Universidade Técnica de Lisboa
Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas
Mestrado em Ciência Política – 1.º Ano do II Ciclo de Estudos
Ano Lectivo de 2009/2010
Entre as duas grandes correntes da teoria da democracia
Liberdade e democracia nas doutrinas anglo-saxónica e francesa
Teoria e Prática da Democracia
Professora Doutora Sandra Balão
Samuel de Paiva Pires
Estudante n.º 205119
Lisboa, 18 de Abril de 2010
1
Introdução
Considerando como ponto de partida a distinção entre duas grandes correntes
teóricas sobre a democracia, a anglo-saxónica e a francesa, é nosso objectivo aferir
sobre as diversas concepções que as diferenciam, especialmente através da
desconstrução da doutrina clássica, inspirada em Rousseau, recorrendo aos
ensinamentos de Karl Popper, Friedrich A. Hayek, Isaiah Berlin e Joseph A.
Schumpeter, tendo como questão de partida saber quais são os fundamentos e
diferenças de funcionamento entre as duas grandes correntes da democracia, anglosaxónica e francesa.
Como tal, considerando as diversas acepções dos conceitos de liberdade, ordem
social e limitação do poder político, pretendemos desconstruir a doutrina de Rousseau,
baseada no bem comum e na vontade geral, tendo em particular apreço a contribuição
de Schumpeter. Destes princípios rousseaunianos decorrem as ideias de soberania
popular, centralização, planeamento e intervenção do Estado, e da revolução como algo
essencialmente benéfico para os homens e para a sociedade. À ideia de liberdade
positiva, i.e, a intervenção para a transformação da sociedade, por exemplo, sob a
fórmula revolucionária, iremos opor a concepção de Berlin de liberdade negativa, ou
seja, liberdade como ausência de coerção por terceiros. Em relação à concepção de
planeamento centralizado, que leva à servidão e/ou escravidão do indivíduo perante o
Estado, ou seja, ordem social planeada ou organizada, iremos colocá-la em contraste
com o conceito de ordem social espontânea de Hayek. À ideia de soberania popular,
contraporemos a ideia de sociedade aberta e governo limitado de Popper.
Partindo de uma abordagem história às Revoluções Atlânticas e aos teóricos
destas, é nosso intuito articular de forma lógica os conceitos de governo limitado, ordem
social espontânea e liberdade negativa, demonstrando como a inequívoca relação entre
estes gera uma dinâmica que se encontra no âmago da tradição da democracia de cariz
anglo-saxónico, que entende a difusão de poder como o melhor garante da salvaguarda
da liberdade.
As Revoluções Atlânticas e os teóricos do liberalismo
As chamadas Revoluções Atlânticas – Inglesa (1688), Americana (1776) e
Francesa (1789) – encontram-se na origem daquilo que hoje denominamos por
2
democracia liberal. Na verdade, a democracia liberal e os diversos entendimentos
quanto a esta, podem dividir-se em duas grandes correntes, tendo como diferença
essencial a forma como encaram o conceito de liberdade, que se encontra no âmago do
liberalismo e em torno do qual existem complexas teorizações. Esta distinção permitenos considerar que, na realidade, não há apenas um liberalismo, mas vários, embora o
liberalismo constitua uma única tradição política1.
De um lado, os teóricos que inspiraram os revolucionários britânicos e norteamericanos, em especial John Locke e Montesquieu, respectivamente, convergem
quanto ao cepticismo em relação ao exercício do poder, apesar de encararem o governo
como um mal necessário, pelo que se preocupam essencialmente em arquitectar checks
and balances que actuem como forma de difusão do poder, salvaguardando a liberdade
individual da coerção por parte de terceiros, em especial do próprio Estado. Por outro
lado, os revolucionários franceses, especialmente os jacobinos, inspirando-se em JeanJacques Rousseau e nas noções de bem comum e vontade geral, preferiram subscrever a
ideia de soberania popular, em claro contraste com a ideia de governo limitado que é a
base da tradição anglo-americana.
Embora se atribua normalmente a origem da democracia ocidental, de cariz
liberal, apenas à Revolução Francesa, esta ideia é pouco exacta, como explica João
Carlos Espada: “Em primeiro lugar, porque antes da Revolução Francesa ocorrera a
Revolução Americana de 1776 e a Revolução Inglesa de 1688. Em segundo lugar,
porque as democracias mais antigas e duradouras inspiraram-se na experiência
americana e inglesa, não na francesa. Em terceiro lugar, porque o modelo francês
inspirou
sobretudo
experiências
radicais
não
propriamente
democráticas:
o
republicanismo radical da América Latina e da I República portuguesa (1910-1926),
bem como a revolução soviética de 1917”2.
Além do mais, embora as três visassem romper com o absolutismo monárquico e
o que comummente se designa por Ancien Régime, os seus objectivos e o tipo de
regime que propunham não era o mesmo. De acordo com Espada, “Nos casos inglês e
americano, tratava-se de restaurar um governo limitado, fundado no consentimento dos
1
Cfr. John Gray, Liberalism, 2.ª Edição, Minneapolis, The University of Minnesota Press, 1995, p. xiii.
Cfr. João Carlos Espada, “Dois conceitos de democracia” in i online, 30 de Maio de 2009. Disponível
em http://www.ionline.pt/conteudo/6601-madison-e-rousseau-dois-conceitos-democracia. Consultado em
22/11/2009.
2
3
eleitores. No caso francês, tratava-se de substituir o antigo absolutismo monárquico por
um novo absolutismo, popular e republicano”3.
A estas duas concepções corresponde o que se pode denominar por liberalismo
velho e liberalismo novo, ou liberalismo clássico e liberalismo contemporâneo,
respectivamente4.
O liberalismo clássico assenta nos ensinamentos de John Locke, Montesquieu,
David Hume, Adam Smith, Alexis de Tocqueville e, no século XX, em teóricos como
Hayek, Popper ou Berlin. Foi com John Locke, o teórico da Revolução Gloriosa, que,
pela primeira vez, os elementos centrais do liberalismo foram teorizados e articulados
de forma coerente. Ao nível da prática, segundo John Gray, o liberalismo inglês
compreendia um forte parlamentarismo sob a rule of law, i.e., o que normalmente
designamos por Estado de direito, contra o absolutismo monárquico, em conjunto com
uma enfática defesa da liberdade de associação e do conceito de propriedade privada, o
que dá corpo ao conceito de sociedade civil, “the society of free men, equal under the
rule of law, bound together by no common purpose but sharing a respect for each
other’s rights”5. Locke acreditava que esta era alcançável por todos os homens, sendo as
Revoluções Atlânticas formas de a alcançar e exemplos do combate ao absolutismo e à
arbitrariedade6.
Considerando Locke que o primeiro direito de propriedade é o direito de
propriedade pessoal, ou seja, a capacidade de podermos dispor de nós próprios, das
nossas capacidades e talentos – embora, para Locke, essa liberdade devesse enquadrarse na doutrina dos direitos naturais, enquanto criaturas de Deus –, há então uma relação
inegável entre o direito de propriedade pessoal e a liberdade individual. A característica
central e a mais importante contribuição de Locke para o liberalismo inglês é, sem
dúvida, a percepção clara de que a independência pessoal e a liberdade individual
pressupõem a propriedade privada, protegida pelo Estado de direito 7.
3
Cfr. Idem, ibidem.
Cfr. João Carlos Espada, “A tradição da liberdade e a sua memória: razão da sua importância” in João
Carlos Espada, Marc F. Plattner e Adam Wolfson, eds., Liberalismo: o Antigo e o Novo, Lisboa,
Imprensa de Ciências Sociais, 2001, p. 17.
5
Cfr. John Gray, ob. cit., p. 13.
6
Cfr. Idem, ibidem, p. 15.
7
Cfr. Idem, ibidem, p. 14.
4
4
Sendo um autor contratualista, à semelhança de Hobbes e de Rousseau, Locke
teoriza a passagem do estado de natureza ao estado de sociedade com base num pacto
social, a que os homens aderem renunciando ao “seu poder de executar a lei natural”,
visto que a “cláusula fundamental do pacto social está na renúncia ao direito de reprimir
as infracções à lei natural”, tendo ainda o pacto como característica essencial o
reconhecimento de um “poder de coacção, independente e superior, encarregado de
reprimir as violações da lei”, assim evitando que cada qual faça justiça pelas próprias
mãos, como é apanágio do estado de natureza8.
Ou seja, para remediar o estado de natureza, é necessário um acordo, pacto ou
contrato que crie primeiramente uma sociedade independente e, posteriormente, uma
associação civil ou governo. Importa realçar a ordem em que se dá a formação destes
dois elementos, pois só assim se torna claro que o poder é conferido aos governantes a
partir dos indivíduos, com o propósito de prosseguir os interesses dos governados – no
fundo, Locke introduz o que viria a ser teorizado como conceito de representatividade
política9.
Para Locke, a actividade política é um instrumento que visa criar um
enquadramento e condições de liberdade para que os fins privados de cada indivíduo
possam ser alcançados na sociedade civil. O governo é um mal que os indivíduos têm
de suportar para assegurar que isto seja possível, e o pacto que leva à sua criação torna
os indivíduos em cidadãos e confere-lhes liberdade e responsabilidade, direitos e
deveres, poderes e constrangimentos. Sendo os indivíduos, em última análise, os
melhores juízes dos seus próprios interesses, as áreas de actuação do governo têm que
ser restritas e o exercício do poder constrangido, para permitir o maior grau de liberdade
possível a cada cidadão10. Esta é também uma característica central na distinção entre os
dois liberalismos.
Para além de articular as concepções de liberdade, sociedade civil, justiça e
Estado de direito, Locke dá às instituições liberais as suas bases técnicas, esboçando os
modernos regimes contemporâneos, ou seja, a monarquia constitucional, o
8
Cfr. Marcel Prélot e Georges Lescuyer, História das Ideias Políticas, Vol. 2, Lisboa, Editorial Presença,
2000, p. 39.
9
Cfr. David Held, Models of Democracy, Cambridge, Polity Press, 2008, p. 63.
10
Cfr. Idem, ibidem, p. 64-65.
5
parlamentarismo e o presidencialismo11. Feroz inimigo de qualquer dominação absoluta,
introduz o princípio da separação de poderes, ou melhor, teoriza com maior rigor aquilo
que já Aristóteles havia distinguido – a deliberação, o mando e a justiça. Para Locke, há
três domínios de acção: “o da lei, a disposição geral; o da aplicação da lei pela
administração e pela justiça; e (..) o das relações internacionais, o poder «federativo»”12.
Além do mais, é necessário que não sejam os mesmos indivíduos a elaborar e
executar as leis. Ao parlamento caberá o poder legislativo e a outras instituições o poder
executivo. Finalmente, a separação em três poderes reverte, na prática, a dois, já que o
federativo se junta ao executivo, no que concerne à condução das relações externas13.
Convém, no entanto, notar que apesar de Locke ser considerado um precursor da
democracia liberal, esboçando muitos dos aspectos que se viriam a tornar centrais nesta,
como sejam os direitos individuais, a soberania popular, a regra da maioria, a separação
de poderes, a monarquia constitucional e a representatividade por via de um sistema de
governo parlamentarista, estas ideias se encontram no seu pensamento de forma ainda
algo rudimentar14.
Vai ser Montesquieu quem desenvolve algumas das inovadoras ideias
introduzidas por Locke. Charles-Louis de Secondat, baron de La Brède et de
Montesquieu, considera-se discípulo de Locke e do constitucionalismo britânico, mas
também sucessor do tradicionalismo aristocrático. Para Prélot e Lescuyer, sendo um
agregador destas duas confluências, Montesquieu é “talvez o mais temível adversário do
absolutismo, porque é o mais realista. A melhor maneira de enfraquecer o poder, no
interesse da liberdade individual, não é transferi-lo (como depois proporá Rousseau),
mas partilhá-lo”15.
Esta partilha de poder dá-se por duas vias, ou num sentido vertical ou num
sentido horizontal. Na primeira acepção, criam-se corpos intermédios entre governantes
e governados, ao passo que, na última, separa-se o poder em três diferentes poderes, o
legislativo, o executivo e o judicial – este último introduzido por Montesquieu –, que
11
Cfr. Marcel Prélot e Georges Lescuyer, ob. cit., p. 42.
Cfr. Idem, ibidem, p. 43.
13
Cfr. Idem, ibidem, p. 43.
14
Cfr. David Held, ob. cit., p. 65.
15
Cfr. Marcel Prélot e Georges Lescuyer, ob. cit., p. 44.
12
6
criam um sistema de checks and balances, ou seja, servem de peso e contrapeso entre si,
complementando-se mas vigiando-se e fiscalizando-se mutuamente16.
Embora a sua interpretação da constituição Inglesa, que considerava como um
espelho da liberdade, tenha sido alvo de muito criticismo, não impediu que a sua obraprima, O Espírito das Leis, alcançasse rapidamente um sucesso retumbante, tendo tido
uma grande influência no pensamento dos Founding Fathers dos EUA.
Montesquieu preocupou-se essencialmente em responder à questão sobre como
garantir um governo representativo que assegure a liberdade e minimize a corrupção e
os monopólios advindos de privilégios inaceitáveis. A sua resposta vai no sentido de um
Estado constitucional, que mantenha a lei e a ordem, como forma de assegurar os
direitos dos indivíduos17, recaindo a sua preferência, naturalmente, sobre o sistema da
monarquia constitucional britânica. Relacionando o governo monárquico com um
sistema de checks and balances, segundo David Held, acabou por rearticular as
preocupações republicanas e liberais sobre o problema de unir os interesses privados e o
bem público, arquitectando institucionalmente a forma como estes interesses se devem
relacionar sem sacrificar a liberdade da comunidade18.
Para Montesquieu, o Estado deve organizar-se de forma representativa, ou seja,
deve formar-se um regime misto onde monarquia, aristocracia e povo se encontrem
representados. E, partindo da sua famosa citação de que “every man invested with
power is apt to abuse it, and to carry his authority as far as it will go”19, reforçou o
princípio da separação de poderes, argumentando que a liberdade só pode ser
assegurada através de uma cuidadosa e equilibrada separação institucional de poderes
dentro do Estado. Esta institucionalização visa, por um lado, impedir a centralização de
poder, e, por outro, despersonalizar o exercício do poder político20.
A grande contribuição de Montesquieu para a teoria e prática da democracia
advém precisamente de uma concepção bastante realista da natureza humana e da forma
como esta influencia a política. Alicerça-se na ideia de que os indivíduos são
ambiciosos e colocam os seus interesses privados em primeiro lugar nas suas
16
Cfr. Idem, ibidem, p. 44.
Cfr. David Held, ob. cit., p. 65-66.
18
Cfr. Idem, ibidem, p. 67.
19
Cfr. Montesquieu, The Spirit of Laws, Chicago, William Benton, 1952, p. 69 apud David Held, ob cit.,
p. 67.
20
Cfr. David Held, ob. cit., p. 68.
17
7
respectivas escalas de valores, pelo que só as instituições criadas cuidadosamente
podem converter esta ambição em efectivas boas práticas de governação.
Institucionalizando a separação de poderes e criando formas para que os diferentes
grupos se manifestem e confrontem – precedendo o que Raymond Aron teorizaria como
institucionalização do conflito – Montesquieu originou um arranjo político que viria a
ser extremamente valorizado pela Modernidade: a divisão entre as esferas pública e
privada da vida em sociedade21.
É após Locke e Montesquieu darem corpo aos princípios que guiaram a
Revolução Gloriosa e a Revolução Americana que surge Jean-Jacques Rousseau, um
dos pensadores mais revolucionários de todos os tempos, em quem os jacobinos se
inspirariam. Teorizando aquilo que Schumpeter considera a doutrina clássica da
democracia22, assente nas noções de bem comum e vontade geral, o auto-intitulado
cidadão de Genebra, acabaria, na realidade, por inspirar Marx e os seus sucedâneos, ao
criticar violentamente o liberalismo do qual não tinha qualquer experiência real –
faleceu em 1778, ainda em pleno Ancien Régime, e nunca esteve em Inglaterra23.
Na sua obra mais famosa, O Contrato Social, considera que no estado de
natureza os seres humanos eram fundamentalmente iguais, e que só com o
desenvolvimento da sociedade e do governo civil se fomentam as desigualdades. No
entender de Rousseau, a sociedade civil surge como “um mal inevitável criador de um
regime artificial de desigualdades, ao colocar os homens na mútua dependência,
contrária aos princípios naturais do seu modo de ser”, como assinala José Adelino
Maltez24.
Também ele contratualista, a sua preocupação central foi “encontrar uma forma
de associação que defenda e proteja com toda a força comum a pessoa e os bens de cada
associado e pela qual cada um, unindo-se a todos, não obedeça, contudo, senão a si
mesmo e permaneça tão livre como antes”25. O contrato social foi a resposta encontrada.
21
Cfr. Idem, ibidem, p. 69.
Cfr. Joseph A. Schumpeter, Capitalism, Socialism and Democracy, Nova Iorque, Harper Perennial,
2008, pp. 250-268.
23
Cfr. Clifford Orwin, “Rousseau entre dois liberalismos: a Sua crítica do antigo liberalismo e o Seu
contributo para o liberalismo mais recente”, in João Carlos Espada, Marc F. Plattner e Adam Wolfson,
orgs., Liberalismo: o Antigo e o Novo, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2001, p.72.
24
Cfr. José Adelino Maltez, Princípios de Ciência Política – Introdução à Teoria Política, 2.ª Edição,
Lisboa, ISCSP, 1996, p. 294.
25
Cfr. Jean-Jacques Rousseau, O Contrato Social, Mem Martins, Publicações Europa-América, 2003, p.
23.
22
8
Este não assentaria na força, ou em qualquer autoridade paternal ou divinal, mas sim
num livre compromisso por parte de quem se obriga. Seria “um pacto duma espécie
particular, pelo qual cada um se compromete com todos os outros; donde se segue o
compromisso recíproco de todos para com cada um, que é o objecto imediato da
reunião”26.
Ao abrigo deste contrato, que não tem verificação histórica, sendo apenas um
“tipo-ideal de constituição política (…) os indivíduos conferem ao Estado os seus
direitos naturais, para que este os transforme em direitos civis, que concede aos
cidadãos”27. Mas o grande dilema que atormentava Rousseau, partindo da sua
concepção de liberdade como a mais sagrada das virtudes do homem, era precisamente
a interrogação sobre como permanecer tão livre no estado de sociedade quanto no
estado de natureza. E para responder a esta questão, vai considerar a liberdade
individual como participação no processo de tomada de decisões em iguais condições,
sendo a apoteose da tentativa republicana de relacionar a liberdade com a participação
directa na vida pública28. Entregando-se cada indivíduo a todos os outros, não se
entregará a ninguém, e assim será livre29. É a partir desta resposta que se gera a
soberania colectiva assente no bem comum e na vontade geral. O cidadão tem de criar e
ligar-se à vontade geral, a concepção publicamente generalizada de bem comum. E
havendo diferentes opiniões quanto ao que será o bem comum, os votos da maioria
vinculam os restantes30.
Importa destrinçar entre vontade geral e vontade de todos. Para Rousseau, a
“vontade geral é sempre recta e tende sempre para a utilidade pública”, sendo a “que
não olha a outra coisa que não seja o bem comum”, enquanto a vontade de todos apenas
“olha ao interesse privado e não é mais do que uma soma de vontades particulares”31.
Desta forma, os cidadãos são apenas obrigados a obedecer a um sistema de leis sobre o
qual tenham chegado a um acordo, não podendo ser coagidos a obedecer a leis que não
26
Cfr. Jean-Jacques Rousseau, Lettres Écrites de la Montagne, sexta carta, in Écrits Politiques, p. 91.
apud José Adelino Maltez, ob. cit., p. 295.
27
Cfr. José Adelino Maltez, ob. cit., p. 295.
28
Cfr. David Held, ob. cit., p. 47.
29
Cfr. João Carlos Espada, “Liberdade como dispersão e equilíbrio de poderes” in i online, 25 de Julho de
2009. Disponível em http://www.ionline.pt/conteudo/15012-liberdade-como-dispersao-e-equilibriopoderes. Consultado em 22/11/2009.
30
Cfr. David Held, ob. cit., p. 46.
31
Cfr. Jean-Jacques Rousseau, O Contrato Social, ob. cit., p. 35.
9
tenham prescrito para eles próprios de acordo com o bem comum32. Logo, “it is freely
chosen obligation, accepted by the citizen body acting as a whole with the well-being of
the community in mind, which constitutes the basis of political right”33.
Este corpo de cidadãos, agindo como um todo, terá apenas uma única vontade,
sempre em estrita relação com o bem comum, assim gerando a vontade geral. Como
coloca Rousseau, “enquanto vários homens reunidos se consideram como um corpo
único, eles têm uma única vontade, relativa à conservação comum e ao bem-estar geral.
Então, todos os mecanismos do Estado são rigorosos e simples, as suas ideias mestras
são claras e luminosas, não há interesses duvidosos ou contraditórios, o bem comum
aparece sempre com evidência e não é necessário mais do que simples bom senso para o
apreender”34.
É desta forma que, segundo Eric Weil, Rousseau “descobre o conceito moderno
de razão como unidade de teoria e de acção, de pensamento e de moral, de consciência
individual e de lei universal35”, ao considerar que os homens são racionais e que a
vontade geral será sempre deduzida racionalmente, por mero bom senso, a partir do
momento em que todos os indivíduos se entregam à comunidade, livremente, passando
a constituir um corpo político, mantendo a sua liberdade intocada porque participam no
processo que conduz à produção da vontade geral, como iguais. Ou seja, como nota
Isaiah Berlin, ao entregarmo-nos à comunidade no seu todo, não poderemos deixar de
ser livres, porque nenhum indivíduo ou instituição nos força mas, tão simplesmente, o
Estado, entidade que para Rousseau somos nós e todos os outros nossos semelhantes,
apenas procurando concretizar o bem comum, pelo que, na sua lógica, ninguém nos
força a não sermos nós próprios36.
Assim, os indivíduos permanecem livres, ao submeterem-se “a algo que somos
nós próprios e, contudo é maior que nós – o todo, a comunidade”37, que procura o bem
comum através de uma vontade racional que institui o Estado como forma de
organização social do poder político, sendo este uma entidade abstracta e colectiva, que
tem como instrumento o Governo, i.e., “um corpo intermédio estabelecido entre os
32
Cfr. David Held, ob. cit., p 46.
Cfr. Idem, ibidem, p. 46.
34
Cfr. Jean-Jacques Rousseau, ob. cit., p. 104.
35
Cfr. Eric Weil, “Rousseau et sa Politique”, in Essais et Conférences, Paris, Plon, 1971, p. 115 apud
José Adelino Maltez, ob. cit., p. 297.
36
Cfr. Isaiah Berlin, Rousseau e Outros Cinco Inimigos da Liberdade, Lisboa, Gradiva, 2005, p. 69.
37
Cfr. Idem, ibidem, p. 69.
33
10
sujeitos e o soberano por mútua correspondência, encarregado da execução das leis e da
manutenção da liberdade, tanto civil como política”38, que resulta de um acto do povo
enquanto soberano39.
No que concerne a este exercício do poder derivado da vontade geral, Rousseau
não coloca quaisquer constrangimentos. Reduzindo-se as cláusulas do contrato social “à
alienação total de cada associado com todos os seus direitos a toda a comunidade, (…) o
contrato social dá ao corpo político um poder absoluto sobre todos os seus membros”40.
E não só, como já referimos, as minorias têm de se conformar às decisões da maioria,
como não há limites ao alcance destas decisões. David Held evidencia naturalmente que
Rousseau falha em reflectir adequadamente sobre as ameaças que o poder público
coloca à vida privada41.
Para finalizar esta primeira parte, importa ainda realçar o entendimento de
Rousseau quanto à relação entre independência, liberdade, igualdade e direito de
propriedade. Desde logo, considera que independência e liberdade excluem-se
mutuamente, já que independência compreende a procura por realizar interesses
pessoais sem considerar a posição e a vontade de outros, ao passo que a liberdade, por
outro lado, consiste em participar na produção e emanação da vontade geral, que
estabelece a igualdade entre todos os cidadãos, que têm os mesmos direitos. Estes
direitos só podem ser salvaguardados se não houverem grandes desigualdades em
termos de riqueza e poder. Embora Rousseau considere o direito de propriedade como
sagrado, entende-o apenas como forma de limitar a desigualdade, ou seja, limita a
propriedade de um indivíduo ao estritamente necessário para garantir a sua segurança
material e independência de espírito42. Livres da dependência económica, os cidadãos
podem formular juízos autónomos sem qualquer risco, o que só é garantido por uma
larga similitude de condições económicas, que possa prevenir que grandes diferenças
em termos de interesses se transformem em disputas entre facções organizadas,
destruindo o conceito de vontade geral43.
38
Cfr. Jean-Jacques Rousseau, ob. cit., p. 62.
Cfr Idem, ibidem, p. 100.
40
Cfr. José Adelino Maltez, ob. cit., p. 297.
41
Cfr. David Held, ob. cit., p. 49.
42
Cfr. Idem, ibidem, p. 47.
43
Cfr. Idem, ibidem, p. 47.
39
11
As Revoluções Atlânticas, em especial a Francesa, constituem, de facto, o marco
que simboliza a transição entre o que comummente designamos por Antiguidade e
Modernidade. Embora a literatura só a posteriori tenha cunhado o termo absolutismo,
para designar o poder exercido no Ancien Régime, há uma ruptura quanto à forma como
o exercício do poder é encarado, de que estes três teóricos serão, porventura, a face mais
visível, já que as suas ideias vão servir de base a grande parte dos desenvolvimentos da
teoria política que se verificarão nos séculos XIX e XX.
Na realidade, as concepções quanto ao conceito de liberdade, organização social
e exercício do poder advindas das Revoluções Atlânticas, serão alvo de ampla
teorização e servirão como justificação para legitimar determinadas experiências
políticas, inclusivamente até opostas entre si. Desde logo porque o sucedâneo de
Rousseau e daquilo que idealizou como democracia directa, a partir da sua experiência
na cidade de Genebra, vai inspirar Karl Marx, cujos ensinamentos vão servir de base aos
revolucionários bolchevistas de 1917 e à experiência do comunismo. Por outro lado, a
corrente anglo-saxónica vai continuar na senda da liberdade como ausência de coerção
por terceiros, da democracia representativa e liberal, opondo-se veementemente às
experiências totalitárias.
Atendendo aos considerandos introdutórios ao nosso ensaio, vejamos então
como são encarados os conceitos de liberdade, ordem social e de limitação do poder, à
luz dos ensinamentos dos refundadores do liberalismo clássico no século XX.
Liberdade, ordem social e limitação do poder
Se o conceito de liberdade é, inegavelmente, um dos mais estudados no âmbito
da teoria política e da teoria e prática da democracia, já que é, naturalmente, uma das
virtudes a que os indivíduos mais aspiram, é também um daqueles conceitos cujos
entendimentos servem para provar tudo e o seu contrário. Elemento central na
teorização de Rousseau ou de Marx, serviria precisamente para levar os homens no
sentido oposto, i.e., no sentido da servidão e da escravidão. Berlin demonstra, aliás, que
Rousseau foi o maior inimigo da liberdade, como veremos. Na verdade, nos nossos
tempos, provavelmente ninguém melhor do que Isaiah Berlin sistematizou e clarificou
de forma tão magistral o conceito.
12
Desde logo, Berlin faz corresponder a concepção de liberdade rousseauniana a
um revivalismo da liberdade na democracia da Antiguidade Clássica, dos gregos, em
que ser-se livre implica necessariamente participar no governo da polis. Nesta acepção,
ser livre significava que “o governo e as leis pudessem referir-se a todas as esferas da
existência. O homem não estava livre, nem queria está-lo, da consequente supervisão”44.
Com a Modernidade, surge uma ideia nova, a distinção entre as esferas da vida pública
e privada, inicialmente formulada por Montesquieu, e clarificada por Benjamin
Constant45.
Parece-nos assim que, paradoxalmente, ao chamado liberalismo clássico
corresponde uma nova concepção de liberdade, enquanto que o suposto liberalismo
novo será um revivalismo de uma mais antiga tradição de liberdade. Grosso modo, a um
corresponde a democracia representativa, enquanto a outro corresponde a democracia
directa. Em termos de conceptualização quanto à liberdade, correspondem à liberdade
negativa e à liberdade positiva, respectivamente.
É Berlin quem sistematiza a distinção, no seu clássico ensaio intitulado “Two
Concepts of Liberty”46. Começa por distinguir entre duas questões, às quais os dois
tipos de liberdade pretendem dar resposta. Enquanto a liberdade negativa questiona
“What is the area within which the subject – a person or group of persons – is or should
be left to do or be what he is able to do or be, without interference by other persons?”47,
a liberdade positiva tenta responder a “What, or who, is the source of control or
interference that can determine someone to do, or be, this rather than that?”48.
Na acepção negativa, a liberdade é a área na qual qualquer indivíduo ou
instituição não interfere com a nossa actividade. Liberdade política é, assim, a área na
qual nenhum indivíduo pode ser obstruído por outros. Se ocorrer qualquer interferência
por parte de terceiros nessa área, ou seja, se formos impedidos de fazer algo que
normalmente estaria ao nosso alcance, então poderemos estar a ser coagidos ou até
mesmo escravizados. Realce-se, no entanto, que a nossa liberdade só é afectada se
ocorrer uma interferência por parte de terceiros. A simples incapacidade, da nossa parte,
44
Cfr. Isaiah Berlin, O Poder das Ideias, Lisboa, Relógio D’Água Editores, 2006, p. 153.
Cfr. Idem, ibidem, p. 153.
46
Cfr. Isaiah Berlin, “Two concepts of Liberty” in Isaiah Berlin, Four Essays on Liberty, Oxford, Oxford
University Press, 1969. Disponível online em
http://www.nyu.edu/projects/nissenbaum/papers/twoconcepts.pdf. Consultado em 09/11/09.
47
Cfr. Idem, ibidem, p. 3.
48
Cfr. Idem, ibidem, p. 3.
45
13
para alcançar um determinado objectivo, não se pode constituir como falta de liberdade
política. Assim, sendo a “diminuição da liberdade do sujeito (…) directamente
equacionada com a interferência de terceiros”49, conclui-se que “the wider the area of
non-interference the wider my freedom”50.
É esta acepção de liberdade que está na base da corrente democrática anglosaxónica. Entende-se que existem duas esferas distintas, uma pública e outra privada,
entre as quais deve ser demarcada uma fronteira, permanecendo inviolável uma certa
área mínima de liberdade individual que nos permita prosseguir e conceber diversos fins
como nos aprouver. No entanto, ao demarcarmos essa fronteira, estamos na realidade a
constranger a liberdade, a sacrificar uma porção desta para preservar o resto, já que “we
cannot remain absolutely free, and must give up some of our liberty to preserve the
rest”51 – o que Rousseau se recusa a fazer e o levará à escravizante abstracção a que já
aludimos – já que não podemos ter tudo, e por isso é necessário que haja um pluralismo
que sirva de equilíbrio aos diversos valores que os indivíduos desejem prosseguir52.
Berlin faz notar claramente que liberdade é liberdade, não é igualdade, justiça,
cultura ou felicidade53. Sempre que se restringe a liberdade em prol de qualquer outra
ideia, mesmo que seja algo considerado moralmente bom, como seja a segurança ou
paz, ou para corrigir qualquer desigualdade, injustiça ou imoralidade, está-se, de facto, a
coagir e a interferir na área de liberdade individual, mesmo quando se justifica esta
restrição com a eventualidade de virmos a ter maior liberdade a posteriori54. E embora a
definição sobre o que constitui essa área mínima seja passível de discussão, o que
resulta deste entendimento é que a liberdade negativa é a liberdade de, a ausência de
interferência por parte da sociedade na esfera da nossa liberdade pessoal55. Em resumo,
João Carlos Espada diz-nos que “em termos políticos, o ideal da liberdade negativa
supõe a existência de um Estado limitado, que respeita a esfera privada das decisões
49
José Castello Branco, “Isaiah Berlin: Da Liberdade Negativa à Sociedade Decente” in João Carlos
Espada e João Cardoso Rosas, orgs., Pensamento Político Contemporâneo – Uma Introdução, Lisboa,
Bertrand, 2004, p. 63.
50
Cfr. Isaiah Berlin, “Two concepts of Liberty”, ob. cit., p. 3.
51
Cfr. Idem, ibidem, p. 5.
52
Cfr. João Carlos Espada, , “Isaiah Berlin: Liberdade e Pluralismo” in i online, 11 de Julho de 2009.
Disponível em http://www.ionline.pt/conteudo/12722-isaiah-berlin-liberdade-e-pluralismo. Consultado
em 22/11/2009.
53
Cfr. Idem, ibidem, p. 5.
54
Cfr. Isaiah Berlin, “Liberty”, in Henry Hardy, ed., Liberty, Oxford, Oxford University Press, 2002, p.
285 apud José Castello Branco, ob. cit., p. 66.
55
Cfr. Isaiah Berlin, “Two concepts of Liberty”, ob. cit., p. 5.
14
pessoais, e cujo principal objectivo é garantir que a liberdade de uns não interfere na
liberdade de outros”56.
Enquanto a liberdade negativa se preocupa com a extensão da interferência do
governo na esfera de liberdade pessoal, a liberdade positiva, por seu lado, preocupa-se
em determinar quem governa e determina o que se pode ou não fazer, sendo, portanto a
liberdade para – para prosseguir uma determinada prescrição ou ideal do que deve ser a
vida.
A liberdade positiva parte de uma concepção Iluminista de libertação pela razão,
isto é, de que o indivíduo pode dominar as suas paixões, não ser escravo delas, de forma
racional; no fundo, que pode ser o seu próprio mestre, que todas as decisões sobre a sua
vida dependam apenas dele próprio e não de quaisquer forças externas. À primeira vista,
os dois entendimentos podem até nem parecer divergentes, mas historicamente
desenvolveram-se em direcções opostas e conflituais. A liberdade positiva vai associar a
liberdade à razão, tendendo a “perspectivar a liberdade como autoconhecimento, como
autodomínio, como autocontrolo. Agir livremente é agir de acordo com a razão”57.
Há, desta forma, uma bifurcação do eu, entre o eu autónomo, racional, e,
portanto, livre, e o eu irracional, com desejos incontrolados, que procura apenas o
prazer imediato. Aquele que é verdadeiramente livre é o que se conseguiu libertar por
via da razão, tendo controlo total sobre si próprio, constituindo-se como o eu
verdadeiro. Acresce que este eu verdadeiro pode ser conceptualizado em termos sociais,
isto é, pode ser uma qualquer entidade que sendo identificada “as being the true self
which, by imposing its collective, or organic, single will upon its recalcitrant members,
achieves its own, and therefore their, higher freedom”58.
Este raciocínio permite que se justifique a coerção aos indivíduos, em nome de
um qualquer objectivo, que eles próprios prosseguiriam se fossem mais racionais e
iluminados. Permite que possamos coagir os outros com base na ideia de que sabemos o
que é melhor para eles, e que, no fundo, o seu verdadeiro eu, racional e que se encontra
latente, também sabe. Partindo desta concepção, “I am in a position o ignore the actual
wishes of men or societies, to bully, oppress torture them in the name, and on behalf, of
56
Cfr. João Carlos Espada, , “Isaiah Berlin: Liberdade e Pluralismo”, ob. cit.
Cfr. José Castello Branco, ob. cit., p. 70.
58
Cfr. Isaiah Berlin, ob cit., p. 9.
57
15
their real selves, in the secure knowledge that whatever is the true goal of man
(happiness, performance of duty, wisdom, a just society, self-fulfilment) must be
identical with his freedom – the free choice of his true, albeit often submerged and
inarticulate , self”59.
Berlin vai teorizar sobre o confronto entre estas duas perspectivas e a forma
como a vida em sociedade deve decorrer em função destas, argumentando em favor da
liberdade negativa como um ideal pluralista, que tem como objectivo a gestão de
equilíbrios entre valores diversos, quando não mesmo conflituais. Tendo a liberdade
negativa que ser contrabalançada por outros valores, chega-se a uma concepção
moderada e equilibrada da vivência em sociedade, em que não podendo a liberdade em
si ser um fim ou valor último, não deixa de ser “a condição mais básica à vida
humana”60.
Ao mesmo tempo que consolida o conceito de liberdade negativa, Berlin vai
desconstruir a liberdade positiva, atacando as construções “racionalistas, monistas e
dogmáticas”, opondo-se à “libertação pela razão”, e a qualquer opressão e repressão que
um sistema racionalista possa colocar à liberdade individual61.
Considerando que, tal como acima referimos, a vivência em sociedade deve
fazer-se por uma gestão equilibrada de reivindicações e compromissos, em que as
prioridades estabelecidas não devem ser finais ou absolutas, é em “The Pursuit of the
Ideal” que Berlin afirmará que “o melhor que se pode fazer, como regra geral, é manter
um equilíbrio precário que previna a ocorrência de situações desesperadas, de escolhas
intoleráveis – é este o primeiro requisito para uma sociedade decente; uma pela qual
podemos sempre lutar, à luz do leque limitado do nosso conhecimento, e até mesmo do
nosso entendimento imperfeito dos indivíduos e das sociedades. Uma certa humildade
nestas matérias é muito necessária”62.
Este reconhecimento dos limites ao conhecimento serve de base a um princípio
basilar do pensamento de Hayek e à teorização em torno dos dois tipos de organização
59
Cfr. Idem, ibidem, p. 78.
Cfr. José Castello Branco, ob. cit., p. 78.
61
Cfr. Idem, ibidem, pp. 76-77.
62
Cfr. Isaiah Berlin, “The Pursuit of the Ideal”, in Henry Hardy, ed., The Crooked Timber of Humanity:
Chapters in the History of Ideas, Londres, Fontana Press, 1991, p. 18 apud José Castello Branco, ob. cit.,
p. 80.
60
16
social. Este princípio é a ideia da ignorância constitutiva do ser humano63. Partindo das
acepções sobre a psique humana, que foram, durante algum tempo, o seu campo de
estudo, Hayek argumenta que não é possível explicar “em temos determinísticos, por
meio de relações causa-efeito, uma série de fenómenos do mundo que nos rodeia,
natural e social”64.
A meteorologia, a linguagem ou o funcionamento do mercado, por exemplo, são
fenómenos demasiado complexos, que só podem ser explicados por via de
generalizações, ou seja, explicações de princípio. Estas explicações não são leis causais,
como as explicações de fenómenos simples – os estudados pelas ciências naturais.
Sendo generalizações, pretendem explicar em termos gerais, ordenando diversos
elementos. É a partir daqui que deriva a sua concepção de ordem, que, no que diz
respeito à organização das diversas áreas da vida em sociedade, se divide em dois tiposideais: a ordem de organização e a ordem espontânea.
Embora estes dois tipos de ordem coexistam, os seus princípios não são os
mesmos65. A ordem de organização, também denominada por made order, corresponde
a um arranjo, uma estrutura que visa impor aos indivíduos determinados
comportamentos, com vista a alcançar certos fins, podendo ser esta estrutura descrita
como “a construction, an artificial order or, especially where we have to deal with a
directed social order, as an organization”66.
A ordem espontânea, ou grown order, surge a partir da auto-organização dos
elementos que a compõem, que obedecem a regras comuns, sem ter um determinado
objectivo em vista. É o caso do funcionamento do mercado ou da sociedade, que são
produtos da interacção entre milhões de indivíduos ao longo do tempo, sendo, portanto,
uma ordem endógena, que não é criada deliberadamente, até porque, segundo o
princípio da ignorância constitutiva, “its degree of complexity is not limited to what a
human mind can master”.67
63
Cfr. Manuel Fontaine Campos, “ Friedrich A. Hayek: Liberdade e Ordem Espontânea”, in João Carlos
Espada e João Cardoso Rosas, Pensamento Político Contemporâneo – Uma Introdução, Lisboa, Bertrand,
2004, p. 34.
64
Cfr. Idem, ibidem, p. 34.
65
Cfr. F. A. Hayek, Law, Legislation and Liberty, London, Routledge, 1993, p. 48.
66
Cfr. Idem, ibidem, p. 37.
67
Cfr. Idem, ibidem, p. 38.
17
Esta distinção, no entanto, só permite explicar o funcionamento destes
fenómenos, e não a sua origem. Para tal, Hayek faz corresponder à ordem espontânea o
evolucionismo, e à ordem de organização o construtivismo. Para o construtivismo, as
instituições foram desenhadas por um indivíduo ou conjunto de indivíduos, tendo
propósitos bem definidos, podendo, pelo facto de serem construções sociais, ser
completamente redesenhadas de acordo com outros princípios que se achem
apropriados68.
Sendo esta visão absurda, visto que são fenómenos demasiado complexos, não
podemos deixar de constatar a tentativa de colocar em prática utopias que obedeceram a
estes princípios, não compreendendo que tais fenómenos resultam de ordens
espontâneas, fruto da já referida interacção entre milhões de seres humanos ao longo do
tempo, chegando até nós através de processos de competição e selecção, e em resultado
de terem permitido “aos grupos humanos onde surgiram sobreviver e prosperar”69. Tal
não significa que existam instituições perfeitas, já que a evolução é contínua e depende
das circunstâncias que se vão alterando ao longo da História.
Hayek foi um dos grandes intelectuais do século XX, responsável pela denúncia
intelectual e moral do comunismo, no qual via uma ordem de organização que castrava
a liberdade dos indivíduos. Esta, só pode ser assegurada por uma sociedade liberal
assente nos princípios da economia de mercado e da liberdade individual. Este tipo de
sociedade é o único que proporciona aos indivíduos a “maximização da possibilidade de
cumprimento do maior número de fins individuais”, dependente apenas da capacidade
de cada um de “poder utilizar os seus conhecimentos na prossecução dos seus próprios
fins”70.
Naturalmente, disto decorre que é necessária a minimização da coerção, em que
“o Estado só deve utilizar a força quando tal seja necessário para evitar que os
indivíduos se coajam uns aos outros”71. Assim, os fins não podem ser fixados
obrigatoriamente pelo Estado, pois isso leva à planificação económica centralizada e, no
fundo, à servidão e escravidão, de que os regimes comunistas foram exemplos
paradigmáticos. Ao apropriarem-se dos meios de produção, por via da colectivização, e
68
Cfr. Manuel Fontaine Campos, ob. cit., p. 35.
Cfr. Idem, ibidem, p. 36.
70
Cfr. Idem, ibidem, p. 37.
71
Cfr. Idem, ibidem, p. 37.
69
18
agindo de acordo com a ilusão de que seriam capazes de calcular todas as necessidades
humanas, pretendiam distribuir a propriedade em função de um padrão de justiça social.
O que é facto é que a ordem espontânea liberal e capitalista é muito mais produtiva e
eficiente, ao basear-se num sistema em que as decisões económicas são tomadas através
da interacção de diversos agentes. Cada agente toma as decisões económicas de acordo
com o conhecimento e informação que detém, sendo, por isso, os “conhecimentos de
cada indivíduo aproveitados ao máximo”72, o que não acontece em sistemas dirigistas,
já que a autoridade central não consegue aceder e processar todo o conhecimento e
informação disponível. Embora pareça um sistema desorganizado, o que acontece é que
há um efeito de organização espontânea, alcançado por via do mecanismo ou sistema de
preços, através do qual é transmitida a informação entre os agentes económicos.
Só através da liberdade económica que uma sociedade liberal assegura, em que
através do desenvolvimento das actividades económicas os indivíduos ganham a
capacidade de poder decidir sobre as suas vidas, é que pode haver liberdade política. Na
realidade, a liberdade individual assenta nestes dois tipos de liberdade que se
influenciam mutuamente, como assinala Hayek ao afirmar que “the subsequent
elaboration of a consistent argument in favor of economic freedom was the outcome of
a free growth of economic activity which had been undesigned and unforeseen byproduct of political freedom”73.
A propriedade privada é, assim, um elemento fundamental para alcançar a
liberdade individual, tal como Locke já havia teorizado, e como Gray assinala ao
considerá-la como “an institutional vehicle for decentralized decision-making”74 em
estreita ligação com a capacidade de um indivíduo dispor de si próprio, das suas
capacidades e talentos. Isto só acontece, em termos económicos, num sistema de
mercado, em que a coordenação sobre as actividades económicas não é coerciva, e num
sistema político liberal, em que o Governo seja limitado, assegure o rule of law, e
respeite as liberdades individuais. Saliente-se, no entanto, que esta acepção não implica
que o Estado seja reduzido a um Estado mínimo, como é geralmente confundido por
72
Cfr. Idem, ibidem, p. 38.
Cfr. F. A. Hayek, The Road to Serfdom: text and documents – The Definitive Edition, Bruce Caldwell
(ed.), Chicago, The University of Chicago Press, 2007, p. 69.
74
Cfr. John Gray, ob. cit., p 62.
73
19
muitos adversários do liberalismo e não defendido pela maior parte dos autores
liberais75.
Esta fórmula liberal do Governo limitado, não corresponde necessariamente a
um regime democrático, até porque a democracia de matriz rousseauniana, baseada no
bem comum, vontade geral e soberania popular, pode ser ilimitada, tirânica e totalitária,
enquanto, por outro lado, é verificável empiricamente que a democracia de matriz
anglo-saxónica obedece efectivamente aos preceitos do Governo limitado. Estes
preceitos são o respeito pelas liberdades individuais, o constitucionalismo, o rule of law,
e a limitação e difusão do poder, através de checks and balances que constranjam e
diminuam o exercício arbitrário do poder. Estes checks and balances podem ser de
diversos tipos e incluem, por exemplo, a separação de poderes, o bicamaralismo ou o
federalismo. Em resumo, a condição sine qua non para se considerar um Estado como
liberal é, segundo Gray, “that governmental power and authority be limited by a system
of constitutional rules and practices in which individual liberty and the equality of
persons under the rule of law are respected”76.
No século XX, Karl Popper dedicou grande parte do seu tempo a esta questão da
limitação do poder, à semelhança de Hayek ou Berlin, e em consonância com os
princípios e conceitos por estes desenvolvidos. É crucial entender a forma como Popper
vai chegar a um complexo raciocínio com o objectivo de defender a ideia de sociedade
aberta e de limitação de poder, começando por reflectir em termos de filosofia da
ciência e do conhecimento.
Partindo da afirmação de que “a principal doença do nosso tempo é um
relativismo intelectual e moral, o segundo sendo pelo menos em parte baseado no
primeiro”77, um relativismo que se caracteriza pela “negação da existência de verdade
objectiva e/ou pela afirmação da arbitrariedade de escolha entre duas asserções ou
teorias”78, Popper começa por distinguir entre padrões e critérios, estabelecendo que
“um enunciado é verdadeiro (…) se e apenas se corresponde aos factos. (…) Só este
75
Cfr. Idem, ibidem, p 70.
Cfr. Idem, ibidem, p. 72.
77
Cfr. Karl Popper, The Open Society and Its Enemies, Princeton, N.J., Princeton University Press, 1971,
Vol. 2, p. 369 apud João Carlos Espada, “Karl R. Popper: A Sociedade Aberta e os seus Inimigos”, in
João Carlos Espada e João Cardoso Rosas, Pensamento Político Contemporâneo – Uma Introdução,
Lisboa, Bertrand, 2004, p. 28.
78
Cfr. João Carlos Espada, “Karl R. Popper: A Sociedade Aberta e os seus Inimigos”, ob. cit., p. 28.
76
20
entendimento de verdade permite dar sentido ao conceito de erro. Cometemos um erro
quando consideramos verdadeiro um enunciado que é falso, ou vice-versa”79.
Acresce, no entanto, que os critérios para descobrirmos em todas as situações se
um enunciado corresponde ou não aos factos não são inteiramente seguros. Por isso, há
que efectuar uma distinção entre a falibilidade dos critérios e a objectividade do padrão
de verdade80, porque como considera José Adelino Maltez “sendo a ciência, conforme o
clássico conceito de episteme, a humilde procura do verdadeiro conhecimento, do
conhecimento das causas que são necessariamente verdadeiras, ela corresponde àquele
esforço que a razão faz para se substituir à mera opinião (doxa), esse conhecimento tão
contingente quanto o contingente que o submerge”81, pelo que se torna necessário
combinar a defesa da existência de um padrão objectivo de verdade com o
reconhecimento da falibilidade dos critérios, o que Popper denominou por absolutismo
falibilista, que dá corpo à sua teoria falibilista do conhecimento.
Segundo João Carlos Espada, Popper argumentou que “o conhecimento científico
não assenta no chamado método indutivo, mas numa contínua interacção entre
conjecturas e refutações. Enfrentando problemas, o cientista formula teorias
conjecturais para tentar resolvê-los. Essas teorias serão então submetidas a teste. Se
forem refutadas, serão corrigidas (ou simplesmente eliminadas) e darão origem a novas
teorias que, por sua vez, voltarão a ser submetidas a teste. Mas, se não forem refutadas,
não serão consideradas como provadas. Elas serão apenas corroboradas, admitindo-se
que, no futuro, poderão ainda vir a ser refutadas por testes mais severos. O nosso
conhecimento é, por isso, fundamentalmente conjectural e progride por ensaio e erro”82.
A sua teoria sobre o conhecimento é de extrema importância para a crítica que faz
ao que considera os inimigos da sociedade aberta, i.e., o historicismo, relativismo,
engenharia social, colectivismo, característicos de sociedades fechadas como as que são
originadas pelos totalitarismos. Por outro lado, a liberdade de crítica encontra-se na base
da ideia de sociedade aberta. Nesta última, “existe espaço para a liberdade de crítica e
para a gradual alteração de leis e costumes através da crítica racional”, ao passo que, na
79
Cfr. Idem, ibidem, p. 28.
Cfr. Idem, ibidem, p. 28.
81
Cfr. José Adelino Maltez, Curso de Relações Internacionais, Lisboa, Principia, 2002, p. 18.
82
Cfr. João Carlos Espada, “Karl R. Popper: A Sociedade Aberta e os seus Inimigos”, ob. cit., p. 17.
80
21
primeira, “pelo contrário, leis e costumes são vistos como tabus imunes à crítica e à
avaliação pelos indivíduos”83.
Embora seja considerado como um dos mais prementes defensores das
democracias liberais, Popper é, à semelhança de Hayek, Berlin ou Schumpeter, um
crítico da doutrina clássica da democracia de origem rousseauniana. Popper observa que
esta doutrina se preocupa fundamentalmente em responder à questão “quem deve
governar?”, ou citando a sua famosa Conferência de Lisboa, “como deverá ser
constituído um Estado de modo a que os maus governantes possam ser afastados do
poder sem violência, sem derramamento de sangue?”84. A resposta varia em função do
tipo de regime analisado, conduzindo, em última instância, à destruição desse regime –
a título de exemplo, se a resposta for que deverá governar um grupo de sábios, esse
grupo, se lhe aprouver, poderá entregar o poder a apenas um só indivíduo, o que leva,
pelo menos, a uma transição de regime, com consequências imprevistas –, já que, a
própria questão de partida “remete para uma resposta sobre pessoas e não sobre regras
que permitam preservar o melhor regime”85.
Estas regras vão de encontro à questão que Popper considera como mais
pertinente para o funcionamento de uma democracia: “como se limita o poder de quem
governa?”, ou seja, como se evita a tirania, como se evitam abusos de poder e
interferências por parte do governo em áreas onde não deve intervir, e como se garante a
mudança de governo sem violência86.
Na senda da teoria da separação e limitação de poderes desenvolvida por Locke
e Montesquieu – para a qual muitos outros autores deram importantes contribuições, em
especial Tocqueville, Madison e Stuart Mill –, estas regras devem servir para permitir a
“alternância de propostas concorrentes no exercício do poder e que impeçam que, uma
vez chegadas ao poder, qualquer delas possa anular as regras que lhe permitiram lá
chegar. O governo representativo ou democrático surge então como uma, e apenas uma,
83
Cfr. Idem, ibidem, p. 18.
Cfr. Karl Popper, “Conferência de Lisboa”. Disponível em http://www.ordemlivre.org/node/615.
Consultado em 08/12/09.
85
Cfr. João Carlos Espada, “Karl R. Popper: A Sociedade Aberta e os seus Inimigos”, ob. cit., p. 19.
86
Cfr. Idem, ibidem, p. 19.
84
22
dessas regras. Elas incluem a separação de poderes, os freios e contrapesos, as garantias
legais – numa palavra, o governo constitucional ou limitado pela lei”87.
Esta teorização vai de encontro à perspectiva de Popper sobre a teoria do
conhecimento, já que, havendo diversas fontes concorrentes, não há uma que detenha
autoridade absoluta sobre a outra ou outras, todas elas se controlando e refutando
mutuamente. E devido a esta analogia, como assinala João Carlos Espada, “Popper
argumentou também que o sistema eleitoral mais adequado a esta visão da democracia é
o sistema maioritário baseado em círculos uninominais: ele permite um maior controlo
dos eleitores sobre os eleitos; facilita a formação de maiorias, favorecendo por isso o
controlo mútuo entre governo forte e oposição consistente; e evita a fluidez dos
governos e oposições fundados em coligações”88.
Demonstradas as características essenciais do funcionamento das duas grandes
correntes teórico-práticas da democracia, importa ainda, como é nosso objectivo,
desconstruir a doutrina clássica da democracia, de origem francesa, recorrendo aos
ensinamentos de um outro austríaco, Joseph A. Schumpeter.
Desconstruindo a Doutrina Clássica da Democracia
Aquilo que Popper ou Schumpeter consideram como a doutrina ou teoria
clássica da democracia, vimos já, assenta essencialmente nos conceitos de bem comum,
vontade geral e soberania popular, teorizados por Rousseau. Embora David Held
considere que não há uma teoria clássica da democracia, mas sim diversos modelos
clássicos89, tomaremos em consideração a denominação de Popper e Schumpeter, no
que diz respeito à democracia de inspiração francesa.
Tendo como principal preocupação elaborar uma teoria explicativa que pudesse
permitir uma melhor compreensão do funcionamento das democracias, a sua obra mais
conhecida, Capitalismo, Socialismo e Democracia, viria a ter um grande impacto na
Ciência Política e na Teoria da Democracia em geral, surgindo no mesmo patamar de
nomes como Giovanni Sartori, Norberto Bobbio ou Robert Dahl. Em larga escala, este
reconhecimento deve-se a uma elaborada desconstrução dos princípios de Rousseau.
87
Cfr. Idem, ibidem, pp. 20-19.
Cfr. Idem, ibidem, p. 20.
89
Cfr. David Held, ob. cit., p. 152.
88
23
Para Schumpeter, a democracia é um processo, um método, que ele próprio visa
explicar em termos realistas e empíricos. Começa por definir a doutrina clássica da
democracia rousseauniana, baseada no bem comum e na vontade geral, precisamente
como um método com determinados objectivos: “the democratic method is that
institutional arrangement for arriving at political decisions which realizes the common
good by making the people itself decide issues through the election of individuals who
are to assemble in order to carry out its will”90.
Acontece que, na realidade, não há nenhuma acepção única de bem comum
sobre a qual todos os indivíduos concordem ou possam concordar pela força de um
argumento racional. Não apenas porque os indivíduos têm interesses e desejos
diferentes mas principalmente porque a concepção sobre o próprio bem comum varia
consoante os indivíduos e grupos91.
Ainda assim, mesmo que se pudesse considerar uma acepção única de bem
comum, suficientemente aceitável por todos, tal não implica que as respostas às
necessidades, vontades e assuntos individuais sejam igualmente definidas e definitivas.
E mesmo que eventualmente o fossem, os indivíduos continuariam a discordar sobre a
forma como alcançar os objectivos definidos e derivados dessas respostas92. Criticando
Rousseau pelo seu utilitarismo, Schumpeter faz notar os problemas que surgem do
dilema da avaliação entre respostas satisfatórias presentes e futuras, exemplificando que
a questão socialismo vs. capitalismo ficaria sempre em aberto, mesmo se todos os
indivíduos pensassem em termos utilitaristas. Por outras palavras, os teóricos
utilitaristas da doutrina clássica da democracia falharam ao não considerar que
mudanças substanciais a nível económico alteram os hábitos dos indivíduos e da
sociedade, pelo que é impossível ter uma resposta definitiva e aceite por todos sobre o
que é o bem comum93. Pode definir-se num dado momento e numa determinada
sociedade consoante o contexto e circunstâncias presentes, mas num outro dado
momento a resposta não será a mesma, nem terá necessariamente um nível de aceitação
idêntico.
90
Cfr. Joseph A. Schumpeter, ob. cit., p.250.
Cfr. Idem, ibidem, p. 251.
92
Cfr. David Held, ob. cit., p. 147.
93
Cfr. Joseph A. Schumpeter, p. 255.
91
24
Destes considerandos, decorre naturalmente que a vontade geral também não
existe, já que a sua formulação advém da concepção única do bem comum discernível
por todos. Para tal é necessário que exista na sociedade um centro em torno do qual
gravitam todas as vontades individuais, com vista a gerar o bem comum e a vontade
geral. E é esse centro que unifica as vontades individuais, as imputa racionalmente à
vontade geral, e confere a esta última “the exclusive ethical dignity claimed by the
classic democratic creed”94. Como já vimos, essas vontades são demasiado
fragmentadas para que se possam gerar estas acepções rousseaunianas. Como resume
Schumpeter, “both the existence and the dignity of this kind of volonté générale are
gone as soon as the idea of the common good fails us. And both the pillars of the
classical doctrine inevitably crumble into dust”95.
Schumpeter prossegue, utilizando um exemplo de uma decisão de Napoleão
Bonaparte, estabelecida de forma satisfatória, aceite por todas as partes como benéfica a
longo prazo, embora tenha sido formulada por meios ditatoriais, para demonstrar que as
decisões de agências não-democráticas podem, por vezes, ser mais aceitáveis para os
indivíduos do que decisões alcançadas por via de um processo democrático, até porque
essas decisões poderiam ser rejeitadas ou alvo de discórdia por parte de instituições ou
actores do processo de decisão democrático96. Logo, assinala que “if results that prove
in the long run satisfactory to the people at large are made the test of government for
the people, then government by the people, as conceived by the classical doctrine of
democracy, would often fail to meet it”97.
O seu argumento final contra o bem comum está relacionado com a sua
concepção da natureza humana, e a observação dos comportamentos dos indivíduos no
que concerne às necessidades económicas e aos seus hábitos de consumo. Estes são
originados através de uma construção social, com uma carga muito pouco racional e
independente. O mesmo acontece no campo da política. Esta não se encontra no centro
das preocupações da maior parte das pessoas, o que não lhes permite efectuar juízos
totalmente racionais sobre ideologias e políticas em competição. Além do mais, a
maioria dos indivíduos é susceptível de ser manipulada por grupos de pressão e de
94
Cfr. Idem, ibidem, p. 252.
Cfr. Idem, ibidem, p. 252.
96
Cfr. David Held, ob. cit., p. 148.
97
Cfr. Joseph A. Schumpeter, p. 257.
95
25
interesses, o que, mais uma vez, retira dos seus juízos qualquer independência ou
racionalidade98.
Neste ponto, Schumpeter tem um raciocínio magistral, perpassado por um certo
pessimismo antropológico: “Thus the typical citizen drops down to a lower level of
mental performance as soon as he enters the political field. He argues and analyzes in a
way which we would readily recognize as infantile within the sphere of his real
interests. He becomes a primitive again. His thinking becomes associative and
affective”99.
Este pressuposto tem duas consequências. A primeira é que mesmo que não seja
influenciado por quaisquer grupos políticos, o cidadão típico tenderá a ceder a
preconceitos ou impulsos irracionais ou extra-racionais, muitas vezes obscuros e com
base em fracos padrões morais, já que o seu processo de pensamento na esfera política é
associativo, primário, muito pouco lógico e detém um controlo muito pouco efectivo
sobre os resultados das decisões tomadas. Mas mesmo que aconteça o contrário, ou seja,
que se manifeste de forma generosa e indignada, nada garante que a sua análise e
perspectiva seja a mais correcta, embora ele se possa convencer de que corresponde de
facto à vontade geral. Desta forma, corre-se o risco do indivíduo se tornar ainda mais
obtuso e irresponsável, o que poderá ser fatal à nação e/ou ao Estado em determinadas
circunstâncias100.
Em segundo lugar, quanto mais débil o elemento lógico nos processos de
pensamento dos indivíduos e a ausência de um racionalismo crítico, maiores as
oportunidades para os grupos que queiram explorar estas fraquezas. Estes grupos
podem, de facto, modelar e até mesmo criar a vontade dos indivíduos, dentro de limites
bastante amplos. Schumpeter conclui de forma bastante assertiva, afirmando que “what
we are confronted with in the analysis of political processes is largely not a genuine but
a manufactured will. And often this artefact is all that in reality corresponds to the
volonté générale of the classical doctrine. So far as this is so, the will of the people is
the product and not the motive power of the political process”101.
98
Cfr. David Held, ob. cit., p. 149.
Cfr. Joseph A. Schumpeter, p. 262.
100
Cfr. Idem, ibidem, p. 262.
101
Cfr. Idem, ibidem, p. 263.
99
26
A afirmação de que a vontade geral é o resultado e não a causa do processo
político é certamente uma das ideias mais desconcertantes para os defensores da
doutrina clássica da democracia. É, a nosso ver, a pièce de résistance na desconstrução
de Schumpeter dos postulados de Rousseau.
É ainda a partir de tal que vai elaborar a sua teoria da democracia, postulando o
processo democrático em termos bem mais realistas: “The democratic method is that
institutional arrangement for arriving at political decisions in which individuals
acquire the power to decide by means of a competitive struggle for the people’s
vote”102.
Como David Held assinala, dada a diversidade de desejos e vontades
individuais, e das demands amplamente fragmentadas que estes colocam ao governo, é
necessário que exista um mecanismo capaz de seleccionar os que são mais capazes de
chegar a um conjunto de decisões genericamente aceite pela maioria, ou, pelo menos, do
qual se discorde o menos possível. A democracia é a única forma de alcançar este
objectivo, mesmo que de forma remota103.
Para Schumpeter, a democracia tem na sua base a competição pela liderança
política. Grupos organizados apresentam-se perante os eleitores, competindo pelos
votos destes, de forma semelhante aos empresários que competem pelos clientes num
dado mercado. Aos eleitores compete produzir o governo, seleccionando aqueles que
consideram mais capazes para a governação, mas também desapossá-lo, retirando-lhe o
apoio concedido previamente.
Contudo, Schumpeter considera que qualquer tipo de democracia corre o risco
de se tornar administrativamente ineficiente. Mesmo que a sua função principal, i.e.,
produzir e estabelecer a liderança política, seja alcançada, a governação pode não ser a
melhor do ponto de vista da gestão administrativa. Isto pode decorrer, por exemplo, da
adaptação das políticas públicas aos interesses dos políticos a longo prazo,
nomeadamente, em termos eleitoralistas104.
Para minimizar este risco, há a considerar um conjunto mínimo de condições
para que um regime democrático tenha um funcionamento satisfatório. Em primeiro
102
Cfr. Idem, ibidem, p. 269.
Cfr. David Held, ob. cit., p. 143.
104
Cfr. Idem, ibidem, p. 150.
103
27
lugar, a qualidade dos políticos tem que ser elevada. Em segundo, a competição entre
líderes e partidos rivais deve dar-se apenas em relação a um conjunto relativamente
restrito de questões, delimitado pelo consenso generalizado em relação às políticas a
seguir, decorrentes do programa do governo aprovado pelo parlamento e das matérias
constitucionais. A terceira condição é a existência um aparelho burocrático
independente e de qualificações elevadas, que possa auxiliar os decisores políticos na
formulação das políticas e na administração. O quarto factor é o auto-controlo
democrático, segundo o qual, todos os grupos da sociedade devem estar dispostos a
aceitas as medidas governamentais, conquanto estejam restringidas à luz da segunda
condição, devendo evitar-se criticismos excessivos ou oposições a todas as medidas, o
que pode levar a comportamentos imprevisíveis e violentos. Por último, tem de existir
uma cultura de tolerância e respeito pelas diferenças de opinião, pelo que a liberdade de
expressão e de imprensa é um dos fundamentos do método democrático105.
Resta assinalar que a visão de Schumpeter corresponde a muitas daquelas que
são as características das democracias liberais ocidentais, como faz notar David Held,
nomeadamente, a competição entre partidos pela liderança política; o importante papel
da administração burocrática; a semelhança entre as técnicas da competição comercial e
as técnicas da competição eleitoral e política; a forma como os eleitores estão sujeitos a
muita informação e como apesar disto permanecem mal informados sobre as questões
políticas106.
Conclusão
Considerando a interacção entre os diversos elementos das duas grandes teorias
da democracia por nós analisados, cuja relação nos parece gerar dinâmicas que se
encontram no âmago das duas correntes, importa realçar como estas dinâmicas se
materializam articulando os vários factores, para dar resposta à nossa pergunta de
partida.
Por um lado, a democracia de matriz rousseauniana, assente na teorização do
bem comum, vontade geral e soberania popular, vai recorrer essencialmente a um
postulado de liberdade positiva, em estreita ligação com uma crença no poder da razão
que leva à centralização do poder político sob a égide de uma ordem social e política
105
106
Cfr. Joseph A. Schumpeter, ob cit., pp. 290-296 e David Held, ob. cit., pp. 150-151.
Cfr. David Held, ob cit., p. 152.
28
organizada de cima para baixo, por um indivíduo ou conjunto de indivíduos, que
inevitavelmente assenta num sistema económico planificado. Por outro lado, a corrente
anglo-saxónica, assente num liberalismo que tem no cepticismo em relação ao exercício
do poder um dos seus traços característicos, pauta-se pela assumpção da liberdade
negativa, a que melhor serve uma ordem social liberal, óbvia e naturalmente
espontânea, que em termos políticos vai assumir os princípios do governo limitado e da
limitação e dispersão de poder, salvaguardando a liberdade individual e a possibilidade
de cada indivíduo prosseguir os seus fins como melhor lhe aprouver, o que em termos
económicos só é possível numa economia de mercado.
De forma mais resumida e objectiva, José Adelino Maltez assinala que “A
democracia primitiva, de matriz jacobina, tendia para a unidade concentracionária do
poder, para o monismo e para a centralização, com base na perspectiva da soberania
una, inalienável, imprescritível e indivisível, modelo que só pôde ser contrariado pelos
pontos de vista do pluralismo e da divisão e distribuição da soberania, assumidos tanto
pelo federalismo como pelo liberalismo ético, movimentos que retomaram a ideia de
liberdade como autogoverno e divisão do poder, na linha do tradicional
consensualismo”107.
De um ponto de vista valorativo, entendemos que a doutrina anglo-saxónica é a
que melhor salvaguarda a liberdade individual e permite aos indivíduos prosseguir os
seus fins dependendo apenas das suas capacidades e conhecimentos. A doutrina
jacobina, amplamente difundida na Europa Continental e com evidentes repercussões
nas experiências reais do marxismo, parece-nos um logro, uma teoria que não
corresponde a uma acepção verdadeira, em termos popperianos, sendo mais semelhante
a uma crença religiosa – e daí, talvez, o seu sucesso -, até porque, como Schumpeter
demonstra magistralmente, os seus pressupostos base são falaciosos. Não existe bem
comum nem vontade geral, e esta é, quanto muito, o resultado e não a causa do processo
político. E se assim é, a melhor forma de esta ser produzida é colocando o indivíduo no
centro do processo político, dotando-o de uma esfera pública e privada de acção, e de
direitos naturais e civis, e não o governo ou o Estado como o centro em torno do qual
têm de gravitar todas as vontades individuais, que congregadas numa vontade geral
107
Cfr. José Adelino Maltez, Princípios de Ciência Política – Introdução à Teoria Política, ob. cit., p.
149.
29
conferem aos decisores um espaço de manobra e capacidade de acção extremamente
amplo, assente numa crença no poder ilimitado da razão.
Tendo em consideração que a natureza humana é, como Schumpeter demonstra,
irracional, primária e pouco lógica, e tendo em consideração os ensinamentos de
Popper, Hayek e Berlin sobre os limites do conhecimento, parece-nos que o
constitucionalismo liberal, assente no governo limitado e num sistema político cuja
arquitectura deve ser institucionalizada e não sujeita a manipulações em “nome do
povo”, como é apanágio do jacobinismo, se apresenta como o melhor garante da
liberdade individual e o baluarte do funcionamento da democracia anglo-saxónica.
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