DUAS PALAVRAS Para o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências-Verbo, superstição é: «crença destituída de fundamentos racionais, relativa às consequências benéficas ou nefastas de certos actos, acontecimentos, encontros, coincidências temporais». O Dicionário de Aurélio (Buarque de Holanda) vai mais longe: «superstição é sentimento religioso baseado no temor ou na ignorância e que induz ao conhecimento de falsos deveres, ao receio de coisas fantásticas e à confiança em coisas ineficazes; crença em presságios tirados de factos puramente fortuitos». Por outras palavras, dir-se-á que a superstição é a crença no poder maléfico ou benéfico de um objecto, de um acto ou de uma ideia, sem que haja para isso nenhuma prova que confirme a verdade da mesma. Tais crenças são, portanto, irracionais e infundadas e nascem devido à ignorância das causas reais e naturais dos fenómenos. O homem primitivo, desconhecedor do espírito científico, atribuía as causas dos fenómenos a objectos que continham em si poderes mágicos ou a entidades sobrenaturais. Eram assim conhecimentos resultantes de reflexos condicionados: se a um fenómeno se seguia outro, o primeiro seria a causa, o segundo, o efeito. Por exemplo: o primeiro ser humano que viu um gato preto conferiu ao animal a responsabilidade do seu inêxito num negócio ou numa atitude tomada nesse momento. Por razões fortuitas de acaso, considerou que o gato fora o causador dos seus falhanços e passou, convicto, essa ideia a outros que, mesmo não encontrando um gato preto no seu caminho, decidiram assacar-lhe essa potencialidade e se, de facto, o viam (um gato preto é vulgar ver-se), isso justificava a superstição. O ser humano gosta de inventar histórias e transmiti-las aos outros. Desse modo se cria a cadeia das superstições. Grande parte delas resulta também de cultos religiosos desaparecidos — as várias mitologias criaram crenças fantásticas através das mirabolantes aventuras dos seus deuses e heróis, crenças que foram circulando e transformando-se nas religiões recentes onde, por formas mais atenuadas, muitas se vão mantendo. Esta dependência dos cultos tem, obviamente, uma razão de ser: a superstição é sempre de carácter defensivo, respeitada para evitar mal maior ou distanciar a sua efectivação. O espírito científico é recente na história das civilizações, talvez não tenha mais de quatrocentos, quinhentos anos. Nos nossos dias, ainda só uma minoria alcançou tal estádio, e em muitos casos, esse espírito científico é propenso a «especializar-se», o que faz com que pessoas que, podendo tê-lo em certas áreas, sejam noutras acientíficas e mesmo arracionais. O homem comum permanece, na nossa contemporaneidade, muito longe de observar os fenómenos sob esse espírito — está ainda próximo da perplexidade do homem primitivo. Daí que, para ter equilíbrio emocional, procure nas religiões e nas crenças — por mais absurdas que se nos apresentem — explicação para a complexidade dos fenómenos e do mundo em geral. É esta espécie de conforto moral que explica a permanência das superstições no ser humano como forma de ordenar o caos mental em que se encontra. Somos, hoje, menos crédulos que há mil anos — mas continuamos a querer respostas de cunho moral para o que não compreendemos, e esse conforto e consolação a ciência não os faz. Pela sua própria natureza, não lhe compete. É, pois, curioso que, em certos países ditos civilizados, apesar de a maioria das superstições mais antigas tenderem a deslizar para a anedota ou «coisa engraçada», não se levando já totalmente a sério (embora subsista sempre um resquício), refloresçam outras (muitas imbuídas de uma «cientificidade» ludibriante para as tornar «credíveis» como negócio) como, por exemplo, a astrologia, as magias brancas e negras, a bruxaria, o satanismo, os discos voadores, as experiências extra-sensoriais, agora até usando explorações e técnicas de publicidade e marketing (anúncios, promoções, etc.) que perpetuam os erros das superstições anteriores. A tal não deve deixar de juntar-se a proliferação de crenças e seitas religiosas invadindo as religiões tradicionais claramente a perderem espaço no nosso tempo. A angústia do ser humano por não compreender o acaso, a coincidência, o sobrenatural, dá, paradoxalmente, algum papel às superstições. O homem necessita de uma ordenação espiritual (o tempo é cada vez mais caótico) a fim de não se sentir completamente perdido e desorientado. Para combater ou evitar essa desintegração moral e social, precisa de restabelecer algum equilíbrio emocional e mental. As superstições e as doutrinas místicas e esotéricas dão-lhe explicações dos fenómenos, do ser e do mundo, contribuindo para o seu reajustamento social. É certo que esse reajustamento se faz através de respostas fictícias, acientíficas, ilusórias. Mas o homem comum prefere ter essas respostas a não ter nenhumas. A colecção de todas as superstições é um trabalho impossível. O seu universo é inesgotável. Em todos os tempos e em todas as civilizações, proliferaram e proliferam na razão dos milhões, a que acresce a sua contraditoriedade — por vezes, uma superstição tem um sentido numa região e o oposto noutras latitudes. Quem se aventure por tal universo tem, obrigatoriamente, de escolher, de elaborar um critério, dada a ingência do campo. Foi o que tive de fazer. Muito simplesmente, comecei por retirar do meu horizonte a maioria das superstições que, de uma maneira ou de outra, imbricavam nas fés religiosas (as fronteiras entre a fé e a superstição são ténues, mas existem). Daí que neste livro não surjam, senão episodicamente, as superstições relativas a santos, a milagres, a santuários, etc. Outras superstições excluídas foram as das falsas medicinas populares, da numerologia, da astrologia, das artes divinatórias e outros ramos onde abundam, mas que justificariam «dicionários» próprios. Fiquei-me assim pelas que me pareceram mais conhecidas ou que continham pequenas histórias curiosas, na certeza de que estava a pôr de parte muitas que, a incorporarem-se, tornariam este livro «gigantesco». E, como último critério, fiquei-me ainda pelas que são mais «irracionais» e motivadoras de algum humor. Orlando Neves A ABELHA Desde tempos imemoriais sabe-se que os homens já recolhiam o mel das abelhas. O mistério da sua organização criou inúmeras crenças e tradições. No Egipto, a configuração da colmeia deu origem a um hieróglifo com que se simbolizava a alma. Dizia-se que a abelha teria nascido das lágrimas de Rá, o deus-sol, pela sua cor amarelada. Mas, no Baixo Egipto era, igualmente, símbolo do poder monárquico. Segundo uma crença popular, as abelhas não pertenciam ao reino animal, mas ao reino das fadas, sendo a abelha-mestra considerada a «fada real». Descobriu-se, mais tarde, que a cera era utilizada na mumificação dos corpos. Na civilização grega, nos mistérios de Elêusis e em Éfeso, as profetisas eram chamadas as «melissas», abelhas, de méli, mel. Em certos túmulos estão esculpidas como símbolo da ressurreição devido ao seu tempo de repouso durante o Inverno. Também na religião grega representavam a alma descendo das sombras e preparando o retorno. Platão afirma que as almas dos homens sóbrios reincarnavam sob a forma de abelhas. Simbolizavam, por isso, a eloquência, a poesia e a inteligência. Uma lenda diz que as abelhas pousaram na boca de Píndaro e de Platão para lhe transmitirem essas qualidades. A abelha fornecia aos deuses o hidromel, a bebida divina por excelência. Num dos manuscritos de Aristóteles, a esperança é representada por uma figura humana com um cortiço de abelhas nas mãos. Os deuses indianos, Vixnu, Indra e Khrisna eram conhecidos como os madhavas, palavra oriunda da que designava a abelha. Khrisna surge representado com uma abelha azul na testa. Na China, tornou-se símbolo dos apaixonados, os que se nutrem das «jovens flores em botão». Em certas civilizações africanas, a abelha simboliza a organização social dos homens. Na Bíblia, julga-se que a abelha nascia espontaneamente de um animal morto em sacrifício (Juízes 14, 5-6, 8-10). Três mulheres surgem nas Escrituras com o nome de Débora, que significa abelha, e todas representam a vitória e a riqueza que compensa os corajosos (Génesis 24, 35-8, 59-62 e Juízes 4, 4-6). Por seu turno, no hebraico, abelha provém da raiz de «palavra», pelo que o insecto revelaria «a palavra divina, a Verdade». Em certos locais, as mães judias fazem bolos de mel com letras do alfabeto para prepararem os filhos na aprendizagem da leitura do Talmud. Na tradição islâmica, o mel é um medicamento físico e espiritual (Alcorão, Capítulo XVI, «A abelha»). No cristianismo, ela e o seu ferrão eram símbolos de Cristo, para enunciar a sua justiça e doçura. Na Idade Média, a colmeia surge como atributo de Santo Ambrósio e de São Bernardo de Clairvaux, por comparação do mel com a sua doce eloquência. Durante algum tempo, a abelha foi símbolo da virgindade de Maria e, em geral, da castidade e da diligência no trabalho. O papa Urbano VIII decorou o escudo com imagens de abelhas (mais tarde, Napoleão também adornou o seu manto com elas, como se pode ver em várias pinturas). Por sua vez, Santo Ambrósio comparava a colmeia com a Igreja e os fiéis com as abelhas. Para São Bernardo de Clairvaux eram o símbolo do Espírito Santo. É provável que o lírio do brasão francês seja a imagem estilizada de uma abelha. Na Maçonaria a abelha é o símbolo da obediência e da constância no trabalho. São inesgotáveis as superstições e crenças que têm como base as abelhas. Eis algumas: — Sonhar com abelhas equivale a ter êxito nos negócios; noutras versões é precisamente o oposto: ver uma abelha em sonhos é ter a morte próxima, é a alma que voa para longe. — Matar uma abelha é sinal de desgraça iminente. — Se as abelhas voam dentro de casa isso significa êxito no trabalho. — Se uma abelha voa para dentro da boca de um morto, este retorna à vida. — Nos meios rurais, em grande parte do mundo, existe a crença de que as abelhas são seres sábios que adivinham o futuro. Diz-se que elas devem ser informadas da morte de alguém da família do apicultor pelo processo de as cobrirem com um véu negro e dizer-lhes: «fadinhas, o vosso dono (ou o familiar) morreu». Se não se fizer isso, são elas que morrem ou voam para longe. — Um pedaço de bolo de casamento deve ser colocado junto do cortiço para que nele suguem — caso contrário, o casamento será infeliz. — Se as abelhas param, de súbito, o seu trabalho, é sinal de catástrofe próxima. — Uma abelha a voar dentro de casa anuncia uma visita; se voar junto de um berço é sinal de felicidade para a criança. — Se se vir uma abelha a beber água é porque se aproxima uma forte chuvada. — Não se muda de lugar uma colmeia numa Sexta-Feira Santa. — Na Ucrânia, oferecer abelhas a alguém é oferecer-lhe saúde. — Se as abelhas regressam, rapidamente, à colmeia é sinal de tempestade. — Na Rússia, não se mata uma abelha: ela pode ser uma alma subindo ao céu. — Na Grécia, crê-se que uma mulher virgem pode atravessar um enxame sem ser molestada. — Uma abelha voando isolada é um bom presságio. — Assim como se julga que uma picada de abelha cura o reumatismo, também se crê que se ela for dada num recém-nascido preserva a criança de doenças. — Se as abelhas fogem da colmeia é sinal de morte para o seu proprietário. — Nunca se deve atravessar uma corrente de água transportando uma colmeia: as abelhas morrem. De um modo geral, sonhar com abelhas é positivo. Se no sonho se for picado por elas, deve tomar-se muito cuidado com as traições de amigos; se as abelhas estiverem a fazer mel, quer dizer que se vencerão os inimigos ABÓBORA Como acontece, frequentemente, são várias e contraditórias as superstições sobre a abóbora. Por exemplo, entre os ameríndios trabalham-se em prata colares de «flores de abóbora» porque se crê que ao usá-los darão sorte ao seu portador. Já em certas regiões de África se se sonha com um campo de abóboras é sinal de morte de parente próximo. ABORTO Os antigos judeus tinham a superstição de que se alguém atirasse as aparas das suas unhas aos pés de uma mulher grávida e esta as pisasse, abortaria naturalmente. ABRACADABRA Pronunciava-se a palavra para curar a asma e a febre quartã, e utilizava-se também como talismã que se trazia ao pescoço. A palavra era escrita num pergaminho que se dobrava e se atava com um fio vermelho dando-se sete nós para o prender. Cerimonialmente, queimava-se sal e incenso e submetia-se o pergaminho aos eflúvios purificadores vindos das brasas e depois suspendia-se do pescoço. Hoje em dia, a fórmula já não é usada e permanece no adjectivo «abracadabrante» designando uma coisa extraordinária. ABROLHO O abrolho é uma planta da família das zigofiláceas, que produz frutos espinhosos. Daí que a qualquer espinho se dê o nome de abrolho, do latim aperi ocúlos, «abre os olhos», ou seja, indicativo de se tomar cuidado para não se ser picado. A maldição divina a Adão («maldita seja a terra que por tua causa, dela, com sacrifício, tirarás o alimento durante toda a tua vida e ela produzirá espinhos e abrolhos») tornou a planta símbolo de contrariedades, sofrimentos e dores, o que se alicerça ainda na coroa de espinhos que Cristo levava durante a Paixão. ABSINTO O absinto é uma planta da família das compostas, com folhas amargas. Do provável grego apsinthion, que significa «impossível de beber», por o álcool que se retira da planta ser nocivo, violento e mortal, tomado em doses excessivas. No seu Dicionário de Ideias Feitas, escreve Flaubert: «Absinto — veneno perigoso: bebe-se um copo e morre-se.» A própria planta goza de má fama por atrair espíritos maléficos e, ao simples toque, provocar aborto. Segundo o Apocalipse de São João, quando o terceiro anjo soar a sua trombeta «uma estrela ardente como um archote, chamada Absinto, cairá do céu sobre a terra e isso marcará o fim do mundo». Nos Provérbios de Salomão, o absinto atormentará os homens provocando-lhes uma amargura mortal e corromperá as águas tal como as palavras da mulher adúltera. Nos seus poucos aspectos positivos crê-se que o absinto, misturado com a bílis de um boi, é eficaz na cura de borbulhas e que se se esfregar as palmas das mãos de uma criança com sumo de absinto ela jamais sofrerá de frio ou calor. Em pequenas quantidades, acredita-se que a bebida extraída do absinto é poderosamente afrodisíaca. ABUTRE Ver um abutre é sinal de desgraça e se se virem dois haverá morte na família. ACÁCIA Segundo uma tradição gaulesa, as jovens denunciavam a sua virgindade e, simultaneamente, o desejo de a perderem, colocando na cabeça uma coroa de ramos de acácia, semelhante à que se supõe ter sido a coroa de Cristo. Os rapazes aproximavam-se e picavam-se nela. Se estivessem dispostos ao casamento ofereceriam à jovem escolhida uma coroa de folhas de laranjeira. Curiosamente, no Canadá francês, para onde deve ter sido levada a tradição, os jovens acreditam que se presentearem a namorada com uma coroa de acácia ela ser-lhes-á fiel para toda a vida. ACNE Se se sofria desta perturbação dermatológica, os antigos acharam-lhe remédio: friccionava-se com um unguento feito de saião esmagado com farinha de cevada e azeite. Alternativa: os jovens sofredores da doença devem rolar e esfregar-se numa plantação de cânhamo no orvalho matinal (o cânhamo tem propriedades alucinógenias, o que deverá fazer esquecer a doença, provavelmente...). AÇO Os instrumentos de aço (amálgama de ferro e carvão) não devem ser oferecidos como presentes a ninguém porque trazem má sorte a quem os recebe. Evite-se, pois, dar tesouras, lâminas, facas, espadas... Há, no entanto, um modo de conjurar o perigo: se se oferecer um desses objectos cortantes, o presenteador deve «pedir» uma moeda ao que recebe, dizendo: «paga-me o presente para que a nossa amizade não seja cortada por ele». ACTOR Por razões que ocupariam muito espaço a analisar, o teatro não teve, entre os romanos, a aura e a grandeza que alcançara na Grécia clássica. As obras teatrais de Roma são bem menores em número e qualidade, se as compararmos com as gregas. Não se pense, porém, que não houve teatro, actores e recintos dedicados a essa arte. Houve. Mas o entusiasmo dos romanos nunca atingiu níveis excepcionais. Vejamos, por exemplo, o que sobre o teatro escreveu Plínio, o Moço: «quando penso neste divertimento fútil, estúpido, monótono, que prega os espectadores aos seus lugares sem se fartarem nunca, sinto uma certa alegria por não experimentar essa alegria». Plínio, como a maioria dos seus contemporâneos, talvez preferisse os espectáculos circenses e, sobretudo, as corridas, de facto, o divertimento máximo dos latinos. É uma página negra da grande história de Roma esta opção pelos morticínios do circo e pela violência física das corridas. E talvez resida aí a má imagem que os romanos faziam do teatro, enquanto profissão. De facto, ao contrário da Grécia onde ser actor nada tinha de desonroso e lhe abria a possibilidade de exercer cargos públicos, em Roma, isso era proibido. Vedava-se, por exemplo, aos cidadãos nobres o aparecerem em cena. E o mero cidadão, a partir do momento em que representasse no teatro, ficava impedido de votar nas assembleias. Os actores não podiam conviver com os senadores ou com os cavaleiros romanos. Em dado momento, o próprio Senado quis conceder aos pretores o direito de açoitar os actores, o que só não aconteceu porque Augusto se opôs. A origem deste tratamento de desprezo talvez estivesse na causticidade das comédias de Plauto e Terêncio, além de outros. Mas a verdade é que a infâmia ligada à profissão de actor se prolongou no tempo e, para isso, contribuiu também o catolicismo que não poupava os seus anátemas contra os profissionais de teatro. Durante séculos a