidade plastificada e do achatamento da subjetividade, o manejo do sofrimento humano tende a se processar no registro da dor. Mercado do Bem-Estar Pensemos numa dor de dente da qual buscamos rapidamente nos livrar com uma ou algumas visitas ao dentista. Sofrimento transfigurado em dor existe para ser extirpado. Não há mais nada a se fazer com ele. O sofrimento deixa de ser uma via privilegiada – embora incômoda - de acesso ao sujeito e ao que lhe ocorre em seu íntimo. E se transforma em puro aborrecimento. Para Joel Birman a dor é uma experiência solipsista, ou seja, que convida o indivíduo a se fechar sobre si mesmo e não fazer apelo ao outro como suporte para a produção de um sentido. Já o sofrimento é “experiência alteritária”. O outro está sempre presente, pois o sujeito que sofre é capaz de reconhecer que não é auto-suficiente e necessita deste outro como agente de interlocução e diálogo. Os psicofármacos “podem fazer o curto-circuito do sofrimento e atender diretamente aos reclamos da dor, sem qualquer apelo”. Mercado do Bem-Estar O que está em voga também neste caso é a performance mental. “O processo de medicalização de praticamente todos os aspectos da vida chega a tornar plausível a crença de que toda insatisfação ou mal-estar é indicação de um desvio, e como tal deve ser suprimido” (Benilton Bezerra) A lógica da indústria do bem-estar num certo aspecto pode ser comparada à do tráfico de drogas no sentido da oferta de produtos que funcionam como verdadeiras panacéias. Remédio e droga acenam como a salvação química e se sagram capazes de “curar” a dor de viver ou nos ensinar a sorver alguma alegria da vida. Droga-medicamento: aquilo que vai me dar tudo que eu preciso. Mercado do Bem-Estar Uma estátua no filme O Sangue de um Poeta de Jean Cocteau diz: “pensas que é simples livrar-se de uma ferida tapando a boca da ferida?” Paulo Leminski, por sua vez, em seu poema “um homem com uma dor” subverte a lógica e realoca o sofrimento no centro da experiência humana: “Um homem com uma dor é muito mais elegante, caminha assim de lado como se chegasse atrasado, andasse mais adiante. Carrega o peso da dor como se portasse medalhas, uma coroa, um milhão de dólares ou coisa que os valha. Ópios, edens analgésicos, não me toquem nessa dor, ela é tudo que me sobra. Sofrer vai ser minha última obra”. A Dor de Viver Há os que privilegiam a existência, mesmo dolorosa. O valor supremo é a existência. Há outros para os quais esta existência não provoca prazer senão ao abolila. Estrutura subjetiva suscetível às dependências (Charles Melman). Fim Obrigada! [email protected] Cel: 011 99907-1175