ÁFRICA 21 – JUNHO 2008 A CRISE ALIMENTAR MUNDIA: EM QUESTÃO A CAPACIDADE DO MUNDO SE ALIMENTAR A SI PRÓPRIO? Alves da Rocha Professor Associado da Universidade Católica de Angola Director Académico do Centro de Estudos e Investigação Científica da UCAN [email protected] Segundo as análises dos mais consagrados especialistas mundiais em agricultura e alimentação, a crise de excesso de procura e de preços altos das commodities está para durar. A melhoria das condições de vida de milhões de asiáticos, com reflexo no incremento do consumo de bens alimentares, as variações climáticas inesperadas e intempestivas, a redução dos stocks mundiais de produtos alimentares e a diminuição da superfície cultivada por pressão dos biocombustíveis, são as causas comumente aceites como explicativas da crise alimentar mundial. No entanto, não se deve desprezar a influência da especulação nos mercados de futuros das commodities como, igualmente, uma razão de peso para a subida dos seus preços. A sobreposição do domínio monetário sobre o real tem provocado sucessivas crises nas Bolsas de Valores dos países desenvolvidos e de alguns emergentes, levando os especuladores a desviarem os seus investimentos para os fundos de matérias-primas, pressionando o seu valor para cima no curto prazo. Havendo muita procura, os especuladores vêm-se na contingência de comprar em mercados futuros, a que preço for. Ou seja, como parte da procura é apenas financeira, passa-se a pagar os alimentos mais caros, não porque existam mais pessoas a comprar no presente, mas porque se pensa que a médio prazo se vá consumir mais. Outras correntes defendem o ponto de vista da previsibilidade da presente crise alimentar, acusando o Fundo Monetário Internacional e as suas políticas de ajustamento estrutural impostas a África, Ásia e América Latina, nos anos 80 e 90, de estarem na sua base. O livre-comércio, a abertura das economias e a reafectação dos recursos e factores para a agricultura de mono-exportação de matérias-primas industriais – condições que o FMI considerava essenciais para a diminuição do saldo negativo das Contas Externas e uma redução da dívida ao exterior – atiraram a agricultura camponesa para uma crise permanente até hoje. A reconversão e o regresso ao passado – que afinal até era futuro – é difícil e demora tempo, pois, entretanto, os camponeses perderam as suas terras. Os baixos preços dos produtos alimentares produzidos no Norte industrializado (os subsídios de apoio aí praticados garantiam preços baixos e inviabilizaram a sua produção no Sul subdesenvolvido) foi razão suficiente para o FMI advogar a abertura das economias pobres e a liberdade do comércio. Esta crise agrícola relançou o debate sobe a capacidade do planeta em alimentar uma população que, no pior dos cenários, pode atingir os 9 mil milhões de habitantes em 2050, num contexto em que a sub-alimentação, que, actualmente, afecta 854 milhões de seres vivos, dos quais 820 milhões nos países subdesenvolvidos, não diminuiu nos últimos 20 anos. Na África subsariana, a percentagem da população subalimentada passou de 36% no início dos anos 90, para 60% quinze anos mais tarde. Apesar da produção agrícola mundial ter variado 2% anualmente entre 1980 e 2004 e da taxa média anual de crescimento demográfico, no mesmo período, ter sido de 1,6% (balanço excedentário de 0,4 ponto percentual), a situação alimentar mundial não melhorou e o desajustamento no binómio necessidades/recursos recrudesceu. 1 Está-se, portanto, numa situação em que é fundamental aumentar a produção agrícola e, ao mesmo tempo, garantir que essa produção sirva às necessidades alimentares. A forma mais elementar de se incrementar a produção agrícola é aumentando a extensão das terras cultivadas. No entanto e exceptuando algumas regiões mundiais, como a ex-União Soviética e a África, onde apenas 10% da superfície agricultável é, de facto, aproveitada, as reservas mundiais não são significativas. Por exemplo, na África Ocidental, para uma superfície agricultável de 197 milhões de hectares, tão-somente 54% são efectivamente utilizados para a produção. Outra hipótese de aumento da superfície disponível para a agricultura passaria pela intensificação da desflorestação, em particular na América do Sul. Opção arriscada num contexto de sobreaquecimento do planeta e de crescente urbanização da população, consequencializando redução da superfície para a agricultura. Acresce ainda que os modos de produção agrícola pouco respeitadores da preservação do ambiente têm contribuído para a degradação de importantes porções de terras agrícolas (entre 5 a 10 milhões de hectares perdem-se, anualmente, por esta via, de acordo com estimativas do Banco Mundial). Mas resta uma pista importante para se aumentar a produção agrícola para necessidades alimentares: reganhar a vocação alimentar das terras agrícolas ocupadas com culturas agrocarburantes. Lembre-se que Jean Ziegler, antigo relator especial das Nações Unidas para a salvaguarda do direito à alimentação, classificou como crime contra a Humanidade a crescente atribuição de terrenos agrícolas para os agro-combustíveis, crime que nos preparamos para cometer, sob influência brasileira. A quantidade de matérias-primas necessária para a produção de 100 litros de etanol permitiria alimentar uma pessoa durante um ano. Acrescente-se que a subida em flecha dos agro-carburantes responde, em parte, pela alta dos preços das respectivas matérias-primas agrícolas, sendo as economias subdesenvolvidas as mais prejudicadas, com a redução dos índices de segurança alimentar. Será que o nosso país precisa realmente de desenvolver a produção de agrocombustíveis, quando se apresenta com índices elevados de sub-nutrição, prevalecem determinadas ameaças à segurança alimentar, apresenta uma dinâmica de crescimento populacional de 2,9% ao ano (duplicação da população actual no espaço duma geração, 25 anos), não dispõe de tanta terra de qualidade como alguns especialistas estrangeiros pretendem fazer acreditar e, principalmente, tem a possibilidade de usar outras fontes de energia, como a hidro-electricidade (onde, também, estão os brasileiros a aconselhar e a explorar)? A segunda forma de aumentar a produção agrícola é pela via da produtividade. Esta solução é a mais prometedora, de acordo com a generalidade dos especialistas, e em particular para a África subsariana, onde a produção de cereais por hectare não aumenta desde 1980. Segundo a FAO, a produção média por hectare é de 1200 quilos nesta parte do continente africano, contra 3090 quilos na Ásia e 5400 quilos na Europa. A melhoria destas produtividades, em África, é apelativa da introdução de sementes de alto rendimento, da utilização, em larga escala, de esquemas de regadio, da generalização da mecanização agrícola, da outorga de créditos em boas condições de reembolso e custo, da aplicação de adubos, pesticidas e ervicidas e da formação dos camponeses. A utilização de sementes geneticamente modificadas tem sido objecto de alguma polémica, não apenas do ponto de vista das suas implicações para a vida humana, como pela circunstância de ser, cada vez mais, um negócio dominado por multinacionais, onde os interesses capitalistas preponderam em desfavor duma real ajuda à agricultura. Por isso, é que determinadas correntes são mais a favor da prática de técnicas mais conservadoras para se aumentar a produtividade. Destacam-se a rotação 2 de culturas, para evitar a erosão dos solos, a produção junto das árvores nas florestas, de modo a ajudar a fixar o azoto e a recuperação das águas pluviais. O desenvolvimento destas técnicas permitiria, ainda de acordo com a FAO, aumentar a produção agrícola em 56%, favorecendo-se, assim, os apelos em favor da investigação agro-biológica, como o que foi lançado, em Abril do corrente ano, pela International Assessment of Agricultural Science. Outra forma de se aumentar a produção agrícola é pela via dos investimentos maciços na agricultura. Esta via – defendida por diferentes organizações não governamentais há muito tempo – ganha, agora, um novo fulgor, com eco, inclusivamente, junto do majestático Banco Mundial. Os países mais dependentes da agricultura não despendem mais do que 4% das suas despesas públicas neste sector, quando, por força dos compromissos assumidos no âmbito da NEPAD, deveriam afectar, pelo menos, 10%. Em Angola, de acordo com o Relatório do Balanço da Execução do Orçamento Geral do Estado de 2007, as despesas públicas afectas ao sector da agricultura e desenvolvimento rural foram de, respectivamente em 2005, 2006 e 2007, 1,7%, 1,7% e 2%, das despesas públicas totais. Particularizando o investimento público neste sector, o mesmo não foi além dos 2,28% do investimento público total. É absolutamente fundamental dar-se à agricultura a importância estratégica que detém nos países subdesenvolvidos, especialmente naqueles em que este sector assume um peso relativo elevado. Pequenos projectos de irrigação, facilitação do acesso ao crédito por parte dos pequenos e médios agricultores, defesa dos preços dos bens agrícolas, de modo a criar condições de rendibilidade mínimas dos investimentos privados, subsídios para a aquisição de insumos agrícolas e garantia absoluta do acesso à terra da parte de quem efectivamente a trabalha e dela necessita para sobreviver são algumas das áreas fundamentais de intervenção. Verifica-se, assim, que a solução para o problema da produção alimentar mundial não é simples, exigindo uma intervenção esclarecida dos Governos e um posicionamento das mais importantes instituições internacionais a favor do desenvolvimento da agricultura. A importação de bens alimentares não pode ser solução, a despeito da Organização Mundial do Comércio e dos evangelistas do néo-liberalismo continuarem a insistir numa total abertura das fronteiras e na eliminação de subsídios de qualquer espécie, para que se dê espaço à afirmação do princípio das vantagens comparativas e à necessária, porque racional, reafectação internacional dos recursos de produção. A aplicação cega deste princípio poderia levar, no limite, ao desaparecimento da actividade agrícola nos países que não apresentassem as competências requeridas, como terras em quantidade e qualidade, mão-de-obra abundante, condições climáticas favoráveis, etc. Ou seja, países como o Japão, por exemplo, desapareceriam da geografia mundial da agricultura. Num contexto internacional de grande volatilidade dos preços dos bens agrícolas e de variações climáticas imprevisíveis e de efeitos dramáticos, fazer depender a alimentação da população mundial – especialmente a dos países pobres e endividados – das leis do mercado é, concerteza, um suicídio que ninguém quer cometer ou patrocinar. Luanda, 14 de Junho de 2008. 3