EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA: FORMAÇÃO DE PROFESSORES LUÍS DONISETE BENZI GRUPIONI1 Apresentação A série Educação Escolar Indígena – Formação de Professores está voltada à discussão de temáticas relevantes e atuais para a consolidação do direito dos povos indígenas no Brasil a uma educação diferenciada e de qualidade, pautada pela interculturalidade e pelo bilingüismo. Temas como a formação dos próprios índios como professores e autores dos seus materiais didáticos, bem como o uso das línguas indígenas na escola, serão debatidos e problematizados na série, que também abordará a relação da escola com a comunidade e com os projetos de futuro dos povos indígenas. Duas experiências de formação de professores indígenas na Região Amazônica (a desenvolvida pela CPI-AC e pela OGPTB), que são hoje referências nacionais, serão mostradas e debatidas por especialistas, juntamente com outras experiências em curso em diferentes regiões do Brasil. Temática Geral: O Brasil abriga em seu território, além de uma expressiva biodiversidade, composta por diferentes ecossistemas, como a Amazônia e o Pantanal, uma rica sociodiversidade nativa. Esta é representada pela 1 Antropólogo, consultor do MEC para a política de Educação Escolar Indígena, e consultor desta série. É também o autor de todos os textos relativos aos programas, neste Boletim da série Educação Escolar Indígena – Formação de Professores. PROPOSTA PEDAGÓGICA 2 EDUCAÇÃO ESCOLAR I N D Í G E N A FORMAÇÃO DE PROFESSORES existência de 218 povos indígenas espalhados em milhares de aldeias por todo o país. Tais povos falam 180 línguas e dialetos nativos conhecidos e vivem diferentes situações de contato com segmentos da sociedade brasileira. Os povos indígenas no Brasil totalizam hoje uma população em torno de 500 mil indivíduos. Eles já foram muito mais no passado: em 1500, quando dos primeiros contatos entre índios e europeus, os estudiosos estimam que a população indígena chegasse a 6 milhões de indivíduos, falando mais de 1.300 línguas. Mas já foram muito menos também: na primeira metade do século XX, teriam chegado a 200 mil indivíduos. Nos últimos anos, essa população tem crescido de forma constante e em taxas superiores às do restante da população brasileira. Mesmo assim, a população indígena representa, hoje, menos de 1% da população do país, cabendo-lhe mais de 11% do território nacional, para uso exclusivo. O reconhecimento do direito dos povos indígenas às terras que tradicionalmente ocupam, para garantirem sua reprodução e perpetuação física e cultural, é um dos direitos consagrados na Constituição Federal, promulgada em 1988. A Constituição também garantiu aos índios o direito de manter suas identidades diferenciadas, preservando suas línguas, culturas, tradições e modos de ser e de pensar. Assim como ocorreu em outros países latino-americanos em anos recentes, o Brasil reconhece em seu território a presença de grupos étnicos diversificados, que têm direito à manutenção de suas especificidades culturais, históricas e lingüísticas. Nesses últimos anos, importantes e significativas mudanças ocorreram tanto na legislação quanto na política governamental em relação aos povos indígenas no Brasil. Uma das áreas em que essas mudanças mais se realizaram foi na política de educação escolar indígena. Historicamente, a introdução da escola em meio indígena serviu de instrumento de imposição de valores alheios e de negação de identidades diferenciadas, por meio de diferentes processos, como a catequização, a civilização e a integração forçada dos índios à comunhão nacional. Em anos recentes, a escola ganhou um novo sentido para os povos indígenas, tornando-se um meio de acesso a conhecimentos universais e de valorização e sistematização de saberes e conhecimentos tradicionais. Em várias regiões do país, desenvolvem-se projetos educacionais específicos à realidade sociocultural e histórica dos povos indígenas, a partir de um novo paradigma educacional de respeito à interculturalidade, ao PROPOSTA PEDAGÓGICA 3 EDUCAÇÃO ESCOLAR I N D Í G E N A FORMAÇÃO DE PROFESSORES multilingüismo e a etnicidade. De algo imposto, a educação e a criação de escolas em terras indígenas passaram a ser uma demanda dos próprios povos indígenas, interessados em adquirir conhecimentos sobre o mundo de fora das aldeias e em construir novas formas de relacionamento com a sociedade brasileira e com o mundo. Como parte do processo mais geral de redemocratização da sociedade brasileira, o movimento de apoio aos índios estrutura-se na década de 70, por meio de entidades da sociedade civil que passam a atuar junto a determinadas comunidades indígenas. Nesse período, a principal bandeira de luta centrava-se no reconhecimento dos territórios tradicionais e na busca de alternativas econômicas que possibilitassem uma maior autonomia para as comunidades indígenas. Paralelamente, a questão da escola ganha importância na medida em que se percebe que os índios precisam adquirir conhecimentos qualificados sobre o mundo dos brancos, para que possam estabelecer relações menos submissas e mais igualitárias tanto com setores do indigenismo oficial, quanto com outros segmentos da sociedade brasileira. Aprender o idioma português, dominar algumas operações matemáticas eram necessidades prementes para alguns povos, para darem um “basta” às relações de subordinação e de dominação em que se encontravam. Deste período aos dias de hoje, muito se avançou na reflexão e na prática da presença da escola em terras indígenas. Consensos que hoje parecem óbvios foram construídos com muito esforço, vencendo resistências e preconceitos, e gerando idéias e experiências que atualmente servem de referência para a própria estruturação de uma política nacional de Educação Escolar Indígena. Talvez a idéia mais forte que tenha se firmado ao longo desse período seja a de que a escola pode ser apropriada pelos povos indígenas, que podem dar a ela um novo significado e um novo sentido, transformando essa instituição tipicamente ocidental em um instrumento a seu favor. Se historicamente a escola foi utilizada para promover a integração dos índios à comunhão nacional, por meio do aprendizado do idioma português e pelo progressivo abandono de suas línguas nativas e práticas culturais, hoje esse aprendizado ocorre paralelamente a processos de sistematização, registro e valorização de saberes e conhecimentos tradicionais. Hoje, a demanda por escola está presente em quase todas as comunidades indígenas que mantêm relacionamentos com segmentos da sociedade brasileira. E essa demanda não é por qualquer tipo de escola, mas por uma escola gerida PROPOSTA PEDAGÓGICA 4 EDUCAÇÃO ESCOLAR I N D Í G E N A FORMAÇÃO DE PROFESSORES por representantes das comunidades indígenas, que permita acesso a saberes universais, mas sirva de ponto de referência para processos de valorização e resgate cultural. Passado o momento de absorção de uma instituição tipicamente ocidental, o que se assiste hoje, em todo o país, é o processo de dar uma feição indígena à instituição escolar nas aldeias. Outro ponto sobre o qual parece haver um consenso total é que os processos escolares devem ser conduzidos pelos próprios índios, membros das respectivas comunidades onde a escola esteja inserida. Para tanto, professores indígenas têm sido formados para atuarem nas escolas das aldeias, a partir de diferentes programas de formação, primeiramente alavancados por organizações da sociedade civil de apoio aos índios, e hoje já assumidos em muitos estados pelas Secretarias Estaduais de Educação. Para que este processo encontre bom termo, muitas discussões têm ocorrido em todo o Brasil, no sentido de se definir um currículo para esse magistério intercultural, a partir da realidade de cada segmento de professores indígenas em formação. Experiências de contato, grau de domínio do idioma português, experiências anteriores de escolarização, prática docente em sala de aula são alguns dos fatores levados em consideração quando da definição das competências que se espera que este professor indígena desenvolva durante o processo de sua formação que, na maioria dos casos, ocorre em serviço e conjuntamente com sua própria escolarização. O uso da língua indígena na escola é outro ponto sobre o qual muito se avançou em termos de reflexão e prática em sala de aula nos últimos anos, em todo o Brasil. Não há um modelo único que possa dar conta das diferentes situações sociolingüísticas vividas pelos povos indígenas. Há povos que são monolíngües em sua língua de origem, outros que falam mais de uma língua indígena e, ainda, aqueles para os quais o idioma português tornou-se sua língua de expressão. É sabido que muitas línguas indígenas hoje no Brasil correm o risco de desaparecer, principalmente quando poucos são os falantes daquela língua, ou quando os pais não mais se comunicam com os seus filhos usando sua língua materna. Aí é só questão de tempo. A escola indígena pode ter um papel importante na manutenção e na valorização das línguas indígenas, e têm sido muito ricas as experiências nesse sentido, em todo o país. Outra vertente sobre a qual se conta com uma boa experiência acumulada e com resultados extremamente positivos é a da produção de PROPOSTA PEDAGÓGICA 5 EDUCAÇÃO ESCOLAR I N D Í G E N A FORMAÇÃO DE PROFESSORES materiais didáticos, elaborados em contexto de formação dos professores indígenas para serem utilizados com seus alunos, em sala de aula. Cartilhas, livros em diferentes áreas do conhecimento, coletâneas de mitos e de histórias, dicionários, mapas e Atlas, cartazes, jogos estão sendo produzidos a partir de processos de pesquisa, no idioma português e em muitas línguas indígenas, baseados em diferentes concepções pedagógicas. Mas se é verdade que já se avançou muito, e que muitas são as experiências em curso, tanto de formação de professores indígenas, quanto do funcionamento das escolas em terras indígenas, é também um fato a ser registrado que muitas são as dúvidas, as questões não resolvidas, os impasses para que estes consensos se generalizem, gerando novas e produtivas práticas escolares. Com esta série, queremos fazer avançar essas discussões, criando um momento de interação entre profissionais diversos relacionados à temática, que possam pensar e sugerir caminhos novos, ainda não trilhados, e que forneçam elementos para que todos os professores, índios e nãoíndios, pensem sobre o rumo da escola brasileira, sua relação com a comunidade e com projetos claros e definidos de cidadania educacional. Temas que serão debatidos nos programas da série Educação Escolar Indígena – Formação de Professores A série Educação Escolar Indígena – Formação de Professores desdobra-se em cinco programas voltados à discussão de temáticas centrais à efetivação do direito dos povos indígenas a uma educação intercultural e de qualidade. Será apresentada no programa Salto para o Futuro, da TV Escola, de 6/5 a 10/5/2002. Essa série foi baseada em experiências com a Formação de professores indígenas. É importante destacar, no entanto, que o acesso a essas informações constitui importante fonte de conhecimento para todos os professores brasileiros preocupados com a diversidade cultural de nosso país. PGM 1 - FORMAÇÃO DE PROFESSORES INDÍGENAS Hoje são 3.059 professores indígenas, com variados níveis de formação, em atuação nas 1.392 escolas indígenas do país. Todos em sala de aula, a maioria sem ainda concluir sua escolarização básica, embora alguns já cur- PROPOSTA PEDAGÓGICA 6 EDUCAÇÃO ESCOLAR I N D Í G E N A FORMAÇÃO DE PROFESSORES sando licenciaturas específicas para professores indígenas. Diversas experiências de formação diferenciadas estão em curso em todo o país e muitos e bons resultados já podem ser contabilizados. PGM2 - ESCOLA E LÍNGUAS INDÍGENAS São conhecidas hoje 180 línguas indígenas, distribuídas em 41 famílias, dois troncos lingüísticos e dez línguas isoladas. Esse número, bem como essas classificações – dizem os lingüistas – devem se alterar, na medida em que se intensifica a descrição de novas línguas e daquelas parcialmente documentadas. E também porque outras irão desaparecer. A escola indígena tem tudo a ver com esta questão: pode jogar a favor ou contra a valorização e a manutenção da diversidade lingüística no país. PGM 3- PRODUÇÃO DE MATERIAL DIDÁTICO Ainda são poucas as escolas indígenas do país que contam com materiais didáticos próprios, mas é crescente a produção de cartilhas, atlas, dicionários, mapas, coletâneas de histórias e outros livros, por parte de professores indígenas em cursos de formação. Materiais escritos em língua indígena e no idioma português, a partir de processos de pesquisa e sistematização de informações, têm permitido às crianças indígenas um encontro diferente com o mundo de dentro e de fora da aldeia. PGM 4- ESCOLA E COMUNIDADES INDÍGENAS Os processos tradicionais de socialização das crianças nas comunidades indígenas convivem hoje com a instituição escolar. Escola e comunidade não podem estar desvinculadas do ritmo e do padrão da vida indígena. A escola não é o único lugar de aprendizado, nem deve substituir momentos formais e informais de transmissão de saber. A comunidade tem muito a dizer sobre como a escola vai funcionar e que tipo de indivíduo ela vai formar. PGM 5 - ESCOLA INDÍGENA E PROJETOS DE FUTURO Os povos indígenas no Brasil têm reivindicado uma escola indígena que lhes sirva de instrumento para a construção de projetos autônomos de futuro, dando-lhes acesso a conhecimentos necessários para um novo tipo de interlocução com o mundo de fora da aldeia. Nesse processo, a escola ganhou relevância dentro do movimento indígena, e os professores indígenas, organizados em uma nova categoria de profissionais, têm hoje uma pauta PROPOSTA PEDAGÓGICA 7 EDUCAÇÃO ESCOLAR I N D Í G E N A FORMAÇÃO DE PROFESSORES própria de luta e reivindicações. Nesse cenário, um novo papel está sendo desenhado para a escola indígena no país. ANEXO Informações sobre o trabalho da CPI-AC e da OGPTB2 A série Educação Escolar Indígena – Formação de Professores enfoca algumas experiências de formação de professores indígenas no Brasil. Duas delas são exploradas em profundidade nos cinco programas que compõem a série: a experiência da Comissão Pró-Índio do Acre (CPI-AC), com sede em Rio Branco (AC) e a da Organização Geral dos Professores Ticuna Bilíngües (OGPTB), de Benjamin Constant (AM). A seguir, apresentamos algumas informações sobre estas duas experiências, que foram escolhidas porque se tornaram referências nacionais para outras iniciativas de formação de professores indígenas em outras regiões do país e também porque possibilitaram pensar várias questões que hoje dão sustentação para a política nacional de Educação Escolar Indígena do Brasil. O projeto da Organização Geral dos Professores Ticuna Bilíngües A Organização Geral dos Professores Ticuna Bilíngües (OGPTB) foi criada em dezembro de 1986. Ela é a responsável pelo curso de formação dos professores Ticuna, que funciona no Centro de Formação de Professores Ticuna – Torü Nguepataü (“nossa casa de estudos”), localizado na aldeia de Filadélfia, município de Benjamin Constant (AM). O centro foi planejado pelos professores e construído em 1993, dispondo de salas de aula, biblioteca e alojamentos para os cursistas. Durante o período letivo, o Centro abriga duas salas de aula de alunos da 5ª e 7ª séries, e nos períodos de férias, de janeiro/fevereiro e julho, acontecem os cursos de formação dos professores Ticuna. O Curso de Formação de Professores Ticuna – Habilitação para o Magistério teve início em 1993 e, a partir desta data foram realizadas mais de 15 etapas. Em 1996, 212 professores ticuna concluíram o 1º grau com 2 Com a colaboração de Jussara Gruber para o texto sobre a OGPTB e Nietta Monte para o da CPI-AC. PROPOSTA PEDAGÓGICA 8 EDUCAÇÃO ESCOLAR I N D Í G E N A FORMAÇÃO DE PROFESSORES qualificação para o magistério. Em 2000, outra turma de professores concluiu o 1o grau e vários se formaram no nível médio, totalizando 183 professores qualificados. Este curso foi reconhecido pelo Conselho Estadual de Educação do Amazonas em 1997, ficando a OGPTB autorizada a emitir os certificados de conclusão. O Curso de Formação, que integra o Projeto Educação Ticuna, envolve uma série de atividades desenvolvidas com a participação dos alunos/ professores índios, tais como a organização de materiais didático-pedagógicos e a preparação de um currículo diferenciado para as escolas ticuna, além de subprojetos voltados para as áreas de saúde, meio ambiente e cultura. O Curso é ministrado por professores com experiência em educação indígena, procedentes de universidades e outras instituições de ensino do país. Na produção de materiais didáticos, os professores recebem orientação sobre metodologia de pesquisa e participam de oficinas para produção de textos e desenhos. Além de O livro das Árvores que, por sua beleza, ganhou projeção nacional, integrando o acervo de livros de literatura que o MEC distribui para todas as escolas do país, foram preparados outros materiais para uso nas escolas Ticuna: Manual da Escrita – Ngiã Tanaütchicünaagü, Livro do Professor, para aplicação do Manual da Escrita, A Matemática do Meu Dia e Manual de Saúde – Doenças Sexualmente Transmissíveis e Aids. Estão em preparação outros 10 livros, o Livro dos Peixes e o Dicionário Ticuna/Ticuna e Ticuna/Português. O Projeto Educação Ticuna abrange professores e escolas dos municípios de Benjamin Constant, Tabatinga, São Paulo de Olivença, Amaturá e Santo Antônio do Içá. Nesses municípios existem 92 escolas e cerca de 7.000 alunos ticuna. O Projeto tem apoio do Fundo Internacional do Desenvolvimento Agrícola – FIDA, Ministério da Educação e do Desporto, Fundação Nacional do Índio, além da colaboração de algumas prefeituras municipais do Amazonas. ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Os Ticuna - os Ticuna vivem no Brasil, na Colômbia e no Peru. No Brasil, estão localizados no estado do Amazonas, ao longo do rio Solimões, nos seus afluentes e ilhas. Atualmente constituem o mais numeroso grupo indígena do país, com aproximadamente 32.000 pessoas, e suas aldeias, cerca de 100, PROPOSTA PEDAGÓGICA 9 EDUCAÇÃO ESCOLAR I N D Í G E N A FORMAÇÃO DE PROFESSORES localizam-se em terras dos municípios de Benjamin Constant, Tabatinga, São Paulo de Olivença, Amaturá, Santo Antônio do Içá, Fonte Boa, Anamã e Beruri. Os Ticuna falam uma língua considerada isolada, que não mantém semelhança com nenhuma outra língua indígena. Sua característica principal é o uso de diferentes alturas na voz, peculiaridade que a classifica como uma língua tonal. Os Ticuna estão organizados em clãs, ou “nações”, agrupados em metades, que regulam os casamentos. Membros de uma metade devem casar-se com pessoas da metade oposta, e seus filhos herdam o clã do pai. Numa das metades agrupam-se os clãs com nomes de aves: mutum, maguari, arara, japó etc. Na outra metade estão os clãs que possuem nomes de plantas e de animais, como o buriti, jenipapo, avaí, onça, saúva. As primeiras notícias sobre a presença dos Ticuna na região do alto rio Solimões datam da metade do século XVII. Os contatos com os brancos, todavia, acentuaram-se a partir das últimas décadas do século passado, quando suas terras foram maciçamente ocupadas por seringalistas e comerciantes que aí se estabeleceram para extrair a borracha, utilizando, direta e indiretamente, a força de trabalho indígena. Após o declínio da exploração da seringa, os Ticuna retornaram às suas atividades agrícolas tradicionais, integrando-se, gradativamente, à economia regional. Hoje em dia, constituem os principais fornecedores de farinha de mandioca e de frutas para os mercados das cidades da região. Apesar do longo contato com os brancos e das formas de dominação, exploração e aculturação impostas pelas frentes de expansão e pelas diferentes missões religiosas em atuação entre eles, os Ticuna mantêm viva sua língua e sua organização social. Desde 1980, os Ticuna vêm lutando pelo reconhecimento oficial de suas terras. Já foram homologadas 14 áreas, num total de 1.272.742 ha no Amazonas. ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ O projeto da Comissão Pró-Índio do Acre Em princípios do ano de 1983, a Comissão Pró-índio do Acre deu início ao Projeto “Uma Experiência de Autoria” que visa possibilitar a formação PROPOSTA PEDAGÓGICA 10 EDUCAÇÃO ESCOLAR I N D Í G E N A FORMAÇÃO DE PROFESSORES continuada de professores indígenas das etnias Kaxinawá, Katukina, Kaxarari, Ashaninka, Manchineri, Jaminawá, Shawãdawa, Yawanawá, Apurinã e Poyanáwa, todas localizadas no Acre. Inaugurava-se, nesta época, uma renovação nos modelos de educação escolar no país e no continente, resultado do momento histórico representado pelos novos tempos dos direitos – os processos de demarcação de terras indígenas na região vinham acompanhados pela necessidade de substituição dos sistemas de dependência e integração, representados pelas escolas das agências missionárias e governamentais, por novas formas de pensar e fazer educação escolar indígena. Para tal mudança, jovens indígenas eram escolhidos, por suas comunidades, para serem formados e, ao mesmo tempo, iniciarem experiências de alfabetização bilíngüe de seus parentes, cujas terras, na época, estavam em processo de demarcação. O projeto vem realizando, desde então, a formação permanente de um grupo de mais de 60 professores indígenas; a elaboração, por uma equipe de assessores e professores indígenas, de currículos bilíngües e interculturais para as escolas e para os cursos de magistério indígena; a produção e publicação de quase uma centena de materiais didáticos e paradidáticos elaborados nos cursos de formação pelos professores indígenas e seus assessores, para uso nas escolas; o acompanhamento e assessoria permanente a estes professores nas escolas das aldeias,pela equipe de educadores da entidade, de forma a possibilitar-lhes a continuidade de sua formação a distância. Por tais características e linhas de trabalho, a marca registrada do projeto acreano, envolvendo pesquisa e criação pedagógica, tem sido o conceito de “autoria”. Durante todos os cursos de formação oferecidos pela CPI-AC, os professores indígenas desenham e escrevem, em suas diversas línguas, recentemente grafadas e no idioma português, livros nas diversas áreas de estudo de seu currículo (Matemática, Línguas, Geografia, História, Ciências) que são imediatamente editados pela entidade para serem utilizados ao longo do ano letivo em suas respectivas escolas, até serem renovados por novos materiais nos próximos anos. Desta forma, o projeto conta com um extenso acervo de materiais didáticos e de literatura de autoria indígena, que vêm sendo referência importante para os novos programas de educação escolar no Brasil. Estes livros, escritos desde a década de 80, em Língua Portuguesa e nas diversas línguas envolvidas no programa, referem-se a PROPOSTA PEDAGÓGICA 11 EDUCAÇÃO ESCOLAR I N D Í G E N A FORMAÇÃO DE PROFESSORES temas como suas “Histórias de Hoje e de Antigamente” (1984); suas “Escolas da Floresta” (1984); sua cultura material, “Fábrica do Índio” (1985); suas músicas, “Nuku Mimawa” (1994); suas diversas abordagens da Geografia, “Geografia Jaminawa”, “Geografia Manchineri”, “Geografia Yawanawá”, “Geografia Kaxinawá” (1995); sua relação com outras literaturas indígenas e não-indígenas, “Antologia da Floresta” (1996); suas mitologias pesquisadas entre os velhos e reunidas em livros como “Shenipabu Miyui” (1996) e “Noke Shoviti” (1998); totalizando hoje 57 publicações de uma nova literatura indígena em sua fase atual de aquisição e uso da escrita, com a concomitante valorização dos mecanismos tradicionais de oralidade. Por este elenco de realizações, o Projeto de Autoria tem sido reconhecido como um dos principais modelos pedagógicos possíveis para a Educação Escolar não só no Brasil como em outros paises da América Latina, promovendo importante papel na discussão das políticas públicas a serem traçadas para as populações indígenas. Como resultado de sua trajetória histórica, a CPI/ AC conquistou a aprovação e regulamentação dos currículos das escolas e dos cursos de magistério pelo Conselho Estadual de Educação do Acre em 1993 e 1997 respectivamente, tendo promovido, desde seus primórdios, importantes e pioneiras parcerias entre órgãos federais e estaduais como a Funai, Ministério da Educação, Secretarias de Educação, algumas universidades brasileiras e organizações não-governamentais de caráter civil. Hoje existem no Acre mais de 110 escolas indígenas regularizadas, a maioria delas desenvolvendo seus currículos diferenciados sob a responsabilidade dos professores índios em processo de formação no magistério, lecionando para cerca de 2.500 alunos. Apóia-se, assim, a permanência das populações indígenas em suas terras e sua preparação para o uso e a conservação destes territórios, em ações integradas de educação escolar, meio ambiente e saúde. ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Os índios do Acre - Foi na década de 70 que os índios do Acre e Sudoeste do Amazonas passaram a ser reconhecidos como grupos étnicos diferenciados, com o apoio de ações de indigenistas de entidades civis e religiosas e com a instalação da Funai no Estado. Até então, o governo e vários segmentos da sociedade desconheciam a existência de índios naquela região, sendo estes identificados como caboclos e integrados em sua PROPOSTA PEDAGÓGICA 12 EDUCAÇÃO ESCOLAR I N D Í G E N A FORMAÇÃO DE PROFESSORES maioria como mão-de-obra nas frentes extrativistas (borracha e castanha) que chegaram à região nos finais do século passado. ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Hoje, existem 27 terras indígenas, com diferentes situações de regularização fundiária, totalizando cerca de 13% da extensão total do estado. Nelas vivem aproximadamente 10 mil índios das etnias Apurinã, Ashaninka, Jaminawa, Kaxinawa, Katukina, Manchineri, Yawanawa, Kulina, Shawanawa, Shanenawa, Poyanawa, Jamamadi, Nukini, Kaxarari, além de vários outros grupos ainda isolados. Esses grupos falam línguas pertencentes a três famílias linguísticas: Aruak, Pano e Arawá. A exploração e a ocupação, por brasileiros e por peruanos, das extensas áreas de florestas banhadas pelas bacias formadoras dos altos rios Purus e Juruá no Acre, desenrolou-se a partir das duas últimas décadas do século XIX. A partir deste período, ocorreu a penetração de duas frentes extrativistas de expansão: uma, itinerante e de curta duração, ganhou forma através das atividades dos caucheiros peruanos, que visavam à exploração do caucho e de outros produtos florestais (peles de animais e madeira-de-lei); outra, maciça e duradoura, constituída por brasileiros que passaram a trabalhar nos seringais abertos nos altos rios incidentes, na faixa territorial que viria a constituir posteriormente o Território Federal do Acre. Os integrantes dessas duas frentes extrativistas praticamente cercaram as populações nativas, pertencentes aos troncos lingüísticos Pano e Aruak, que tradicionalmente habitavam as terras firmes e as margens dos igarapés, afluentes dos altos rios. Este período inicial de conquista dos seringais foi marcado por sangrentos enfrentamentos entre os membros dessas populações nativas, tanto com os nordestinos quanto com os caucheiros peruanos. A estes enfrentamentos e suas trágicas conseqüências deu-se o nome de correrias. Os caucheiros freqüentemente se aproveitaram de tradicionais conflitos intertribais, aliando-se a uma das partes, fornecendo armamento, munição e outros produtos industrializados para que se realizassem as correrias e fossem escravizados os membros das populações derrotadas. A inserção das populações indígenas nos seringais administrados por patrões seringalistas regionais se estende até meados da década de 70 e é vista por seus membros como o tempo do cativeiro. Os integrantes dessas populações passaram a ser indistintamente denominados de caboclos e a sofrer forte discriminação no interior dos seringais. Os seringueiros cariús PROPOSTA PEDAGÓGICA 13 EDUCAÇÃO ESCOLAR I N D Í G E N A FORMAÇÃO DE PROFESSORES se viram atrelados aos barracões dos patrões, sendo obrigados a pagar renda pela utilização das estradas de seringa, e roubados nos preços da borracha e das demais mercadorias. Eram proibidos de praticar festas e rituais de suas tradições culturais, assim como de atualizar importantes aspectos de suas formas próprias de organização social e política. Em 1975, a Divisão de Estudos e Pesquisas da Funai realizou os primeiros levantamentos fundiários, demográficos, socioeconômicos e culturais das populações indígenas que habitavam os rios Envira, Muru, Humaitá, Tarauacá e Jordão. Como desdobramento desse levantamento e, principalmente, do acirramento dos conflitos pela posse da terra no Acre, a Funai constituiu equipes de trabalho para realizar, no ano de 1977, as primeiras identificações de terras indígenas em diferentes rios e microrregiões do Estado. Até as demarcações físicas das áreas indígenas do Acre, os diversos grupos étnicos locais receberam pequenos montantes de recursos para o financiamento das safras extrativista e agrícola, através de distintos projetos de organização de cooperativas, intermediados pela CPIAC junto a entidades governamentais e agências humanitárias estrangeiras. Nesses primeiros anos, a estruturação das cooperativas serviu de base para a conquista e a ocupação produtiva dos seringais incidentes nas áreas indígenas, assim como para a reorganização política, econômica e social dos grupos familiares extensos que integravam as populações indígenas. A partir de 1982-83, as lideranças começaram a participar das assembléias indígenas e começaram a exigir a agilização da demarcação de suas terras, o financiamento de suas safras extrativistas e agrícolas e a capacitação de membros dos próprios grupos para a execução de programas educacionais e sanitários a serem desenvolvidos em suas áreas. Nasce assim o Projeto “Uma Experiência de Autoria”, como forma de atender à solicitação das lideranças indígenas na sua luta pela libertação dos patrões e de outros agentes formais do violento contato até então promovido nesta região. É o início dos novos Tempos dos Direitos, nos quais a escola passa a ocupar um lugar estratégico fundamental. Links na Internet sobre os povos indígenas no Brasil Nas páginas na rede mundial de computadores podem ser encontradas informações qualificadas e atualizadas sobre os povos indígenas PROPOSTA PEDAGÓGICA 14 EDUCAÇÃO ESCOLAR I N D Í G E N A FORMAÇÃO DE PROFESSORES no Brasil. Todas as principais organizações de apoio aos índios bem como órgãos governamentais que lidam com os índios, usam a internet para divulgar informações sobre seus trabalhos e sobre os povos com os quais se relacionam. A seguir, comentamos alguns dos melhores sites sobre índios brasileiros disponíveis na internet. FUNAI – FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO www.funai.gov.br/ Página institucional da FUNAI (Fundação Nacional do Índio), trazendo informações sobre a política indigenista no Brasil, a ação do governo federal junto aos povos indígenas, legislação básica, terras indígenas (detalhando os procedimentos de demarcação), educação, saúde, índios isolados, projetos de lei sobre os índios em tramitação no Congresso Nacional e artesanato indígena. Há uma listagem com os endereços de todas as administrações regionais, núcleos de apoio e lojas da Artíndia. MUSEU DO ÍNDIO www.museudoindio.org.br Página Institucional do Museu do Índio, localizado no Rio de Janeiro, órgão científico-cultural da Funai (Fundação Nacional do Índio). Apresenta informações sobre o funcionamento do Museu, seu acervo etnográfico, biblioteca Marechal Rondon, loja da Artíndia e sobre as exposições. Há facilidades para pesquisa e atividades para crianças. ISA - INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL www.socioambiental.org Página do Instituto Socioambiental sobre os povos indígenas no Brasil. Utilizando fotos, textos, tabelas, listagens e mapas, esta página apresenta informações sobre a população indígena no país (por etnia), sua localização (mapas por região), a situação jurídica das terras indígenas, os direitos indígenas consagrados na Constituição de 1988, quadro com as organizações indígenas e de apoio aos índios e lista dos 218 povos indígenas, com dados sobre língua e outras grafias dos nomes. Traz também uma listagem de bibliografia, organizada por tipo de documento e por etnias. Há verbetes sobre alguns povos indígenas do Brasil, escritos por antropólogos. Desta página é possível ter acesso a outras produzidas pelo ISA: “Últimas Notícias” PROPOSTA PEDAGÓGICA 15 EDUCAÇÃO ESCOLAR I N D Í G E N A FORMAÇÃO DE PROFESSORES com matérias jornalísticas sobre os índios; “Documentos na Íntegra” que disponibiliza documentos, projetos de lei e relatórios na íntegra, por download; “Produtos” onde se pode adquirir publicações sobre índios produzidas pelo ISA e por outras ONGs. CIMI - CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO www.cimi.org.br Página do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Apresenta informações atualizadas sobre os povos indígenas no Brasil, bem como campanhas em favor dos índios. Há informações sobre movimento indígena, povos e terras indígenas, educação e saúde. Dá acesso ao Jornal Porantim, editado pelo CIMI, bem como à Campanha da Fraternidade de 2002 sobre os povos indígenas e sobre o caso Galdino, índio Pataxó morto em Brasília. Traz, ainda, as publicações produzidas pelo CIMI. DIA – DOCUMENTAÇÃO INDIGENISTA E AMBIENTAL www.cr-df.rnp.br/~dia/ Página da organização não-governamental DIA – Documentação Indigenista e Ambiental, fundada em 1991. Apresenta fotos, mapas, iconografia, tabelas e pequenos textos com informações sobre as etnias indígenas, terras indígenas, campanhas pela demarcação de terras e classificação das línguas indígenas. Permite acesso aos boletins da rede LINDA – Línguas Indígenas da Amazônia e à Cartilha “Recontando a História do Índio no Brasil”, publicada pela ANAI-BA. Além dessas páginas que trazem informações gerais sobre os povos indígenas no Brasil, recomendamos mais algumas, de abrangência mais específica, a partir de duas entradas: . Organizações de apoio aos índios ANAI - ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE AÇÃO INDIGENISTA www.anai.org.br CCPY - COMISSÃO PRÓ-YANOMAMI www.ccpy.org.br CTI- CENTRO DE TRABALHO INDIGENISTA www.trabalhoindigenista.org.br PROPOSTA PEDAGÓGICA 16 EDUCAÇÃO ESCOLAR I N D Í G E N A FORMAÇÃO DE PROFESSORES OPAN - OPERAÇÃO AMAZÔNIA NATIVA www.opan.org.br VÍDEO NAS ALDEIAS www.videonasaldeias.org.br Órgãos governamentais brasileiros: PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA www.planalto.gov.br/secom/colecao/indio.htm FUNASA - FUNDAÇÃO NACIONAL DE SAÚDE www.funasa.gov.br MEC - MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO www.mec.gov.br/sef/indigena Indicações bibliográficas sobre os povos indígenas, educação e formação de professores indígenas no Brasil A bibliografia sobre os povos indígenas no Brasil é muito vasta. Aqui selecionamos apenas alguns títulos, lançados recentemente, para aqueles que estiverem interessados em se aprofundar na temática indígena e, particularmente, na temática da educação escolar indígena. Apresentamos, assim, algumas obras de referência, de fácil acesso. SOBRE OS POVOS INDÍGENAS NO BRASIL: Lopes da Silva, Aracy e Grupioni, Luís Donisete Benzi. A Temática Indígena na Escola: subsídios para professores de 1º e 2º graus. Brasília: MEC/MARI/ UNESCO, 1995. Grupioni, Luís Donisete Benzi, Vidal, Lux e Fischmann, Roseli. Povos Indígenas e Tolerância: construindo práticas de respeito e solidariedade. São Paulo: Edusp e Unesco, 2001. Ricardo, Carlos Alberto (Ed.). Povos Indígenas no Brasil – 1996-2000. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2000. SOBRE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA: Ministério da Educação. Diretrizes para a Política Nacional de Educação Escolar Indígena. Brasília: MEC-SEF e Comitê Nacional de Educação Escolar Indígena, 1993. PROPOSTA PEDAGÓGICA 17 EDUCAÇÃO ESCOLAR I N D Í G E N A FORMAÇÃO DE PROFESSORES Ministério da Educação. Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas. Brasília: MEC, 1998. Secretaria de Educação - Projeto Tucum. Jenipapo, urucum e giz. Educação Escolar Indígena em debate. Cuiabá: Conselho de Educação Escolar Indígena de Mato Grosso, 1997. Lopes da Silva, Aracy e Ferreira, Mariana Kawall. Antropologia, História e Educação: a questão indígena e a escola. São Paulo: Fapesp/Global/Mari, 2001. Veiga, Juracilda e Salanova, Andrés. Questões de Educação Escolar Indígena: da formação do professor ao projeto de escola. Brasília: Funai/Dedoc e ALB, 2001. PROPOSTA PEDAGÓGICA 18 EDUCAÇÃO ESCOLAR I N D Í G E N A FORMAÇÃO DE PROFESSORES PGM 1 – FORMAÇÃO ○ ○ ○ DE PROFESSORES INDÍGENAS ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ “Então surgiu o questionamento: que tipo de escola temos e que escola queremos? Porque, na verdade, a escola formal estava ou ainda está afastando o índio de sua própria realidade, fazendo-o esquecer e deixando a sua cultura de lado. Isso fez com que os professores, juntamente com as lideranças de cada povo, viessem a refletir melhor a questão da educação. Depois de muitas discussões, os professores e lideranças afirmaram que era preciso uma educação diferenciada para as comunidades indígenas. Hoje, não em todas as escolas, mas na maioria, temos professores indígenas trabalhando na sua própria comunidade, onde ele é responsável pela formação do aluno-índio.” (Prof.Orlando Oliveira Justino, Macuxi/RR) “Foi bom esse curso porque nos ajudou a rever o interesse pela nossa língua e cultura. Antes não tínhamos tanto interesse como temos hoje. Agora eu tenho orgulho de ter a língua e a cultura de minha tribo.” (Prof. José Carlos de Oliveira, Krenak/MG) “O meu desenvolvimento como professora índia em formação é uma riquíssima fonte de emoções.” (Profa. Vanilde Araújo Vonkinak, Xakirabá/MG) ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ A formação de índios como professores e gestores das escolas localizadas em terras indígenas é hoje um dos principais desafios e prioridades para a con- ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ solidação de uma Educação Escolar Indígena, pautada pelos princípios da diferença, da especificidade, do bilingüismo e da interculturalidade. É um con- 19 EDUCAÇÃO ESCOLAR I N D Í G E N A senso estabelecido que a escola indígena de qualidade só será possível se à sua frente estiverem, como professores e como gestores, professores indígenas, pertencentes às suas respectivas comunidades. De saída, pode-se dizer que esta é uma tarefa complexa, que tem encontrado soluções muito diferentes em várias localidades do país, e para a qual não há um único modelo a ser adotado, visto a extrema heterogeneidade e diversidade de situações sociolingüísticas, culturais, históricas e de formação e escolarização vividas pelos professores índios e por suas comunidades. Ao realizar um censo escolar indígena específico, no ano de 1999, o MEC reuniu informações que nos permitem visualizar quem são os professores índios em atuação nas escolas indígenas em todo o país. Eles totalizam 3.059 professores, representando 76,5%. Os outros 939 professores são não-índios, representando 23,5%. Há diferenças marcantes entre as regiões: enquanto na região Norte, os professores indígenas respondem por 82,7% do total, na região Sul eles são menos da metade dos docentes, correspondendo a 46,2%. No Nordeste, os professores indígenas representam 78,1% do total, no CentroOeste são 73,6% e no Sudeste somam 80,6%. Em termos de gênero há mais professores indígenas do sexo masculino que feminino: são 1.990 do sexo mascu- BOLETIM – PGM 1 - FORMAÇÃO ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ FORMAÇÃO DE PROFESSORES lino, enquanto 1.069 são do sexo feminino. Variam muito também os níveis de escolaridade desses professores, apresentando grande heterogeneidade, cujas proporções se modificam de região para região e em cada estado. Em termos gerais, 28,2% dos professores indígenas ainda não completaram o Ensino Fundamental, 24,8% têm o Ensino Fundamental completo, 4,5% têm Ensino Médio completo, 23,4% têm Ensino Médio com magistério, 17,6% têm Ensino Médio com magistério indígena e apenas 1,5% têm Ensino Superior. Cada uma dessas situações exige uma resposta diferente, de modo a propiciar que o professor indígena complete sua escolarização básica e se qualifique por meio de uma formação específica para a atuação no magistério indígena. E hoje, com a nova legislação, exige-se dele, como dos demais professores do país, a titulação em nível superior. Essa formação específica é uma forte demanda não só dos professores índios mas também de suas comunidades, que almejam uma educação qualificada para suas crianças, pois ainda que os professores nas escolas indígenas, em sua maioria, sejam índios, muitos membros destas respectivas etnias, como nos mostram os dados acima, não concluíram sua escolarização básica, nem tiveram uma formação em magistério. E ela está prevista na legislação que trata do direito dos índios a uma educação intercultural, diferenciada dos demais DE PROFESSORES INDÍGENAS 20 EDUCAÇÃO ESCOLAR I N D Í G E N A segmentos da população brasileira. Nesta legislação garante-se que os professores indígenas possam ter essa formação “em serviço”, ou seja, paralelamente à sua atuação em sala de aula, e concomitante à sua formação básica. Essa determinação é fruto de diversas experiências de formação de professores indígenas que surgiram desde a década de 80 em diferentes regiões do país, por iniciativa de organizações da sociedade civil que atuavam junto a determinados povos indígenas. Tais experiências, surgidas fora do aparelho do Estado, foram sendo gradativamente reconhecidas pelos órgãos oficiais e forneceram elementos para se regulamentar o processo de qualificação profissional dos professores indígenas. É o caso, por exemplo, da Resolução n. 3/99 do Conselho Nacional de Educação, que estabelece que cabe aos sistemas estaduais de ensino promover a formação inicial e continuada dos professores indígenas, bem como instituir e regulamentar a profissionalização e o reconhecimento público do magistério indígena. Normatizações como essa têm ensejado a crescente substituição de cursos de capacitação de curta duração por programas estruturados de formação de professores indígenas, com vistas à sua titulação, como vem ocorrendo em algumas Secretarias Estaduais de Educação, ou sendo assumidos por organizações da sociedade civil de apoio aos índios e ainda por organizações dos próprios povos indígenas. BOLETIM – PGM 1 - FORMAÇÃO ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ FORMAÇÃO DE PROFESSORES De modo geral, esses processos de formação almejam possibilitar que os professores indígenas desenvolvam um conjunto de competências profissionais que lhes permitam atuarem, de forma responsável e crítica, nos contextos interculturais e sociolingüísticos nos quais as escolas indígenas estão inseridas. Em muitas situações cabe ao professor indígena atuar como mediador e interlocutor de sua comunidade com os representantes do mundo de fora da aldeia, e com a sistematização e organização de novos saberes e práticas. É dele também a tarefa de refletir criticamente e de buscar estratégias para promover a interação dos diversos tipos de conhecimentos que se apresentam e se entrelaçam no processo escolar: de um lado, os conhecimentos ditos universais, a que todo estudante, indígena ou não, deve ter acesso, e, de outro, os conhecimentos étnicos, próprios ao seu grupo étnico, que se antes eram negados, hoje assumem importância crescente nos contextos escolares indígenas. Tal como estabelecido em documento do MEC, os professores indígenas “têm a difícil responsabilidade de serem os principais incentivadores à pesquisa dos conhecimentos tradicionais junto aos membros mais velhos de sua comunidade e sua difusão entre as novas gerações, visando à sua continuidade e reprodução cultural; assim como estudarem, pesquisarem e compreenderem os conhecimentos reunidos no currículo DE PROFESSORES INDÍGENAS 21 EDUCAÇÃO ESCOLAR I N D Í G E N A escolar à luz de seus próprios conhecimentos” (MEC, 2001). Portanto, o professor indígena deve ser formado também como um pesquisador, não só de aspectos relevantes da história e da cultura do seu povo, mas também dos conhecimentos significativos nas várias áreas de conhecimento. Resultam, dessa atividade de pesquisa e estudo, materiais que podem ser organizados e utilizados não só durante o processo de formação desse professor, mas também como material didático para uso com seus alunos. Os processos de formação de professores indígenas no Brasil têm se desenvolvido por meio de situações de formação presenciais e momentos nãopresenciais, possibilitando que o professor continue em atuação em sua escola, e transforme o seu dia-a-dia em sala de aula em matéria de constante reflexão. Nos períodos presenciais, cursos e atividades previamente planejados são executados por uma equipe de especialistas, responsáveis pela formação. São os momentos de curso, normalmente modulares, de trabalho intensivo, reunindo professores de uma mesma etnia ou de diversos povos. Ocorrem normalmente uma ou duas vezes por ano. A esses períodos presenciais, várias outras situações de formação são incentivadas, como estágio supervisionado, em que um formador acompanha o trabalho do professor na sua escola, ou visitas de intercâmbio entre professores indígenas de BOLETIM – PGM 1 - FORMAÇÃO ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ FORMAÇÃO DE PROFESSORES diferentes escolas, e ainda os momentos de pesquisa, reflexão e registro de suas atividades em sala de aula, por meio, por exemplo, de memoriais e diários de classe. São iniciativas com esse perfil que têm possibilitado que um número crescente de professores indígenas complete sua escolarização básica e tenha uma formação específica para a atuação no magistério. E já estão em curso as primeiras experiências de formação diferenciadas, em nível de terceiro grau, para professores indígenas, por meio de licenciaturas específicas. Todavia, é preciso registrar que ao lado de avanços significativos no processo de qualificação profissional dos professores indígenas registrados nos últimos anos, persistem muitos obstáculos para a generalização dessas práticas. Muitas Secretarias de Educação ainda não se estruturaram para o trabalho com a Educação Indígena, não contando nem com recursos financeiros, nem com equipe técnica qualificada para ações de formação de seus professores. A temática da formação de professores indígenas ganha cada vez mais força dentro da pauta de atuação do movimento indígena no país, na medida em que se percebe sua importância para a construção de escolas “verdadeiramente indígenas”. Neste primeiro programa da série Educação Escolar Indígena – Formação DE PROFESSORES INDÍGENAS 22 EDUCAÇÃO ESCOLAR I N D Í G E N A de professores pretende-se discutir em profundidade os avanços e os impasses que marcam as principais experiências de formação de professores indígenas no Brasil. Bibliografia Ministério da Educação. Diretrizes para a Política Nacional de Educação Escolar Indígena. Brasília: MEC-SEF e Comitê Nacional de Educação Escolar Indígena, 1993. Ministério da Educação. Referencial Cur- BOLETIM – PGM 1 - FORMAÇÃO ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ FORMAÇÃO DE PROFESSORES ricular Nacional para as Escolas Indígenas. Brasília: MEC, 1998. Ministério da Educação. Referenciais para implantação de programas de formação de professores indígenas nos sistemas estaduais de ensino. Brasília: MEC, 2001, mimeo. Monte, Nietta. “Os outros, quem somos? Formação de Professores indígenas e identidades interculturais”. In: Fundação Carlos Chagas - Cadernos de pesquisa, n. 111. São Paulo: Editora Autores Associados, 2000. DE PROFESSORES INDÍGENAS 23 EDUCAÇÃO ESCOLAR I N D Í G E N A FORMAÇÃO DE PROFESSORES PGM 2 – ESCOLA E LÍNGUAS INDÍGENAS ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ “A língua do branco vem acabando com a gente, invadindo nossa cultura, dominando tudo. O branco chegou aqui e veio invadindo tudo, nossa terra, nossa cultura, nossa religião. Nós temos nossa língua, e ela vem sendo matada. Mas nós podemos ter um compromisso de aprender e de valorizar nossa língua, para passar ela para nossas crianças. Aí, sim, vamos estar fortes para enfrentar a língua do branco.” (Tuxáua Severino Macuxi/RR) “É importante colocar no currículo atividades sobre a cultura e os costumes do nosso povo. Isso para lembrar sempre as tradições. Porque realmente dá tristeza quando os nosso parentes deixam seus costumes. É por isso que temos que reforçar na nossa comunidade que falar a língua indígena é muito importante”. (Prof. José Hani, Karajá / TO) ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ No Brasil hoje, além do idioma português, nossa língua nacional, são faladas muitas línguas: italiano, árabe, japonês, russo e várias outras línguas, por migrantes e seus descendentes, que adotaram o Brasil como sua pátria, o que mostra a diversidade lingüística existente no país. Menos conhecidas são as muitas línguas indígenas, faladas pelos 218 povos indígenas que vivem no território ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ nacional, e que completam e enriquecem esse quadro de diversidade lingüística. Ainda que muita gente pense que todos os índios falem tupi e que todos eles se entendem entre si, começa-se a se difundir uma outra imagem das línguas faladas pelos povos indígenas no Brasil, que nada tem a ver com essa imagem equivocada e reducionista. No Brasil contemporâneo são faladas 24 EDUCAÇÃO ESCOLAR I N D Í G E N A 180 línguas indígenas conhecidas, distribuídas em 41 famílias, dois troncos lingüísticos e dez línguas isoladas. Algumas destas línguas apresentam semelhanças entre si e, portanto, podem ser agrupadas em famílias lingüísticas e troncos, o que pressupõe que tiveram uma origem comum e que foram, ao longo dos anos, se diferenciando. Já as línguas consideradas isoladas não apresentam parentesco com nenhuma outra língua conhecida. Embora tenha havido avanços consideráveis nos últimos anos, é preciso reconhecer que nosso conhecimento sobre as línguas indígenas faladas no Brasil ainda é bem incipiente, sendo poucas as línguas efetivamente estudadas, contando com gramáticas e estudos aprofundados. Independente do nível de estudo dessas línguas por parte dos especialistas, o importante é que as línguas indígenas estão em uso e estão vivas entre os povos indígenas, embora muitos perigos as cerquem. O número de línguas indígenas faladas no Brasil já foi muito mais no passado: estima-se que na época da conquista fossem faladas aqui mais de 1.200 línguas. No processo de colonização, não só as línguas, mas os povos que as falavam deixaram de existir. Mas ainda hoje, o Brasil, no contexto sul-americano, é o que concentra a maior diversidade lingüística, não obstante seja também o lugar onde há o menor número de falantes por língua. Assim, embora haja povos como os Ticuna, com 32.000 pes- BOLETIM – PGM 2 - E SCOLA ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ FORMAÇÃO DE PROFESSORES soas, ou os Macuxi, com mais de 16.000, a média de falantes por língua indígena no Brasil é de menos de 200 indivíduos. Um número reduzido de falantes, juntamente com o fato de que as línguas indígenas são línguas locais, faladas por minorias dentro do estados, faz com que elas corram sério risco de desaparecer. A situação piora quando os pais deixam de falar com os filhos na língua de origem e adotam a língua nacional. Ou, ainda, quando ocorre a substituição de espaços de uso da língua indígena pela língua nacional, como por exemplo, com a introdução de novas práticas religiosas. Este processo pode ser descrito como “invasão”, como bem caracterizou o chefe indígena na epígrafe deste texto: “A língua do branco vem acabando com a gente, invadindo nossa cultura, dominando tudo.(...) Nós temos nossa língua, e ela vem sendo matada”. Sem dúvida alguma, esse é um processo doloroso, no qual a língua indígena vai perdendo prestígio e força dentro da comunidade, ao mesmo tempo em que o idioma português vai se instalando em situações que antes eram restritas às línguas indígenas. A pressão sobre as línguas indígenas, na verdade, remonta à época da colonização, com as tentativas de impor uma língua única em todo o território nacional, pois as línguas faladas pelos povos indígenas sempre foram vistas como um empecilho à sua integração. Nesse processo, a escola teve um papel E LÍNGUAS INDÍGENAS 25 EDUCAÇÃO ESCOLAR I N D Í G E N A central para o destino de muitas línguas indígenas e, ainda hoje, pode contribuir muito, a favor ou contra, para a valorização e a manutenção da diversidade lingüística no país. Não há dúvida de que a escola é o local privilegiado para os povos indígenas aprenderem o idioma português. E isso não é de agora. Ao longo da história da educação para povos indígenas, foi a escola o principal palco para o aprendizado da língua nacional. Ao se perceber, todavia, que o ensino da Língua Portuguesa poderia caminhar mais rapidamente se primeiramente as crianças fossem alfabetizadas em sua língua de origem e, depois de alfabetizadas, aprendessem o idioma português, adotou-se esse modelo: valorizava-se a língua indígena porque ela era a chave para o aprendizado do idioma português. Esse método, muito usado pelas missões religiosas, pode ser descrito como o bilingüismo de transição, porque ele só serve para que as crianças saiam do monolingüismo na língua de origem para o monolingüismo em português. Ao abandonarem suas línguas, pressupunha-se que também abandonassem seus modos de ser e suas identidades diferenciadas. Nesse processo, a escola era o instrumento que poderia propiciar a homogeneização: a língua indígena era utilizada para facilitar a alfabetização e para propiciar a tradução de valores e normas da sociedade nacional. Em oposição a esse tipo de prática BOLETIM – PGM 2 - E SCOLA ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ FORMAÇÃO DE PROFESSORES e de escola, é que surgem, nos anos 80, projetos alternativos de escola indígena, pautados pela idéia de que os índios podiam aprender o idioma português para terem melhores condições de relacionamento com representantes da sociedade brasileira, sem terem que abrir mão de suas línguas. E mais: que a escola indígena poderia desempenhar um importante papel no fortalecimento das línguas indígenas, ao propiciar, primeiramente, condições para a sua escrita e, em seguida, criando novos contextos e oportunidades de uso. Assim, ao possibilitar a escrita de línguas até então ágrafas (sem escrita) e novos contextos de uso, a escola indígena passou a ser vista como uma das possibilidades de valorização e fortalecimento dessas línguas. Esse processo teve seu coroamento com a promulgação da atual Constituição brasileira, que em seu artigo 210 estabelece que “o ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem”. A partir daí ocorreu uma profunda transformação, não só na legislação relativa à educação indígena, mas também nas práticas escolares em terras indígenas, pois a língua indígena passou a ser valorizada e o seu uso, dentro e fora da escola, ganhou mais importância. Se é possível dizer que há um certo consenso de que se obtêm melhores re- E LÍNGUAS INDÍGENAS 26 EDUCAÇÃO ESCOLAR I N D Í G E N A sultados quando se efetiva a alfabetização na primeira língua do aluno, sua língua “materna”, do que quando se tenta alfabetizá-lo numa língua em que ele não entende, é também verdade que hoje além do português, cuja aprendizagem é condição para uma maior e melhor envolvimento dos índios com representantes da sociedade brasileira, a escola também pode e deve ensinar na língua indígena, não apenas no paradigma da transição, mas com um fim específico: propiciar a manutenção e em alguns casos a revitalização das línguas nativas. No Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas, do MEC, sugere-se alguns usos para a língua indígena na escola: “Primeiramente, a língua indígena deverá ser a língua de instrução oral do currículo. Chama-se de ‘língua de instrução’ a língua utilizada na sala de aula para introduzir conceitos, dar esclarecimentos e explicações. A língua indígena será, nesse caso, a língua através da qual os professores e os alunos discutem Matemática, Geografia, etc.(...) Em segundo lugar, a língua indígena deverá tornar-se a língua de instrução escrita predominante naquelas situações que digam respeito aos conhecimentos étnicos e científicos tradicionais ou à síntese desses com os novos conhecimentos escolares fora da escola. Da mesma forma que acontece com a oralidade, os alunos aumentarão sua competência escrita em língua indígena. (...) Além de ser a língua de instru- BOLETIM – PGM 2 - E SCOLA ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ FORMAÇÃO DE PROFESSORES ção, a língua indígena deve também entrar no currículo, no caso de comunidades bilíngües, como uma de suas disciplinas: língua indígena como primeira língua. Nesses casos, ela será objeto de reflexão e de estudo, tanto no nível oral quanto no escrito, o que contribuirá para que os alunos conheçam com mais profundidade sua própria língua e ampliem sua competência no uso da mesma.”(MEC, 1998) Essas idéias já estão em prática em várias escolas do país, propiciando o surgimento de uma rica produção de cartilhas, livros, dicionários e coletâneas de histórias escritas nas diferentes línguas indígenas faladas pelo país afora. Nessas iniciativas, os professores indígenas têm sido chamados a refletirem sobre sua própria língua, sobre como grafá-la e sobre como ensiná-la às novas gerações. Com o fortalecimento de suas línguas de origem, ganham os povos indígenas a expressão de formas particulares de estar e conceber o mundo, e ganham os demais brasileiros e o restante da humanidade, com a preservação de formas autônomas de expressão nativas, mais um sinal da extrema riqueza da sociodiversidade. Bibliografia Franchetto, Bruna. “Línguas indígenas no Brasil: pesquisa e formação de pesquisadores”. In: Grupioni, Luís Donisete Benzi, Vidal, Lux e Fischmann, Roseli (orgs.). Povos Indígenas e Tolerância: construindo prá- E LÍNGUAS INDÍGENAS 27 EDUCAÇÃO ESCOLAR I N D Í G E N A ticas de respeito e solidariedade. São Paulo: Edusp e Unesco, 2001. Ministério da Educação. Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas. Brasília: MEC, 1998. Monserrat, Ruth. “Política e planejamento lingüístico nas sociedades indígenas do Brasil hoje: o espaço e o futuro das línguas modernas”. In: Veiga, Juracilda e Salanova, Andrés (orgs.). Questões de Educação Escolar Indígena: da formação do professor ao projeto de escola. Brasília: Funai/Dedoc e ALB, 2001. Mori, Angel Corbera. “A língua indígena BOLETIM – PGM 2 - E SCOLA ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ FORMAÇÃO DE PROFESSORES na escola indígena: quando, para quê e como?”. In: Veiga, Juracilda e Salanova, Andrés (orgs.). Questões de Educação Escolar Indígena: da formação do professor ao projeto de escola. Brasília: Funai/Dedoc e ALB, 2001. Teixeira, Raquel. “As línguas indígenas no Brasil”. In Lopes da Silva, Aracy e Grupioni, Luís Donisete Benzi. A Temática Indígena na Escola: subsídios para professores de 1 º e 2 º graus. Brasília: MEC/MARI/UNESCO, 1995. Seki, Lucy (org.). Lingüística indígena e educação na América Latina. Campinas: Editora da Unicamp, 1993. E LÍNGUAS INDÍGENAS 28 EDUCAÇÃO ESCOLAR I N D Í G E N A FORMAÇÃO DE PROFESSORES PGM 3 – PRODUÇÃO ○ ○ ○ DE MATERIAL DIDÁTICO ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ “Os professores não-índios levam livros e cartilhas feitos na cidade. Os alunos indígenas só ficam copiando, e não entendem nada. Agora, nós, professores indígenas, vamos fazer uma cartilha para os nossos alunos aprenderem. Vai ser mais fácil para eles.” (Prof. Kaitona Waiãpi/AP) “As dificuldades que vivemos para construir esta escola diferenciada é que não temos livros diferentes. Os que temos são iguais aos da cidade e não falam de nossos povos indígenas... Este problema pode ser superado através da produção de livros nossos”. (Prof. Maria José Lima, Xukuru/PE) “Já existem as cartilhas de língua portuguesa, de matemática, cartilha de geografia de cada nação indígena e existem cartilhas de língua de cada etnia feitas por cada professor.” (Prof.Geraldo Marques Aiwa, Apurinã/AC) ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Como será o processo de alfabetizar crianças indígenas, monolíngües em sua língua materna, utilizando cartilhas em português? Como será apresentar palavras e textos de livros didáticos que falam de “harpa”, “trombone”, “piano” ou “elevador”, “escada rolante” e “andaime”, ou ainda “uva”, “maçã” e “kiwi”, palavras ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ que remetem a contextos completamente desconhecidos do universo infantil indígena? Com certeza, não será um trabalho fácil, e é possível dizer isso após muitas tentativas. Mas, e se no lugar de uma cartilha em português, se usasse uma cartilha preparada na língua da criança, isto é, escrita em Yanomami, em 29 EDUCAÇÃO ESCOLAR I N D Í G E N A Bororo, em Kaxinawá ou em Guarani ? E se, ao invés de começar com palavras desconhecidas de seu universo, se utilizassem palavras do seu cotidiano, do seu dia-a-dia? Com certeza, a tarefa seria bem mais fácil. É dessa constatação simples, entre outras inquietações mais profundas, que podemos creditar a origem de um dos produtos mais interessantes, bonitos e inovadores que têm surgido da prática da educação intercultural e bilíngüe no Brasil, nos últimos anos: estamos falando da produção de livros, cartilhas, dicionários, coletâneas de histórias, mapas, atlas, jornais, jogos e cartazes, produzidos em português e nas línguas indígenas, tendo como autores os próprios professores indígenas, a maioria em processo de formação e qualificação profissional. E qual a característica dessa produção? Que finalidade ela atinge? Qual a sua importância para a escola indígena e para as escolas não-indígenas? Hoje, no Brasil, pode-se dizer que é crescente esse tipo de produção escrita, ilustrada e preparada por professores indígenas, e publicada por órgãos governamentais e entidades da sociedade civil, para uso nas escolas indígenas de todo o país. São o produto mais visível da prática de uma educação intercultural e bilíngüe, em curso em muitas áreas indígenas. Em sua maioria, essa produção é constituída por materiais escritos em língua indígena e/ou em português, a partir de processos de pesquisa e sis- BOLETIM – PGM 3 - P RODUÇÃO ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ FORMAÇÃO DE PROFESSORES tematização de informações, que colaboram para o processo de formação dos professores indígenas. O produto desta ação se traduz em um material único, na maioria dos casos ricamente ilustrado, a ser empregado por esses professores indígenas com seus alunos em suas salas de aula, espelhando as orientações pedagógicas que guiaram o processo de formação dos professores e que guiarão seu trabalho didático. O processo de confecção deste tipo de material potencializa o trabalho do professor indígena, dando-lhe referências seguras sobre temas e questões, estudadas anteriormente durante sua formação, e sistematizadas para o trabalho com seus alunos. Vem daí a importância crescente deste tipo de iniciativa. Mesmo assim, precisamos reconhecer que são ainda poucas as escolas indígenas do país que contam com materiais didáticos próprios. De acordo com o Censo Escolar Indígena do MEC, realizado em 1999, cerca de um terço das escolas indígenas do país fazem uso de material didático específico, havendo diferenças marcantes entre as regiões: enquanto na região Sul, 52% escolas indígenas contam com algum material, no Nordeste esse número cai para apenas 4%. Mas a situação tende a melhorar, quando se analisa o número de escolas que utilizam aspectos da cultura indígena no currículo escolar. Aí o quadro mostra-se mais promissor: mais da metade das escolas indígenas do país (54%) uti- DE MATERIAL DIDÁTICO 30 EDUCAÇÃO ESCOLAR I N D Í G E N A lizam aspectos da cultura indígena no cotidiano escolar, sendo que na região Centro-Oeste, o número de escolas chega a 75%. Esses dados já refletem as mudanças ocorridas nos últimos anos na legislação que trata da educação para os povos indígenas no Brasil, e incorporam uma já longa tradição de produção de materiais didáticos específicos por parte de algumas organizações não-governamentais, que desde a década de 80 vêm desenvolvendo projetos de formação de professores indígenas e apoiando experiências alternativas de escolas indígenas. Na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1996, estabelece-se que a União deve apoiar técnica e financeiramente os sistemas de ensino, para que eles desenvolvam programas integrados de ensino e pesquisa, que permitam desenvolver currículos específicos, incluindo os conteúdos culturais correspondentes às respectivas comunidades, e que elaborem e publiquem sistematicamente material didático específico e diferenciado. No Plano Nacional de Educação, promulgado em janeiro de 2001, consta, entre as metas a serem atingidas, a criação de “programas voltados à produção e publicação de materiais didáticos e pedagógicos específicos para os grupos indígenas, incluindo livros, vídeos, dicionários e outros, elaborados por professores indígenas juntamente com os seus alunos e assessores” . Além de um direito dos povos indí- BOLETIM – PGM 3 - P RODUÇÃO ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ FORMAÇÃO DE PROFESSORES genas de contarem com materiais didáticos específicos e diferenciados na escola, a produção e uso deste tipo de material é quase que uma condição sine qua non à efetivação da educação escolar bilíngüe e intercultural. Hoje, o Ministério da Educação conta com uma linha específica de financiamento para publicação de materiais didáticos específicos e diferenciados, em língua indígena e em português, para uso nas escolas indígenas. Mais de 50 livros, para diferentes escolas indígenas, já foram editados, com esse apoio governamental. Mas o número de publicações específicas, feitas diretamente por professores indígenas, auxiliados por especialistas, é muito maior do que esse. Só a Comissão Pró-Índio do Acre, para dar um exemplo de uma organização de apoio que sempre investiu muito neste tipo de atividade, já editou mais de 100 publicações para as escolas indígenas do Acre. Entre os materiais já editados por organizações de apoio e secretarias estaduais encontra-se uma rica variedade de temas, assuntos e abordagens. Há cartilhas para o ensino do português nas escolas da floresta e cartilhas em várias línguas indígenas. Há atlas com mapas preparados pelos professores indígenas, que explicam desde a origem do universo, na concepção indígena, até a localização da aldeia do povo indígena no mapa do mundo. Há livros que inventariam o acervo de cultura material de um povo indígena, outros que trazem recei- DE MATERIAL DIDÁTICO 31 EDUCAÇÃO ESCOLAR I N D Í G E N A tas, outros que falam dos animais e das plantas. Há coletâneas de mitos, de cantos e de histórias. Há dicionários e vocabulários bilíngües. Há livros de História, de Matemática, de Saúde, de Geografia. Há livros escritos só em português e outros só nas línguas indígenas, e há também livros bilíngües. Alguns trazem apenas textos, mas a maioria estão ilustrados com lindos desenhos, que expressam o estilo cultural de cada povo com muita força estética. Além de sua importância didático-pedagógica, por apoiarem o desenvolvimento de currículos diferenciados para as escolas indígenas, eles são importantes nos “processos de construção de conhecimento e pesquisa pelos próprios professores indígenas em formação”. Estes podem, assim como assinala o documento do MEC sobre formação de professores indígenas, sair “da condição de destinatários passivos do saber dominante, tão comum até agora na maioria dos processos educacionais, receptores silenciosos de conhecimentos transmitidos pela cultura escolar em uma língua que normalmente é sua segunda língua, ou em uma variedade de português, o português padrão culto, que muitas vezes dominam de forma incipiente. Ao contrário, nestes processos de elaboração de materiais, os professores indígenas tornam-se sujeitos de sua formação, sistematizadores e intérpretes dos conhecimentos interculturais que selecionam, sintetizam, interpretam e elaboram como BOLETIM – PGM 3 - P RODUÇÃO ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ FORMAÇÃO DE PROFESSORES material escrito e ilustrado” (MEC, 2001 p. 37). Nesse mesmo documento estabelecem-se as funções educacionais da produção de materiais didáticos diferenciados. São elas: “impulsionam a formação profissional relacionada à preparação didática e pedagógica dos professores para sua ação educacional nas escolas; apóiam a renovação curricular da educação intercultural e bilíngüe, incentivando a construção e a pesquisa não só de novos conteúdos culturais, antes ausentes do currículo, mas permitindo que estes estejam formulados em línguas indígenas e em português; apóiam a divulgação e o intercâmbio intercultural entre as diversas sociedades indígenas e entre estas e as sociedades não-indígenas, sendo matéria-prima de compreensão e difusão da natureza pluricultural e lingüística do país”. (MEC, 2001) Ao serem editados, esses materiais não só constituem instrumento de trabalho do professor indígena em sua sala de aula, como vimos, mas usualmente tornam-se motivo de orgulho e de afirmação étnica. Ao circularem fora da sala de aula, dentro da comunidade indígena e em outras comunidades indígenas, e mesmo na sociedade envolvente, estes materiais divulgam uma literatura em língua indígena e uma escrita de autoria indígena, seja na língua nativa seja em português, nova e surpreendente, quer por sua densidade, quer pela beleza de suas DE MATERIAL DIDÁTICO 32 EDUCAÇÃO ESCOLAR I N D Í G E N A ilustrações. Neste sentido, acabam por constituir-se em produtos culturais que divulgam a riqueza do conhecimento e dos saberes construídos nos processos de convivência interétnica. Alguns destes materiais têm chamado a atenção de um público não-indígena, como porta de entrada para conhecer valores e saberes desses povos. É o caso, para darmos um exemplo, do belo livro elaborado pelos Ticuna, do Alto Solimões, O livro das Árvores, que foi distribuído pelo MEC para as bibliotecas das escolas nãs-indígenas do país, ou a coletânea de mitos dos Kaxinawá, Shenipabu Miyui – História dos antigos, que foi editada pela Universidade Federal de Minas Gerais, e incorporada na lista de livros do vestibular daquela universidade. Esses dois casos revelam o potencial desta produção de autoria indígena, normalmente coletiva, que tem origem em processos escolares e em momentos de formação, mas que podem alçar vôos mais altos, revelando novas concepções e modos de ver o mundo. BOLETIM – PGM 3 - P RODUÇÃO ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ FORMAÇÃO DE PROFESSORES Bibliografia Lopes da Silva, Aracy e Ferreira, Mariana Kawall (org.). Práticas pedagógicas na escola indígena. São Paulo: Fapesp, Global, Mari, 2001. Gruber, Jussara Gomes (org.). O livro das árvores. Benjamin Constant: Organização Geral dos Professores Ticuna Bilíngües, 1997. Grupioni, Luís Donisete B. (editor). Coleção de livros didáticos do Referencial curricular nacional para as escolas indígenas: informações para o professor. Brasília: MEC/SEF, 1998. Monte, Nietta. Escolas da floresta: entre o passado oral e o presente letrado. Rio de Janeiro: Multiletra, 1996. Ministério da Educação. Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas. Brasília: MEC, 1998. Ministério da Educação. Referenciais para implantação de programas de formação de professores indígenas nos sistemas estaduais de ensino. Brasília: MEC, 2001, mimeo. Organização dos Professores Indígenas do Acre. Shenipabu Miyui: história dos antigos. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000. DE MATERIAL DIDÁTICO 33 EDUCAÇÃO ESCOLAR I N D Í G E N A FORMAÇÃO DE PROFESSORES PGM 4 – ESCOLA E COMUNIDADES INDÍGENAS ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ “Essa escola foi o governo quem construiu. Mas ela é da comunidade e é a comunidade quem diz como ela vai funcionar. A escola pode contribuir muito para a comunidade. No passado, a escola trouxe muita coisa ruim. Hoje, queremos reverter essa história, fazendo com que a escola nos traga coisas boas, coisas novas” (Prof. Enilton Wapichana/RR) “A escola diferenciada também dá oportunidade a muitas de nossas crianças de melhorar o seu aprendizado e conhecer os costumes do nosso povo. Eu, como professora indígena, acho muito importante a oportunidade que tenho de aprender a cultura e os costumes dos nossos antepassados”. (Profa. Rita Tapeba/CE) “É importante discutir com toda a comunidade para a gente decidir o tipo de escola que nós precisamos.” (Prof. Paulo Galibi / AP) ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ A proposta de uma escola indígena intercultural, bilíngüe, diferenciada e comunitária só se realiza com a efetiva participação da comunidade indígena. É por meio do envolvimento dos pais dos alunos, dos chefes da comunidade, das pessoas mais velhas do local, discutindo e pensando junto com os professores ín- ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ dios e com os representantes do sistema educacional, que a escola, uma instituição tipicamente ocidental, pode ganhar uma feição indígena, atendendo às demandas daquele povo e servindo aos seus interesses, na perspectiva da autonomia e de um melhor relacionamento desses povos com segmentos da sociedade bra- 34 EDUCAÇÃO ESCOLAR I N D Í G E N A sileira. Para que isso seja possível, o primeiro cuidado a ser tomado em relação à escola é que ela não substitua ou interfira nos processos tradicionais de transmissão de conhecimentos e de formação dos indivíduos, que existem em todas as sociedades, mas que interaja com eles, completando-os naquilo que a comunidade considere relevante. Todos os povos indígenas possuem processos próprios de socialização de seus membros mais jovens. Entende-se por processos de socialização todos os momentos e procedimentos empregados por determinadas pessoas do grupo social para incutir normas, valores, conceitos, práticas, atitudes, modos de se comportar, maneiras de se proceder diante dos fatos da vida... Enfim, tudo aquilo que se deseja que os mais novos aprendam, valorizem e perpetuem pela vida afora, transformando-se em membros ativos e participantes de seu grupo. Embora os pais sejam os responsáveis mais diretos pela criação dos filhos, o processo mais amplo de socialização das crianças indígenas é também efetivado pelos parentes mais próximos e pela comunidade como um todo: tios e tias, irmãos e irmãs mais velhos, avôs e avós participam ativamente deste processo. De modo geral, pode-se dizer que as crianças indígenas são criadas num ambiente de muita liberdade, participando ativamente do dia-a-dia do grupo, seja em atividades domésticas, atividades de produção de alimentos, como ir à roça BOLETIM – PGM 4 - E SCOLA ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ FORMAÇÃO DE PROFESSORES ou participar de uma pescaria, seja em atividades rituais. Participar desses momentos é sempre oportunidade para aprender coisas novas. Assim, quando acompanham seus pais na roça, aprendem sobre as técnicas para cultivar o solo, sobre o crescimento das plantas, sobre os hábitos de certos animais que rondam as plantações, sobre as estações do ano, sobre os conhecimentos acumulados pelo grupo em relação aos seres da floresta. Isto porque nas sociedades indígenas, o conhecimento é transmitido dos mais velhos para os mais novos, e tradicionalmente não havia escolas nem livros para efetuar essa transmissão de saberes: ela se dá de forma oral, dos pais para os filhos, dos mais velhos para os mais novos. Ouvindo histórias que falam sobre a origem do mundo, dos homens e dos animais, das plantas e dos seres que habitam o cosmo, que são contadas e recontadas é que se vai, gradativamente, entendendo como e porquê as coisas são do jeito que são. Outro mecanismo tradicional de socialização é aprender fazendo, imitando os mais velhos. Desde cedo, meninos e meninas colaboram com seus pais em afazeres domésticos, de modo que vão, aos poucos, aprendendo a executar tarefas que deverão desempenhar quando forem adultos. Socialização, enfim, refere-se aos processos e práticas tradicionais de transmissão de conhecimentos próprios a cada sociedade indígena, E COMUNIDADES INDÍGENAS 35 EDUCAÇÃO ESCOLAR I N D Í G E N A abarcando os processos pelos quais esta sociedade internaliza em seus membros um modo próprio e específico de ser, que garante sua sobrevivência e reprodução, ao longo de gerações, possibilitando que valores e atitudes considerados fundamentais sejam transmitidos e perpetuados. Trata-se, portanto, do modo pelo qual se “constroem” os indivíduos, moldando homens e mulheres segundo os ideais particulares de pessoa humana, em cada sociedade. Esses processos tradicionais de socialização das crianças nas comunidades indígenas convivem hoje com a instituição escolar. E esta relação nem sempre se dá de forma pacífica e harmoniosa. Normalmente são desencontros causados pela falta de diálogo entre os responsáveis pela escola, os professores ou os agentes do sistema educacional, e os representantes da comunidade, na figura dos chefes das aldeias, dos líderes, dos xamãs, dos mais velhos e dos pais dos alunos. Para evitar tais desencontros, é preciso que haja uma efetiva participação da comunidade em todos os principais momentos da vida escolar, desde sua implantação até a sua gestão cotidiana. Como vimos acima, os povos indígenas contam com mecanismos próprios de transmissão de saber e de socialização de seus membros que não pressupõem a escola. Quando esta se torna uma realidade no meio indígena, ela deve cumprir funções específicas, sem competir com momentos importantes da vida BOLETIM – PGM 4 - E SCOLA ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ FORMAÇÃO DE PROFESSORES grupal, em suas atividades cotidianas e cerimoniais. Fundamentalmente, cabe à escola propiciar às crianças indígenas momentos formalizados de aprendizagem da escrita e da leitura, tanto em português, quanto nas línguas indígenas, abrindo-lhes a oportunidade de desenvolver capacidades que lhes permitam entender e lidar com o mundo moderno e adquirirem ferramentas que lhes possibilitem obter e assimilar conhecimentos acumulados pela humanidade, integrando-os aos conhecimentos construídos por seu povo. O ritmo, a intensidade, a forma e os procedimentos para a efetivação desse aprendizado podem e devem ser discutidos com a comunidade, para que a escola não funcione como uma instituição alijada da vida social, mas participe dela de forma ativa e integrada. A comunidade tem muito a dizer sobre como a escola vai funcionar e que tipo de indivíduo ela deve formar. Vejamos, por exemplo, a questão do calendário. Em que pese a obrigatoriedade de certo número de horas e dias letivos, o calendário da escola indígena precisa ser acertado entre o professor e os líderes da comunidade, de modo que a mesma funcione de acordo com as práticas econômicas e rituais do grupo. Assim, momentos de caçada coletiva, que normalmente antecedem a realização dos grandes rituais, ou momentos de coleta de produtos silvestres ou de trabalho intensivo na roça, que mobilizam boa parte E COMUNIDADES INDÍGENAS 36 EDUCAÇÃO ESCOLAR I N D Í G E N A da comunidade, são momentos em que a escola não tem como funcionar, pois as crianças estarão acompanhando seus pais nessas empreitadas. Por outro lado, os períodos de férias regulares, estabelecidos pelos sistemas educacionais, não necessariamente são os melhores períodos para a escola não funcionar. Decisões como essa não devem ser tomadas de forma unilateral ou burocratizada, mas a partir de processos de consulta, informação e discussão dentro da comunidade. A comunidade também pode e deve acompanhar o que se ensina e como se ensina na escola, controlando não só o trabalho exercido pelo professor indígena, como também sobre os rumos do que é feito na sala de aula. Assim, cabe à comunidade, por meio de seus representantes e líderes, verificar se o professor cumpre horários, se tem rotina, se prepara suas aulas, se é atencioso com seus alunos, se promove o interesse e a pesquisa sobre a vida na comunidade, se colabora com os agentes de saúde para melhoria das condições de higiene e saúde das crianças, se envolve outras pessoas da comunidade no trabalho escolar, se trabalha ou não com temas da vida do grupo, como rituais e histórias tradicionais. Esses dois últimos tópicos, por exemplo, não são de decisão restrita e exclusiva do professor, mas, ao contrário, constituem um ótimo caso sobre o qual os representantes da comunidade têm muito a dizer. Em algumas situa- BOLETIM – PGM 4 - E SCOLA ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ FORMAÇÃO DE PROFESSORES ções é muito proveitoso que o professor, juntamente com os velhos da comunidade, aprofunde o interesse das crianças e dos jovens por determinados aspectos da vida cultural do grupo. Em outras situações, a escola pode ter pouco a dizer e a oferecer neste sentido. Quem pode dizer se é bom ou não a entrada da escola em temas como esse é a própria comunidade. Para tanto, ela precisa estar mobilizada e ser incentivada a participar das discussões sobre o destino da escola. No Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas, entre as características que definem a escola indígena, está firmada a de ser comunitária: “porque conduzida pela comunidade indígena, de acordo com seus projetos, suas concepções e seus princípios. Isto se refere tanto ao currículo quanto aos modos de administrá-la. Inclui liberdade de decisão quanto ao calendário escolar, à pedagogia, aos objetivos, aos conteúdos, aos espaços e momentos utilizados para a educação escolarizada” (MEC, 1998). Com isso, o que se quer dizer que é somente na medida em que os povos indígenas de fato assumirem a escola, apropriando-se dela, tanto nos aspectos pedagógicos quanto nos aspectos gerenciais, é que ela será de fato uma escola indígena. Para isso, não basta ter a sua frente professores índios, é preciso mais: é preciso que o seu cotidiano, o seu dia-a-dia seja gerido por represen- E COMUNIDADES INDÍGENAS 37 EDUCAÇÃO ESCOLAR I N D Í G E N A tantes indicados pela comunidade, de modo que esta escola esteja a serviço dos interesses e dos projetos das comunidades indígenas, dando respostas às demandas por elas formuladas e colaborando para os diferentes processos de autonomia cultural e de cidadania indígena almejados pelos povos indígenas. Bibliografia D’Angelis, Wilmar e Veiga, Juracilda (orgs.). Leitura e escrita em escolas indígenas. Campinas: ALB e Mercado de Letras, 1997. BOLETIM – PGM 4 - E SCOLA ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ FORMAÇÃO DE PROFESSORES Grupioni, Luís Donisete Benzi, Vidal, Lux e Fischmann, Roseli (orgs.). Povos Indígenas e Tolerância: construindo práticas de respeito e solidariedade. São Paulo: Edusp e Unesco, 2001 Lopes da Silva, Aracy e Ferreira, Mariana Kawall (orgs.). Antropologia, História e Educação: a questão indígena e a escola. São Paulo: Fapesp/Global/Mari, 2001. Ministério da Educação. Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas. Brasília: MEC, 1998. E COMUNIDADES INDÍGENAS 38 EDUCAÇÃO ESCOLAR I N D Í G E N A FORMAÇÃO DE PROFESSORES PGM 5 – ESCOLA INDÍGENA E PROJETOS DE FUTURO ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ “Se não tivesse branco no meio dos Ticuna, talvez até hoje não teria escola.” (Prof. Alírio Moraes, Ticuna/ AM) “Hoje, as organizações e movimentos de professores indígenas trabalham na reflexão do caminho feito até aqui. Têm a escola como projeto próprio e dela se apropriam como instrumento de luta pela autonomia.” (Profa. Darlene Taukane, Bakairi/MT) “A escola indígena tem que estar referenciada no território, na língua, na cultura, se não ela não tem sentido, não nos ajuda em nada. A idéia de fundo da educação escolar indígena é a da construção da autonomia.” (Prof. Euclides Pereira, Macuxi/RR) “Precisamos conhecer as leis e os direitos indígenas, porque nós temos direito a uma educação diferenciada. A escola indígena no passado tinha um papel civilizatório. Hoje isso mudou. São os próprios professores indígenas com suas comunidades que devem refletir como será a escola, porque isso tem relação com o projeto de futuro de cada comunidade indígena.” (Profa. Francisca Novantino, Pareci/MT) ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 39 EDUCAÇÃO ESCOLAR I N D Í G E N A A escola surge como instituição para os povos indígenas a partir da situação de contato. Ao longo da história de relacionamento dos povos indígenas com representantes do poder colonial e, posteriormente, com representantes do Estado-nação, a escola se impôs por meio de diferentes modelos e formas, cumprindo objetivos e funções muito diversas. Como num movimento pendular, podese dizer que a escola se moveu, num longo percurso, do passado aos dias de hoje, de algo que foi imposto aos índios a uma demanda, que é atualmente por eles reivindicada. Utilizada para aniquilar culturalmente estes povos, hoje tem sido vista como um instrumento que pode lhes trazer de volta o sentimento de pertencimento étnico, resgatando valores, práticas e histórias esmaecidas pelo tempo e pela imposição de outros padrões socioculturais. Num primeiro momento, a introdução da escola em meio indígena foi um dos instrumentos empregados para promover a “domesticação” dos povos indígenas, para alcançar sua submissão e para aniquilar suas identidades, promovendo sua integração na comunhão nacional, desprovidos de suas línguas de origem e de seus atributos étnicos e culturais. O exemplo mais acabado deste tipo de estratégia foi a criação de internatos indígenas, administrados por padres e freiras, com o intuito de promover a educação formal das crianças indígenas. Es- BOLETIM – PGM 5 - E SCOLA ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ FORMAÇÃO DE PROFESSORES tas eram retiradas do convívio familiar, colocadas em internatos, onde eram proibidas de se comunicarem em suas línguas, obrigadas a aprenderem o português e introduzidas ao aprendizado de uma série de ofícios. Ao atingirem determinada idade, eram devolvidas às suas comunidades, mas ali encontravam inúmeras dificuldades de adaptação: não tinham mais laços afetivos com seus parentes, pois haviam vivido longe deles a maior parte de suas vidas; não conseguiam se comunicar na língua de origem, porque ela fora soterrada pelas práticas da escola monolíngüe; não se integravam à vida cotidiana e ritual do grupo, pois lhes faltavam referenciais para entender e viver aquele modo de vida. Seu caminho natural era a busca por centros urbanos, integrando-se aos estratos mais baixos da vida produtiva e social. Esse caminho foi trilhado por muitos indivíduos indígenas. Alguns conseguiram realizar o movimento de volta, outros integraram-se à sociedade regional. Felizmente este não foi o único modelo de escola empregado para promover a educação formal dos índios. Tentou-se, também, a criação de escolas junto às comunidades indígenas, por meio da presença de professores não-índios, assistidos por alguns índios, que falantes do português, tornavam-se os tradutores das determinações dos professores. O ensino bilíngüe foi adotado como estratégico para o efetivo aprendizado do INDÍGENA E PROJETOS DE FUTURO 40 EDUCAÇÃO ESCOLAR I N D Í G E N A português e dos valores da sociedade dominante. Nesse processo de tradução daquele que ensina, criou-se uma nova categoria: a dos monitores bilíngües, previsto no quadro de funções do órgão indigenista oficial. Com o abandono da escola por parte desses professores nãoíndios, quase sempre despreparados para o tamanho e a dificuldade da tarefa, esses monitores acabavam por assumir as escolas, tomando a si a função da docência nas escolas indígenas: é daí que surgem vários dos professores indígenas em atuação ainda hoje. Esses são dois exemplos das muitas situações vividas pelos povos indígenas em relação aos processos de escolarização que chegaram até eles. Foram apresentados aqui de forma muito esquemática, com o intuito de demarcar um cenário que começou a se configurar com força nos últimos anos: o da apropriação da escola pelos próprios povos indígenas. De algo historicamente imposto, a escola passou a ser tomada e depois reivindicada por comunidades indígenas, que pressentiram nela a possibilidade de construção de novos caminhos para se relacionar e se posicionar frente aos representantes da sociedade mais ampla, com a qual estão cada vez mais em contato. Novos modelos de escola indígena estão surgindo, pautados por paradigmas de respeito ao pluralismo cultural e de valorização das identidades étnicas. Os povos indígenas no Brasil têm reivindicado uma escola indígena que lhes BOLETIM – PGM 5 - E SCOLA ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ FORMAÇÃO DE PROFESSORES sirva de instrumento para a construção de projetos autônomos de futuro, dando-lhes acesso a conhecimentos necessários para um novo tipo de interlocução com o mundo de fora da aldeia. Nesse processo, a escola ganhou relevância dentro do movimento indígena, e os professores indígenas, organizados em uma nova categoria de profissionais, têm hoje uma pauta própria de luta e reivindicações. A questão da educação está na agenda do movimento indígena contemporâneo, presente em todas as assembléias e reuniões, vista como um tema central para a conquista da autonomia indígena. Nesse novo cenário, associações de professores indígenas têm surgido e cumprido um importante papel na organização dos professores, na reivindicação junto a diferentes órgãos de governo, na proposição de encontros, seminários e estudos de temas relacionados à prática escolar, na formulação de princípios e de metas a serem conquistadas. Algumas destas organizações são constituídas a partir de bases étnicas, como é o caso da OGPTB, a Organização dos Professores Ticuna Bilíngües, no Amazonas, ou a da APBKG, Associação dos Professores Bilíngües Kaingang e Guarani, no Rio Grande do Sul, que reúnem respectivamente os professores Ticuna, na primeira, e os Kaingang e Guarani, na segunda. Outras reúnem professores de várias etnias, mas localizados num mesmo estado, como a OPIR, INDÍGENA E PROJETOS DE FUTURO 41 EDUCAÇÃO ESCOLAR I N D Í G E N A Organização dos Professores Indígenas de Roraima, que congregam representantes dos professores Macuxi, Wapichana, Taurepang e outros povos que vivem naquele estado, ou a OPIAC, Organização dos Professores Indígenas do Acre, que levou anos para ser formalizada, embora já estivesse há um bom tempo em gestação. E há também aquelas que se propõem a uma articulação mais regional, para fazer frente não só as demandas locais, mas também nacionais. O atual Copiam, Conselho de Professores Indígenas da Amazônia, que reúne anualmente, desde 1988, delegações de professores indígenas da região Norte, tem formulado questionamentos e apresentado proposições interessantes em termos de novas concepções de educação escolar indígena, que têm influenciado positivamente alguns órgãos responsáveis pela execução da política de educação indígena. Nesse cenário, um novo papel está sendo desenhado para a escola indígena no país. E o protagonismo desse processo está com os professores indígenas e suas comunidades: cabe a eles definir o perfil da escola indígena, de modo que ela possa responder aos projetos de futuro que cada povo está procurando construir. Hoje, a escola pode contribuir para BOLETIM – PGM 5 - E SCOLA ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ FORMAÇÃO DE PROFESSORES que os povos indígenas encontrem um lugar digno no mundo contemporâneo, vivam em paz, mantendo suas línguas e suas tradições e repassando-as às novas gerações. Isso implica terem o direito de tomar decisões sobre o seu próprio destino, com autonomia e liberdade. Já não é de agora que se decide para os povos indígenas o que é melhor para eles. O que se assiste, hoje, é que os próprios povos indígenas estão reclamando para si o direito de decidirem seu próprio caminho, a partir de relações mais equilibradas com o mundo de fora da aldeia, assentadas no respeito às suas concepções nativas. Edificar escolas indígenas que possam contribuir para esse processo de autonomia faz, sem dúvida, parte dos diferentes projetos de futuro dos povos indígenas no Brasil. Bibliografia Grupioni, Luís Donisete Benzi, Vidal, Lux e Fischmann, Roseli (orgs.). Povos Indígenas e Tolerância: construindo práticas de respeito e solidariedade. São Paulo: Edusp e Unesco, 2001. Ricardo, Carlos Alberto (Ed.). Povos Indígenas no Brasil 1996-2000. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2000. Santilli, Márcio. Os Brasileiros e os índios. São Paulo: Editora Senac, 2001. INDÍGENA E PROJETOS DE FUTURO 42 EDUCAÇÃO ESCOLAR I N D Í G E N A FORMAÇÃO DE PROFESSORES Presidente da República Fernando Henrique Cardoso Ministro da Educação Paulo Renato Souza Secretário de Educação a Distância Pedro Paulo Poppovic MEC Secretaria de Educação a Distância Programa TV Escola – Salto para o Futuro Diretora do Departamento de Política de Educação a Distância Carmen Moreira de Castro Neves Coordenadora-Geral de Material Didático-Pedagógico Vera Maria Arantes Coordenadora-Geral de Planejamento e Desenvolvimento de Educação a Distância Tânia Maria Magalhães Castro Supervisora Pedagógica Rosa Helena Mendonça Diretor de Produção e Divulgação de Programas Educativos Antonio Augusto Silva Coordenadoras de Utilização e Avaliação Mônica Mufarrej e Leila Atta Abrahão Copidesque e Revisão Magda Frediani Martins Programadora Visual Norma Massa Consultoria Pedagógica Luís Donisete Benzi Grupioni e.mail: [email protected] Maio de 2002 Home page: www.tvebrasil.com.br/salto 43