UMA REFLEXÃO SOBRE A HISTÓRIA DOS NÚMEROS NEGATIVOS COMO ESTRATÉGIA DIDÁTICA Marta Figueredo dos Anjos, UFCG [email protected] RESUMO: O presente estudo visa apresentar uma reflexão sobre uso da história dos Números Negativos como estratégica didática a partir de um incurso histórico-epistemológico no processo de resolução do problema de aceitação dos números negativos como ente matemático. Para isso, esboçaremos uma investigação sobre os obstáculos epistemológicos presentes ao longo do processo de aceitação desse conceito como objeto matemático, bem como os embates promovidos entre matemáticos que aceitavam ou recusavam o referido conceito e seus respectivos argumentos. Em seguida, apresentaremos uma discussão a respeito do uso desse material histórico, especialmente na construção de material didático, para auxiliar o professor, que propicie uma aprendizagem significativa do conceito de número negativo, o qual é especialmente problemático no que se refere a multiplicação de inteiros. INTRODUÇÃO O Ensino dos números negativos é geralmente envolto de dificuldades, vários são os obstáculos didáticos apresentados no processo ensino-aprendizagem do conceito de número negativo. Podemos demarcar que a primeira grande dificuldade dos alunos se dá em superar a concepção que o sinal de “-” significa apenas retirar alguma coisa concreta de algo concreto. Nesse momento, geralmente os professores fazem uso das analogias, como débito x crédito, temperaturas abaixo e acima de zero, esquerda x direita na reta numérica, etc., o que momentaneamente, provoca uma sensação de conforto no aluno. Mas, ao passo que avança os estudos as dificuldades se tornam maiores, especialmente quando se inicia o processo de aprendizagem da multiplicação dos números negativos, pois as analogias tornam-se pouco eficientes e, assim, toda a atenção dos alunos é voltada para a necessidade de memorização das regras de sinais. Diante de tal panorama, faz-se necessário uma reflexão sobre o processo de construção do conceito de número negativo objetivando compreender essas dificuldades e buscar, assim, indicativos de uma nova postura diante do ensino desse conceito em prol uma aprendizagem significativa. Para isso, propomos uma discussão sobre estratégias didáticas a partir de um incurso histórico-epistemológico no processo de resolução do problema de aceitação dos números negativos como ente matemático. É fácil perceber que as dificuldades que os alunos encontram no aprendizado do conceito de número negativo guardam um paralelo muito forte com uma dificuldade encontrada pelos matemáticos no desenvolvimento histórico do conceito. Em especial, a dificuldade de entender o negativo no quadro de uma concepção substancial de número. De fato, conforme Anjos (no prelo) o estabelecimento do conceito de número negativo como entidade matemática é algo que provocou profundas discussões de diferentes níveis durante um longo período. UM BREVE INCURSO HISTÓRICO-EPISTEMOLÓGICO A história dos números negativos é envolto de muitas incertezas. Ao longo dos tempos muitas são as discussões apresentadas a partir da problemática que envolve o conceito de número negativo, as quais são especialmente sustentadas pela incoerência deste com o conceito de número, que até o século XIX estava relacionada a concepção de quantidade, grandeza (ver ANJOS, no prelo). Só no início do século XIX, a partir da necessidade de repensar conceitos relacionados à álgebra, um grupo de matemáticos ingleses, liderado por George Peacock (1791-1858) fundaram a Analytical Society, que, sobretudo, tentou quebrar com o tradicionalismo inglês, especialmente em relação à álgebra. O principal produto desses estudos foi publicado por Peacock em 1830 com o título de Treatise on Algebra, o que propiciou a aceitação completa dos números negativos. Nessa nova visão ficou estabelecida uma distinção entre álgebra aritmética e álgebra simbólica, pela qual, conforme Assis Neto (1995), Peacock procurava, particularmente, solucionar a questão da subtração a–b quando a b. Com isso, na álgebra aritmética eram permitidas apenas as operações com os inteiros positivos, enquanto na álgebra simbólica tal restrição era removida, embora as regras da álgebra aritmética ainda permanecessem. Assim sendo, Peacock apresentou a álgebra simbólica como detentora de liberdade ao lidar com símbolos, desde que as leis para a manipulação dos mesmos não sejam incompatíveis entre si. Para efetivar essa nova posição, Peacock expressou o que ficou configurado como princípio da permanência das formas equivalentes. Seguindo a explicação apresentada por Boyer (2003), tal princípio estabelece que: “Qualquer forma equivalente a outra quando expressa em símbolos gerais deve continuar equivalente, seja o que for que esses símbolos denotem1” (BOYER, 2003, p. 400). De fato, Nagel (1935) apresenta tal princípio como um princípio heurístico que estabelecia que as leis fundamentais dos números inteiros positivos da aritmética eram preservadas para os novos números. Apresentando, assim, a matemática como uma complexa estrutura de símbolos que eram empregados sobre as leis de combinação, em que as questões de verdade e falsidade não dependiam do significado desses símbolos. Diante disso, o tratamento dos números negativos como símbolos deixou de ser problemática, pois dentro desse sistema axiomático, segundo Medeiros e Medeiros (1992), para que os novos símbolos ( −1, −2, −3...) fossem inclusos em uma aritmética ampliada, a qual, como vimos, englobava tanto os inteiros positivos quanto os negativos, deveríamos definir as operações a eles relacionadas, de modo que as leis de combinação ou as regras originais das operações da aritmética fossem preservadas. Com efeito, a regra de sinais que estabelecemos para governar a multiplicação de inteiros negativos, passou a ser vista como uma consequência do desejo de preservar a leis da aritmética. Portanto, de acordo Courant e Robbins (1987) a regra de sinais não pode ser provada, ela é criada para obter liberdade de operação ao mesmo tempo em que preserva as leis fundamentais da aritmética. Assim, o que deve ser provado é que com base nestas definições as leis comutativa, associativa e distributiva da aritmética são preservadas. Seguindo esse movimento iniciado por Peacock, uma apresentação mais sistemática sobre a multiplicação dos inteiros pode ser vista nos estudos de Hermann Hankel (1839-1873) que, conforme apresentado por Ângelo (2011) em 1867 expôs uma justificativa formal do fato da multiplicação entre dois números negativos ser definida como sendo positiva. 1 Um exemplo da aplicação desse princípio é a teoria dos expoentes. Observe que se a é um número racional positivo e n é um inteiro positivo, então an é, por definição, o produto de n fatores iguais a a. Dessa definição decorre facilmente que, para quaisquer inteiros positivos m e n, am : an = a m - n . Pelo princípio de formas equivalentes, afirmava Peacock que na álgebra simbólica se tem, então, am × a n = a m +n , não importa de que natureza possam ser a base a e os expoentes m e n. (EVES, 2004, p. 547). UMA NOVA POSTURA DIANTE DO ENSINO DOS NÚMEROS NEGATIVOS O grande passo histórico dado no século XIX foi compreender que os conceitos matemáticos não representam mais coisas, mas relações entre coisas; Segundo Fossa (2001), essa nova visão da matemática é que os axiomas são pontos de partida arbitrários, dos quais os matemáticos fazem deduções. Assim, a matemática supera a questão da verdade das suas proposições, preocupando-se apenas com a validade das deduções e/ou a adequação dos axiomas para a tarefa específica sob consideração, seja ela teórica ou aplicada. Entretanto, vozes dissidentes, como a de L. E. J. Brouwer, que queria fundamentar a matemática na intuição kantiana, ou, mais recentemente, Philip Kitcher, que quer fundamentar a matemática no empirismo. No entanto, a visão majoritária parece ser de que a matemática é uma “ciência” formal. Esse processo de mudança de paradigma são obstáculos que os matemáticos precisaram ultrapassar para que o conceito de número negativo pudesse ser corretamente apreendido. No processo ensino-aprendizado desse conceito ocorre o mesmo. Com isso, a didática precisa montar estratégias para que o aluno possa desenvolver as competências necessárias ao seu desenvolvimento matemático de forma plena. Para Assis Neto (2005), isso poderia ser feito desde os primeiros anos da educação da criança, evitando-se a identificação irrestrita entre os objetos matemáticos e as suas representações empíricas. Os objetos matemáticos são objetos teóricos, abstratos e, ao mesmo tempo, capazes de revelar as relações mais diversas do mundo empírico. Seguindo essa visão o número deveria ser entendido enquanto relação, ou seja, para além de uma simples resposta às questões quantos são? e quanto mede? Acostumar a criança a pensar em relações. Para isso, seguindo estudos como o apresentado em Mendes (2001) defendemos o uso de texto históricos no ensino da matemática. Em particular, no processo ensinoaprendizagem dos números negativos observamos que além de propiciar, uma reflexão sobre a concepção da atividade matemática e seus objetos de estudo, como vimos no texto de Peacock, o uso de atividades sob essa perspectiva ressalta o desenvolvimento de competências relevantes para aquisição de uma aprendizagem significativa. De fato, textos históricos como o Peacock e o de Hankel, aqui apresentados potencializam a aprendizagem de processos matemáticos envoltos de significados historicamente construídos (por exemplo, a concepção de número), os quais são desprestigiados quando as atividades para aprendizagem desse conceito se restringem a manipulação de símbolos ou até mesmo quando, objetivando simplificar o referido processo, usam de artifícios estranhos à matemática, que pode se tornar problemáticos mais adiante. REFERÊNCIAS ÂNGELO, Claudia Laus. Concepções de futuros professores sobre a multiplicação de números inteiros. Disponível em < http://www.sbem.com.br/files/ix_enem/Html/relatos.html >. Acesso em 22 maio de 2011 ANJOS, Marta F. dos. Um estudo histórico-epistemológico do conceito de número negativo. In: FOSSA, John A. (org). Arquivo para a história da teoria dos números e da lógica. Natal, RN: EDUFRN, (no prelo). ASSIS NETO, Fernando Raul. Duas ou Três Coisas sobre o "Menos Vezes Menos dá Mais". Semana de Estudos em Psicologia da Educação Matemática da Ufpe. 1995. Disponível em < http://www.ufpe.br/filosofia/arquivos/10%20Duas%20ou%20tres%20coisas%20sobre% 20o%20menos%20vezes%20menos%20da%20mais.pdf>. Acesso em 15 de março de 20011. BOYER, Carl Benjamin. História da matemática. Tradução de Elza F. Gomide. São Paulo, SP: Edgard Blücher, 2003. COURANT, R e ROBBINS, H. What is mathematics? Na elementary approach to ideas and Methods. New York, Oxford Univ. 1987 EVES, H. 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