A EDUCAÇÃO ESCOLAR DE ADOLESCENTES E A FORMAÇÃO DA
INDIVIDUALIDADE PARA-SI: REFLEXÕES A PARTIR DA PSICOLOGIA
HISTÓRICO-CULTURAL
THE SCHOOL TEENAGE EDUCATION AND TRAINING OF INDIVIDUALITY
FOR ITSELF: REFLECTIONS THROUGH THE CULTURAL-HISTORICAL
PSYCHOLOGY
Ricardo Eleutério dos Anjos - [email protected]
RESUMO
Este artigo tem como finalidade contribuir para a educação escolar de
adolescentes por meio da aproximação entre o desenvolvimento psicológico
segundo a psicologia histórico-cultural e a formação da individualidade segundo
Agnes Heller. Apresentará a adolescência como um momento privilegiado para o
desenvolvimento do pensamento por conceitos, pois, somente por conceitos o
indivíduo poderá se apropriar adequadamente das esferas mais elevadas de
objetivação do gênero humano como a ciência, a arte e a filosofia. Concluirá que
a educação escolar pode contribuir decisivamente para a formação da
individualidade dos adolescentes no sentido da superação dos limites da vida
cotidiana.
Palavras-chave: Adolescência. Psicologia Histórico-Cultural. Educação Escolar.
Individualidade para-si.
ABSTRACT
This article aims to contribute to the education of school adolescents
through the connection between the psychological development according to
cultural-historical psychology and the formation of individuality second Agnes
Heller. Present adolescence as a focus for the development of concepts of
thought, therefore, only for the individual concepts can adequately take ownership
of the higher spheres of objectification of the human race as science, art and
philosophy. Conclude that school education can contribute decisively to the
formation of the individuality of teenagers in order to overcome the limits of
everyday life.
Keywords: Adolescence.
Individuality for itself.
Historic-Cultural
Psychology.
School
Education.
INTRODUÇÃO
A busca de articulação entre a Escola de Vigotski, isto é, a psicologia
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histórico-cultural e a Escola de Budapeste, especialmente a teoria das
objetivações do gênero humano desenvolvida por Heller, tem precedentes em
Duarte (1996; 1999) e Rossler (2006), entre outros. Como indicam esses estudos
precedentes, a teoria de Agnes Heller aborda a questão da individualidade no
escopo das relações entre a esfera da vida cotidiana e as esferas mais elevadas
de objetivação do gênero humano, como a ciência, a arte e a filosofia.
Considerando-se a temática específica a este trabalho, o presente artigo
concentrará na abordagem helleriana da individualidade que, seguindo a
terminologia adotada por Duarte (1999), será denominada de formação da
individualidade para-si.
Para o estudo da adolescência na concepção histórico-cultural, este artigo
apresentará a necessidade da superação dos significados de adolescência
centrados em mitos, sintomas, desequilíbrios emocionais e concepções
naturalizantes, evidenciados pelas correntes liberais em psicologia. Essas
concepções de adolescência contrastam com o ponto fulcral no qual Vigotski e
colaboradores concentraram suas pesquisas, a saber, a formação dos conceitos
como um salto qualitativo no desenvolvimento psicológico nesta fase.
Diante da especificidade da educação escolar, qual seja: a socialização do
conhecimento sistematizado (SAVIANI, 2008), este trabalho defenderá que a
prática pedagógica pode conduzir o adolescente no processo de passagem das
funções psicológicas espontâneas às funções psicológicas voluntárias, ou seja, a
passagem do em-si ao para-si.
Para maiores esclarecimentos, o nome Vigotski é encontrado na literatura
de várias formas, tais como Vygotsky, Vygotski, Vigotskii. A grafia <<Vigotski>>
será padronizada neste artigo, porém, quando tratar-se de referência a uma obra
específica, será utilizada a forma que fora registrada no original.
1
A NECESSIDADE DE SUPERAÇÃO DA CONCEPÇÃO LIBERAL SOBRE
ADOLESCÊNCIA
A psicologia tem procurado contribuir para a educação escolar de
adolescentes. No entanto, em sua maioria, conforme explicitaremos mais adiante,
os conhecimentos psicológicos estão embasados em concepções biológicas,
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naturalizantes, abstratas e patológicas sobre adolescência.
Algumas teorias como a Síndrome da Adolescência Normal de Knobel –
que defende a naturalização do desenvolvimento humano ao considerar as
características encontradas em adolescentes como um fator normal e inerente à
fase deste desenvolvimento – legitimam tal asserção. Knobel (1992), afirma que
os comportamentos dos adolescentes são comportamentos semipatológicos,
entre eles estão: a tendência grupal; a necessidade de intelectualizar e fantasiar;
crises religiosas; desestruturação temporal; a evolução sexual desde o autoerotismo até a heterossexualidade; atitude social reivindicatória; contradições
sucessivas em todas as manifestações; separação progressiva dos pais;
constante flutuação do humor e do estado de ânimo.
De acordo com alguns autores consultados, entre eles Bock (2004),
Mascagna (2009), Ozella (2003) e Tomio (2007), a psicologia considerou a
adolescência como uma fase natural do desenvolvimento, fase esta, repleta de
problemas e conflitos inerentes ao ser humano. Com isso, a psicologia
desconsiderou todo o processo social que constitui a adolescência. Para as
correntes científicas liberais em psicologia, o aspecto social é considerado apenas
um meio que impede ou auxilia o desenvolvimento de algo que é intrínseco à
natureza humana.
Verificou-se também que a concepção de adolescência mais encontrada na
psicologia é caracterizada por tormentos, problemas e conturbações vinculados à
sexualidade. Segundo Ozella (2003, p. 19), esta idéia é reforçada e legitimada
pela psicanálise e “esta concepção ficou indelevelmente impregnada na definição
dos adolescentes por livros, teorias, a mídia, profissionais das áreas das Ciências
Humanas, e incorporadas pela população e pelos próprios adolescentes”.
Ozella (2003), após sua pesquisa sobre qual o significado que os
psicólogos dão à adolescência verificou que, na maioria dos profissionais
entrevistados, houve o predomínio da visão liberal de homem. Tal visão, dentre
outros fatores, caracteriza-se por conceber o homem a partir da idéia de natureza
humana, um homem dotado de potencialidades naturais, além da evidente
dicotomia entre homem e sociedade. Bock (2004), e também Mascagna (2009),
evidenciaram esta mesma concepção de adolescência ao analisarem alguns
textos publicados para professores e pais de adolescentes.
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Mascagna (2009, p. 26), em sua pesquisa, analisou vários artigos sobre o
tema adolescência e constatou que: “qualquer estudante e/ou pesquisador que
fizer uma pesquisa na Scielo a fim de compreender a adolescência se apropriará
das teorias idealistas sobre o tema em questão ou as reforçará”.
Devido à grande influência da psicanálise, as publicações sobre
adolescência estão pautadas no desenvolvimento do aspecto emocional,
desconsiderando um ponto fulcral que Vygotski (1996), assinalou na idade de
transição, qual seja, a formação de conceitos. Vigotski faz uma crítica às teorias
de sua época que consideravam que as mudanças psíquicas no adolescente
estariam pautadas apenas no aspecto emocional. Segundo este autor, o
adolescente é, sobretudo, um ser pensante.
Outra
abordagem
que
exerce
relevante
papel
na
atualidade
e,
principalmente, no campo da educação, é a Epistemologia Genética de Jean
Piaget. Tal abordagem, “ao estabelecer regularidade para a construção do
pensamento cognitivo, atrelada à evolução cronológica, desconsidera as
experiências sociais e as possibilidades de influência da cultura como propulsora
deste desenvolvimento” (TOMIO, 2007, p. 2).
Ao contrapor-se à teoria de Piaget, Vigotski (2005, p. 107), diz que:
O aprendizado é uma das principais fontes de conceitos da criança em
idade escolar, e é também uma poderosa força que direciona o seu
desenvolvimento mental. Se assim é, os resultados do estudo psicológico
dos conceitos infantis podem aplicar-se aos problemas do aprendizado de
uma forma muito diferente daquela imaginada por Piaget.
Isto quer dizer que a aprendizagem será a força propulsora do
desenvolvimento psíquico e da formação dos conceitos científicos do aluno.
Conforme Vigotskii (2006, p. 114), “o único bom ensino é o que se adianta ao
desenvolvimento”.
Voltando às palavras de Tomio (2007, p. 2), “tanto na Psicanálise como na
Epistemologia Genética se constata, portanto, a visão naturalizante desse estágio
de desenvolvimento”.
O ponto que justifica este primeiro tópico está contido nas considerações
acima e fica evidente a necessidade de apresentar uma concepção de
adolescência numa abordagem histórico-cultural. Ou seja, uma concepção de
adolescência que supere a visão liberal, naturalista, biológica e patológica.
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280
2
A ADOLESCÊNCIA NA PERSPECTIVA DA PSICOLOGIA HISTÓRICO-
CULTURAL
Este artigo propõe um recorte específico a esta temática, qual seja, a
concepção de adolescência e seu desenvolvimento psicológico voltada para o
contexto escolar. Faz-se necessária esta ressalva no sentido de se explicitar que
esta pesquisa não ignora a existência de outra realidade, a do adolescente que,
vivendo no campo ou na cidade, não esteja inserido na escola.
A adolescência, para a psicologia histórico-cultural, não pode ser reduzida
a
um
processo
de
mudanças
biológicas,
naturais,
caracterizadas
por
conseqüentes síndromes devido aos hormônios que estão à flor da pele. Vygotski
(1996) diz que os cientistas biologistas equivocam-se, com grande freqüência, ao
considerar o adolescente um ser apenas biológico, natural. Este autor afirma que,
sobretudo, o adolescente é um ser histórico e social. O que é relacionado ao
desenvolvimento biológico é a puberdade, porque acontece naturalmente, “apesar
de também estar correlacionada ao social, por exemplo, com o tipo de
alimentação e atividade que o ‘pré-adolescente’ ingere e realiza, respectivamente”
(MASCAGNA, 2009, p. 27).
Para a psicologia histórico-cultural, a adolescência é uma construção
social, gerada a partir das condições materiais de produção, dentro de um
determinado contexto e de acordo com as necessidades que surgiram ao longo
da história. Ariès (1978) comenta que até o século XVIII, o indivíduo passava da
condição de criança para adulto sem necessariamente passar pela condição da
então chamada adolescência. Este indivíduo participava da vida adulta, crescia
misturado com os adultos e aprendia os comportamentos sociais por meio do
contato direto com eles. Foi somente a partir do século XIX que a adolescência
passou a ser considerada uma fase distinta da infância e da vida adulta.
Devido à revolução industrial, ocorreram grandes mudanças no modo de
viver dos indivíduos. O avanço tecnológico trouxe em seu bojo a exigência de
capacitação profissional para que o indivíduo pudesse adentrar no mercado de
trabalho. Com isso, outra exigência ocorreu: um considerável prolongamento do
tempo de formação, reunindo os adolescentes por mais tempo na escola. Em
razão disso, começaram a se distanciar dos pais e construíram uma nova fase de
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desenvolvimento. Destarte, de acordo com Bock (2004, p. 41), a adolescência
“refere-se, assim, a esse período de latência social constituída a partir da
sociedade capitalista, gerada por questões de ingresso no mercado de trabalho e
extensão do período escolar, da necessidade do preparo técnico”.
Diante deste contexto, o adolescente, ainda que possua capacidades
físicas, cognitivas e afetivas para desempenhar o mesmo trabalho que um adulto,
não tem a legitimação da sociedade para exercer tal tarefa. Por outro lado,
observa-se certa legitimação quando suas atividades são voltadas para a cultura
do consumo como a indústria da moda, por exemplo. Esta contradição vivida
pelos adolescentes é a causa das características refletem a nova condição social
na qual se encontram. “Quais características são essas? Aquelas descritas pela
psicologia, mas agora tomam um outro sentido, pois não são naturais; são
construídas nas relações sociais” (BOCK, 2004, p. 41).
Vygotski (1996), afirma que o desenvolvimento dos interesses é a chave
para entender o desenvolvimento psicológico do adolescente. Os velhos
interesses da infância vão desaparecendo e surgem novos interesses. Este autor
identificou os momentos de crise que marcam esta transição de uma etapa de
desenvolvimento para outra.
Para Leontiev (1978), no entanto, as crises não são inevitáveis. Ao analisar
os momentos de passagem de um estágio a outro do desenvolvimento
psicológico, este autor afirma que a atividade que desempenhava a criança
começa a recuar para segundo plano e surge uma atividade dominante nova. Há
uma contradição entre o modo de vida da criança e suas possibilidades que já
superam este modo de vida. Nesse momento ocorre uma passagem para um
novo estágio do desenvolvimento da sua vida psíquica. “Pode perfeitamente não
haver crise se o desenvolvimento psíquico da criança se não efetuar
espontaneamente, mas como um processo racionalmente conduzido, de
educação dirigida” (LEONTIEV, 1978, p. 296).
Tal afirmação explicita o grau de importância que tem a educação escolar
no desenvolvimento do adolescente, pois, se o trabalho educativo for intencional e
racionalmente conduzido, levando em consideração as novas estruturas mentais
que são elaboradas no período de transição de um estágio ao outro, as crises
desta etapa do desenvolvimento poderão não acontecer, ou, em última instância,
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serem superadas.
Segundo Vygotski (1996), o ponto principal de todo o problema do
desenvolvimento do pensamento do adolescente está na questão de que, neste
período, os verdadeiros conceitos se formam. Para este autor, a formação de
conceitos guia todo o desenvolvimento psíquico, desempenhando neste uma
função central. A formação de conceitos é a causa fundamental de todas as
mudanças que se produzem no pensamento do adolescente. O pensamento por
conceitos é um novo mecanismo intelectual e um novo modo de conduta.
Mas o que é conceito? Conceito é o conjunto de conhecimentos sobre o
objeto ou fenômeno dado. O conceito representa, num campo subjetivo, a
realidade dos objetos que são encontrados no campo objetivo. Vale destacar que,
somente por meio da mediação dos conceitos, “a realidade será captada em sua
gênese e em seu desenvolvimento, ou seja, como síntese de múltiplas
determinações” (MARTINS, 2011, p. 53, grifos no original).
O adolescente, por meio do pensamento em conceitos, consegue chegar a
compreender a realidade em que vive, as pessoas ao seu redor e a si mesmo. O
pensamento concreto começa a dar lugar ao pensamento abstrato e o conteúdo
do pensamento do adolescente “converte-se em convicção interna, em orientação
dos seus interesses, em normas de conduta, em sentido ético, em seus desejos e
seus propósitos” (FACCI, 2004, p. 71).
Vigotski (2001) identificou dois tipos de conceitos: os conceitos cotidianos
ou espontâneos e os conceitos científicos. Para o autor, os conceitos cotidianos
são formados a partir do aprendizado pré-escolar, enquanto os conceitos
científicos são produtos do aprendizado escolar mediado pelo professor. O
desenvolvimento dos conceitos científicos é apoiado num determinado nível de
maturação dos conceitos espontâneos. Ao operar com os conceitos cotidianos ou
espontâneos, a criança não tem consciência destes conceitos, pois sua atenção
está sempre centrada no objeto a que o conceito se refere e não no próprio ato de
pensamento. Ao operar com os conceitos científicos a criança começa
simultaneamente a operar sobre o objeto ao qual o conceito se refere e sobre o
próprio conceito, isto é, o próprio ato de pensar sobre o objeto. Todo esse
processo é mediado pela linguagem. Com isso, há uma consciência e uma
utilização voluntária do conceito.
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Neste sentido, a educação escolar tem um papel fundamental na mediação
entre os conceitos espontâneos e os conceitos científicos. Segundo Vigotski
(2005, p. 109), “descobrir a complexa relação entre o aprendizado e o
desenvolvimento dos conceitos científicos é uma importante tarefa prática”.
Entende-se, desta forma, que o aprendizado é uma poderosa força que direciona
o desenvolvimento mental da criança em idade escolar, além de contribuir,
decisivamente, para a formação de sua individualidade.
3
A FORMAÇÃO DA INDIVIDUALIDADE PARA-SI
De acordo com Duarte (1999), o processo de formação da individualidade
se dá por meio da apropriação das objetivações do gênero humano, da cultura. É
por meio dos processos de objetivação e apropriação que se realiza o
desenvolvimento histórico-cultural do indivíduo e da sociedade, ou seja, do
gênero humano. É importante frisar que estes processos só ocorrem na mediação
de outros indivíduos. Pode-se dizer também que, sem os processos de
objetivação e apropriação, não há humanidade.
A psicologia histórico-cultural, uma abordagem psicológica que surgiu na
União Soviética, no início do século XX, embasada no materialismo histórico e
dialético, concebe o homem como um produto histórico-cultural. Segundo
Leontiev (1978), o homem, sendo um ser de natureza social, tudo o que ele tem
de humano provém da sua vida em sociedade, por meio da cultura objetivada ao
longo da história desta sociedade. Deste modo, não há uma natureza humana
limitada ao campo biológico e o homem aprende a ser humano por meio da
cultura produzida historicamente. Humaniza-se e transforma o mundo com seu
trabalho, depositando no mundo material uma nova configuração desta
humanidade.
Leontiev (1978, p. 282) afirma que “o homem não nasce dotado das
aquisições históricas da humanidade. [...] só apropriando-se delas no decurso da
sua vida ele adquire propriedades e faculdades verdadeiramente humanas”.
Neste ínterim, o autor destaca a importância da mediação de outros indivíduos.
Destaca a importância da educação para que ocorra a apropriação da cultura, das
objetivações que compõem o gênero humano. Por meio da educação, portanto,
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seria possível a transmissão do conhecimento às novas gerações. Cada indivíduo
aprende a ser humano. O que a natureza oferece ao homem não basta para este
viver em sociedade. “É-lhe ainda preciso adquirir o que foi alcançado no decurso
do desenvolvimento histórico da sociedade humana” (LEONTIEV, 1978, p. 267).
Para Heller (1991), estas objetivações genéricas, ou seja, estas produções
do gênero humano estruturam-se em dois níveis distintos, a saber, as
objetivações genéricas em-si e as objetivações genéricas para-si. As objetivações
genéricas em-si ocorrem no âmbito do que Heller (1991) denominou de vida
cotidiana. As objetivações genéricas em-si, ou seja, aquelas que são produzidas e
reproduzidas espontaneamente na vida cotidiana são de três tipos. O primeiro
caracteriza-se pelos utensílios e instrumentos; o segundo, pelos usos e costumes;
e o terceiro pela linguagem. A apropriação das objetivações genéricas em-si
acontece desde o início da vida do indivíduo, por meio da inserção no meio
cultural e se estende por toda a vida. Segundo esta autora, as objetivações
genéricas em-si são resultantes das atividades do homem por meio da mediação
com outros. Nesta esfera, o indivíduo apropria-se dos instrumentos culturais, dos
usos e costumes e da linguagem de sua sociedade. “[...] Pois sem a apropriação
dos objetos, da linguagem e dos usos e costumes de uma determinada cultura
seria impossível a sua existência e convivência em uma sociedade humana”
(ROSSLER, 2006, p. 27).
As objetivações genéricas para-si são esferas não-cotidianas e são
constituídas a partir de objetivações humanas superiores, a saber, a ciência, a
filosofia e a arte. Heller (1991), diz que estas objetivações são ontologicamente
secundárias, isto é, surgem num período tardio da história humana e várias
formas de sociedade existiram ou existem sem esse tipo de objetivações. As
esferas de objetivações genéricas para-si tem sua gênese histórica nas
objetivações em-si, pois a existência das primeiras caracteriza certo estágio de
desenvolvimento da sociedade. Estas objetivações estão em constante processo
de transformação de acordo o desenvolvimento humano. As objetivações
genéricas para-si, no entanto, compõem esferas não-cotidianas da vida social e
representam
o
grau
máximo
de
desenvolvimento
até
aqui
alcançado
historicamente pela humanidade.
Conforme fora abordado, o processo de formação da individualidade se dá
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por meio da apropriação das objetivações genéricas. A vida cotidiana é a esfera
da vida social na qual todo o indivíduo inicia sua formação. Segundo Duarte
(1999), o indivíduo aprende a viver sua cotidianidade e forma sua individualidade
em-si. Porém, segundo este autor, o processo histórico de objetivação do gênero
humano deve ser ascendente, deve caminhar da genericidade em-si para a
genericidade para-si. Tal importância se dá pelo fato de que Heller (1991) afirma
que a vida cotidiana consiste nas satisfações das necessidades essenciais do
homem singular, enquanto a vida não-cotidiana é composta por atividades
voltadas para a reprodução da sociedade, por motivações da genericidade,
voltadas à universalidade do gênero humano.
As esferas das objetivações genéricas em-si caracterizam-se por uma
forma de conhecimento espontâneo onde não há uma reflexão consciente sobre o
objeto. O indivíduo torna-se alienado quando sua vida gira em torno apenas da
cotidianidade. Torna-se alienado quando as relações sociais não permitem que as
objetivações não-cotidianas, isto é, a ciência, a arte e a filosofia, sejam utilizadas
pelo indivíduo como meio fundamental no processo de consciência de sua própria
vida. É necessário, como foi explicitado acima, que o indivíduo seja para-si, seja
um ser livre e racional. Deve-se observar, porém, que a liberdade do indivíduo
jamais será plena numa sociedade dividida em classes. Somente com a
superação do capitalismo, da propriedade privada, da divisão social do trabalho e,
por conseguinte, da alienação, poderão os indivíduos alcançar a verdadeira
liberdade (DUARTE, 1996; HELLER, 1991).
4
A EDUCAÇÃO ESCOLAR COMO MEDIADORA ENTRE AS ESFERAS
EM-SI E PARA-SI
Destaca-se, neste momento, um ponto fulcral para a educação escolar de
adolescentes: As objetivações genéricas não-cotidianas poderão ser apropriadas
de maneira correta somente a partir da adolescência, pois Para Vygotski (1966, p.
64), “o conhecimento, no verdadeiro sentido da palavra, a ciência, a arte, as
diversas esferas da vida cultural podem ser corretamente assimiladas tão
somente por conceitos”.
A adolescência é um período propício para se operar o processo de
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apropriação das objetivações genéricas para-si. Porém, como afirma Vigotski,
este processo só acontece quando o adolescente assimila corretamente esse
conteúdo e isto implica uma transmissão precedente deste conteúdo mediada por
outro indivíduo. Se, para Vigotski, os conceitos científicos são produtos da
educação escolar, isto reforça ainda mais a importância da escola como
mediadora entre o cotidiano e o não cotidiano na formação do indivíduo, como
também postulou Duarte (1996).
As objetivações genéricas para-si não podem ser apropriadas pelo
indivíduo antes de certo nível das objetivações genéricas em-si. Isso não significa
que a educação escolar deva trabalhar apenas com os conhecimentos cotidianos
que os alunos trazem de casa. Para Vigotski (2001, p. 537), “o desenvolvimento
mental da criança não se caracteriza só por aquilo que ela conhece, mas também
pelo que ela pode aprender”. Este autor acrescenta que “se o meio ambiente não
apresenta nenhuma destas tarefas ao adolescente [...], o seu raciocínio não
conseguirá atingir os estágios mais elevados, ou só os alcançará com grande
atraso” (VIGOTSKI, 2005, p. 73).
Conforme já foi explicitado, as objetivações genéricas para-si compõem
esferas não-cotidianas da vida social e representa o grau máximo de
desenvolvimento alcançado pela humanidade, num determinado momento
histórico. Esta reflexão ganha mais força quando se recorre às idéias de Saviani
(2008), onde este autor afirma que a especificidade da educação escolar é a
reprodução, de forma sistematizada, de conhecimentos mais desenvolvidos que
foram construídos historicamente por gerações precedentes. Para este autor, “o
trabalho educativo é o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada
individuo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo
conjunto dos homens” (SAVIANI, 2008, p. 17). Tais objetivações são necessárias
para o desenvolvimento psicológico do adolescente, para o desenvolvimento das
funções psicológicas superiores e para a formação de uma individualidade parasi.
Para Elkonin (1960), umas das particularidades dos interesses do
adolescente é seu caráter ativo, conduzindo, algumas vezes, ao desprezo dos
conhecimentos científicos e técnicos por considerarem que tais conhecimentos
não têm significado prático. A escola, deste modo, deve fazer o seu papel para a
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formação da individualidade para-si, qual seja: produzir necessidades de
conhecimento sistematizado nos alunos. E, para que isso seja feito, deve
esclarecer que o conhecimento, no início da atividade humana, foi produzido a
partir de necessidades práticas e cotidianas, porém, se libertou de uma
dependência imediata deste cotidiano por meio da ciência, da arte e da filosofia.
Entende-se, desta forma, que a educação escolar deve diferenciar-se do
cotidiano. A escola deve “afastar” o aluno da vida cotidiana e formar um espaço
diferenciado para o estudo do conhecimento sistematizado, possibilitando a
ampliação das necessidades do indivíduo para além daquelas limitadas à esfera
da vida cotidiana. Para Saviani (2008), a escola tem a ver com o problema da
ciência.
O trabalho educativo, portanto, realiza uma mediação, na formação do
indivíduo, entre a esfera em-si e a esfera para-si. Diante de tal importância que
tem a educação escolar neste processo, fica evidente a premente superação das
idéias propagadas pelas pedagogias contemporâneas baseadas no lema
“aprender a aprender”. Segundo Duarte (2010, p. 37), uma idéia muito difundida
pelas pedagogias contemporâneas é a de que “o cotidiano do aluno deve ser a
referência central para as atividades escolares. [...] são considerados conteúdos
significativos e relevantes para o aluno aqueles que tenham alguma utilidade
prática em seu cotidiano”.
Duarte (2001) denomina de pedagogias do “aprender a aprender” as que,
neste contexto da relação entre educação escolar e conhecimento, apresentam
uma visão negativa sobre a transmissão do conhecimento científico por parte da
escola, limitando este conhecimento e atrelando-o ao cotidiano. Encontra-se
também uma descaracterização do professor como mediador deste saber. Além
disso, apresentam uma idéia de que o aluno deve aprender sozinho, deve
aprender a aprender. São pedagogias que defendem a limitação do indivíduo às
esferas da genericidade em-si. Esse processo pode ser considerado alienante,
pois, segundo Duarte (1996) e Heller (1991), uma das formas de alienação se dá
quando o indivíduo é impedido de se apropriar das esferas de objetivações
genéricas para-si. Estas pedagogias representam ideais proclamados pela
ideologia da classe dominante. Dentre elas estão “o construtivismo, a pedagogia
do professor reflexivo, a pedagogia das competências e a pedagogia dos projetos
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e a pedagogia multiculturalista” (DUARTE, 2010, p. 33). Não é estranho o fato de
o trabalhador desejar que seu filho aprenda na escola tudo o que ele não teve
oportunidade de aprender. A estranheza, portanto, está no fato de que os próprios
intelectuais que foram formados pela escola estabeleçam e ou defendam
pedagogias que impedem a socialização do conhecimento para todas as classes
sociais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O processo de apropriação das objetivações genéricas para-si constitui um
importante instrumento para a participação política das massas. O conhecimento
em si mesmo não pode mudar a realidade, mas é necessário o conhecimento
para que haja mudança. Saviani diz que o dominado não se liberta se ele não vier
a dominar aquilo que os dominantes dominam. Então, dominar o que os
dominantes dominam é condição de libertação. E, segundo Heller,
O para-si constitui a encarnação da liberdade humana. As objetivações
genéricas para-si são expressões de grau de liberdade que o gênero
humano tem alcançado numa determinada época. São realidades nas
quais está objetivado o domínio do gênero humano sobre a natureza e
sobre si mesmo (sobre sua própria natureza) (HELLER, 1991, p. 233,
grifo do original).
O adolescente é aquele que, num futuro próximo, escolherá uma profissão
e começará a preparação para uma atividade profissional. Tanto a escola, quanto
a família, ou melhor, a sociedade em geral, exigirá tal postura do adolescente. O
problema reside na forma como a educação escolar vem tomando em relação a
esta questão. Martins (2004) chama a atenção de que as políticas educacionais
têm centrado no treinamento de indivíduos a fim de satisfazer os interesses do
mercado. Obviamente que o assunto sobre a inserção do indivíduo no mercado
de trabalho deve estar na pauta da educação escolar, porém, conforme afirma a
referida autora, a redução da educação à formação de competências é que deve
ser objeto premente de análise crítica, “posto o empobrecimento que incide sobre
os fins educacionais, convertidos em meios para uma, cada vez maior, adaptação
passiva dos indivíduos às exigências do capital” (MARTINS, 2004, p.53).
A tarefa da educação escolar não consiste apenas em formar indivíduos
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para o mercado de trabalho. Isto seria muito pouco. Os conhecimentos científicos
produzidos ao longo da história do desenvolvimento humano, quando transmitidos
pelo professor e apropriados pelos alunos, contribuem, decisivamente, para o
desenvolvimento
geral
do
indivíduo,
para
o
desenvolvimento
de
sua
individualidade para-si.
REFERÊNCIAS
ARIÈS, P. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
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A educacao Escolar de Adolescentes e a formacao