Cálculo Diferencial e Integral I 1 Os Números reais e suas propriedades O conjunto R dos números reais satisfaz algumas propriedades fundamentais: dados quaisquer x, y ∈ R, estão definidos a soma x + y e produto xy e tem-se 1 - x + y = y + x; associativa); 2 - xy = yx; x + (y + z) = (x + y) + z (a soma é comutativa e x(yz) = (xy)z (o produto é comutativo e associativo); 3 - x(y + z) = xy + xz (o produto é distributivo em relação à soma); 4 - existe um elemento neutro para a soma (o zero 0) 0 + x = x, ∀x; 5 - todo o x tem um simétrico −x tal que x + (−x) = 0; 6 - existe um elemento neutro para o produto (o um 1) 1x = x, ∀x; 7 - todo o x 6= 0 tem um inverso, que se representa por x−1 ou por que xx−1 = 1. 1 , tal x Como consequência destas propriedades deduzem-se todas as propriedades aritméticas dos números reais, incluindo as ”leis do corte”: x + y = x + z ⇒ (−x) + (x + y) = (−x) + (x + z) ⇒ ⇒ ((−x) + x) + y = ((−x) + x) + z ⇒ y = z e x 6= 0 ∧ xy = xz ⇒ y = z que implicam por sua vez que o simétrico e o inverso de x são únicos; e as ”regras de sinais”: note-se primeiro que, por 5, se tem a + x = x ⇒ a = 0; portanto, usando 3 e 6, 0x + x = (0 + 1)x = x ⇒ 0x = 0; 1 e então (−x)y + xy = ((−x) + x)y = 0y = 0 donde se conclui que (−x)y = −(xy), e portanto também (−x)(−y) = −(x(−y)) = xy. Estas propriedades são constantemente aplicadas no cálculo; por exemplo, na igualdade, válida para quaisquer a, b ∈ R, (a + b)2 = a2 + 2ab + b2 esto envolvidas a propriedade comutativa da soma e do produto bem como a distributividade do produto em relação à soma. Um outro exemplo, em que se aplica esta fórmula: Exemplo 1.1 1 1 1 4x2 + x − 3 = 0 ⇔ 4x2 + 2 2x + − −3=0⇔ 4 16 16 2 1 49 1 7 1 7 ⇔ 2x + = ⇔ 2x + = ∨ 2x + = − ⇔ 4 16 4 4 4 4 3 ⇔ x = ∨ x = −1 4 Este exemplo generaliza-se facilmente para a dedução da conhecida fórmula resolvente dos polinómios de segundo grau. Além disso, está definida em R uma relação < satisfazendo as condições seguintes: 8 - x < y ∧ y < z ⇒ x < z; 9 - ∀x, y verifica-se uma e uma só das condições x < y, y < x, x = y; 10 - x < y ⇒ x + z < y + z; 11 - x < y ∧ 0 < z ⇒ xz < yz; As propriedades 8 e 9 definem < como uma relação de ordem total, enquanto que 10 e 11 descrevem a relação entre a ordem e as operações aritméticas. 2 Notação 1.2 Usamos igualmente a notação x ≤ y para a condição x < y ∨ x = y. O conjunto dos números reais positivos, ou seja {x ∈ R : 0 < x} designa-se R+. Como consequência destas propriedades: a) 0 < x < y ⇒ 0 < (y)−1 < x−1; b) x < y ⇒ −y < −x; c) ∀k ∈ N 0 < x < y ⇒ 0 < xk < y k ; d) ∀x 6= 0 0 < x2. Esta relação de ordem traduz a ideia intuitiva de representar os números reais como pontos numa recta. Definição 1.3 A função módulo ou valor absoluto é definida por x se x ≥ 0 |x| = −x sex < 0 e corresponde à noção geométrica de distância: |x−y| é a distância entre os pontos correspondentes. O módulo satisfaz as propriedades a) |x − a| < b ⇔ −b < x − a < b b) |x + y| ≤ |x| + |y| c) |xy| = |x||y| 3 d) |x − y| ≤ |x − z| + |z − y| e) ||x| − |y|| ≤ |x − y| que se deduzem por aplicação directa da definição. Definição 1.4 Dados reais a < b, o intervalo aberto ]a, b[ é definido como sendo o conjunto {x ∈ R : a < x < b}, e o intervalo fechado [a, b] é {x ∈ R : a ≤ x ≤ b}. Além disso ] − ∞, a[= {x ∈ R : x < a} ]a, +∞[= {x ∈ R : a < x} e de forma análoga para os intervalos fechados correspondentes. Definição 1.5 Um conjunto X ⊂ R diz-se limitado se existem a, b ∈ R tais que X ⊂]a, b[. Um conjunto X ⊂ R diz-se aberto se para todo o x ∈ X existe um intervalo ]a, b[ tal que x ∈]a, b[⊂ X. X diz-se fechado se o seu complementar R \ X é aberto. Seguem-se dois exemplos de aplicação das propriedades enunciadas à resolução de inequações: Exemplo 1.6 Determinar as soluções de x2 − 1 ≤0 |x| − |x − 1| Para x > 1, |x| = x e |x − 1| = x − 1, e a desigualdade fica equivalente a x2 − 1 ≤ 0 ⇔ x2 < 1 x − (x − 1) 4 Portanto não existem soluções da inequação em ]1, +∞[. Se 0 ≤ x ≤ 1, |x| = x mas |x − 1| = 1 − x, e portanto a desigualdade fica equivalente a x2 − 1 ≤0 2x − 1 Como naquele intervalo x2 − 1 ≤ 0, a desigualdade verifica-se se o denominador for positivo ou se o numerador se anular, e obtemos o conjunto solução ]1/2, 1]. Para x < 0, a desigualdade fica equivalente a x2 − 1 ≤ 0 ⇔ −(x2 − 1) ≤ 0 ⇔ x2 − 1 ≥ 0 −x − (1 − x) que, naquele intervalo, é equivalente a x ≤ −1. Portanto a inequação inicial tem como conjunto solução ] − ∞, −1]∪]1/2, 1] Exemplo 1.7 Determinar as soluções de |2|x − 1| − 3| < 6 3 9 < |x − 1| < 2 2 Como o módulo é sempre não negativo, estas desigualdades são equivalentes a |2|x − 1| − 3| < 6 ⇔ −6 < 2|x − 1| − 3 < 6| ⇔ |x − 1| < 9 9 9 7 11 ⇔ <x−1< ⇔ <x−1< 2 2 2 2 2 5 1.1 Números racionais e irracionais. Princı́pio dos Intervalos Encaixados Os números usados em muitas situações práticas elementares (e no cálculo numérico efectivo) são os números racionais, ou seja, os que se podem representar pela razão entre números inteiros m Q = { : m ∈ Z, n ∈ N} n Quando efectuamos a divisão de m por n, obtemos a representação m como uma dı́zima eventualmente periódica. Por exemplo de n 5 = 0.833... = 0.8(3) 6 Isso decorre de que os sucessivos restos na divisão tomam sempre valores inteiros entre 0 e n, pelo que o valor de algum desses restos tem que ser repetido, dando lugar a uma sucessão eventualmente periódica de dı́gitos no quociente e de restos. Reciprocamente, uma dı́zima eventualmente periódica representa um número racional; seja por exemplo 3.14(15) = 3.14 + 0.00(15); 3.14 = 314 100 15 se x = 0.(15), tem-se 100x = 15 + x donde se conclui que x = e 99 portanto 314 15 31101 3.14(15) = + = 100 9900 9900 Observação 1.8 O significado preciso da representação de um número como dı́zima será esclarecido mais à frente. O conjunto dos racionais satisfaz todas as propriedades 1 a 11 enunciadas mais acima. 6 No entanto, mesmo problemas simples exigem a utilização de números irracionais; o primeiro e mais elementar dos exemplos é-nos dados como consequência do Teorema de Pitágoras: o comprimento a da hipotenusa de um triângulo rectângulo com catetos √ de comprimento 1 tem que satisfazer a equação a2 = 2, ou seja a = 2. m com m, n primos entre si, somos conduzidos a uma Ora, se a = n contradição: m 2 = a2 = 2 n logo m2 = 2n2 e portanto m é par, digamos m = 2k; mas então 2n2 = (2k)2 = 4k 2 logo n2 = 2k 2 e portanto n é par. Assim, m e n são forçosamente ambos pares, contradizendo a hipótese de serem primos entre si. Conclui-se que a não pode ser racional. Raciocı́nios do mesmo tipo levam à conclusão de que muitas das soluções de equações do tipo p(x) = 0, onde p(x) é um polinómio com coeficientes racionais, não podem ser racionais. Se quisermos conhecer com maior precisão o valor de a, podemos proceder do seguinte modo: é óbvio que 1 < a < 2, isto é, a ∈ [1, 2]; como (3/2)2 = 9/4 > 2, verificamos que a ∈ [1, 1.5]; repetindo o 25 <2e cálculo com o ponto médio deste intervalo temos (5/4)2 = 16 portanto a ∈ [1.25, 1.5]. Vamos determinando assim uma sucessão de intervalos I0 ⊃ I1 ⊃ I2 ⊃ · · · ⊃ In ⊃ · · · 1 de tal modo que o comprimento de In é n e a ∈ In ∀n; por exemplo, 2 para n = 25 obtemos 1.41406247 < a < 1.41406250 7 e é intuitivamente claro que devemos ter \ {a} = In n≥0 Nota: É claro que a condição necessária para que a intersecção dos intervalos contenha um único elemento não é que o comprimento 1 de In seja n , mas sim que esses comprimentos tomem valores arbi2 trariamente pequenos. Podemos então enunciar a propriedade descrita da seguinte forma: 1.9 Princı́pio dos Intervalos Encaixados: Se I0 ⊃ I1 ⊃ I2 ⊃ · · · ⊃ In ⊃ · · · é uma sucessão de intervalos fechados encaixados com In = [an, bn] ⊂ R, tal que 1 ∀m ∈ N ∃n : bn − an < , m então existe um único s que pertence à intersecção de todos os intervalos In: \ {s} = In n≥0 Aceitando a validade deste princı́pio, verificamos que no caso concreto da sucessão de intervalos descrita atrás, o número s em questão tem que satisfazer de facto a equação s2 = 2: temos, para qualquer n, |s2 − 2| = |s2 − x2n + x2n − 2| ≤ |s2 − x2n| + |x2n − 2|; ora, como para qualquer n, yn − xn = yn2 − x2n = (yn − xn)(yn + xn) = 1 2n e xn < yn ≤ y0 = 2, temos yn + xn 2yn 1 < ≤ ; 2n 2n 2n−2 portanto x2n < 2 < yn2 ⇒ 2 − x2n < yn2 − x2n < 8 1 2n−2 e, do mesmo modo x2n < s2 < yn2 ⇒ s2 − x2n < yn2 − x2n < 1 2n−2 ; portanto |s2 − 2| < 1 1 1 ∀n. 2n−2 2n−2 2n−1 Mas o próprio Princı́pio dos Intervalos Encaixados implica que então |s2 −2| = 0 ou seja s2 = 2: de facto a desigualdade obtida diz-nos que |s2 − 2| está contido na intersecção dos intervalos In = [0, 21n ]; esta sucessão de intervalos está nas condições do enunciado e portanto a sua intersecção contém um único número real que tem que ser o 0 (que pertence claramente a todos os In). + = Observação 1.10 Este Princı́pio não é válido √ em Q, como vimos atrás pelo exemplo das aproximações de 2; e por outro lado a sua validade em R não pode ser deduzida das outras propriedades fundamentais dos números reais, descritas anteriormente. Mas, juntamente com elas, ele permite caracterizar completamente o conjunto dos números reais: R é um corpo (propriedades 1 a 7) ordenado (propriedades 8 a 11) completo (validade do Princı́pio dos Intervalos Encaixados). Estas propriedades podem ser tomadas como Axiomas, ou seja, proposições que se assumem como verdades básicas, e a partir das quais se podem demonstrar todas as outras propriedades dos números reais. Note-se que quando representamos um número real como uma dı́zima infinita, estamos precisamente a definir uma sucessão de intervalos encaixados cuja intersecção é esse número; por exemplo: π = 3.14159265358979323846264... 9 quer dizer que 3<π<4 π ∈ I0 = [3, 4] 3.1 < π < 3.2 π ∈ I1 = [3.1, 3.2] 3.14 < π < 3.15 π ∈ I2 = [3.14, 3.15] ··· a<π<b π ∈ I18 = [a, b] ··· onde a = 3.141592653589793238 b = 3.141592653589793239. Os irracionais correspondem às dı́zimas infinitas não periódicas. Dados racionais a < b existem sempre irracionais no intervalo [a, b]; 1 por exemplo, se m ∈ N é tal que < b − a, um desses irracionais é m √ 2 a+ 2m Mas dados irracionais α < β também existem racionais no intervalo [α, β]: se as expansões decimais de α e β coincidem até ao n-ésimo dı́gito (e portanto o (n+1)-ésimo dı́gito de β é maior que o de α), basta considerar o racional representado pela dı́zima finita dada pela expansão decimal de β até ao (n+1)-ésimo dı́gito, seguida de zeros. No entanto, os racionais e os irracionais não estão em pé de igualdade; considere-se, para simplificar, o intervalo [0, 1]. Q ∩ [0, 1] pode ser representado como o conjunto dos termos de uma sucessão; dizemos que se trata de um conjunto numerável; por exemplo x1 = 0; x2 = 1; x3 = 1/2; x4 = 1/3; x5 = 2/3; 10 x6 = 1/4; x7 = 3/4; x8 = 1/5; x9 = 2/5; · · · Mas o conjunto de todos os números reais do intervalo [0, 1] não é numerável; dada uma sucessão xn qualquer de termos em [0, 1], mostramos que existe um real a que não pode ser termo dessa sucessão. A ideia é mostrar que existe uma sucessão In de intervalos encaixados tal que, para cada n ∈ N, xn não pertence a In; uma construção concreta de uma tal sucessão pode ser a seguinte: x1 não pertence a pelo menos um dos intervalos [0, 1/3], [1/3, 2/3], [2/3, 1]; escolhemos um desses para I1; dividimos I1 em três intervalos de comprimento 1 ; x2 não pertence a pelo menos um desses intervalos e escolhemos 9 para I2 um deles. E assim sucessivamente; o número a que pertence a todos os intervalos In não pode ser nenhum dos xn. O facto de o conjunto dos racionais ser numerável tem aliás consequências interessantes e um pouco inesperadas: é possı́vel escolher para cada racional do intervalo [0, 1] um intervalo com ponto médio nesse racional, e mesmo assim não cobrir todo o intervalo; suponham mos que, para cada racional , com 0 ≤ m ≤ n, temos o intervalo n √ 2 1 m 1 m ] − 2 , + 2 [; verificamos que, por exemplo, o real não n 4n n 4n 2 está contido na união destes intervalos: m √2 2m − n√2 4m2 − 2n2 √ = − = = n 2 2n 2n(2m + n 2) 2m2 − n2 1 1 1 ≥ √ √ √ ≥ ≥ n(2m + n 2) n(2m + n 2) n2(2 + 2) 4n2 11 1.2 O Axioma do supremo Um conjunto X ⊂ R diz-se majorado se existe a ∈ R tal que X ⊂] − ∞, a[; qualquer a que satisfaça esta condição chama-se um majorante de X. Analogamente, X diz-se minorado se existe a ∈ R tal que X ⊂ ]a, +∞[, e qualquer a que satisfaça esta condição chama-se um minorante de X. De acordo com a definição X é limitado se for majorado e minorado. É claro que se a for majorante de X, qualquer real maior que a também o é: o conjunto dos majorantes de X não é ele próprio majorado; mas o princı́pio dos intervalos encaixados é equivalente ao 1.11 Axioma do supremo: Se X ⊂ R é um conjunto não vazio e majorado, o conjunto dos majorantes de X tem um elemento mı́nimo sup(X), que se designa o supremo de X. Ou seja, sup(X) é um majorante de X e qualquer outro majorante b é maior que sup(X). Esta proposição é ainda equivalente a Se X ⊂ R é um conjunto não vazio e minorado, o conjunto dos minorantes de X tem um elemento máximo inf (X), que se designa o ı́nfimo de X; ou seja, inf (X) é um minorante de X e qualquer outro minorante c é menor que inf (X). De facto, dizer que o conjunto X tem ı́nfimo é equivalente a dizer que −X = {y ∈ R : −y ∈ X} tem supremo, e vice-versa. sup(X) é o real que satisfaz as duas condições: 12 i) ∀x ∈ X x ≤ sup(X) ii) ∀δ > 0, ∃x ∈ X : sup(X) − δ < x Ou seja, i) diz que sup(X) é majorante de X, e ii) diz que nenhum real menor que sup(X) é majorante de X. Se sup(X) ∈ X então ele é o máximo de X. Vamos verificar que de facto o Princı́pio dos Intervalos Encaixados e o Axioma do supremo são equivalentes. Provamos primeiro que o Princı́pio dos Intervalos Encaixados implica o Axioma do supremo: Seja X ⊂ R um conjunto não vazio e majorado; podemos escolher um majorante b0 e um a0 que não seja majorante, e definir I0 = [a0, b0]. a0 + b0 for majorante de X, definimos Se 2 a0 + b0 a1 = a0 , b1 = 2 se não for a0 + b0 , b 1 = b0 a1 = 2 e pomos I1 = [a1, b1]. Continuamos do mesmo modo, o que implica que em cada intervalo In = [an, bn] obtido ao longo do processo de subdivisão, an não é majorante de X enquanto que bn é. Pelo Princı́pio dos Intervalos Encaixados, existe um (único) s na intersecção de todos os In. s tem que ser majorante: caso contrário, existiria x ∈ X tal que s < x; mas como os bn são todos majorantes, terı́amos an < s < x ≤ bn ∀n ou seja, a intersecção dos In conteria mais do que um elemento. Mas além disso, s tem que ser o menor dos majorantes: caso contrário, 13 existiria um majorante s0 menor que s; mas como os an não são majorantes de X, terı́amos an < s0 < s ≤ bn ∀n e chegamos também a uma contradição. Tal como vimos com o Princı́pio dos Intervalos Encaixados, o Axioma do supremo implica a Proposição 1.12 : Se a > 0, para qualquer M ∈ R existe n ∈ N tal que na > M . Demonstração 1.13 De facto, se não fosse assim, o conjunto {na : n ∈ N} seria majorado e teria portanto supremo s; como este é o menor dos majorantes, existe n tal que s − a < na < s; mas então (n + 1)a = na + a > s − a + a = s contradizendo a hipótese de s ser o supremo daquele conjunto. Assumindo agora a validade do Axioma do supremo, se In = [xn, yn] for uma sucessão de intervalos encaixados tal que 1 , m o conjunto {xn : n ∈ N} é majorado (por exemplo, qualquer yn é um majorante) e portanto tem supremo s; temos então xn ≤ s ∀n, mas também s ≤ yn ∀n: caso contrário, isto é se existisse n tal que yn < s, esse yn seria um majorante do conjunto {xn} menor que s, contradizendo a definição de supremo. Como s ≤ yn para todo o n, temos então s ≤ t = inf{yn}. E portanto temos xn ≤ s ≤ t ≤ yn ∀n. ∀m, ∃n : yn − xn < Mas pela proposição anterior, se se tivesse s < t existiria um natural m tal que 1 m(t − s) > 1 ⇔ t − s > , m 14 enquanto que por outro lado, de acordo com a hipótese sobre os 1 intervalos In, existe algum n tal que yn − xn < . m 1.3 Potências de expoente real Nos parágrafos seguintes aplicam-se as ideias desenvolvidas anteriormente ao estudo das potências ax com 0 < a e x ∈ R. A definição dessas potências e a dedução das suas propriedades pode ser feita de forma diferente, como veremos noutro capı́tulo. Estes parágrafos servem apenas para ilustrar o uso do axioma do supremo (ou do princı́pio dos intervalos encaixados) e para relembrar aquelas definições e propriedades. Se a ∈ R e m ∈ N, am designa o produto de m factores todos iguais a a. As propriedades comutativa e associativa da multiplicação implicam as conhecidas igualdades ambm = (ab)m, amn = (am)n, aman = am+n; se quisermos estender esta propriedade a outros expoentes inteiros, temos ama0 = am+0 = am e portanto tem que ser a0 = 1; do mesmo modo, se ama−m = am+(−m) = a0 = 1, faz sentido definir, para a 6= 0, a−m = 1 , am como aliás fizémos logo de inı́cio, ao usar a notação a−1 para o inverso de a. √ Como √ se√lembrou mais atrás, 2 designa o número real positivo tal que 2 2 = 2; é portanto também natural que se use a notação 15 √ 2 = 21/2. E, tal como se fez para este caso, podemos demonstrar que, como consequência do Princı́pio dos Intervalos Encaixados (ou do Axioma do supremo), para qualquer a > 0 e qualquer natural n, existe um real positivo (único) que satisfaz a equação xn = a, e que √ designamos com uma das notações n a ou a1/n. E ficam portanto bem definidas, sempre para uma base positiva a, m as potências de expoente racional a n . Estas potências têm as mesmas propriedades referidas acima. Verificamos apenas, como exemplo, a última delas: como m p nq m nq p nq m q p n aq (a q )q = a n aq = an = (a n )n = (am)q (ap)n = amq apn = amq+pn mas também m p nq mq+pn nq = a nq = amq+pn, a n +q a unicidade da raiz implica que m p p m a n aq = a n +q . Dados reais 0 < a < b, tem-se am < bm para todo o natural m; isso pode verificar-se, por exemplo, usando a factorização bm − am = (b − a) m−1 X bm−k ak k=1 que deduziremos mais adiante, e notando que ambos os factores no lado direito da igualdade são positivos. Em consequência, para todo o racional positivo 0 < m n tem-se igualmente m m an < bn, porque, se fosse m m an ≥ bn 16 o mesmo raciocı́nio implicaria m n m n m a = a n ≥ b n = bm . Por outro lado, se 1 < a, então am < am+1, para todo o natural m, enquanto que se 0 < a < 1 se tem am+1 < am. O mesmo raciocı́nio p < dos parágrafos anteriores mostra que se 1 < a e 0 < m n q então m p a n < a q , enquanto que se 0 < a < 1 se tem a desigualdade contrária. Estas observações conduzem à definição de potências com expoente real qualquer: dado um real x > 0 seja In = [xn, yn] uma sucessão de intervalos encaixados, com extremos racionais e satisfazendo a condição de os comprimentos dos intervalos tomarem valores arbitrariamente pequenos: ∀N ∃n : yn − xn < 1 , N tal que {x} = ∩n≥0In; se 1 < a Jn = [axn , ayn ] é também uma sucessão de intervalos encaixados; além disso, dado N , podemos escolher n tal que ayn − axn = axn (ayn−xn − 1) ≤ ay0 (a1/N − 1); e como teremos ocasião de verificar mais adiante, a1/N − 1 ≤ a−1 N ; concluı́mos que a sucessão de intervalos Jn está nas condições do Princı́pio dos Intervalos Encaixados e que existe portanto um único real z tal que axn < z < ayn , ∀n; definimos então ax = z; 17 se 0 < a < 1, o raciocı́nio é idêntico, com a única alteração de se definirem os intervalos Jn como Jn = [ayn , axn ]. Note-se que esta definição se pode enunciar igualmente (no caso 1 < a) como p m p m x n a = sup{a : ≤ x} = inf{a q : ≥ x}. n q As potências de expoente negativo ficam também definidas: dado x > 0, a−x = ( a1 )x. m tal que x < Se 0 < x < y existe um racional m n n < y. Portanto, se 1 < a p p ax = inf{ap/q : x < } < am/n < sup{ap/q : < y} = ay q q e concluı́mos que as potências de expoente real satisfazem a mesma propriedade de ordem. Terminamos mostrando que com esta definição se tem também axay = ax+y , axbx = (ab)x. Consideramos apenas o caso em que a e b são maiores que 1, já que os outros casos são semelhantes. Para isso começamos por observar os seguintes factos: Proposição 1.14 Se X ⊂ Y ⊂ R são não vazios, tem-se sup(X) ≤ sup(Y ). Se, além disso, para todo o y ∈ Y existe x ∈ X tal que y ≤ x então sup(X) = sup(Y ). Proposição 1.15 Se X e Y são subconjuntos nã vazios de R+ e XY = {xy : x ∈ X, y ∈ Y }, então sup(XY ) = sup(X) sup(Y ). Demonstramos a segunda destas proposições: 18 Demonstração 1.16 Como para todos os x ∈ x e y ∈ Y , se tem xy ≤ sup(X) sup(Y ) é óbvio que sup(XY ) ≤ sup(X) sup(Y ). Dado um y ∈ Y , como para todo o x ∈ X se tem xy ≤ sup(XY ) temos sup(XY ) sup(XY ) sup(XY ) x≤ , ∀x ∈ X =⇒ sup(X) ≤ =⇒ y ≤ y y sup(X) mas como isto é verdade para qualquer y ∈ Y , temos sup(Y ) ≤ sup(XY ) =⇒ sup(X) sup(Y ) ≤ sup(XY ). sup(X) Sejam então x e y positivos. Como p m m p y x n ≤ x}, a = sup{a q : ≤ y} a = sup{a : n q o resultado anterior diz-nos que m p axay = sup{a n a q : p m ≤ x ∧ ≤ y}. n q Mas este conjunto é igual a t ≤ x + y}, s porque qualquer st ≤ x + y se pode escrever como soma de dois racionais, um menor que x e o outro menor que y. Portanto axay = ax+y . t {a s : Do mesmo modo m a = sup{a : ≤ x}, n x m n x p q b = sup{b : p ≤ x} q implica que axbx = sup{am/nbp/q : ora se, por exemplo, m n m p ≤ x ∧ ≤ x}; n q ≤ pq , então am/nbp/q ≤ ap/q bp/q = (ab)p/q ; 19 usando a primeira proposição deduz-se que m p t axay = sup{am/nbp/q : ≤ x∧ ≤ x} = sup{(ab)t/s : ≤ x} = (ab)x. n q s Resumindo: • Para todo o a ∈ R+ e todo o x ∈ R, está definido o número real positivo ax. • a−x = (1/a)x. • axbx = (ab)x. • axay = ax+y . • (ax)y = axy . • Se x > 0 e 0 < a < b, então ax < bx; se x < 0 e 0 < a < b, então ax > bx. • Se a > 1 e x < y então ax < ay ; se 0 < a < 1 e x < y, então ax > ay . 1.4 Princı́pio de Indução finita . Começamos com um exemplo: a soma dos ângulos internos de um triângulo (no plano) é igual a π; e no caso de um quadrilátero convexo, é igual a 2π; este facto podia ser verificado do seguinte modo: 20 se traçarmos uma diagonal do quadrilátero, unindo dois vértices não adjacentes, ficamos com dois triângulos e a soma dos ângulos internos do quadrilátero é igual à soma dos ângulos internos dos dois triângulos. Podemos então tentar generalizar esta propriedade e enunciar a proposição: Proposição 1.17 Para todo o n ≥ 3, a soma dos ângulos internos de um polı́gono plano convexo com n lados é igual a (n−2)π. Note-se que esta proposição equivale à conjunção de infinitas proposições (uma para cada n ≥ 3) e que verificámos os casos n = 3 e n = 4. Mas, inspirados pelo método de prova descrito acima para os quadriláteros, suponhamos que a propriedade se verifica para polı́gonos de n lados, em que n é um natural não especificado; então, se tivermos um polı́gono com n + 1 lados, podemos escolher dois vértices separados por duas arestas e um vértice intermédio e uni-los com um segmento; o polı́gono inicial ficou subdividido em um polı́gono com n lados e um triângulo, e a soma dos seus ângulos internos é igual à soma dos ângulos internos destes dois. Ora esta soma é π para o triângulo e a hipótese que fizémos diz que para o polı́gono com n lados ela é (n − 2)π. Portanto a soma dos ângulos internos do polı́gono com n + 1 lados será π + (n − 2)π = (n + 1 − 2)π e concluı́mos que a propriedade também se verifica para n + 1. Nota: de facto esta propriedade verifica-se para polı́gonos planos quaisquer e não só para os convexos. Este exemplo ilustra o seguinte resultado: 21 Teorema 1.18 Princı́pio de Indução Finita: Se, para cada n ≥ n0, se tem uma proposição P (n) e se verificam as condições: 1- P (n0) é verdadeira; 2- ∀n ≥ n0, P (n) ⇒ P (n + 1) então P (n) é verdadeira para todo o n ≥ n0. Demonstração 1.19 Se a conclusão não fosse verdadeira, existiria um m ≥ n0 para o qual a propriedade P (m) não se verificaria; sendo m o menor natural nessas condições (tem que ser m > n0 por causa da condição 1), a propriedade seria válida para m − 1. Mas a condição 2 levaria à conclusão de que a propriedade também se verificaria para m, o que é um absurdo. Observação 1.20 Esta demonstração assenta no facto evidente que um conjunto não vazio de números naturais tem mı́nimo. Este facto é de facto consequência do Axioma do supremo. Aplicamos o Princı́pio de Indução Finita para demonstrar algumas igualdades e desigualdades relevantes. A primeira é a fórmula da soma de uma progressão geométrica: Proposição 1.21 dado a 6= 1, tem-se para qualquer inteiro n ≥ 0 n X 1 − an+1 k a = . 1−a k=0 Demonstração 1.22 O caso n = 0 é evidente; suponhamos então que a fórmula se verifica para um certo n. Então ! n+1 n X X 1 − an+1 1 − an+2 k k n+1 n+1 +a = a = a +a = 1−a 1−a k=0 k=0 e obtemos a igualdade para n + 1. Note-se que na segunda igualdade usámos a hipótese de que a fórmula se verifica para n. 22 Observação 1.23 É importante perceber que o que se prova neste passo não é a propriedade P (n) (neste exemplo, a fórmula da soma da progressão geométrica até ao termo de ordem n) nem a propriedade P (n+1), mas sim a implicação P (n) =⇒ P (n+1). Como consequência deste resultado, podemos deduzir a seguinte factorização, que já referimos: Proposição 1.24 dados reais positivos x e y e um natural n tem-se n−1 X xn − y n = (x − y) xn−1−k y k . k=0 De facto, pondo em evidência xn (e assumindo que x 6= y) obtemos xn − y n = xn(1 − = (x − y) n−1 X k=0 x y n x n−1 n−1 X y k y ) = xn(1 − ) = x x y k x = (x − y) k=0 n−1 X xn−1−k y k k=0 Para o próximo exemplo recorda-se que n! (n factorial) designa o produto dos inteiros positivos entre 1 e n: n! = n(n − 1) · · · 1. Convenciona-se que 0! = 1. Definição 1.25 Os números binomiais são definidos, para n, k naturais, por n! se 0 ≤ k ≤ n n k!(n − k)! = k 0 se k < 0 ∨ n < k 23 Proposição 1.26 Fórmula do Binómio de Newton: Sejam a, b ∈ R. Então n X n n−k k ∀n ≥ 1, (a + b)n = a b . k k=0 Demonstração 1.27 Demonstramos a fórmula por indução em n: para n = 1 a fórmula é verdadeira, como se verifica directamente. Provamos em seguida que se for verdadeira para um certo n também o será para n + 1. Da hipótese de indução n X n n−k k (a + b)n = a b k k=0 deduz-se (a+b)n+1 = (a+b)(a+b)n = (a+b) n X n k=0 n n X X n an−k bk = an+1−k bk + k k k=0 mas se no segundo somatório fizermos j = k + 1, j varia entre 1 e n + 1 e o termo geral fica n an−(j−1)bj ; j−1 usando j como ı́ndice (mas voltando a chamar-lhe k) ficamos com n n+1 X n n+1−k k X n = a b + an+1−k bk k k−1 k=0 k=1 que, isolando o termo com k = 0 no primeiro somatório e o termo com k = n + 1 no segundo e juntando os termos semelhantes dos dois somatórios, fica n X n n an+1 + + an+1−k bk + bn+1. k k−1 k=1 24 k=0 Para chegarmos à fórmula do binómio para o expoente n+1 resta notar que n+1 n+1 = =1 0 n+1 e que n n n+1 + = , ∀1 ≤ k ≤ n k k−1 k Esta última igualdade deduz-se directamente: n! n!((n + 1 − k) + k) n n n! + = + = k!(n − k)! (k − 1)!(n + 1 − k)! k!(n + 1 − k)! k k−1 n+1 (n + 1)! = = k k!(n + 1 − k)! Proposição 1.28 Desigualdade de Bernoulli: Dado x > −1 ∀n ≥ 1, (1 + x)n ≥ 1 + nx Demonstração 1.29 Mais uma vez, o caso n = 1 é óbvio. (1 + x)n ≥ 1 + nx ⇒ (1 + x)(1 + x)n ≥ (1 + x)(1 + nx) porque 1 + x > 0, e portanto (1 + x)n+1 ≥ 1 + (n + 1)x + nx2 ≥ 1 + (n + 1)x Observação 1.30 Para x ≥ 0 a desigualdade de Bernoulli é uma consequência imediata da fórmula do Binómio. Um último exemplo, um pouco mais complicado: 25 Proposição 1.31 Se b1, · · · , bn são números reais positivos então n n Y X bk = 1 =⇒ ≥ n. k=1 Recorde-se que Qn k=1 k=1 bk designa o produto dos bk . Demonstração 1.32 No caso n = 1 não há nada a provar; antes de passar ao passo de indução (provar que se a proposição se verifica para n ent ao também se verifica para n + 1) vamos ver o caso n = 2: se b1 e b2 são positivos e b1b2 = 1 então ou b1 = b2 = 1 e então temos b1 + b2 = 2, ou então podemos supõr que b1 < 1 < b2; nesse caso verificamos que 0 < (b2 − 1)(1 − b1) = b1 + b2 − b1b2 − 1 e portanto 1 + b1b2 < b1 + b2; mas b1b2 = 1 e portanto concluı́mos que b1 + b2 > 2. Esta ideia vai ajudar-nos no caso geral. Vamos então assumir como hipótese de indução que a propriedade se verifica para um certo n e sejam b1, b2, · · · , bn+1 números Q reais positivos tais que n+1 k=1 bk = 1. Para usarmos a hipótese de indução temos que ter n números satisfazendo as mesmas condições e não podemos simplesmente excluir um dos bk porque o produto dos restantes já poderia não ser 1. Se todos os bk fossem 1 a propriedade verifica-se (nesse P caso temos n+1 k=1 bk = n + 1); se não, uma vez que a ordem dos bk é irrelevante, podemos mudar os ı́ndices se necessário para, mais uma vez, termos b1 < 1 < b2. Se considerarmos o produto b1b2 como um único número, temos então n reais positivos (b1b2), b3, · · · , bn+1 cujo produto é 1 e, por hipótese de indução, podemos concluir que b1b2 + b3 + · · · + bn+1 ≥ n; 26 Mas, quando vimos o caso n = 2, verificámos que, se b1 < 1 < b2 então b1b2 < b1 + b2 − 1; substituindo na igualdade anterior, ficamos com b1 + b2 − 1 + b3 + · · · + bn+1 ≥ n ⇔ n+1 X ≥n+1 k=1 como querı́amos demonstrar. Esta proposição permite deduzir as desigualdades seguintes: Proposição 1.33 se a1, · · · , an são números reais positivos então v u n Pn uY n k=1 ak n ≥t ak ≥ Pn 1 . n k=1 a k=1 k Estas três expressões são respectivamente a média aritmética, geométrica e harmónica dos reais a1, · · · , an. Para deduzir a primeira desigualdade a partir do resultado anterior, definimos, para cada 1 ≤ k ≤ n, ak bk = p Q n n k=1 ak Qn Pn e verificamos que k=1 bk = 1 e portanto k=1 ≥ n. Mas isso significa que v u n P n n n X X uY ak 1 a k k=1 n p ≥ n ⇔ Qn ak ≥ n ⇔ ≥t ak . Qn n a n k=1 k k=1 k=1 ak k=1 k=1 A outra desigualdade deduz-se de modo semelhante, substituindo no raciocı́nio anterior ak por a1 . k 27 Observação 1.34 A verificação do caso inicial, embora seja em muitos exemplos muito simples ou até trivial, é absolutamente necessária, já que sem ela todo o raciocı́nio em que se baseia o Princı́pio de Indução cai por terra. Suponha-se por exemplo que, devido a uma gralha, se pede para demonstrar a seguinte fórmula: ∀n ∈ N : n X k=1 n2 + n + 1 k= ; 2 se a igualdade se verificasse para um certo n então terı́amos ! n+1 n X X k= k + (n + 1) = por hipótese de indução k=1 k=1 n2 + 3n + 3 (n + 1)2 + (n + 1) + 1 n +n+1 + (n + 1) = = = 2 2 2 ou seja a igualdade seria também verdadeira para n + 1. No entanto a fórmula enunciada é falsa, como facilmente se verifica. A proposição verdadeira é 2 ∀n ∈ N : n X k=1 n2 + n k= 2 que pode de facto ser provada por indução. 28