OS BRICS E A GLOBALIZAÇÃO:
PERSPECTIVAS DA ÍNDIA E DO BRASIL
Ricardo Vélez Rodríguez
Coordenador do Centro de Pesquisas Estratégicas “Paulino Soares de Sousa”, da UFJF
[email protected]
O Brasil não vai bem no contexto dos BRICS e a Índia está fazendo o dever de casa.
Esta é a conclusão geral que se pode tirar do que será exposto a seguir. O nosso país viu-se
enredado na fina teia do populismo. E esta cultura política é má conselheira em termos de
mundo globalizado e com concorrentes que estão andando em direção ao cumprimento de
metas, como é o caso da China e da Índia.
Em termos do conjunto dos BRICS, considero que o papel da Índia será cada vez
mais importante por uma questão básica: não terá de lidar com dificuldades intransponíveis
com o fator democrático, na incorporação da sua imensa população à vida política do país.
Isso porque o sofisticado sistema de representação política, montado inicialmente pelos
Ingleses nesse imenso país, ainda existe e tem sido aperfeiçoado. É claro que o problema
fundamental da Índia consiste, hoje em dia, na pobreza extremada em que vive boa parte da
população. Mas a economia desse país está crescendo a taxas satisfatórias e ele é, após a
China, o segundo lugar de investimentos estrangeiros no mundo. Os indianos estão
cuidando a contento da educação. E o seu diferencial, em relação ao Brasil, está justamente
aí: encararão com mais agilidade e eficiência os reptos de competitividade impostos pela
globalização nas próximas décadas.
Os dois países que, a meu modo de ver, se situam na traseira dos BRICS, são o
Brasil e a Rússia. As deficiências burocráticas e o desrespeito aos direitos humanos pesam
muito no país-continente da Eurásia. A burocracia russa sofre com a falta de eficiência,
embora o país possua grandes recursos energéticos, de petróleo e gás natural. Ponto
positivo para os russos é que eles conseguiram montar tecnologia de ponta em alguns
setores, como o aeroespacial. Ponto negativo para eles é que as instituições políticas não
conseguiram amadurecer, até a formação de partidos modernos.
No nosso caso, com os dois governos petistas e a perspectiva de uma continuidade
dessa sigla ditando os rumos do país, considero que estamos nos aproximando da antiga – e
falida – União Soviética (bem ao gosto do Foro de São Paulo, entidade esdrúxula que só
olha pelo retrovisor da história, pretendendo dar sobrevida ao comunismo), ao passo que os
russos querem exorcizar definitivamente o fantasma da foice e o martelo. Cruel ironia da
história. A nossa economia (notadamente a agroindústria, num mundo em que as
commodities estão valorizadas) não encontra o caminho trilhado para uma plena
potencialidade, em decorrência de dois tipos de obstáculo que se lhe apresentam: a falta de
infra-estrutura (estradas, portos e aeroportos não modernizados satisfatoriamente) e
insegurança jurídica, com toda uma série de sinalizações apresentadas pelos gestores
públicos, no sentido de mudanças abruptas das regras do jogo, num contexto de brutal
tributação sobre o setor produtivo, descontrole do gasto público, falta de transparência,
corrupção e ameaça ao setor produtivo (a agroindústria, notadamente) efetivada pelos
chamados “movimentos sociais” (MST e quejandos).
ÍNDIA.
Antecedentes históricos acerca do Império Britânico na Índia.
A realidade política da Índia, à época em que começou a ocupação britânica (no
início do século XVIII), assemelhava-se àquela dos denominados “Estados Independentes”
da China, que guerreavam entre si, antes da unificação pela dinastia Chin. Tratava-se, no
caso indiano, de 562 Estados independentes, que ocupavam um terço da superfície total do
país. Os outros dois terços estavam subdivididos em quatorze províncias (Calcutá, Madras,
Bombain, por exemplo), sendo que cada província foi dividida pelos Ingleses em distritos.
Essas quatorze províncias constituíam a Índia diretamente administrada pelos
colonizadores, e que era denominada de British Raj. A Índia dos Estados Independentes
constituía uma espécie de confederação, onde os príncipes nativos gozavam de autonomia
para administrarem os seus territórios, desde que reconhecessem a tutela britânica como
autoridade suprema sobre todo o país. A Coroa inglesa assumiu as relações exteriores, bem
como a defesa de todos esses Estados, tendo desenvolvido um eficaz sistema
administrativo, alicerçado na cooptação dos dirigentes desses territórios, bem como numa
agressiva política de integração material dos diversos principados mediante a construção de
ferrovias.
A propósito, o pesquisador e romancista Javier Moro descreve assim a
administração britânica na Índia no início do século XX: “Os ingleses conseguiram unificar
o subcontinente graças a uma hábil política de alianças e ao prodígio de uma invenção
moderna: o trem. O chefe de cada estação importante costuma ser um empregado inglês
que, uniformizado como em seu país, apitando ordena os comboios circular ou parar. Mas
cada principado continua sendo governado, como sempre foi, por soberanos locais que
exercem um poder absoluto dentro de suas fronteiras e que se referem a si próprios de
maneiras diferentes, segundo sua própria tradição. O nome muda, como também mudam as
bandeiras e os uniformes dos policiais e militares...Hoje, a distinção de um maha (Grande,
em Sânscrito) só é concedida pela autoridade suprema, o vice-rei inglês, como recompensa
por serviços prestados à Coroa ou pela lealdade e importância de alguns soberanos. Os
ingleses não admitem que os rajás se denominem reis, como no passado. No Império
britânico só cabe um rei: o da Inglaterra” [Moro, 2006: 61].
Alexis de Tocqueville efetivou detalhado estudo acerca de como os Ingleses
conseguiram construir esse vasto império. Considerava que os eles tiveram muito melhor
senso de realidade do que os franceses na empreitada colonial, embora não os eximisse de
defeitos. Os principais destes eram, no sentir do pensador francês, a empáfia e a hipocrisia
dos colonizadores britânicos, que se sentiam superiores aos seus colonizados e que os
exploravam achando que realizavam uma grande obra de civilização, com uma atitude de
ranço aristocrático que o nosso autor achava démodée, típica do Ancien Régime.
Embora não poucos afirmassem que os ingleses tinham empobrecido a Índia,
Tocqueville duvidava disso. Muito mais prejudicada tinha sido essa nação sob os
dominadores orientais, que aplicavam uma política abertamente despótica em matéria
tributária. Era claro, para Tocqueville, que se houvesse na Índia liberdade de comércio e
indústria, a realidade teria sido outra. Mas já não se poderia falar mais em dominação
colonial. Tocqueville, que tinha estudado a realidade das ex-colônias britânicas na América,
sabia muito bem que o caminho para o progresso material estava diretamente atrelado ao
self government, de um lado (coisa que ele encontrava nas comunidades indianas), mas, de
outro, na democrática difusão das luzes e na luta em prol da liberdade individual, realidades
que ele considerava ausentes na vasta península oriental. O Bramanismo não era uma
religião de homens livres, nem se poderia pretender que sobre as suas bases de
desigualdade radical pudesse fundar-se uma democracia.
Segundo Tocqueville, a colonização da Índia quebrava todas as normas dos
processos históricos de conquista, ocupação e dominação de um povo por outro. No fundo
da perplexidade diante da colonização inglesa no oriente aparecia, de forma curiosa, a
questão da livre iniciativa vinculada a um governo que não a abafava. Da soma entre a
imprevisibilidade daquela e da previsibilidade deste, surgia um fato novo: uma espécie de
racionalidade em andamento, que ia consolidando, pela via do acerto e do erro, uma ação
de ocupação e de governo. Modalidade de empirismo prático, muito afinado, aliás, com a
tradição do direito consuetudinário anglo-saxão e com a filosofia escocesa do senso
comum. Modelo realmente novo em face dos exemplos conhecidos na Europa continental,
ainda sob o impacto da aventura napoleônica e dos despotismos da Prússia e da Rússia.
Sintetizemos a apreciação que Tocqueville faz da colonização inglesa na Índia. Para
o nosso pensador, não há dúvida de que os ingleses conseguiram compreender o espírito da
sociedade indiana. Daí o fato de eles terem podido desenvolver instituições coloniais que
possibilitaram a sua presença dominadora no continente asiático. Isso não significa que
tudo tenha sido favorável aos indianos. Mas, no essencial, os colonizadores não alteraram a
vida privada das pessoas e garantiram uma ordem jurídica e política, que deu a sensação de
estabilidade.
Os ingleses, em primeiro lugar, encontraram uma sociedade atomizada em pequenas
comunas. Não havia na Índia consciência nacional. Os dominadores anteriores
(muçulmanos, afegãos, persas, mongóis) beneficiaram-se, também, dessa situação. Mas não
conseguiram estabelecer instituições permanentes, talvez em decorrência de um fato
fundamental: o despotismo oriental impedia-lhes compreender essa importância da vida
local na cultura indiana. Queriam centralizar tudo. Os ingleses, ao contrário, souberam
adaptar o regime administrativo colonial a essa realidade. Isso porque o próprio governo
inglês já convivia há séculos com uma rica vida comunal, na Inglaterra. De outro lado,
jamais os ingleses permitiram que o exército se colocasse acima do poder civil. As guerras
que fizeram na Índia tiveram, como finalidade, defender os interesses dos acionistas da
Companhia das Índias (que nomeavam o governador e os altos funcionários da colônia),
bem como a estabilidade dos negócios. Como os que mandavam eram governadores civis
indicados pela Companhia, jamais a empresa guerreira teve como finalidade a conquista ou
a glória militar. A administração política sobrepôs-se, na Índia, ao poder militar. Os
generais prestavam um serviço de proteção aos nativos ou de restabelecimento da ordem,
quando eles e os seus exércitos eram chamados pelo poder civil; mas nem este comandava
diretamente as tropas, nem os chefes militares tinham iniciativa política.
De outro lado, os ingleses souberam conviver e administrar uma sociedade
essencialmente desigual, como a indiana, segmentada hierarquicamente pelas castas. Isso
porque, mais uma vez, o poder na Inglaterra sabia conviver com as diferenças hierárquicas
no seio da sociedade. A religião indiana, o bramanismo, de outro lado, não ensejou a
intolerância e a guerra contra o infiel, pela natureza mesma dessa religião. O bramanismo,
do ângulo social, consolidava uma sociedade de desiguais e justificava a desigualdade. As
pessoas nascem ou dos pés de Brahma ou da sua cabeça, sendo ou membros das castas
inferiores ou das superiores. A religião estava intimamente atrelada a essa ordem de castas.
Não pretendia subvertê-la. Mas, de outro lado, a religião era tradição da própria casta. Não
constituía uma crença universal, que devesse ser pregada a outros povos. O próprio
bramanismo hindu tendia a que os fiéis aceitassem outros credos, porque não havia a
preocupação de converter ninguém. Esse aspecto introspectivo do bramanismo, no sentir de
Tocqueville, favoreceu a dominação britânica e a estabilidade administrativa da colônia. Os
colonizadores não se defrontaram com uma jihad ou guerra santa, como as que pululavam
no meio muçulmano. Os anteriores dominadores da Índia, aliás, não eram brâmanes, mas
muçulmanos. De forma que a sociedade indiana já convivia pacificamente com senhores
portadores de um credo diferente.
Tocqueville ressalta a originalidade do esquema de governo britânico na Índia.
Houve dois modelos, um que vingou até 1786, e que poderia ser denominado de privatista.
Outro, que se consolidou após as reformas efetivadas por Pitt em 1784 e 1786, que poderia
ser caracterizado como privatista e estratégico. A primeira ocupação da Índia pelos
ingleses, no início do século XVIII, deu-se sob a modalidade de atividade comercial
privada, realizada pela Companhia das Índias. Os acionistas da Companhia, em Londres,
nomeavam o governador e os altos funcionários coloniais. O governo britânico acudia para
apoiar e defender os seus interesses, deslocando a força armada, que agia pontualmente e
não como exército de ocupação.
Após o sucesso crescente dos negócios da Companhia, entre 1784 e 1786, Pitt
elaborou a reforma que deu ensejo ao segundo modelo, privatista e estratégico. Tratava-se
de criar uma interferência do governo inglês, de forma a conservar a unidade da colônia,
sem impedir o funcionamento da livre iniciativa dos negócios da Companhia das Índias. Os
aspectos essenciais dessas reformas foram os seguintes: 1 – criação de um conselho (Board
of Control) que conferia ao governo o controle supremo sobre os negócios políticos da
Companhia; 2 – atribuição de grande independência e autoridade (inclusive juidial) ao
governador geral, que controlava os efetivos militares, pois o general-em-chefe lhe estava
subordinado; 3 - subordinação do governador geral ao governo civil, que estabelecia os
regulamentos da Colônia.
O modelo de administração britânica na Índia encarnava o princípio defendido por
Tocqueville para a Argélia: centralização política e descentralização administrativa. A
primeira acontecia em decorrência do poder supremo do Board of Control. A segunda
estava garantida graças à independência de que gozava o governador geral. O nosso autor
não deixava de admirar um outro fator: a estreita colaboração que o modelo colonial inglês
possibilitava entre o governo e a iniciativa privada.
Um outro aspecto importante da administração colonial britânica na Índia, dizia
respeito à preparação dos quadros administrativos. Os ingleses cuidaram de forma muito
eficiente disso, segundo Tocqueville, que sintetizou assim esse aspecto da política colonial
britânica: "Os jovens que se destinam a ocupar as funções civis na Índia, são obrigados a
residir por dois anos num colégio especial fundado na Inglaterra (e que é chamado de
Hailesbury College). Lá eles se dedicam a todos os estudos particulares que se relacionam à
sua carreira e, ao mesmo tempo, adquirem noções gerais em administração pública e em
economia política” [Tocqueville, 1962: 332].
Uma última observação acerca da abordagem da Índia por Tocqueville. O nosso
pensador enxergava longe: qual seria o começo da derrubada do grande império colonial
britânico na Ásia? Duas hipóteses eram levantadas por ele: ou a invasão de uma potência
européia, ou uma revolta interna. Descartava a primeira hipótese, pelas dificuldades
estratégicas que sofreria o invasor, devido ao grande poderio da Armada britânica.
Restavam as alternativas por terra. Seria muito difícil invadir a península da Índia, pois para
isso, tropas ocidentais deveriam entrar pelo Afeganistão, país inóspito cheio de perigosos
desfiladeiros e vales profundos, perfeitamente controlados por tribos guerreiras que
conheciam palmo a palmo o terreno, e onde as constantes rixas tribais dificultavam
qualquer empreendimento [cf. Tocqueville, 1962: 498-500]. O nosso autor lembra as
dificuldades que tiveram de enfrentar, nessa região, os vários invasores ao longo dos
séculos, desde Alexandre da Macedônia.
A derrubada do império britânico na Índia ocorreria por causas internas, no sentir do
nosso autor. Considerava que a resistência civil do povo indiano poderia ser o calcanhar de
Aquiles do poderio inglês. O escritor francês achava pouco provável a ocorrência de uma
rebelião. Mas considerava que as forças sociais, inspiradas no bramanismo e no
desprendimento dos bens materiais, poderiam ensejar, num longínquo futuro, ações nãoviolentas que conduzissem à independência em relação ao colonizador britânico
[Tocqueville, 1962: 481]. A figura do Mahatma Gandhi e da gesta libertadora não violenta
por ele deslanchada no século XX, que culminou, em 1947, com a independência da
Inglaterra, oferece-se espontaneamente à imaginação ao lermos a análise de Tocqueville,
efetivada cem anos atrás. Os britânicos tentaram, logo após a independência, evitar a
violência entre hindus e islâmicos, impondo a separação da Índia e do Paquistão e
concentrando os muçulmanos neste segundo país. Talvez
Perfil da Índia contemporânea e a sua situação no seio dos BRICS.
A análise desenvolvida nas páginas anteriores permite-nos compreender um pouco a
inédita realidade indiana. Somente sobre esse pano de fundo é possível entender, hoje, a
dinâmica pela qual passa esse enorme país, segundo endereço dos investimentos globais
depois da China. A Índia tornou-se independente da Inglaterra em 1947. A partir desse
momento, o governo passou a utilizar todos os mecanismos de controle sobre a produção
criados pelos ingleses. O país era administrado colonialmente pelos próprios hindus. A
conseqüência desse fechamento foi clara: até os anos 80 do século passado, a Índia tinha
uma taxa de crescimento medíocre, perto dos 3% do PIB que, somada ao aumento
acelerado da população, ficava reduzida a apenas 1,3% ao ano. Era impensável tirar
milhões de habitantes desse país da pobreza extrema. O modelo imperante era o de
substituição de importações, típico das economias fechadas. O setor público, de outro lado,
estendia os seus dedos por todos os cantos da economia, emperrando o setor privado com
regulamentações e exigência de licenças. Gurcharan Das, ex-presidente da Procter &
Gamble da Índia e autor do best-seller India Unbound dizia:”O país caminhava apesar do
governo e não com ajuda do governo” [apud Mello, 2008: 20].
As modernas reformas indianas foram efetivadas, a partir de 1991, por Manmohan
Singh, hoje primeiro-ministro, que na época exercia o cargo de ministro das Finanças e,
desde essa posição, reduziu as tarifas para importação, deitou por terra as barreiras para o
comércio, diminuiu, de forma drástica, as regulamentações impostas às empresas pelo
antigo sistema colonial, baixou a carga tributária e abriu o país aos investimentos
estrangeiros. Todas essas medidas foram implantadas de forma gradual. O efeito que
produziram foi rápido: romperam com o dirigismo econômico, aceleraram fortemente a
economia, estimularam a livre iniciativa e projetaram o país no cenário internacional.
Patrícia Mello sintetiza esses resultados assim: “O crescimento do PIB se acelerou, a
inflação caiu e as exportações aumentaram significativamente. Entre 1950 e 1980, a
economia indiana cresceu em média 3,5%. De 1980 a 2000, o crescimento anual acelerou
para 5,8% em média. Nos últimos três anos, o crescimento do PIB explodiu, chegando à
média anual de 8,4%. O combustível desse crescimento é o setor de serviços,
principalmente as famosas empresas de tecnologia da informação, mas a indústria vem
ganhando destaque. As exportações indianas chegaram a US$ 112 bilhões em 2006, aí
incluindo bens e serviços. Em um estudo realizado em 2003, economistas do banco
Goldman Sachs criaram a sigla BRICs para designar Brasil, Rússia, Índia e China, os países
que seriam as grandes potências mundiais em 2050. No estudo, que se tornou um dos mais
citados entre analistas econômicos e futurólogos, o Goldman Sachs prevê que a Índia será o
pais a crescer mais rapidamente nos próximos cinqüenta anos. Em quinze anos, a economia
da Índia vai ultrapassar a da Grã-Bretanha. Em 2040, será o terceiro PIB do mundo. E, em
2050 uma Índia vai corresponder a cinco Japões (...)” [Mello, 2008: 20-21].
Fator decisivo na afirmação global da Índia é constituído pelo que os estudiosos de
relações internacionais identificam como soft power desse país, ou seja, a capacidade que
os indianos têm de se tornarem fortes no cenário mundial por meios não agressivos, mas a
partir da disseminação da cultura autóctone. Nesse item a Índia tem-se revelado de
extraordinária criatividade, em decorrência dos grandes espaços de liberdade individual
garantidos pela configuração do país pelos britânicos, que não sufocaram, muito pelo
contrário, estimularam, as liberdades locais. A citada estudiosa sintetizou da seguinte forma
os efeitos produzidos por essa variante da realidade indiana: “(...) Ao lado da extreme
makeover econômica, a Índia vem usando cada vez mais seu soft power. Bollywood, o
centro cinematográfico indiano que produz aqueles filmes típicos com muita cantoria e
dança, e sem nenhum beijo, passou a exportar suas produções para vários países do mundo.
Aishwarya Raí, diva de Bollywood e ex-Miss Mundo, é garota-propaganda internacional da
marca L´Oréal. Escritoras indianas como Jhumpa Lahiri (autora de Intérprete de Males) e
Arundhati Roy (de O Deus das pequenas coisas) vivem na lista dos best-sellers.
Restaurantes indianos proliferam, e a arte moderna indiana é uma das queridinhas dos
colecionadores. Em vários clubes noturnos da Europa, jovens dançam ao som de remixes
de bhangra, a música tradicional da região de Punjab, no Noroeste da Índia. Todos esses
aspectos da cultura atraem um olhar simpático dos outros países, uma boa vontade que às
vezes é mais útil do que a força bruta. Para a Índia se firmar como potência internacional, é
essencial que o país projete, além da imagem de centro de tecnologia da informação,
aspectos culturais indianos” [Mello, 2008: 22].
Este aspecto do soft power indiano contrasta, certamente, com a rigidez das
instituições chinesas, que ainda não conseguiram ver resolvidas questões fundamentais para
uma democracia moderna como a participação política, o exercício da oposição e a irrestrita
liberdade de criação e de expressão. O que, sem dúvida, não acontece na Índia, que foi
dotada pelos seus colonizadores de sólidas instituições de governo representativo que
respeitam as liberdades e dão ensejo à prática saudável da oposição. Ao passo que na
vizinha China o governo comunista coloca entraves à liberdade criativa e à livre
informação (notadamente pela Internet), a Índia apresenta um saldo positivo nesses
quesitos. A propósito, o professor Joseph Nye, da Universidade de Harvard, escrevia
recentemente: “A China cresceu mais rapidamente que a Índia e conseguiu avançar mais na
redução da pobreza nas últimas décadas, mas ainda não resolveu seu problema de
participação política. A Índia é afortunada por ter nascido com uma constituição
democrática e uma estrutura política pluralista. Isso contribui para o poder de atração da
Índia” [apud Mello, 2008: 22].
O que poderíamos esperar da Índia, na atual quadra da política internacional?
1 – Consolidação das estruturas políticas partidárias e, em geral, do modelo de
governo representativo. Já deixei indicada, na parte introdutória, esta questão que é, a
meu ver, essencial: a Índia está aperfeiçoando os mecanismos de partipação, o que tornará
viável a incorporação ativa do universo de cidadãos desse país, que aspiram a tomar parte
na vida política. Como destaca Patrícia Campos Mello, a respeito: “O mais precioso legado
de Nehru é a solidez da democracia indiana. Em 2007, o país completou 60 anos de
independência. E, apesar da pobreza que persiste no país, dos conflitos religiosos entre
hindus e muçulmanos, da infinidade de línguas e dos choques de castas, o país manteve a
democracia durante todos esses anos para se tornar hoje uma das grandes potências
mundiais. Imagine um país formado por México, Estados Unidos, Líbano, Brasil e mais
três nações, com todas as línguas e religiões diferentes convivendo de forma razoavelmente
harmoniosa: a Índia é isso; é um prodígio o país sequer existir” [Mello, 2008: 74-75].
2 - Equacionamento, pelos indianos, da questão educacional. O grande esforço
dos últimos governos, a partir de 1990, tem sido este: garantir uma educação básica e
secundária de qualidade. Têm sido formados milhares de professores e mestres. Têm sido
adotados critérios de eficiência na gestão educacional, com os olhos postos na excelência
profissional das novas gerações. Como conseqüência disso, o sistema universitário tem
aumentado a sua competitividade no plano internacional. O bom desempenho do sistema
educacional indiano traduz-se no tipo de emigrante que a Índia produz: cérebros
qualificados, ao passo que nós “exportamos” mão de obra não qualificada. A respeito desse
aspecto, frisa Patrícia Campos Mello: “A diáspora indiana, principalmente nos Estados
Unidos e na Europa, é formada por profissionais destacados nas áreas de Tecnologia da
Informação, finanças, medicina e ciências. Não se trata de uma fuga de cérebros – grande
parte desses indianos vão para o exterior estudar em boas universidades, muitas vezes com
bolsas, trabalham por um tempo e depois voltam para a Índia, trazendo conhecimento. Já o
Brasil exporta principalmente mão-de-obra barata e ilegal. Nos Estados Unidos, por
exemplo, há milhares de pedreiros, motoristas e manicures que vivem com documentos
falsos perto de Boston, na Flórida e em Nova Jersey” [Mello, 2008: 115].
3 – Consolidação da expansão capitalista indiana no terreno da Tecnologia da
Informação e necessidade de aumento do crescimento no comércio varejista e na
agricultura. A partir da abertura econômica dos anos 90 do século passado, o país passou a
crescer a taxas verdadeiramente chinesas, beirando os 8% ao ano. O horizonte de
crescimento em médio prazo é positivo. A consultoria McKinsey calcula que, em 2025, a
classe média indiana passará dos atuais 300 milhões para 583 milhões de pessoas. A Índia,
assim, nessa data, ultrapassará a Alemanha como quinto maior mercado consumidor do
mundo. Nesse ano só haveria 20% de indianos ganhando menos de US$ 2.200 por ano.
Suhal Seth, diretor-gerente da agência de publicidade Couselange e empresário de renome,
traduz o que os milhões de indianos de classe média pensam: “Eu trabalhei muito, não
ganhei dinheiro cobrando propina, como alguns burocratas. Agora, estou curtindo a vida –
acho as teses socialistas de Nehru uma besteira” [apud Mello, 2008: 79]. Levantamento
feito pela firma American Express, em 2006, revelava que o número de indianos
milionários cresce 13% ao ano. O problema imediato é constituído por dois fatores: o
modelo de crescimento escolhido (privilegiando a Tecnologia da Informação), e a urgência
que a Índia tem de criar 70 milhões de empregos até 2012. Os chineses, com o seu modelo
de ampla industrialização e produção de manufaturas para exportação, tiveram sucesso,
sendo que 10% da população está abaixo do nível da pobreza, enquanto 28% da população
indiana está nessa situação. O modelo de Tecnologia de Informação não permite taxas mais
aceleradas de redução da pobreza, por força da especialidade que esse modelo exige.
4 – Solução enxergada pela Índia para superar a fome e o desemprego:
aumentar a economia ligada ao comércio varejista, o que lhe possibilitaria empregar
mais pessoas. Enquanto a cadeia de supermercados Wal-Mart compra US$ 20 bilhões da
China, na Índia as grandes redes mundiais de varejo compram apenas US$ 4 bilhões em
produtos. Outro setor que precisaria crescer mais seria o agrícola, incentivando uma nova
aceleração do mesmo (apenas cresce ao ano 3,4%, enquanto a economia indiana como um
todo cresce por volta de 8%).
5 – Risco estratégico decorrente da insegurança da fronteira paquistanesa. Os
indianos têm pela frente um enorme repto estratégico, em face do qual receberam decidido
apoio americano, ensejado no importante tratado de colaboração e assistência que os
Estados Unidos assinarão com a Índia no final de 2010. Embora não se trate de um pacto no
plano militar, os americanos sinalizaram que estarão do lado dos indianos nas questões de
segurança nuclear, num momento em que se tornam espinhosas essas questões,
notadamente com a posição agressiva do Irã e da Coréia do Norte. A Câmara Baixa do
parlamento indiano aprovou, em 25 de agosto deste ano, um projeto civil de
responsabilidade nuclear, medida que vai facilitar a aprovação do Acordo de Cooperação
Nuclear Civil Índia-Estados Unidos, que tem sido alvo de críticas de partidos da oposição.
O projeto foi aprovado depois de o governo ter aceitado as recomendações de um painel
parlamentar para triplicar a responsabilidade por acidentes para 15 bilhões de rúpias (US$
321,5 milhões). A lei deve ser aprovada pela Câmara Alta do parlamento. O acordo foi
assinado em 2008 e dará à Índia acesso à tecnologia nuclear privada norte-americana. Com
a aprovação da lei, o primeiro-ministro Manmohan Singh torna-se mais forte politicamente,
demonstrando uma forte determinação para a aceitação do acordo antes da visita do
presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, no final deste ano. A lei vai permitir que
empresas norte-americanas entrem na competição com rivais estatais européias para atender
o objetivo indiano de aumentar em 13 vezes a geração de energia nuclear no país até 2032.
Singh disse que o acordo nuclear não vai prejudicar a soberania da Índia, mas vai abrir uma
série de oportunidades comerciais. "Ela vai permitir que a Índia entre no comércio nuclear
com outros países para aumentar suas opções de desenvolvimento e assim alcançar suas
necessidades de energia", disse Singh, no Parlamento [cf. Priscila Arone, “Projeto facilita
acordo nuclear EUA-Índia”, In: O Estado de São Paulo, 25-08-2010].
BRASIL.
Antecedentes históricos: o Brasil Império.
Embora o Brasil não tivesse construído as Instituições do Estado, ao longo do
século XIX, de forma semelhante a como aconteceu esse processo nas Ilhas Britânicas ou
nas restantes nações da Europa Ocidental, no entanto a tradição patrimonialista, entre nós,
viu-se mitigada, ao longo do Segundo Reinado, graças à dedicada construção de
instituições que possibilitaram o exercício da representação política, com salvaguardas para
os direitos dos cidadãos. Foi o processo pacientemente desenvolvido, entre 1841 e 1889,
pelo Imperador e pelos “homens de mil”, aqueles fiéis colaboradores de Dom Pedro II que,
ao redor do Poder Moderador e do Conselho de Estado, deram ensejo às instituições
imperiais, consagrando o período de maior estabilidade política da nossa história.
Essa elite do Segundo Reinado deu continuidade à ação pioneira de Dom João VI,
que ao ensejo da vinda da corte portuguesa para o Rio de Janeiro, em 1809, elaborou, com a
colaboração de uma geração de estadistas liberais (Silvestre Pinheiro Ferreira à testa),
criativo modelo de monarquia constitucional, cuja peça chave era a dupla representação
(dos interesses permanentes da Nação pelo Imperador, no Poder Moderador) e dos
interesses mutáveis da nação (no parlamento). Graças a essa original proposta, o Brasil,
independente de Portugal em 1822, conseguiu manter a sua unidade continental, em que
pese as lutas intestinas, que se sucederam entre a Independência e o denominado
‘Regresso” e o Ato Adicional, no início da década de 1840. Duas fontes iluminaram o
trabalho das duas gerações de estadistas a que tenho feito referência: Benjamin Constant de
Rebecque (que influenciou diretamente no pensamento de Silvestre Pinheiro Ferreira) e
François Guizot, bem como, de forma mitigada, Alexis de Tocqueville (autores que eram
conhecidos pelos estadistas do Segundo Reinado). As Instituições imperiais foram fruto,
assim, da meditação dos nossos homens públicos sobre o que de mais sofisticado havia, no
século XIX, em matéria de pensamento político, os denominados doutrinários e os seus
seguidores.
O autor que mais diretamente recebeu a influência de Guizot foi Paulino Soares de
Souza, visconde de Uruguai (1807-1866). Para ele, a elite imperial tinha uma missão
fundamental: garantir a criação e o funcionamento de instituições que garantissem, no
Brasil, o exercício da liberdade e o progresso da sociedade. O terreno onde se deveria travar
essa luta era, para Paulino, o do direito administrativo, já que à luz deste poderiam ser
pensadas as instituições do governo, bem como os meios jurídicos e práticos que
garantissem o seu funcionamento. Essa era a finalidade primordial do seu Ensaio de
Direito Administrativo, publicado em 1862.
O trabalho não foi pura e simples elucubração teórica. Como Guizot em relação à
França, Paulino considerava que deveriam ser pensadas as instituições brasileiras à luz da
história e da cultura nacionais. O Ensaio é fruto do profundo conhecimento que tinha do
país, amadurecido na sua participação em vários órgãos do Governo Imperial, entre 1840 e
1862. A obra foi motivada pela viagem que o visconde realizou à Inglaterra e à França, com
a finalidade de estudar o funcionamento das Instituições Públicas.
É de se destacar o fato de o Império, na sua fase final, junto com a campanha
abolicionista (que encontrou entre os estadistas grande repercussão notadamente pela obra
parlamentar, intelectual e jornalística de Joaquim Nabuco), ter ensejado a discussão do
alargamento do voto (justamente no momento em discussão similar acontecia na Inglaterra,
sob a batuta de Gladstone). Isso indica a dinâmica positiva das instituições do Segundo
Reinado, mesmo em termos de serem adequadas à adoção do ideal democrático,
reformulando profundamente a representação (dinâmica de que dá testemunho, já no final
do período apontado, a Lei Saraiva).
Perfil do Brasil contemporâneo e a sua situação no seio dos BRICS.
A República consolidou-se à margem da tradição imperial de construção da
representação política e do aperfeiçoamento da mesma, em decorrência da forte
componente positivista que passou a inspirar as lideranças republicanas. Ab origine ficamos
sob o signo do estatismo, nesse novo ciclo da nossa história. Os positivistas, cada vez mais
influentes no ciclo republicano, fizeram tabula rasa da experiência imperial, algo assim
como o conhecido discurso escutado nos palanques e nos gabinetes ao longo destes últimos
oito anos: “nunca antes na história deste país”. Do estatismo nascemos e nele foram
forjadas as nossas instituições republicanas, em que pese a Constituição de 24 de fevereiro
de 1891 (que copiava, por influência de Rui, as instituições americanas). Mas o que saiu
dessa nova carta foi a prática do poder patrimonial que tentava, cada vez mais, privatizar o
Estado em benefício das elites estaduais, na denominada “política dos governadores”.
O Castilhismo constituiu, na história republicana brasileira, a mais evidente e
acabada manifestação do estatismo. Para Júlio de Castilhos (1860/1903) o dogma
positivista (segundo o qual, a ordem social e política emergiria de um processo regenerador
das mentes e das vontades, através da educação positiva, efetivada pelos Apóstolos da
Humanidade e pelos cientistas) sofreu uma reformulação essencial, no sentido de que a
ordem social e a regeneração dos cidadãos seriam efeito da tutela do Estado. O Castilhismo,
tornado praxe política na Constituição redigida por Castilhos em 1891 para o Estado do Rio
Grande do Sul consagrou, além da tutela referida, a hipertrofia do Executivo sobre os
outros dois poderes, bem como o regime de Partido único.
A segunda geração castilhista, encabeçada por Getúlio Vargas (1883/1954) e por
Lindolfo Collor (1890/1942) deu continuidade ao modelo idealizado por Castilhos, ao
longo da década de 30. Dois princípios guiaram a estruturação do Estado autoritário e
modernizador de Vargas: de um lado, o do equacionamento técnico dos problemas e, de
outro, o da alergia à democracia representativa, concretizado no slogan castilhista: “o
regime parlamentar é um regime para lamentar”. As questões da moralidade pública e da
negociação política foram reduzidas por Getúlio a simples assunto técnico, que deveria ser
solucionado pelo Executivo, auxiliado pelos seus Conselhos Técnicos integrados à
administração.
Como decorrência disso, a partir do ciclo getuliano o Brasil viu estruturar a sua
modernidade em marcos definitivamente estatizantes. Por força da ininterrupta tradição
autoritária republicana, a nossa economia modernizou-se à luz do princípio pré-keinesiano,
apregoado por Aarão Reis (1856/1936), em 1918, da intervenção tout-court do Estado
empresário [Reis, 1918]. O keinesianismo entre nós, na trilha dessa tradição, seria muito
mais do que a correção da rota do capitalismo, mediante a intervenção governamental
através de mecanismos indiretos. Muito pelo contrário, como anotava editorialista de
conhecido jornal, “A teoria de Keynes (...) foi distorcida no Brasil e na América Latina por
influência da escola cepalina, que inspirou a tese do desenvolvimento dos anos 50 com base
na expansão dos gastos do Estado. O cidadão que não entende nem quer saber dessas
teorias tem apenas uma certeza; cada vez que os governos gastam além da receita, a conta
acaba paga pelo seu bolso através do aumento dos impostos, ou do mais injusto confisco,
que é a inflação” ["Fuga ao dever", Editorial, Jornal do Brasil, 15/12/90, 1º Caderno, p.
10].
O Executivo hipertrofiado, de outro lado, gerou grave distorção na vida política
nacional, ao ser substituída a função essencial do Legislativo pela esdrúxula figura do
“decreto-lei”, ou da não menos autoritária “medida provisória”. Causa espanto reconhecer
que, ao longo dos últimos 50 anos, quem mais legislou no Brasil foi o Executivo. Tamanha
centralização, num mundo cada vez mais complexo e num país com extensão continental e
variadíssima problemática sócio-econômica, só fez proliferar, ao longo das últimas
décadas, os malsucedidos pacotes. A história dos planos de estabilização da economia,
elaborados pelo Executivo centralizador e autoritário, vem de longa data. O discurso é
sempre o mesmo: “Tenho insistido e insistirei no combate à inflação e, se ela ainda não foi
debelada, pois que tal objetivo nas circunstâncias atuais requer mais tempo, é certo que a
política seguida até aqui contribuiu para atenuá-la”. Estas palavras foram pronunciadas por
Getúlio Vargas em outubro de 1953 [apud Guaracy, 1991: 3], mas de fato poderiam ser
colocadas na boca de qualquer um dos seus sucessores.
A hipertrofia do Executivo entre nós, longe de criar condições que beneficiassem a
vida dos brasileiros, tornou-se foco de insegurança, que terminou por afetar a credibilidade
dos governos. Miguel Reale caracterizou esse élan legiferante proveniente do executivo,
com as seguintes palavras: "(...) Quando se fizer um estudo profundo dos órgãos e serviços
criados por ato do Poder Executivo, ao longo destes 20 anos, chegaremos à conclusão que
quem legislou mais abundantemente foi o governo, segundo o modelo positivista de Júlio
de Castilhos, tão do agrado do Presidente Getúlio Vargas, no período do Estado Novo. E,
no entanto, reina pleno silêncio sobre a disposição autoritária ainda facultada ao Presidente
da República" ["Consciência constitucional", Convivium, São Paulo, vol. 28, fasc. 4, p.
285, jul./ago. 1985]. Mal imaginava o grande mestre o que estaria por vir na nossa história
republicana da ultima década!
A proposta social-democrata de Fernando Henrique Cardoso certamente era
portadora, ao longo do seu primeiro governo (1994-1998), de uma renovação, no que tange
ao papel que deveria ocupar o Brasil no contexto internacional. A agressiva política exterior
do presidente-embaixador certamente projetou o nome do nosso país no contexto das
Nações. A adoção do “Plano Cruzado” (brilhantemente concebido e posto em prática por
Fernando Henrique, ainda quando ministro da Fazenda de Itamar Franco) aplainou o
caminho para a derrocada da inflação e a retomada do crescimento econômico. As
privatizações desincharam a máquina pública e possibilitaram a poupança de recursos pelo
Estado, para investimento nas áreas sociais. Com a economia saneada, o crescimento ficou
garantido para os anos seguintes. A adoção da lei de responsabilidade fiscal criou um
espaço de racionalidade na gestão pública e atraiu investidores. Políticas pontuais
certeiramente efetivadas (como o Proer), livraram a economia do aprofundamento da crise
em que mergulhavam as finanças internacionais, turbulência que desaguou na crise do setor
financeiro dos países desenvolvidos em 2008. O modelo social-democrata, certamente,
deitou os alicerces para o nosso desenvolvimento, repetindo, em parte, o esforço feito pelo
governo de Juscelino e pelo ciclo militar (no que concernia à industrialização e ao
equacionamento do problema denominado por Oliveira Vianna de “circulação”, ou seja, a
integração efetiva das várias regiões do país, graças à mudança da capital federal, às
telecomunicações e à malha rodoviária). As ações reformistas dos social-democratas
direcionaram-se no sentido de garantir as bases duradouras para o crescimento econômico,
sem cair, no entanto, no velho autoritarismo. As instituições republicanas e a imprensa
funcionaram livremente, ao longo dos dois períodos de Fernando Henrique Cardoso.
Contudo, as reformas básicas que se tornavam necessárias para dar lastre ao Plano
Real e potencializar o crescimento econômico, não conseguiram ser efetivadas a contento:
não foram feitas nem a reforma política, nem a reforma previdenciária, nem a reforma
tributária. A causa que talvez atravancou de forma mais definida o andamento das coisas
foi a oposição impatriótica e radical do PT e coligados, que não só se opuseram ao Plano
Real, como passaram a alcunhar o regime de Fernando Henrique de “neo liberal”,
obstaculizando deliberadamente os acertos parlamentares que eram necessários para
efetivar essas reformas. Petistas e associados passaram a reivindicar a destituição do
Presidente da República, numa campanha golpista intitulada de “Fora FHC”. Em
decorrência desse ambiente de crescente polarização, o modelo social-democrata de
Fernando Henrique não conseguiu dar os frutos que dele se esperavam, vítima (em parte,
também) do que Robert Dahl convencionou em denominar de “a tentação socialdemocrata” (medo pânico de desagradar a esquerda).
Embora a política reformista de Fernando Henrique tivesse sido pacientemente
costurada com a base aliada (com papel de destaque, nela, para o PFL), que lhe garantiu
apoio decisivo para as privatizações, já no segundo mandato e especialmente com a
proximidade das eleições de 2002, o Presidente e o seu Partido foram colocando para baixo
do tapete as mudanças fundamentais, como a privatização da Petrobrás e as reformas
tributária, política e previdenciária, que teriam garantido a sustentação do Real e aberto
uma janela favorável ao Brasil, no contexto do clima de acelerado crescimento que
acontecia pelo mundo afora, notadamente em decorrência da valorização das nossas
commodities. Já no final do seu segundo mandato, Fernando Henrique deu uma guinada
rumo à esquerda, traiu a base aliada e terminou paralisando as mudanças necessárias. Daí a
fritar um a um os possíveis candidatos presidenciais de centro (utilizando para isso os
instrumentos do Estado como a Polícia Federal), apoiar indiretamente Lula nas eleições
presidenciais e “cristianizar” o candidato oficial José Serra, foi só um passo.
Os oito anos de governo petista constituíram uma marcha ré nas possibilidades de
um crescimento longo e sustentado do Brasil, nos terrenos econômico e social. A vitória
esmagadora do PT nas eleições presidenciais de 2002 decorreu do crédito de confiança
dado pela sociedade brasileira ao candidato Lula, graças à correção de rumo feita na “Carta
do Recife”, no sentido de manter inalterados os marcos da política macroeconômica que
garantiram o controle sobre a inflação. Este foi, certamente, o aspecto positivo dos dois
governos de Lula. O acerto da política macroeconômica tornou-se possível graças à
preservação da independência do Banco Central, colocado sob a direção de competente
equipe técnica chefiada por Francisco Meirelles.
Mas o aparelhamento do Estado e das agências reguladoras pela liderança sindical
petista produziu o acirramento da tendência patrimonialista à privatização do poder pelo
presidente e a sua elite. Esse fato aliou-se a outros gravíssimos atentados à democracia e às
instituições republicanas, que elenco a seguir: 1 - a descarada prática da compra de apoio,
pelo executivo, no parlamento (fato que desaguou no episódio de corrupção generalizada
denominado de “mensalão”); 2 - as agressivas políticas de bolsas sociais com a finalidade
de comprar apoio eleitoral dos menos favorecidos (40 milhões de pessoas); 3 - o abandono
da Lei de Responsabilidade Fiscal; 4 - a sistemática desvalorização – pelo presidente - da
nossa diplomacia (posta a serviço de uma política partidária altamente ideologizada, no
contexto do gramscismo e a serviço do “Foro de São Paulo”); 5 - os ataques constantes
contra a liberdade de expressão na imprensa livre e na Internet e contra os direitos humanos
básicos, expressa na legislação pro-aborto, no desconhecimento, pelo presidente, dos
direitos humanos no cenário internacional e na violação do sigilo fiscal de cidadãos com
finalidade eleitoreira; 6 - a desvalorização sistemática, pela propaganda oficial, do
Congresso em geral e dos partidos da oposição, especialmente; 7 – a utilização do BNDES
para favorecer empresários amigos e governos populistas aliados do presidente; 8 - a
atuação à margem da lei do presidente em legislação espúria em benefício das lideranças
sindicais (que foram liberadas dos controles do Tribunal de Contas da União); 9 – o
atentado à soberania brasileira praticado à luz do dia e contra a vontade da população e das
Forças Armadas, na demarcação contínua de importante área de fronteira (Raposa Serra do
Sol), em benefício de ONGs e dos denominados “movimentos sociais”; 10 – a contumaz
política de apoio indiscriminado a “movimentos sociais” à margem da lei, como o MST,
que, nos oito anos do atual governo receberam somas milionárias do Tesouro, sem que
sequer tivessem personalidade jurídica.
Quais seriam as alternativas que se descortinam para o Brasil, na atual quadra do
seu desenvolvimento histórico?
1 – Consolidação de uma forma agressiva de patrimonialismo. O aparelhamento
do Estado pela máquina petista e os dez fatores que o acompanham, aliados à muito
provável eleição da candidata oficial, colocam o Brasil numa posição de, no mínimo,
desvantagem em face do mundo globalizado. A alegação oficial de que “o capitalismo vai
bem no Brasil” é puramente retórica e talvez possa ser interpretada como a tendência do
núcleo dirigente do PT a efetivar a materialização de agressivo projeto de capitalismo
predatório (ou capitalismo gerido pela máquina patrimonialista que se apoderou do Estado),
em benefício de uma minoria identificada com o partido no poder, a começar pelas
lideranças sindicais por ele cooptadas. Melancólico modelo de peleguismo que já foi
alcunhado de “peronismo tropical”.
2 – Alinhamento da diplomacia brasileira com interesses partidários, não
nacionais. A forma atabalhoada em que foi conduzida a política externa do país, ao longo
dos últimos oito anos, permite deduzir que se tratou, mais, de um esforço em prol de
colocar a nossa política externa em função de uma boutade do chefe do executivo, do que
propriamente da execução de uma política de Estado. Para que isto se efetivasse, seria
necessário que os traços básicos da mesma tivessem sido objeto de aberto debate no Senado
da República, o que não ocorreu. A política do “Brasil grande”, pomposamente apregoada
pelos funcionários oficiais, resultou num reforço à imagem carismática do líder, do que
propriamente na consolidação da imagem de respeito pelas nossas instituições, a começar
pelo Itamaraty, que teve a sua imagem arranhada. A conclusão que muitos tiraram, depois
das trapalhadas internacionais patrocinadas pelo presidente e os seus assessores palacianos
(como no caso de Honduras), é de que, em matéria de política externa, o Brasil improvisa.
3 – Alinhamento da política externa contra os interesses econômicos e
estratégicos do Brasil. Isso apareceu claramente no relacionamento com a Bolívia e a
Venezuela, países onde empresas brasileiras tiveram sérios prejuízos, em decorrência do
não cumprimento de contratos pelos líderes populistas que governam esses países. O
governo petista arrazoou da seguinte forma: são os nossos amigos, não podemos prejudicálos, lhes exigindo o cumprimento daquilo que se comprometeram a nos fornecer ou a nos
pagar. A conta negativa terminou sendo paga pelo contribuinte brasileiro. No caso do Irã, o
exíguo comércio com esse país não justificava o desgaste a que o executivo terminou
submetendo a nossa diplomacia, numa questão particularmente delicada como a política
nuclear. Lula, ao deixar uma porta aberta para esse desvario, agiu contra a Constituição,
que bane explicitamente a corrida armamentista nuclear.
4 - Destruição do patrimônio de credibilidade conquistado, ao longo das duas
gestões de Fernando Henrique Cardoso, pela Receita Federal, em virtude dos
lamentáveis e repetidos episódios de violação do sigilo fiscal, ao ensejo destas eleições e
ainda na gestão do Ministério da Fazenda pelo anterior ministro. Isso instaura um clima de
pouca credibilidade das instituições republicanas e de insegurança jurídica, o que termina
afastando investidores.
5 – Descuido com a educação e a saúde dos cidadãos deste país, com as quedas
sucessivas dos índices de eficiência em ambas as áreas, decorrentes do aparelhamento dos
respectivos ministérios por militantes partidários não qualificados e do desvio de recursos
que corresponderiam a estas sensíveis áreas, para financiamento da pesada máquina
burocrática criada nas duas administrações petistas, para abrigar amigos e apaniguados.
Este fator pesará definitivamente no atraso do Brasil para ter profissionais qualificados em
áreas muito sensíveis ao desenvolvimento.
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