Proposta de trabalho para o GT: Os direitos dos mais ou menos
humanos. Experiências variadas de justiça.
Proponente: Jaqueline Ferreira
Doutora em Antropologia Social - Ecole des Hautes Études en Sciences Sociales .
Título da Comunicação: Quem deve ser excluído dos excluidos? Valores éticos e
Instância de direito: Representações acerca do atendimento médico humanitário à
pacientes de uma ONG francesa.
Resumo:
O presente trabalho é resultado de uma etnografia realizada em um centro de
saúde em Paris pertencente à uma ONG de caráter humanitário, « Médecins du
Monde » destinado à pessoas vivendo em exclusão social e sem direitos à Assistência
Médico- Social cuja maioria é composta por imigrantes em situação de clandestinidade.
Apesar do caráter humanitário que anima esta estrutura ela termina por oferecer uma
hospitalidade limitada em conseqüência de princípios classificatórios estigmatisantes
baseados na legislação e políticas públicas relativas aos imigrantes. É o que ocorre com
o turista (estadia inferior à 3 meses no país), excluído da nova legislação que permite o
acesso à saúde aos imigrantes. Igualmente as representações sociais relativas ao
turismo determinam práticas discriminatórias neste centro.
1
Quem deve ser excluído dos excluidos?
Valores éticos e Instância de direito: Representações acerca do
atendimento médico humanitário à pacientes de uma ONG francesa.
O presente trabalho é resultado de uma etnografia realizada em um centro de
atendimento médico de uma Organização Não Governamental francesa, « Medécins du
Monde ». fundada em 1980 por médicos dissidentes do Médecins Sans Frontières
(Médicos Sem Fronteiras). Médecins du Monde e Médecins Sans Frontières
representam o nascimento de grandes estruturas médicas de caráter humanitário cujas
ações se caracterizam por envio de profissionais em campo com a missão de prestar
assistência médica, testemunhar e lutar contra os atentados aos direitos humanos
particularmente no domínio da saúde 1 . Elas se desenvolvem em missões de urgência
que se caracterizam pela rapidez de ação e missões de desenvolvimento embasadas nos
princípios de saúde pública.
Médecins du Monde, que sempre se consagrou por realizar missóes em países de
Terceiro Mundo, em 1986 seguido aos debates sobre a crescente pobreza na França,
toma a inciaitiva de iniciar uma missão local. O objetivo desta missão é prestar
assistência médica às pessoas excluídas das estruturas de acesso comum à saúde, bem
como propiciar a sua inclusão nas referidas estruturas. Criada inicialmente para ser
temporária com o objetivo de chamar a atenção dos poderes públicos, ela existe até
hoje e se propagou em 25 centros pelas cidades francesas.
1
O Humanitário, movimento muito difundido na Europa e EUA, possui suas raízes históricas nos
movimentos filantrópicos e religiosos do século XVIII. Neste sentido, ele nada mais é que a atualização
de idéias e atitudes face à pobreza que durante muito tempo estiveram ligadas à reflexões éticas e
religiosas. Sobre estes aspectos ver Brauman, R. L’action humanitaire. Paris, Flamarion, 1999, e Brucker,
G. « La médecine humanitaire: Un nouveau fief? » Les ambigúités de l’Humanitaire. De saint Vincent de
Paul aux French Doctors. Paris, coll Panoramiques, 1966, p. 160-165.
2
A população recebida atualmente é sobretudo estrangeiros vivendo em situação
de clandestinidade, os imigrantes « sans papiers ». Eles são representados em sua
maioria por africanos originários do Mali, Costa do Marfim, Congo, Senegal, ou seja,
da Africa Negra (« Afrique Noir »). Há uma pequena percentagem de franceses
moradores de rua e desempregadas em fase final do auxílio desemprego.
Direito à assistência médica: uma luta do movimento Humanitário
A ONG Médecins du Monde está intimamente ligada à criaçào de dispositivos
legais que melhoraram o acesso à saúde e a extensão do trabalho da organização junto
à uma população de nacionalidade francesa, como por exemplo o Revenu Minimum
d’Insertion (RMI) 2 . No entanto, a população de nacionalidade estrangeira vivendo na
França continua excluída dos cuidados médicos. A legislação francesa, restabelecendo
o regime de expulsão e restringindo a regularização de vistos dos estrangeiros vêm
agravar esta situação. A « Lei Pasqua », por exemplo, estabeleceu que nenhuma
prestação social deva ser concedida aos estrangeiros em situação de irregularidade, o
que leva à um contrôle da situação de vistos em locais públicos, como até mesmo os
hospitais. Isto acarretou o engajamento da ONG na luta pela garantia do direito à
assistência médica à esta população sem que os mesmos corram o risco de serem
presos ou expulsos do país. O resultado deste empreendimento se concretizou em
janeiro de 2000 com a implantação da « Couverture Maladie Universelle » (CMU) e
« Aide Médicale d’État Renovée » (AMER), leis que permitem a passagem de um
sistema de assistência social à um sistema de direitos. A CMU estabelece um direito
2
O RMI, « Renda Mínima de Inclusão Social », é um contrato que proporciona um auxílio mensal e
acesso às estruturas de assistência às pessoas vivendo em exclusão social mediante o compromisso de
engajamento em alguma formação profissional.
3
com base na Assistência Social francesa (Securité Sociale) à todo estrangeiro residente
no país em situação estável e regular, independente ou não de possuir trabalho. Ela
oferece igualmente um complemento de renda às pessoas vivendo em situação precária,
direito automaticamente fornecido aos franceses beneficiários do RMI. A lei prevê
igualmente assistência médica e hospitalar e acesso gratuito aos medicamentos.
A AMER, por sua vez, favorece o acesso à saúde aos estrangeiros em situação de
clandestinidade e cujos recursos monetários são insuficientes. O estrangeiro que deseja
se beneficiar da AMER deve residir no país em tempo superior à três meses, ou
simplesmente manifestar o desejo de permanecer na França. Isto implica que os
estrangeiros de passagem, estando na França em um período inferior à 3 meses, os
« turistas », não beneficiam de nenhuma cobertura.
A maioria dos pacientes do Médecins du Monde, enqüanto estrngeiros em
situação irregular, desejando permanecer na França e com recursos inferiores à 500
euros são suscetíveis do direito à AMER (75%). Uma pequena porcentagem (10%) é
constituída de turistas, ou seja, pessoas que não se beneficiam de nenhum benefício
social francês.
Estas leis relativas à imigração são determinantes nas relações entre voluntários e
pacientes do centro pois elas estão inscritas em uma lógica de interações relativas às
representações sociais da sociedade francesa sobre a exclusão social e a imigração.
O trabalho humanitário à prova dos imigrantes
Para a compreensão da organização da assistência oferecida pelo centro é preciso
levar em conta os aspectos relativos às leis que permitem a obtenção de direitos dos
pacientes e as relações interpessoais que restringem ou faciltam o acesso à elas. Isto é,
se estabelece um sistema de classificação dos pacientes que orienta os princípios desta
assistência, ou seja, a aceitação ou rejeição dos pacientes é pensada em uma
4
perspectiva de « sujeito de direitos ». Assim, há uma constante negociação nas relações
entre voluntários e pacientes segundo esta perspectiva onde a nacionalidade ou a
situação jurídica dos pacientes é determinante: os franceses são amplamente aceitos, os
imigrantes vivendo na França em situação irregular provocam uma atitude de
resignação: « pouco se pode fazer por eles e não se deve lhes dar muita
esperança ».
Estes aspectos ilustram como as relações interpessoais no centro repousam sobre
a noção do papel do voluntário exercido à título de benevolência, uma benvolência que
assume uma forma particular para estes voluntários, ou seja, a disposição é favorável
aos pacientes segundo a possibilidade de lhes ajudar. Neste sentido, a relação
conformista estabelecida com os imigrantes é associada à sentimentos de impotência
devido ao fato que as respostas legislativas à situação presente são insuficientes. Os
sentimentos de frustração decorrentes do trabalho junto aos imigrantes permitem
vislumbrar as dificuldades na relação com os mesmos, enqüanto que « com os
franceses as relações são mais fáceis. ». Segundo esta perspectiva, uma categoria é
francamente rejeitada: os turistas.
5
O turista: fora de lugar, fora de tempo
É certo que a designação turista adotada pela Missão França corresponde à uma
situação jurídica, isto é, uma estadia de menos de três meses no país. Entretanto, muito
mais que classificações legislativas, os critérios utilizados para estabelecê-las terminam
por produzir subjetividades com determinadas conseqüências políticas, econômicas e
sociais. Isto se reflete até mesmo em um contexto de assistência humanitária da ONG,
Médecins du Monde. Representativo deste aspecto, é o fato de como o critério de
desejo de permanência no país dos estrangeiros turistas estabelecidos para a obtenção
do direito à AMER, termina por traçar para a Missão França, uma fronteira precisa
entre os estrangeiros que merecem obter ajuda, os integráveis e os estrangeiros de
passagem, ususrpadores,
que vêm à França para usufruir da Assistência Social
francesa, e, portanto, não merecedores de ajuda. Nesta demarcação é possível
vislumbrar o ideal republicano universalista francês, ou seja, os estrangeiros integráveis
são aqueles que por manifestarem o desejo de permanecer no país, estão dispostos à
assimilar os valores e a cultura da sociedade francesa 3 .
Aliado aos aspectos descritos acima, as representações sociais relativas o turismo
determinam igualmente práticas discriminatórias neste centro.
Já observamos que
a designação turista adotada pela Missão França obedece à critérios legislativos, no
entanto é importante observar como as palavras não são unicamente uma designação,
3
Segundo Julian Pitt Rivers (1967) no seu ensaio clássico sobre as leis da hospitalidade, toda a
sociedade estabelece classificações segundo sua própria escala de valores no que diz respeito ao
estrangeiro. O estrangeiro, tem como caracterísitica essencial o fato de ser desconhecido e, desta
forma, é alguém que não inspira confiança e a idéia de aceitabilidade em relação à ele, é ligada à
possibilidade de ele poder ou não ser incorporado à comunidade. Ver: Pitt-Rivers, J. « La loi de
l’hopsitalité ». Les Temps Modernes, juin, 1967, n. 253: 2153-2178.
6
mas portam igualmente, pensamentos, atitudes e ações. É o que se observa com as
representações socias contidas no termo « turista ».
Segundo o dicionário francês Petit Robert, o turista é a « pessoa que se desloca,
que viaja para seu prazer ». Robert Lanquar (1985), por sua vez, apresenta a idéia
de turismo como tempo individual, busca da felicidade condizente com os valores de
uma classe social específica:
« O turismo porta a marca da burguesia pois surgiu em uma
época onde ela expandia o seu poder no mundo inteiro com a
sua idéia de felicidade. » 4
Portanto, as representações que relacionam o o turismo à burguesia sempre se
repercutem sob a forma de categoria acusatória. O fato é observado inclusive por
cientistas sociais que revelaram que até mesmo o estudo do turismo é estigmatizado na
comunidade científica 5 . Enfim, o turista, como todo agente de alteridade, ameaça a
ordem social e, portanto, é visto com desconfiança.
Segundo esta perspectiva podemos observar como estas representações sociais
negativas relativas ao turista influenciam as práticas no centro. Desta maneira, os
turistas não são considerados legítmos de receber tratamento humanitário pois são
relacionados às viagens e aos signos de poder aquisitivo: roupas, carros, viagens de
avião. O relato de um voluntário é exemplar neste aspecto:
4
Lanquar, R. Sociologie du tourisme et du voyages. Paris, PUF, 1985, n.2213, p.06.
5
Michel Picard e Jean Michaud que se dedicam a fazer uma etnologia do turismo referem: « A atividade
é por sí só considerada fútil, como seu estudo pode escapar da mesma acusação? » ou « se é suspeito
de se fazer pagar para as férias ». Picaud, M.; Michaud, J. « Tourisme et societé locales ».
Anthropologie et Sociétés, 2001,vol.25, n.2: 5-13, 7.
7
« Esteve uma família no centro para se tratar que foi trazida de
carro drieto do aeroporto. Vieram em dois carros magníficos e
um senhor que dizia: ‘Eu não quero pagar uma consulta no
hospital’. Um outro me disse: ‘Eu estou com pressa pois não
quero perder o avião’. Eu lhe respondi: ‘Olha, talvez você possa
pagar uma consulta.’ Veio também um americano, que estava
hsopedado em um hotel e veio ao centro para se tratar
gratuitamente. Nós lhe dissemos: ‘Não, o senhor é turista, o
senhor está viajando ’.
Os exemplos se repetem: a associação de turistas com viagens, férias, lazer,
tornando ilegítimo o tratamento gratuito em um centro humanitário.
Observamos, portanto, que classificar não significa simplesmente ordenar, mas
sobretudo excluir traçando fronteiras. Nesta perspectiva Mary Douglas (1999) refere
que as classificações obedecem critérios estabelecidos de acordo com relações
particulares estabelecidas pelas estrutura social. Na sua exposição: « Quem deve
morrer? » a autora nos lembra: « Não se pode estudar a cooperação e a
solidariedade mas estudar simultanemente a rejeição e a desconfiança » Desta
forma, a autora nos traz os exemplos de organisações de assistência internacionais
dirigidas aos países de terceiro mundo, que no combate à fome, o aporte de alimento é
desviado pelas autoridades locais de maneira que os mais necessitados são aqueles a
quem o alimento não chegará jamais. Nesta mesma perspectiva, uma descoberta
médica nos países ocidentais pode criar um dilema semelhante face às escolhas políticas
diante da decisão de quem deve ser favorecido. A autora é enfática em concluir que a
estrutura social determina que « os mais excluídos, o serão sempre » 6 .
No entanto, em vista do que está descrito acima, devemos ter precaução ao
estabelecer uma interpretação de discriminação banal no centro relativas ao turista. De
6
Douglas, M. Comment Pensent les Instituitions. Paris, Ed. La Découverte et Syros, 1999.
8
fato, os voluntários são representates da sociedade francesa e desta maneira partilham
das mesmas representaçòes sobre os estrangeiros. Entretanto, as relações ali
estabelecidas obedecem à lógica de engajamento do trabalho voluntário, ou seja, uma
das motivações para o voluntariado é a possibilidade de sociabilidade que o centro
oferece com os usuários. Desta forma, levando em conta a maneira em que estes
voluntários desejam estabelecer uma relação de proximidade com estes usuários, é
possível comprender que o « turista » enqüanto « pessoa de passagem » é assim
rejeitado, pois se trata de uma pessoa à quem não se pode se apegar.
9
Referências Bibliográficas
Brauman, R. L’action humanitaire. Paris, Flamarion, 1999
Brucker, G. « La médecine humanitaire: Un nouveau fief? » Les ambigúités de
l’Humanitaire. De saint Vincent de Paul aux French Doctors. Paris, coll Panoramiques,
1966, p. 160-165.
Douglas, M. Comment Pensent les Instituitions. Paris, Ed. La Découverte et Syros,
1999.
Lanquar, R. Sociologie du tourisme et du voyages. Paris, PUF, 1985, n.2213, p.06.
Picaud, M.; Michaud, J. « Tourisme et societé locales ». Anthropologie et Sociétés,
2001,vol.25, n.2: 5-13, 7.
Pitt-Rivers, J. « La loi de l’hopsitalité ». Les Temps Modernes, juin, 1967, n. 253: 21532178.
10
Download

Proposta de trabalho para o GT: Os direitos dos mais ou menos