CAIXAS ECONÓMICAS EM PORTUGAL – Origens e características específicas1 Pedro Sameiro A primeira caixa económica portuguesa, então designada por Caixa Económica de Lisboa e actualmente por Caixa Económica Montepio Geral, foi fundada em 1844, com um evidente atraso em relação a outros países europeus. Este facto sugere algumas perguntas. Porquê tão tardiamente? Que soluções alternativas poderiam existir, sede facto existiam, para resolver os problemas do crédito e da poupança? A história das instituições de crédito, é só uma parte da história política e económica de um país. Não existem linhas evolutivas divergentes. Portugal, durante o último quartel do século XVIII e especialmente na primeira metade do século XIX, viveu um período de instabilidade política e social em paralelo com uma contínua degradação da situação económica. Mencionando apenas alguns factos: tivemos uma guerra com a França ( a Campanha do Roussillon, 1797-1799), uma guerra com Espanha (1801), três invasões francesas (1808-1810), a Guerra Peninsular e posteriormente um período de grande instabilidade política, com sucessivas revoluções liberais e conservadoras, propiciadoras de um espírito de vendetta, que culminou em cinco anos de guerra civil (1829-1834), terminada por uma vitória liberal2. Após a guerra e apesar das garantias dadas pelo acordo de paz, mais de 5.000 partidários do Rei deposto, D. Miguel, foram literalmente trucidados, o que explica algumas das motivações para uma segunda guerra civil em 1846, terminada por uma intervenção militar estrangeira. Entre estas duas guerras civis as facções radical e conservadora dos liberais vitoriosos, digladiaram-se entre si em várias revoluções e golpes de estado. Não foi deixado muito espaço nem oportunidade para as reformas sociais, políticas e económicas. Considerando especialmente que este tipo de reformas não se limita à produção de textos legislativos, mas depende muito significativamente da paz social que pode garantir aos investidores a rendibilidade dos seus investimentos e de uma administração pública estável e capaz de avaliar, autorizar e supervisionar as iniciativas dos empresários. Todavia, foram produzidos alguns textos legislativos relativos às caixas económicas A 17 de Agosto de 1836 foi por Decreto anunciado que «Estabelecer-se-á em Lisboa uma Caixa de Economia, à qual se ajuntará uma Caixa de Empréstimo, chamada Monte de Piedade». A caixa económica deveria aceitar depósitos do público em geral, acima do montante de 400 réis, mas uma taxa de juro de 4% só poderia ser paga se o depósito atingisse o valor de 5.000 réis. Os depósitos seriam pagáveis à vista e com pré-aviso. Os fundos recebidos pela caixa 1 O presente trabalho constitui a tradução de uma comunicação intitulada «Portuguese Savings Banks – Origins and specific features», apresentada em Edimburgo na conferência «200 Years of Savings Banks», organizada pelo World Savings Banks Institute e pelo European Savings Banks Group, em 2010. 2 «História de Portugal», direcção de José Mattoso, vol V, «O Liberalismo», Editorial Estampa, Lisboa 1993, p. 17 – 119. deveriam ser empregues pelo Montepio em crédito pignoratício, devendo cada operação ter o valor mínimo de 1.000 réis e não exceder o prazo máximo de três meses. O lucro líquido desta actividade bancária deveria ser dado as instituições de protecção de inválidos ou órfãos abandonados. A fim de se constituírem os fundos necessários para o início da actividade da caixa, foi feita um convite a investidores que receberiam acções remíveis. Aparentemente, este convite ficou sem resposta, numa situação política altamente instável e o aparecimento da primeira caixa económica teve de ser adiado por alguns anos. Mas os governos não perderam a sua fé no sucesso de medidas meramente legislativas para promover a constituição de caixas económicas, e por meio de uma acto normativo de 31 de Dezembro de 18413, um novo actor chegou ao palco das instituições de crédito, a Companhia de Crédito Nacional, uma instituição financeira com uma larga panóplia de competências, e com intervenção especial na recolha de fundos de investidores para o financiamento da concessão do monopólio dos tabacos. Em 1844 foi conferida nova competência a esta companhia, que se traduzia na capacidade de criar caixas económicas e girando então com o nome Companhia Confiança Nacional fundou duas caixas económicas em 1845, que não sobreviveram à crise financeira de 18464. Entretanto, foi fundada em 1844, com dissemos, a primeira caixa económica portuguesa, não por um acto legislativo, nem por uma iniciativa governamental, mas graças à actuação de cidadãos responsáveis. Em 1840 um grupo de funcionários do Estado criou uma associação de socorros mútuos, designada por Montepio dos Servidores do Estado (actualmente Montepio Geral) com o objectivo de atribuir pensões e dotes aos seus membros ou às suas famílias. Para aumentar as capacidades financeiras desta associação mutualista, decidiram os seus membros criar uma caixa económica, cuja actividade se iniciou em 1844, após terem sido constituídos os fundos necessários para garantir as operações e suportar os custos de funcionamento. Esta caixa económica deveria receber depósitos do público em geral, que aplicaria em crédito sobre penhores e o resultado líquido da actividade bancária seria distribuído pelo beneficiários da associação mutualista5 Na mesma década regista-se o nascimento de duas outras instituições: o Banco Rural de Serpa (que abaixo referiremos) em 1840 e a Caixa Económica de Angra do Heroísmo em 1845. A Caixa Económica de Angra do Heroísmo é singular no conjunto das caixas económicas portuguesas, por ser criada como uma instituição independente, sem conexões a uma entidade preexistente, e pela acção de um grupo de cidadãos notáveis, que aceitaram ser garantes da caixa até um determinado montante, mas que não tinham o direito a receber dividendos. Na realidade trata-se do modelo mais corrente noutros países europeus. 3 Cordeiro, António Menezes «Manual de Direito Bancário», Almedina, Coimbra, 4ª ed. 2010, pag. 98. 4 Nunes, Ana Bela, Carlos Bastien, Nuno Valério «Caixa Económica Montepio Geral – 150 anos de História 1844 – 1994». «Banco» in «Diccionário Universal Portuguez», Lisboa, 1887, p. 888 – 890. 5 Oliveira, João Ferreira Craveiro Lopes de «O Montepio Geral no Primeiro Século da sua Existência», Montepio Geral, Famalicão, 1940, pag. 212. Anos mais tarde, depois da venda dos bens das ordens religiosas, que tinham sido nacionalizados na sequência da primeira guerra civil, deu-se conta o governo de que existia um conjunto muito importante de propriedade rústica e urbana, pertencente a irmandades, Misericórdias e outras entidades ligadas à Igreja Católica e decidiu impor a venda de todas estas propriedades6. Num primeiro momento esta venda foi bem recebida, porque muitas instituições tinham grandes dificuldades em gerir um extenso volume de propriedade imóvel, mas o processo de venda, conduzido pelo Estado através de leilões dominados por pessoas influentes, teve como resultado a prática de preços muito reduzidos. E o investimento dos montantes recebidos em títulos da dívida pública redundou no empobrecimento a médio prazo das entidades em causa. Passando à margem destes factos e tentando drenar supostos excessos de liquidez, o governo manteve a sua persistência na fundação de caixas económicas, autorizando através da Lei de 22 de Junho de 18677, as Misericórdias, hospitais, irmandades e confrarias a fundarem bancos de crédito agrícola e industrial, que no domínio das operações passivas poderiam actuar como caixas económicas, recebendo depósitos de quantias reduzidas, que seriam remunerados com taxas de juro superiores às geralmente praticadas. Só as Misericórdias de Viseu e Viana do Castelo fundaram bancos, a de Castelo Branco deu início ao processo constitutivo mas não o concluiu8. Desde então até ao fim da Monarquia (5 de Outubro de 1910) foram constituídas mais 12 caixas económicas, 5 delas por associações mutualistas e 1 por Misericórdias. Durante o período republicano só tiveram origem mais 69 caixas económicas, a última datando de 1932, sem se considerar o caso das fusões. Faz-se tempo de voltar à nossa segunda pergunta: que alternativas poderiam existir para solucionar os problemas causados pelas necessidades de crédito e de constituição de poupança, antes do aparecimento das caixas económicas? Os bancos, stricto sensu, apareceram em Portugal em época bastante tardia. O primeiro banco português data de 182210. Este banco, o Banco de Lisboa, era um banco comercial com operações activas e passivas e, simultaneamente, um banco emissor. As operações de crédito eram o desconto e a negociação de documentos de crédito, os empréstimos garantidos por penhores de metais e pedras preciosos, ou por bens de comércio, nomeadamente os que estivessem depositados em armazéns da Alfândega. Como banco emissor estava autorizado a emitir notas com circulação legal. 6 Lei de 22 de Junho de 1866 in «Collecção Official da Legislação Portugueza – anno 1866», Lisboa, Imprensa Nacional, 1867, p. 254. 7 «Collecção Official da Legislação Portugueza – anno 1867», Lisboa, Imprensa Nacional, 1868, p. 180. 8 Lopes, Maria Antónia «As Misericórdias de D. José ao final do século XX» in «Portugaliae Monumenta Misericordiarum», vol. I, Lisboa, União das MISERICÓRDIAS Portuguesas, 2002, pag. 89. 9 Partindo do princípio que a Caixa Económica de Vila Nova de Gaia e a Caixa Económica de Abrantes foram fundadas após 5 de Outubro de 1910, do que não estamos seguros. 10 «Banco» in «Diccionário…» cit. , p. 889. Antes disto apenas temos notícia da tentativa de criação de um banco público do século XVII, por iniciativa de um irlandês, um tal James Preston. Este projecto nunca chegou à fase da realização e não se sabe exactamente porquê. Talvez porque o Rei e o seu Conselho tivessem sido mais prudentes do que o Regente de França, quando aceitou uma proposta semelhante apresentada por Law…11 Na falta de bancos as entidades que concediam crédito em Portugal durante o «ancien regime» pertenciam a três categorias: irmandades ligadas à Igreja Católica, bancos especializados em operações de crédito em espécie e alguns capitalistas privados, agindo especialmente como rendeiros gerais. Os mais importantes destes agentes eram seguramente as irmandades e dentro delas as Misericórdias, um tipo especial de irmandades criado por inspiração real com o propósito de por em prática as obras de misericórdia e daí o seu nome. Muitas das irmandades dispunham de um considerável volume de fundos líquidos proveniente de doações, legados, ou simples esmolas, que eram mais do que suficientes para suportar os custos da sua actividade corrente e por estarem espalhadas por todo o território e autorizadas a emprestar o seu excesso de liquidez, desempenharam um papel importante na actividade creditícia, muito bem evidenciado nos velhos livros notariais. E como se documenta por estudos recentes, as Misericórdias exerceram durante algum tempo intermediação financeira, tomando dinheiro de empréstimo à taxa de 5%, usando de um privilégio especial, e emprestando-o à taxa de 6,25%, prática que terminou em 1775, quando foram obrigadas a baixar os juros para 5%12. No sec XIX reduziu-se progressivamente a actividade financeira das Misericórdias e de outras irmandades, à medida em que os bancos desenvolviam a sua actividade própria. Os bancos especializados em operações de crédito em espécie eram os Celeiros Comuns, criados em 1576, com o objectivo de conceder empréstimos em trigo a lavradores pobres, pelo seu custo real e cobrando um juro pago em quantidades de trigo. Eram geridos pelos concelhos e os lucros aplicados em melhoramentos públicos13. 11 «Banco» in «Diccionário…» cit. , p. 887; Bainville, Jacques «Histoire de France», Paris, ArthémeFayard, p. 227 e seg.s 12 A capacidade das Misericórdias para conceder crédito atraiu várias vezes a atenção do Governo, especialmente durante o ministério do Marquês de Pombal. Em 1756 as Misericórdias do norte do país foram proibidas de conceder crédito, excepto para financiar a aquisição de acções da recente Companhia das Vinhas do Douro, até que o capital desta estivesse totalmente realizado. Em 1768 foram fixadas algumas prioridades aos empréstimos concedidos por estas entidades, que em primeiro grau deveriam financiar despesas militares e diplomáticas. Lopes, Maria Antónia «As Misericórdias de D. Jose ao final do sec XIX» in «Portugaliae Monumenta Misericordiarum», cit. pag. 85. 13 Pestana, Manuel Inácio «Celeiros Comuns da Antiga Casa de Bragança», Portalegre, Assembleia Distrital, 1982, p. 5 – 19. A actividade destas entidades estava confinada à parte sul do país e só no início do século XIX se constituíram 19 delas no nordeste de Portugal, alcançando então o número total de 57 em todo o país. Sofreram as consequências da deterioração da economia nacional, sufocados por um largo número de créditos em mora e incobráveis. O governo tentou reformá-los em 1852, mas isto não passou de uma extensão da sua agonia até ao começo do século XX. Mesmo o Celeiro Comum de Serpa, transformado em Banco Rural em 1840, findou em 1908. Finalmente os rendeiros gerais. Concediam cré dito aos grandes proprietários fundiários, pagando uma renda em antecipação sobre o universo das suas propriedades, que depois exploravam em regime de subarrendamento. É tempo de sermos conclusivos. As caixas económicas portuguesas foram constituídas na dependência de outras instituições, associações de socorros mútuos ou irmandades da Igreja Católica e adoptaram a forma e natureza legal de fundações, com poucas excepções, representadas pela Caixa Económica de Angra do Heroísmo, uma fundação independente acima mencionada, e quatro caixas económicas nos Açores com a forma de sociedades anónimas, reguladas pelo Código Comercial. Esta situação, em termos gerais, impôs consequências quer no domínio dos fins das caixas económicas, quer no do seu governo. As caixas económicas, com as mencionadas excepções, existem e têm existido como instituições auxiliares dos seus fundadores, o que implica que os proveitos gerados pela sua actividade devam ser empregados para a realização dos objectivos das mutualidades e irmandades, o que é diferente de serem distribuídos como dividendos a estas entidades ou aos seus membros. Assim, no caso das mutualidades, devem aumentar, por exemplo, as pensões e dotes, e considerando as irmandades devem ser empregados nos seus fins caritativos. A obra social das caixas económicas portuguesas tem estas fronteiras, impostas pelos fins institucionais e interesses dos seus fundadores. Como consequência, o fundador ficou profundamente interessado no governo da caixa económica. Normalmente as mesmas pessoas físicas participam nas assembleias gerais do fundador e da fundação e frequentemente os membros dos órgão de administração e fiscalização são os mesmos. Inclusivamente até a estrutura empresarial, pelo menos em parte, pode ser partilhada. Esta coabitação, especialmente no caso das associações mutualistas e das caixas económicas, é causa de algumas dificuldades. As mutualidades são tipicamente instituições da classe média, e no caso do Montepio Geral verificamos que durante todo o século XIX foram os seus membros, predominantemente, funcionários públicos, oficiais das Forças Armadas, magistrados, comerciantes, etc. 14, e isto tinha reflexos no âmbito das operações de crédito da 14 Lopes, João Ferreira Craveiro «O Montepio no primeiro século da sua existência», Famalicão, 1940, pag. 18 and 26 – 29. caixa, cujos empréstimos deveriam ser garantidos por penhores constituídos por títulos de crédito e objectos em ouro e prata ou jóias, o que nos coloca algo afastados do típico banco de penhores do século XIX. E isto ainda se torna mais evidente se considerarmos que alguns dos títulos de crédito admitidos como penhores eram documentos de dívida do Tesouro Público respeitantes às remunerações dos funcionários civis, cujos credores fossem associados da mutualidade… Apesar disto, no domínio dos depósitos, o público alvo declarado eram as classes mais desfavorecidas, considerando que o desenvolvimento do espírito de poupança seria fundamental para o seu progresso, o que era afirmado num opúsculo da autoria de Alexandre Herculano15. Mas apesar destas louváveis intenções, de resgate e inclusão social, a Caixa Económica Montepio Geral manteve-se em larga medida uma instituição bancária da classe média, tal como o é hoje em dia. A ligação entre as caixas económicas por um lado e as mutualidades e irmandades por outro foi origem de algumas dificuldades em matéria de governação. A lógica de governo das associações mutualistas e das irmandades é o voluntariado, que não prova nada bem na actividade bancária e foi esta a causa do colapso da maioria das caixas económicas portuguesas. Pelo contrário, o sucesso de algumas caixas económicas portuguesas está ligado ao profissionalismo da sua gestão, que impôs o mesmo ritmo de desenvolvimento à gestão da mutualidade, como é o caso particular do Montepio Geral. Finalmente, uma última observação. As caixas económicas portuguesas viveram isoladas umas das outras e ignorando largamente o que estava acontecendo noutros países. Nunca tivemos uma associação de caixas económicas, excepto para assegurar uma representação formal junto do Agrupamento Europeu de Caixas Económicas e isto constituiu uma verdadeira perda para o sistema. 15 Herculano, Alexandre «Da Instituição das Caixas Económicas» Note-se que com o propósito de receber os depósitos das classes laboriosas a caixa Económica de Lisboa estava aberta aos domingos. Acresce que em 1867 se levou a cabo uma acção promocional destinada a recolher depósitos junto da classe operária através das irmandades e associações operárias de Lisboa. Vide Lopes, João Ferreira Craveiro, op. cit. p. 213