CENTRO DE ENSINO SUPERIOR DO CEARÁ FACULDADE CEARENSE CURSO DE SERVIÇO SOCIAL LARISSA SOUZA CALISTO “EU TAMBÉM TENHO DIREITOS”: VISIBILIDADE TRAVESTI E TRANSEXUAL PARA ALÉM DOS ESTIGMAS FORTALEZA Dezembro 2014 LARISSA SOUZA CALISTO “EU TAMBÉM TENHO DIREITOS”: VISIBILIDADE TRAVESTI E TRANSEXUAL PARA ALÉM DOS ESTIGMAS Trabalho de Conclusão de Curso submetido à aprovação da Coordenação do Curso de Serviço Social do Centro de Ensino Superior do Ceará como requisito parcial para obtenção do grau de Graduação. Orientador: Prof: Mestre Elias Ferreira Veras FORTALEZA Dezembro 2014 “EU TAMBÉM TENHO DIREITOS”: VISIBILIDADE TRAVESTI E TRANSEXUAL PARA ALÉM DOS ESTIGMAS Monografia apresentada como pré-requisito para obtenção do título de Bacharelado em Serviço Social, outorgado pela Faculdade Cearense – FaC, tendo sido aprovada pela banca examinadora composta pelos professores. Data de aprovação: ____/ ____/____ BANCA EXAMINADORA ____________________________________________________________ Profº Mestre Elias Ferreira Veras - UFCS (Orientador) ___________________________________________________________ Profª Ms Silvana Cavalcante - FaC (1ª examinadora) ____________________________________________________________ Profª Ms Juliana Frota da Justa Coelho – UFSCAR (2ª examinadora) Aos meus pais, por tudo que fui, sou e serei. Com todo amor que há em mim, dedico! AGRADECIMENTOS Primeiramente agradeço a Deus por ter permitido que eu concluísse minha faculdade. Sem a benção Dele, nada disso seria possível. Agradeço aos meus pais, Luiz Calisto e Lenice Souza, que me deram todo o suporte necessário para que eu chegasse até aqui. Eles me ensinaram a caminhar com minhas próprias pernas ao longo desses 26 anos. Essa conquista não é só minha, é nossa. Todos os frutos que eu venho colhendo e irei colher, certamente, foram e serão graças ao amor e à dedicação. Amo vocês incondicionalmente. Ao meu irmão, Thiago Souza Calisto, pelo exemplo, pelas conversas, ensinamentos, por também ser suporte, e principalmente, pelos chocolates que me deu e que foram muito necessários durante a produção desse trabalho. Amo você. Ao meu namorado, Adriano Nobre, por sua presença, dedicação, preocupação, carinho e, principalmente, por seu amor. Vida, você também foi diretamente responsável pela minha chegada até aqui. Você foi e é meu porto seguro, minha paz. Você me deu força, me fez confiar e acreditar na firmeza dos meus passos e na superação dos obstáculos para a construção não só do meu futuro, mas do nosso. Eu amo muito você. Essa caminhada não seria possível sem o suporte das minhas queridas companheiras de turma, de caminhada, de luta. Amo vocês meninas. Cada uma de vocês tem sua importância e foram responsáveis pela remoção de cada pedra no caminho. Muito obrigada à Angélica Monte por cada sorriso único que fez brotar dos meus lábios e por ter feito acreditar mais em mim no início da graduação. À Marcela Ramos pelos abraços apertados que me deu, muitas vezes sem saber o quanto foram diferenciais na minha noite. À Mayara Duarte por conseguir me decifrar com um olhar e me fazer sentir confortada sem esboçar uma só palavra. À Rebeca Marques por me ajudar a enxergar a vida de uma forma tão ímpar, auxiliando no meu amadurecimento enquanto mulher. À Samara Leite por me mostrar que muitas vezes é preciso ser calmaria em meio à tempestade de uma forma doce e delicada e, em especial, à Ana Paula Vieira por ser muito mais do que uma companheira, por ser amiga, apoio, bronca, carinho, ombro, esteio, exemplo de acadêmica e, com toda certeza, um grande exemplo de profissional a ser seguido. Amo você, Paulinha. Obrigada à Hianne Carvalho por ser incentivo, parceira e companheira nos longos dias de produção na faculdade; aos funcionários da Biblioteca da Faculdade Cearense que sempre foram agradáveis e atenciosos durante todos os momentos em que utilizei a biblioteca como lugar de produção; ao Professor e amigo Emerson Cardoso, por também ter se feito presente durante essa construção, sendo solícito e atencioso quando requisitado. Agradeço ao meu orientador, Elias Veras, pela dedicação, doçura e pela firmeza que teve comigo no decorrer da produção desse trabalho, seus desejos de “bom final de semana (de estudos)” foram essenciais para a conclusão desse estudo. Obrigada não só por aceitar ser meu orientador, mas também por fazer brotar em mim cada vez mais a necessidade de beber na fonte do conhecimento e dos estudos. Gostaria de agradecer à Ana Paula Lima, minha supervisora de campo de estágio, por me ensinar a ser uma profissional competente, ética e dedicada. Você é um exemplo que terei sempre. Obrigada, Paulinha. Obrigada também à Fosca Varoli, educadora social e à Aucirene Silva, assistente social do Lar Fabiano de Cristo, meu campo de estágio, por dividirem comigo esse rico momento de aprendizado e por terem me ensinado tanto. Agradeço também à Regina Coele, responsável pela instituição, que me acolheu enquanto estagiária de braços abertos e a todos os demais funcionários do Lar Fabiano de Cristo – Casa de Virgínia Smith. Muito obrigada aos meus amigos pela torcida, pelos momentos de descontração, que foram indispensáveis ao longo da minha vida acadêmica. Obrigada Anderson Lima e Michelle Barcelos, casal que tanto amo; Emilcy Rebouças, minha linda, delicada e doce doutora; à Gisele Arruda, minha xodó de ontem, hoje e sempre. Obrigada à Débora Almeida, digo, Bynha Angelim, pelas visitas semanais na biblioteca da faculdade e à Rayssa Nunes por sua alegria, bom humor e carinho constante. É difícil mencionar o nome de todos os que eu sei que verdadeiramente torceram pelo meu sucesso, mas sei que logo terei oportunidade de agradecê-los. Obrigada especialmente à minha amiga de infância Cristiane Moreira por ser um grande exemplo de dedicação, inteligência, por cada palavra de incentivo, apoio, motivação e por me ensinar que quanto maior a dedicação, maior a recompensa. Amo você, Cris! Obrigada à Vladyane Mouta, minha amada amiga dos tempos de escola. Vlá, agradeço a Deus por permitir que nossa amizade continue sólida e verdadeira, mesmo com o passar do tempo, dos anos. Você me proporciona doçura em meio ao amargor da correria diária. Amo você. Não poderia deixar de agradecer aos meus amigos de longe que, mesmo com os quilômetros de distância, sempre se fazem presente. À minha irmã, Adrielle Lopes, por também ser incentivo e exemplo; à Raffaela Andrade, minha branquinhosidade que tanto amo; à Nanda Ferçal, um dos presentes mais lindos que a vida me deu; à Lívia Coelho minha amiga tão preciosa; à Mariluci Galvão tão cativante, tão querida e sempre lembrada; à Luanna Fischer, minha pequenininha amada. Obrigada, Mariana Estevão, por se fazer presente diariamente, dando força, carinho, apoio, conforto, por me proporcionar momentos ímpares, dia após dia e por me fazer ter cada dia mais certeza de que não é preciso estar junto para estar perto. Amo você, Mari! Agradeço a toda a minha família de Campina Grande e Manaus, meus avós, tios, tias, primos e primas. Apesar da distância, sinto o amor, a torcida e o apoio de vocês sempre. Agradeço à Dona Socorro, meu anjo da guarda em forma de vizinha, juntamente com seu esposo, Seu Junior, e suas filhas Bárbara Nobrega e Lívia Nobrega, e à pequena Alícia Maria, que me faz sentir renovada ao ouvi-la me chamando-me de “iaiá”. Agradeço às entrevistadas Raphaella Lopes e Isabela Lemos pela disponibilidade e delicadeza, e por serem solícitas pela contribuição direta na construção deste trabalho. Agradeço aos professores da Faculdade Cearense que me ajudaram a trilhar esse caminho, em especial à Priscila Nottingham e Silvana Cavalcante, exemplos dentro e fora da sala de aula. “A gente quer viver pleno direito A gente quer viver todo respeito A gente quer viver uma nação A gente quer é ser um cidadão” (Gonzaguinha, É) RESUMO A presente monografia analisa a visibilidade travesti e transexual para além dos estigmas (GOFFMAN, 2004). A associação entre travestis, transexuais a prostituição, ao crime e patologias é uma construção histórica, a qual nos deparamos ao longo das últimas décadas. A partir da crítica dessa associação, foi traçada a escolha, bem como o percurso da pesquisa aqui desenvolvida. Fatores como desigualdade e exclusão social atribuídos às travestis e transexuais na contemporaneidade e ao longo dos anos, fazem-nos perceber que o processo de estigmatização vem sendo socialmente construído e velado. Para ir de encontro a essa problemática, é necessário não apenas se debruçar em estudos e pesquisas que tratem da performatividade de gênero (BUTLER, 2008), mas também possibilitar a visibilidade política, através do protagonismo dos próprios sujeitos para romper com a transfobia. A pesquisa realizada possui caráter exploratório. Sua natureza é definida como pesquisa qualitativa. Para coleta de dados, foram realizadas entrevistas e análises de outras já produzidas. Este trabalho visa, de modo utópico, a ser uma ferramenta para a construção de uma nova sociedade livre de preconceitos. Palavras-chave: visibilidade, travestis, transexuais, estigma ABSTRACT This research examines the transsexual and transgender visibility beyond the stigma (Goffman, 2004), The association between transvestites, transsexuals and prostitution is a historical construction which we face throughout the past decades. From this association, the aim of this research was chosen and developed. Factors such as inequality, social exclusion and the labeling of transvestites and transsexuals in contemporary times and, throughout the years make us realize that the stigmatization process has been socially constructed and veiled. To face this problem it is necessary not only an in-depth study and research that addresses gender identity (BUTLER, 2008), but also enable the political visibility, through the leadership of the subjects themselves to break through the established transphobic relations that link transvestites, transsexuals and crime, as well as prostitution and Aids. This work aims, perhaps through an utopian mode, to be a tool for building a new and prejudice-free society. Keywords: visibility, transvestites, transsexuals, stigma LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS AIDS – Acquired Immune Deficiency Syndrome HIV – Human Immunodeficiency Virus CFESS – Conselho Federal de Serviço Social CRESS – Conselho Regional de Serviço Social ATRAC – Associação de Travestis do Ceará LGBT – Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais DST – Doenças Sexualmente Transmissíveis SUS – Sistema Único de Saúde GRAB – Grupo de Resistência Asa Branca ONG – Organização Não Governamental OP – Orçamento Participativo SDH – Secretaria de Direitos Humanos UNILAB – Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira UECE – Universidade Estadual do Ceará UFC – Universidade Federal do Ceará ARDH – Associação Russana da Diversidade Humana PLC – Projeto de Lei da Câmara MEC – Ministério da Educação SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 12 2 TORNANDO VISÍVEL O INVISÍVEL: ASPECTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS .................................................................................................................................. 19 2.1 A construção do objeto: travestis e transexuais .............................................. 19 2.2 Metodologia da pesquisa..... ........................................................................... 26 2.3 Referenciais teóricos: sobre estigma, sexualidade e gênero .......................... 29 3 ORGANIZAÇÃO POLÍTICA TRANS.................................................................. .... 36 3.1 Organização Política Trans.. ........................................................................... 36 3.2 29 de Janeiro – Dia Nacional da Visibilidade de Travestis e Transexuais ................................................... ........................................................................... 40 3.3 Reconhecer a Identidade de Gênero: O nome social e retificação de prenome ................................................... ........................................................................... 41 4 VIVÊNCIAS TRANS.................................................................. ............................. 45 4.1 Raphaella Lopes.................. ........................................................................... 45 4.2 Isabela Lemos...................... ........................................................................... 50 4.3 Luma Andrade...................... ........................................................................... 55 4.4 Thina Rodrigues...................... ........................................................................ 57 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................. ................. 61 REFERÊNCIAS.................................................................. ....................................... 63 APÊNDICES.................................................................. ............................................ 67 12 1 INTRODUÇÃO Durante o processo de pesquisa, sabe-se que é imprescindível que a escolha da temática seja algo que cause inquietação e curiosidade no/a pesquisador/a. Por essa razão, a questão elencada por mim como tema desta pesquisa tem como item primordial a mencionada inquietude e curiosidade que brotava sob o meu olhar, mesmo antes da graduação. Nesse trabalho, tratei da visibilidade de travestis e transexuais para além dos estigmas1. Desse modo, este estudo tem como objetivo central analisar a visibilidade dada a esses sujeitos dentro da sociedade e identificar as formas de rompimento dos paradigmas da estigmatização sofrida por eles. Fatores como desigualdade, exclusão social e as categorizações atribuídas às travestis e transexuais na contemporaneidade e ao longo das últimas décadas, fazem-nos perceber que o processo de estigmatização vem sendo socialmente construído e velado. Para ir de encontro a essa problemática, foi necessário não apenas se debruçar em estudos e pesquisas que tratasse da identidade de gênero,2 mas possibilitar a visibilidade política desses sujeitos através das vivências das próprias travestis e transexuais entrevistadas, para romper com a associação com o crime, a prostituição e a patologia. Para desencadear esse processo de ruptura, foi necessário tornar visível o que é invisível perante os olhos da sociedade, dando visibilidade para além dos estigmas historicamente construídos e socialmente impostos. Como futura profissional do Serviço Social, é preciso entender que a identidade de gênero também possui uma diversidade de expressões dentro da sociedade. O conhecimento acerca dessa multiplicidade deve estar presente não apenas como instrumento ou alvo de pesquisas, mas e também na atuação 1 2 Estigmas relacionados à associação de travestis e transexuais à prostituição, patologias, ao crime e a violência. O documento dos Princípios de Yogyakarta (Princípios sobre a Aplicação de Legislação Internacional de Direitos Humanos em relação à Orientação Sexual e Identidade de Gênero) define a identidade de gênero como a vivência interna e individual do gênero tal como cada pessoa o sente, a qual pode corresponder ou não com o sexo atribuído após o nascimento, incluindo a vivência pessoal do corpo. Disponível em < http://www.clam.org.br/pdf/principios_de_yogyakarta.pdf> Acesso em 08/11/2014 13 profissional, que tem como objeto de intervenção a questão social3 as várias contradições existentes na sociedade, tendo como ideal a ser perseguido o Projeto Ético Político Profissional4 do Serviço Social. Durante o 34º Encontro Nacional do Conjunto CFESS-CRESS,5 foi aprovada a Campanha pela Livre Orientação e Expressão Sexual – O amor fala todas as línguas. Lançada oficialmente em julho de 2006, a campanha tem como objetivos a sensibilização da categoria das/os Assistentes Sociais e da sociedade. O debate girou em torno da livre expressão e orientação sexual como direito humano e a contribuição para o aprimoramento profissional a partir do debate acerca da sexualidade humana como dimensão da individualidade, necessitando de reconhecimento no que concerne à diversidade de expressões e contribuindo para a garantia do respeito à diversidade humana em meio aos espaços institucionais de atuação e formação profissional do Serviço Social. Com essa campanha, o Serviço Social tem como desafio o estímulo ao debate e à reflexão crítica acerca da diversidade humana e as diferenças entre os sujeitos necessitando, dessa forma, de qualificação sobre quem são esses sujeitos, bem como um investimento no tocante a socialização de uma cultura política problematizadora da dimensão de classes. A referida campanha é uma manifestação dos Assistentes Sociais que estão na luta por um projeto societário fundamentado na liberdade, igualdade, reconhecimento e valorização da diversidade humana, cujos principais desafios, são: • Refletir sobre os limites da igualdade e da liberdade na sociabilidade capitalista; • Aprofundar no debate profissional o entretenimento teórico sobre a concepção de individualidade e diversidade e realizar a crítica ao padrão de sexualidade dominante; 3 “A questão social não é senão as expressões do processo de formação e desenvolvimento da classe operária e de seu ingresso no cenário político da sociedade, exigindo o seu reconhecimento como classe por parte do empresariado e do Estado. É a manifestação, no cotidiano da vida social, da contradição entre o proletariado e a burguesia, a qual passa a exigir outros tipos de intervenção mais além da caridade e repressão.” (Iamamoto, 1983 p. 77) 4 Trata-se de um projeto coletivo que apresenta a auto-imagem da profissão elegendo assim valores que o legitimam, delimitam e priorizam objetivos e funções dentre outros. 5 Conjunto CFESS/CRESS: Conselho Federal de Serviço Social e Conselho Regional de Serviço Social 14 • Contribuir para a superação das variadas formas de preconceito e discriminação que se consolidam como ferramentas ideológicas opressivas na vida cotidiana; • Considerar a diversidade e as diferenças entre os sujeitos, o que pede qualificação empírica sobre quem são os sujeitos usuários do Serviço Social; • Investir numa cultura política que problematize em profundidade a dimensão de classe e o reconhecimento da multiplicidade e diversidade 6 entre os sujeitos na classe; Com o lançamento dessa campanha, o conjunto CFESS/CRESS contribui para o combate à violência e defesa de direitos; para a concretização do Código de Ética Profissional e o fortalecimento do debate sobre ética e direitos humanos no âmbito do Serviço Social brasileiro. Que as próximas gerações não sejam oprimidas por amar. Desejamos uma sociedade radicalmente livre. Estamos na luta contra todas as formas de opressão e exploração vigentes, na defesa intransigente de um projeto societário capaz de articular a defesa da igualdade substantiva à valorização da liberdade e da diversidade humana. (CFESS MANIFESTA, 2005, p.2) O CFESS estabeleceu normas que vedassem tais condutas através da Resolução nº 489/2006, de 3 de junho de 2006. Essa resolução considerou aspectos como a “Declaração Universal dos Direitos Humanos”, que prevê que todas as pessoas nascem livres e iguais no tocante à dignidade humana; à dimensão do Projeto Ético-Político do Serviço Social; à materialização existente no tocante as diferentes modalidades de discriminação e preconceito expressados nas relações sociais e profissionais acarretando na naturalização da invisibilidade de práticas afetivo-sexuais entre pessoas do mesmo sexo; à necessidade de contribuir para a reflexão e o debate sobre a liberdade e necessidade histórica que os indivíduos têm de decidir acerca de sua sexualidade e efetividade; à necessidade de regulamentar a vedação de práticas e condutas discriminatórias ou preconceituosas referentes à livre orientação ou expressão sexual. 6 Desafios retirados do CFESS Manifesta: O amor fala todas as línguas. Disponível em: <<http://www.cfess.org.br/arquivos/CFESSMANIFESTA-OAMORFALATODASASLINGUAS.pdf> Acesso em: 14/11/2014 15 O posicionamento profissional contribui diretamente para a visibilidade de travestis e transexuais para além dos estigmas. Além disso, essa resolução é embasada nos Princípios Fundamentais do Código de Ética Profissional. Ao todo são onze princípios que regem e normatizam a atuação do Assistente Social, dentre eles estão aqueles que contribuem para a visibilidade tratada nesta pesquisa, ou seja, o reconhecimento da liberdade como valor ético central; a defesa intransigente dos direitos humanos e a recusa do arbítrio e do autoritarismo; ampliação e consolidação da cidadania, visando à garantia de direitos; posicionamento em favor da equidade e justiça social que assegurem a universalidade de acesso aos bens e serviços relativos aos programas e políticas sociais; o empenho na eliminação de todas as formas de preconceito, incentivando o respeito à diversidade; opção por um projeto social vinculado à construção de uma nova ordem societária sem dominação, exploração ou dominação de classe, etnia e gênero. O diálogo político e sua expansão são diretamente responsáveis pela construção do que, na fala das entrevistadas, surgiu como objetivo central da visibilidade que travestis e transexuais gostariam de ter: uma visão voltada ao respeito, ao reconhecimento e à efetivação dos seus direitos Nesse sentido, fazer um estudo das experiências das travestis e transexuais para além do processo de estigmatização nos remete a luta profissional com foco na construção de uma nova sociedade que tenha como valor central o reconhecimento da liberdade, favorecimento da equidade e justiça social, visando à ampliação e consolidação da cidadania. (Código de Ética Profissional, 1993) Embora se desenvolva melhor no primeiro capítulo deste trabalho, os referencias teóricos utilizados e a metodologia utilizada, destaco a importância dos estudos dos autores que foram utilizados para essa produção de forma introdutória, como Leite Jr (2008), com sua tese “Nossos corpos também mudam”, que trata de uma genealogia histórica acerca do surgimento e do reconhecimento de travestis e transexuais, tendo como ponto de partida o hermafroditismo e/ou androginia. Outro autor utilizado foi Bruno Cesar (2010) com a dissertação “Nomes e Diferenças”, uma etnografia dos usos das categorias travestis e transexuais”, que trata da diferenciação existente entre ser travesti e ser transexual, e ainda a produção, e “Toda Feita”, de Marco Benedeti (2005) obra na qual discute a transformação no corpo das travestis, além das lutas existentes para que a visibilidade torne-se uma 16 visibilidade propriamente dita no tocante à conquista de espaços e também de direitos. O trabalho de Alexandre Fleming (2005), “O Vôo da Beleza”, que problematiza as experiências de travestis e transexuais em busca de lugares mais clementes e a repercussão existente em seu deslocamento para as mesmas também foi importante. Saliento também “Subjetividade das Travestis Brasileiras: da vulnerabilidade da estigmatização à construção da cidadania”, de William Siqueira Peres (2005), que analisa o processo de enfrentamento vivenciado por travestis e transexuais, que nos ajuda a refletir acerca da desigualdade e exclusão social vivida por esses sujeitos como sendo socialmente construída, necessitando, desta forma, a busca por uma visibilidade política para que o enfrentamento à invisibilidade seja satisfatório e obra de Larissa Pelúcio (2009), “Abjeção e Desejo”, etnografia sobre as travestis e um modelo preventivo da AIDS7 na cidade de São Paulo. Na obra, Pelúcio aborda a relação existente entre as travestis e a AIDS. Além dessa associação, a autora salienta que as travestis fazem parte de um grupo de risco que além de perseguido é menos assistido com relação à efetivação e reconhecimento dos seus direitos. Quanto à metodologia, por ser uma pesquisa de caráter exploratório, trata-se de um estudo de natureza qualitativa. Essa definição será trabalhada a partir das considerações de Demo (2001). A importância da pesquisa bibliográfica também é ressaltada a partir de Gill (1999), que menciona a coleta de dados como essencial na apropriação da pesquisadora para com a temática. Como forma de coleta de dados, foram utilizadas entrevistas individuais semiestruturadas. A entrevista como técnica de coleta é abordada através das definições de Gill (2002). No primeiro capítulo Tornar Visível o Invisível: aspectos teóricosmetodológicos são discutidos os referenciais teórico-metodológicos da pesquisa. No tópico A construção do objeto: travestis e transexuais aproximei-me, a partir da leitura de autores que são referências no estudo dessa temática das experiências das travestis e transexuais. Em Metodologia da pesquisa, o segundo tópico, exponho a metodologia utilizada na pesquisa. E no terceiro tópico, Referenciais teóricos: sobre estigma, sexualidade e gênero, a discussão presente nas ideias 7 Acquired Immune Deficiency Syndrome 17 de Erving Goffman (2004), Michel Foucault (1988), Elias F. Veras (2014), e Juliana Frota da Justa Coelho (2012). O segundo capítulo tem como título Organização Política Trans8 e trata das políticas e eventos que têm como foco central a discussão de políticas públicas, legislações e campanhas voltadas para a população travesti e transexual. O primeiro tópico desse capítulo, A Organização Política de Travestis e Transexuais, explicita a organização desses sujeitos em algumas instituições na cidade de Fortaleza, bem como as discussões realizadas em encontros, seminários e grupos de estudo que contaram com a minha participação. Vale ressaltar que em todos esses espaços foi dado destaque a debates voltados à luta travada por travestis e transexuais pelo reconhecimento e efetivação dos seus direitos e das problemáticas voltadas para o estudo do corpo, gênero e sexualidade. O segundo ponto tem como título 29 de Janeiro – Dia Nacional da Visibilidade de Travestis e Transexuais e traz informações no tocante à origem e à importância da data para a população trans. Essa data objetiva salientar a importância da visibilidade e o respeito às travestis e transexuais dentro da sociedade brasileira. O Dia Nacional da Visibilidade de Travestis e Transexuais lembra a luta do movimento LGBT por cidadania e direitos. desse segmento da população. O terceiro e último ponto desse capítulo intitula-se Reconhecer a Identidade de Gênero: O nome social e Retificação de Prenome. Esse ponto traz no seu interior o entendimento acerca do nome social e da retificação do prenome e as legislações que as asseguram, dão legitimidade, e suas formas de conquista. O nome social é uma das mais importantes conquistas para a população trans, pois evita que as mesmas passem por situações de constrangimento por terem aparência feminina e serem chamadas por um nome que não reconhecem ter. O terceiro capítulo, Vivências trans, trata das entrevistas realizadas com Raphaella Lopes, 21 anos de idade, transexual, acadêmica de Publicidade e Propaganda e Isabela Lemos, também com 21 anos de idade e transexual, funcionária da empresa Itapemirim no Terminal Rodoviário Engenheiro João Thomé na cidade de Fortaleza. Ambas responderam perguntas relacionadas às suas experiências pessoais, profissionais e concepções, no tocante aos seus direitos e a forma como são visualizados e viabilizados. Por conta da impossibilidade de 8 A terminologia “Trans” é referida à travestis e transexuais 18 entrevistar Thina Rodrigues, presidente da Associação de Travestis do Ceará (ATRAC), e Luma Andrade, “a primeira travesti doutora do país”, foram utilizadas entrevistas concedidas por elas presentes em outras publicações. Esse trabalho possibilita adentrar não apenas num processo reflexivo, mas também interventivo. A partir do conhecimento acerca da população travesti e transexual para além dos estigmas construídos, impostos, mantidos e ampliados tanto pela sociedade quanto pelo Estado, é possível intervir na realidade colocada e modificá-la. O fato de pertencermos a uma sociedade dinâmica que está em constante transformação, não deve fazer com que fiquemos acomodados diante do que nos inquieta. A garantia, efetivação e ampliação de direitos para todas as pessoas, sem qualquer distinção, são constitucionais e o não respeito a essa normatização deve ser desvelado, espraiado e tornado público para além do que está imposto, do senso comum, dos preconceitos, dos estigmas. 19 2 TORNANDO VISÍVEL O INVISÍVEL: ASPECTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS 2.1 - A construção do objeto: travestis e transexuais A construção do estigma travesti e transexual é uma realidade a qual nos deparamos ao longo das ultimas décadas. Apesar da existência de uma gama de estudos que abordam essa população sem relaciona-la a soro positividade, à prostituição e a uma série de outros estigmas, ainda nos deparamos com ideias pautadas no senso comum que fazem com que travestis e transexuais sejam sinônimos de prostitutas, soropositivas, perigosas e violentas. A partir da crítica, a associação foi traçada a escolha bem como o percurso da pesquisa aqui desenvolvida. É possível afirmar que existe um ou mais elementos condutores para tal associação? Se existirem, de que forma será possível combate-los para dar a visibilidade às travestis e transexuais no tocante aos seus direitos? Como viabilizar e perpetuar o reconhecimento de travestis e transexuais como sujeitos de direitos na sociedade na qual vivemos? A produção “Subjetividade das Travestis Brasileiras: da vulnerabilidade da estigmatização à construção da cidadania”, tese defendida por William Siqueira Peres (2005), aborda o processo de estigmatização e enfrentamento os quais se deparam as travestis para a construção de sua cidadania. A partir dessa reflexão, é possível identificar um processo de emancipação social e política vivida pelas travestis e transexuais para atingirem seus objetivos, visando à ruptura com os estigmas a elas atrelados. Percebe-se ao longo da produção do autor o desejo das travestis em prol de uma mudança social vinculada às práticas sociais, políticas, econômicas e culturais. Denota-se a necessidade de mobilizações políticas de travestis e transexuais na busca da garantia e efetivação dos seus direitos. O presente ponto vem apresentar as experiências dos sujeitos travestis e transexuais com base nas leituras de estudiosos da área. A primeira obra sobre esse assunto tem como autor Jorge Leite Jr (2008). Jorge Leite Junior, doutor em Ciências Sociais, faz uma contextualização histórica acerca do surgimento e do reconhecimento de sujeitos travestis e transexuais como pertencentes à realidade através de um surgimento mitológico. A 20 princípio é trabalhada a existência dos mesmos através da figura dos hermafroditas, que possuem os dois sexos em um único corpo. O hermafrodita passa a ser o sujeito fundamental no trabalho de Leite Junior (2008). De acordo com o autor, essa contextualização inicia-se colocando os hermafroditas como monstros. Essa é a compreensão da questão do sexo e do gênero entre os séculos XVIII e XIX. É a partir do hermafroditismo e/ou androginia, caracterizados pela fisiologia, e também por gestos e vestuários, que se questiona o gênero e os corpos. Sendo assim, esses sujeitos passam a estar no centro da discussão sobre o que, na atualidade, entende-se por sexo e gênero. A primeira explicação acerca do surgimento dos hermafroditas ocorre através de um mito grego. Como o hermafrodita possui os dois sexos em um único corpo, masculino e feminino, a existência do feminino em um corpo masculino faz do mesmo um ser inferior. O corpo masculino aparece como ápice da formação humana, sendo a mulher um ser inferior, portanto, a união dos sexos feriria não só a ordem divina, mas também social. De acordo com autor, a medicina transforma o hermafroditismo em anomalia, monstruosidade e deformidade malignas originadas de pactos e de um desvio da natureza, cuja ciência objetiva conhecer para prevenir e evitar a proliferação e o nascimento. Posteriormente, o termo hermafroditismo dá lugar a “distúrbios do desenvolvimento do sexo”, deixando de se alojar no corpo para se alojar na mente dos indivíduos. Nesse momento, a questão hormonal passa a ser levada em consideração na busca do “verdadeiro sexo” desses sujeitos. Leite Junior (2008) ressalta que o conceito de transexuais ainda não havia sido criado no século XX. O dicionário Houaiss da língua portuguesa aponta o termo “travesti” como sendo de origem francesa, significando “disfarçado”. Posteriormente, utiliza-se a terminologia “travestismo” com a ideia de “pessoa (tra) vestida com roupas do sexo oposto com conotação erótica”. Já a transexualidade como fenômeno surge a partir do controle disciplinar da sociedade. Trazendo uma conceituação de Harry Benjamim, um psicólogo da década de 60, Leite Junior (2008) aponta que transexualidade é tida mais como uma anormalidade do comportamento do que um desvio sexual. Ou seja, a pessoa transexual tem um problema de gênero e a pessoa 21 travesti um problema social. O sexo da mente vai originar o conceito de gênero, dando vasão assim a percepção de identidade de gênero dos sujeitos. Leite Junior (2008) informa que a disposição psíquica e interior que leva a utilização/troca de vestuários entre os sexos é o que leva ao nascimento do conceito moderno de travesti relacionado ao campo da sexualidade. A ideologia moderna de gênero é que fundamenta a heterossexualidade compulsória. O conceito, ou a expectativa de gênero, define o que são ou não são corpos humanos, suas características, quais e quantos são os sexos, delimita as pessoas que se enquadram ou não dentro das normas de gênero, denominada heteronormatividade. De acordo com Leite Junior (2008), percebe-se que a construção social em relação ao gênero e sexo do ser humano constitui-se como uma relação de poder dentro das normas de gênero. Pautando-se em Butler (1990),o autor traz o conceito de performatividade como sendo a ação do gênero requerida de uma performance repetida. O gênero não deve ser uma identidade estável, deve ser tenuamente construída no tempo. O autor traz a reflexão acerca da diferenciação entre travestis e transexuais. Nos discursos analisados pelo autor, transexuais consideravam-se pertencentes ao sexo oposto, travestis eram comumente atrelados à perversão 9. Dada essa assertiva, é possível afirmar que a estigmatização às travestis e transexuais é atribuída em maior número às travestis? Na dissertação “Nomes e Diferenças: uma etnografia dos usos das categorias travestis e transexuais”, de Bruno César (2010), é tratada a diferenciação existente entre ser travesti e ser transexual. A princípio, o autor traz como diferenciação que travesti veste-se e vive no gênero oposto e que sente-se no gênero oposto, sendo esse um alvo a ser alcançado pelo fato de se sentirem mulheres. Bruno (2010) salienta que a cirurgia de transgenitalização foi o item central na diferenciação entre travestis e transexuais. Nesse sentido, a psicoterapia10 é apontada como uma forma de intervenção no reconhecimento de transexuais enquanto tais. Esse mecanismo ainda hoje é utilizado como um meio para o conhecimento da “verdade íntima” dos sujeitos (Cesar, 2010, p.19). 9 Do latim, refere-se ao ato de perverter, desmoralizar, depravar. Remete à devassidão, perversão sexual. 10 Atendimento realizado por um psicólogo com a finalidade de que dificuldades emocionais, comportamentos tidos como desviantes e outras problemáticas sejam superadas. 22 Essa definição médica está presente na fala de alguns sujeitos entrevistados por Bruno (2010). Baseado nas falas de algumas das suas entrevistadas, ele percebe que a diferenciação existente entre ser transexual e travesti seria que as transexuais seriam apenas passivas, caracterizada como uma experiência de disfunção entre o sexo e o gênero, e as travestis ativas e passivas acarretando em uma ambiguidade de papeis na figura do travesti. A marginalização do termo “travesti” é salientado pelo autor, pois, a partir de Jorge Leite Junior (2009), ele afirma que a transexualidade possui um capital linguístico mais valorizado em comparação ao da travestilidade. Este capital linguístico surge a partir do diagnóstico dado às transexuais, fazendo com que as mesmas sintam-se mais mulheres em relação às travestis por serem diagnosticadas por alguém elencado como especialista, no caso, psicólogos e psiquiatras, acarretando assim num alargamento da categoria transexual. Bruno Cesar (2010) aborda em seu trabalho a existência de uma nova geração de estigmatização de travestis. Essa estigmatização acontece pela interpretação de que as travestis são mais masculinizadas, e que a feminilidade das transexuais as fazem mais naturais em relação às travestis. Nessa lógica, quanto maior a aproximação com o feminino, menor o estigma. Quanto maior a aproximação com o masculino, maior o estigma. Ou seja, a transexual vem a ser interpretada como uma pessoa doente psicologicamente, e a travesti como marginalizada, promíscua, pervertida que vive para a prostituição. Em decorrência disso, algumas travestis denominam-se transexuais para escapar desse estigma. Bruno Cesar (2010) faz a seguinte citação de Leite Jr (2009, p.192) “[...] talvez o conceito de travesti tenha mantido boa parte da periculosidade do antigo pervertido sexual enquanto a noção de transexual evoca o trágico destino do perverso [...]” O Bruno Cesar (2010) percebe a existência de uma relação de classes que, a meu ver, também pode ser entendido como uma luta no tocante as diferenças entre travestis e transexuais, em que o movimento de uma busca afastar-se classificação de homossexuais – travestis – e o movimento de outra, busca afastarse da figura do homem homossexual que busca tornar-se mulher – transexuais. Marco Benedeti (2005), por sua vez, trata sobre o processo de transformação no corpo das travestis. O autor aborda esse processo através não só 23 da transformação física, mas também psicológica a partir das informações coletadas nas entrevistas feitas com as travestis. Na obra é possível identificar diversos fatores quanto à visibilidade trans, dentre eles, a violência, exclusão social e rotulação/estigmatização. Com a leitura de sua obra, foi possível perceber que as travestis estão inseridas numa ambiguidade a respeito de sua visibilidade. As mesmas são visíveis com relação ao desrespeito, à banalização da violência sofrida por elas no tocante a violação dos direitos que possuem e se tornam invisíveis com relação ao seu reconhecimento enquanto sujeitos de direitos perante a sociedade. “Toda Feita: o gênero e o corpo das travestis” aborda também a relação existente entre a violência e construção de valores. O fato das travestis sofrerem as mais diversas formas de violência e violação dos seus direitos as faz construir valores e códigos próprios no âmbito em que vivem para lidar com as problemáticas que vivenciam dia após dia. É percebido com a análise de Benedeti (2005) que o corpo das travestis é tido como uma forma de linguagem, pois é através dos seus corpos que as travestis se produzem e se reconhecem enquanto sujeitos. Para elas, o corpo concretiza o que é feminino e o que é masculino. É possível identificar a luta travada pelas travestis para que essa (in) visibilidade torne-se uma visibilidade propriamente dita através da luta por conquista de espaços e direitos. Com base nas análises de Benedeti (2005) e das falas das travestis, nota-se a prostituição como saída para que as travestis se sustentem, pois elas não possuem oportunidades que heterossexuais ou até mesmo homossexuais têm no mercado de trabalho, o que está diretamente ligado ao processo de rotulação / estigmatização. Outro autor que trata das experiências travestis e transexuais é Alexandre Fleming (2005). A tese dele expõe e problematiza relatos sobre a migração de travestis e transexuais para o exterior. O autor busca problematizar essa experiência na busca por lugares mais clementes acerca das travestis e a repercussão que esse deslocamento exerce sobre as mesmas. Em sua obra, o mesmo utiliza como referenciais teóricos a perspectiva queer de Judit Butler (2008) e devir de Deleuze (2001) Fleming (2005) mostra como as experiências travesti e transexual são descritas por algumas pessoas como monstruosa, inversa e pervertida, o que 24 remete ao aniquilamento da subjetividade das travestis e transexuais. No senso comum, as mesmas são vistas como transgressoras por “se desviarem” do que está socialmente imposto e são tidas como violadoras das normas de gênero construídas, indo contra a natureza biológica dos indivíduos, que define a essência da sexualidade na sociedade. Assim como na obra de Benedeti (2005), identifica-se na análise dos escritos de Fleming (2005), que a prostituição é uma fonte de renda para as travestis e transexuais devido à falta de oportunidades no mercado de trabalho. A prostituição “abre as portas” para uma melhoria na qualidade de vida das travestis e transexuais. Com isso, vê-se a problemática sexual numa perspectiva de análise política e social. Com o sexo sendo o instrumento de trabalho, as travestis e transexuais tornam-se mais vulneráveis no processo de contrair o vírus HIV/AIDS, o que não significa que as mesmas devam ser rotuladas como prostituídas e soro positivas. Apesar da visibilidade trans ter se intensificado com o aparecimento da AIDS, a doença não deve ser vista como “peste gay”11. Nesse processo de estigmatização, que também é de transfobia12, observa-se o processo de inferiorização das travestis e transexuais, o que acarreta em mais violação e mais violência. Fleming (2005) trabalha com a teoria do gênero como uma construção psicológica, social e cultural dentro de uma sociedade que coloca a heterossexualidade como norma e padrão a serem seguidos, um regime de poder que Judith Butler (2008) chama de Heterossexualidade Compulsória. Com relação à identidade, observa-se o corpo como essencial na sua construção, ou seja, desconstrói-se uma identidade sexual para que se construa outra, tornando assim a sexualidade como uma dimensão interna ao sujeito e não externa. O autor também traz a institucionalização de travestis e transexuais como uma nova possibilidade, dentre outras, para uma visão menos estigmatizada, trazendo uma conotação menos sexualizada e mais politizada para as mesmas. “Subjetividade das Travestis Brasileiras: da vulnerabilidade da estigmatização à construção da cidadania” de Peres (2005), analisa o processo e o 11 Forma como o vírus HIV ficou conhecido na década de 80 no Brasil. 12 Termo utilizado para designar pessoas que tem fobia de travestis e transexuais. 25 enfrentamento a qual se deparam as travestis para a construção de sua cidadania. A partir dessa reflexão, é identificado um processo de emancipação social e política vivida pelas travestis e transexuais para atingirem seus objetivos. Através da heteronormatividade é possível perceber a existência de um controle social através das práticas sexuais estabelecidas na sociedade. Esse controle social se materializa através de um biopoder Foucault (1979) A desconstrução de conceitos pré-estabelecidos, estigmas e rótulos para a com travestis e transexuais dentro da sociedade mostra-se como eixo central na construção, reconhecimento e consolidação dos direitos das mesmas. Essa afirmação materializa-se pelo reconhecimento do Brasil como recordista em desrespeito à cidadania e violação dos direitos humanos. É corriqueira a associação de travestis ao crime, prostituição e a soro positividade. Em decorrência disso, percebe-se a necessidade de um tratamento político para ir de encontro a essas associações e rótulos que acarretam na exclusão social vivida por elas. A construção da cidadania, então, mostra-se através da militância como um meio para a ruptura com os estigmas. Nota-se que tal desigualdade e exclusão social vivida por travestis e transexuais são socialmente construídas, e a visibilidade política deve ser utilizada como meio para ir de encontro à invisibilidade, fazendo referência à expressão utilizada por uma das entrevistadas de Peres (2005), pois elas também têm direito à luz do dia. Pelúcio (2009) traz em sua obra uma produção etnográfica acerca das travestis e o modelo preventivo de AIDS através do projeto Tudo de Bom! na cidade de São Paulo. É utilizado em sua bibliografia vários autores, dentre eles Butler (1990), Benedeti (2005) e Foucault (2003). A partir da teoria de performatividade de Judith Butler (1990), Pelúcio (2009) apresenta o corpo como um artefato inacabado e se encontra em um processo contínuo de construção, não tendo um fim em si mesmo. Dentre os elementos percebidos na obra, temos a relação existente entre travestis e AIDS. Além desse estigma, as travestis fazem parte de um grupo de sujeitos perseguidos e menos assistidos no tocante à efetivação e reconhecimento dos seus direitos. Tal afirmativa permeia as observações feitas neste trabalho. 26 A falta de proteção nas ruas faz com que as próprias travestis articulem suas redes de proteção, fazendo com que seus direitos sejam “assegurados” por outros, e não pelo estado. Como exemplo dessa afirmativa, aponta-se traficantes e cafetinas como possíveis elementos de segurança para as travestis, que utilizam a rua como espaço de sociabilidade. De acordo com a pesquisa de Pelúcio (2009), quando as travestis possuem um vínculo com seus parceiros, as mesmas abrem mão da utilização do preservativo, ou seja, a familiaridade leva à vulnerabilização das travestis quanto à prevenção. O estabelecimento desses vínculos pode ser apontado como uma via condutora para contrair da AIDS/HIV. É possível afirmar, então, que existe uma rotulação para tal vínculo? Essa prática é um dos elementos que leva ao estigma? Pelúcio (2009) ressalta a estigmatização de travestis como “aidéticas” desde décadas atrás. Elas são vistas como “promíscuas”, “desviantes” e associadas a patologias. Essa relação é derivada de um passado marcado por acusações da sociedade em geral. A partir da ideia dos referidos autores com o objetivo de aproximação das experiências vividas por sujeitos travestis e transexuais, abordaremos no próximo capítulo sobre a construção do estigma, mencionada diversas vezes ao decorrer deste trabalho. 2.2 Metodologia da pesquisa O profissional do Serviço Social precisa entender que a identidade de gênero também possui uma diversidade de expressões dentro da sociedade. O conhecimento acerca dessa multiplicidade deve estar presente não apenas como instrumento ou alvo de pesquisas, mas também na atuação profissional, que tem como objeto de intervenção as várias contradições existentes na sociedade, pautadas no projeto ético político profissional. A pesquisa realizada possui caráter exploratório. Sua natureza é definida como pesquisa qualitativa, pois, estimulará as travestis e transexuais a darem sua opinião acerca da visibilidade para além dos estigmas e também de suas vivências cotidianas, que são de suma importância para a construção, análise e conclusões acerca da temática estudada. Para Demo (2001, p.44): 27 Pesquisa qualitativa impõe-se sempre que se trate de temas que se interessem mais pela intensidade do que pela extensão dos fenômenos [...] Não se opõe aos formatos de pesquisa quantitativa, uma vez que a dicotomia entre quantidade e qualidade está superada. Apenas focaliza mais de perto os horizontes tido qualitativos. O primeiro passo para a pesquisa deu-se através de pesquisa bibliográfica. De acordo com Gill (1999), esse tipo de pesquisa é desenvolvida a partir da coleta de dados, respaldada em materiais já existentes, abordando o objeto definido como livros, dissertações, teses e artigos científicos. A pesquisa bibliográfica mostrou-se imprescindível no que diz respeito à apropriação da pesquisadora da temática escolhida e ao aporte teórico que se teve para adentrar ao campo. A importância da leitura no processo de apropriação teórica, ocorrido durante o andamento de pesquisa bibliográfica também deve ser destacada. Ruiz (1995, p. 36) fala que: A leitura amplia e integra os conhecimentos, desonerando a memória, abrindo cada vez mais os horizontes do saber, enriquecendo o vocabulário e a facilidade de comunicação, disciplinando a mente e alargando a consciência pelo contato com formas e ângulos diferentes sob os quais o mesmo problema pode ser considerado. Quem lê constrói sua própria ciência; quem não lê memoriza elementos de um todo que não se atingiu. O processo investigativo foi pautado na análise do discurso. De acordo com Orlandi (2005), análise do discurso possui finalidade investigativa quanto ao processo analítico realizado nas idas ao campo. O estudo feito com a análise do discurso como abordagem metodológica requer todo um conjunto de atividades anteriores e posteriores a sua execução, por exemplo, de idas ao campo, entrevistas e transcrições. Para coleta de dados, foram realizadas entrevistas com duas transexuais na cidade de Fortaleza, e foram analisadas duas entrevistas de duas travestis que são referência da militância na cidade de Fortaleza. As entrevistadas optaram por expor sua identidade e não mantê-la em sigilo, partilhando suas vivências e suas subjetividades. Portanto, os seus nomes reais foram utilizados. Apesar da realização de entrevistas com duas transexuais, foram realizadas análises de entrevistas já produzidas As análises de entrevistas 28 realizadas com as travestis e militantes Thina Rodrigues, presidente da ATRAC13, e Luma Andrade, a primeira travesti doutora do país, foram de suma importância para possibilitar a realização desse estudo. A entrevista é definida por Minayo (1993) como sendo o processo de coleta de informações sobre um tema determinado e é destinada a fornecer informações relevantes para analisar e tirar conclusões acerca do objeto pesquisado. As entrevistas foram gravadas para possibilitar a transcrição do seu material na íntegra. Para que isso fosse possível, foi necessário uma interação e um ambiente de confiança entre a pesquisadora e as entrevistadas, possibilitando além da coleta de informações necessárias no desenvolvimento da pesquisa, um rico momento de troca e aprendizado acerca das vivências e expressões dentre as partes envolvidas. Para Gill (2002, p.115), “[...] entrevista é a técnica de coleta de dados em que o investigador se apresenta frente ao entrevistado (gestores) e lhe formula perguntas, com o objetivo de obter os dados que interessam a uma investigação”. A respeito da construção do cronograma de entrevista, Parker, Herdt & Carballo (1995: 36-37) afirmam: Ao planejar o cronograma das entrevistas profundas, no entanto, o método mais produtivo é tentar desenvolver um formato semi estruturado que possa ser reproduzido, pelo menos em suas linhas mais gerais, com todos os informantes a serem entrevistados em uma determinada população. Devem-se fazer perguntas abertas sobre tópicos relevantes, seguindo um esboço ou lista de tópicos gerais que permita que um tópico naturalmente conduza a outro. O cronograma de entrevistas contou com perguntas de cunho pessoal, político e social. Foi necessário deixar que as entrevistadas escolhessem a forma pela qual gostariam de ser chamadas, buscar entender como ocorreu o processo de transformação delas, tomar conhecimento de alguns preconceitos vivenciados, a forma como enfrentaram, saber sobre o entendimento e conhecimento acerca de políticas de cidadania voltadas para a população travesti e transexual e, por fim, a 13 Associação de Travestis e Transexuais do Ceará 29 partir das suas vivência, saber o que poderia ser feito para mudar a realidade vivida por elas e por todo o segmento LGBT. Outro fator importante a ser mencionado é a possibilidade que a pesquisa deve dar para a produção de estudos posteriores ao que foi produzido. As produções acadêmicas não podem ter fim em si mesmas, deve haver uma continuidade para que pesquisas ou fenômenos estudados também não tenham um fim, acarretando cada vez mais produções, conhecimentos e teorias que enriqueçam os estudos no âmbito das ciências humanas e sociais, e também meio acadêmico, científico e social como um todo. Sobre o conceito de pesquisa Minayo (2004, p. 23) fala: Entendemos por pesquisa a atividade básica das Ciências na sua indagação e descoberta da realidade. É uma atitude e uma prática teórica de constante busca que define um processo intrinsecamente inacabado e permanente. É uma atividade de aproximação sucessiva da realidade que nunca se esgota, fazendo uma combinação particular entre teorias e dados. O lócus da pesquisa não se deu apenas através de idas a instituições, mas através da presença em encontros, seminários e grupos de estudos voltados à temática LGBT. Essas aproximações foram de suma importância para um desvelar das vivências de travestis e transexuais no tocante à sua visibilidade, suas pautas e reinvindicações com relação à saúde, educação, legislação e demais direitos. Embora comumente utilize-se a terceira pessoa em produções científicas, opto por utilizar a primeira pessoa como forma de apropriação do que foi produzido até aqui visando o não distanciamento e o reconhecimento da minha subjetividade durante o processo aqui descrito. A ausência de alguma das ferramentas de pesquisa mencionadas acima pode comprometer todo o trajeto teórico e analítico do presente estudo, bem como a sua viabilização, execução e compreensão. 2.3 Referenciais teóricos: sobre estigma, sexualidade e gênero. Neste tópico iniciarei uma abordagem sobre o conceito de estigma e será utilizada como bibliografia a obra de Eving Goffman, Estigma – notas sobre a manipulação da identidade deteriorada (2004). De acordo com o autor, o termo 30 “estigma” possui origem grega, foi criado para se referir a sinais corporais na procura por evidenciar algo extraordinário ou mal acerca da moral dos indivíduos. Goffman (2004, p.5) aponta que: Os sinais eram feitos com cortes ou fogo no corpo e avisavam que o portador era um escravo, um criminoso ou traidor, uma pessoa marcada, ritualmente poluída que deveria ser evitada, especialmente em lugares públicos. Goffman (2004, p.6) expõe que o termo fora utilizado quando relacionado mais às desgraças do que às evidências corporais e que a sociedade utiliza o referido termo como meio de categorizar as pessoas e seus atributos, como exigências com relação àquilo que o indivíduo deveria ser. O estigma é tido como uma caracterização “efetiva”, ou seja, uma identidade social. Enquanto o estranho está à nossa frente, podem surgir evidências de que ele tem um atributo que o torna diferente de outros que se encontram numa categoria em que pudesse ser incluído – sendo até de uma espécie menos desejável – num caso extremo, uma pessoa completamente má, perigosa ou fraca. Assim, deixamos de considera-lo criatura comum e total, reduzindo-o a uma pessoa estragada e diminuída. Tal característica é um estigma, especialmente quando o seu efeito de descrédito é muito grande – algumas vezes ele também é considerado um defeito, uma fraqueza, uma desvantagem [...] Na citação acima, vemos o autor nomeando diversas características atribuídas aos estigmatizados, dentre elas a exclusão, o perigo, a fraqueza e a desvantagem. Vemos o termo “estigma” utilizado para dar vazão a atributos depreciativos perante a sociedade. Para Goffman (2004) um estigma seria então uma relação existente entre atribuições e estereótipos. Em sua obra, o autor aponta para a existência de três tipos de estigmas, sendo eles as abominações do corpo, como por exemplo, as deformidades físicas; as tribais de raça, como a linhagem dos membros de uma família; e as culpas de caráter individuais, caracterizadas por distúrbio mental, prisão, vício, alcoolismo, e aquilo que o autor chama de homossexualismo, entre outros. As discriminações apontadas acima são feitas com base na crença de que os portadores de estigmas não são completamente humanos. Para o autor, as pessoas que possuem estigmas expressam sentimentos compartilhados consolidando e estabilizando a existência do grupo a que pertencem. 31 A partir disso, serão formuladas ideologias dos membros, queixas e as políticas voltadas para tal grupo. A existência da identidade para categorizar o estigma, a partir dos apontamentos de Goffman (2004) salienta-se que é exatamente ela que faz com que alguns sujeitos sejam estigmatizados. Para ele, existe uma “categorização social” através das normas socialmente impostas e aponta que há casos em que o estigma será aparente e que há casos em que o estigmatizado optará por ocultar informações acerca da sua pessoa, pois os mesmos, às vezes, estratificam seus estigmas: “Ele pode, então, tomar em relação àqueles que são mais evidentemente estigmatizados do que ele as atitudes que os normais tomam em relação a ele [...]” (GOFFMAN, 2004, p. 92). Para Goffman (2004) o estigma envolve tanto uma conjuntura de indivíduos divididos entre estigmatizados e “normais” quanto o processo sociais que os dois papeis desenvolvem perante a sociedade. Ambos não são pessoas e sim perspectivas geradas em um diversificado âmbito e situações sociais em virtude de normas sociais que não são cumpridas, ou seja, o estigma não está atrelado à pessoa em si, e sim sobre a perspectiva que a sociedade tem acerca daquele indivíduo e do cumprimento da norma estabelecida socialmente. O não cumprimento dessa norma e o fato do sujeito não atingir as expectativas tidas pela sociedade o fazem um indivíduo estigmatizado. Diante do exposto, vemos que Goffman (2004) acredita na existência de uma normalidade e, apesar de não compactuar com este conceito do autor, é necessário utilizá-lo, não para reproduzi-lo, mas para pensá-los de outros modos. A desconstrução do conceito da existência de uma normalidade também é tida como uma forma de possibilitar a visibilidade dos estigmatizados, levando em consideração que essa visibilidade não deve ser voltada para os estigmas que possuem, e sim para o que está para além deles. Fazendo uma ligação entre o estigma e a sexualidade, irei pautar-me no artigo escrito por Veras e Guasch (2014) No artigo intitulado A invenção do estigma no Brasil, os autores tratam do estigma como sendo um elemento construtor da representação pública das travestis. A princípio, as travestis possuíam sua visibilidade voltada para o âmbito carnavalesco, de fantasias e fascínio, posteriormente essa visibilidade obteve cunho de estigmatização. 32 As travestis possuem atrelada à sua imagem a presença de excessos, seja de sexualidade ou de vícios, portanto, aparentemente, quando não há excessos, não há sujeito travesti. Diante do exposto, Veras também traz a visibilidade desses sujeitos através de manchetes dos principais jornais de Fortaleza, o jornal O Povo, e o Diário do Nordeste. Nesses jornais, as travestis são abordadas como relacionadas à criminalidade, prostituição e a soro positividade. Veras e Guasch (2014) trazem à tona uma discussão reflexiva em torno de Roberta Close14, que fez com que a repercussão acerca do universo trans se tornasse mais complexa no país através da sua busca em afastar-se do universo travesti, sendo assim, a luta do público trans busca representar uma luta política e de resistências, porém, suas experiências continuam sendo interpretadas como abjetas e estigmatizadas pelo excesso que a sociedade atrelou como intrínseco e inerente às travestis, principalmente ao excesso de sexualidade. Nas últimas décadas do século XX, a sexualidade humana perpassa de uma dimensão apenas biológica para assumir uma visibilidade política através dos movimentos sociais e de analistas que passaram a debater a questão em torno do reconhecimento das identidades e dos direitos sexuais. Tais formulações confrontam-se com a heteronormatividade – heterossexualidade como norma. Na sociedade capitalista, essa diversidade é percebida como uma grande arena de confronto e opressão, submetidas assim aos padrões homogeneizadores. Michel Foucault (1988) em A História da Sexualidade I – A vontade de saber trata do discurso sobre o sexo, sua incitação e tentativa de gestão, afirmando que essa produção discursiva do sexo é ligada às relações de poder existentes na sociedade. A partir da ideia do autor o discurso da sexualidade é exposto como um meio de controle social. Como se, para dominá-lo no plano real, tivesse sido necessário, primeiro, reduzi-lo ao nível da linguagem, controlar sua livre circulação no discurso, bani-lo das coisas ditas e extinguir as palavras que o tornam presente de maneira demasiado sensível. Dir-se-ia mesmo que essas interdições temiam chama-lo pelo nome. Sem mesmo ter que dizê-lo, o pudor moderno obteria que não se falasse dele, exclusivamente por intermédio de proibições que se completam mutuamente: mutismo que, de tanto calar-se, impõe o silêncio. Censura. (FOUCAULT p. 21) 14 Primeira transexual a posar nua na década de 80 no Brasil 33 A economia política da população faz com que seja formada uma teia de observações sobre o sexo. Surgem assim campanhas sistemáticas objetivando fazer com que o comportamento sexual dos casais possua uma conduta econômica e política através de exortações morais e religiosas e medidas físicas, ou seja, a sexualidade torna-se regulador econômico, político e social. Que o Estado saiba o que se passa com o sexo dos cidadãos e o uso que dele fazem e, também, que cada um seja capaz de controlar sua prática. Entre o Estado e o indivíduo o sexo tornou-se objeto de disputa pública; toda uma teia de discursos, de saberes, de análise e de injuções o investiram. (FOUCAULT p. 29). A função do poder quanto ao seu exercício perante a sexualidade é desvelado através de quatro operações distintas, de acordo com Foucault (1988). As quatro operações objetivavam o controle da sexualidade; a caça a sexualidades tidas como periféricas sendo incorporadas ao campo das perversões com especificação de indivíduos, como, por exemplo, os homossexuais tidos como praticantes de sodomia e bestialidades; a transformação da sexualidade em “coisa” médica ou medicalizável como lesão, disfunção ou sintomas de comportamento; e a organização de grupos de sexualidade com distribuição de poder em forma hierárquica. A partir do século XIX, o sexo inscreve-se em dois diferentes registros de saber, sendo um voltado à biologia da reprodução, e o outro relacionado a uma medicina que fosse obediente a uma grande diversidade de regras. O sexo assim passa a ser não só objeto de prazer e sensação, lei ou interdição, mas de verdade. A partir da leitura da obra de Foucault (1988), é possível traçar uma contextualização histórica acerca das suas repercussões na contemporaneidade. Relacionando essa obra com a temática estudada nesse trabalho, foi percebido que a estigmatização sofrida por travestis e transexuais é permeada pela estigmatização da sexualidade em si e pela normatividade exercida em torno da mesma através de uma ideologia burguesa que objetiva o controle social de variadas formas, incluindo assim a sexualidade. Para terminar a discussão acerca da sexualidade e gênero, irei pautar-me na produção de Juliana F. da Justa Coelho (2012) com a produção Ela é o show: performances trans na capital cearense. Em sua obra, Coelho traz reflexões não 34 só acerca das performances trans na cidade de Fortaleza, mas contextualiza historicamente todo o desenrolar do processo em torno da sexualidade, da construção do gênero das travestis, transexuais, drag queens e bissexuais. Para dar início às discussões que Coelho (2012) fazer a partir de Michel Foucault (1988). Em diálogo com este filósofo, a autora lembra que o século XIX é considerado como um dos marcos da produção de discursos médico-legais acerca de práticas sexuais. O aumento do discurso sobre o sexo fez com que ele precisasse ser gerido e regulado para o bem da população, ou seja, a existência da lógica do sexo voltada para a procriação fez com que o sexo fosse visto apenas como uma prática que objetivasse ser descente e saudável. Com isso, dá-se o surgimento dos “desviantes”, que não seguem a prática da sexualidade “recomendada”. O desvio desses faz com que eles sejam vistos como perversos. “Não se trata mais de focar em um tipo de relação sexual incoerente, como ocorria até o final do século XVIII, mas de enfatizar o caráter daquele que assim age” (Coelho, p. 27). Ou seja, passa-se então a focar no comportamento daqueles que tem um comportamento sexual incoerente. A existência de elementos femininos em corpos masculinos e de elementos masculinos em corpos femininos traz à tona a existência de um ser “normal” ou “anormal”. A partir do final do século XIX, adentrando o século XX, Coelho (2012) destaca com os escritos de Weeks (2001) que trata da “institucionalização” da heterossexualidade, que classifica o que é normal do que é anormal tornando essa classificação além de normativa, hierarquizada. Posteriormente, a autora salienta o surgimento da necessidade da construção e da problematização conceitual de gênero. Esse surgimento tem como marco o movimento feminista da década de 60. O conceito de gênero aparece com apelo relacional construído em meio às relações sociais. Abordando a produção acerca dos pressupostos queer de Judith Butler (2003), Coelho (2012) menciona que a presente teoria aparece para enfatizar não só a existência do gênero, de opressores e oprimidos, mas a existência de discursos relacionados a performances constantemente repetidas. As estudiosas queers problematizam a heteronormatividade como sendo definição entre a normalidade e a anormalidade, além de fazer com que transexuais, drag queens, lésbicas, gays e 35 bissexuais sejam tidos como sujeitos que constituem suas identidades vinculadas ao mesmo processo que os “normais”. A existência de um possível sistema sexual restrito ao macho e fêmea, ou seja, binário, remete-nos a crer numa relação entre o sexo e o gênero como sendo o gênero restrito unicamente ao sexo. Pautando-se ainda em Butler (2008), Coelho (2012) vem trazer que os atos relacionados ao gênero são performativos e que a identidade a qual buscam expressar são fabricados através de meios discursivos. A autora termina sua análise chamando atenção para a observação em torno dos debates políticos identitários dos conceitos de gênero e sexualidade que proporcionam além da reflexão sobre análises já constituídas novas análises e novas interpretações acerca desse universo, possibilitando o enriquecimento não só no campo reflexivo, mas também no discursivo e interventivo. 36 3 ORGANIZAÇÃO POLÍTICA TRANS 3.1 A organização política de travestis e transexuais Em 1980, a bandeira da luta frente à violência contra gays e travestis foi levantada, acontecendo no dia 13 de julho em São Paulo a primeira passeata em prol dos direitos homossexuais. Em decorrência da disseminação da AIDS no país, as medidas preventivas de combate a estigmatização dos afetados tornou-se assim a pauta principal do referido movimento. Na década de 90, houve um aumento das reivindicações voltadas às políticas públicas das pessoas com HIV/AIDS, havendo assim a necessidade de fortalecimento do movimento. Nesse mesmo contexto, o movimento de travestis, que posteriormente tornou-se movimento transexual ou ainda movimento trans., almejou a busca de visibilidade e autonomia devido às suas demandas específicas. No decorrer desse tópico, além da organização de travestis e transexuais em algumas instituições na cidade de Fortaleza, serão salientadas as discussões realizadas em encontros e seminários no tocante a luta travada por travestis e transexuais pelo reconhecimento e efetivação dos seus direitos e problemáticas elencadas em grupos de estudos que abordam como tema corpo, gênero e sexualidade. O antropólogo Alexandre Fleming (2005) observa que a institucionalização de travestis e transexuais é uma nova possibilidade para uma visão menos estigmatizada e rotulada da experiência desses sujeitos. Essa possibilidade acarreta, assim, numa visibilidade menos sexualizada e mais politizada desses sujeitos. O GRAB (Grupo de Resistência Asa Branca) é uma ONG (Organização Não Governamental) que não possui fins lucrativos e nem vinculação partidária. Possui seu reconhecimento enquanto Utilidade Pública Municipal. A fundação oficial do GRAB ocorreu no ano de 1989, sendo uma das organizações voltadas ao público LGBT mais antigas do Brasil em funcionamento.15 15 A formação do GRAB é composta por uma diretoria na qual engloba presidente, vice-presidente, primeiro secretário, segundo secretário, tesoureiro e conselheiro fiscal. Tal conjuntura é eleita em assembleia geral 37 Esse grupo possui atuação direta no enfrentamento ao preconceito por orientação sexual, desenvolve ações no âmbito da proposição, execução e controle social de políticas públicas e também no que diz respeito ao ativismo voltado aos direitos da população LGBT, melhorando assim a qualidade de vida de gays, lésbicas, bissexuais, travestis, transexuais e pessoas vivendo com HIV/AIDS no Estado do Ceará. Sendo assim, o GRAB vem desenvolvendo uma gama de ações e projetos nas áreas de saúde, direitos humanos, ativismo e organização das paradas pela diversidade sexual no estado. No tocante à defesa dos direitos e pelo fim do preconceito, como salienta Ferreira (2003), o GRAB tem articulação com outras organizações e movimentos, como, por exemplo, a International Lesbian, Gay, Bisexual, Trans and Intersex Association (ILGA), em português, Associação Internacional de Lesbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Intersexos. Em 2001, precisamente no dia 22 de novembro, foi aberta a Assembleia Geral de Constituição e Fundação Definitiva da ATRAC, que teve como primeira presidente Janaína Dutra e como vice Thina Rodrigues. Antes da fundação oficial em novembro, a ATRAC ganhou sala própria na sede do GRAB. Em 16 de fevereiro de 2004, Janaína Dutra foi uma das principais militantes do movimento LGBT do Brasil. Ela era cearense e foi a primeira travesti advogada do país a ter carteira da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil). Janaína, dentre suas várias atuações exerceu um trabalho pioneiro junto ao Ministério da Saúde na elaboração da primeira campanha de prevenção da AIDS voltada especificamente às travestis. Janaína Dutra faleceu aos 43 anos vítima de câncer pulmonar. Carvajal (2014) traz em seu trabalho de conclusão de curso algumas informações referentes à Associação de Travestis do Ceará. Atualmente a ATRAC não dispõe de sede própria e possui como presidente e referência Thina Rodrigues. Mesmo desprovida de sede própria, a ATRAC não deixa de se fazer presente ou de promover ações voltadas para a população travesti na cidade de Fortaleza. A associação desenvolve blitz com cunho educativo e preventivo. Durante as abordagens são feitas perguntas às travestis voltadas ao sexo, educação, violência, além de encaminhamentos necessários, retirada de documentação e acompanhamento em hospitais para diagnósticos de HIV/AIDS. As ações da ATRAC ocorrida a cada dos anos, além disso, possui uma coordenação de projetos, colaboradores internos e membros associados. 38 não são voltadas apenas para o Município de Fortaleza e acontecem também em alguns municípios do interior do estado. Na cidade de Fortaleza, os pontos de abordagem são locais de prostituição, cines pornôs, casas de massagens ou em residências fixas de travestis ou transexuais Outra importante instituição é Centro de Referência LGBT Janaína Dutra, um órgão cuja responsabilidade é planejar, articular e executar ações nas áreas de promoção, defesa e difusão dos direitos de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. O centro foi demandado pelo Orçamento Participativo (OP), realizado pela Secretaria de Direitos Humanos de Fortaleza (SDH). Esse órgão é vinculado à Coordenadoria da Diversidade Sexual da SDH, oferece acompanhamento jurídico, psicológico e de serviço social gratuito para a população LGBT vitimizados pela discriminação, violência, omissão e lesão de direitos decorrentes da homofobia, lesbofobia e transfobia. O Centro de Referência tem como um dos papeis desenvolvidos a produção de conhecimento e pesquisas que venham a contribuir para o mapeamento das desigualdades ocasionadas por orientação sexual e identidade de gênero acarretando, dessa forma, no fortalecimento do movimento LGBT enquanto sujeitos políticos e de direitos. A implementação de políticas públicas específicas é outra ação relevante do Centro de Referência LGBT Janaína Dutra. As políticas são trabalhadas de forma intersetorial para que todas as políticas e órgãos públicos voltados para o atendimento a lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais sejam integrados, objetivando a constituição e o fortalecimento da rede de atendimento às vítimas de violência e discriminação por orientação sexual e identidade de gênero. Nessa instituição também acontece quinzenalmente, às quintas feiras, no espaço Casarão, o grupo de estudos Corpo, Gênero e Sexualidade. Participam do grupo pesquisadores, usuários, um advogado e psicólogo além de outros estudantes que eventualmente aparecem.16 Ainda trazendo vivências no campo, destaco A realização de seminários como outro mecanismo importante no debate e na tentativa de construção de politicas publicas voltadas para essa população. No dia 11 de novembro de 2014, na cidade de Fortaleza aconteceu o IV Seminário de Políticas Públicas LGBT – Ceará sem Homofobia. O evento foi 16 O grupo de estudos é aberto para qualquer que demonstre interesse em participar 39 promovido pelo Gabinete do Governador através da Coordenadoria Especial de Políticas Públicas para Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. O evento deu início às 9 da manhã e aconteceu até às 17hs com serviço de café da manhã e almoço para todos os presentes. Na ocasião, foram elencadas discussões relacionadas ao enfrentamento de qualquer tipo de preconceito vivido pela população LGBT. Dentre os assuntos, também foram levantados debates sobre família, religião, criminalização da homofobia, educação, direito, nome social e outros. No dia 13 de novembro de 2014, aconteceu o seminário “Saúde, direitos e nome social: Respeito à identidade de gênero de Travestis e Transexuais”, organizado pela ATRAC (Associação de Travestis do Ceará), que tem como presidente Thina Rodrigues. O evento ocorreu no Teatro Morro do Ouro no centro de Fortaleza. Várias travestis, transexuais, representantes do governo do Estado do Ceará e do município de Fortaleza, bem como estudiosos estavam presentes no seminário. Dentre as várias discussões realizadas, algumas chamaram a atenção da pesquisadora. Foi salientada pelos ocupantes da mesa que existe, sim, na legislação uma igualdade dos sujeitos perante a lei, porém, tornam-se diferentes perante a execução dos direitos devido à invisibilidade do público LGBT, em especial, de travestis e transexuais. Contudo, foram destacados avanços nas conquistas obtidas pelo público LGBT, dentre elas a Portaria nº 2.836, instituída no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), que foi a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (Política Nacional de Saúde Integral LGBT), e a Resolução nº 437/2012 referente ao Nome Social. Ressaltou-se ainda a vulnerabilidade a que estão submetidos os sujeitos travestis e transexuais a respeito da falta de oportunidade no mercado de trabalho e a necessidade de um olhar mais humanizado que deve voltar-se para esses sujeitos, apontando assim para a existência de movimentos sociais como mecanismo de transformação da sociedade para possibilitar a visibilidade de travestis e transexuais para além dos estigmas. 40 3.2 29 de Janeiro – Dia Nacional da Visibilidade de Travestis e Transexuais Desde o ano de 2004, o dia 29 de Janeiro passou a ser comemorado o Dia Nacional da Visibilidade de Travestis e Transexuais. Essa data foi instituída pelo movimento LGBT quando lançada a campanha “Travesti e Respeito” no Congresso Nacional, através do Ministério da Saúde. A data salienta a importância da visibilidade e o respeito às travestis e transexuais dentro da sociedade brasileira. O dia 29 de janeiro vem lembrar a luta do movimento LGBT pela cidadania e direitos desse segmento da população. “Travesti e Respeito”, foi centrada no reforço de atitudes de respeito e inclusão social desse mencionado segmento da população. As ações efetuadas nessa data buscam dar uma visibilidade real às travestis e transexuais, ou seja, prezam o reconhecimento das mesmas enquanto sujeitos de direitos, já que esse segmento, por diversas vezes, é retratado na mídia em programas humorísticos ou em boletins policiais. “Travesti e Respeito: já está na hora dos dois serem vistos juntos” foi elaborada por líderes do movimento de travestis e transexuais em parceria com o Programa Nacional de DST/AIDS. A divulgação da campanha foi efetuada através de folders direcionados aos profissionais de saúde e para educadores sociais, orientados a receber as travestis por seu nome feminino, alertando também para as necessidades de investigação relacionada a doenças sexualmente transmissíveis e a AIDS, uso de hormônios e focando na exclusão social das travestis, que ocorre devendo-se, fundamentalmente, ao abandono escolar, primeiro lugar onde elas se depararam com a dificuldade de adaptação. Outro foco da campanha foi a não aceitação do mercado de trabalho. Essa discriminação culmina na migração de boa parte delas para o mercado do sexo, tornando-se assim mais vulneráveis a infecções e violências físicas e psicológicas. No “Dia Nacional da Visibilidade de Travestis e Transexuais” várias ações são efetuadas em todo o território nacional, dentre elas a exibição de filmes temáticos, vacinas para hepatites virais, blitz informativa e educativa, a confecção do cartão do Sistema Único de Saúde (SUS) com o nome social das travestis e transexuais e outras. A mais recente campanha em comemoração ao Dia Nacional da Visibilidade Trans foi promovida no ano de 2012 e teve como slogan “Sou travesti. 41 Tenho direito de ser quem eu sou”. A campanha teve como proposta a promoção da inserção social, a possibilidade de uma imagem mais positiva do público trans, a disseminação do conhecimento acerca de métodos preventivos no tocante a AIDS e outras doenças sexualmente transmissíveis e o combate à violência sofrida por elas. Como ponto de destaque da referida campanha tem-se o protagonismo das travestis e transexuais. Pela primeira vez, as próprias responsáveis não só na divulgação da campanha, mas também no seu processo político e criativo. É necessário que o dia 29 de janeiro possua uma repercussão voltada para que as travestis, transexuais e homens trans sejam aceitos perante a população e além de viverem numa sociedade livre de preconceitos e violências, possuam seus direitos respeitados de forma plena. 3.3 Reconhecer a Identidade de Gênero: O nome social As palavras visibilidade e invisibilidade são bastante significativas para a comunidade de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. Pertencer a esta “sopa de letras” que representa a comunidade sexodiversa (ou a comunidade dos “invertidos”) é transitar, ao longo da vida, entre a invisibilidade e a visibilidade. Se para lésbicas e gays, serem visíveis implica em se assumirem publicamente, para as pessoas transexuais, travestis, transgêneros e intersexuais, a visibilidade é compulsória a certa altura de sua vida; isso porque, ao contrário da orientação sexual, que pode ser ocultada pela mentira, pela omissão ou pelo armário, a identidade de gênero é experimentada, pelas pessoas trans, como um estigma que não se pode ocultar, como a cor da pele para os negros e negras. (LEI DE IDENTIDADE DE GÊNERO, 2012, p.6) O presente ponto vem trazer as legislações, projetos de lei e resoluções vigentes que asseguram os direitos de travestis e transexuais em âmbito nacional, estadual e municipal. Mencionar essas legislações é mais uma forma de desvelar o sujeito travesti e transexual enquanto sujeito de direito. Partindo da conjuntura nacional, em fevereiro de 2013, foi feito pelo Deputado Jean Wyllys e da Deputada Érika Kokay um projeto de lei que dispunha sobre o direito à identidade de gênero. A Lei de Identidade de Gênero recebeu o nome de Lei João W Nery,17 um dos primeiros transexuais masculinos do país a 17 João W. Nery (2011) escreveu o livro autobiográfico “Viagem Solitária”. O livro conta a trajetória do primeiro transexual masculino operado no país na década de 70 42 passar por cirurgia e fazer a utilização de hormônios com a finalidade de possuir uma identidade masculina. O projeto é baseado na lei de identidade de gênero argentina, propõe a garantia de direito de toda pessoa que reconheça sua identidade de gênero que tenha livre desenvolvimento da sua pessoa, conforme sua identidade de gênero e, portanto, que assim seja identificada nos instrumentos que acreditem sua identidade pessoal. Esse projeto estabelece mecanismos jurídicos para que a identidade de gênero seja reconhecida, possibilitando às pessoas a retificação de dados registrais, sexo, prenome e foto de documentações pessoais. Como princípios regentes do mecanismo estabelecido para a viabilização desse projeto têm-se a facilidade e rapidez do acesso a documentação, sendo ainda sigiloso e gratuito. O procedimento deve ser realizado em cartório, não requerendo a intervenção da justiça ou a exigência de diagnósticos de psicólogos e psiquiatras acarretando assim na despatologização das identidades trans18, Além da Lei de Identidade de Gênero existe o Projeto de Lei da Câmara (PLC) 122/06. Esse PLC tem como objetivo criminalizar a discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero. A discriminação por orientação sexual e por identidade de gênero diz respeito àquela cometida contra sujeitos homossexuais, bissexuais, travestis e transexuais. O PLC visa punir a discriminação e não o preconceito, visto que um diz respeito a um tratamento diferenciado, e o outro por um juízo mental, respectivamente, porém, vale ressaltar, que a ofensa motivada por razões preconceituosas implica em discriminação. Esse projeto tem sua relevância pela conscientização social referente ao direito da população LGBT. É necessário acabar com os ataques existentes ao grupo recorrente da homofobia, transfobia e lesbofobia. Com relação ao nome social, entende-se como aquele adotado pela pessoa a partir de como ela é conhecida ou identificada na comunidade, respeitando assim sua identidade expressiva. Para as pessoas trans, essa expressividade dá-se 18 A STP (Stop Trans Pathologization) é uma campanha internacional pela despatologização das identidades trans. A presente campanha tem como objetivos principais a retirada da categoria “disforia de gênero”/“transtorno de identidade de gênero” dos catálogos diagnósticos da DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), e do CID (Código Internacional de Doenças). Disponível em < http://www.stp2012.info/old/pt> acesso em 08/12/2014 43 a partir da sua identidade de gênero. A adequação do nome à expressão/identidade psíquica e social de gênero pode ser feita de modo independente ou jurídico. O nome social teve seu uso legitimado por entidades como o MEC (Ministério da Educação). Sendo assim, o Conselho Estadual de Educação do Estado do Ceará deliberou em Sessão Plenária no dia 11 de abril de 2012 a Resolução nº 437/2012 que determina que quando requerido, as instituições escolares de educação básica e ensino superior devem respeitar à cidadania, os direitos humanos, a diversidade, o pluralismo e a dignidade da pessoa humana através da integração não só do nome civil, mas também social de travestis e transexuais nos registros internos dessas instituições. Os alunos maiores de 18 anos podem requerer a inclusão do nome social a qualquer momento do ano letivo. Os menores de 18 anos apenas mediante autorização conjunta dos pais ou responsáveis ou por decisão judicial. Outro meio de adequação da expressão/identidade de gênero é a mudança ou retificação de prenome. Essa mudança visa ao atendimento às pessoas travestis e transexuais, principalmente transexuais, por entenderem que seu nome original não está de acordo com sua identidade de gênero. Essa dupla retificação, além de possibilitar essa expressão indenitária vai de encontro a situações vexatórias a qual sujeitos travestis e transexuais estão expostos perante a sociedade. No âmbito estadual, é possível elencar várias conquistas da Coordenadoria LGBT, dentre elas a Portaria nº 544/2010 que assegurem aos servidores públicos e colaboradores da Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social (STDS) o direito de uso do nome social adotado por travestis e transexuais; a Lei nº 14.820/2010, que estabelece a Semana da Diversidade Sexual do Estado do Ceará, que é comemorada na semana que antecede o último domingo do mês de junho de cada ano (Semana Luiz Palhano Loiola), e a Lei nº 14687/2010, que garante o acesso dos companheiros (as) dos servidores (as) estaduais, inclusive os do mesmo sexo, a todos os direitos previdenciários. Na Constituição do Estado do Ceará está expresso: Art. 14 - O Estado do Ceará, pessoa jurídica de direito público interno, exerce em seu território as competências que, explicita ou implicitamente, não lhe sejam vedadas pela Constituição Federal, observados os seguintes princípios: 44 III – Defesa de igualdade e combate a qualquer forma de discriminação em razão de nacionalidade, condição e local de nascimento, raça, cor, religião, origem étnica, convicção política ou filosófica, deficiência física ou mental, doença, idade, atividade profissional, estado civil, classe social, sexo e orientação sexual. No Estado do Ceará também existem leis que penalizam estabelecimentos por discriminação em razão da orientação sexual. Os municípios que disponibilizam dessas leis são: Caucaia (Lei nº 1437/2001); Juazeiro do Norte (Lei nº 2720/2002); Horizonte (Lei 469/2004); Maracanaú (Lei nº 13/2007) e Limoeiro do Norte (Lei nº 13/2007). Alguns municípios também dispunham da proibição da discriminação por orientação sexual em sua lei orgânica. São eles Barro (art 8); Farias Brito (art 8); Granjeiro (art 188) e Novo Oriente (art 213). A instituição do dia 28 de junho como o dia do Orgulho LGBT e da Livre Expressão Sexual expresso na Lei nº 13.644 é disposta também em Limoeiro do Norte (Lei nº 12/2007) e Maracanaú (Lei nº 886/2003). 45 4 VIVÊNCIAS TRANS O presente capítulo trata-se das entrevistas realizadas com Raphaella Lopes (21), Isabela Lemos (21), ambas transexuais, e as análises de entrevistas concedidas para a Revista Entrevista da disciplina de Laboratório de Jornalismo Impresso do curso de Comunicação Social da Universidade Estadual do Ceará (UECE) com Luma Andrade, “primeira travesti doutora do país” e Thina Rodrigues, presidente da ATRAC Sem a realização e análise dessas entrevistas não seria possível captar a subjetividade das entrevistadas, que são mais que sujeitos pertencentes à realidade vivida por travestis e transexuais. Elas são possibilidades para a intervenção e visibilidade política dentro da crítica à sociedade heteronormativa na qual vivemos. 4.1 Raphaella Lopes Realizei a entrevista com Raphaella Lopes no dia 28/10/2014. Cheguei à sua casa às 14hs, pontualmente. Fui recebida por sua tia que me pediu para entrar. Ela já estava à minha espera de forma confortável e prontamente me mostrou-me as casas que ocupavam o enorme terreno que ficavam no mesmo local de sua residência. Era um espaço amplo que abrigava a sua casa e a de vários parentes. Sentamos à mesa e começamos a conversar. Agradeci a disponibilidade em participar da pesquisa e iniciei a entrevista, que foi gravada. Após autorização para que seu nome verdadeiro fosse utilizado na pesquisa, Raphaella respondeu algumas perguntas de cunho pessoal, social e político de maneira clara e sempre baseada em histórias vividas e também na legislação que a assegura. Estudante de Publicidade e Propaganda, Raphaella definiu-se como transexual, tem 21 anos de idade, atualmente dedica-se apenas à faculdade e mencionou que irá se formar em breve e se mudará para a cidade de São Paulo para trabalhar como modelo. No início da entrevista, a entrevistada fala com muito orgulho de uma de suas conquistas. Sem mencionar o nome antigo, Raphaella Lopes esboça 46 entusiasmo ao falar que, por lei, conseguiu a retificação do seu prenome, que significa a mudança do seu prenome através de ação jurídica, fazendo com que seu nome esteja de acordo com a identidade de gênero que lhe cabe. Ao falar da sua transformação, Raphaella demonstra notória segurança. Não entrou em detalhes com relação às suas experiências durante a infância, e com relação à família, apenas se limitou a dizer que sempre foi muito feminina e gostava de brincar de bonecas. Na escola não tinha amizade com meninos, apenas com meninas e não utilizava o banheiro. Raphaella não se via como gay e não entendia o porquê: [...] e eu nunca me vi... gay e eu não entendia porque é que eu gostava de menino e eu não era gay porque na minha época, eu não sabia o que era travestilidade, o que era homossexualidade, o que era transexualidade, eu não sabia quais eram esses termos, eu nunca tinha visto uma travesti na minha vida, eu nunca tinha visto uma mulher transexual na minha vida, eu não sabia o que era, então eu não podia me auto afirmar e dizer, não, eu sou assim mas eu me via como mulher [...] (entrevista concedida no dia 28 de outubro de 2014. Grifo nosso) Raphaella relata que quando já estava na faculdade conheceu uma pessoa que foi de suma importância para a sua transformação definitiva. Essa amiga aconselhou Raphaella a procurar um psicólogo. Após sessões com o psicólogo e o diagnóstico de que ela era uma mulher transexual, ela passou a buscar maiores informações sobre sua condição, começou a se politizar e tomar hormônios femininos, dando início a sua transformação, que de acordo com ela, não demorou muito, já que ela possuía traços bastantes femininos mesmo antes da hormonização. [...] já tinha traços femininos, voz meio que já delicada, não tinha gogó, não tinha traços masculinos, isso facilitou muito com a hormonização, ou seja, eu consegui mudar as minhas características muito rápido, eu sempre tive quadril, sempre tive isso, mas, com a hormonização ela foi muito rápida, ela deu uma acelerada a minha mudança.” (idem) Sobre as diferenças entre travestis e transexuais, Raphaella alega não perceber muitas, a não ser pela necessidade que mulheres transexuais têm de fazer a cirurgia de readequação sexual, a transgenitalização, enquanto as travestis não, já que utilizam o pênis para sentirem prazer, ao contrário das mulheres transexuais que não utilizam. Esse tipo de classificação atualiza categorias científicas de que a transexual seria aquela que necessita de cirurgia. 47 Relatando sobre preconceitos, Raphaella foi alvo de um que teve destaque na mídia nacional e internacional envolvendo uma casa de shows bastante conhecida na cidade de Fortaleza. Raphaella foi impedida, junto com outra amiga transexual, de utilizar o banheiro feminino do estabelecimento, mesmo após ter ido algumas vezes no decorrer da noite. Segue o relato da entrevistada sobre o ocorrido: [...] eu estava no Piratas, em plena segunda feira com uma amiga minha, e a gente entrou, só que pra entrar ela teve que mostrar a identidade dela e eu não precisei ai ela foi, mostrou a identidade dela e tal, e na identidade dela tinha o nome dela masculino, a gente começou, ai entrou no banheiro feminino normal, entramos durante muito tempo, aí chegou uma hora que a moça chegou pra gente e falou assim “você não pode mais entrar no banheiro feminino” aí eu “porquê?” “porque o gerente da casa pediu que vocês não entrassem, que vocês se direcionassem ou ao banheiro de deficientes físicos ou ao banheiro masculino”, eu disse “mas tu ta vendo alguma deficiência física em mim? porque eu não tô vendo” ai ela, ai ele falou “não mas foi porque ele pediu” “então chama ele pra conversar comigo” ele não quis falar comigo aí veio outra pessoa aí pediu a identidade “você só pode entrar se você mostrar a identidade” ai eu disse “quer dizer que toda mulher que vai entrar no banheiro tu pede a identidade pra saber se é mulher ou não?” aí ele “não mas é porque vocês precisam saber e tal...” aí eu fui e mostrei a identidade, aí eu sei que ele acabou não deixando, aí eu disse “pois pode chamar a polícia porque eu vou prestar queixa” aí prestei queixa contra eles, liguei pro disque 100 porque existe todo um protocolo pra você entrar com um processo contra um estabelecimento ou algo que te gere constrangimento ilegal e aí eu entrei, liguei pro disque 100 e fiz todo um protocolo, fui direcionada pra coordenadoria LGBT daqui que é a Janaina Dutra e aí lá eu tive apoio das meninas e entrei com uma ação contra eles, se não me engano eles tiveram que pagar uma multa pra... pra Prefeitura e eu não quis entrar com o processo pessoal porque ia demorar muito tempo e eu já tava indo embora pra São Paulo então isso ia requer muito tempo e eu não ia poder ficar indo e vindo indo e vindo[...]” (entrevista concedida no dia 28 de outubro de 2014. Grifo nosso) O relato de Raphaella acerca do ocorrido no mencionado bar da cidade de Fortaleza traz à tona uma das notícias mais recorrentes sobre as situações constrangedoras para travestis e transexuais quanto à utilização dos banheiros em locais públicos. Em Fortaleza, vários casos já foram relatados não apenas em casas de show e bares, mas também em shoppings e faculdades. Além desse relato, Raphaella também aponta a questão do preconceito dentro do mercado de trabalho. Segundo ela, os empregadores não levam em consideração o currículo das candidatas, e sim a sua aparência. Além disso, existe a vinculação da figura de travestis e transexuais à prostituição, ponto já levantado no desenvolvimento do presente trabalho. 48 A regionalização do preconceito também foi abordada por Raphaella. Segundo ela, a partir de experiências vividas por ela e por amigas, o preconceito no nordeste com mulheres transexuais é maior do que no Sul e no Sudeste. Ela atrela esse preconceito à falta de informação, conhecimento e politização. Em São Paulo, ela demorou cerca de dois meses no processo de retificação do prenome, e em Fortaleza, relata que conhece meninas que estão há mais de um ano na fila para conseguir essa conquista judicialmente. Sobre a cirurgia de transgenitalização, Raphaella diz que está em processo de acompanhamento com o psicólogo e aguarda que o mesmo autorize a sua cirurgia para que ela possa fazer até o final do ano de 2015. Quando perguntada sobre o que pode ser feito para amenizar o alto índice de preconceito com travestis e transexuais no país, Raphaella mostra-se categórica em dizer “politizar, tornar conhecido”. Ela chama atenção para a visibilidade que travestis e transexuais possuem, mas com cunho humorístico colocando de lado então uma visibilidade mais séria no tocante ao público LGBT: [...] hoje em dia eles só te chamam pra um programa se forem pra te... pra levar pro lado cômico da história, vamos dizer assim, eles te chamam pra brincar com um rapaz pra você se passar por mulher e depois eles vão e dizem que na verdade você é um homem sabe? Eles, eles fazem isso e tem gente que se presta a esse tipo de, de, de papel e acaba manchando a reputação de uma classe toda. É... é tornar conhecido todas é... tudo o que as transexuais fazem de bom, que as mulheres travestis fazem de bom [...]” (idem) A visibilidade para além dos estigmas está atrelada à visibilidade social, política, de luta e reconhecimento dos direitos que as travestis e transexuais possuem. Como uma forma de possibilitar essa visibilidade, Raphaella aponta uma saída, um meio de ruptura com o pensamento conservador e a possibilidade de uma nova visão da sociedade para com as mulheres travestis e transexuais: [...] tem tanta mulher transexual que faz tanta coisa assim que não é gerada pro, pro, pra esse estigma de prostituição sabe? São leis que deviam ser implantadas como a do deficiente físico, exigir uma porcentagem de deficiente físico em empresa de grande e médio porte, fazer isso também sabe? Englobar, vamos colocar 20% também nas empresas de travestis e mulheres transexuais, gerar oportunidade de, de cursos gratuitos pra elas poderem aprender porque ou é, ou é garota de programa, ou é cabelereira, manicure, é isso, é isso que a gente conhece [...]” (idem) 49 Durante a entrevista, Raphaella mencionou seus conhecimentos acerca de políticas voltadas para o público LGBT, dentre elas, a existência de uma que venha a minimizar o processo burocrático para a realização da cirurgia de readequação sexual. Segundo ela, a necessidade de acompanhamento e a confecção de laudos de psicólogos, psiquiatras, assistentes sociais e endocrinologista acabam tirando das mulheres transexuais a autonomia que elas deveriam ter sobre o seu próprio corpo. [...] Tem agora uma lei que eles querem aprovar que é pra que eu possa readequar o meu corpo sem precisar de tudo isso, eu tenho autonomia, sobre eu ter autonomia sobre o meu próprio corpo, porque eles dizem assim “se você não fizer tudo isso, depois que você fizer a cirurgia, você pode ficar louca e se matar”, mas quantas não se matam porque não consegue essa cirurgia? Quantas não se matam porque precisam passar por tudo isso e não tem condições financeiras de passar [...]” (idem) Raphaella relata também, a partir das suas vivências, a visão que a sociedade tem do público LGBT: uma classe promíscua não havendo distinção entre travestis e transexuais. Com isso, para a entrevistada, a sociedade acaba generalizando e utilizando como parâmetro a seguinte frase: “é tudo travesti”. Terminamos a entrevista com um clima descontraído falando sobre vivências na faculdade e namorados. Raphaella demonstrou enorme entusiasmo em terminar a faculdade e se mudar para São Paulo para trabalhar como modelo e se realizar não só no âmbito profissional, mas também no pessoal. Com a entrevista de Raphaella, é possível perceber que cada vez mais travestis e transexuais buscam tomar conhecimento acerca dos seus direitos e que esse conhecimento não fica apenas à margem da reflexão, mas também da prática. Saber é necessário, porém, a execução deve partir, em primeira instância, dos próprios sujeitos. Portanto, o conhecimento é, na entrevista realizada com Raphaella, percebido como mecanismo para ir de encontro ao processo de estigmatização sofrido não só por ela, mas por tantas outras. 50 4.2 Isabela Lemos Conheci Isabela durante o seminário “Saúde, Direito e Nome Social – Respeito à Identidade de Gênero de Travestis e Transexuais”, promovido pela ATRAC. O contato inicial com Isabela deu-se a partir do momento em que ela, gentilmente, pediu que eu ficasse olhando suas coisas por alguns instantes. Ao voltar e perceber que eu carregava nas mãos uma pasta, caderno e uma caneta a curiosidade despertou-lhe interesse em perguntar “você é estudante?”. A partir daquele momento, vi em Isabela uma pessoa solícita, curiosa em aprender sobre coisas novas, principalmente sobre o universo LGBT. Após uma conversa informal, na qual expliquei sobre o que me levou ao seminário, bem como uma leve explanação sobre minha pesquisa, senti-me na liberdade de perguntar “gostaria de participar da pesquisa?”. Isabela prontamente abriu um enorme sorriso e respondeu com toda delicadeza que aceitava. Marcamos nosso encontro para a semana seguinte em um shopping localizado no bairro Benfica na cidade de Fortaleza. Encontramo-nos no dia 20 de novembro às 11:00h da manhã. O shopping não estava muito movimentado, pois tinha aberto há apenas uma hora, porém, os olhares para Isabela não passavam despercebidos. Apesar dos poucos passos que demos no interior do shopping, a curiosidade dos que passavam por nós era notória, e essa curiosidade dos outros foi percebida por mim ao longo de todas as horas em que estive ao lado dela. Isabela demonstrava entusiasmo para partilhar sua subjetividade e suas vivências comigo. Além disso, ela convidou-me para participar do grupo de estudo “Corpo, Gênero e Sexualidade”, que acontece semanalmente no local onde comporta a Coordenadoria LGBT, Janaína Dutra. Após aceitar o convite, nos fomos para um local tranquilo no interior do shopping onde pudéssemos nos sentar e dar início a nossa conversa. Logo na primeira pergunta, quando pedi para Isabela se apresentar, ela foi enfática ao falar seu nome social e sobrenome, mencionou o porquê da escolha do nome “Isabela”, porém demonstrou certo incômodo ao pensar na possibilidade de ter que mencionar seu nome civil. 51 Isa porque parece com meu nome é de menino, que eu não vou dizer porque eu tenho vergonha e Bela porque eu queria alguma coisa que parecesse com Isa, porque todo mundo me chamava de Isa, Isa e eu não queria ser só Isa, ai eu deixei Isabela que eu acho bonito. (entrevista concedida no dia 20 de novembro, 2014) Isa tem 21 anos e mencionou durante a entrevista que se identifica como transexual desde os três anos de idade. Ela relata que já percebia em si mesma um desejo der ser feminina, de vestir roupas femininas, de ser tratada como menina e que por perceber que essa não era a forma “correta” de ser, foi se retraindo devido a não aceitação dentro de casa e perante a sociedade. No tocante a cirurgia de transgenitalização, Isabela menciona que desde criança nutre a vontade de se submeter ao processo, pois já tinha ouvido falar da existência dessa possibilidade. [...] eu me identificava como menina desde criança assim, no meu sentar, no meu agir, no meu falar, a minha voz sempre foi feminina entendeu, então assim, eu vim descobrindo aos poucos, porque quando você é criança você realmente não sabe o que tá acontecendo, você fica naquela confusão, mas eu tinha a certeza dentro de mim que eu era uma menina, não, não tinha porque eu me tratar como menino [...]” (idem, grifos nosso) Quando questionada acerca da diferença entre travesti e transexual, Isabela partilhou da mesma resposta que Raphaela, a primeira entrevistada, que as travestis consideram-se enquanto mulheres, porém não sentem a necessidade de fazer a cirurgia de readequação sexual, o contrário das transexuais. Isabela surpreende quando menciona seu processo de transformação, pois, apesar de ter uma aparência feminina, delicada e longos cabelos pretos, ela afirma que não faz ingestão de hormônios, acarretando assim num longo período para que externasse a aparência feminina que possui. Ao mencionar a família, Isabela ressalta que sua mãe sempre foi bastante preconceituosa e esse foi um dos motivos que fez com que seu processo de transformação demandasse certo tempo. A decisão de assumir sua feminilidade no tocante as roupas e outras vaidades aconteceram no inicio de 2014: Eu nunca tive coragem de me vestir realmente como mulher, mas meu cabelo sempre foi grande, eu tentava usar roupas meio termo, sempre unissex né, tal, mas me assumir de verdade mesmo foi esse ano, no começo desse ano, que foi na virada do ano, na virada do ano que eu vesti realmente roupa de mulher e tal, pintei unha, fiz sobrancelha mesmo bem direitinho fina e tal tudo foi esse ano.” (idem). 52 Durante a conversa, Isabela partilhou comigo quais preconceitos vivenciou e de que forma lidou com eles. A escola é mencionada pela entrevistada como o ambiente o qual sofreu mais preconceitos ao longo da sua vida e as experiências vividas nesse âmbito fizeram com que hoje, Isabela seja uma pessoa tímida, mas que já está trabalhando esse aspecto. Para Isabela, a sociedade enxerga as pessoas convivendo com apenas dois gêneros e as pessoas que não se enquadrem a esse padrão, no caso, a heteronormatividade, automaticamente é nomeado como “viado” ou “sapatão”. Isabela ressalta que a partir do momento em que resolveu assumir-se enquanto mulher, os preconceitos diminuíram e atribui isso à segurança que passou a ter com o passar do tempo, e ao reconhecimento que possui em ser uma pessoa que possui direitos e não permite que eles sejam violados, como no trecho a seguir “[...] a segurança, a segurança no falar, a segurança no chegar e mostrar que eu tenho direitos, que eu sou um ser humano também, que eu sou uma pessoa que pago meus impostos, pago minhas contas e não devo satisfação da minha vida a ninguém [...]”. Isabela atribui o preconceito que vivenciou e vivencia à falta e informação existente na sociedade e que a forma como se reconhece não foi uma opção Porque assim, as pessoas elas não entendem que a gente nasce assim, eu não escolhi sofrer, porque você acha... olha, se você for escolher entre, né eu ter me assumido mesmo, meu sexo biológico homem e não ter sido trans, é... eu, eu, eu acho que eu sofreria muito mais, porque é uma agressão a gente, quando eu me vestia de homem eu não era feliz, eu me sentia muito agredida, então, as pessoas elas não entendem, que isso a gente nasce, a gente vem com toda uma carga muito forte, que a gente não escolhe, eu não escolhi sofrer entendeu? Porque a sociedade ela é muito preconceituosa, se fosse pra escolher a ser homem ou uma trans, eu escolheria ser homem, porque aí eu ia sofrer bem menos entendeu? Então eu procuro mostrar pras pessoas quando vem me criticar assim dessa forma, de uma forma sutil, mas que é preconceituosa, eu tento explicar pra elas o meu ponto de, o meu ponto de vista não, o ponto de vista que é o certo, entendeu? Pra que elas possam me entender. Porque às vezes as pessoas são assim mais por falta de informação, as pessoas são muito desinformadas, muito mal educadas, então é uma sociedade que ainda precisa crescer muito.” (idem) A “carga muito forte” que Isabela menciona, relaciona-se à estigmatização, à rotulação atribuída a ela no âmbito familiar, escolar e social em 53 geral, em decorrência da visão cartesiana socialmente construída e velada no tocante à normatização dos gêneros. Quando questionada sobre as políticas públicas e as legislações que a asseguravam, Isabela relata que se considera um tanto quanto leiga nesse assunto, mas que tem buscado, com a ajuda do próprio grupo de estudo o qual participa aprender um pouco mais acerca do universo legislativo em prol da população LGBT, porém fala com entusiasmo sobre o “Nome Social”, descoberto por ela através de sites de busca e pesquisa na internet. Assim como o desvelar acerca do nome social, a existência de uma Coordenadoria LGBT também foi descoberta através de sites de busca e pesquisa da internet. Após tomar conhecimento sobre a legitimação do nome social e da existência do Centro de Referência Janaína Dutra, Isabela deu início ao processo que possibilitará não só a utilização do seu nome “Isabela Lemos”, mas também à cirurgia de transgenitalização futuramente. Perguntei à Isabela o que, na opinião dela, poderia ser feito para mudar a realidade do país quanto ao preconceito vivido pela população travesti e transexual. Mais uma vez, Isabela levantou a bandeira da informação e da educação. Para ela, esses são os pilares que podem dar base, possibilitar e também efetivar uma melhoria na qualidade de vida e no respeito de travestis e transexuais enquanto cidadãos. [...] do respeito à educação, eu acho que eram pra ser impostas nas escolas principalmente é, alguma, algo que falasse sobre isso conscientizando as pessoas que elas tivessem conhecimento entendeu, pra saber o que é, pra saber como lidar, pra saber, principalmente pra ser destruído a professor ao aluno entendeu, que eu acho que engloba tudo, hoje as pessoas até mesmo profissionais que trabalham com a gente eles erram muito, então eles deixam muito a desejar, então o que eu acredito, respeito e a educação no Brasil ela tem que mudar significativamente entendeu? Porque é a base de tudo que eu acho.” (idem) Quando questionada sobre o estigma, por exemplo, da prostituição que ronda as travestis e transexuais, Isabela atribuiu tal problemática a falta de oportunidade que as mesmas encontram ao tentar entrar no mercado de trabalho. O fato de se assujeitarem ao universo masculino, sendo tão femininas, para uma entrevista de emprego, segundo relato de Isabela, as agride profundamente, ao passo que identificar a feminilidade numa pessoa com roupas masculinas, automaticamente as excluem de toda e qualquer probabilidade de concorrerem a 54 alguma vaga. Sendo assim, a prostituição torna-se a única saída para que as mesmas não passem fome e possam suprir algumas de suas necessidades básicas. Mas Isabela foge à regra quando o assunto é mercado de trabalho. Ela trabalha numa empresa de transporte no Terminal Rodoviário Engenheiro João Tomé, na cidade de Fortaleza. O emprego foi conseguido através da indicação de uma conhecida com quem já havia trabalhado num outro momento. A aceitação por parte dos demais funcionários da empresa foi satisfatória, pois ela utilizava seu nome social no crachá e todos da empresa a chamavam como ela gostava de ser chamada: “Isa”. Quando ela me viu ela já reconheceu que eu era uma trans e tudo e já me respeitou, daí ela já me respeitou, aí eu fiquei trabalhando e tudo e tal, as pessoas perguntavam meu nome eu, eu, eu dizia meu nome social que é o Isa né que eu gosto de ser chamada de Isa e ela acabou ouvindo, ela acabou sabendo que o pessoal me chamava de Isa, aí foi que ela fez a pergunta, que, aí depois pronto, eu fiquei morta de feliz, ela perguntou assim ‘como é que tu quer que eu coloque teu nome no teu crachá? Teu nome social ou o civil?’ aí eu ‘meu nome social’ ai então pronto e até hoje ela me trata de Isa” (idem) Nas falas de Isa, é possível captar que a afirmação enquanto transexual pode ser pensada como uma fuga do estigma que envolve as travestis. A marginalização do termo “travesti” já foi salientada aqui através dos expostos de Leite Junior (2005), que menciona o “capital linguístico” envolto ao reconhecimento enquanto transexual comparado ao reconhecimento enquanto travesti. Ser transexual significa ter uma maior aproximação com o que é “naturalmente” feminino, enquanto ser travesti significa não ter uma aproximação propriamente dita, mas uma transição entre os dois gêneros e essa transição, esse caminhar entre o masculino e o feminino passa a não ser visto com bons olhos em decorrência da heteronormatividade que perpassa não apenas pelo pensamento dos heterossexuais, mas de toda uma sociedade que compactua com o modo de pensar normativo. Apesar de ter vivenciado diversas experiências dolorosas e difíceis de ser superadas, Isabela mostra que está dando a volta por cima e que é possível construir um futuro, mesmo que incerto, dentro de uma sociedade heteronormativa. Com ambições admiráveis, como cursar faculdade, Isa dá um passo de cada vez para o reconhecimento e efetivação não apenas dos direitos à sua subjetividade, 55 mas de toda uma coletividade que anseia pela mesma oportunidade que ela teve, fortalecendo assim uma luta que é diária. 4.3 Luma Andrade Luma assume uma identidade de gênero travesti. É doutora em Educação pela Universidade Federal do Ceará (UFC); sendo a “primeira doutora travesti do Brasil”. Atualmente é professora adjunta da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira – UNILAB. Atua, principalmente, no campo dos Direitos Humanos, Diversidade cultural, gênero, sexualidade, Educação, Políticas Públicas e Movimentos Sociais. Luma, que se chamava João Filho, nasceu em 17 de agosto de 1977. Adotou o nome de “Luma” por sentir desejo de obter algo mais simples e típico da sua região, a cidade de Morada Nova no Ceará. Luma inicia a entrevista recordando sua infância. Ela relata que sempre gostou de estudar e quando interagia com outras crianças identificava-se mais com as meninas do que com os meninos. [...] quando eu estava na sociabilidade, na hora do intervalo da escola, eu sempre estava com as meninas. Eu me identificava com a forma de como brincavam, como conversavam. Eu achava mais tranquilo, eu achava melhor. E com os meninos, eu não tinha tanto contato. Aquele mundo não fazia parte do meu “eu” porque às vezes era muito violento, era muito desrespeitoso...” (Revista Entrevista 2014, n. 32, p. 9) A entrevistada relata que apesar de ficar a maior parte do tempo com as meninas chegou a ser agredida pelos colegas de sala, porém, não contava aos pais, pois acreditava que estava fazendo algo errado. O receio de ser punida era maior do que a necessidade de transparecer aos pais os preconceitos que vivenciava na escola. Durante a infância, Luma já esboçava uma feminilidade bastante aflorada, e de acordo com ela, essa feminilidade a flor da pele foi o que acarretou suas experiências com o preconceito dos colegas. [...] isso me colocava numa condição muito inquisitorial, porque, enquanto o meu comportamento, o meu posicionamento perante á sociedade era feminino, eu tinha uma genitália masculina. E como ocorre normalmente as pessoas veem o sexo biológico, a questão do determinismo biológico, como 56 fator preponderante para dizer qual vai ser o papel deles na sociedade. A questão da heteronormatividade vai impor dois sexos. E esses dois sexos vão ter de desempenhar dois tipos de papéis. E aí é que entra no contexto da heteronormatividade. Eu sofri até porque eu fazia essa travessia. Na verdade, eu não me adaptava ao meu órgão, a minha genitália. O meu comportamento não era adequado ao que as pessoas esperavam. [...] (idem) Sobre seu ambiente familiar, Luma tinha em sua irmã uma segunda mãe, pois esta era como uma espécie de protetora. Diariamente a buscava na escola. Com relação à sua mãe, Luma afirma que ela não aceitava, porém, respeitava. [...] você pode, de repente, não aceitar, mas respeita, você tem o cuidado nas palavras, você tem cuidado na forma de dizer as coisas. E ela, mesmo sendo uma pessoa analfabeta, era uma pessoa extremamente educada. E sabia dizer o que queria dizer de uma forma que não te agredia. Ela não aceitava, isso era explícito. Ela cobrava a questão de namorada, me interrogava quando achava peças femininas na casa e eu tinha uma grande parceira que era minha irmã [...] (idem) Luma encontrou nos estudos uma fuga para todas as problemáticas que enfrentava ao longo da sua vida, eles eram sua “droga”, com ela mesma afirmou. Hoje em dia ela não utiliza o estudo como uma fuga, pois não vê mais necessidade de se esconder ou de fugir. A mesma sente liberdade para ser quem ela é não necessitando mais de mecanismos de fuga ou disfarce. Sobre seu processo de transformação, Luma relata que deu início após ingressar na faculdade, pois lá já tinha seu espaço conquistado, já era concursada, bolsista, havia sido premiada com o melhor trabalho desenvolvido pela UECE, dentre outras formas de destaque. O processo se deu de forma lenta e gradual, pois ela gostaria de dar a oportunidade dos seus colegas conviveram com ela e a conhecessem para que posteriormente ela pudesse externar toda a feminilidade que exalava, como ela mesma mencionou, antes de qualquer coisa, ela gostaria de saber “aonde pisava”. Quando questionada sobre a militância, Luma dá destaque à vontade de fazer com que outras pessoas não passem pelo que ela passou. Luma está à frente da Associação Russana, que funciona no município de Russas, há 162 km de Fortaleza. A Associação da Diversidade Humana incorpora as diversidades como um todo, não apenas focalizada em um único público. Durante sua entrevista, Luma salienta o papel da educação na luta contra o estigma. A “fuga” nos estudos fez com que Luma se enxergasse livre perante a 57 sociedade. Ao invés de uma prisão, encontrou a liberdade, expressa na seguinte fala: É aquela história de você se “assujeitar” e resistir. Você vai criando essa situação para você poder se mover nessa sociedade que é muito fechada. Então, você vai criando, se movendo dessa forma. Vai ter momentos em que você vai ter que se adequar, se “assujeitar”. Mas vai ter momentos em que você já se assujeitou, já cresceu ali, aí está na hora de mostrar um pouquinho do que você quer. E foi assim, nesses passos lentos, mas objetivos que hoje eu cheguei a ser o que eu sou. Se existe um conceito que eu poderia dizer [...] Luma livre! (idem, p.14) A história de vida de Luma Andrade é um exemplo que deve ser admirado não só no âmbito travesti e transexual, mas pela sociedade como um todo. Apesar de enfrentar limites, preconceitos, julgamentos e rotulações, Luma, mesmo buscando o estudo como uma fuga, mostrou que às vezes a fuga pode levar a um rico caminho de luta e de concretizações. 4.4 Thina Rodrigues Thina também assume uma identidade de gênero travesti. É presidenta da ATRAC e atualmente trabalha na Coordenadoria da Diversidade de Fortaleza. Suas experiências de vida têm muito a acrescentar à sociedade enquanto presidente de uma associação com tamanha importância para as travestis, como para a militância em prol dos direitos dessa população, sendo uma das primeiras travestis de Fortaleza a transformarem sua visibilidade em luta política. Entrevistar Thina não foi possível por uma série de fatores, incluindo a falta disponibilidade de tempo dela, porém, pautando-me no trabalho de conclusão de curso de Ed Borges (2014) e na entrevista concedida para a Revista Entrevista nº 32 (2014), foi possível traçar sua trajetória histórica enquanto sujeito e enquanto militante travesti. Thina é natural do município de Brejo Santo, saiu de casa aos 17 anos. Começou como transformista no ano de 1988, porém já tinha planos de se tornar travesti, na época, com 25 anos. No dia 11 de dezembro de 1988, durante um show de transformismo na boate “Feitiço”, localizada na Avenida Duque de Caxias em Fortaleza, Thina e outras dezenas de homossexuais e travestis foram presas. A 58 prisão aconteceu de forma coletiva, obrigando os/as presos/as a percorrerem vários quarteirões de pontos de encontro do público LGBT da época. Na década de 1990 foi prostituta e cafetina, período em que passou a frequentar o GRAB, Apesar do cenário de luta por direitos do público LGBT possuir uma mobilização já bastante adiantada, pois, a visibilidade do público gay despontara desde 1950. Thina engajou-se na militância através do GRAB, envolvendo-se em várias ações como colaboradora. A partir do GRAB, ela tornou-se mais ativa na política associativa. Entrou em contato com várias lideranças do movimento trans do país, conheceu Janaína Dutra e outras travestis militantes do Estado, dando origem ao esboço do que se tornaria a ATRAC, âmbito de total dedicação de Thina. Thina e ATRAC destacaram-se em decorrência das blitzes que promoviam. Nessas blitzes que aconteciam das 21 horas até às 2hs da manhã em pontos estratégicos da cidade de Fortaleza, eram distribuídos preservativos, lubrificantes e realizado o “Sopão da Solidariedade”. Além dessas distribuições, Thina conversava com as meninas sobre violência, transfobia, fazia breves oficinas sobre prevenção de DSTS, hepatite, silicone industrial, divulgação do trabalho da ONG, tornando-se mais popular e respeitada entre as travestis. No ano de 2008, após participações efetivas em diversos encontros, parcerias e projetos, muitos desses encontros deixaram de ser aprovados, acarretando na escassez de verba dentro da ATRAC. Sem financiamento e doação de terceiros, houve um esvaziamento nos caixas da associação. A partir disso, iniciou-se uma jornada para manter em atividade a ATRAC, jornada essa que se mantém até os dias atuais. Por conta das insistentes dificuldades, Thina cogitou desistir do cargo, porém sempre buscou diversas formas para manter a associação, como por exemplo, a aproximação com outras ONGs. Em entrevista consentida à Revista Entrevista, da disciplina de Laboratório de Jornalismo Impresso do Curso de Comunicação Social da UFC (Universidade Federal do Ceará), nº 32, Thina fala sobre a sua história de vida, desde Brejo Santo, até a presidência da ATRAC. A entrevistada iniciou na militância em 1988, de acordo com ela, desde o dia em que foi levada presa junto á um grupo de outras travestis: “Eu fui ao jornal Diário do Nordeste fazer uma reportagem a respeito disso, que eu achei um 59 absurdo. Porque nós tínhamos o direito de ser o que a gente queria ser. Principalmente a gente que é travesti [...]” (Revista Entrevista, 2014). Quando questionada acerca da sua iniciação na militância, Thina é categórica ao mencionar: A militância, você já nasce com aquilo: lutar pelos direitos das travestis ou de outro segmento, aliás, que não é mais segmento, é população. [...] quando a gente vê as necessidades que as meninas têm, sendo barradas nos lugares não podendo trabalhar na rua, não serem inseridas no mercado de trabalho, não terem condição de estudar nem estar na família... Então isso é a força que eu tenho de estar lutando mais.” (Revista Entrevista, grifos meus, 2014). Thina tem sua imagem fortemente associada à ATRAC, muitas vezes, as imagens se confundem e, de acordo com ela, é difícil acontecer essa separação, porém declara que não abre mão de ter um tempo pra si própria aos finais de semana. Durante a entrevista, Thina foi questionada acerca da relação existente entre travestis e a violência. Para ela, essa relação está atrelada ao preconceito e à aceitação da sociedade, em uma de suas falas, ela menciona que a inserção no âmbito familiar é primordial para a aceitação das travestis na sociedade: [...] tudo começa na família. A gente sente a necessidade da família, Da nossa família, nosso pai, nossa mãe. EU tento inserir elas nas suas famílias primeiro. Porque, se a gente vai estudar, vai poder conseguir arranjar um emprego, ser inserida no mercado de trabalho e assim por diante. Porque, se sua mãe é a seu favor, então já tem tudo a crescer. (Revista Entrevista, p. 31) A associação à prostituição, um dos estigmas que rodeiam a população travesti e transexual, na visão de Thina, está relacionada à questão da educação e de inserção no âmbito familiar, como já mencionado anteriormente. Em decorrência da ausência na escola e falta de oportunidade no mercado de trabalho, elas veem a “pista” como única saída para se sustentar: “[...] A maioria mora com cafetina, mora de favor em outra casa. Elas não vão estudar porque têm de pagar a diária. Tem diária que é 50 reais com direito só ao almoço. Fora ser mal tratada e humilhada.” (idem) 60 Para superar o estigma, Thina ainda utiliza seu trabalho com a militância. A visibilidade política é item primordial na intervenção diante do processo de estigmatização, e Thina deixa isso claro em todo o decorrer da entrevista. Os atos políticos que esboça diariamente fazem com que não só Thina Rodrigues mas sua militância ajudem uma gama de travestis a serem respeitadas, reconhecidas e visibilizadas enquanto sujeitos de direitos, transgredindo assim o processo estigmatizador. Thina é uma figura muito peculiar no meio trans devido à sua militância, sua história de vida, e à sua subjetividade. Sua luta diária em prol das travestis é permeada pela sede que tem de viver, ou por ser um fio condutor na concretização de um ideal que não pertence apenas ao público trans, mas a toda uma população que acredita e luta para que se possa viver numa sociedade livre de toda forma de preconceito e discriminação. Com as entrevistas coletadas e analisadas foi possível perceber a existência das mais diversas formas de enfrentamento no processo de estigmatização, dentre elas a busca de conhecimento, o reconhecimento enquanto transexual, a educação e a militância. Dessa forma, faz-se necessário o destaque da existência de pessoas diferentes, com vivências e experiências diferentes, com histórias, afirmações identitárias e estratégias de sobrevivência diferentes, assim como da existência de pessoas que possuem em comum uma vida marcada pelo preconceito e pela luta em acabar com ele dia após dia, afirmando-se enquanto cidadãs dignas, que buscam viver a vida em plenitude. 61 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao longo de todo o desenvolvimento produtivo, desde a realização de pesquisas bibliográficas até a análise das entrevistas, foi possível perceber que o processo de estigmatização dos sujeitos travestis e transexuais está enraizado dentro da sociedade. Apesar da luta constante e diária para que a visibilidade desses sujeitos saia da esfera da negatividade e passe para o reconhecimento de seus direitos, de suas conquistas e dos exemplos que podem dar à sociedade sobre o respeito para além das diferenças, é preciso ainda uma longa caminhada para superar os estigmas em torno das travestis e transexuais, e consequentemente, dos estigmas que permeiam a sociedade como um todo. Mesmo com a existência de uma gama de estudos que tratem dos sujeitos travestis e transexuais não apenas como marginalizadas, perigosas, soropositivas, sexualizadas, prostituídas, pouco se sabe a respeito da luta diária de Raphaellas, Isabelas, Lumas, Thinas, dentre tantas outras para que sejam, além de percebidas como pertencentes à sociedade, respeitadas, reconhecidas, admiradas, tidas como exemplo e portadoras de grandes ensinamentos. Infelizmente, como imersos na sociedade capitalista, sabemos que para a manutenção e ampliação desse modo de produção é necessária a existência de sujeitos que vivam à margem da sociedade. Desta forma, subtende-se que o processo de estigmatização vivido por travestis e transexuais socialmente construído e velado tem como um dos gestores o Estado. Esse mesmo Estado que dispõe de políticas que provém os mínimos sociais, também germina a semente do processo heteronormativo e estigmatizador, que foi tão destacado ao longo da presente produção. O presente estudo me proporcionou, enquanto pesquisadora e como futura Assistente Social, uma visão para além do que é imposto socialmente e para além do que a academia nos possibilita bem como, possibilitou a ampliação do conhecimento e fortalecimento do Projeto Ético Político Profissional do Serviço Social. Lamentavelmente, dentro do espaço acadêmico, ainda é escasso o aprofundamento acerca da visibilidade de travestis e transexuais sem atrelá-las 62 principalmente à prostituição e ao vírus HIV/AIDS. Ao concluir o processo de construção desta pesquisa percebo que a luta travada por travestis e transexuais percorreu um caminho de vitórias ao longo das últimas décadas. Porém, para possibilitar sua visibilidade política e social, é necessário dar passos mais largos na direção dos objetivos que essa esfera da população deseja atingir. Além de vagas no mercado de trabalho, além da liberdade de decidir o que fazer com o próprio corpo, de agir conforme a sua identidade de gênero, de utilizar os banheiros de acordo com a identidade a qual esses sujeitos se reconhecem, elas querem ser vistas como cidadãs e exercer essa cidadania sem rotulações, especulações, sem violência e violação dos seus direitos. Elas não lutam para serem tratadas como diferentes, lutam para obterem um espaço que é de direito na sociedade sem distinção, que preze pela igualdade, pelo respeito e principalmente pelo direito de ser quem são. 63 REFERÊNCIAS BARBOSA, Bruno Cesar. Nomes e diferenças: uma etnografia dos usos das categorias travesti e transexual. Dissertação (Doutorado em Antropologia) Programa de Pós Graduação em Antropologia Social USP – Universidade de São Paulo (SP), 2010 BENEDETTI, Marcos Renato. Toda feita: o corpo e o gênero das travestis. Rio de Janeiro, Garamond, 2005. CAMPANHA: SOU TRAVESTI. TENHO DIREITO DE SER QUEM EU SOU Disponível em: <http://www.aids.gov.br/campanhas/2012/travestis> Acesso em: 08/12/2014 CARVAJAL, Sarah Thaynah Costa Vasconcelos. Transfobia em Fortaleza: discursos e enfrentamentos. Monografia (Bacharelado em Serviço Social) – Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza, 2014 CFESS MANIFESTA. 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Tese (Doutorado em Sociologia) – Programa de Pós Graduação em Sociologia, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza. 2005 VERAS, Elias F e GUASCH, Oscar; A invenção do estigma travesti no Brasil (2014) Texto Inédito. VERAS, Elias Ferreira. O que a divisão dos banheiros em Homem e Mulher esconde?. O Povo, Fortaleza, 13 de junho de 2013. Disponível em: http://www.opovo.com.br/app/opovo/opiniao/2013/06/13/noticiasjornalopiniao,307376 2/o-que-a-divisao-dos-banheiros-em-homem-e-mulher-esconde.shtml. Acesso 30/11/2014 66 APÊNDICES APÊNDICE 1 – Roteiro de entrevistas 1- Como você gostaria de ser chamada? 2- Você acha que existe alguma diferença entre o sujeito ser chamado de travesti ou de transexual? 3- Quais seriam essas diferenças? 4- Em qual momento da vida ocorreu o seu processo de transformação? 5- Você vivenciou algum preconceito? Qual? 6- Como você os enfrentou? 7- Você conhece alguma política de cidadania para a população travesti e transexual? 8- Como você pensa que a situação das travestis e transexuais no Brasil poderia ser transformada? 67 ANEXO 2 – Termo de consentimento livre e esclarecido Convidamos a Senhora ___________________________________________ a participar da pesquisa “Direito à luz do dia: A visibilidade de Travestis e Transexuais para além dos Estigmas”, sob a responsabilidade da pesquisadora Larissa Souza Calisto, que tem por objetivo pesquisar sobre a Visibilidade de Travestis e Transexuais para além dos estigmas a elas atrelados dentro da sociedade. Sua participação é voluntária e se dará por meio de entrevista, com roteiro de perguntas pré-definidas e será gravada se assim você permitir e que tem duração aproximada de quinze a trinta minutos. Os resultados desta pesquisa serão publicados nos meios científicos e em nenhum momento a Senhora será identificada, a menos que autorize a sua identificação. A Senhora não terá nenhum gasto ou ganho financeiro por participar desta pesquisa. Se depois de consentir em sua participação a Senhora pode desistir de continuar participando, tem o direito e a liberdade de retirar seu consentimento em qualquer fase da pesquisa, seja antes ou depois da coleta dos dados, independente do motivo e sem nenhum prejuízo a sua pessoa. Para qualquer outra informação, a Senhora poderá entrar em contato com a pesquisadora no endereço Avenida João Pessoa, 3884, Bairro Damas e telefone de contato (85) 3201-7000. Eu,___________________________________________________________, fui devidamente informada sobre o teor da pesquisa e a importância desta. Sendo assim concordo com minha participação, assinando as duas vias de igual teor. _____________________________________ Assinatura do participante _____________________________________ Assinatura do Pesquisador Responsável Data: ___/ ____/ _____ 68