PROCURADORIAGERAL DE JUSTIÇA Rua Promotor Manoel Alves Pessoa Neto, 97 – Candelária – CEP 59.065 - 555 – Natal /RN TELE/FAX (84) 3232.7132 – [email protected] EGRÉGIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE, POR SEU ÓRGÃO COMPETENTE, NA FORMA REGIMENTAL; A PROCURADORA GERAL DE JUSTIÇA ADJUNTA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE, órgão do Ministério Público especialmente legitimado pelo artigo 71, § 2º, inciso IV, da Constituição Estadual, vem ajuizar AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE, com pedido de liminar, em face do ARTIGO 5º, § 5º, da LEI MUNICIPAL DE NATAL N.º 6.131/10, pelas razões que seguem adiante. I. DOS FATOS. 01. Conforme representação formulada pela Promotoria de Justiça de Combate à Sonegação Fiscal da Comarca de Natal, em 22 de julho de 2010, foi aprovada a Lei Municipal de Natal nº 6.131/10, instituindo procedimento de suspensão da imunidade tributária de associações civis, sem fins lucrativos. 1 02. O referido diploma legal estabeleceu a necessidade de um processo administrativo específico para suspensão da imunidade tributária, como pressuposto para o lançamento do tributo devido pelas entidades que tiverem a imunidade suspensa, em virtude de não preencherem os requisitos legais. 03. O disposto no artigo 5º, § 5º, da Lei Municipal nº 6.131/10 padece do vício de inconstitucionalidade, conforme se demonstrará a seguir. II. DA INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 5º, § 5º, DA LEI MUNICIPAL Nº 6.131/10 04. Em seu artigo 5º, §§ 4º e 5º, a Lei Municipal nº 6.131/10 estatuiu o seguinte: “Art. 5º – Efetivada a suspensão da imunidade: (…) § 4º – O auto de infração, por inadimplemento de obrigação principal, lavrado contra entidade imune, somente é válido em processo administrativo iniciado após a suspensão da respectiva imunidade § 5º – Os autos de infração lavrados até a data desta Lei em desacordo como o que dispõe o parágrafo anterior são nulos para todos os efeitos.” (destaque nosso). 05. A exigência de processo administrativo para a lavratura de auto de infração nos casos em que se verifica que determinada entidade beneficiada pela imunidade não atende os requisitos legais, estabelecida pelo § 4º do artigo 5º da Lei Municipal nº 6.131/10, é plenamente compatível com a nossa ordem constitucional, representando uma concretização do princípio da ampla defesa. 06. A inconstitucionalidade reside no § 5º da Lei Municipal nº 6.131/10, que confere efeitos retroativos às disposições do aludido diploma legal, para alcançar os autos de infração lavrados anteriormente à sua vigência, considerando-os nulos. 07. Como é cediço, as leis são aprovadas para produzir efeitos ex nunc, isto é, para o futuro, de maneira que as relações jurídicas constituídas sob a égide de uma legislação anterior não 2 são atingidas pela nova norma. Trata-se do princípio da irretroatividade, que está consagrado no artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal: “Art. 5º (…) (…) XXXVI – a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.” 08. Consistindo o princípio da irretroatividade em um direito fundamental, a sua proteção é consagrada pela Constituição Estadual, ao reconhecer todos os direitos fundamentais previstos na Constituição Federal: “Art. 3º O Estado assegura, nos limites de sua competência, os direitos e garantias fundamentais que a Constituição Federal reconhece a brasileiros e estrangeiros.” 09. As leis são prospectivas, devendo reger as situações por elas reguladas a partir do início de sua vigência, porquanto é somente nesse momento que adquirem força normativa e imperatividade. Por conseguinte, a lei nova só pode produzir efeitos retroativos em casos excepcionais mediante previsão expressa e desde que sejam respeitados o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Ou seja, ainda que haja previsão no texto legal, a produção de efeitos retro-operantes é destituída de validade se for constatada ofensa a um dos mencionados institutos. 10. No caso em tela, o artigo 5º, § 5º, da Lei Municipal nº 6.131/10, desconsidera os efeitos já produzidos pelos autos de infração lavrados em desfavor das pessoas jurídicas que foram beneficiadas com imunidade tributária sem o preenchimento dos requisitos legais, em virtude da inexistência de prévio processo administrativo, exigência esta que não existia ao tempo em que foram praticados aqueles atos administrativos. Os autos de infração anteriores à Lei Municipal nº 6.131/10 foram elaborados em conformidade com a legislação então vigente, configurando, assim, atos jurídicos perfeitos, que não podem ser atingidos por efeitos retroativos de uma lei posterior. 11. Sobre o ato jurídico perfeito leciona CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA: 3 “Toda a construção legislativa atual está assentada no respeito do direito adquirido, sob seus vários aspectos. O primeiro aspecto se apresenta como ato jurídico perfeito, que é o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou. É o ato plenamente constituído, cujos requisitos se cumpriram na pendência da lei sob cujo império se realizou, e que fica a cavaleiro da lei nova.”1 12. Desse modo, a Lei Municipal nº 6.131/10 não pode alcançar os autos de infração elaborados em conformidade com a legislação pretérita, porque seus efeitos já estão consumados, caracterizando o artigo 5º, § 5º, daquele diploma legal, uma flagrante ofensa ao ato jurídico perfeito, protegido pelo artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal, e pelo artigo 3º da Constituição Estadual. 13. Há, ainda, em matéria tributária, uma previsão específica do princípio da irretroatividade, estabelecida no artigo 150, inciso III, letra “a”, da Constituição Federal: “Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: (…) III – cobrar tributos: a) em relação ao fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado. (...)” 14. Em consonância com a Carta Magna Federal, dispõe a Constituição do Estado do Rio Grande do Norte: “Art. 95. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado ao Estado: (…) III - cobrar tributos: 1 Instituições de direito civil: v. I. 19ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 105. 4 a) em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado.” 15. Ressalte-se que o supracitado preceito da Constituição Estadual incide sobre a legislação dos Municípios não só pelo princípio da simetria que existe na atuação dos entes federativos, mas também, por força de disposição expressa da Carta Magna Potiguar, que determina a aplicação aos Municípios dos princípios do sistema tributário estadual: “Art. 99 (…) (…) § 5º A competência tributária dos Municípios é exercida com observância dos princípios gerais relativos ao sistema tributário estadual.” 16. Por força do princípio da irretroatividade, a lei tributária regula a hipótese de incidência em todos os seus aspectos (fato gerador, alíquota, base de cálculo, etc) em relação aos fatos ocorridos após a sua vigência, não se admitindo a sua aplicação aos fatos anteriores. 17. Sobre o tema assevera HUGO DE BRITO MACHADO: “Em princípio, o fato regula-se juridicamente pela lei em vigor na época de sua ocorrência. Esta é a regra geral do denominado direito intertemporal. A lei incide sobre o fato que, concretizando sua hipótese de incidência, acontece durante o tempo em que é vigente. Surgindo uma lei nova para regular fatos do mesmo tipo, ainda, assim, aqueles fatos acontecidos durante a vigência da lei anterior foram por elas qualificados juridicamente e a eles, portanto, aplica-se a lei antiga.”2 18. Aplicando o princípio da irretroatividade tributária decidiu o Supremo Tribunal Federal: “CONTRIBUIÇÃO SOCIAL SOBRE O LUCRO DAS PESSOAS JURIDICAS. LEI 7689/88. - NÃO E INCONSTITUCIONAL A 2 Curso de direito tributário. 14ª ed., São Paulo: Malheiros, 1998, p. 72. 5 INSTITUIÇÃO DA CONTRIBUIÇÃO SOCIAL SOBRE O LUCRO DAS PESSOAS JURIDICAS, CUJA NATUREZA E TRIBUTARIA. CONSTITUCIONALIDADE DOS ARTIGOS 1., 2. E 3. DA LEI 7689/88. REFUTAÇÃO DOS DIFERENTES ARGUMENTOS COM QUE SE PRETENDE SUSTENTAR A INCONSTITUCIONALIDADE DESSES DISPOSITIVOS LEGAIS. - AO DETERMINAR, PORÉM, O ARTIGO 8. DA LEI 7689/88 QUE A CONTRIBUIÇÃO EM CAUSA JÁ SERIA DEVIDA A PARTIR DO LUCRO APURADO NO PERÍODO-BASE A SER ENCERRADO EM 31 DE DEZEMBRO DE 1988, VIOLOU ELE O PRINCÍPIO DA IRRETROATIVIDADE CONTIDO NO ARTIGO 150, III, "A", DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, QUE PROÍBE QUE A LEI QUE INSTITUI TRIBUTO TENHA, COMO FATO GERADOR DESTE, FATO OCORRIDO ANTES DO INICIO DA VIGENCIA DELA. RECURSO EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO COM BASE NA LETRA "B" DO INCISO III DO ARTIGO 102 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, MAS A QUE SE NEGA PROVIMENTO PORQUE O MANDADO DE SEGURANÇA FOI CONCEDIDO PARA IMPEDIR A COBRANÇA DAS PARCELAS DA CONTRIBUIÇÃO SOCIAL CUJO FATO GERADOR SERIA O LUCRO APURADO NO PERIODO-BASE QUE SE ENCERROU EM 31 DE DEZEMBRO DE 1988. DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 8. DA LEI 7689/88.” (STF, Pleno, RE 146733/SP, Pleno, Rel. Min. Moreira Alves, 06/11/1992). (destaque nosso). 19. Embora os artigos 150, inciso III, letra “a”, da Constituição Federal, e 95, inciso III, letra “a”, da Constituição Estadual, refiram-se à cobrança de tributos, na verdade, o sentido da irretroatividade da lei tributária é bem mais amplo, compreendendo a vigência de qualquer norma que verse sobre tributos. Assim, uma interpretação teleológica do princípio da irretroatividade conduz ao entendimento de que, salvo as exceções previstas no Código Tributário Nacional, a lei que verse sobre quaisquer aspectos relacionados à tributação não pode produzir efeitos retroativos. 20. Tal entendimento é compartilhado por EDUARDO SABBAG: “Deve-se trazer a lume, desde já, que o legislador constituinte, ao 6 indicar o elemento verbal 'cobrar' (tributos), no inciso III do art. 150 do texto constitucional, parece não ter adotado criteriosa terminologia, uma vez que o princípio da irretroatividade tributária não diz com a 'cobrança de tributos', mas, por certo, com a vigência da lei tributária. Aliás, afirma-se com acerto, que a problemática da cobrança sucede à da vigência da norma. Por essa razão, o postulado em estudo, apegando-se à ideia de vigência, liga-se à fenomenologia do fato gerador.”3 21. Cumpre destacar que a situação em exame não se enquadra em nenhuma das hipóteses em que a lei tributária pode alcançar fatos pretéritos, conforme previsto no artigo 106, incisos I e II, do Código Tributário Nacional. 22. Embora a exigência de prévio processo administrativo para a lavratura de auto de infração após a suspensão da imunidade tributária, preconizada pela Lei Municipal nº 6.131/10, seja mais favorável ao contribuinte, não há como se cogitar da aplicação do disposto no artigo 106, inciso II, letra “c”, do Código Tributário Nacional, uma vez que aquele diploma legal não trata de penalidades, mas sim, de procedimento administrativo, não havendo, por conseguinte, possibilidade de alcançar fatos pretéritos. 23. Destarte, os efeitos retroativos da nova legislação permitidos pelo artigo 106 do Código Tributário Nacional se referem exclusivamente à penalidade, não compreendendo o próprio tributo, que não se confunde com aquela (artigo 3º do Código Tributário Nacional). 24. Nesse sentido é o escólio de EDUARDO SABBAG: “Trata-se de comando que se refere às infrações e às penalidades, e não ao tributo em si mesmo. O não pagamento do tributo não avoca a aplicação retroativa do art. 106 do CTN, caso sobrevenha, v.g., uma norma isentiva da exação tributária. (…) Nessa medida, o dispositivo protetor dá azo à retro-operância da lei mais branda, intitulada lex mitior, na esteira da retroatividade benéfica ou benigna em Direito Tributário, 3 Manual de direito tributário. 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 2010, p. 182. 7 exclusivamente para infrações.” (destaque nosso).4 25. A aplicação retroativa da Lei Municipal nº 6.131/10 tem o efeito prático de eximir as associações civis do pagamento do Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza – ISS em relação a fatos pretéritos caracterizadores do fato gerador do tributo, em conformidade com a legislação então vigente. Há, assim, por parte do Município de Natal, uma indevida renúncia do ISS devido por aquelas pessoas jurídicas, o que implica ofensa ao disposto no artigo 99, inciso IV, da Constituição Estadual: “Art. 99. Compete aos Municípios instituir impostos sobre: (…) IV - serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 98, I, “b”, definidos em lei complementar federal.” 26. Quando a Constituição Estadual diz que os Municípios têm competência para instituir o ISS, há, na verdade, uma determinação de que o mencionado tributo seja cobrado quando praticado o seu fato gerador, não havendo possibilidade da Fazenda Pública deixar de realizar a exação, por se tratar de direito indisponível, exercido por meio de atividade administrativa plenamente vinculada. Observe-se que, mesmo quando é concedida a isenção de determinado tributo, tal ato não produz efeitos retro-operantes, não podendo alcançar as situações já consolidadas ao tempo em que a exação era devida. Portanto, ao permitir que o Município de Natal deixe de cobrar o ISS devido pelas associações civis em relação a fatos anteriores à sua vigência, a Lei Municipal nº 6.131/10 infringiu o texto do artigo 99, inciso IV, da Carta Magna Estadual. 27. Desse modo, resta plenamente evidenciada a inconstitucionalidade da norma ora impugnada. III. DA MEDIDA CAUTELAR. 28. A concessão de medida liminar para a suspensão da vigência da Lei Municipal nº 6.131/10 até o julgamento da ação, torna-se imperiosa, eis que presentes os pressupostos ao seu deferimento, quais sejam, a relevância dos fundamentos jurídicos do pedido (fumus boni iuris) e o 4 Op. cit., p. 197. 8 periculum in mora. 29. A tese autoral já demonstrou fartamente o fumus boni iuris. 30. Quanto ao periculum in mora, resta evidente, pois o dispositivo legal ora impugnado, se não tiver seus efeitos suspensos, enseja a continuidade do desrespeito à Constituição do Estado do Rio Grande do Norte e da lesão aos cofres públicos do Município de Natal/RN, que fica impedido de cobrar ISS das associações civis que foram indevidamente beneficiadas pela imunidade tributária antes da Lei Municipal nº 6.131/10. Ou seja, ao considerar nulos os autos de infração legitimamente constituídos segundo a legislação então vigente, a referida norma pode ocasionar consideráveis prejuízos à arrecadação do Município de Natal, o que, em última instância, resulta em prejuízos para a toda a população, que é atingida pela menor disponibilidade de recursos para a prestação de serviços públicos. 31. Vale salientar, ainda, que a anulação dos autos de infração anteriores à Lei Municipal nº 6.131/10 enseja a possibilidade de que as associações que eventualmente tenham recolhido o tributo, venham a pleitear a restituição dos valores pagos, havendo, assim, prejuízos não só pela perda de arrecadação, mas também, pela geração de mais uma despesa para o já combalido erário do Município de Natal, que, como se sabe, enfrenta atualmente uma situação de desequilíbrio financeiro. 32. Sobejam, portanto, razões para a concessão da medida liminar, com o fito de suspender a vigência do § 5º do artigo 5º da Lei Municipal nº 6.131/10, até o julgamento do mérito desta ação direta de inconstitucionalidade. IV. DO PEDIDO. 33. Por todos os argumentos expostos, a Procuradora Geral de Justiça Adjunta que esta subscreve, REQUER: a) a concessão de liminar, suspendendo a vigência e a eficácia do § 5º do artigo 5º da Lei Municipal de Natal nº 6.131/10, com efeitos ex nunc; b) a citação de S. Ex.ª, a Srª. Prefeita Municipal de Natal/RN, para, querendo, prestar informações; 9 c) a citação da Câmara Municipal de Natal/RN, representada por S. Ex.ª, o seu Presidente, para, querendo, prestar informações; d) a citação do Procurador Geral do Estado, para, querendo, defender a legitimidade da norma impugnada, nos termos do § 3º do artigo 103 da Constituição Federal, em observância ao princípio da simetria; e) após, nova vista dos autos à Procuradoria Geral de Justiça, para ter oportunidade de se manifestar sobre o que for suscitado; f) ao final, que seja julgada procedente a presente ação direta, declarando-se inconstitucional o § 5º do artigo 5º da Lei Municipal de Natal nº 6.131/10, por ofensa aos artigos 3º, 95, inciso III, letra “a”, e 99, inciso IV, da Constituição Estadual. g) a isenção de pagamento de custas e demais despesas, por se tratar de demanda ajuizada pela Procuradora Geral de Justiça Adjunta. Pede deferimento. Natal/RN, 05 de abril de 2011. MILDRED MEDEIROS DE LUCENA Procuradora Geral de Justiça Adjunta 10