Material Complementar – Aula 2 Biofísica Potencial de ação Um potencial de ação é uma onda de descarga elétrica que percorre a membrana de uma célula. Potenciais de ação são essenciais para a vida animal, porque transportam rapidamente informações entre e dentro dos tecidos. Eles podem ser gerados por muitos tipos de células, mas são utilizados mais intensamente pelo sistema nervoso, para comunicação entre neurônios e para transmitir informação dos neurônios para outro tecido do organismo, como os músculos ou as glândulas. Uma voltagem elétrica, ou diferença de potencial, sempre existe entre o interior e o exterior de uma célula (potencial de repouso). Esse fato é causado por uma distribuição de íons desigual entre os dois lados da membrana e da permeabilidade da membrana a esses íons. A voltagem de uma célula inativa permanence em um valor negativo — considerando o interior da célula em relação ao exterior ― e varia muito pouco. Quando a membrana de uma célula excitável é despolarizada além de um limiar, a célula dispara um potencial de ação. Um potencial de ação é uma alteração rápida na polaridade da voltagem, de negativa para positiva e de volta para negativa. Esse ciclo completo dura poucos milisegundos. Cada ciclo — e, portanto, cada potencial de ação, possui uma fase ascendente, uma fase descendente e, ainda, uma curva de voltagem inferior a do potencial de repouso de membrana. Em fibras musculares cardíacas especializadas, como por exemplo as células do marcapasso cardíaco, uma fase de platô, com voltagem intermediária, pode preceder a fase descendente. O potencial de ação não permanece em um local da célula, ele percorre a membrana . Ele pode percorrer longas distâncias no axônio, por exemplo para transmitir sinais da medula espinhal para os músculos do pé. Em grandes animais, como as girafas e baleias, a distância percorrida pode ser de vários metros. Neurônios transmitem informação gerando seqüências de potenciais de ação, chamadas trens de pulsos. Variando a freqüência ou o intervalo de tempo dos disparos de potencial de ação gerados, os neurônios podem modular a informação que eles transmitem. o Fig 1: Uma visão esquemática do potencial de ação idealizado. Ilustra as suas várias fases à medida que ele percorre um único ponto da membrana plasmática. Limiar e início Potenciais de ação são disparados quando uma despolarização inicial atinge o potencial limiar excitatório. Esse potencial limiar varia, mas normalmente gira em torno de 15 milivolts acima do potencial de repouso de membrana da célula e ocorre quando a entrada de íons de sódio na célula excede a saída de íons de potássio. 1 O influxo líquido de cargas positivas devido aos íons de sódio causa a despolarização da membrana, levando à abertura de mais canais de sódio dependentes de voltagem. Por esses canais passa uma grande corrente de entrada de sódio, que causa maior despolarização, criando um ciclo de realimentação positiva, que leva o potencial de membrana a um nível bastante despolarizado. O potencial limiar pode ser alcançado ao alterar-se o balanço entre as correntes de sódio e potássio. Por exemplo, se alguns canais de sódio estão em um estado inativado (comportas de inativação fechadas), então um dado nível de despolarização irá ocasionar a abertura de um menor número de canais de sódio (os que não estão inativados) e uma maior despolarização será necessária para iniciar um potencial de ação. Essa é a explicação aceita para a existência do período refratário. Potenciais de ação são determinados pelo equilíbrio entre os íons de sódio e potássio, e são usualmente representados como ocorrendo em células contendo apenas dois canais iônicos transmembrana (um canal de sódio voltagem-dependente e um canal de potássio, não-voltagemdependente). A origem do potencial limiar pode ser estudada utilizando curvas de corrente versus voltagem (figura 2) que representam a corrente através de canais iônicos em função do potencial celular transmembrana. Fig. 2: Gráfico de corrente (fluxo de íons) versus voltagem (potencial transmembrana). Ilustra a ação do potencial limiar excitatório (seta vermelha) de uma célula ideal, na qual há dois canais iônicos transmembrana: um canal de potássio não-dependente de voltagem e um canal de sódio dependente de voltagem. A curva verde representa a soma dos fluxos de sódio (Na+) e potássio(K+). As voltagens mais positivas neste gráfico apenas são alcançadas pelas células por meios artificiais, isto é, voltagens impostas por aparelhos de estimulação elétrica). Quatro importantes pontos no gráfico i/V estão indicados por setas na figura: A seta verde indica o potencial de repouso da célula e também o valor do potencial de equilíbrio para o potássio (Ek). Como o canal de K+ é o único aberto em voltagens tão negativas, a célula permanecerá no potencial Ek. Note que um potencial de repouso estável será observado em qualquer voltagem na qual a soma i/V (linha verde) ultrapassa o ponto de corrente nula (eixo das abscissas) com um ângulo positivo, como na seta verde. Consideremos: qualquer perturbação do potencial de membrana na direção negativa resultará em um influxo de íons que despolarizará a célula de volta ao ponto de cruzamento, enquanto qualquer perturbação do potencial de membrana celular na direção positiva resultará em um efluxo de íons que irá hiperpolarizar a célula de volta ao ponto inicial. Portanto, qualquer perturbação do potencial de membrana em torno de uma inclinação positiva tenderá a retornar a voltagem ao ponto de cruzamento. + A seta amarela indica o potencial de equilíbrio para o Na (ENa). Neste sistema de dois íons, ENa é o limite natural do potencial de membrana, o qual uma célula não pode ultrapassar. Valores de corrente ilustrados neste gráfico que excedem ENa são medidos artificialmente estimulando a célula além de seu limite natural. Note, entretanto, que ENa apenas poderia ser atingido se a corrente de potássio cessasse completamente. A seta azul indica a voltagem máxima que o pico do potencial de ação pode atingir. Este é, na verdade, o maior potencial de membrana que esta célula pode alcançar. Não é possível atingir ENa por causa da influência contrária da corrente de potássio. 2 A seta vermelha indica o potencial limiar. É a partir deste potencial que a corrente iônica passa a ter resultado líquido em direção ao interior da célula. Note que este cruzamento se dá a uma corrente nula, mas exibe uma inclinação negativa. Qualquer voltagem menor que o limiar tende a fazer a célula retornar ao potencial de repouso e qualquer voltagem maior que o limiar faz com que a célula se despolarize. Esta despolarização leva a um maior influxo de íons, desta forma a corrente de sódio se regenera. O ponto no qual a linha verde atinge seu valor mais negativo é o ponto no qual todos os canais de sódio estão abertos. Despolarizações além desse ponto diminuem o influxo de sódio, conforme a força eletroquímica (driving force) diminui com a aproximação do potencial de membrana do ENa. O potencial limiar excitatório é comumente confundido com o ―limiar‖ para a abertura dos canais de sódio. Esse conceito está incorreto, pois os canais de sódio não possuem um limiar de abertura. Pelo contrário, eles se abrem em resposta à despolarização de uma maneira aleatória. A ocorrência de despolarização não só abre o canal, mas também aumenta a probabilidade dele ser aberto. Até mesmo em potenciais hiperpolarizados, um canal de sódio se abrirá ocasionalmente. Além disso, o potencial limiar excitatório não é a voltagem na qual a corrente de sódio se torna significante, é a voltagem na qual a corrente de sódio ultrapassa a de potássio. Em neurônios, despolarizações tipicamente se originam nos dendritos pós-sinápticos e potenciais de ação, nos cones de implantação ( leia mais sobre cone de implantação e ZID). Teoricamente, entretanto, um potencial de ação pode ter início em qualquer lugar de uma fibra nervosa. Propagação Nos axônios, o potencial de ação se propaga de modo misto, alternando entre duas fases: uma passiva e outra ativa. Transporte passivo Íons de carga positiva, propagam-se perimembranalmente e bidirecionalmente de encontro à negatividade (lei de Coulomb). Contudo, somente os íons que vão na direção imposta da propagação criam um potencial de ação nesta membrana, pois a membrana anterior está em período refratário; já a membrana posterior está em potencial de repouso de membrana, o que permite que nela haja o potencial de ação. Se houver estímulo artificial (um eletrodo) no meio de um axônio, o potencial se propagará bidirecionalmente, pois não haverá períodos refratários impedindo-o. Com a propagação, a fase passiva perde parte de seus íons, o que acarreta uma menor energia. Esta perda dá-se de dois modos: choques físicos dos íons com moléculas citoplasmáticas e saída dos íons para o meio extracelular por canais de vazamento de membrana. Deste modo, quanto mais distantes os canais de sódio voltagem-dependentes estiverem, mais perda de energia ocorre. Transporte ativo Compreende o potencial de ação propriamente dito. Ocorre quando os íons positivos da fase passiva despolarizam a membrana adjacente de modo rápido e suficiente para despertar a avalanche de íons sódio, através dos canais de sódio voltagem-dependentes. Estes íons ganham o meio intracelular, e participarão da fase passiva da propagação. O fornecimento de íons sódio para a fase passiva é abundante. Como a variação da voltagem nesta fase é sempre constante, não ocorre perda de energia considerável. Fig 3: Os cátions à esquerda, dentro da célula, são conseguidos a partir de um potencial de ação. Passivamente, eles se difundem para outro nódulo de Ranvier, onde gerarão um novo potencial de ação. 3 Velocidade A velocidade de propagação do potencial de ação pode ser variada ao se variar o tempo de duração de alguma das duas fases da propagação. Contudo, a fase ativa costuma ser constante nas células, durando em torno de 4ms. Deste modo, a célula varia a duração da fase passiva, havendo dois modos básicos: Aumento ou diminuição do calibre do axônio ou célula. Maior ou menor isolamento da membrana (ao variar a espessura da mielina, se houver). O aumento do calibre do axônio ou célula provoca um aumento da velocidade de propagação do potencial de ação, pois há diminuição da resistência longitudinal, provocada por uma maior área de secção transversal. Em alguns axônios do polvo Atlântico Loligo pealei, a velocidade de propagação do potencial de ação alcança velocidades superiores a 100 m/s, em virtude do calibre elevado e da mielina espessa. Bainha de mielina e Nódulo de Ranvier A bainha de mielina é uma membrana lipídica modificada e espessada. Ela pode ser sintetizada por duas células: oligodendrócitos, no sistema nervoso central, e células de Schwann, no sistema nervoso periférico. A bainha de mielina fornece um aumento do isolamento celular (aumento da resistência de membrana), em virtude de não haver canais de vazamento de membrana onde há mielina, deste modo, a fase passiva perde menos íons, o que aumenta a chance do potencial de ação ter sucesso. Além de não haver canais de vazamento de membrana, não há também praticamente nenhum tipo de canal de membrana quando há bainha de mielina (ex.: bombas de sódio e potássio), o que provoca para a célula uma menor necessidade de síntese protéica, ou seja, menos gasto energético. A bainha de mielina permite uma maior velocidade da fase passiva da propagação do potencial de ação (diminui a capacitância de membrana e aumenta a resistência de membrana). Além disso, diminui o número de fases ativas da propagação do potencial de ação, tornando a propagação mais veloz ainda. As fases ativas da propagação ocorrem em máculas da bainha de mielina, os nódulos da Ranvier. Neles, diferentemente da zona cercada por bainha de mielina, há abundância de canais de íon sódio voltagem-dependentes (densidade até quatro ordens de magnitude a mais que nas membranas amielínicas), o que permite a ocorrência do potencial de ação, que corresponde à fase ativa da propagação. A consequência de a bainha de mielina queimar etapas na propagação, ao diminuir o número de potenciais ativos, são os movimentos saltatórios, que possuem este nome em virtude de haver a impressão de que os potenciais de ação saltam de nódulo em nódulo. Considerações Há um modelo biológico e um modelo físico que explicam a propagação do potencial de ação. O modelo físico é útil na quantificação dos fenômenos que acompanham a propagação, pois se utiliza de equações físicas, que são deduzidas com base nas três propriedades passivas da membrana: capacitância da membrana, resistência da membrana e resistência longitudinal. Nele, os resistores representam canais iônicos de membrana, enquanto um capacitor representa a membrana lipídica. Para as comportas dependentes de voltagem, usam-se resistores variáveis, visto que a resistência nesta comporta varia. Já os canais iônicos de repouso possuem resistores fixos. Os grandientes eletroquímicos dos íons são baterias. Deste modo, o modelo físico é interessante para pesquisas e para a indústria, que o usa na fabricação de marca-passos. Como a propagação do potencial de ação é basicamente a mesma para as diferentes células, não há como diferenciar as variadas ações que um sinal de propagação pode ter ao chegar ao sistema nervoso central (tato, propriocepção, visão etc). Deste modo, o que irá determinar a ação de 4 cada propagação do potencial de ação, é via, o caminho seguido por cada um deles, ou seja, as diferentes rotas presentes no organismo (ex.: trato espino-cerebelar, trato espino-talâmico etc). Período refratário Fig. 4: Três situações possíveis para os canais de íon sódio voltagemdependentes. O período refratário absoluto corresponde aos estados ativo e inativo. No período refratário relativo, alguns canais estão em repouso ativável, enquanto no potencial de repouso de membrana, todos estão. O período refratário acompanha o potencial de ação na membrana. Tem como efeito limitar a freqüência de potenciais de ação, além de promover a unidirecionalidade da propagação do potencial de ação, o que pode ser entendido como conseqüência da limitação de salvas de potenciais de ação. A transição entre os dois períodos ocorre aproximadamente quando a repolarização do potencial de ação atinge o potencial limiar excitatório, que é quando as comportas lentas do canal de sódio voltagem-dependente começam a abrir. Nas células miocárdicas, o período refratário é estendido por um platô, que é mantido pelo influxo de íons cálcio na célula. Esse alargamento do período refratário permite um maior descanso destas células, além de participar na sincronização dos batimentos. Quando há um estímulo destas células na hiperpolarização pós-potencial, também conhecida como período de supra-normalidade, pode ocorrer fibrilação. Referências - Bear, M.F., B.W. Connors, and M.A. Paradiso. 2001. Neuroscience: Exploring the Brain. 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