SEMINÁRIO DE ESTUDOS CULTURAIS, IDENTIDADES E RELAÇÕES INTERÉTNICAS
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE
SÃO CRISTÓVÃO, DIAS 05, 06 E 07 DE AGOSTO DE 2009
EDUCAÇÃO ESCOLAR E IDENTIDADE CULTURAL DE JOVENS RURAIS:
UMA PROPOSTA DE PESQUISA
Isabela Gonçalves de Menezes (UFS/EDUCON)
[email protected]
Em todo o mundo, sobretudo nas sociedades industrializadas, alcançou-se um
período de alta-modernidade desvinculado de tradições e inerentemente globalizante, cujas
consequências desestabilizadoras estão se tornando mais radicalizadas e universalizadas do
que antes e denotam que a noção de uma sociedade estável está superada (GIDDENS,
1991).
Este fenômeno tem produzido sujeitos multívocos, das ambivalências e dos
contrastes, não mais com identidades fixas e estáveis, mas com novas e diversas, até
mesmo contraditórias e não resolvidas, abertas e inacabadas, sempre em processo, como
sua própria história (HALL, 2006).
O antigo sujeito cartesiano é fragmentado e descentrado, pois as mudanças
estruturais e institucionais têm deslocado as identidades culturais de classe, gênero,
sexualidade, etnia, raça e nacionalidade que antes lhe serviam como encaixe social. De
fato, na medida em que os sistemas de significação cultural se multiplicam, o indivíduo é
confrontado por uma multiplicidade de identidades possíveis que suscitam a perda do
sentido em si, o não se identificar consigo mesmo, o não se ser, o não se encontrar, até o se
sentir um simulacro (HALL, 2006).
No mundo rural, exemplos factuais e empíricos dão mostras da consequência dessas
mudanças. Com a perda de nitidez dos contornos entre o urbano e o rural e maior
facilidade de comunicação, acesso a bens, serviços e valores urbanos, sempre associados à
modernidade, os moradores do rural já não têm tão forte a referência do sistema cultural
que definia sua identidade tradicional. Assim, imaginário e preferência da população rural,
principalmente da juventude, são redefinidos.
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Ademais, a migração temporária ou o deslocamento de jovens rurais para a cidade,
sobretudo com o objetivo de estudar, pode gerar sentimentos de pertença múltiplos, bem
como a possibilidade da construção de individualidades e realização de projetos pessoais
que podem ir de encontro ao compromisso familiar de dar continuidade às atividades
agrícolas (CARNEIRO, 1998).
Historicamente, políticas educativas direcionadas ao rural não se apresentam como
prioritárias. Dessa forma, quando podem, os pais enviam seus filhos para estudar em
cidades, pois, além de o ensino nos povoados ser considerado fraco, a oferta escolar nestas
localidades, em regra, vai até ao quinto ano do ensino fundamental, ocorrendo, portanto,
uma aparente correlação entre escola e migração, na medida em que a educação é
percebida como prerrogativa do mundo urbano.
Portela (1998), ao estudar uma realidade portuguesa, constatou que os jovens rurais
veem a escola como porta de saída do rural para o urbano. Da mesma forma, Carneiro
(1998) e Mello et al. (2003), através de pesquisas de campo no sul e sudeste do Brasil,
verificaram que jovens do rural com aptidão para os estudos não desejam permanecer
nesse espaço.
Isso pode ser uma decorrência do pensamento de que desenvolver atividades
produtivas no campo está relacionado ao atraso e que trabalhar no mundo urbano, ter
acesso à educação e a uma infraestrutura que permita melhor qualidade de vida está ligado
ao progresso, modernidade e evolução.
Na oposição entre êxodo rural e fixação no campo, são percebidas duas tendências
contraditórias: uma evidente preferência da juventude rural pelas cidades e, por outro lado,
políticas de desenvolvimento rural – nelas incluída a reforma agrária – que incentivam o
retorno e a fixação do homem no campo, como alternativa ao desemprego urbano.
Assim, se de um lado tem-se o histórico fenômeno da migração, de outro, o
engendramento de políticas públicas de assentamento aponta para uma reversão no quadro
de migração campo cidade, porém, esta reversão estaria comprometida pelo êxodo dos
jovens, verificado em maior intensidade entre as moças, provocando o que se denomina
masculinização dos campos. Embora estudos apontem para a tendência da saída de jovens
do rural em direção às cidades, ficar no campo e migrar não decorrem apenas da atração
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pela cidade, pois um conjunto complexo de variáveis está envolvido, remetendo para a
análise da juventude rural como categoria social chave e pressionada por mudanças
(CASTRO, 2006).
Nessa perspectiva, este artigo comunica proposta de pesquisa que tem como
objetivo geral investigar questões relacionadas à identidade cultural de jovens rurais, filhos
de produtores familiares de leite de Nossa Senhora da Glória, Sergipe, estudantes do
ensino médio em escolas urbanas, comparativamente àqueles de escola agrotécnica local.
Especificamente, deseja-se estudar se, apesar das políticas públicas de incentivo ao
retorno e permanência no campo e das dificuldades de inserção no mercado de trabalho
urbano, o avanço nos estudos até o ensino médio contribui para o desencaixe da identidade
cultural de jovens rurais e, consequentemente, no desejo e capacidade de perpetuação da
herança; se os jovens rurais em um contexto escolar urbano sentem-se forçados a optar
entre cultura urbana e cultura rural ou vivem em uma encruzilhada cultural; se o fato de ser
de origem rural e levar um saber cultural local para a escola interfere no processo de
aprendizagem e na relação com o saber escolar.
Estudo de campo conduzido pela Embrapa Semi-Árido (CPATSA) em conjunto
com o Centre International de Recherche Agronomique pour le Developpement (CIRAD)
e a Empresa de Desenvolvimento Agrário de Sergipe (Emdagro), em 1995/96, permitiu
traçar um diagnóstico técnico e socioeconômico circunstanciado dos modos e
condicionantes da evolução de uma emergente e relevante bacia leiteira centrada no
município de Nossa Senhora da Glória, Sergipe, predominantemente assentada em
pequenos produtores familiares, com diversidade de sistemas de produção e responsável
por cerca de 60% da produção leiteira do Estado (CARVALHO FILHO et al., 2000).
Assim, a escolha deste território como local da pesquisa se justifica por sua alta
densidade socioeconômica,
cuja sustentabilidade,
entre outros
aspectos,
passa,
necessariamente, pela reprodução e qualificação da agricultura familiar, dependente, por
sua vez, de projetos educacionais direcionados aos jovens rurais que aí vivem.
Segundo Castro (2006), estudos sobre juventude e saída do campo apresentam dois
vieses: a expulsão do campo pela falta de oportunidade de trabalho e estudo e, de outro
lado, a atração pelo estilo de vida urbano. De fato, trabalhos conduzidos por Carneiro
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(1998), Mello et al. (2003) e Portela (1999) abordam o desejo dos jovens rurais de sair de
seu espaço de origem, relacionado à educação, pois, têm maiores chances de se estabelecer
no mundo urbano aqueles que estudaram, sendo que, a influência da escola urbana na
identidade cultural desses alunos não foi evidenciada.
Quanto ao objeto, esta pesquisa se justifica pela escassa produção acadêmica sobre
a juventude rural, categoria pouco estudada e conhecida, bem como ainda muito
negligenciada pela pesquisa, além de não se constituir como foco prioritário de políticas
públicas (CASTRO, 2006).
Portanto, a importância de se estudar tais questões se justifica pela geração de
conhecimentos que poderão agregar subsídios a eventuais análises sobre a eficácia de
políticas públicas de desenvolvimento rural que incentivem o retorno e a fixação do
homem no campo, tendo em conta que, para ser sustentável, este processo deve considerar
o espaço rural como objeto de escolha voluntária para reprodução socioeconômica e
ambiental, em que a juventude rural joga papel relevante.
A contribuição acadêmica se dá porque ante tantas transformações, em um mundo
mais complexo e pouco conhecido, as ciências, segundo Ianni (1998), são desafiadas a
recriar seu objeto e seus procedimentos. Assim, o estudo das implicações que a escola, em
um contexto pós-moderno traz ao interagir com sujeitos de identidades culturais diversas e
múltiplas, torna-se relevante.
Quanto à metodologia, para este trabalho optou-se pelo método estudo de caso, já
que se caracteriza pelo estudo exploratório de um ou poucos objetos, de maneira a permitir
conhecimento amplo e detalhado do mesmo, podendo estabelecer bases para uma
investigação posterior, mais sistemática e precisa (GIL, 1994).
A amostra será formada por jovens rurais, estudantes de ensino médio, filhos de
produtores familiares de leite de Nossa Senhora da Glória, Sergipe e será estratificada por
sexo e tipo de escola (pública, particular e agrotécnica) com a seguinte distribuição: 10
alunos de escolas públicas, 10 alunos de escolas particulares e 10 alunos de escola
agrotécnica (sendo 5 do sexo feminino e 5 do sexo masculino para cada estrato), em um
total de 30 jovens. Esta amostra pode ser considerada pequena, mas se justifica pelo fato de
o percentual de jovens rurais que chegam ao ensino médio ser baixo (CASTRO, 2006).
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Porém, poderá ser aumentada, caso se constate um total de alunos matriculados que, nos
três tipos de escola, comporte a estratificação da pesquisa.
Para a obtenção dos dados, pretende-se fazer uso de entrevistas semiestruturadas e
de técnicas de grupo focal. As entrevistas e grupos focais serão gravados e terão o mesmo
roteiro, a ser elaborado, como base. As entrevistas serão realizadas na escola, antes e
depois das aulas ou em horários previamente agendados. Os grupos focais serão realizados
em local e horário a serem definidos, com duração média de 2 horas, em um total de 3
grupos, cada um composto de dez pessoas. Os participantes assinarão o primeiro nome e
termo de consentimento informado e serão avisados sobre o sigilo e o uso de nomes
fictícios. O trabalho de campo e a análise dos dados terão duração de doze semanas, cada.
RURAL E URBANO
A desvalorização do mundo rural frente ao mundo urbano não é um fato novo. A
ideia, sedimentada ao longo do tempo, é que desenvolver atividades produtivas no campo
está relacionado ao atraso, enquanto que trabalhar e morar nas cidades e, ao mesmo tempo,
desfrutar de conforto e lazer, bem como ter acesso à educação e toda uma infra-estrutura
que permite uma melhor qualidade de vida, está relacionado à modernidade e evolução.
Telles (2001), ao falar sobre o desejo da sociedade brasileira que se queria moderna,
civilizada e cosmopolita, destaca que as luzes do progresso eram identificadas com o
trabalho industrial e a urbanização.
No Brasil, a partir dos anos 1950s, ocorreu a chamada modernização que trouxe
desenvolvimento industrial, urbanização de áreas litorâneas, cidades médias e, sobretudo,
das capitais regionais e metrópoles nacionais, para onde se dirigiu o êxodo rural
(CALMON, 1998).
Durante décadas, a mão-de-obra de baixo nível educacional vinda do campo foi
absorvida principalmente pela indústria e construção civil. No entanto, o processo de
reestruturação produtiva acarretou restrições internas e externas ao desenvolvimento do
mercado de trabalho (POCHMANN, 1999). Assim, flexibilização e precarização do
mercado de trabalho, junto às formas desregulamentadas de vinculação capital-trabalho,
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aliados à permanência da situação de baixas taxas de crescimento nas atividades
econômicas do País no pós-1980 e à introdução de novos fundamentos competitivos, foram
fatores extremamente desfavoráveis aos trabalhadores, resultando em desemprego em
massa e crescimento do mercado informal (POCHMANN, 1999); (ZALUAR, 1997).
O êxodo rural passa a ser visto como fonte dos problemas de concentração e de
aglomeração das cidades provocados pela urbanização, porquanto o contínuo e
desordenado fluxo migratório, intensificou o ritmo de favelização (AGUIAR, 1993) e as
cidades passam a apresentar problemas de infraestrutura, pobrezas críticas, doenças,
poluição, proliferação de guetos e violência urbana (DOWBOR, 1993); (SACHS, 1993).
Diante deste quadro, a sociedade brasileira passa a requerer que esses problemas
sejam minimizados e a apoiar políticas públicas de valorização do meio rural que resultem
na retenção das pessoas no campo, seu lugar de origem (CASTELÕES, 2002).
O desafio passa a ser a busca de soluções para melhorar as condições da agricultura
que, nesse contexto, pode oportunizar emprego e renda para trabalhadores urbanos e rurais.
Em decorrência, fala-se em fixação do homem no campo e apoio ao pequeno agricultor. A
agricultura familiar é defendida com base em razões econômicas, sociais, culturais e
ecológicas. O agricultor, em tempo integral, e a capacidade produtiva da população
residente no campo se expressam em “novas formas de atividade agrícola como uma
alternativa ao êxodo rural, ao desemprego urbano e ao padrão de desenvolvimento agrícola
dominante” (COUTO ROSA, 1999).
Assim, políticas públicas para o desenvolvimento rural são engendradas, pois este
passa a ser visto como um lugar oportuno para se gerar novas formas de ocupação e renda
para os segmentos da população que, em geral, não têm a qualificação necessária para se
inserirem nos setores urbanos em expansão (GRAZIANO DA SILVA, 1998 apud
FLORES e MACÊDO, 1999).
Abramovay (2000) observa que os anos 1990s registram um fenômeno inédito na
história do País, a nítida desaceleração do ritmo do êxodo rural e, ao final desta década, já
se registram tanto a migração de retorno em direção a pequenos municípios, como o
crescimento da população rural em diversas regiões do País, em termos absolutos,
revertendo um declínio de quase duas décadas, a partir do ano 2000.
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ENXADA VERSUS CANETA
Não obstante, o rural ainda é considerado por imensos contingentes de brasileiros
como um lugar de grande miserabilidade física e moral (SANTOS, 1998), bem como se
pensa que os que trabalham e moram no campo são menos cidadãos. A distinção feita por
Hannah Arendt (1996) entre work e labor parece se aplicar a este caso. Em relação às
pessoas do campo, seu trabalho estaria ligado ao que é definido para labor. Nessa
perspectiva, trabalhar em um escritório, por exemplo, poderia ser considerado superior a
“tudo aquilo relacionado ao trabalho físico, desgastante e brutal próprio do homo laborans
e não do cidadão” (BODSTEIN, 1997).
No pensamento marxiano, a divisão do trabalho só se torna efetiva quando se opera
uma divisão entre o trabalho material e o trabalho intelectual, sendo que este último é
função privilegiada de certo segmento da classe dominante, o qual se dedica a pensar. “A
tarefa exclusiva de pensar se enobrece, enquanto se envilecem as tarefas exigentes de
esforço físico, entregues aos indivíduos das classes dominadas e exploradas”
(GORENDER, 1998, p. XXIX).
Abramovay (2000) sublinha que no meio rural brasileiro conserva-se a tradição
escravista que dissocia o trabalho do conhecimento. Para este estudioso do rural, o desafio
que nenhum programa governamental pode enfrentar é o de mudar o ambiente educacional
do meio rural: um conjunto de sinais que os indivíduos recebem e que os fazem crer que o
rural não é um espaço apropriado para a valorização do conhecimento.
Sendo assim, perpetua-se o que Marx e Engels (1998, p. 55) já diziam: “a maior
divisão do trabalho material e intelectual é a separação entre cidade e campo” e a oposição
de seus interesses.
Ratificando esta hipótese, Carneiro (1998), através de pesquisa de campo sobre
jovens rurais do sul e sudeste do Brasil, constata que a educação escolar é considerada
condição para que o indivíduo se torne alguém na vida, apresentando-se como principal
alternativa à atividade agrícola. Quando questionados sobre projetos familiares, os
agricultores ressaltam a educação como garantia de uma vida melhor para seus filhos,
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enquanto que os jovens formulam projetos que incluem a migração com a finalidade de
estudar. O retorno depende do ritmo do desenvolvimento local, contudo, dividem-se entre
os projetos pessoais e o compromisso com a família. Ademais, quando há o desejo de
permanecer no campo, isso não implica assumir a profissão de agricultor.
Do mesmo modo, a partir de duas pesquisas realizadas no oeste de Santa Catarina,
Mello et al. (2003) discutem as implicações nos padrões sucessórios e mostram que a
agricultura familiar da região começa a enfrentar problemas que não existiam até os anos
1960s. Até aquele período, o padrão reprodutivo das unidades familiares estava
fundamentado no minorato – o filho mais novo assumia a propriedade paterna – e a
profissão de agricultor era valorizada na formação dos jovens. Entretanto, de acordo com
Carneiro (1998), atualmente fica no campo aquele que tiver mais aptidão para a agricultura
e menor vocação para os estudos. Percebe-se que o homem rural, ao desejar educação,
relaciona-a a viver na cidade, tal como Riobaldo, personagem de Grande sertão: veredas:
“Ah, eu só queria ter nascido em cidades [...] para poder ser instruído e inteligente!”
(ROSA, 2006, p. 407).
Segundo Giddens (1997), como valor da sociedade pós-tradicional, a escolha se
tornou obrigatória. Jameson (2000), por sua vez, ao diferenciar antinomia e contradição,
expõe que a primeira é uma forma de linguagem mais limpa, pois, com ela, afirmam-se
duas proposições que são radical e absolutamente incompatíveis e, ou o sujeito a toma, ou
a deixa. E conclui que estes tempos são mais propícios para as antinomias.
Embora Horkheimer e Adorno (1985) façam uma fundamentada e radical crítica ao
conceito de esclarecimento que o associa a progresso, desenvolvimento e poder através do
domínio da natureza, Lyotard (1995) retoma Marx (1985) e afirma que o saber se
converteu na principal força de produção nas sociedades pós-industriais e pós-modernas,
enquanto Charlot (2005) avalia que, como resultado da globalização, o saber também está
se tornando uma mercadoria conveniente para empregos melhores.
No rural, a oferta escolar, em regra, vai até o quinto ano do ensino fundamental,
contribuindo na sustentação da ideia de que esse espaço não é lugar de educação, mas de
trabalho, e trabalho não-intelectual. Entretanto, nos tempos atuais, não se pode prescindir
do saber, essa força de que Marx (1985) e Lyotard (1995) tratam, embora mercadoria,
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aludida por Charlot (2005), como direito dos jovens rurais. Assim, quando os que desejam
avançar nos estudos têm como opção a migração ou deslocamento para as cidades, sofrem
a antinomia abordada por Jameson (2000), pois, ou saem para estudar, ou ficam para
trabalhar.
De outro lado, diante da questão de como, na escola – instrumento de transmissão
ideológica – a reprodução é produzida, Charlot (2005) critica os meios pedagógicos que
evocam, sobretudo, deficiências socioculturais e apresenta a resolução de Bourdieu através
dos conceitos de habitus e de capital cultural, ressaltando que o sucesso escolar supõe
práticas que correspondem ao habitus dos dominantes.
QUANDO VOLTA JÁ É OUTRO?
O romancista Juan Goytisolo passou grande parte de sua vida longe de sua terra
natal, a Espanha, vivendo nos EUA e na França e, atualmente, no Marrocos. Segundo
Bauman (2001), foi o olhar de fora e distante de sua língua nativa – o espanhol – que lhe
permitiu avançar além do presente que se esvai e enriquecê-la, de outra maneira
improvável, talvez inconcebível.
Por sua vez, acrescenta Bauman (2001), em Contre-allé, o filósofo Jacques Derrida
convida seus leitores a pensar viajar, a ir embora para longe, expondo-se a perigos e
prazeres que o desconhecido oculta, inclusive o risco de não voltar. Bauman (2001) analisa
que o próprio Derrida tinha, como obsessão, estar longe. Argelino de origem judia, ainda
criança foi expulso da escola pelo governo de Vichy e passou sua vida entre a França e os
EUA. Neste último era considerado francês e, na França, um pied noir escondido sob a fina
pele de professor da Sorbonne. Culturalmente, continuaria sem Estado, porém, ao invés
disso significar não ter uma terra natal cultural, denotava ter mais de uma, permitindo-lhe
construir um lar próprio na encruzilhada das culturas, tornando-se um mèteque, um híbrido
cultural.
Para o filósofo John Gray (2005), Nietzsche foi “um nômade que escreveu para
viajantes como ele mesmo e que foi capaz de por tantas coisas em questão porque não
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pertencia a lugar nenhum”. Ao contrário, Heidegger “sempre ansiou desesperadamente por
pertencer” (p. 67).
O Catalog 2008/09 do Student Travel Bureau – STB (2008) é uma publicação da
“maior empresa brasileira especializada em turismo jovem e em educação internacional”
(p. 9) e, logo na orelha, vaticina: “sua história muda a partir daqui”. Algumas páginas
adiante, afirma que “você sempre volta diferente de uma viagem” (p. 9). Depois, apresenta
um decálogo com respostas para a pergunta “Por que você sempre volta diferente de um
intercâmbio?” (p.14), sendo que uma das respostas apresentadas é porque “conhece lugares
e culturas diferentes” (p. 5).
O compositor Milton Nascimento, na letra de Morro Velho, fala de dois garotos
correndo em uma fazenda atrás de passarinhos, brincando nas plantações e pescando no
riacho. Mas, um dia, o filho do patrão vai embora para estudar na cidade grande e, quando
volta, já é outro.
Com estas considerações e parafraseando Hall (2006), podem-se apontar três
possíveis consequências sobre as identidades culturais: sua desintegração como resultado
da homogeneização cultural e do pós-moderno global; o reforço pela resistência; e seu
declínio, com novas identidades híbridas tomando seu lugar. Assim, os jovens rurais que
vão estudar em escolas urbanas, podem ter suas identidades culturais desintegradas,
reforçadas ou hibridizadas.
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EDUCAÇÃO ESCOLAR E IDENTIDADE CULTURAL DE