E n t r e v i s ta
Diálogos Índia & Brasil
So nya G u pta
– Professora Sonya Surabhi Gupta – devemos limitar as relações entre a Índia e a América Latina ao
âmbito estrito dos BRICS ou é possível pensar em uma dimensão
para além do econômico?
Sonya Gupta – Os BRICS têm apresentado um quadro importante dentro do qual o Brasil e a Índia têm feito grandes avanços no
sentido de desenvolver laços econômicos e políticos. O potencial
para implementar os laços sociais e culturais permanece enorme e
há muito ainda a se realizar em conjunto nesta arena. O objetivo
dos BRICS – que é reformular a ordem econômica mundial desafiando o domínio histórico do Norte desenvolvido com um bloco
composto em grande parte pelos países do sul global – não pode
ser atingido apenas na dimensão econômica. Ele clama por uma
mudança epistemológica, por um outro modo de conceber a vida
humana, outros paradigmas culturais.
Revista Brasileira
* Tradução
Ensina Estudos
Latino-Americanos
na Jamia Millia
Islamia, New
Delhi. Desenvolve
pesquisas na
área de Estudos
Literários
e Culturais
pós-colonial
e Estudos de
Tradução.
de Marcus Salgado.
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Sonya Gupta
– Um banco dos BRICS já foi inaugurado. Como lhe parece a ideia
de inaugurar, também, uma universidade multilateral entre nossos países,
onde, talvez, fosse possível obtermos um maior espaço?
SG – Uma universidade multilateral entre nossos países seria fundamental
para se alcançar a mudança epistêmica a que mencionei. A crença de que o
conhecimento é produzido apenas no Ocidente decorre da oclusão de epsitemes não europeias que foram expropriadas pelo colonialismo europeu. Nós
tínhamos nossas próprias formas de conhecimento. A Universidade Nalanda,
no centro da Índia, já existia há seiscentos anos quando a mais antiga universidade europeia, nomeadamente Bolonha, estava sendo fundada. Nalanda sobreviveu por setecentos anos; foi destruída por invasores na década de
1190, pouco depois da fundação de Oxford e pouco antes da de Cambridge.
Os alunos vinham, em ampla quantidade, do Japão e da Coreia, da China e
da Mongólia, a fim de estudar nessa extraordinária sede de ensino superior.
Então por que não uma Universidade BRICS hoje – para que possamos conhecer uns aos outros e criar conhecimento adequado às nossas necessidades?
No entanto, mesmo criticando a epistemologia eurocentrada, não devemos
deixar de salientar que fomos coprodutores da modernidade europeia. A Espanha medieval, por exemplo, foi um local fértil para a tradução de textos indianos. Tradução, linguagem, conhecimento e poder estavam, de fato, no coração
da produção da modernidade europeia: a Escola dos Tradutores em Toledo diligentemente traduziu, para o incipiente vernáculo, clássicos indianos como o
Panchatantra (traduzido em 1257 como Calila e Dimna), vários tratados sobre
xadrez, alquimia e matemática, trazidos para a Espanha pelos viajantes árabes
incansáveis ​​nesse milagre chamado Al-Andalus, e de lá transmitidos para o resto
da Europa. A copresença da América Latina na formação da modernidade na
Europa é muito conhecida. A modernidade, portanto, não foi uma invenção
puramente europeia. A noção de modernidade tem de ser expandida para incluir
seu próprio outro e lugar dessa expansão tem que ser o Sul Global.
RB
– Poderíamos nos referir a nossos dois países como uma invenção
europeia, segundo a qual o Brasil começou como uma Índia refletida no
RB
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Diálogos Índia & Brasil espelho por meio de seus bens, por meio de questões utópicas. Penso, aqui,
em como Santo Tomás poderia tanto ter estado na Índia como no Brasil. A
chave utópica é algo que nos une?
SG – Desde o equívoco colossal dos primeiros descobridores europeus, que,
acreditando que haviam chegado ao Oriente, chamaram aquelas terras de
“Índias”, e os habitantes “índios”, nossas identidades têm sido uma projeção
do imaginário europeu, uma contraimagem da Europa. Na verdade, muito
antes que o Oriente – isto é, o Leste – crescesse como um conjunto de alternativas para a Europa e como um lugar para consumir e fantasiar a respeito, a
América já tinha sido o Outro da Europa.
Mas as esperanças do colonizado para um futuro independente e emancipado são um impulso utópico positivo baseado no que Ernst Bloch chama de
“princípio da esperança”. Paulo Freire, em sua Pedagogia da esperança, descreveu a
esperança como uma necessidade ontológica que deve estar ancorada na prática, a fim de tornar-se concretude histórica. Sem esperança, não teremos pelo
que esperar e, assim, não pode começar a luta pela mudança. É esse impulso
utópico que nos une.
RB –
Podemos concordar com Homi Bhabha, no âmbito dos estudos pós-coloniais? É esse todo o horizonte possível?
SG – O legado dos estudos pós-coloniais, mais especificamente os estudos
sobre subalternidade, foi o de fornecer uma alternativa para a modernidade
europeia. Isto implica que as diferentes trajetórias que os países do Terceiro
Mundo tiveram no decorrer de sua história tornaram insustentável o projeto de uma modernização única. Na esteira desse fracasso da modernização,
temos a emergência da América Latina e da Índia como
uma visão alternativa do passado e do futuro. A única
maneira de transcender o pós-colonial é aceitar que os
projetos nacionalistas que tomaram a batuta dos colonizadores foram constrangidos pelas circunstâncias geo­
políticas a universalizarem no interior da configuração
geopolítica o que havia de particular na nação. A este
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Sonya Gupta
respeito qualquer outro projeto deve trabalhar com o pós-colonial e não pode
ser uma crítica a partir de uma posição externa.
RB –
Qual é o espaço para a língua e a cultura do Brasil nas universidades
de Nova Délhi? A coisa toda ainda se resuma a Cecília Meirelles e Tagore
ou estamos avançando por meio de outras janelas e abordagens?
SG – O aumento do comércio e o aprimoramento dos laços econômicos e
políticos criaram, sem dúvida, uma maior visibilidade para o Brasil na Índia, e
assim houve uma interação mais profunda entre os especialistas em diferentes
campos. Planejadores de estratégias na academia indiana têm olhado atentamente para o recente sucesso do Brasil com a redução da pobreza por meio de
programas de assistência social como o Bolsa Família e outros.
Este aumento do contato e do interesse refletiu-se em termos de melhor
conhecimento da língua, da literatura e da cultura do Brasil em nossas universidades? Eu diria que o processo está se encaminhando. As visitas recentes de
poetas brasileiros e escritores como Luiz Ruffato, Marco Lucchesi e Bernardo
Carvalho, a universidades e instituições culturais em Nova Délhi, promovido
pela Embaixada do Brasil na Índia, certamente geraram enorme interesse entre
os círculos literários indianos a respeito da literatura brasileira contemporânea
e de sua cultura. Mas precisamos construir institucionalmente a partir desse
interesse, por meio de pesquisas focadas, projetos de tradução específicos, e
também o intercâmbio de estudantes, acadêmicos e littérateurs entre os nossos
dois países, a fim de abrir novas abordagens e janelas.
RB – A presença da América Latina e do Brasil se faz diferente na Índia ou
preenche um espaço análogo ao, digamos, aquele que diz respeito às literaturas do universo de língua espanhola e a nossa?
SG – O Brasil tem estado ausente dos programas de estudos culturais e de
estudos literários sobre a América Latina nos departamentos universitários
na Índia. De qualquer forma, há quando muito três ou quatro desses departamentos em toda a Índia devotados ao estudo da cultura e da Literatura
da América Latina, que geralmente é focalizado nas literaturas hispânicas da
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Diálogos Índia & Brasil América Latina. No entanto, tenho certeza de que esse é um quadro a ser
alterado num futuro próximo, pois o Brasil emerge como parceiro estratégico
da Índia em escala global.
RB – Você tem atuado como uma importante ponte para o diálogo Sul-Sul.
Quais são seus planos e como você vê a questão do diálogo entre nossas
culturas?
SG – Penso que teremos que conversar em termos de planos concretos se
estivermos de fato interessados na manutenção desse diálogo. No âmago desse projeto, situa-se a competência linguística. No Centro de Pesquisas sobre
Estudos Latino-Americanos que dirijo na Universidade Jama Millia Islamia,
em Nova Délhi, o que tentamos é criar um corpus de estudantes das línguas
portuguesa e espanhola, alguns dos quais, com esperança, seguirão pesquisas
em assuntos relacionados às sociedades e culturas latino-americanas.
A tradução é uma outra área que pretendemos focalizar. Há um imenso
interesse pela literatura latino-americana na Índia, e a tradução que fiz para o
híndi, de Cem anos de solidão, de Gabriel García Marquez, em 2003, foi muito
bem recebida. Pessoalmente, nesse momento gostaria de começar a traduzir
para o híndi algumas das obras da Literatura brasileira contemporânea. Creio
que, por meio desses diálogos, podemos ter esperança de construir solidariedades sustentáveis.
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Entrevista - Academia Brasileira de Letras