A UTOPIA POSSÍVEL Missões Jesuíticas em Guairá, Itatim e Tape, 1609-1767, e seu suporte econômico-ecológico Ministério das Relações Exteriores Ministro de Estado Embaixador Antonio de Aguiar Patriota Secretário-Geral Embaixador Ruy Nunes Pinto Nogueira Fundação Alexandre de Gusmão Presidente Embaixador José Vicente de Sá Pimentel Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais Centro de História e Documentação Diplomática Diretor Embaixador Maurício E. Cortes Costa A Fundação Alexandre de Gusmão, instituída em 1971, é uma fundação pública vinculada ao Ministério das Relações Exteriores e tem a finalidade de levar à sociedade civil informações sobre a realidade internacional e sobre aspectos da pauta diplomática brasileira. Sua missão é promover a sensibilização da opinião pública nacional para os temas de relações internacionais e para a política externa brasileira. Ministério das Relações Exteriores Esplanada dos Ministérios, Bloco H Anexo II, Térreo, Sala 1 70170-900 Brasília, DF Telefones: (61) 2030-6033/6034 Fax: (61) 2030-9125 Site: www.funag.gov.br Miranda Neto A UTOPIA POSSÍVEL Missões Jesuíticas em Guairá, Itatim e Tape, 1609-1767, e seu suporte econômico-ecológico Brasília, 2012 Direitos de publicação reservados à Fundação Alexandre de Gusmão Ministério das Relações Exteriores Esplanada dos Ministérios, Bloco H Anexo II, Térreo 70170-900 Brasília – DF Telefones: (61) 2030-6033/6034 Fax: (61) 2030-9125 Site: www.funag.gov.br E-mail: [email protected] Equipe Técnica: Maria Marta Cezar Lopes Fernanda Antunes Siqueira Fernanda Leal Wanderley Gabriela Del Rio de Rezende Jessé Nóbrega Cardoso Rafael Ramos da Luz Fotografia da Capa e Ilustrações: Eduardo Tavares in FREITAS, Décio et allii. Missões Jesuítico-Guaranis. São Leopoldo: Unisinos, 1999. Apoio Cultural da Fundação Biblioteca Nacional – Ministério da Cultura Programação Visual e Diagramação: Gráfica e Editora Ideal Impresso no Brasil 2012 M672 Miranda Neto. A utopia possível : missões jesuíticas em Guairá, Itatim e Tape, 1609-1767, e seu suporte econômico-ecológico / Miranda Neto. ─ Brasília : FUNAG, 2012. 237 p.; 15,5 x 22,5 cm. ISBN: 978-85-7631-386-1 1. Jesuítas - Brasil. 2. Missões religiosas. I. Fundação Alexandre de Gusmão. CDU: 271.5“1609-1767” Ficha catalográfica elaborada pela bibliotecária Valéria Alves de Freitas Werneck – CRB-7/5776 Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional conforme Lei n° 10.994, de 14/12/2004. Agradecimentos Andréa Daher Arno Kern Arno Wehling Arthur Rabuske, S. J. Artur Barcelos Aziz Ab’Saber (in memoriam) Beatriz Vasconcelos Franzen Claudete Boff Carlo Bresciani, S. J. Décio Guzmán Eduardo Neumann Eunícia Fernandes Fábio Carlos da Silva José Murilo de Carvalho Maria Célia Nunes Coelho Mary Del Priore Paul Schweitzer, S. J. Pedro Américo Maia, S. J. (in memoriam) Pedro Ignácio Schmitz, S. J. Rafael Chambouleyron Regina Gadelha Regina Daguer Verônica Secreto APRESENTAÇÃO Miranda Neto nos oferece um relato fascinante intitulado “A Utopia Possível”, ou seja, a história das missões jesuíticas das regiões do Guairá, Itatim e Tape e a sua agonia no século XVIII. Curiosamente, os fatos que tanto sofrimento iriam causar provêm de um decisão sábia das coroas da Espanha e de Portugal para dirimir velhas pendências sobre a colônia do Sacramento, que já haviam produzido tanto sangue. Os enfrentamentos militares contínuos motivados pela presença portuguesa defronte a Buenos Aires constituíam um desafio insuportável para as autoridades portenhas e que indiscutivelmente perturbavam o importante comércio da prata que chegava da Bolívia para ser exportada para a Espanha. O mestre do Tratado de Madri, de 1750, foi o brasileiro Alexandre de Gusmão, homem de confiança do rei de Portugal D. João V. Se na época a questão da colônia do Sacramento era importante para Lisboa, ele enxergava muito mais longe e tentou resolver o problema que tanto irritava espanhóis e argentinos, conseguindo comprovar pela teoria do uti possidetis, o direito de quem tinha a posse da terra. Com a assinatura desse importantíssimo tratado, ele alargou extraordinariamente as fronteiras norte e oeste de nosso país, formando assim o Brasil de hoje. Gusmão utilizou habilmente o fato de que os espanhóis haviam ultrapassado largamente as fronteiras da linha de Tordesillas no Oceano Pacífico, ao conquistar e colonizar as ilhas Filipinas, valiosa colônia espanhola. A troca das Filipinas pelas imensas terras ao norte e a oeste da linha demarcada de Tordesillas, que passava pelo meridiano de Belém, não significava muito para os espanhóis, que estavam interessados em resolver a questão da colônia do Sacramento. Essa troca nos obteria efeitos espetaculares pela demarcação das fronteiras com a Venezuela, Colômbia e Bolívia pelos padres matemáticos italianos contratados por Alexandre de Gusmão e que empurraram nossos limites até os contrafortes do Andes. Os espanhóis não davam valor a essas áreas, nem as conheciam bem, tanto que nem chegaram a enviar seus técnicos para fazer o trabalho de demarcação dessas fronteiras, que ficaram pacificamente estabelecidas. As autoridades espanholas aceitaram tacitamente os cálculos astronômicos feitos pelos técnicos italianos contratados pelos portugueses para delimitar aquelas enormes áreas. Já no sul era preciso ajustar fronteiras povoadas e quem pagou altíssimo preço por isso foram os indígenas das missões jesuíticas. Milhares de índios tiveram de ser deslocados à força dos locais onde viviam para as outras margens dos rios, já que o antigo território espanhol, onde estavam instaladas, passou a ser território português. Os sofrimentos foram imensos, resultado de combates ferrenhos, e a disputa, que parecia dirimida pela simples aplicação dos tratados de Madri e de Santo Ildefonso, produziu um verdadeiro banho de sangue. A resistência dos jesuítas foi punida pela sua expulsão de Portugal e do Brasil pelo Marquês de Pombal. Após a independência da Argentina, seus dirigentes continuaram criando litígios com as autoridades brasileiras sobre aquela região, que só foram resolvidos em definitivo na última década do século XIX pelo barão do Rio Branco, que obteve do presidente dos Estados Unidos da América uma sentença favorável de arbitragem em nosso favor. O relato de Miranda Neto, escrito em linguagem elegante, agradável e escorreita, é uma avaliação bem fundamentada, imparcial e competente da formação das missões, da sua eficiente organização e o drama de sua transferência, tudo baseado em novas pesquisas que enriquecem a bibliografia desses problemas históricos da época. As belas ruínas das missões jesuíticas ainda estão a testemunhar a importância daquelas instalações. Rio de Janeiro, maio de 2012. Vasco Mariz Sócio emérito do IHGB SUMÁRIO Introdução........................................................................................................ 13 I - O Mito do Maravilhoso............................................................................. 17 II - As Missões Guaranis............................................................................... 21 2.1. Fases da Colonização Missioneira...................................................... 29 III - Estrutura, Produção e Renda................................................................. 33 3.1 Caixas de “Censos” da Comunidade.................................................. 36 3.2 Ofícios de Missões................................................................................. 37 3.3 Agricultura, Abastecimento e Comercialização................................ 40 3.4 Alimentação............................................................................................ 42 3.5 Erva-Mate................................................................................................ 44 3.6 Autossustentabilidade.......................................................................... 47 3.7 Pecuária................................................................................................... 50 3.8 Manufaturas, Artesanato, Artes Plásticas, Música........................... 55 3.9 Tecnologia............................................................................................... 57 IV - O Cotidiano da Criatividade Missioneira.......................................... 61 4.1 Saúde....................................................................................................... 63 4.2 Vestuário................................................................................................. 66 4.3 Plano Urbano. Traçado das Missões................................................... 67 4.4 As Construções...................................................................................... 69 4.5 A Redivisão Territorial......................................................................... 72 4.6 As Igrejas e seus Construtores............................................................. 76 4.7 Construção da Catedral de São Miguel Arcanjo............................... 77 4.8 Padres Construtores de Igrejas e demais construções...................... 78 V - Cultura, Rituais e Religiosidade............................................................ 79 VI - Importância dos Jesuítas e o Legado das Missões............................ 87 6.1 Formação de Capital............................................................................. 95 6.2 Relações entre Jesuítas Portugueses e Espanhóis........................... 105 6.3 Pedagogia da Alternância.................................................................. 113 6.4 Mão de Obra......................................................................................... 114 VII - A Utopia Possível. Fim de Um Sonho?............................................ 117 7.1 Obras dos Guaranis e Jesuítas das Missões..................................... 129 7.2 Outros Grupos de Missões sob modelo Guarani............................ 130 Considerações Finais.................................................................................... 133 Apêndice Teórico – Metodológico............................................................. 157 Anexos Glossário.......................................................................................................... 179 Estrutura Político-Administrativa............................................................... 182 Elite Dirigente................................................................................................. 183 As Principais Missões e seus Fundadores.................................................. 185 Cronologia da Instalação das Missões........................................................ 186 Evolução Demográfica das Missões............................................................ 188 Cronologia das Missões originais atacadas pelos Paulistas.................... 190 Cronologia dos ataques dos Bandeirantes................................................. 190 Cronologia das Missões da Argentina, do Uruguai, do Paraguai.......... 191 A Relativa Especialização Econômico-Espacial......................................... 191 Padres que se Destacaram............................................................................ 192 Cronologia dos Núcleos Urbanos na Área das Missões........................... 193 Fontes Bibliográficas.................................................................................... 197 Mapas.............................................................................................................. 209 Amostras da Arte Missioneira.................................................................... 223 Crédito das Imagens..................................................................................... 231 Índice de Nomes............................................................................................ 233 Introdução Admiração e entusiasmo pela extraordinária experiência das missões jesuítico-guaranis caracterizaram o primeiro contato com a rica documentação sobre o tema. Eduardo Giannetti expressou com muita propriedade: A idéia de perfeição é obviamente uma ficção humana. Seu grande mérito – como é o caso das utopias em geral – é servir como um contraste que inspire e permita realçar com tintas fortes a extensão do hiato entre o que é e o que pode ser: a distância que nos separa do nosso potencial. Mais que um sonho, o ideal é uma arma com a qual se desnuda um mundo injusto, corrompido e opressivo. Muito embora alguns ensaios sobre esta matéria sejam polêmicos e a maioria tente abordar os aspectos antropológicos, sociais, políticos e religiosos, pouquíssimos se detiveram na análise econômico-ecológica do empreendimento. Entre estes, destacam-se os de Rafael Carbonell de Másy, Oreste Popescu, Magnus Mörner e Paulo de Assunção. Deve-se ressaltar ainda a estratégia de defesa dos terrenos conquistados, caracterizando uma geopolítica colonial de longo prazo de ocupação produtiva e colonização que não desprezava as fortificações, as milícias e o armamento. A integração entre os núcleos povoados era alcançada através dos Ofícios de Missões com diligente organização, coordenação, administração e racionalidade até na divisão do tempo entre trabalho, lazer e atividades religiosas. 13 Miranda Neto O combate persistente à ociosidade e ao desperdício, a valorização do trabalho produtivo, o amor à natureza, o respeito ao equilíbrio ecológico e à diversidade completavam o cotidiano das missões nos séculos XVII e XVIII cuja organização incentivava a ajuda mútua ou putirum (mutirão) através de atividades lúdicas e cantorias animando as crianças que, brincando e se divertindo, aprendiam as tarefas. Uma das maiores dificuldades dos jesuítas foi conseguir solucionar o dilema imediatismo x poupança convencendo os autóctones da necessidade de armazenar parte da produção agrícola para garantir seu sustento no amanhã, impedindo-os de consumirem ainda durante a colheita. Os alimentos de ciclo curto eram, portanto, os preferidos como a mandioca, o milho e a banana. A Utopia Possível pretende divulgar o sucesso de uma experiência de desenvolvimento regional integrado de pueblos guaranis que dominaram terras das bacias dos rios Paraguai, Paraná e Uruguai, do século XVII ao século XVIII em cerca de 500.000 Km². A análise do suporte econômico-ecológico do “modelo missões” revela a atuação dinâmica dos jesuítas e sua diversificada cultura humanista, a introdução de nova disciplina e tecnologia tanto no setor rural como no artesanato, na construção civil e naval e, sobretudo, o usufruto racional de biodiversidade regional, respeitando o equilíbrio ecológico. Ao criarem uma alternativa de sistema integrado de vários núcleos urbanos, interligados com seu respectivo entorno agropecuário de subsistência e abastecimento, conseguiram formar uma sociedade dotada de avançada tecnologia por quase dois séculos, segundo planos estudados e aperfeiçoados ao longo do tempo, adaptados à região e incorporados à vivência e à cultura guarani. O maior mistério é descobrir de que modo os missionários conseguiram transferir populações inteiras de ameríndios para povoados sob outra organização social – verdadeira transmigração de tribos diversas, com culturas diferenciadas. E como conseguiram – respeitando em parte a cultura autóctone – integrar aos poucos esses povos em uma proposta alternativa aceita pelos guaranis, copartícipes da gestão comunitária dos vários núcleos urbanos. Historiadores estão empenhados em desvendá-lo. As missões jesuíticas desmentem em parte a noção geralmente aceita da irremediável destruição de culturas autóctones pela conquista, colonização ou contato. Evidente que neste processo de aculturação há sempre uma certa perda de identidade cultural, que em casos extremos, pode até representar o fim de um grupo étnico. Décio Freitas, da Unisinos (Universidade do Vale do Rio dos Sinos), ressalta que: 14 Introdução As missões jesuítico-guaranis desmentiram, de forma concreta e eloqüente, o preconceito de que os índios seriam incapazes para a vida sedentária e inadaptáveis às formas superiores de civilização, argumento utilizado para tentar justificar sua escravização ou extermínio. Na verdade, criaram comunidades livres, fraternais e igualitárias sem outras armas que a compreensão e a persuasão, em contraste com a maciça e desumana violência que marcou o empreendimento colonial. Novos talentos nas artes, na manufatura, no artesanato, na música, na escultura, na construção civil e naval, na cerâmica, na tipografia, na ferraria, na marcenaria e na carpintaria demonstraram que os neófitos estavam felizes, orgulhosos e realizados em sua nova condição de aldeados. A política de aldeamentos colocava os índios em uma condição jurídica específica atribuindo-lhes, além de obrigações, alguns direitos que eles lutaram por garantir. Assumiram-se como sujeitos desse processo de mudança que os transformou e adaptou à nova realidade, utilizando com eficiência o instrumental necessário para a plena realização de sua identidade missioneira, colocado à sua disposição pelos jesuítas. Qual a importância, para o Brasil de hoje, de se analisar uma alternativa válida no século XVIII? Na verdade, o sucesso das missões jesuítico-guaranis são a prova de que um modelo de desenvolvimento sustentável tem muito a nos ensinar quanto ao trabalho comunitário, à propriedade coletiva dos meios de produção, à tolerância a mundividências diversas, à preservação da biodiversidade. Apesar de severos críticos dos jesuítas, Voltaire, D’Alembert e Montesquieu destacaram o sucesso das missões guaranis, fundamentadas nas Utopias de Platão e Thomas More, como “triunfo da Humanidade”. Inúmeros episódios da epopeia guarani de tão ricos e dramáticos podem inspirar argumentos para romances, filmes e minisséries de TV como já ocorreu com A missão, filme da década de 1970, O Tempo e o Vento, romance de Érico Veríssimo e Sepé Tiaraju, romance de Alcy Cheuiche. Esses colonizadores-missionários desbravadores ultrafronteiras eram homens de grande tenacidade e determinação que, com astúcia, observavam atentamente o processo social para poder transformá-lo, apesar da escassez de seus membros. Mas eles não eram conquistadores. Sua sobrevivência e seu sucesso não foram resultado de força física superior nem de esmagadora dominação cultural mas de uma bem-sucedida e inevitável adaptação à sociedade indígena. O mais importante aspecto da República Guarani é ter comprovado na prática a viabilidade da alternativa autossustentável, 15 Miranda Neto revelando profundo respeito aos recursos naturais e perfeita integração de diversas tecnologias e visões de mundo ao reproduzir com êxito a opção agroambiental. Ainda não foi devidamente avaliada a importância do extraordinário sucesso alcançado pelas missões guaranis durante mais de século e meio, apesar das brutais investidas dos bandeirantes, das crises de abastecimento, das doenças, dos ataques das feras e de outros povos belicosos. Os jesuítas se destacaram como missionários, eficientes administradores, educadores até hoje disputados, linguistas, artistas, construtores, arquitetos, músicos, cultos e hábeis conciliadores e negociadores diplomatas além de religiosos competentes em sua catequese que respeitava outra cultura e outros valores dentro de engenhoso “modelo de segregação relativa” do autóctone. Analisar os resultados da ação desta diversificada cultura humanista que possibilitou o desenvolvimento do sistema autossustentável com tecnologia cabocla e usufruto racional da biodiversidade constitui o objetivo do presente estudo. Torna-se vital desvendar o sentido da utopia que decretou seu próprio destino ao tornar-se, na colônia, um projeto anticolonial. Na verdade, as missões provaram ser a utopia possível desenvolvendo com pertinácia a opção autossustentável com gestão compartilhada. E conseguiram propagar sua herança cultural séculos afora. Ícones e relatos, tecnologia e conhecimento, produção e poder até hoje continuam vívidos nas ruínas das catedrais, nas imagens dos santos, na saga dos jesuítas e dos guaranis, no maravilhoso esplendor alcançado com o aprimoramento contínuo das artes e ofícios cuja preciosa amostra arqueológica espelha a luta recorrente para a conquista sublime da universal utopia de felicidade, que transcende os povos e os tempos. 16 I - O Mito do Maravilhoso O fascínio do mistério e da riqueza sempre impregnou o imaginário dos jovens idealistas do século XVI na Europa, ávidos em conquistar fama e adeptos da cruzada de expansão do cristianismo pelo mundo. Para o jovem europeu havia o anseio de tornar-se missionário em terras misteriosas no Novo Mundo. O ethos de peregrino era recorrente assim como o desejo de conhecer-aprender-ensinar-agir-ajudar para transformar a humanidade a partir da criança. A história da Companhia de Jesus e da reforma da cristandade na primeira metade do século XVI está ligada à vida e obra de seu fundador, Inácio de Loyola. Nascido em 1491 em um castelo na Espanha, empregou-se jovem como pajem real. Ao dedicar-se à carreira militar, acabou ferido na perna durante a defesa da cidade de Pamplona contra os franceses em 1521. Durante sua demorada convalescença, concentrou-se em profundas meditações e decidiu reciclar sua vida. Original interpretação da fé cristã e prática de devoção religiosa, seu livro Exercícios Espirituais – fruto de vários anos de reflexão – tornou-se mais tarde principal guia dos missionários. Cursou a Universidade de Salamanca aprofundando-se em Teologia, História, Geografia e Literatura (sobretudo sacra). Concluiu os estudos em Paris onde o ambiente cultural lhe era favorável. Em 1539, com mais seis colegas universitários, fundou a Companhia de Jesus, então ainda uma ordem laica baseada em hierarquia, disciplina, organização, humildade, simplicidade, caridade, persistência, algumas qualidades herdadas de sua formação militar e que se tornaram muito úteis à catequese de outros povos. 17 Miranda Neto Só em 1540, o Papa Paulo III, interessado na contrarreforma religiosa e na expansão do cristianismo através do mundo, reconheceu a Sociedade de Jesus conferindo-lhe um status religioso e prestigiando sua atuação global. As terras misteriosas da bacia do alto rio Paraguai, por todo o século XVI, despertavam a cobiça e a imaginação de nobres e aventureiros europeus que, movidos por relatos de fabulosas riquezas, organizaram custosas expedições rio acima a partir do Prata. Como as reais fronteiras permaneciam indefinidas, missionários, colonizadores, bandeirantes e monçoeiros1 competiam na dominação e aculturação do gentio autóctone. As expedições paulistas, de início visando o ouro e as pedras preciosas de Cuiabá (MT), utilizavam o itinerário a partir de Porto Feliz (SP) – que faziam questão de manter secreto – conhecido só de alguns bandeirantes pioneiros, pois percorriam território ainda em litígio. O ciclo das águas, os selvagens hostis, as feras e as febres palustres completavam os desafios que em parte garantiam a inacessibilidade desta região misteriosa e, apesar de tudo, atraente. Até o final do século XVIII ela permaneceu como terra de ninguém e, portanto, disputada. Só com os tratados de limites entre Portugal e Espanha (de 1750 a 1801) ganhou contornos mais definidos e se tornou mundialmente conhecida. Entretanto, nunca perdeu seu caráter de região de passagem, via de acesso às minas mato-grossenses, riquezas dos Andes e Serras de Prata. Subindo o rio da Prata e o rio Paraguai, poder-se-ia atravessar o Chaco ou a lagoa de Xarayes (Pantanal) sempre transpondo terrenos encharcados entre rios, lagoas e cursos d’água menores, que apresentavam paisagens rapidamente mutáveis regidas pelo ciclo das águas. As notícias das aventuras em busca de riquezas se espalhavam. Particular característica da história das terras do alto Paraguai era o domínio indígena durante por mais de dois séculos sobre esta significativa região cobiçada tanto por hispânicos como por luso-brasileiros. Antes do conquistador Francisco Pizarro, o português Aleixo Garcia, náufrago de Solis no sul de Santa Catarina (1515), percorreu os rios Paraná e Paraguai acima, atravessou o Pantanal (1520) e o Chaco, atingiu o Peru atual (terras dos Incas), descobriu suas riquezas, combateu os autóctones e se apoderou de valiosas peças de prata, adornos e roupas. Rechaçado, carregou tudo de volta ao Pantanal onde, com seus companheiros, terminou morto pelos selvagens. Em 1526, Sebastian Caboto, Melchior Ramírez e Enrique Montes também resolveram subir o rio da Prata em direção às sonhadas riquezas 1 Expedicionários fluviais em busca de índios e riquezas. 18 O Mito do Maravilhoso tão guardadas na região do Paraguai. Defrontaram-se com os Payaguaes, senhores da região, mas acabaram saindo vitoriosos e em 1530, retornaram a Sevilha, Espanha, portando algumas peças de ouro e prata. Os relatos dessas expedições incendiaram a imaginação de espíritos aventureiros. Antes de criadas as aldeias indígenas pelos jesuítas espanhóis à margem esquerda do rio Uruguai, exploradores luso-brasileiros visitaram a costa do Rio Grande do Sul. Houve um ciclo missionário português precursor às famosas “reduções” guaranis: padres João Lobato e Jerônimo Rodrigues, Inácio de Sequeira e Francisco de Morais instalaram missões entre 1605 e 1617 próximo ao Tramandaí. 19 II - As Missões Guaranis As missões constituíram uma estratégia de dominação político-econômica de vastas áreas da América do Sul, através da conquista espiritual de povos nativos por diversas ordens religiosas, destacando-se a Companhia de Jesus, fundada na Europa pelo padre Inácio de Loyola. Jesuítas espanhóis, italianos, alemães e franceses tentaram convencer o gentio da importância da fé cristã para sua formação cultural e espiritual, ao lado do trabalho em comunidade, respeitando a sua vocação e o seu talento. A vida em comum é um aprendizado, às vezes lento e doloroso, pleno de contradições e até de impasses e, não poucas vezes, sofrido no sangue. Nesse complexo inventário histórico, algumas tentativas se destacam audaciosas, promissoras. A República Guarani foi uma sociedade fraternal organizada segundo os princípios cristãos. O espírito comunitário estava presente na sua estrutura, no seu regime de propriedade, nos seus modos de produção e distribuição e em todas as suas instituições. Os costumes eram puros, uma amizade sincera unia os corações, as principais necessidades humanas eram satisfatoriamente atendidas. A abundância parecia inesgotável e universal. Esta sociedade fraternal, onde o ódio e a disputa não tinham lugar, baseava-se na propriedade coletiva dos meios de produção. Tanto os equipamentos como as ferramentas, as terras, o gado e a produção agrícola e artesanal pertenciam à comunidade. Inexistia o Estado tal como hoje o conhecemos, tampouco a divisão em classes sociais. A mão de obra urbana e rural organizava-se em 21 Miranda Neto associações livres autoadministradas. Um decisivo apoio à produção e à criatividade eliminava qualquer possibilidade de cartelização, monopólio ou controle da oferta. Inexistiam também privilégios ou prioridades quer aos interesses urbanos, quer aos interesses rurais que eram igualmente contemplados. De cada indivíduo exigia-se o esforço e o trabalho segundo a sua capacidade e a cada um era destinada a produção conforme a sua necessidade. Todo o incentivo era concedido ao desenvolvimento cultural, artístico e tecnológico do ser humano. Para culminar, a República Guarani primava pela ênfase em propiciar uma total libertação da personalidade desvinculada das preocupações de sobrevivência e resistente às investidas dos poderosos. O curioso aspecto observado pela atuação jesuítica junto aos guaranis era a lenta assimilação do cristianismo pelos indígenas mais renitentes que continuavam a praticar a poligamia. Os noivados ocorriam antes da “idade da razão”. Os missionários passaram a optar pela força do exemplo, abandonando a coerção, a admoestação e a ameaça de castigo. O poder dos jesuítas junto às crianças tornou-se preponderante. Tudo era feito para atraí-las: passeios, brincadeiras, disputas, concursos com prêmios e incentivos em guloseimas. Com frequência eram os jovens nomeados funcionários da comunidade. O tratamento privilegiado dispensado aos adolescentes, além de os tornarem cristãos devotos, os transformava em eficientes agentes de informação! Revelavam tudo que se passava na redução: chegada de viajantes, aproximação de estranhos suspeitos, nascimentos, doenças, preparativos para festividades indígenas, infrações à moral pública e privada. A hierarquia dos jovens compreendia os estudantes, os cantores, os dançarinos que se sobressaíam na massa de crianças do catecismo, distribuídos em seções sob a responsabilidade dos decuriões2. Caso a colheita fosse insuficiente, sempre havia a possibilidade de se voltar à caça, à pesca ou à coleta. O excedente era seco e defumado, assado ou reduzido a pó. Para os índios, a mandioca era o alimento providencial: apresentava o melhor rendimento, exigia poucos cuidados, era resistente à seca e podia ser preservada por períodos de até dois anos, de forma que a colheita se fazia à medida das necessidades. Adequadamente torrada e acondicionada, a farinha de mandioca podia ser conservada por mais de um ano. Na área rural cultivavam-se a erva-mate, o algodão e o trigo. A pecuária desenvolveu estâncias e vacarias de grandes extensões que produziam carne, couro, leite e derivados. 2 Decuriões – monitores de turma responsabilizados por grupos de cerca de dez alunos. 22 As Missões Guaranis Algo de grandioso e belo, o modelo guarani constituiu o encontro de duas culturas. Em mais de século e meio, os missionários organizaram um sistema social cooperativo, mediante diferentes formas de trabalho comunitário, socializando a produção e o consumo. Com habilidade manteve-se considerável autonomia em relação ao regime colonial e à Coroa de Espanha. Trinta e três prósperos povoados – as reduções – evoluíram na então Província do Paraguay – correspondente hoje a áreas do Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai, onde se desenvolvia agricultura e pecuária promissoras, e se prestigiava o artesanato, a arte e a ciência. Cada missão era coordenada por dois padres e podia comportar milhares de índios. Em 1732, cerca de 140.000 indígenas viviam nos trinta e três povoados, quantidade que representava mais da metade da população das províncias do Rio da Prata. Nas reduções, a igreja era o prédio mais importante que centralizava a residência dos padres, o colégio, as oficinas, o cemitério e o cotiguaçu, onde viviam as viúvas e os órfãos. A biblioteca abrigava obras religiosas, de literatura espanhola e universal. A educação incluía a formação técnica e artística. A língua guarani, transmitida tradicionalmente de forma oral, foi estudada, escrita e traduzida com auxílio de dicionários organizados pelos missionários. Nas oficinas eram confeccionados os instrumentos e utensílios utilizados nas construções e na vida cotidiana. Eram peças de artesanato em madeira, móveis, instrumentos musicais, ferragens, pratarias, cerâmicas, tecelagens, pinturas e esculturas. Olarias e curtumes situavam-se na periferia das aldeias. Fontes, utilizadas junto às nascentes dos rios, abasteciam de água cristalina as missões jesuíticas que exploravam portos fluviais, açudes e uma rede de estradas que interligavam as povoações. O barroco europeu influenciou o urbanismo, a arquitetura e as artes como a escultura, a pintura, o teatro e a música. O estilo que caracterizou as obras criadas por padres e seus discípulos indígenas ficou conhecido como “barroco missioneiro”. As igrejas eram decoradas com esculturas em madeira policromada e telas pintadas a óleo. Seus exteriores continham relevo em arenito representando motivos religiosos e elementos da fauna e flora locais. Os aldeamentos prestigiavam seus coros, formados por cerca de 30 índios, seus conjuntos musicais, seus orfeões compostos também por instrumentos de corda que acompanhavam as missas. As músicas, de origem sobretudo espanhola e italiana, eram acompanhadas por violinos, 23 Miranda Neto chirimias3 e harpas rústicas. Os autos sacros, representações teatrais, eram encenados defronte às igrejas. A influência dos guaranis no tratamento de determinadas doenças foi enorme e contou com a ajuda dos próprios índios e seus conhecimentos sobre plantas e animais. O ensino da Matemática e da Astronomia, ministrado pelos missionários, contava até com rudimentares observatórios em algumas aldeias. O surpreendente progresso alcançado pelas missões na economia e nas artes despertou a inveja de povos vizinhos e até nas cortes da Europa que chegaram a se sentir ameaçadas de perder o controle sobre a Colônia. Quando em 1768 as Missões do Paraguai saíram das mãos dos jesuítas, já tinham alcançado um nível de organização que chamou a atenção e a cobiça das nações vizinhas, inclusive do Brasil. A experiência missioneira dos guaranis destacou-se pelo enorme e significativo legado econômico e cultural que deixou. Infelizmente a República Guarani ainda não conseguiu servir de modelo às soluções criativas para a atual crise agrária brasileira. O Rio Grande de São Pedro foi povoado pelo governo português a fim de garantir a posse da Colônia do Sacramento, localizada às margens do rio da Prata e para facilitar a comunicação com Laguna, povoado hoje pertencente a Santa Catarina e ponto de partida de muitas expedições. A partir de São Vicente, através da Serra Geral (do Mar), os bandeirantes iam procurar ouro, prata, pedras preciosas, arrebanhar gado bovino e cavalos selvagens e aprisionar indígenas para escravizá-los. Seguiam o curso dos rios, embrenhavam-se nas matas e, a braço e com perseverança, abriam picadas para facilitar a penetração até os Sete Povos das Missões, colonizadas pelos jesuítas espanhóis e cobiçadas por sua produção, riqueza e progresso, mas sobretudo por seus nativos aculturados e semiqualificados disponíveis, uma preciosidade. Invernadas e currais deram origem a estâncias, muitas já com Cartas de Sesmaria. Em 1737, foi construído um presídio militar no Rio Grande, demonstrando o interesse luso-brasileiro em colonizá-lo. Os vicentistas, senhores de estâncias de gado, eram descendentes dos bandeirantes que contribuíram para a destruição das províncias jesuíticas de Guairá e Itatim. O maior temor dos espanhóis era o ataque dos luso-brasileiros aos Sete Povos das Missões que se interpunham exatamente entre as terras do sul do Brasil, a partir de São Vicente e de Laguna e a Colônia do Sacramento, situada na região que hoje pertence ao Uruguai. 3 Chirimia – antigo instrumento musical. V. anexos. 24 As Missões Guaranis Os descendentes de espanhóis e guaranis, jovens da nova geração de idealistas, sonhavam com um mundo onde os povos não mais seriam governados por senhores de terras e nobres corruptos. Seria a sociedade prometida, o “quinto império teocrático do mundo”, que haveria de erguer-se acima das nações, acima de todos os interesses materiais, acima da cobiça, das injustiças e das maquinações políticas. Um mundo de igualdade que teria como base a dignidade do ser humano e seu amor e reverência a Deus. Não haveria mais senhores e escravos, a terra seria explorada cooperativamente pelos produtores. Nos Sete Povos das Missões o que era de um deveria ser de todos. Cada habitante teria oportunidades iguais4. Os missionários se maravilhavam ao acompanharem a transformação de cada indígena em um cristão, um artista, um músico, um construtor. Estavam conscientes da miséria e da ignorância de milhares de seres humanos que não tiveram o privilégio de receber orientação e incentivo apenas por falta de quem lhes despertasse a vocação, a potencialidade, o desejo de se aperfeiçoar ao produzir, criar e desenvolver objetos úteis e belos com suas próprias mãos e com o sopro do espírito. Perceberam igualmente que, para conseguir este mundo ideal, seria necessário se defender dos que, por indiferença ou egoísmo, desprezavam os humildes, os simples e os inocentes. Na opinião dos superiores da Companhia de Jesus, seria indispensável colonizar o Novo Mundo, segregar o indígena da influência do conquistador, organizar uma poderosa “república teocrática” que poderia influenciar as nações vizinhas. Os jesuítas acreditavam na necessidade de serem obstinados e implacáveis através de um autoritarismo justo, mas inevitável. Tornava-se preciso pregar, influir na educação e na disciplina dos jovens a fim de que eles se conscientizassem da importância da Nova Ordem. A dinâmica ação dos jesuítas se explica por provirem, em sua maioria, da burguesia trabalhadora e, após rigorosa seleção, aperfeiçoamento e ensino, revelarem-se cultos e competentes administradores. Anos depois, devido aos constantes ataques dos espanhóis à Colônia do Sacramento e aos revides dos luso-brasileiros contra os Sete Povos das Missões, entre as duas potências foi assinado o Tratado de Madri em 1750 e o de Santo Ildefonso em 1777 para tentar resolver as desavenças, permutando-se os respectivos territórios, dando origem ao atual estado do Rio Grande do Sul e às Repúblicas do Uruguai, da Argentina e do Paraguai. Os jesuítas foram acusados de insuflar a resistência indígena e de dificultar as demarcações dos limites territoriais entre Portugal e Espanha fixados 4 VERÍSSIMO, Érico. O Tempo e o Vento; O Continente. Rio de Janeiro: Aguilar, 1967. 25 Miranda Neto pelo Tratado de Madri. Como o Marquês de Pombal já estava em campanha contra os inacianos devido à afrontosa autonomia e autossustentabilidade das missões, a guerra guaranítica apressou sua expulsão. Os jesuítas conseguiram transformar tribos nômades de selvagens em uma Confederação de Missões que chegou a totalizar mais de cem mil cristãos. Cedo perceberam o talento e a capacidade dos nativos. Embora pouco inventivos eram excelentes em copiar e imitar. Qualquer novidade despertavalhes o interesse imediato; adoravam os rituais pomposos e as indumentárias vistosas. Os missionários conseguiam atraí-los através da música e da paciência através do exemplo, do efeito-demonstração, da reciprocidade e dos resultados e ensinavam-lhes a preparar o solo para o plantio, a cultivar e a tecer o algodão para a produção de roupas, a pastorar o gado, a ler e a escrever, a fabricar instrumentos musicais e a extrair-lhes música divina. Adaptaram-nos a novo estilo de organização socioeconômica e incentivaram-nos a eleger livremente os membros do Cabildo e o corregedor, aceitando a cogestão ao lado de caciques e pajés sem desafiá-los nem enfrentá-los. Os guaranis foram os únicos nativos da América a viver, durante mais de 150 anos, livres do jugo dos colonizadores. Dos Maias, Astecas e Incas só restam ruínas. Cada missão se relacionava com as demais, assumia seus problemas e projetava suas potencialidades. Havia situações em que os jesuítas, fervorosos humanistas dedicados ao labor, eram menosprezados por determinados indígenas habituados à indolência que em certas ocasiões ainda ousavam exigir mais comida e a reclamar do rigor da disciplina na missão. Lá os padres tinham enorme trabalho em convencer os neófitos a permanecerem envolvidos nas tarefas cotidianas, pois estes ameaçavam voltar à vida nômade de caça, pesca e coleta de recursos naturais. Até o roubo da produção alheia era justificado sob o pretexto de obedecer ao preceito da necessidade moral de se compartilhar com os demais membros da tribo todos os bens da missão. O diferencial da República Guarani foi ter primazia de construir em terreno virgem. Apesar de se atingir certo ritmo de desenvolvimento, o princípio comunitário-coletivista não se alterou: mantido pela fraternidade e fé cristãs, conseguiu diluir a sensação de coerção. Hábitos sociais novos, disciplina coletiva, sentido de responsabilidade ampliado pelas múltiplas funções criadas e desenvolvidas transformavam as primitivas comunidades que conviviam em um ambiente de paz, fraternidade e trabalho em equipes. As viagens para contatos e intercâmbio eram longas, penosas e arriscadas. Alguns missionários, já idosos e fragilizados por doenças, 26 As Missões Guaranis suportavam o desconforto e enfrentavam o desconhecido. Sua tarefa não era fácil nem simples. Após a renúncia ao nomadismo, os membros de uma tribo eram estimulados a construir em terreno alto e plano, de preferência à beira de curso d’água, a semear, a adquirir rebanhos. Os próprios padres se dispunham a trabalhar duro, apesar de “bem nascidos” (originários de famílias bem situadas): na missão tornavam-se agricultores, talhadores de carne, carpinteiros, pedreiros, artesãos, escultores e, sobretudo, músicos. De início, as construções eram provisórias, meros abrigos. As habitações familiares, com certa estética e funcionalidade, foram erguidas em seguida. Muito embora as missões fossem autônomas, em caso de necessidade elas se ajudavam reciprocamente, tendo sido todas as transações, fluxos financeiros e de bens contabilizados e tempos depois devidamente regularizados. Na escolha da localização de cada missão pesava a topografia do terreno, dando-se preferência aos promontórios ribeirinhos. Cada aldeia distava 7 a 8 léguas uma da outra. Outros critérios contemplavam a qualidade do solo, o clima, a paisagem e as condições de defesa natural e localização estratégica, a salvo de ataques traiçoeiros. Os conquistadores, militares e civis espanhóis, partiam para o Novo Mundo com o sonho do rápido enriquecimento como proprietários de grandes extensões de terra que eram abundantes e precisavam de mão de obra disponível. Como estavam habituados à ociosidade e à aventura desprezavam o trabalho braçal, tarefa de escravos. Envergonhavam-se de se ocupar diretamente com a construção, o plantio ou o criatório. Os missionários eram exceção, pois sempre se dispuseram a empenhar seu talento, criatividade e habilidades manuais na execução de inúmeras tarefas indispensáveis ao bom funcionamento da missão. O trabalho do jesuíta entusiasmado em parceria com os indígenas foi, sem dúvida, decisivo para o rápido progresso da República Guarani. A catequese representou o esforço inicial de ocupação territorial que pecisou enfrentar os insistentes ataques dos bandeirantes e tribos hostis. Os luso-brasileiros adotaram o enclave como estratégia para enfrentar a Confederação das Missões jesuítico-guaranis ao fundar e manter a Colônia do Sacramento ostensivamente defronte de Buenos Aires. Na verdade, a fronteira entre as áreas já ocupadas por espanhóis e luso-brasileiros era delimitada pela constelação de aldeias guaranis, pois o governo espanhol soube fazer uso da custódia desta “fronteira viva” executada com extraordinária competência pelos índios missioneiros a fim de deter o avanço 27 Miranda Neto da colonização lusa. Havia postos avançados em estado permanente de alerta em pontos-chave que preveniam qualquer invasão exógena. Além disso, as forças guaranis socorreram os hispânicos em diversas ocasiões tanto em Buenos Aires quanto em Assunção e outras cidades e principalmente durante o longo cerco à Colônia do Sacramento e depois a Montevidéu. Desde 1524, o Conselho das Índias estabeleceu normas político-administrativas para as missões baseadas na legislação espanhola. O Vice-reino do Peru compreendia o governo das províncias do Paraguai (Assunção) e do Rio da Prata (Buenos Aires) responsáveis pela fiscalização das missões. Em 1541, padres espanhóis chegaram a Santa Catarina com Alvar Núñes Cabeza de Vaca, nomeado governador por Carlos V para suceder Irala; revelou-se o mais humano dos conquistadores, justo e amigo dos índios. [Percorreu cerca de 2.000 milhas sem matar nem aprisionar nenhum]. Sua política era aldeá-los para cristianizá-los, o que originou as missões. Infelizmente, teve de enfrentar os colonos de Assunção, interessados em subjugar os autóctones e utilizá-los como serviçais. Belas jovens guaranis facilitavam a dominação através da coabitação que resultava no compadrio estreitador de laços de parentesco. Cabeza de Vaca acabou deposto, preso e enviado de volta a Madri, o que abalou o processo de evangelização: os primeiros padres tinham de se preocupar com os próprios colonos espanhóis. Em 1575, Frei Luís de Bolaños, franciscano, foi o primeiro missionário a aldear guaranis e dominar seu idioma. O franciscano Francisco Solano teve atuação semelhante com os índios do Chaco. Ao chegarem a Assunção, os jesuítas já estavam estabelecidos, familiarizados com a língua tupi (ramo guarani) desde a Província Jesuítica do Brasil. Os padres precisavam entender guarani. A doutrina cristã era pregada através de cantos repetitivos durante os cultos na Igreja. E havia punição para os faltosos às missas. Após várias tentativas, o povoamento do Rio Grande do Sul tomou impulso com a transmigração de parte da população de Laguna (SC) que vivia da pesca. Em 1727, a partir de Viamão, as primeiras estâncias e roças de subsistência garantiam o início da colonização que se espraiou ao longo do litoral sul. Daí para a integração do território desde Rio de Janeiro, São Vicente, Laguna e Colônia do Sacramento. A ação dos mercadores de gado foi decisiva desde o Uruguai até as feiras de Sorocaba. Aventureiros e sertanistas transformados em tropeiros rompiam os primeiros caminhos entre as minas de ouro das Gerais recém-descobertas e 28 As Missões Guaranis as vacarias do Sul. O transporte das mercadorias era feito em lombo de burro e a “carne era pouca para suprir os sôfregos arraiais que fermentavam em torno dos garimpos”. O ponto de apoio no Sul de toda esta movimentação era a Colônia do Sacramento em local estratégico no Rio da Prata. Em 1736, José da Silva Pais foi indicado por Gomes Freire de Andrade, governador das capitanias do Rio de Janeiro e Minas Gerais, para defender a Colônia do Sacramento e consolidar a incorporação da banda superior do Rio da Prata ao Estado do Brasil. A fortificação de Jesus-Maria-José garantiu de início este apoio militar à segurança da recém-criada Capitania D’El-Rei no Continente de São Pedro. A fim de resguardar a Colônia do Sacramento, seria necessário vencer a guarnição castelhana de Montevidéu que iria receber reforço missioneiro. Mais tarde, a política portuguesa desencadeada por Pombal intencionava a integração povo e território em uma comunidade política a fim de promover a unidade nacional. A colônia era concebida como extensão de terra sobre a qual se deveria impor uma geopolítica uniforme e globalizante para impedir sua fragmentação. Para Pombal, os objetivos de promover a integração nacional priorizaram a defesa do território, a militarização da população, o combate aos espanhóis e à Companhia de Jesus, a expansão econômica vinculando a agricultura ao comércio, o fortalecimento do poder real pela oposição aos missionários e aos nobres e pela extinção das capitanias. Os esteios da política integracionista de Pombal centravam-se na ocupação-colonização de caráter militar-estratégico e socioeconômico para garantir a articulação entre os setores e áreas de interesses luso-brasileiros de exploração comercial, forma inicial de exercício da soberania. A infiltração econômica na frente hispânica de expansão colonial no sul do continente fez-se necessária e urgente. A reação, drástica e definitiva, concretizou-se na expulsão e confisco dos bens dos missionários e na destruição da Confederação das Missões que afrontava o domínio e o controle estratégico na geopolítica luso-brasileira que na realidade era da Metrópole. 2.1 Fases da Colonização Missioneira 1ª) 1609-1641. Início da Evangelização. Primeiras missões a partir de Assunção, cidade Real de Guairá (1554) e Vila Rica do Espírito Santo (1576). Pioneiros foram os franciscanos cujas missões incorporavam 29 Miranda Neto índios já submetidos ao regime de encomienda enquanto os jesuítas aldeavam guaranis da periferia sem prévio contato com os colonos. De 1628 a 1641, intensificaram-se os ataques dos bandeirantes, obrigando a transferência de várias missões do Paranapanema para as margens dos rios Paraná, Paraguai e Uruguai. 2ª) 1641-1685. Primeira Contração Territorial. Transmigração para o Sul e o Oeste. Houve significativa redução do espaço ocupado e do número de missões, de 40 para 22, tendo 16 sido reconstruídas. Em 1641, a batalha de Mbororé conseguiu repelir o último grande ataque paulista. A organização interna se consolidou assim como a liderança dos jesuítas Antônio Montoya e Rocque González. As bases econômicas e a evangelização se aprofundaram embora o espaço ocupado tivesse diminuído. Aos poucos a mesopotâmia argentina foi habitada e teve início o desenvolvimento da pecuária. Introduziram-se novas técnicas e equipamentos agrícolas europeus como no cultivo do algodão e nos ervais. Melhoraram a intercomunicação e o apoio recíprocos, com maior homogeneidade cultural e resistência militar. Intensificou-se o artesanato, a cerâmica, as manufaturas, os teares, as ferrarias, os curtumes. 3ª) 1685-1740. Recuperação do Espaço. Apogeu das Missões. De 1682 a 1732, a população duplicou atingindo 141.000 habitantes. Em 1720, com os excedentes demográficos, dez novas missões foram fundadas, sendo sete no vale do Ijuí e Uruguai oriental e três no Sudeste do Paraguai. A expansão destas missões deveu-se aos índios nascidos, criados e batizados nas missões e não a neófitos agregados das circunvizinhanças. Novas construções urbanas, dotadas de infraestrutura conforme modelo já testado, destacaram-se nesta fase. A planificação urbana estava no auge assim como a expansão agropecuária das grandes estâncias, vacarias e ervais. No final do período, devido às epidemias, à prestação de serviços públicos e militares às autoridades coloniais, a população total das missões diminuiu de 141.000 para 74.000 habitantes. 4ª) 1740-1759. Segunda Contração Territorial. Tratados de Limites. Nesta fase intensificou-se a pressão das populações luso-brasileiras das regiões marginais como Mato Grosso e Rio Grande do Sul, deslocando as fronteiras por decisão política de Espanha e Portugal que optaram por solução diplomática a fim de agilizar a fixação dos limites regularizando a posse das respectivas áreas. Em 1750, foi assinado o Tratado de Madri pelo qual a Colônia do Sacramento foi permutada por sete missões, várias estâncias, vacarias e ervais. Houve significativa perda da área total das missões. As gestões protelatórias dos jesuítas fracassaram. Os guaranis negaram-se a abandonar seus “pueblos”. Após algumas 30 As Missões Guaranis negociações, a drástica execução militar do Tratado de Madri sufocou a resistência guarani que durou anos5. Os jesuítas foram expulsos das colônias portuguesas em 1759 e das espanholas em 1767. 5ª) 1759-1810. Fragmentação da Região Missioneira. Desagregação da Sociedade Guarani. Com a quebra da unidade territorial e administrativa e a secularização da gestão missioneira, houve perda de autonomia, pois as decisões político-administrativas procediam da Coroa: as missões foram integradas à sociedade colonial. Prosseguia o avanço da fronteira pecuária luso-brasileira por parte da sociedade hispano-crioula e lusitano-rio-grandense. Outros religiosos, pouco comprometidos com os interesses das missões, substituíram os jesuítas. Mas a orientação, a coordenação e a administração efetiva foram exercidas pelas autoridades coloniais segundo ordens de Madri. Intensificou-se o comércio, a mestiçagem, houve brutal ruptura da cultura guarani, desorganizou-se a economia com o abalo da solidariedade comunitária, as frequentes deserções e a queda abrupta da população autóctone. Entretanto, a sociedade crioula na periferia se expandia rapidamente agregando terrenos para sua pecuária, penetrando nas vacarias, estâncias e ervais. Só no século seguinte cristalizaram-se as fronteiras-limites entre Paraguai, Argentina, Uruguai e Brasil no território correspondente às missões guaranis. 5 Período conhecido por “guerras guaraníticas” (1753 a 1759). 31 III - Estrutura, Produção e Renda Uma república-modelo dominou mais de trinta missões jesuíticas guaranis em cerca de 500 mil quilômetros quadrados desde o atual Paraguai até o Uruguai, do Paraná ao Rio Grande do Sul durante mais de 150 anos. Nela vigorava o regime de propriedade coletiva dos meios de produção e uma estrutura ímpar de organização político-administrativa voltada ao crescimento socioeconômico e às artes – tudo sob orientação cristã. O sucesso e a sustentabilidade do modelo guarani despertava inveja e cobiça de outros povos e culminou nos insistentes assaltos dos bandeirantes, ávidos em escravizar os qualificados artesãos, agricultores e pecuaristas e em se apoderar de sua diversificada produção, prova material da existência de outro caminho na exploração e repartição da riqueza. A República Guarani estruturou suas próprias leis civis e penais, delegou funções próprias às autoridades e controlava rigorosamente seu orçamento. As fronteiras eram bem delimitadas e defendidas, sobretudo após a Coroa espanhola ter permitido a seus habitantes armarem-se contra as agressões externas. Sua economia era autossustentável: não dependia de fluxos financeiros internacionais. Representava, portanto, uma ameaça aos grandes interesses que dominavam o mundo colonial. Cada missão era administrada por um Conselho ou Cabildo formado pelo corregedor ou prefeito, geralmente o próprio cacique indígena, no exercício da administração, auxiliado por um alcaide (vice-prefeito) na função de inspetor de ensino, por um fiscal e cartorário, um alguacil ou comissário-administrativo, dois juízes e dois oficiais de polícia. Quatro conselheiros 33 Miranda Neto e respectivos assessores em número proporcional ao número de habitantes completavam a estrutura político-administrativa. Os chefes de setores eram escolhidos pelos próprios indígenas “dentre os mais fervorosos cristãos”, sob supervisão dos jesuítas. As sessões de conferência reuniam pároco, corregedor e conselho com a assessoria e a orientação dos jesuítas. Cada redução formava pequena república independente para sua administração interna. A Confederação das Missões se reunia para coordenar as diretrizes de Comércio Exterior, a Legislação Civil, Penal e Militar. Durante a primeira fase da República Guarani, dois superiores administravam a Confederação das Missões: um em Guairá no Paraná e outro em Yapeyú no Uruguai. Na segunda fase, um só Superior Geral visitava regularmente todas as reduções para poder traçar diretrizes de política de desenvolvimento para o conjunto de comunidades com o objetivo de manter sua unidade e uniformidade. Os jesuítas conservavam controle sobre o funcionamento da estrutura político-administrativa e exerciam sua autoridade, na plenitude. Em qualquer dúvida ou disputa eram chamados pelos índios. Entretanto, deixavam-nos assumir sua responsabilidade. Em certos casos o bom senso e a consciência substituíam a lei. A manutenção da ordem e a aplicação das leis eram exercidas sobretudo de modo preventivo. As punições se restringiam a orações, jejuns, prisão e açoite não ultrapassando vinte e cinco aplicações. Se necessário, o azorrague seria utilizado novamente alguns dias após. Os crimes mais graves eram punidos com prisão perpétua ou banimento para missões distantes. Não se aplicava a pena de morte. Em comparação com o Direito Penal vigente na Europa, a legislação nas missões era bem magnânima, pois a convicção dos jesuítas fundamentava-se no vigor da fé cristã em proteger os costumes e a ordem pública. A ascensão social ocorria pelo valor e mérito pessoal nessas comunidades sem classes nem privilégios, sem intermediação da moeda. Só podia exercer algum cargo público quem denotasse competência e honestidade. A ordem pública conseguiu se manter durante século e meio nas trinta e tantas reduções prezando a liberdade individual, o respeito ao próximo e a autoridade jesuítica cujo poder moral conservou-se inalterado. De início os bens pertenciam a todos os habitantes da redução. Desconhecia-se o comércio privado: o resultado da colheita era recolhido aos armazéns públicos para depois ser distribuído pelos chefes de bairro e estes pelas famílias conforme o número de seus dependentes. Não havia cercas demarcatórias entre terrenos diversos, pois tanto os equipamentos quanto a terra pertenciam a toda a comunidade. Apesar de ninguém possuir nada próprio, todos dispunham e tinham acesso a 34 Estrutura, Produção e Renda tudo. A propriedade coletiva dos meios de produção predominou entre os índios das reduções na fase inicial da colonização. Tupambaé era a área comum e Abambaé correspondia ao terreno de cada família. Pouco antes de sua expulsão, os jesuítas tentaram introduzir um sistema híbrido que contemplava a propriedade privada, não tendo obtido êxito devido ao desinteresse e resistência passiva dos guaranis. Mesmo assim, em alguns povoados surgiram “empreendedores individuais de alguns lotes” pois já tinham conseguido aval do Conselho para iniciarem a experiência. Os lotes eram “emprestados” pela República: cada família poderia apenas exercer o usufruto e não o herdava. O lote do pai retornava à comunidade quando de sua morte. A viúva e os filhos teriam direito somente à subsistência até o casamento de cada jovem, quando outro lote lhe era cedido, iniciando-se novo ciclo. Com as moradias ocorria o mesmo. Os instrumentos de trabalho, os animais de tração, as sementes e o gado de corte e leiteiro continuaram sendo propriedade comum. A experiência em distribuir os bovinos e os equinos entre os guaranis na esperança de estimulá-los a produzir não deu certo. Nem mesmo se conseguiu que se interessassem mais pelo lote. Contentavam-se só em possuir um único cavalo ou uma mula para seu transporte. A ideia de apropriação de terras permanecia estranha à sua mentalidade. Bastava-lhes a segurança e a previdência coletivas suficientemente integrais. Entretanto, eram considerados excelentes vaqueiros e elogiados na sua maneira de cuidar das estâncias, sem interferência dos missionários. O trabalho em comum era executado com prazer e alegria. Já a produção nos lotes era negligenciada, sem os cuidados tomados nos terrenos coletivos. As grandes plantações – tabaco, cana-de-açúcar, mate, anil, algodão – exigiam extensões de terra contínuas. Portanto, o sistema de lotes não as afetou, pois a maioria dos agricultores continuou produzindo. O loteamento destinava-se apenas às culturas alimentares de subsistência. Apesar dos esforços da administração geral das reduções, a tentativa de introduzir o regime de propriedade privada fracassou pois os índios já estavam acostumados a produzir em comum nas terras indivisas. As condições de trabalho comportavam jornadas de 6 a 8 horas diárias com intervalo para almoço. Praticamente todos se dedicavam à agricultura sendo que as mulheres cuidavam da costura, da lavagem de roupas, da alimentação, do artesanato – este ensinado às crianças e aos jovens os quais eram estimulados à caça, à pesca, à coleta de sementes e frutos – tudo intercalado com esportes, brincadeiras e jogos. Danças e pantomimas também animavam as festas após as grandes colheitas em que todos participavam com alegria. As da erva-mate transformavam-se às vezes em 35 Miranda Neto penosas expedições a áreas longínquas e inóspitas, pois a demanda externa exigia enormes cultivares. Alguns campos eram irrigados por canais artificiais que se prolongavam pelas lavanderias comunais e grandes viveiros hortícolas das reduções. Os índios já cultivavam milho, mandioca, batata-doce e erva-mate. Os jesuítas introduziram o trigo, a cevada, o arroz, a cana-deaçúcar, o algodão, o fumo e o cânhamo para a produção de tecidos. Os padres reservavam uma horta para experimentação sempre nos fundos do Colégio. Hortaliças e frutas, flores e plantas ornamentais e medicinais garantiam a alimentação e a saúde da comunidade. 3.1 Caixas de “Censos” da Comunidade O sistema de autofinanciamento dos guaranis teve origem uns 50 anos antes de 1606 quando, durante o governo do Rio da Prata os franciscanos resolveram fundar missões fixas como a de São José de Caazapá, substituindo os gestores dos encomenderos. Àquela época já estavam aplicando os conceitos de bens e caixas de réditos da comunidade destinadas a empréstimos públicos nas províncias do vice-reino do Peru e da Nova Espanha. Os autóctones tinham acesso aos recursos disponíveis, pagavam menos impostos e gozavam de melhores condições de trabalho do que nos regimes anteriores. Empréstimos e doações geravam juros e lucros assim como os arrendamentos de terras a terceiros. Havia estreita relação entre a “caixa comunitária” e os armazéns de abastecimento, cujos estoques reguladores nas entressafras poderiam ficar comprometidos. O principal resultado econômico deste sistema se refletiu no aumento da diversificação da capacidade produtiva, possibilitando investimentos em hospitais, estâncias, ervais e criatórios; na expansão dos cultivos, da pesca e na extração do sal e outros minerais. A contabilidade, as anotações diárias e os balanços semanais ofereciam um retrato da administração financeira das “doutrinas”, reduções ou missões. Ao reconhecer para os indígenas o direito de propriedade e uso de suas terras, as minas de ouro e prata poderiam igualmente ser exploradas por eles ou pelos colonos espanhóis. A produção de várias missões (e suas compras) era coordenada a fim de melhorar a vida e a participação dos próprios guaranis. A renda auferida com a venda de produtos e serviços, bem como as doações podiam ser reinvestidas para o aumento da própria capacidade produtiva e para as obras públicas (hospitais, escolas) em várias paróquias, diversificando atividades em regiões de solos pouco férteis. 36 Estrutura, Produção e Renda Entretanto, alguns problemas prejudicaram o desempenho das “caixas comunitárias”: a aptidão e responsabilidade de seus administradores, a inadimplência gerando atrasos nos réditos (juros, lucros) e dificultando a recuperação das importâncias aplicadas sobretudo as efetuadas pelas autoridades em nome da comunidade. A consequência mais grave era o prejuízo coletivo já que, durante um determinado período, havia a privação do estoque regulador na entressafra gerando grande risco para a coletividade. Durante o clima social de conflito, os custos de transação (conhecimento do mercado, riscos, capacidade de negociar com os comerciantes) aumentavam. Contudo os jesuítas sempre contavam com amigos e admiradores fiéis em Assunção e outras cidades estratégicas para garantir a comercialização de seus produtos e o abastecimento próprio das missões. 3.2 Ofícios de Missões Os guaranis conseguiram participar do processo de comercialização, inserindo-se em outros mercados, através de procuradorias representativas – os Ofícios de Missões – em cidades estratégicas. Sua origem remonta aos colégios de Buenos Aires, Assunção, Santa Fé, Córdoba, Santiago Del Estero, São Miguel de Tucumán, Salta e Jujuy, todas relacionadas ao fluxo comercial dos produtos e serviços guaranis desde o Atlântico até o alto Peru. O colégio, desde a sua fundação, cumpria também a função de apoio aos jesuítas ocupados em atender comunidades ou grupos de espanhóis dispersos, material e espiritualmente necessitados. Todos os colégios estavam ligados às missões mantendo com elas relações de interdependência e coordenação. Os reitores dos colégios de Assunção, Buenos Aires e Santa Fé apoiaram a formação de procuradorias ou ofícios incumbidos de prover as missões e a comunidade de jesuítas nelas residentes. A partir das esmolas evoluiu-se à prestação regular de serviços organizados na segunda metade do século XVII quando os pueblos, já com sua estrutura de defesa montada, começaram a encarar a tributação e a intensificação do comércio (sistemas de trocas de produtos e serviços) como meio quase exclusivo de abastecimento em uma economia aberta a mercados cada vez mais amplos. Os procuradores possuíam poderes necessários para vender os produtos das missões e, com o montante apurado, pagar os tributos e comprar os gêneros necessários em falta. A Procuradoria de Missões 37 Miranda Neto possuía, tal como uma cooperativa central, maior capacidade de negociação pelo expressivo volume comercializado. Os gastos comuns eram arcados pelos vários pueblos. Serviços recebidos ou prestados, resultados das compras e das vendas – tudo era registrado e contabilizado sob a supervisão do reitor de cada colégio e do padre provincial. No século XVIII ficou mais explícita a subordinação dos procuradores ao Superior das Missões. Os produtos das missões e dos colégios compartilhavam as mesmas rotas e serviços. A economia de ambas as instituições tornava-se menos vulnerável pela coordenação e complementaridade de compras e vendas em comum. Em especial, quando a oferta de um produto-chave superava amplamente a demanda. Apesar de a maioria das transações (venda de erva-mate a bom preço à vista) em meados do século XVII terem sido realizadas em moeda metálica (prata), de modo a possibilitar o pagamento do tributo, por volta de 1673, pela ganância dos comerciantes, estes passaram a pagar não só um preço inferior como teriam forçado os índios a aceitar quinquilharias inúteis e desnecessárias6. Os colégios para a formação de padres e as residências em Buenos Aires, Santa Fé e Córdoba formavam a base das procuradorias chamadas Ofícios, representando um elo econômico importante para as missões guaranis cujos livros de contabilidade representam, até hoje, fonte inestimável para a melhor compreensão das prioridades e diretrizes de fato implementadas (séculos XVII e XVIII). As “parcialidades” – lotes de cada missão dominados por determinado cacique – vinculavam as subdivisões de terrenos entre os caciques e seus subordinados. Os missionários precisavam convencer para cooptar uns 30 a 40 caciques e suas respectivas “parcialidades” para sua unificação e edificação em determinado local a fim de fundar uma missão com suas igrejas, escolas, residências. As oferendas, contribuições e esmolas passaram a fazer parte da cultura guarani: acostumaram-se a separar sempre um pouco de erva-mate para o padre de sua “doutrina” (missão), denominando-as de “oferendas a Deus e esmolas que se dão em seu nome”. O mate também era utilizado como unidade de troca que equivalia a moeda metálica e servia para adquirir bens e animais (gado bovino e equino) destinados às vacarias. O algodão era a matéria-prima dos tecidos usados no vestuário. A união da “oferenda a Deus” e do “serviço à comunidade” resultava na obtenção de bens do Tupambaé (de todos, da comunidade, de Deus) 6 HERNÁNDEZ, Pablo. Organización Social de las Doctrinas Guaranies de la Compañía de Jesú., Barcelona: 1913, vol.2. 38 Estrutura, Produção e Renda e a contribuição livre, espontânea transformou-se em responsabilidade compartilhada. Definiam-se, assim, os conceitos de dois tipos de bens: a)particulares: os terrenos dos caciques e seus agregados para semear; b) comuns: grandes plantações de tabaco, algodão, cana-de-açúcar, erva-mate, criações de gado vacum e cavalar cuja distribuição da colheita e o abate eram efetivados de acordo com os missionários e os indígenas, “seus verdadeiros donos”, mediante sua anuência e participação. A colaboração entre vários pueblos aumentava o poder e a autoestima dos guaranis que contavam com os serviços disponíveis nos Ofícios das Missões, verdadeiros pontos de apoio onde podiam contar com a assessoria de competentes jesuítas e seculares nas residências e colégios situados nas vias de acesso de regiões cruciais para o comércio dos produtos procedentes das missões. Em Buenos Aires e Santa Fé, os Ofícios das Missões (representações nas cidades) forneciam informações sobre as oportunidades de mercado, a quantidade e a qualidade dos produtos destinados à comercialização e dos necessários à importação. Ofícios ou procuradorias funcionavam também em Potosí, Santiago e Lima. Nunca houve guerra de preços entre as missões que se organizavam para comprar e vender em grandes quantidades seguindo contratos fielmente cumpridos em prazos adrede estipulados. Havia descentralização do controle de qualidade e de quantidade, fiscalizando-se com rigor tentativas de suborno e corrupção. A seleção dos credenciados a cumprir os contratos era fundamental para evitar a ida aos tribunais. Corregedores e cabildos eram sempre consultados, o que robustecia o sentimento de responsabilidade comunitária. A solidariedade entre as missões não criava situações de permanente dependência. Em condições de produzir, cada uma devia contribuir para resolver seus problemas. A diversificação da produção deixava menos vulnerável uma economia demasiado dependente de apenas alguns produtos agrícolas como erva-mate e tabaco versus produtos têxteis de algodão, artesanato de madeira, couro e cerâmica. Caso os Ofícios das Missões tivessem captado depósitos de terceiros para investir a taxas razoáveis, predominava o autofinanciamento retendo os rendimentos ou destinando contribuições aos povoados. Só em casos 39 Miranda Neto excepcionais os mutuários pagavam os juros do empréstimo. A chave do autofinanciamento consistia em coordená-lo com a complementaridade de atividades lucrativas dos pueblos, sempre avaliadas pelos seus resultados. A colaboração mútua entre as missões melhorou sua transparência e motivou a eficiência mediante os preceitos do Padre Antônio Garrige que, entre 1709 e 1713, foi visitador e vice-Provincial do Paraguay e confirmados pelo Padre Geral Tamburini em 1711: 1. Atividades econômicas efetivadas deveriam ser registradas em detalhe. 2. Os bens remetidos deveriam ter seu custo de aquisição acrescido do frete de transporte e de uma percentagem referente ao risco de perda. 3. A equidade deveria prevalecer na fixação dos preços dos bens. 4. Os excedentes e as perdas deveriam ser redistribuídos proporcionalmente de modo equânime entre as missões. 5. Os excedentes e as perdas deveriam ser apenas devidos àqueles que para tanto contribuíram (nunca para procuradores, superiores ou provinciais). Medidas para incentivar o senso de responsabilidade de cada missão eram fundamentais pois a situação patrimonial de uma indiretamente repercutia na capacidade de autofinanciamento das demais. Alguns colégios de jesuítas eram generosos com determinadas missões em momentos difíceis, mas todo o esforço deveria ser empreendido para manter a equidade evitando-se, a todo custo, “um oportunismo sem perspectiva duradoura”. A presença de jesuítas em Buenos Aires, Assunção e outras cidades responsáveis pela formação do clero e de seculares nos colégios, criava ambientes favoráveis aos próprios pueblos guaranis. A organização econômica das missões, ao apresentar relações absolutamente claras e transparentes, estende – segundo De Masy – uma forte e inspiradora ponte para o presente. 3.3 Agricultura, Abastecimento e Comercialização Entre os guaranis, todos se socorriam em suas necessidades. Como usavam de liberalidade com os visitantes, evitavam o furto vivendo em paz, sem litígios. Mesmo antes de 1639, o cultivo familiar da terra era uma realidade assim como a pequena criação de animais. 40 Estrutura, Produção e Renda Entretanto, paralela à produção familiar – abambaé – desenvolvia-se a produção comunitária – tupambaé. Atividades tipicamente masculinas como a roça, a caça, a pesca, a fabricação de canoas e de armas só se tornavam eficientes quando coletivas. O mesmo ocorria com as atividades femininas como o plantio, a colheita, a cerâmica, a tecelagem. Havia, pois, sempre necessidade de se fazer uso do mutirão ou putirum isto é, da ajuda mútua eventual em determinadas ocasiões como festividades, atividades específicas ou sazonais. Outra expressão de solidariedade guarani era o yo-poi ou troca-socorro. Por exemplo, uma família em determinado dia especial comemorativo carneava sua rês e a repartia com os vizinhos, distribuindo os cortes a cada um segundo as necessidades familiares; em outra ocasião, o vizinho retribuía e, em nenhum destes casos, a porção entregue era pesada a fim de calcular a equivalência entre o oferecido e o recebido. Como cada missão não podia produzir os principais bens de troca com a mesma quantidade e com a mesma qualidade já que a distribuição dos recursos naturais e a capacidade dos recursos humanos era desigual, especializava-se e se aperfeiçoava na produção do que lhe proporcionava maior retorno, permutando, com outras missões, as sobras dos seus produtos-líderes pelos gêneros de que necessitavam, procedentes de pueblos vizinhos. Estes, depois de economicamente organizados, conseguiram manter uma produção integrada e diversificada, menos vulnerável a fatores externos. O intercâmbio proporcionava maior estabilidade ao abastecimento mais diversificado. Quando um produto-chave escasseava ou apresentava uma superoferta, a fixação dos preços garantia o abastecimento e evitava o enriquecimento de alguns e a miséria de outros, sem paternalismo nem filantropia. Tanto na produção agrícola quanto na pecuária, cada missão objetivava autoabastecer-se. Por isso, plantava-se o maior número possível de gêneros compatíveis com o solo. Só na escassez de algum produto essencial havia a necessidade de intercâmbio ou doação por parte de outra missão. As primeiras tentativas de cultivar algodão fracassaram devido às geadas. As ovelhas adquiridas nesta época compensaram parte do prejuízo e garantiram a produção de tecidos para as roupas de lã. Anos depois, os missionários conseguiram terras melhor protegidas contra as geadas e a tecelagem de algodão explodiu. Loreto e Santo Inácio acolheram os emigrados de Tape fornecendo alimento e alojamento, ajudando no cultivo dos campos e na construção das casas. Só Loreto conseguiu, durante um período, manter outras duas missões necessitadas de auxílio temporário, emprestando sementes ao plantio, preparando os campos, roçando a mata virgem. Até suas mulheres 41 Miranda Neto ajudaram a alimentar os filhos das hóspedes. Loreto e Santo Inácio que, em 1631, haviam sido auxiliadas pelas missões do Paraná em 1638 e 1639, retribuíram a acolhida como quem “aprendeu por sua própria experiência a lastimar (e confortar) os sofrimentos alheios” (Cartas Ânuas 1636-1639). A capacidade das missões para enfrentar ajuda tão generosa não só refletia seus recursos produtivos como também a capacidade de armazenamento. Em 1646, já eram dotadas de celeiros para abrigar suas colheitas, destacando-se nitidamente dos demais núcleos autóctones. O excedente, que podia ser posteriormente intercambiado ou emprestado, aguardando sua recuperação, era armazenado, preservado, conservado. As habilidades e o aperfeiçoamento dos recursos humanos potencializaram a diversificação através do incentivo aos ofícios e às artes conforme os recursos naturais disponíveis na região. Os serviços e produtos intercambiados variavam: desde o transporte até a fabricação de carretas e de barcos. Como exemplo deste intenso fluxo de trocas destacava-se a missão de São Carlos que desfrutou por quatro anos do direito de vaquejar ou retirar o gado na jurisdição de Santa Fé como pagamento pelo retábulo (painel que decora o altar da igreja) que para lá produziu. Na distribuição equitativa da produção pela população do núcleo não se admitia nenhum intermediário comercial privado. As entradas e saídas dos produtos eram diariamente checadas e contabilizadas para o controle dos estoques disponíveis. Não circulava moeda de ouro nem de prata. A cada início de mês, os funcionários dos armazéns entregavam aos chefes de setores (bairros) a provisão de gêneros para os trinta dias, distribuída às famílias conforme o número de seus dependentes. A carne, obtida com os periódicos abates, era repartida três vezes por semana. Tecidos e roupas também eram distribuídos de acordo com as demandas. As necessidades comuns precediam as individuais. O escambo (troca direta) predominava embora às vezes algum bem, aceito por todos, pudesse intermediar a comercialização como, por exemplo, chá-mate, fumo, mel e milho. A maior parte da produção destinava-se ao mercado interno. Só o excedente era comercializado fora da comunidade. 3.4 Alimentação Apesar de variada, baseada na caça, na pesca, nos frutos das matas, nos cultivos de milho, mandioca, batata e legumes, a alimentação dos habitantes dos núcleos cada vez mais dependia da carne bovina obtida a partir da grande Vacaria do Mar no extremo sul, prolongada pela 42 Estrutura, Produção e Renda Vacaria do Rio Negro, na margem oriental do rio Uruguai, e da Vacaria dos Pinhais situada próximo às nascentes do rio Uruguai. Os missionários procuravam aumentar a produção agrícola e ao mesmo tempo restringir o consumo de carne vacum, até para propiciar o rápido aumento do número de reses. O consumo diário per capita subiu de 300g para 400g, do século XVII para meados do século XVIII. Cada família recebia cerca de 2kg de carne. A principal produção agrícola consistia em milho, legumes e algodão cultivados nas plantações comunitárias. O milho, considerado “panaceia do Paraguai”, era distribuído pelos padres como estímulo ao trabalho comunitário e, devido às múltiplas utilizações, para as mais diversas iguarias nutritivas e saborosas. A produção do trigo sempre ocupou lugar secundário. Entretanto, o consumo da mandioca superava até o do milho. Da farinha de mandioca fazia-se pão. As diversas espécies de mandioca originavam usos diferenciados. Suas raízes consumiam-se assadas, cozidas ou como farinha, amido. Dos resíduos formavam bolas que secavam ao sol penduradas do telhado das casas, provisão útil durante parte do ano em que são aos poucos cozidas com carne, à guisa de pão. Estima-se o consumo per capita diário inferior a 500g de mandioca, batata ou abóbora. Nunca faltavam batata e mandioca, que possuía ainda a grande vantagem de, após seis meses estar apta a ser consumida e poder ser armazenada no próprio solo, conservando-se disponível até três anos, sempre madura. Nas áreas mais úmidas, sobretudo nos dez últimos anos de administração jesuítica, predominava o cultivo do arroz de várzea. Depois do milho e da mandioca, os legumes se destacavam como as favas, os grãos-de-bico, as lentilhas, consumidos uns 30kg por pessoa/ ano, nas épocas de baixo consumo de carne. Açúcar e mel, além do consumo interno, eram vendidos fora das missões. Ao lado das hortas dos padres que estimulavam a produção e o consumo de diversas espécies vegetais, cultivavam-se árvores frutíferas (laranjas, pêssegos) nativas e importadas da Europa. Devido à sedentarização dos homens e à relativa abundância de carne, tanto a caça quanto a pesca haviam diminuído. O consumo de erva-mate, característico da cultura guarani e um dos principais produtos de exportação considerado até como moeda de troca, correspondia a mais de 17kg por família/ano já que a distribuição em alguns pueblos atingia a três vezes ao dia. Periodicamente mascates estrangeiros visitavam as missões onde se alojavam, oferecendo suas mercadorias. Assunção e Buenos Aires 43 Miranda Neto comercializavam alimentos através de feiras regulares nas periferias de Santo Inácio-guaçu, Santa Maria da Fé, Santiago, Santa Rosa, São Carlos, Yapeyú e São Cosme. Na verdade, o contato com os mercadores diminuía o fervor religioso dos neófitos. As missões de Guairá se especializaram em produzir fumo, mate e algodão e intercambiavam com a lã, os legumes e a carne das aldeias do Tape, mais ao sul. O saldo das transações destinava-se ao tributo anual ao rei, à aquisição de ferramentas, equipamentos agrícolas e, principalmente, à manutenção das igrejas. Embarcações à vela ou remo predominavam no transporte e na comercialização dos produtos das missões, a maioria delas situada à beira de cursos d’água. A frota mercante guarani despertava a atenção dos povos vizinhos e chegou a transportar tropas de Corrientes a Buenos Aires, bloqueada pelos ingleses em 1667 e em 1671. Caminhos com relativa pavimentação formavam rede de transportes terrestres. Os principais produtos que eram transacionados entre as missões e para Assunção, Buenos Aires, Corrientes, Santa Fé, Vila Rica do Espírito Santo e até para a Europa eram: erva-mate, fumo, açúcar, tecidos de algodão, móveis, esculturas, tinturas, rendas, bordados, pavios, círios, rosários, escapulários, mel, frutos, couros para embalagens, casacos e calçados e peles de animais, excedentes manufaturados e artesanato. A maioria das missões importava ouro, prata, cobre, ferro (metal em bruto) para produção de ferramentas, armas, decoração de templos e produtos industrializados. O sal era basicamente fornecido pelas missões de Santiago e São José que exploravam salinas. A seda, o papel e o vinho da missa provinham da Europa. Até o século XVII ainda não se conseguira produzir o famoso vinho gaúcho. O elevado custo do frete somado aos impostos reais tornavam as importações proibitivas e dificultavam até as exportações do mate, agravadas pelas restrições de cota determinadas pelas autoridades para o produto procedente das missões. 3.5 Erva-Mate Nada indicava melhor a afeição guarani à erva-mate do que o risco enfrentado para produzi-la até em regiões infestadas de inimigos. Desde que dispusessem de área extensa e segura, os guaranis selecionavam os ervais apropriados com acesso ao transporte terrestre e fluvial. A ocupação de um espaço seguro com ervais era lenta. Em 1655, os índios das missões iam buscar a erva navegando em canoas por rios durante uma média de 44 Estrutura, Produção e Renda três meses (ida e volta) de muito trabalho exaustivo, enfrentando feras, febres e tribos hostis. O interesse maior era intercambiar o mate com cavalos, indispensáveis para vaquejar, algodão para os tecidos de suas roupas e sementes para suas lavouras. Grande parte da erva era destinada ao Colégio de Assunção que auxiliava nas aquisições requeridas. Os alcaides de Assunção se indignaram com a venda de erva-mate a terceiros e acusaram os jesuítas de explorar os índios. Estes responderam que a produziam para si próprios a fim de satisfazer suas necessidades e pagar os tributos. E solicitaram ao Rei permissão para que “os índios pudessem beneficiar e transportar livremente a erva”. A Cédula Real de 1-06-1645 a concedeu e advertiu governadores, corregedores e demais ministros das províncias para não colocarem nenhum impedimento sob pena de sofrerem punições severas. E deveriam auxiliar os índios no que fosse necessário da melhor maneira possível. O curioso era que os guaranis ofereciam a erva-mate aos padres como esmola, pois consideravam-na um bem de todos, a “erva da comunidade” tanto para as necessidades da igreja quanto para os neófitos paroquianos menos aquinhoados. O tipo de beneficiamento diferenciava a erva caaminí (caamirí) da comum ou de palos. Cortados os galhos do vegetal, chamuscavam-nos na chama, dependuravam-nos em paliçadas (traçando as varas) ou casas tecidas de varas, sobre brasa viva para que se tostasse a folha. Depois moíam e enfeixavam-na em surrões. Este era o modo descuidado utilizado pelos espanhóis. Os guaranis tinham pilões de hastes e tudo que era necessário para a higiene. Os espanhóis não retiravam os espinhos das ramas e misturavam-nos com as folhas e os trituravam juntos. Daí que a erva chamada de palos não ter sido estimada. Os guaranis moíam apenas as folhas e separavam cuidadosamente as impurezas e os resíduos. Esta era a afamada caaminí7. O excesso de oferta em meados do século XVII desvalorizava ainda mais a erva de palos. Enquanto isso, a venda da erva caaminí das missões não ultrapassou as 12.000 arrobas anuais nos mercados. Devido à premente necessidade de pagar tributos em moeda metálica, os missioneiros conseguiram aumentar as vendas de 1.500 arrobas a 5.500 arrobas. Como os guaranis produziam a erva em alguns terrenos pertencentes à cidade de Assunção, os espanhóis exigiram o chamado “tributo assunceno de estanco”: um carregamento de erva por quarenta que haviam transportado. 7 LABRADOR, Sánchez. El Paraguay Católico. II. Pp. 245-246. 45 Miranda Neto No século XVII, Santa Fé era o centro mais importante de redistribuição da erva-mate que se tornou “o melhor gênero existente em todo o Peru para transformar em prata”8. A erva-mate – caamini – era uma bebida muito apreciada pelos ameríndios sobretudo guaranis já antes da conquista e colonização. De início, proibida, depois incentivada, tornou-se um dos principais produtos de exportação das missões. Foi considerada “vício elegante” da aristocracia colonial. É uma árvore nativa, silvestre, em mata heterogênea, ao longo do Paraguai, Uruguai e Paraná. Em Lima, os incas colocavam folhas de mate para acompanhar seus mortos ao lado de armas, roupas e joias. Os jesuítas introduziram novas técnicas no cultivo e preparo do mate cujo segredo era colher as folhas na época exata sem deixar a umidade interferir, triturá-las bem e tostá-las, eliminando os gravetos. Os padres Segismundo Asperger e Pedro Montenegro, botânicos, foram os primeiros que divulgaram as propriedades e virtudes medicinais do mate: fortificante, digestivo, diurético, refrescante no verão (se ingerido frio) e bebida quente (no inverno). Recomendava-se ingeri-lo sem excessos, em pequenas doses. A erva macerada podia ser usada para curar feridas e como antiespasmódico. Além disso, servia para combater a insolação e fortalecer as gengivas se mastigadas suas folhas. A erva-mate (caá) propiciou vultosos rendimentos, garantindo em parte a sustentabilidade econômica das missões. Após um século da expulsão dos jesuítas, 5000 toneladas ainda eram exportadas (1867). A yerba de palos era obtida da erva-mate silvestre após cortados os galhos que tostavam em uma espécie de grelha durante 24 horas, para depois serem reduzidas a pó mediante batidas com estacas. O cultivo racional em áreas próximas às aldeias demorou a produzir resultados satisfatórios (de 8 a 10 anos). De 1670 a 1747 quase todas as reduções já possuíam seus próprios ervais que produziam as caamini (ervas cultivadas) preferidas à yerba de palos, alcançando o dobro do preço em meados do século XVIII. 8 CARAVAGLIA, Juan Carlos. Mercado Interno y Economia Colonial. México: Grijalbo, 1983. 46 Estrutura, Produção e Renda A fim de melhorar o sabor, os jesuítas aprenderam a misturar a erva-mate com as folhas de uma árvore frutífera, a quabiri mirim. Ao secarem as folhas, cuidava-se de reter um pouco de sua viscosidade. Missionários resolveram intensificar o criatório para garantir o suprimento de carne aos coletores da yerba. As expedições levavam o rebanho e os bois de tração para áreas próximas da colheita do mate a fim de transportar o produto final na volta. Os acessos ainda eram primitivos e difíceis. A colheita da erva-mate em estado selvagem, nas condições insalubres e em regiões distantes e inóspitas, provocava inúmeras baixas entre os guaranis devido também ao ritmo intenso exigido de homens mal alimentados. Em cada missão, cerca de 50 coletores da yerba se deslocavam durante meses para longe de suas famílias, submetidos a duras privações e sob ameaça de insetos, cobras e outras feras. A boa aceitação do mate suplantou o consumo da chicha, aguardente produzida a partir da mandioca, tornando-se um valioso produto de exportação com demanda garantida. Após a missa, os padres faziam questão de distribuí-lo em folhas aos fiéis, adotando oficialmente seu consumo por ser mais saudável e produzir menores inconvenientes. No início do século XVIII, as mudas selecionadas cultivadas pelos jesuítas começaram a se multiplicar próximo às áreas centrais das missões, um sucesso pelo empenho na tecnologia agronômica. A erva cultivada era muito disputada, como, aliás, todos os produtos das missões, geralmente melhores do que os provenientes da gestão colonial. O segredo da “tecnologia” desenvolvida pelos jesuítas teria se perdido com sua expulsão. 3.6 Autossustentabilidade À medida que as missões se tornavam superpovoadas, as antigas técnicas ficavam ultrapassadas, ineficientes e incompatíveis com o desenvolvimento sustentável. Os índios a princípio já evitavam desmatar 47 Miranda Neto completamente as áreas, deixando sempre bosques intercalados cujas árvores protegiam o solo da erosão pluvial, conservando a umidade e a fertilidade. Praticavam também a rotação de culturas com áreas em descanso ou pousio para só serem utilizadas no plantio após alguns anos. Os implementos agrícolas de ferro ampliavam o espaço cultivável em menos tempo e os jesuítas ainda agregavam uma gradual diversificação de espécies vegetais e animais. Para maior eficiência da expansão, eram criteriosos na seleção dos solos mais férteis, a salvo de geadas e estiagens. A horta dos padres era considerada verdadeira chácara experimental com espécies-chaves para alimentação, vestimenta e saúde (plantas medicinais). Como a capacidade das terras cultiváveis próximas às missões ficava limitada pelo desmatamento e pela queda da fertilidade dos solos, a cada três anos, pelo menos, os guaranis mudavam de sítio. Praticava-se também a cuidadosa separação prévia dos troncos a serem utilizados na construção civil e naval, impedindo o desperdício com a queima acidental e desnecessária. A localização das missões priorizava o abastecimento de água de boa qualidade tanto fluvial quanto subterrânea. Quando possível, os promotórios beira-rio garantiam segurança estratégica, transporte e alimentação farta, já que os cursos d’água eram piscosos, o que assegurava periódica complementaridade dietética. E, sobretudo, fundamental era situar-se longe dos alagadiços em sítios mais elevados, bem ventilados e próximos a veios fluviais. O clima era favorável ao plantio e ao criatório. O uso racional dos recursos naturais limitava os tradicionais desmatamentos que, entretanto, eram praticados nem sempre tomando os devidos cuidados. Um dos critérios para a escolha do sítio era justamente a proximidade de bosques plenos de biodiversidade. Só se fazia uso das árvores já desenvolvidas e a preocupação era deixar sempre touceiras aptas à reprodução das respectivas espécies vegetais e evitar perdas desnecessárias e devastadoras ações antrópicas. Até cipós, galhos e nós dos madeiros eram aproveitados para o artesanato missioneiro como as belíssimas imagens de santos e rosários elaborados a partir da árvore curiy. As folhagens secas caídas protegiam o solo da erosão. Muitas espécies trazidas da Europa enriqueceram ainda mais a flora nativa. Apesar de preocupações com o ambiente, padres queixavam-se de inúmeras agressões antrópicas que afetavam o equilíbrio ecológico, a capacidade de suporte das áreas ocupadas e o próprio desenvolvimento dos núcleos. Os recursos das matas e dos campos naturais eram complementares. A biodiversidade dos bosques preservava a fertilidade do solo e a produtividade agrícola. 48 Estrutura, Produção e Renda A boa técnica não depende tanto do instrumento quanto da sua utilização adequada para determinados produtos vegetais. Já no início do século XVIII os guaranis das missões transplantavam pequenas matas dos ervais silvestres. Ao se descobrir que bem lavadas, as sementes recém-colhidas da árvore brotavam com facilidade, a técnica difundiu-se entre os missionários nos terrenos adequados ao plantio. Dispor de plantas perenes, menos sensíveis a variações climáticas, próximas às missões, reduzia os riscos e os trabalhos dos cultivos anuais periódicos, permitindo atender melhor outras tarefas como capina rigorosa de limpeza das ervas daninhas com a grade de arado. Os cultivos perenes permitiam disponibilizar maior tempo para o início das roças em novas frentes; para obras comunitárias tanto no campo quanto na zona urbana; para diversificar a produção com legumes e arrozais; para potencializar estas inovações através do melhoramento planejado dos solos. A transformação tecnológica implicava em um trabalho de equipe dos missionários junto às lideranças indígenas, incluindo assessorias eventuais de técnicos europeus especialmente convidados que sempre recomendavam a escolha criteriosa de sementes de plantas vigorosas e de solos cujo potencial produtivo poderia ser melhorado. Também se preocupavam com o transporte e o armazenamento adequados tanto das sementes quanto do produto final cujo consumo nem sempre era imediato. A adubação e a irrigação dos terrenos já eram consideradas àquela época. Assim como o pousio alternado de certas áreas na prática de rotação de culturas a fim de manter a produtividade dos solos conforme os diversos plantios, suas características e peculiaridades. Alguns jesuítas tiveram a ideia de secar lagunas e pântanos cavando fossos mantidos desobstruídos e construindo barreiras a fim de preparar o solo para belíssimas hortas de árvores frutíferas que produziram em abundância. Os materiais advindos desses trabalhos eram aproveitados na elevação artificial de parte dos terrenos, sempre bem drenados. O esterco animal junto com o resíduo vegetal possibilitava cultivos precoces com maior produtividade: até a palha, por mais seca que estivesse, apodrecia e fermentava com os excrementos, tornando-se excelente e duradouro adubo para o plantio. A autonomia de cada pueblo com seus recursos humanos e naturais peculiares estimulava a criatividade, a especialização compatível com uma prudente diversidade de produtos e serviços, e adaptação técnica. As atividades comuns a várias missões, o intercâmbio e a solidariedade ante as emergências incentivavam a difusão desinteressada de conhecimentos e habilidades técnicas. Os trinta pueblos contavam em 1767 49 Miranda Neto com uma tecnologia adequada para satisfazer plenamente suas próprias necessidades; uma tecnologia que revalidava os recursos naturais autóctones conforme os valores essenciais ao modo de ser guarani e que agregava novas metas. Os guaranis continuaram abrindo novas roças em meio a bosques cuidando de controlar o corte e o fogo. Os solos eram propícios para cultivar algodão ou desenvolver pastagens férteis. Desenvolveu-se uma tecnologia própria, mas aberta a novos aperfeiçoamentos. De início, os missionários europeus trouxeram seus conhecimentos técnicos, mas no século XVIII, a maioria dos jesuítas da província do Paraguai já havia nascido em terras americanas. A comunicação entre os colégios, residências, ofícios e missões facilitava o descobrimento dos “espanhóis curiosos” tendo em comum o fato de já serem sul-americanos desejosos de um melhor, mais racional e sustentável aproveitamento dos recursos naturais. Baseados em sua experiência, os jesuítas lançaram um vasto programa agrícola sustentável. A falta de pastagens em Itatim obrigou-os a criar rebanhos menores compatíveis com áreas restritas conquistadas às matas e às encostas. A fim de reter água na estação seca, açudes foram construídos. Lhamas de origem peruana foram introduzidas: suportavam o frio e as frequentes cargas quando utilizados na tração animal. Produzia-se mais feijão, limão e abóbora do que maçãs, peras e laranjas. Apesar de pequenos surtos de prosperidade, nunca chegaram a alcançar o nível das missões do Paraná (Guairá). A baunilha também era comercializada. Produzida nas regiões mais úmidas das missões em associação com palmeiras, o maço (feixe) triangular repleto de pequenas sementes era procurado pelos espanhóis como um dos insumos na fabricação de chocolates. Seu uso só se intensificou no final do período jesuítico. Com o êxito da produção, sobretudo agropecuária, a oferta abundante permitia uma eficiente repartição entre as famílias residentes. Após quatro anos, a carne de bovinos começou a garantir o sustento dos habitantes cuja habilidade e competência com as lides campeiras favoreceram a expansão do criatório. 3.7 Pecuária A introdução do gado vacum impôs aos missionários cuidadosa seleção inclusive de pastagens não só para assegurar uma nutrição adequada como também para proteger o gado de outros riscos como 50 Estrutura, Produção e Renda inundações, feras, invasões, furtos. Na Vacaria do Mar a partir de 1670 a preocupação maior tornou-se expandir o rebanho a fim de garantir o satisfatório consumo de carne para os habitantes das missões. Para consegui-lo, implantaram-se pequenos bosques intercalados, caminhos entre eles com boas aguadas, sombra e alimento: paradas de descanso e recuperação, evitando-se as matas fechadas cheias de perigos. Os índios acostumaram-se a organizar verdadeiras expedições à caça do gado bravio, fugido, sem dono certo, entre dezembro e fevereiro. Mais de 50 vaqueiros levavam cinco cavalos cada um, e um lote de bois mansos para servirem de guias na condução das reses, que eram cercadas e trazidas de volta, misturadas umas às outras, aos currais. Os cavaleiros tinham muito trabalho para manter a malhada unida, sem “espirrar” nenhuma rês mais arredia. Durante o trajeto, caída a noite, eram obrigados a acender fogueiras para evitar o “estouro” da boiada. Desta maneira, os 50 índios em dois a três meses, conseguiam trazer à missão, em uma distância de 100 léguas, de 5 a 6 mil cabeças. Sempre ocorriam graves incidentes, muitos cavalos eram chifrados ou morriam de exaustão, correndo atrás de reses rebeldes também afetadas pelos maus tratos recebidos. Muitos animais ficavam imprestáveis durante todo o ano e eram recuperados em pastagens verdejantes a eles reservadas. O segredo era manter suficientes equinos disponíveis para conduzi-los à vacaria, que se tornava estância e pasto para as trinta missões que se mantiveram abastecidas durante mais de 50 anos. Tornou-se vital encurtar o trajeto entre a Vacaria do Mar e a estância de São José, pertencente à missão de Yapeyú, entre o rio Uruguai e seus afluentes, Ibicuí ao norte e Quaraí ao sul, onde milhares de reses abandonadas se multiplicavam. Daí que a estância de São José tornou-se de importância estratégica para a retirada do gado da Vacaria do Mar. De 1677 a 1691 a taxa de desfrute anual do gado foi de tal ordem que o padre provincial, Gregório de Orozco, ordenou que as missões passassem a “vaquejar” apenas de dois em dois anos. Neste período, as missões da bacia do Uruguai estabeleciam estâncias onde o gado engordava e se multiplicava. Em 1692, o governador do Rio de Prata solicitou às missões que retirassem para suas estâncias todo o gado procedente da Vacaria do Mar ampliada com a de São Gabriel, projeto inexequível mesmo criando uma grande vacaria ao norte do Rio Negro.Em 1704, foi criada a Vacaria dos Pinhais, a leste do Alto Uruguai, que já começara a receber gado desde 1701. A Vacaria do Rio Negro, dividida em duas, a primeira entre o rio Negro e o rio Quaray, e a outra ao sul do Rio Negro até o litoral atlântico se formou com o gado das missões do vale do Uruguai entre 1702 e 1709. 51 Miranda Neto Em 1717, a Vacaria dos Pinhais se expandiu com o rebanho das missões de São Lourenço, São Luiz, São Miguel e outras já que as Vacarias do Mar e do Rio Negro se ressentiram do sacrifício intensivo de reses para o comércio depredador de couros, graxa e sebo, desperdiçando os demais subprodutos. Vale ressaltar o planejamento coordenado da produção e distribuição do gado ao utilizar o mesmo espaço geográfico criando uma reserva complementar oportuna que enfrentou a grande crise alimentar de 1733 a 1740. A seleção do gado e de novas estâncias, banhadas de cursos d’água e dotadas de pastagens permanentes, garantiu excelente melhora do plantio e recuperação do rebanho que tornou a expandir-se. Enquanto uma fazenda crioula extensiva apresentava a taxa de crescimento líquido anual de 20% sobre o total do rebanho, o novo plantel missionário alcançava 25% em criatório semi-intensivo em terrenos cercados, com bons bebedouros, manejo adequado, obtendo gado manso de melhor qualidade. O progresso técnico foi resultado de anos de experimentação e soma de esforços. Até na criação de ovinos a produtividade na extração de lã aumentou no século XVIII. Mas constatou-se que apenas as técnicas aplicadas não conseguiam superar a crise alimentar de 1733 a 1740 cuja solução seria encontrar terras mais aptas ao cultivo nas missões afetadas pela baixa produtividade. Sobretudo, pela recuperação de solos exauridos durante intensiva exploração agrícola. A criação de gado exerceu a função de atividade produtiva complementar à agricultura, fornecendo animais de tração e transporte, carne, leite e laticínios. Aos poucos, os jesuítas foram descobrindo as regiões mais propícias à pecuária como o sudeste e o centro-norte de Tape (atual Rio Grande do Sul) nas bacias do rio Uruguai e parte do Paraná (vacarias do Mar, do Sul e dos Pinhais, mais para o norte). Enquanto os homens caçavam, pescavam e campeavam, as mulheres semeavam e colhiam. A expansão do rebanho bovino e sua manutenção tornaram-se incompatíveis com a tendência em caçá-lo e devorá-lo sem medida. Entretanto, conseguiu-se substituir as atividades mais extensivas ao se permitir e até incentivar o aproveitamento do gado fugido e disperso na proporção de um quarto do total. Em 1555, teria entrado no Paraguai o primeiro lote de gado vacum. De 1569 a 1576, ocorreu a intensificação do fluxo de bovinos procedentes do Alto Peru através de Tarija. Os rebanhos bovinos e equinos originavam-se dos lotes do fundador Alonso de Vera amealhados em Assunção desde 1588 por Hernan d’Árias, posteriormente apropriados pelos vizinhos, já que 52 Estrutura, Produção e Renda estavam dispersos e fracos. Seu filho Pedro de Vera, após reclamar seus direitos de herdeiro, obteve em 1611 um acordo com o cabildo da cidade sobre o usufruto do gado, perante o ouvidor Francisco de Álfaro. Em 1627, Pedro de Vera vendeu seus direitos a Manuel Cabral de Alpoín, que os exerceu com firmeza e determinação por um longo período. As vacarias eram campinas cercadas de acidentes geográficos que continham o gado vacum destinado ao Tape em sua fase de expansão (1632) e ao abastecimento dos novos reassentamentos das missões (1637). A Vacaria do Mar constituiu a base do posterior desenvolvimento pecuário das missões. Cerca de três mil reses da cidade de Corrientes foram adquiridas para os campos do Tape cabendo centenas a cada pueblo a fim de fundar suas estâncias. Uma das estâncias localizava-se nas proximidades de São Miguel entre os rios Ibicuí e Jacuí. A dispersão do gado e o ataque frequente de índios hostis forçavam a multiplicação de currais, estâncias e vacarias próximas às missões. Itapuá (Encarnação) influenciava as demais missões no “direito de vaquejar” que concedia em épocas determinadas e na engorda do gado em invernadas dotadas de pastagens de melhor qualidade que eram emprestadas quando necessário. Com as investidas luso-brasileiras, algumas missões do Tape tiveram de ser reassentadas e abandonaram as cerca de duas mil reses (de origem andaluz) nos pastos. As “pradarias ricas em gado” desfiguraram a história do desenvolvimento pecuário dos pueblos guaranis, supervalorizados quanto a seus recursos. Em 1638, os fugitivos da banda oriental do Uruguai (17.500 pessoas) equivaliam à metade da população das 20 missões com aptidões agrícolas relativamente homogêneas situadas entre os rios Uruguai e Paraná. A comercialização dos tecidos que serviam para seu próprio vestuário e dívidas contraídas em prata em troca de 6.000 a 7.000 bovinos não eram suficientes para satisfazer os refugiados. O governador do Rio da Prata chegou a autorizar em 23-08-1638 aos guaranis “que pudessem vaquejar o gado disperso próximo às missões do Paraná”. Essa região ficou conhecida como Vacaria do Iberá ou Entre Rios. Este acesso facilitado ao gado aumentou a consumo de carne per capita, melhorando a dieta da população e a expansão do rebanho, incentivando a que as missões tivessem “uma estância de vacas comum a todas” depois subdividida em várias menores “conforme sua real capacidade” de controle, administração e produção para o mercado interno. Após a vitória de Mbororé, patrulhas das missões recorriam à margem oriental do Uruguai, destruíam as fortificações dos luso-brasileiros 53 Miranda Neto e libertavam os índios cativos. O gado abandonado em 1637 proveniente das missões foi encontrado em 1644. Depois este rebanho se expandiu para o sul, ao longo do litoral. Nada agradava tanto os guaranis do Tape como retornar às suas terras de origem a fim de espioná-las, dobrar o gado remanescente ou colher os ervais outrora próprios. Em 1646, os melhores soldados tapes também precisavam defender as vacarias de Assunção, na margem ocidental do rio Paraguai, em benefício da população de Corrientes. Em 1657, as autoridades da missão de São Francisco Xavier fundaram sua primeira estância na margem oriental do Uruguai, seguida por Yapeyú, coordenando estas instalações com a defesa militar do território compreendido. Em 1679, cada uma das vinte missões contava com sua própria estância para criação de gado além da Vacaria do Mar. A cidade de Corrientes compartilhava com as vinte missões a extensa vacaria e permutava com elas produtos e serviços dos guaranis dos quais ocasionalmente necessitassem. As chácaras dos índios ficavam distanciadas dos núcleos e, por motivo de segurança, recomendou-se que o cultivo dos terrenos fosse incentivado nas proximidades da área urbana. Uma das consequências deste distanciamento era indisciplina e insubordinação dos rapazes das estâncias criadas longe das vistas do pároco. Para corrigi-lo, recomendava-se que “se aplicassem ao cultivo de suas chácaras, indispensáveis para o seu próprio sustento”. A exploração racional da Vacaria do Mar assegurava abastecimento regular das missões e das estâncias, sobretudo para aquelas que retornaram à margem oriental do rio Uruguai a partir de 1682. Dez anos depois, todo o gado das Vacarias do Mar e de São Gabriel deveria ter sido incorporado às missões a fim de evitar que os luso-brasileiros da Colônia do Sacramento se aproveitassem da facilidade de acesso e dele se utilizassem em proveito próprio. Todos os que podiam, trabalhavam. Não havia esmoleres. Os demais eram mantidos pela comunidade. Nenhum índio cultivava algo só. O trabalho comunitário recebia estímulo, supervisão, coordenação. No plantio, na limpeza e na colheita, todos colaboravam: mulheres e crianças cantavam e batiam palmas para afastar os predadores. A safra colhida era armazenada para posterior distribuição. Havia o cuidado de prever as sementes para os plantios sucessivos e o estoque excedente para emergências (reserva de alimentos e moeda de troca por bens europeus). Portanto, funcionava um sistema cooperativo a fim de garantir o bem-estar. Não havia direitos de herança: a família sobrevivente era cuidada pela comunidade. Na teoria, o Estado Espanhol era o detentor da 54 Estrutura, Produção e Renda propriedade da terra sul-americana mas, na prática, de fato, a Província Jesuítica do Paraguai exercia o domínio efetivo. Como não circulava moeda, tornava-se impossível transacionar terrenos sobretudo pelos colonos, impedidos de ter acesso às missões, de adquirir terrenos. Cada chefe de família guarani recebia da comunidade o que necessitava para sustentar seus dependentes. Mais terras significavam mais trabalho, mais produção. Os equinos eram amansados para montaria ainda segundo o método cruel de serem deixados presos sem alimento durante dias. Os potros eram doados a quem os quisesse criar. A passo de viagem, duas léguas eram percorridas em uma hora. O curioso era que o índio raramente cuidava do “seu” animal, fosse boi ou cavalo. Findo o serviço, esquecia-se de retirar a sela, de alimentá-lo e tratá-lo, chegando ao ponto de esquartejá-lo para assar sua carne. Por isso, os missionários passaram a controlar o acesso às montarias até para evitar roubos de gado e abandono por parte dos guaranis de suas respectivas famílias. Tanto que o rebanho manteve-se relativamente estável, antes de explodir no século XVIII. Desperdiçava-se a carne quando o interesse era apenas aproveitar o couro: a carcaça ficava à mercê de urubus, cachorros e raposas. O gado tornou-se abundante. Um cavalo valia uma faca. Viajantes eram obrigados a mandar vaqueiros à sua frente para abrir caminhos – tantas eram as reses bravias e dispersas que impediam sua passagem e assustavam o caminhante. 3.8 Manufaturas, Artesanato, Artes Plásticas, Música As missões possuíam fornos nas olarias para produzir tijolos e telhas. Em Santa Rosa, o padre Sepp utilizava dois fornos. Em São João os três fornos fabricavam vários milheiros de peças de cerâmica. Os sinos eram fundidos com metal importado de Coquimbo, Chile. Armamentos e munições, ferramentas e equipamentos eram montados em diversas oficinas. Tipografias, ateliês e laboratórios completavam o diferencial entre algumas missões e as cidades sul-americanas na época colonial. Os missionários prezavam a medição do tempo tanto por quadrantes solares quanto por relógios a fim de bem regular as atividades cotidianas e as ocupações dos habitantes. Os padres Jaime Carreras e Pablo Danesi e o frei Charles Franck orientaram os guaranis na arte e técnica da 55 Miranda Neto relojoaria. Relógios de sol até hoje atestam o capricho e a preocupação dos missionários em bem aproveitar o tempo disponível. A primeira oficina de impressão instalada no Vice-Reino do Prata foi de iniciativa dos jesuítas, que produziram livros em língua guarani com caracteres tipográficos especiais tentando reproduzir a pronúncia da maneira mais fiel possível. Em 1705, Loreto publicou a obra Temporal y Eterno em espanhol e um dicionário. Os trabalhos impressos eram bem apresentados. Candelária, Loreto, Santa Maria e São Francisco tiveram suas oficinas destruídas após a expulsão dos jesuítas. As obras linguísticas do padre Restivo encontra-se ainda hoje no Museu Histórico de Buenos Aires. Os mapas da América do Sul impressos pelos guaranis e os mapas celestes do padre Boaventura Suárez também se destacaram entre alguns dos melhores exemplares produzidos nas missões. Dotados de grande sensibilidade artística e fidelidade ao original, os neófitos eram extremamente hábeis em imitar, copiar e transcrever, produzir instrumentos musicais, tecer redes de dormir, tapetes, tecidos em geral. Corporações organizavam as principais atividades. Desde cedo, os jovens eram encaminhados a uma profissão. Mestres estimulavam seus discípulos e não temiam a futura concorrência. Não havia privilégios nem mecanismos para travar o progresso como a tecnoburocracia e a corrupção funcional-administrativa. Havia espírito de equipe, cooperativismo. As tarefas eram orientadas, coordenadas, fiscalizadas, acompanhadas com muita atenção, zelo e carinho. A aprovação da comunidade e dos padres era a láurea almejada. Além de apurado gosto estético, os jovens guaranis demonstraram senso de proporção e perspectiva, ótimo ouvido e ritmo que muito contribuíram para desenvolver o talento para o desenho, a pintura, a escultura, o canto, a música instrumental e a dança. Logo de início, os missionários observaram que os cânticos sacros atraíam a atenção dos indígenas. O padre Louis Berger pode ser considerado o primeiro mestre de música instrumental e vocal, escultor e pintor, admirado até pelo seu superior, o padre Mastrilli; ele conseguiu converter inúmeros infiéis com seu violão. O padre belga Jean Baez Vassaux aperfeiçoou musicalmente os guaranis divulgando repertórios consagrados e composições individuais. O padre Antonio Sepp também se destacou como músico de talento, intérprete em vários gêneros e instrumentos além de compositor. Foi grande incentivador do ensino da música aos guaranis no século XVIII. Em cada missão foi criada uma escola de canto coral, música e dança. Saber cantar fazia parte da educação para a cidadania. 56 Estrutura, Produção e Renda Os instrumentos musicais – órgãos, violinos, violas, harpas, flautas e trompetes – eram confeccionados nas missões pelos jesuítas, muitos deles alemães. As forjas que trabalhavam o ferro foram instaladas também para garantir a fabricação de armas, ferramentas e outros utensílios indispensáveis à construção de um sistema mais seguro e eficiente. O ferro, metal trazido de Potosí, possibilitou a fabricação de serrotes, enxadas, plainas, machados e relógios de mesa. Tesouras e lancetas eram raras e valorizadas. A indústria de cera das abelhas jataí (do tamanho de moscas) teria financiado a compra de minério de ferro. 3.9 Tecnologia Além de rica biodiversidade com frutos variados em abundância, extensas pradarias possibilitavam promissora criação de gado – cedo vislumbrada pelos jesuítas – que poderia, como de fato complementou, a caça e a pesca. Aliás, a pecuária foi um dos principais sustentáculos econômicos da Confederação das Missões. A beleza natural, o clima ameno, a exuberância destas plagas encantaram os primeiros missionários cujos afazeres eram inúmeros e diversificados e os sobrecarregavam: além das tarefas religiosas, havia o ensino, a hortifruticultura, o artesanato, o ensino da música (canto, instrumentos musicais, dança), a administração e a hábil gestão diplomática de interesses conflitantes com ousadia, dinamismo e pragmatismo. Cervos em abundância eram abatidos a paus de tão dóceis. O mel de abelhas era utilizado como tempero no lugar do óleo e do vinagre. Pescava-se à mão com curare (tóxico que atordoava os peixes) ou com pregos de pontas encurvadas na falta de anzóis. Às sextas-feiras e domingos havia missa solene com sermões formais e cânticos sacros. Aos sábados ocorriam os casamentos. No primeiro dia do mês celebrava-se a missa de réquiem para os recém-falecidos. Procissões anuais eram realizadas às vezes pelos rios. A catequese das crianças, o atendimento aos enfermos e a educação regular ocupavam boa parte do tempo dos padres, alguns dos quais habilitados a manipular os elementos fitoterápicos e a produzir os fármacos das riquíssimas flora e fauna que eram prescritos. Ao adotarem nova tecnologia incorporando ferramentas, instrumentos e equipamentos (agrícolas, artesanais, musicais), os missionários conseguiram ampliar a área plantada e a produtividade, tornando mais eficiente o trabalho manual e transformando os sons emitidos pelas mãos e pela boca. A transformação foi tão significativa que 57 Miranda Neto se tornou decisiva no convencimento dos demais neófitos ainda arredios às missões. Ela pode ser comparada à introdução das máquinas na revolução industrial. E só se tornou possível com a colaboração entusiasmada das crianças. A ajuda mútua e o trabalho em grupo ao som de cânticos ao lado das crianças era uma constante entre os guaranis. Caso determinada missão sofresse crise de abastecimento por colheita insuficiente, os vizinhos se reuniam para suprir as momentâneas necessidades e garantir a safra seguinte. Na instalação de nova comunidade, todas as povoações próximas contribuíam com seus homens, animais (bovinos e equinos), equipamentos e matérias-primas. O governador do Prata em Montevidéu, Dom Joaquim de Viana, exclamou, após visitar as missões que deveriam ser permutadas pela Colônia do Sacramento: “E são estas as ‘aldeias’ que temos de entregar aos portugueses? Os nossos cavalheiros em Madri devem ter perdido a cabeça para assim renunciarem a tais cidades, que não têm paralelo em todo o Paraguai!”. Na agricultura, os guaranis utilizavam o sistema de afolhamentos (rotação de culturas) e alqueive (pousio) concedendo ao solo descansos periódicos. Já naquela época queixavam-se de tempestades que destelhavam as casas e as destruíam em grande número. Geadas aniquilavam colheitas inteiras. Canais irrigavam os campos e se prolongavam às lavanderias e às grandes hortas. Máquinas hidráulicas puncionavam a água dos rios. Em 1745, uma grande seca atingiu a região. Em diversas ocasiões, nuvens de gafanhotos devastavam as plantações. Às pequenas plantações de milho, mandioca, batata-doce, erva-mate, os jesuítas acrescentaram as de trigo, centeio, cevada, arroz, cana-de-açúcar, algodão, fumo e cânhamo para a produção de tecidos. De modo geral, plantava-se no outono (abril – maio) e colhia-se na primavera (setembro – outubro). Cada missão comportava de seis a oito hortas e pomares além do jardim dos padres que na verdade era uma horta experimental de aclimatação de cerca de três hectares nos fundos do colégio onde havia hortaliças, legumes, flores, plantas medicinais e ornamentais. O “bálsamo das missões”, extraído do aquaraybay era até importado pelas farmácias de Madri. Temperos, perfumes, essências passaram a ser disputados. Aleias de laranjeiras e pessegueiros sombreavam as avenidas de algumas missões. Os padres adaptaram os seus conhecimentos à experiência e vivência dos índios. Anotavam detalhes dos experimentos com enxertos e demais métodos de reprodução dos vegetais e os classificavam, conservavam, arquivavam. O Almanaque Agrícola de 1765 informava e orientava sobre diversas culturas. 58 Estrutura, Produção e Renda Até 1700, pela ausência de metais, empregavam-se charruas (estacas de madeira afiada para arar o solo) que se desgastavam muito. O desafio de transformar caçadores, pescadores e coletores de sementes e frutos em agricultores era enorme. O algodão teve três variedades sendo cultivadas chegando a 2000 arrobas a produção em cada comunidade. A cana-de-açúcar também se destacou sendo que em 1860 a fabricação de açúcar cristalizado ainda subsistia em São Cosme. A produção vinícola só prosperou no Uruguai que exportava o “vinho da missa” para as reduções, embora o mais disputado fosse o vinho de la Cruz, na atual Argentina, fronteira com o Rio Grande do Sul. O tabaco do Paraguai era considerado um dos melhores na época. Estâncias de gado bovino e equino e plantações de erva-mate e algodão se expandiam nas planuras e encostas gaúchas próximos às culturas de milho e mandioca, determinando a construção de silos, currais, olarias e matadouros. A regularidade das construções e a organização do espaço eram evidentes, condicionando toda a sustentabilidade do cotidiano das missões, limitando as atividades e sedentarizando a comunidade, antes habituada à vida nômade, em contínua busca do seu sustento. O grande diferencial missioneiro consistia no êxito dos jesuítas em providenciar oferecer certas condições favoráveis que poderiam oferecer relativa garantia de abastecimento regular pela introdução de produtos, técnicas e implementos agrícolas que melhoraram a rentabilidade, diversificaram a produção e diluíram os riscos e as perdas. Os jesuítas, em seu afã evangelizador, encontraram áreas de coincidências com a mentalidade guarani que permitiram fundar sobre bases firmes a empresa missional: compartilhavam um modo de ser religioso, um modo de vida em comunidade no qual o trabalho e a produção de bens eram imprescindíveis para assegurar a subsistência, mas cujo objetivo maior ia além: a vida religiosa reforçada pelas artes plásticas, a música e o canto sacro, na verdade o marco superior da existência humana. Os professores do Colégio eram índios selecionados bem treinados que exigiam frequência intensiva das crianças de cinco a doze anos de idade. No 1º ciclo ensinavam catecismo, leitura, escrita, rudimentos de matemática, dança e cantos sacros. No 2º ciclo havia a especialização de cada aluno em Teologia, História, Geografia e Latim para os que iriam tornar-se líderes da comunidade e membros do Cabildo, reunindo os mais aptos e capazes. 59 Miranda Neto Os membros do Cabildo eram eleitos em cada final de ano. Sua permanência nos respectivos cargos dependia da estima e do respeito da coletividade sem classes nem privilégios. Os padres eram conselheiros do Cabildo para assuntos relevantes e polêmicos com poder de veto em casos de conflito ou abuso de poder. Exerciam o papel de elo de ligação entre cada redução e a Confederação das Missões, coordenada pelo Superior (com sede em Yapeyú) que visitava regularmente os povoados, verificando se as diretrizes gerais de política desenvolvimentista estavam sendo seguidas. De acordo com Clóvis Lugon “Nenhuma outra região da América conheceu nos séculos XVII e XVIII uma prosperidade tão geral nem um desenvolvimento tão equilibrado e saudável”9. 9 LUGON, Clóvis. A República “Comunista” Cristã dos Guaranis. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. 60 IV - O Cotidiano da Criatividade Missioneira Como os missionários tentaram desenvolver o potencial adormecido dos autóctones? Inigualáveis na cópia e na imitação, irônicos e céticos, os indígenas conseguiam em pouco tempo formar e apresentar um coral, representar uma pantomima, ridicularizar alguém autoritário ou antipático. Após alfabetizados e educados, alguns guaranis tornaram-se excelentes calígrafos, copiando com absoluta fidelidade e elegância páginas de missais e outros livros, ainda hoje amostras da habilidade inata para o desenho, a pintura e as artes plásticas em geral. Após a expulsão dos jesuítas, caciques das missões escreveram de próprio punho ao Rei de Espanha implorando a volta dos padres ao Paraguai. Os jesuítas estabeleceram escolas em todas as reduções a fim de, no futuro, poderem delegar o máximo de tarefas e responsabilidades para os recém-convertidos. Aos poucos, os mais capazes e competentes iam assumindo diversas funções na administração da comunidade. Alguns guaranis tornaram-se professores. Começavam ensinando a ler, escrever e somar, o que já os destacava da população das cidades e vilas dos colonos hispânicos. Meninos excepcionalmente dotados aprendiam latim. A língua guarani era comumente falada pelos colonos, que não obrigavam os índios a dominar o espanhol. Os jesuítas também obtinham pouco êxito em fazê-los falar em seu idioma a não ser para distinguir os numerais. A autoridade dos caciques foi preservada na medida do possível. Seus filhos eram selecionados pelos padres para terem educação especial 61 Miranda Neto e prestígio só antes conferido por provas de destreza na guerra. Deste modo, os jesuítas respeitavam a hierarquia vigente e tentavam influir através dela na lenta transformação de hábitos e convicções. A pequena burocracia dirigente das missões originava-se basicamente do cacique que, no organograma das aldeias, era o corregedor, cargo equivalente a prefeito. Cada quadra do núcleo populacional era administrada pelo tenente e seus alcaides –assistentes que comunicavam ao padre, após a missa dominical, as principais ocorrências e necessidades da semana. Sua atribuição era conhecer as famílias moradoras do respectivo distrito a quem transmitiam as decisões tomadas, fiscalizavam as obras e os trabalhos determinados e concediam prêmios aos mais eficientes. Como símbolo de poder, os alcaides portavam um bastão de ébano ou marfim com a extremidade de prata. O privilégio de beijar as mãos do sacerdote lhes asseguraria a vida após a morte. As eleições para os cargos executivos ocorriam anualmente em dezembro a partir de uma relação de candidatos organizada com os funcionários que se aposentavam. O Conselho das Índias concedia ao padre da paróquia o direito de vetar as indicações. No primeiro dia útil do ano, os eleitos tomavam posse com sua insígnia na entrada da igreja. O governador da província referendava a posteriori confirmando a investidura nos cargos. Os jesuítas também nomeavam seus auxiliares diretos. O segredo do sucesso administrativo dos missionários talvez esteja na extraordinária habilidade na comunicação com sociedades primitivas cujas demandas tocavam em algo profundo do ser humano. Por natureza indolente e acomodado, o indígena precisava de um sistema de trabalho bem regulamentado, a fim de manter a autossustentabilidade econômica das missões. A maioria dos homens participava de trabalhos comunitários, sobretudo na colheita, na construção das casas e no “fechamento” do gado. O lazer compreendia igualmente a caça e a pesca, cujo resultado era útil igualmente aos demais moradores da missão. À tarde o treinamento com exercícios militares e guerras simuladas completava o conjunto de atividades diárias. A destreza dos índios com arco e flecha maravilhava os europeus assim como uma forma primitiva de futebol com bola de borracha com que se exercitavam na corrida pelo campo. As mulheres, além de cuidar dos afazeres domésticos, moldavam peças de cerâmica do barro dos rios, teciam redes, panos, cordas com a cota de algodão fornecida pelo armazém da comunidade: com o excedente da produção, ferramentas eram adquiridas. Algumas mulheres acompanhavam os maridos nas tarefas agrícolas. 62 O Cotidiano da Criatividade Missioneira Tanto as crianças como os adultos se ocupavam com catecismo, jogos, brincadeiras, músicas e cantorias além de ajudarem os pais na lavoura, afugentando pássaros e outros predadores, batendo palmas, gritando e gesticulando. Meninos e meninas viviam em relativa segregação com tarefas e brincadeiras diferenciadas. Os pais conseguiam melhor concentrar-se nos trabalhos cotidianos na ausência dos filhos. A vida sexual começava cedo. Os padres insistiam em oficializar as uniões a partir dos 14 anos para as garotas e dos 16 anos para os rapazes. A comunidade fornecia os meios. Nenhum dote era necessário; casa, rede de dormir, couro de boi, sal, pães e uma vaca para a festa de casamento eram rapidamente obtidos com os amigos. O casamento guarani era prático e objetivo. Em alguns sábados, mais de 50 pares contraíam matrimônio simultaneamente. A comunidade também providenciava a sobrevivência inicial dos bebês. A criança gozava de vida saudável ao ar livre com muita alegria, sol e banhos de rio o que, por si só, afastava muitas doenças e más-formações. O cabelo dos homens, usualmente comprido, era aparado por insistência dos jesuítas e distinguia cristãos de pagãos, amigos de inimigos durante uma batalha. A barba era geralmente rala por natureza. 4.1 Saúde Como nem todos os jesuítas tinham experiência médico-cirúrgica, os padres provinciais solicitavam irmãos coadjutores, cirurgiões e boticários à Holanda, França, Itália, Alemanha e Áustria. No início do século XVIII as missões da bacia do Uruguai já hospedavam um irmão que exercia o cargo de médico-clínico, auxiliado por um jesuíta e colaboradores índios. Enquanto os colégios possuíam medicamentos importados da Europa, as missões utilizavam, sobretudo, ervas medicinais de cada região. As epidemias de sarampo e varíola entre 1733 e 1738 obrigaram a planejar melhor a assistência médico-hospitalar com isolamento, assepsia, arejamento e ao abrigo dos ventos fortes. O abastecimento de água era fundamental e normas rigorosas de higiene recomendadas. A informação imediata sobre os primeiros sintomas dava o alarme para os procedimentos profiláticos tanto para encaminhar os pacientes, quanto para evitar o contágio. Tudo visava a uma participação ativa da comunidade na luta contra as enfermidades. Os deslocamentos massivos impostos aos guaranis com o Tratado de Limites de 1750 romperam um plano de prevenção e assistência médica organizada, proporcional ao tamanho 63 Miranda Neto de cada missão, o que teria facilitado a propagação das duas pestes devastadoras posteriores a 1738. Na alimentação, predominava a ingestão de carne mal cozida, causa de inúmeras doenças intestinais, apesar da recomendação dos jesuítas em bem cozê-la após preparo com temperos. A expectativa de vida média entre os guaranis não ultrapassava 50 anos de idade. As verminoses também proliferavam devido à quantidade de carne bovina semicrua consumida, causando algumas mortes. Com o objetivo de evitá-las, os padres produziam medicamentos à base de folhas de tabaco a fim de provocar vômitos: o enfermo devia tomar ainda leite com limão misturado à menta e à arruda. Havia ainda surtos de sarampo que interferiam no cotidiano das missões. A varíola atacava mais as regiões da Bacia do Prata e causava enormes baixas entre os índios, que não apresentavam nenhuma resistência. Há registros de epidemias em 1618, 1619, 1635, 1636 e 1692. Em 1733, cerca de 13.000 crianças morreram e em 1737 mais de 30.000 guaranis foram afetados de uma ou outra maneira. Em 1765 calculava-se que aproximadamente 12.000 habitantes foram vitimados pela epidemia. A participação ativa dos padres no tratamento dos enfermos relacionava-se ao conhecimento, por parte dos indígenas, dos fármacos naturais da flora e da fauna eficazes para determinadas doenças. O quinino utilizado no tratamento da malária foi introduzido na Europa em 1650 graças à divulgação realizada pelos jesuítas. Enrico Adami, Pedro Montenegro, Pedro Lozano, Segismundo Aperger, Thomas Falkner, Diego Basauri, Francisco Couto (único português), Juan de Montes, Domingo Torres e Antonio Sepp foram alguns dos médicos-enfermeiros-jesuítas que se destacaram nas missões nesta época na Província do Paraguai. Enfermarias eram improvisadas e voluntários cuidavam dos doentes. Entretanto, a maioria dos indígenas resistia a ser tratado no “hospital”, preferindo ficar de quarentena repousando na choupana. Enfermeiros acompanhavam os soldados-índios em suas campanhas. Enquanto cada redução possuía o seu enfermeiro, apenas dois jesuítas-médicos atendiam a todos. Missionários e guaranis sofriam muito com os frequentes ataques de bandos de jaguares e onças pintadas que dizimavam o rebanho à noite e atacavam as aldeias. Para se protegerem, abandonavam pedaços de carne bovina a fim de que seus habitantes sobrevivessem incólumes. Muros protetores e paliçadas atrás das quais os moradores chegaram a ficar sitiados durante quatro dias, provaram ser mais eficazes do que as armadilhas. 64 O Cotidiano da Criatividade Missioneira Os jaguares nadavam e ameaçavam viajantes descuidados. Na falta de alimento na selva, procuravam-no nos cursos d’água e nas proximidades das habitações humanas. Estimulavam-se caçadas aos predadores realizadas a cavalo de cima do qual se laçava e puxava a presa até estrangulá-la. Alguns índios preferiam o arpão e as armadilhas. À noite as fogueiras afugentavam as feras. O cuidado que se tinha de ter era não deixar apagá-las. A elevada capacidade intelectual dos missionários não os impediu de subavaliar a dos índios, sempre considerados imaturos, despreparados, dependentes de orientação e supervisão, imediatistas sem perseverança: os padres se achavam na obrigação de constante curadoria destes “seres inferiores”. Habituados à fartura e à abundância de recursos naturais – para eles inesgotáveis – eram avessos à provisão para futuras colheitas e menos ainda para formar excedentes comercializáveis e novos plantios através de reservas de sementeiras. A abundância de carne bovina devido aos rebanhos em expansão (em Yapejú, 50 bois eram abatidos três vezes por semana) propiciou grande desperdício e pouco rendimento. As rações eram distribuídas do depósito de carnes. Preparava-se charque tentando aumentar a produtividade, a conservação e a durabilidade do produto. Diversificava-se a alimentação com perdizes, outras caças e os peixes. Os jesuítas tiveram dificuldades em controlar os estoques, pois os índios não obedeciam à hora para as refeições. Comiam quando sentiam fome e tinham o alimento à mão. Índios e padres bebiam normalmente água. Nas festividades, alguns preferiam a chicha, espécie de cerveja obtida da mandioca fermentada. A vida em comunidade não poderia se manter sem um mínimo padrão de comportamento. Em 1623, Nicolau Durán, Provincial do Paraguai, estabeleceu as primeiras normas jurídicas para as missões. A lei seria aplicada com moderação pelos alcaides (responsáveis pela ordem pública), sob supervisão dos jesuítas. Nenhuma punição drástica, apenas correções de estilo paternal. Casos raros exigiriam castigos maiores. Havia o cuidado para evitar a associação entre fé cristã e código punitivo. Os padres estavam impedidos de punir por suas próprias mãos. Entretanto, formou-se um sistema penal especialmente para selvagens hostis. As punições mais comuns eram alguns açoites aplicados pelo corregedor. Os caciques e altos funcionários estavam isentos de castigos em público. Cada crime admitia determinado número de açoites que variavam conforme as circunstâncias da ocorrência. Em 150 anos nenhuma revolta séria ocorreu contra os padres enquanto várias eclodiram entre 65 Miranda Neto os índios das encomiendas. Dois párocos em cada núcleo eram suficientes para supervisionar de 6 a 7 mil guaranis. À noite, a vigilância das missões era dividida em três turnos. Comunicava-se qualquer incidente, velavam-se os doentes, vigiavam-se as aproximações de elementos estranhos à comunidade e de feras que tentassem invadir as moradias e adjacências. As sentinelas formavam força preventiva doméstica, paternalística e não coercitiva. As prisões só começaram a ser construídas e utilizadas a partir do final do século XVII e atendiam a grupos de missões. Geralmente as maiores penas não excediam a dez anos e só eram aplicadas nos casos mais graves como assaltos e assassinatos. Uma Corte chegou a funcionar com cinco padres cujas decisões tinham de ser referendados pelo Provincial dos Jesuítas. As principais causas referiam-se a disputas de terras entre as invernadas para o gado e as populações das missões. Desavenças internas, se não resolvidas, teriam direito a apelação em tribunal composto por três padres de outra redução. Na última instância, o Provincial e seus assistentes apresentariam a decisão final. Os missionários, desde logo observados pelos caciques, xamãs, mulheres e crianças, analisavam o comportamento dos recém-convertidos. Seu método era redirecionar os hábitos e impulsos primitivos. Os guaranis demonstravam enorme sensibilidade para a música, principal fator de atração desde os primeiros contatos, que os aproximou e foi bem utilizado durante toda a fase missioneira. Festivais de música e dança, movidos a farta e variada alimentação, ajudaram a fixar os índios às missões e a sedimentar a cultura cristã, a qual permanece até hoje, apesar das agressões e da decadência econômica posterior. 4.2 Vestuário As missões alcançaram a autossuficiência na produção de algodão quando este cultivo se desenvolvia em terrenos e clima adequados. No século XVII nas missões do Paraná foram inúmeras as aquisições de algodão e lã em troca de produtos procedentes de outras missões ou do fio de algodão. Nelas o vestuário adotado era comum às classes sociais menos abonadas de Assunção: reduzia-se ao gibão e a uns calções curtos e uma camiseta para os homens e o tipoy cobrindo um vestido tipo saco com duas aberturas para os braços para as índias, os quais raramente eram lavados ou remendados e usados até o descarte. 66 O Cotidiano da Criatividade Missioneira Frequente era o intercâmbio de tecidos por lã nas cidades espanholas. O incentivo à criação ovina nas missões permitiu melhorar o vestuário. Mesmo assim, dificilmente calçavam sapatos durante o dia a dia dos trabalhos no campo e na sede da missão, exceção concedida às festividades e procissões religiosas, consideradas “ocasiões de gala” em que os “principais” se sentiam orgulhosos em se destacar dos demais. Aliás, algumas peças do vestuário contrastavam com a extrema pobreza dos demais, verdadeiro luxo que os missionários contiveram. O cultivo do algodão e a produção de lã a partir da criação de ovinos estavam intimamente ligados à fiação e à tecelagem, com a ativa participação dos jovens e idosos que recebiam donativos em pagamento pelo trabalho. O nível da alimentação e do vestuário dependia da porção de terra destinada a cada família para cultivo. Cada família em sua respectiva casa conseguia viver razoavelmente sem, contudo, prescindir do trabalho diário. Só os incapazes estavam dispensados desta contraprestação para subsistir. Ao visitarmos uma missão no século XVIII, em seu esplendor, o que chamava a atenção era a ausência de mendigos andrajosos à porta do templo e a uniformidade dos vestuários tanto nas mulheres como nos homens. As mulheres usavam os cabelos soltos ou em duas tranças e seus vestidos de algodão de cor clara eram compridos e cobertos por uma túnica de tecido idêntico cingida sobre o vestido. Os homens, de cabelos curtos para se distinguirem dos infiéis, vestiam gibões e culotes semelhantes aos dos espanhóis, cobertos por leves ponchos de pano claro ou riscado. Todos andavam descalços e de cabeça descoberta. Nas missas, os que não cabiam na igreja, ajoelhavam-se na relva da praça em contrição. O desjejum mais consumido era constituído de broas de milho e leite fresco. 4.3 Plano urbano. Traçado das missões Observemos a simplicidade, a harmonia e a beleza do conjunto urbano. O coração do núcleo era a igreja em uma ampla praça, local de festas, desfiles militares e torneios convocados para os dias santos especiais. Da praça seguiam em paralelo ruas ocupadas por conjuntos de casas cobertas por telhas de barro cozido. Suas paredes eram caiadas. Todas abriam seus quartos e sala para um longo alpendre que intercomunicava as moradias permitindo o deslocamento ao abrigo do sol e da chuva. As principais 67 Miranda Neto avenidas dispunham de passarelas cobertas possibilitando atravessar o núcleo urbano a pé enxuto. A praça e as vias públicas eram arborizadas. Fontes forneciam água potável. O interior dos lares impressionava pela ausência de móveis. Utensílios e roupas eram pendurados às paredes ou guardados em baús de couro. De herança nômade, os guaranis dormiam em redes e evitavam pertences que tolhessem sua rápida evasão. Instrumentos de caça e pesca dividiam o espaço com imagens de santos. A igreja era flanqueada pelo cemitério, pela escola, pelo cotiguaçu (casa das viúvas e dos órfãos), pelas oficinas de trabalho artesanal e pelos alojamentos. Circundando-os, o jardim, o pomar e a horta garantiam as flores, os frutos, as verduras e os medicamentos que mantinham a qualidade de vida dos habitantes da missão. Caso a povoação se expandisse, a partir da artéria principal nova rua era aberta permitindo a edificação de casas no mesmo padrão. Edifícios públicos como o Cabildo, os depósitos de alimentos (armazéns ou celeiros públicos), o paiol de armas e as enfermarias – uma para homens e outra para mulheres – completavam as principais e maiores construções da área central da redução. As moradoras do cotiguaçu não viviam no ócio. Todas eram estimuladas a aprender algum ofício e a exercê-lo em comunidade. Produziam bens para uma espécie de Cooperativa Central. Através da propriedade coletiva – Tupambaé – dos bens de produção (terras, gado, equipamentos) criava-se um fundo comum de reserva que compensava o excedente da produção da propriedade particular de cada um, Abambaé. Desse modo, evitava-se o uso do dinheiro e de seu poder de corrupção. Todos contribuíam para a produção comum sem se preocupar em acumular lucro. Para não despertar a cobiça do mundo colonial, os missionários referiam-se aos núcleos urbanos guaranis como se fossem aldeias quando, na verdade, formavam autênticas cidades, superiores até às da América hispânica na época, tanto pela concepção geral, dimensões, arquitetura dos prédios quanto por sua vida socioeconômica intensa, com atividades variadas e pela própria população e taxa de crescimento demográfico. Na fase inicial as residências dos padres distinguiam-se das moradias dos índios: choupanas na terra batida com paredes de adobe (barro), teto de palha sem chaminés nem janelas e porta de couro de boi. O mobiliário era mais despojado do que o casebre de um camponês europeu da mesma época. No interior da choupana viviam em comum os pais, as crianças e animais domésticos. 68 O Cotidiano da Criatividade Missioneira O jardim da habitação do Padre Antônio Sepp, em Yapeyú, por exemplo, era dividido em setores destinados às flores, às ervas, aos vegetais e às árvores frutíferas. Ele era grande apreciador e cultor da música e gostava de ouvi-la, sobretudo em uma ilhota fluvial no rio Uruguai onde pintava quadros após degustar melões, pêssegos e figos. Dentre os livros das estantes das bibliotecas das missões, havia vários dicionários guaranis, bíblias, livros religiosos e de arte sacra, de geografia, astronomia e navegação. Ao visitar índios enfermos, os padres se deparavam com ambientes esfumaçados e fétidos que os nauseavam. Deitados em redes ou simplesmente sobre peles de animais, os pacientes recebiam os missionários. Lareiras à noite, fogões de dia aqueciam o ar e a comida. Usavam abóboras ocas como canecas, panelas de barro, banquinhos e cadeiras toscas de madeira. Na maioria das vezes sentavam-se de pernas cruzadas no chão na posição de yoga (lótus) em volta do fogo que ardia dia e noite. Apesar de não utilizarem fechaduras nem ferrolhos nas portas, desconhecia-se o furto. Índios reduzidos não poderiam ser escravizados, estavam livres do “serviço pessoal” para os encomenderos. Na missão, o guarani missioneiro transformou-se em factotum e mão de obra especializada. O maior pecado era a ociosidade voluntária, aos poucos vencida com muita competência pelos padres. 4.4 As Construções De início, as casas dos guaranis eram cabanas coletivas cobertas de palha com paredes de madeira (troncos, galhos e algumas tábuas). Após algum período de adaptação e convencimento, o padre Roque González conseguiu aos poucos que os moradores de Santo Inácio-guaçu se transferissem para as novas casas, divididas cada uma em cinco seções a fim de que as famílias tivessem suas individualidades preservadas com seus limites determinados. O que preocupava era o fogão, cujas fagulhas resultantes do seu uso prejudicavam a saúde e representavam risco de incêndio por causa da palha seca da cobertura. Só em 1637 passou-se a usar telhas, de início difíceis de serem produzidas pois o barro apropriado ainda era pouco encontrado. Achados arqueológicos confirmam que existiram casas de adobe com telhados de telha na missão de Candelária do Ibicuí. Por volta de meados do século XVII, predominavam as paredes de bambu revestidas de barro, a chamada taipa francesa (adobe), com teto de galhos de árvores e uma porta, mas sem 69 Miranda Neto janelas. Frequentes incêndios aceleraram a troca dos telhados por telhas de barro. Os padres provinciais e o padre geral insistiram em modificar a habitação e o modo de vida dos guaranis. O problema era bem mais abrangente, pois se estendia à criação de novas missões resultantes da desconcentração daquelas com tendência à saturação e à superpopulação. Ao fim do século XVII, o panorama urbano de Yapeyú descrito pelo padre Sepp era: “as casas formam arruamentos amplos, são muito baixas, não possuem piso lajotado nem de madeira, pois os índios vivem diretamente sobre o solo. As paredes não são construídas de pedras mas de barro amassado. Os tetos são cobertos de palha, a porta é de couro de boi e nunca é fechada pois nada há a roubar”10. Ele compreendeu que a habitação não cumpria as funções da casa centro-europeia, pois, para o guarani, ela não era o lugar principal de convivência. Em 1747, os trinta povos se situavam em sítios estratégicos, com casas de telha, ruas bem direcionadas e traçadas, dotadas de portais. Todas tinham apenas um pavimento (eram térreas), iguais em altura já com porta e janela. A largura das vias oscilava entre 12m e 15m. Os pórticos serviam de proteção ao sol e à chuva, facilitavam a comunicação dentro de uma mesma quadra, respeitando a intimidade da vida familiar. Cada casa consistia em um único aposento de aproximadamente 6m2, com porta e janela. A um canto estava atada uma rede para o casal e no outro, mais algumas para os filhos com esteiras estendidas por debaixo. Os pórticos eram apoiados sobre pilares de pedra ou madeira. As paredes das casas possuíam os alicerces de pedra, mas a parte superior era de adobe (argamassa) com pedras e apresentava a espessura de 0,60 a 0,80m, isolando o ambiente interno tanto da umidade quanto do calor. As missões eram divididas em parcialidades até oito ou dez conforme sua população. Cada parcialidade abrangia quatro a seis cacicados. Os caciques eram considerados nobres pelo rei da Espanha e comandavam mais de trinta vassalos que os acompanhavam nas solenidades públicas, prestando-lhes obediência e respeito11. As praças, no centro do núcleo populacional, mediam cerca de 125m x 130m em média, e eram ladeadas pelas melhores casas, pela igreja e cemitério e pela residência dos padres. A igreja media de 58m a 67m x 22m a 25m. Capelas, capelinhas, oratórios pontilhavam os arrabaldes do núcleo e as estâncias. Além do cemitério ao lado da igreja, havia alguns na periferia destinados especificamente às vítimas de epidemias. 10 11 SEPP, Antonio. Op. cit. CARDIEL, José. S.J. Carta Relación de 1747. Buenos Aires, 1953 70 . O Cotidiano da Criatividade Missioneira A casa dos padres, também construída em um só pavimento, comportava seis aposentos destinados a dois ou três religiosos mais os hóspedes missionários, convidados para as festividades eclesiásticas. Adjacentes funcionavam uma dispensa-armazém e um refeitório. Todos os cômodos debruçavam-se sobre um pátio interno de cerca de 50m2. Um deles era ocupado pelo mordomo e outro se destinava às armas e à rouparia (guarda-roupa). Completavam o conjunto a sala de aula e de música. Outro pátio congregava várias oficinas. No centro, um relógio de sol servia de orientação à produtividade laboral. O matadouro e o açougue funcionavam próximos e distribuíam as rações de carne às famílias guaranis. Em São Miguel e São João o matadouro era localizado na periferia do núcleo urbano. Os currais, que retinham o rebanho de gado manso, emprestavam os bois e os cavalos que cada família ou serviço comunitário necessitava. Completavam o conjunto urbano a casa das viúvas, o orfanato, o cárcere e a pousada (casa dos hóspedes). Nas missões, as primitivas habitações eram choupanas, logo substituídas por galpões coletivos, cabanas familiares e residências de tijolos, pedras, cal e telhas de barro, dotados de varandas e alpendres ou pátios internos. As amostras da arquitetura missioneira ainda hoje provam a elevada qualificação dos operários que participaram da construção das edificações: pedreiros, carpinteiros, marceneiros. Os prédios públicos e os colégios foram em parte recuperados e preservados como sedes de prefeituras e quartéis, após a saída dos jesuítas e a destruição de grande parte do patrimônio missioneiro. As pedras de talha e as ardósias eram extraídas de pedreiras existentes próximas a cada missão. Uma das mais importantes, mais difíceis e mais decisivas reformas a favor do núcleo familiar – sua moral e funcionalidade – foi determinada pela reestruturação das moradias. Tanto quanto possível, a partir do estabelecimento das missões em caráter mais duradouro nos sítios previamente escolhidos, cada família teria direito a uma residência, acabando com a “promiscuidade e a desordem” das moradias coletivas – verdadeiros galpões que abrigavam até duzentas pessoas. Mesmo após a transformação do estilo de vida, a poligamia ainda teve, em alguns casos, de ser tolerada. Entretanto, os missionários foram incisivos em valorizar a mulher e a família estável para garantir mais felicidade e qualidade de vida até pela introdução de hábitos de higiene, profilaxia, disciplina, organização e melhor uso do tempo disponível ao combater com vigor a ociosidade. Os guaranis cristianizados tornaram-se economicamente produtivos. A ação cultural dos jesuítas tinha como suporte material uma organização espacial planejada tanto urbanística quanto arquitetônica. 71 Miranda Neto O hábitat planejado e o estabelecimento de práticas e rotinas introduzidas pelo europeu converteram o selvagem em “civilizado”. A programação do espaço desenhava novos códigos de comportamento ligados à vida sedentária, condicionava-se a moral, exaltava-se a religiosidade e direcionava-se a vida cotidiana. A Companhia de Jesus não visava apenas a conversão religiosa ou o domínio espiritual, mas o estabelecimento de uma base material adequada à educação e à produção de bens, ao regulamento das relações sociais e ao controle da força de trabalho. A vida social era programada quanto ao trabalho, ao culto e ao lazer. Admitia-se apenas a dinâmica interna direcionada à progressiva aculturação. De início, os padres cederam a certos hábitos guaranis para adiante, com diplomacia, aos poucos, impor modos de vida mais modernos e higiênicos. Os enormes galpões de moradia coletiva foram substituídos por habitações familiares monogâmicas. Apenas a poligamia dos caciques foi tolerada para cooptá-los e enfrentar a liderança espiritual dos xamãs. A infraestrutura completava-se com moinhos de vento e de água, serrarias, curtumes, usinas de açúcar, fornos de tijolos nas olarias, armazéns para a secagem e a torrefação do chá, todos localizados na periferia de cada missão. A igualdade de oportunidades, de acesso, de tratamento caracterizava a sociedade das missões. Os trajes, o tecido e o corte eram uniformes para todos. Só se calçavam sapatos e meias no frio chuvoso e nas viagens. Gorros ou chapéus só eram usados excepcionalmente. Os jesuítas orientaram os homens a aparar os cabelos para se destacarem das mulheres e dos infiéis. Um vestido comprido sem mangas com cinto e túnica (tipoí) constituía a roupa das mulheres que cingiam sua fronte com uma faixa apertada para sustentar o que levassem apoiado em seus ombros. Apesar dos trajes simples, de modo geral os guaranis se vestiam melhor do que a maioria dos colonos das cidades vizinhas. Em cada missão, as avenidas principais dispunham de galerias cobertas, boulevards ou promenades de 2,5m de largura, pavimentadas a um metro acima do nível da calçada, ao abrigo do sol e da chuva, interligando as moradias. As coberturas das galerias se apoiavam nas arcadas de madeira ou pedra de arenito de único bloco, esculpidas de modo que “uma rosácea finamente cinzelada ornamentava o arremate da abóboda”. 4.5 A Redivisão Territorial A magnitude e suntuosidade dos templos, obras de mil braços, em dezenas de anos, impressionava. Uma análise dos mecanismos de 72 O Cotidiano da Criatividade Missioneira explotação talvez explique essas inversões suntuárias. Os guaranis convocavam uns e outros para reunir os materiais, derrubar os troncos necessários para erigir a Deus digno monumento. A fim de consegui-lo não poupavam zelo nem esforços. Se necessário, transportavam esses materiais, mesmo a custos elevados. O estímulo entre os pueblos animava a atividade artística e artesanal, a colaboração da mão de obra qualificada e o aproveitamento dos recursos em tarefas prioritárias do interesse da comunidade. A habilidade profissional na construção de templos e na elaboração de retábulos permitiu aos guaranis prestar serviços a outras comunidades e até obter renda necessária para adquirir gado, por exemplo. As vestimentas de seda usadas pelos artistas nas festas contrastavam com a indumentária dos índios mais necessitados. Tentouse impedir a aquisição de matérias-primas supérfluas no futuro. Os novos jesuítas já traziam consigo ornamentos e objetos para o culto, legalmente autorizados, possibilitando que o número de horas que seriam empregadas na elaboração dos artigos pudessem ser alocadas em outras atividades mais importantes como alimentação e vestuário. Segundo Rafael Carbonell de Masy, o excedente originado das exportações de erva-mate, couros, algodão, artesanato, etc., das missões guaranis corresponderia a um percentual do investimento líquido anual. Este excedente foi vital para gerar atividades produtivas ou adquirir recursos novos. Um exemplo que se destacou neste fluxo era a comercialização da erva-mate garantindo a introdução de cavalos e éguas nas estâncias. O trabalho coordenado e a ocupação do potencial produtivo reforçaram a formação de capital. Após terem sido atendidas as principais demandas da comunidade, restavam mais recursos do que se necessitava para ornamentar as igrejas, prover os índios de armas, ferramentas para seus trabalhos e ofícios e suprir os fiéis de velas de cera e vinho de missa para os cultos e outras festividades religiosas. A sustentabilidade e a competência gerencial se comprovaram quando a expansão das atividades e das despesas acompanhou o aumento das receitas e da população ativa dos pueblos. Em diversos períodos, as vendas dos produtos das trinta missões cresciam a um ritmo maior do que sua população. Além dos gastos com o funcionamento e manutenção, havia necessidade de investimento líquido inclusive para construir novos armazéns e silos ou ampliar os existentes nos Ofícios de Missões. Os almoxarifados e as instalações físicas com todas as anotações de 73 Miranda Neto fornecedores, clientes, relações das transações realizadas entre as missões – tudo contabilizado nos ofícios de Buenos Aires e Santa Fé – podem ainda hoje oferecer uma ideia mais completa da evolução econômica, da capacidade de compra e de venda, indicadores da capacidade de produção e de intercâmbio entre os pueblos de 1731 a 1763 de tal modo a superar situações graves de endividamento como a de 1738. Um dos problemas mais frequentes era como criar nova missão a partir de outra que já tivera atingido sua capacidade máxima de potencial produtivo e sustentabilidade ambiental? Quando se ultrapassava o limite demográfico (população superior a 1.600 habitantes) correspondente ao respectivo ambiente tornava-se difícil governá-lo, deixando de produzir economicamente e começando a afetar o equilíbrio ecológico daquela região, decidia-se logo deslocar parte dos habitantes para novo sítio previamente escolhido a fim de atender ao bem-estar da comunidade e do conjunto de missões. Mas como fazê-lo? Quem ficaria e quem se transferiria? Como financiar esse deslocamento e toda a infraestrutura necessária à instalação do novo pueblo? A primeira saída foi fazer com que, os que permanecessem, financiassem aos poucos os novos colonos a fim de facilitar as primeiras atividades e providências indispensáveis à fundação. A maior dificuldade era a mudança em si, pois uma existência habituada a determinado local sempre sofria e resistia a qualquer ameaça à sua tranquilidade, estabilidade e perspectiva de futuro. Boas águas para beber, banhar-se e pescar, abundância de bosques para caçar e retirar madeira inclusive para usar como lenha, solo fértil em sítio alto, porém plano, bem ventilado, sem montanhas próximas, apropriado à pecuária, era difícil de encontrar a fim de direcionar parte da população. Dois padres experientes na redivisão territorial eram encarregados de registrar os armazéns, silos, celeiros e organizar a partilha dos cereais assim como dos demais bens em quantidade e qualidade. Do mesmo modo procediam com o gado. Como os missionários estavam planejando com frequência casas e templos novos, conseguiam realizar o procedimento com eficiência e equidade. Portanto, a metade do valor da igreja, das moradias e demais instalações era dividida entre os moradores remanescentes e os migrantes que iam se instalar no novo sítio, justificando a ajuda inicial aos pioneiros fundadores da missão recém-implantada. Entretanto, muitos guaranis resistiam à mudança, demonstrando seu grande apego à terra onde já profundos laços os vinculava à origem. Em 1750, apenas a metade dos trinta povos habitava suas terras nativas. A redivisão territorial obedeceu à consulta às comunidades. O fato de se reunir no mesmo núcleo parcialidades indígenas diversas de 74 O Cotidiano da Criatividade Missioneira procedências e origens bem definidas resultou em inúmeros conflitos, posteriormente dirimidos através do Arquivo da Candelária, então sede do Superior das Missões, onde se conservavam cuidadosamente os documentos originais da propriedade das terras. Eventuais divergências ainda existentes podiam ser superadas através de compensações financeiras ou de mercado aos “pretensamente prejudicados” como mediante algumas reses bovinas. Os terrenos correspondentes à Vacaria dos Pinhais pertenciam aos guaranis assentados em Sant’Ana, São Cristóvão, Santa Tereza e Jesus Maria, antes situados na margem oriental do rio de São Pedro. A diversidade de parcialidades e de grupos indígenas linguisticamente distintos em sua origem explica a extensão de Yapeyú, a capacidade de seu povo, os rebanhos bovinos dispersos e o núcleo urbano denso. Foi até proposta a redivisão do pueblo. Entretanto, o Tratado de Limites de 1750 impediu a criação de nova missão na margem oriental do rio Uruguai. Desenvolvimento pressupõe participação consciente dos habitantes envolvidos em instituições que relacionem prioridades, recursos e formas de colaboração, comportamentos e resultados, iniciativas e convivências (De Masy). As instituições ancestrais indígenas tiveram de coexistir no novo espaço e modo de vida da missão em um processo difícil de adaptação e convivência sobretudo ao considerar as diferentes normas de divisão do tempo para o trabalho mais produtivo e rentável, categorias antes desprezadas pelos guaranis. As mancebias, o concubinato, as idolatrias, a antropofagia e as bebedeiras também foram condenadas pelos jesuítas, bem mais rígidos do que os franciscanos, cujas missões em grande parte estavam ainda submetidas ao serviço dos encomenderos. A carta régia de 15 de junho de 1654 reconhecia as missões administradas pelos jesuítas como “doutrinas subordinadas ao Real Patronato”, categoria na qual se classificavam após dez anos, prorrogados por mais dez, em que os guaranis aceitavam a fé católica e a autoridade régia fazendo jus à isenção tributária de vinte anos. Ainda mais que sua permanência e ocupação da respectiva área representava certa garantia de defesa do território, cuja população era exageradamente considerada até como “guarnição de fronteira”. As missões representavam uma revolução econômica e político-administrativa. Para constituí-las eram respeitadas as autoridades indígenas – caciques e pajés (xamãs) – e todos teriam acesso a bens e serviços antes desconhecidos ou inacessíveis como roupas, calçado, pão, vinho, azeite, mantimentos em geral, tecidos de seda, algodão, cânhamo; 75 Miranda Neto conheceriam e participariam da criação de equinos, bovinos, suínos, utilizariam ferramentas, armamento e demais utensílios trazidos da Europa. Alguns jovens mais talentosos seriam ensinados e treinados em artes e ofícios. Aliás, foi esta especialização técnica e artística o que mais fascinava os neófitos ao lado do deslumbramento com o esplendoroso ritual do culto e das festividades religiosas. 4.6 As Igrejas e seus Construtores Cada povoado guarani funcionava como uma célula do sistema de aldeias, teoricamente subordinado à Coroa espanhola, administrado pelos padres e caciques. Não havia hegemonia entre elas e a distância de uma para outra não ultrapassava um dia de marcha, facilitando a comunicação, o transporte e o socorro mútuo. O modelo urbanístico, baseado nas Ordenações de Felipe II e inspirados nos conjuntos de mosteiros autossuficientes da Idade Média, baseava-se em uma grande praça, centro da vida comunitária onde despontavam a igreja representando o poder religioso e o cabildo civil. No entorno ficavam as habitações dos neófitos cujo acesso se dava por passarelas cobertas ao abrigo do sol e da chuva. Anexo ao flanco esquerdo da igreja sobressaíam as oficinas e os ateliês, as salas de aula, a residência dos padres em torno de um pátio interno. Mais além, pomar, horta, jardim isolados por altos muros só eram acessíveis aos religiosos: frutos, hortaliças, flores e plantas medicinais eram cultivados com ciência e carinho. Em outro pátio dava-se o aprendizado diário e a produção artesanal de ferragens, ferramentas, ladrilhos, cerâmicas, tijolos, telhas, esculturas, pinturas, instrumentos musicais. Teares e tipografias completavam o conjunto de tecnologias introduzidas da Europa pelos jesuítas em algumas missões. No flanco direito da igreja geralmente ficavam a enfermaria e o cemitério. Modelos europeus de arquitetura religiosa e organização urbanística adquiriram na colônia feições próprias. As igrejas de Trindade, São Miguel e Jesus foram construídas em pedra talhada, com pilares em pedras e a cobertura de madeira de lei. As mais suntuosas igrejas localizavam-se na região de Entre-Rios e no atual Uruguai, mas foram destruídas. A de Santa Rosa, incendiada em 1883, compara-se a elas. Suas paredes foram erguidas em grandes blocos de pedras vermelhas sobrepostas sem argamassa. A cobertura 76 O Cotidiano da Criatividade Missioneira era revestida de lambril, sustentada por colunas geminadas, tendo o pórtico em forma de concha constituindo enormes estruturas de madeira ricamente trabalhada. Ornamentos enriqueciam todo o conjunto. Estatuetas de santos em madeira talhada povoavam as laterais. A cúpula era esculpida e pintada em vermelho e ouro. Em média doze colunas geminadas sustentavam a nave e, entre elas, estátuas dos apóstolos em tamanho natural. As sete capelas laterais alternavam-se com os quatro confessionários. O batistério como pequeno santuário ficava anexo ao corpo principal da igreja. A sacristia, atrás do altar-mor, era ricamente decorada. Uma fonte de mármore despejava água em uma grande bacia de prata. A “concha” do pórtico era coberta de lambris esculpidos e pintados cujas tonalidades estavam já esmaecidas quando visitada no século XIX. Todos os objetos e monumentos das igrejas foram saqueados. Além da famosa Igreja de São Miguel, outros templos se destacaram: o de Corpus, na margem do rio Paraná e o de Trindade, na mesma região. 4.7 Construção da Catedral de São Miguel Arcanjo A Igreja de São Miguel apresentava a arquitetura monumental despojada, sóbria, reduzida à essencialidade construtiva, e fez pensar no enorme esforço do povo guarani que empregou toda sua criatividade para suprir carências de materiais e técnica de construção, aproveitando a própria experiência na edificação das grandes malocas indígenas, culminando na afirmação do triunfo da civilização europeia adaptada às condições regionais. Início: 15 de agosto de 1734 (exatamente dois séculos após o dia em que Inácio de Loyola reunira seus primeiros seguidores em Paris) sob projeto e orientação do padre João Batista Prímoli12, arquiteto notável. São Miguel contava então cerca de 5000 habitantes. A construção levaria 10 anos. Projeto aprovado pelo Cabildo em 30 dias. Características: 70m x 30m. Paredes com mais de 3m de espessura. Peristilo (galeria de colunas em torno do pátio da igreja) de cinco portais ogivados enquadrados por colunas esculpidas. Acesso ao pórtico monumental através de seis degraus. No interior, três naves para cinco altares de talha dourada. Ao estilo das igrejas italianas, a torre de 25m de altura abrigaria um carrilhão de seis sinos. Na abóbada, pinturas e imagens de santos de elevado padrão. Em 1753 a igreja de São Miguel foi avaliada em um milhão de pesos. 12 Padre Prímoli já havia construído a Catedral de Córdoba, o Cabildo e a Igreja de São Francisco em Buenos Aires. 77 Miranda Neto A construção: Enormes blocos de pedra retiradas das margens do arroio Santa Bárbara e transportados em carroças puxadas por oito e até doze juntas de bois para serem içados ao seu lugar nas paredes e em seguida rejuntados com massa composta de areia, barro, cal, conchas trituradas, leite e água. As conchas eram recolhidas no rio Jacuí e transportadas em carretas até São Miguel. A própria construção tornou-se rico aprendizado para os guaranis que, no início, foram vítimas de sua inexperiência e natural ansiedade ao causar e sofrer alguns acidentes. Cerca de mil homens trabalharam durante dez anos na edificação e no acabamento. Andamento da obra: Agosto de 1738. Concluído o arcabouço das três naves e sua cobertura. Celebrada a primeira missa na catedral em construção. As festividades paralelas incluíam desfile civil e militar, corridas a pé e a cavalo e banquete em homenagem ao Padre Provincial que foi de Buenos Aires para inspecionar as obras. Em um mês (de julho a agosto de 1738), o Padre Domingos Zípoli, antigo organista da Companhia de Jesus em Roma, conseguira reorganizar o conjunto de músicos, desmontar, limpar e afinar o velho órgão e ainda ensaiar grupos de dança e música para o grande dia da pré-inauguração da Catedral de São Miguel cuja construção, no entanto, nunca chegou a ser totalmente concluída. 4.8 Padres Construtores de Igrejas e demais construções 1ª Fase: Padres peritos no início do século XVII. Destacaram-se Rocque González, Antônio Ruiz de Montoya, José Cataldino e Pedro Espinosa construíram palhoças-capelas que foram substituídas por enormes galpões com cobertura de palha (trançado de ripas coberto de barro) e paredes de pau a pique. 2ª Fase: Padres arquitetos. Destacaram-se Bartolomeu Cardenosa, Domingos Torres (também estrategista militar na batalha de Mbororé) e, em 1690, José Brasanelli, “Miguel Ângelo das Missões”, construtor responsável pelas igrejas de São Borja, Itapuá, Loreto, Sant’Ana, São Francisco Xavier, Santo Inácio-mini. No início do século XVIII, destacou-se o padre João Batista Prímoli, responsável pela construção das monumentais igrejas de São Miguel, Trindade e Conceição, e Antônio Forcada, construtor das Igrejas de Jesus e São Luiz. 78 V - Cultura, Rituais e Religiosidade Lendas e mitos, transmitidos de geração a geração, perpetuaram episódios que lembram até hoje a catástrofe do dilúvio bíblico entre os guaranis. A crença na imortalidade da alma e a noção do “pecado original”, por exemplo, foram orientadas pela religião cristã, recém-adotada pelos neófitos. Ideias e rituais tornaram-se mais nítidos e definidos. O contato com a civilização europeia era visto como uma fase na evolução cultural guarani. Como convencer os indígenas da importância da conversão? Só a pregação da palavra não era suficiente. Havia três obstáculos à conversão: 1. A conversão incompleta ou a manutenção dos antigos costumes nativos (canibalismo, poligamia) sob a capa do ritual religioso recém-incorporado ao seu cotidiano. 2. A desconfiança em relação aos colonos escravistas associados aos jesuítas por serem de mesma raça e procedência. Como convencer os índios do bom exemplo se os próprios colonos viviam em pecado e se comportavam da pior maneira possível? 3. A corrupção do clero secular que prejudicava os jesuítas. A partir da experiência dos missionários luso-brasileiros aperfeiçoou-se a “tecnologia da catequese” na abordagem e convencimento dos neófitos. Nóbrega quis transferir missões para a região do Paraguai, só temia violar o Tratado de Tordesilhas. Anchieta 79 Miranda Neto curava e depois convertia os índios: suas práticas medicinais facilitavam a conversão. Os missionários tinham de convencer os índios de que possuíam o poder de conversar com os espíritos, tal como os pajés. Antes da conversão religiosa precisavam demonstrar suas habilidades médicas e farmacêuticas. Assim competiam frente a frente com os pajés. À falta de médicos, os missionários poderiam tratar de doentes; entretanto era-lhes vedado o envolvimento com o comércio terapêutico. O envolvimento dos jesuítas com atividades de cura originou-se através da administração e do controle feito pelos religiosos nos hospitais na Europa. No século XVI, a ciência aperfeiçoou conhecimentos de anatomia, farmacologia e técnicas cirúrgicas, mas aos padres se reservava apenas entender, confortar e encomendar a alma dos doentes. Apesar da resistência da Igreja, a medicina aos poucos conseguiu predominar nos tratamentos bem-sucedidos. Os missionários possuíam incipiente conhecimento médico, mas o suficiente para identificar as enfermidades introduzidas pelo branco na população indígena, vulnerável ao ataque dos germes. Esta característica contribuiu para aumentar o poder dos jesuítas, cuja autoridade sobrepujava-se à dos pajés cuja rivalidade fazia proliferar intrigas que criticavam os métodos e os resultados dos tratamentos ministrados pelos padres. Ritos de fé (batismo, confissão, penitência, eucaristia, confirmação, extrema-unção) concorriam com cantos e objetos mágicos do pajé. A maioria dos batismos só eram realizados à beira da morte, pois tornava-se difícil convencer os autóctones a batizar seus recém-nascidos. Com o avançar da idade, todos queriam garantir o rumo do paraíso. Para enfrentar a poligamia, os religiosos forçavam-nos a escolher apenas uma das mulheres, abandonando as demais. Como convencê-los a praticar os bons costumes se nas cidades os colonos abastados se amancebavam com várias índias? Casamentos consanguíneos, canibalismo e demais práticas só aos poucos foram abandonadas. Os indígenas aceitavam ser casados pelos jesuítas, mas não abandonavam as demais mulheres. Os jesuítas optaram então por casar mais cedo os jovens pela primeira vez, ignorando as esposas que viessem a adquirir em seguida. Mas não seria hipócrita diferenciar poligamia de relações extraconjugais? O canibalismo na verdade só era praticado em situações de guerra como ritual milenar significando “o auferir as qualidades do morto”. Nativos consideravam-no um fim honrado e corajoso para o inimigo aprisionado em conflito. O sucesso dos jesuítas é explicado em parte pela sua tolerância com os ritos nativos e pela competência com algumas práticas terapêuticas. 80 Cultura, Rituais e Religiosidade Para tornar-se mais aceitável e popular, a cerimônia da missa introduzia às vezes peças teatrais em que crianças representavam episódios da Bíblia na língua guarani. Cânticos, danças e pantomimas enriqueciam também o ritual cristão que incorporava instrumentos, ritmos e adereços indígenas. Acreditavam os jesuítas que palavras persuadiam bem mais se acompanhadas de música e drama. A comunicação social completava-se com pantomimas, outro meio eficiente de convencimento. Conhecimento e respeito à cultura nativa, pregações em guarani, tratamento dos enfermos, tolerância e adaptação aos rituais conforme a audiência das missas contribuíam como estratégia para converter índios ao cristianismo. Jesuítas eram flexíveis, criativos e persistentes. As “tecnologias do simbolismo” deram aos espanhóis vantagem sobre as culturas do Novo Mundo. Controle dos ibéricos na escrita, dominação das culturas orais, uso da tradução de intérpretes. Como as crianças aprendiam com maior facilidade, adotou-se o emprego de intérpretes infantis na confissão dos adultos, violando-se assim o princípio da privacidade. A força do símbolo não é mera função de seu significado, mas do contexto mais amplo dos “ritos institucionais” que transformam o símbolo corrente, amplamente entendido e aceito. Há as origens pré-linguísticas do poder social comprovadas pelo desenvolvimento da “tecnologia para a conversão de nativos” baseada no tratamento dos enfermos (ritos terapêuticos) e nos rituais religiosos (magia social). A força dos ritos pré-linguísticos – como a cura de enfermidades e os rituais religiosos – expressava-se no entendimento e na sua aceitação prévia à comunicação pela linguagem. Jesuítas eram identificados como pajés-guaçu (respeitados curandeiros vindos de outras paragens) ao superarem a condição de estrangeiros e comprovarem ser hábeis terapeutas capazes de se comunicarem com os espíritos, mediar conflitos entre tribos e poderosos e de convencer os nativos a migrarem em massa para a “terra sem mal”. Os missionários relataram curas, batismos, casamentos, missas e confissões. Entretanto, a maioria das tentativas de conversão dos primeiros períodos fracassou. Legitimação do poder através do consentimento gerado pelo medo e o conceito de direito subjetivo13 são contribuições importantes dos jesuítas da Península Ibérica à Teoria Política do século XVII. Como torná-las coerentes com leis naturais e civis? Na verdade, reforçaram os argumentos e os normatizaram para serem utilizados na prática da evangelização. A conversão dos guaranis sofreu dificuldades relacionadas com a poligamia dos caciques, a embriaguez nas festividades, o canibalismo durante certo período praticado por alguns grupos, o ódio aos colonos 13 Direito subjetivo – direito dos índios, sujeito à vontade do colono (seu proprietário). 81 Miranda Neto espanhóis. Pode-se avaliar como foram complicados os primeiros tempos dos missionários. E o grande risco por eles assumido ao tentarem adaptar uma cultura totalmente diversa à outra. Até 1643, quando o padre Montoya publicou o Memorial, já 16 missionários haviam morrido em plena atividade de catequese. Assim como adotavam a nova fé, os guaranis podiam de uma hora para outra renegá-la. Só aos poucos o cristianismo foi sendo aceito e adotado. Mesmo assim, apóstatas14 surgiam aqui e ali. Tremenda persistência, paciência, abnegação, dedicação integral à causa da fé caracterizaram a atuação dos jesuítas que revelaram ainda muita perspicácia, coragem e resistência física. Sua experiência em lidar com interesses conflitantes e vasta cultura geral possibilitaram-lhes enfrentar os desafios. Os cânticos religiosos, o ritual e a música sensibilizaram os guaranis, facilitando sua conversão. O primeiro passo era convencer o gentio a se tornar sedentário, a dividir o tempo de maneira produtiva e criativa, a organizar-se em outro tipo de comunidade. A ociosidade seria tenazmente combatida. Havia muito a fazer: organizar o plano urbano da missão, construir os prédios públicos, a igreja, as moradias, os depósitos, os armazéns, cuidar das hortas e plantações, manter a limpeza e a circulação do núcleo, disciplinar as relações econômicas, sociais e de trabalho. As festividades religiosas eram cuidadosamente planejadas para não interferirem no cotidiano da produção agrícola, pecuária, da manufatura e artesanato da comunidade. O ritual e o ensino religioso só se generalizaram após a organização da aldeia e sua vida social cotidiana. A fim de atrair mais neófitos para sua paróquia, um missionário e alguns fiéis penetravam o interior. Muitas expedições enfrentavam imprevistos e fracassavam, às vezes com a morte dos padres. Entretanto, raramente solicitavam auxílio aos militares espanhóis. Pelo contrário, em várias ocasiões eram os colonos de Assunção e Buenos Aires que puderam contar com reforços das milícias guaranis sob coordenação dos jesuítas. Os padres sabiam cativar, através do exemplo e da eloquência, seus novos discípulos e convencê-los a melhorar de vida ao se incorporarem à missão cujos atrativos deviam sensibilizar o cacique, pois ele arrastaria sua tribo. Facões, anzóis, agulhas e ferramentas de trabalho reforçavam o convencimento: o índio presenteado sentia-se vinculado ao padre por elo sagrado. Os caciques convertidos, tocados pelas amostras das missões bem-sucedidas, ajudavam a atrair cada vez mais famílias à nova organização. Quando toda uma comunidade emigrava, formava-se primeiro sólido 14 Apóstatas - os que renegavam, os que desertavam da religião. 82 Cultura, Rituais e Religiosidade núcleo em nova missão que contava com as reservas de alimento e mão de obra especializada da redução vizinha. Por outro lado, os padres tinham muito trabalho em convencer o gentio a acreditar nas escrituras, profecias e ameaças bíblicas. Pouco a pouco, dedicavam-se às orações, à pregação, às tentativas bem-sucedidas de tornar os rituais religiosos atraentes através dos cânticos sacros, dos paramentos da igreja e da própria organização do culto. As pinturas e imagens sacras ajudavam a compor a atmosfera favorável à majestade das cerimônias e à devoção dos fiéis, atraídos periodicamente pela igreja cristã. As orações da manhã e o catecismo ocorriam ao ar livre diante da igreja cujos portões se abriam para a entrada de meninos e meninas cantando salmos religiosos em guarani e cânticos de louvores ao Senhor, inspiradores de devoção sincera e profunda. Aos poucos, adultos também lotavam o interior do templo. Findo o culto, saíam todos no maior silêncio. Procissões atraíam grande número de fiéis e os cânticos eram entoados com ritmo e devoção. Estimulava-se nos adolescentes a caridade, a disciplina, a ordem, a competência na conversão dos infiéis e a assiduidade no comparecimento aos cultos religiosos. Eram admitidos nas congregações, uma glória para a família. Bastava uma falta grave para serem excluídos, o que era suficiente para puni-los. Esta foi uma das maneiras de conter o alcoolismo. Reuniões periódicas das diversas congregações representavam o poder da elite religiosa. Coordenavam-se e controlavam-se as missões de cinco a dez mil moradores, educados, disciplinados, organizados pela autoridade moral de apenas dois missionários desarmados. Aos poucos, o hábito da leitura e da pesquisa ia se difundindo entre os membros dos Cabildos e a administração das missões onde preciosos trabalhos foram impressos em guarani. Embora os deveres da fé prevalecessem sobre as demais atividades e a religião fizesse parte da vida cotidiana da comunidade, o batismo era concedido sem a exigência de profunda e longa preparação. Quatro mil guaranis já haviam sido batizados em São Francisco Xavier logo após cinco meses de criada a missão. Muitos criticavam este açodado procedimento que levaria à acomodação e ao fatalismo do devoto induzido a acreditar em seu destino traçado e a se considerar superior aos demais. As cerimônias de batismo eram solenes para demonstrar a importância do rito de passagem na introdução à fé cristã. Dois ou três idosos, os mais respeitáveis da comunidade, eram escolhidos para padrinhos de todas as crianças a serem batizadas, que adotavam nomes de santos católicos: José, João, Antônio, Inácio, Maria, Luzia, Isabel... Os 83 Miranda Neto bispos de Assunção e Buenos Aires periodicamente visitavam as missões guaranis para a solenidade de confirmação. A viagem de Buenos Aires a Yapeyú era difícil, arriscada e exigia uma logística complexa e cara, financiada pela Confederação das Missões. Aos domingos, pela manhã, eram celebrados os casamentos antes da missa. Abençoavam-se os noivados e as uniões concedendo, com elaborado ritual, ares de superioridade espiritual às paixões e sentimentos humanos. Os enfermos ansiavam pelos sacramentos religiosos que lhes aliviariam culpas e sofrimentos. Durante graves enfermidades, a devoção impressionava até os missionários. Nenhum guarani chegou a completar sua formação sacerdotal, embora muitos tivessem apresentado as condições necessárias e demonstrassem competência após anos de preparação adequada. Os colégios, os seminários e a Universidade de Córdoba estavam sob controle dos jesuítas do Paraguai e do Prata e poderiam ter conduzido a elite jovem indígena ao sacerdócio com formação superior. Mas resistiram sob pretexto da necessidade do celibato obrigatório totalmente inviável frente à fama de polígamos dos guaranis. Só após a expulsão dos jesuítas, foi ordenado abade o guarani Januário Tubichapota que concluiu os cursos de filosofia e teologia no seminário diocesano de Buenos Aires. Os franciscanos também não teriam elevado nenhum indígena ao sacerdócio. A jovem elite não foi capacitada a gerir seu futuro. A direção e coordenação geral das missões foi sempre exercida pelos padres. Aos guaranis cabiam os conselhos locais ou comunais. Nunca se cogitou de criar um conselho da Confederação das Missões nem mesmo reuniões ocasionais de todos os corregedores, tentando unificar ações de médio e longo prazo. A instalação de um Conselho Geral talvez tivesse contribuído ao amadurecimento da competência guarani para enfrentar as turbulências e as crises advindas das guerras guaraníticas contra os efeitos dos Tratados de Limites e a expulsão dos jesuítas. O poder espanhol incentivava os neófitos a preencher funções administrativas e não os proibia de ser ordenados padres. Havia, sim, forte preconceito e receio de riscos de consequências futuras e de concorrência. Caso os guaranis tivessem efetivamente participado da cúpula do clero, o desenvolvimento da Confederação das Missões decerto teria tomado outro rumo. Entretanto, alguns guaranis tornaram-se tão estreitos colaboradores dos missionários que iam ao interior como “apóstolos neófitos” atrair aborígenes até de outro grupo, aumentando a diversificação étnico-cultural e dificultando a catequese pois às vezes nem a língua nem a cultura 84 Cultura, Rituais e Religiosidade possuíam algo em comum com a dos guaranis. Tolerância e paciência resultavam em sucesso a longo prazo. Os que sabiam, traduziam prédicas, sermões e textos bíblicos a fim de facilitar a compreensão e a aceitação da doutrina cristã. Estes apóstolos guaranis arriscavam suas vidas, pois muitos se tornaram mártires tal como os primeiros missionários. Quando nem a atração do esplendoroso ritual religioso, nem a música, os cânticos e a pantomima eram suficientes para atrair o gentio das tribos para as aldeias missionárias foi o receio da morte por doença ou em combate e do aprisionamento/escravização que reforçou o convencimento a esta forçada migração. Era o medo legitimando o poder dos missionários em transferir, catequizar, aldear e administrar o destino dos neófitos. À falta de opção menos traumática – o que foi magistralmente explorado no convencimento decisivo praticado pelos jesuítas – restou organizar os recém-chegados em produtivas missões. Ao transferir nativos de suas tribos originais para grandes aldeias missionárias onde coabitariam com indígenas de outras procedências, os jesuítas conseguiram desarticular a hierarquia tribal minando a autoridade dos pajés e caciques, agora sob o poder dos “protetores da aldeia”, os missionários que arbitrariam conflitos e julgariam crimes e pecados. A maioria das funções, até as assumidas pelo “conselho dos sábios”, passou a ser exercida pelos padres, o que apressou o surgimento da nova organização sociopolítica, rearticulando a parceria entre os poderes guarani e jesuíta. A aceitação da autoridade dos sacerdotes era obtida pelo temor ao uso da violência por parte dos colonos espanhóis que preferiam escravizar os indígenas para colocá-los a seu serviço. Entre se deixar matar ou aprisionar, os guaranis optavam por participar da construção de novas relações sociais e de produção sob gestão dos padres. Nas habitações de barro alongadas tipo barracões viviam em conjunto todos os descendentes de um mesmo clã – o que foi respeitado pelos jesuítas ao edificarem moradias mais resistentes. Eram divididas em peças contíguas onde habitavam as famílias. Caciques e pajés dividiam o controle sociopolítico da tribo, sendo que os primeiros do ponto de vista político-administrativo e os últimos do ponto de vista místico-religioso. Caciques famosos destacaram-se nas guerras guaraníticas e exerceram forte liderança: Arapizandu colaborou na organização das primeiras missões e Nicolau Neenguiru e Sepé Tiaraju na evangelização do Tape. Caraoié era o patriarca, sábio, respeitado pela sua experiência, espécie de profeta errante, filósofo e líder espiritual. Sua missão era conduzir seu povo à “Terra sem Males”, um lugar maravilhoso, paraíso 85 Miranda Neto indestrutível e fértil, misto de destino após a morte e também prêmio às boas ações, terra encantada perfeitamente alcançável em vida através do amor, amizade, fraternidade, solidariedade e confiança. Os missionários conseguiram elaborar em cima deste mito, ideal preexistente na cultura guarani e reavivado pelos jesuítas que, com habilidade, iam introduzindo valores cristãos. Em resumo, as missões se justificariam pelos princípios: medo e consentimento. Mais tarde comprovariam que, embora o seu início tenha sido, de certa maneira provocado por artimanhas, conseguiram ao longo do tempo, apesar de todas as dificuldades, autossustentar-se. Assim como em 1558 os jesuítas e o governo geral forçaram os índios habitantes de quatro aldeias próximas a Rio Vermelho a se transferirem para São Paulo, primeira missão criada pós-reforma, no século XVII os missionários da Província do Paraguai fundaram várias missões com neófitos de aldeias dispersas circunvizinhas. Além de cantorias sacras, representações teatrais eram muito empregadas para impressioná-los. Festivais de música e dança eram frequentes ao ar livre sob arcos triunfais, nas procissões e nas igrejas. Mas o que fixava realmente os neófitos à missão era a alimentação abundante e variada: carne bovina, leite, verduras, frutas, cereais e chás. Completavam o leque de atrações: a moradia bem construída em arruamentos planejados, o vestuário para abrigo do frio intenso, o ritual religioso e o calendário de festividades programadas para o ano inteiro que garantiam em conjunto o sucesso da catequese. Os guaranis tiveram, na época, o sustentáculo de sua unidade, identidade e resistência, sem o que, certamente, teriam sido absorvidos pela civilização dos brancos. O projeto das missões jesuíticas veio ao encontro dessa aspiração e parece corresponder à utopia da “Terra sem Males”, um mundo perfeito onde dor, angústia e sofrimento não existiriam15. 15 Confrontar com o mito do paraíso perdido, presente na história de vários povos. 86 VI - Importância dos Jesuítas e o Legado das Missões Os missionários possuíam, por necessidade de sobrevivência, além de um bem estruturado arcabouço espiritual, um profundo conhecimento do sistema produtivo local. Na verdade eram convergentes os interesses temporais e espirituais, obrigando a Companhia de Jesus a interagir continuamente com a produção agropecuária, visando o abastecimento das próprias residências e colégios jesuítas. Portanto, constituía uma necessidade vital obter a colaboração da mão de obra suficientemente qualificada, confiável e sempre disponível, garantia da continuidade do processo produtivo. As cartas dos jesuítas revelam preocupações com a falta de liquidez, a dependência de crédito, a manutenção dos meios de produção, transporte e distribuição, além dos cotidianos deveres espirituais inerentes ao cargo. Usufruíam, no início do seu gigantesco empreendimento, de privilégios como isenção de taxas e impostos reais além da garantia de relativa autonomia devido ao reconhecimento de seu papel na defesa e propagação do cristianismo através do mundo. A deterioração econômica do século XVIII coincide com a campanha contrária à Companhia de Jesus na Europa e na América Latina. A partir daí, os missionários perdem seus privilégios, o relacionamento com o poder real e com as demais autoridades afinadas com os interesses dos colonos fica tenso. Torna-se difícil compatibilizar o temporal com o espiritual e continuar se revelando competentes administradores, educadores, artistas, diplomatas e, sobretudo construtores e religiosos em sua catequese nas missões guaranis. 87 Miranda Neto Sempre foi tumultuada a relação de interesses entre os poderes apesar da incontestável quantidade de serviços prestados pelos jesuítas na administração do Reino. Logo após a assinatura do Tratado de Madri de 1750, acordos secretos foram tentados entre as Coroas Ibéricas para garantir a simultaneidade da permuta de territórios e a responsabilidade da mútua desocupação, apesar da resistência dos jesuítas e dos guaranis. A preocupação derivou do risco iminente de ruptura da paz e da conciliação. Em represália às duras condições do Tratado, os religiosos ignoraram as decisões pontificais e reais, inclusive visando o mínimo prejuízo para as partes envolvidas. A campanha contra os jesuítas repercutia no Reino e no Vaticano precipitando sua expulsão, em 1759, de Portugal e colônias. Suspeitava-se do enorme poderio do Império de cerca de 500.000 km² (correspondentes a mais de 30 missões) que ameaçaria a segurança europeia, a hegemonia das economias ibéricas e os interesses britânicos, fomentadores do contrabando no Rio da Prata. A interferência dos religiosos nas decisões políticas na Europa e a grande expansão econômica de seus estabelecimentos e de suas missões na América, mantendo relativa autossuficiência mediante gestão coparticipativa em um modelo bem-sucedido de segregação relativa do autóctone, afrontava a Metrópole. Sobretudo porque conseguiram resistir mais de 150 anos praticando um sistema autossustentável com tecnologia indígena em perfeita harmonia com as potencialidades ambientais. Muito embora os jesuítas de início usufruíssem de privilégios, isenções e incentivos, as contribuições reais nem sempre eram suficientes e regulares, escasseando à medida que se deterioravam suas relações com as cortes, os colonos interessados na escravização do gentio e o Vaticano. Os missionários em sua obra evangelizadora provaram que a comunhão entre duas culturas diferentes deveria basear-se na fraternidade como fonte de impulso vital. Os jesuítas precisavam dominar os idiomas nativos para pregar e se fazer entender pelos indígenas que tinham dificuldade de assimilar o sentido dos sacramentos e o significado das práticas religiosas. A música, a pantomima, o badalo dos sinos das igrejas, as roupas vistosas e os paramentos ajudavam a atrair o gentio mas foi o medo, a ameaça de perigo e a insegurança que acabaram por convencer a maioria dos indecisos a se transferirem das tribos para as aldeias dos missionários. Entre serem aprisionados, escravizados ou mortos pelas tropas coloniais ou abrigados pelos missionários em novos povoamentos onde seriam convertidos à “civilização” cristã, tornava-se evidente a segunda opção como vitoriosa. Anchieta e Nóbrega em São Vicente, Piratininga e 88 Importância dos Jesuítas e o Legado das Missões Sul do Brasil; Montoya em Guairá, Paraná; e Roque González no Paraguai destacaram-se pelas primeiras conversões em massa de neófitos tementes às forças da natureza e à sabedoria dos pajés. Conseguiram esses missionários transformar a catequese nômade das “missões volantes”16 em aldeamentos planejados das “missões fixas” pois as aldeias primitivas, além de dispersas, eram provisórias. Esse seminomadismo impossibilitava uma ação mais eficaz de aculturação do gentio. Os índios permaneciam no máximo de dois a três anos em um mesmo sítio e, quando se deslocavam, o faziam em levas sucessivas de apenas alguns elementos. As missões volantes, acompanhando as tribos nômades, apesar de alguns sucessos, não conseguiram a constituição de comunidades cristãs consistentes e duradouras; tornou-se indispensável fixar os neófitos em torno de uma igreja, distanciados dos colonos corrompidos e corruptores. Com a rede de missões formar-se-ia um “cinturão” ou barreira que garantiria a liberdade e a moralidade das tribos ainda não convertidas, condição necessária à catequese e à evangelização. As primeiras tentativas de aldeamento uniam várias tribos em uma nova aldeia com igreja, colégios, grandes depósitos e moradias em taipa. As cerimônias solenes e rituais sacros de instalação muito impressionaram o gentio que também adorava novidades, vestimentas vistosas, a pompa, os cânticos e a música das festas religiosas. Havia a necessidade de agrupar os povoados nas proximidades das vilas existentes. O Regimento Real criava as Aldeias d’El-Rei subordinadas ao governador geral que indicava a ordem religiosa responsável por elas. Os Superiores das aldeias passaram a ter jurisdição secular gerando sérios atritos entre os jesuítas e as autoridades civis. Os jesuítas concorriam com os pajés nos tratamentos de certos males, tanto do corpo quanto do espírito. Música e representações dramáticas persuadiam mais do que apenas a linguagem. A adaptação e a tolerância aos ritos sacramentais facilitavam a conversão dos índios ao cristianismo. A maioria das tentativas de conversão no período inicial da catequese fracassou apesar de ajudar a elevar a autoridade dos padres. Os jesuítas só se tornavam respeitados quando conseguiam superar a condição de “estrangeiros” demonstrando competência como terapeutas e “capacidade de se comunicar com os espíritos”. O poder de curar e de mediar conflitos e a capacidade de convencer os nativos a se deslocarem em busca da “terra sem mal” dependiam do conhecimento científico e do carisma que nem todos os missionários possuíam. Tornava-se necessário levar a missão de catequese para além da palavra e da cura. Todo o procedimento deveria ser reformulado, sobretudo os fundamentos teóricos e os conceitos que, ao 16 “Missões volantes” em que os jesuítas acompanhavam o deslocamento dos indígenas. 89 Miranda Neto serem sistematizados na Europa do século XVII, contribuíram para uma verdadeira revolução das ideias políticas contemporâneas cuja origem – é bom lembrar – provém das primeiras experiências e fracassos dos jesuítas missionários em terras sul-americanas. A história da empresa missionária sempre oscilou entre luta-resistência-conciliação na construção de uma confederação relativamente autossustentável. De início, contava com o apoio dos Reis Católicos de Portugal e Espanha à jurisdição espiritual e civil, liberada para organizar-se economicamente com suporte militar à expansão de seus domínios na América e à cruzada da fé católica na Europa. Na verdade, a República Guarani constituía uma ameaça crescente à complementação geográfica do Brasil meridional – isto do ponto de vista luso-brasileiro. Os jesuítas foram os grandes construtores das futuras nações latino-americanas e com frequência pagaram com a vida. Estudaram as línguas indígenas, adaptaram o ritual e o culto cristão às tradições locais. Seu esforço para fazerem-se entender tinha por objetivo tanto a pregação cristã, quanto o ensino profissionalizante. Combateram sem tréguas o canibalismo e a poligamia, apesar da forte reação dos índios. As missões naquela época não dispunham de um mercado estruturado. A economia de subsistência com pequeno excedente era autossustentável e respeitava a biodiversidade. A Companhia de Jesus sempre demonstrou um anseio orgânico por constante expansão e duradoura atuação na transformação de mentalidades e comportamentos, gerando comunidades integradas entre si mas relativamente autônomas em relação ao poder colonial. As uniões de hispânicos com mulheres guaranis ajudaram a preservar a paz. Os descendentes destas uniões eram reconhecidos como espanhóis e, após algumas gerações, os mais preparados eram selecionados pelos padres para se tornarem missionários. Já no início do século XVII havia a formação de seminaristas e noviços em Córdoba. Um dos problemas enfrentados pelos jesuítas era a concorrência dos xamãs, feiticeiros, curandeiros, conselheiros e sábios da tribo. Seu poder sobrepujava o do próprio cacique cuja autoridade só era plena durante operações de guerra. O xamã detinha o segredo das fórmulas fitoterápicas e dos procedimentos curativos, conservava a ascendência moral e a autoridade sobre os neófitos. Ao primeiro contato com os missionários, os guaranis praticavam canibalismo e poligamia. Houve xamãs que lideraram revoltas contra os espanhóis, proclamando o início da “Era Dourada”. Nessas ocasiões uma tribo deixava o seu território à procura da “Terra sem Mal”. 90 Importância dos Jesuítas e o Legado das Missões O mate era usado a princípio como erva milagrosa apenas pelos xamãs. De fato é diurético, estimulante, digestivo, compensando a ingestão de alimentos “pesados”. No auge de sua produção, a erva-mate era transportada em carroças até o rio Paraná por onde seguia até Buenos Aires para ser exportada à Europa. A maioria dos ervais ficava no Tape (RS). Os jesuítas deveriam ser encarados como protetores dos índios. A prática do “serviço pessoal” doméstico (ou não) virou abuso. Os missionários enfrentaram a opinião pública pois, em sua maioria, a população hispânica das vilas dependia das “encomendas” e do “serviço pessoal” do gentio. Os padres interferiram na relação provocando a ira dos colonos. Em resposta à atuação dos jesuítas, alguns colonos deixaram de sustentá-los e os expulsaram para a zona rural quando as primeiras calúnias contra os padres eclodiram. Dizia-se que pretendiam monopolizar o trabalho dos índios em proveito próprio e assim amealhar grande fortuna. Apesar dos desmentidos, a confiança das autoridades foi abalada, ameaçando os privilégios e as isenções dos missionários. Os guaranis adotaram a lei de Deus, mas abominavam os espanhóis e temiam os paulistas. O modelo de segregação relativa dos jesuítas protegia os índios das doenças dos espanhóis e da sua moral e, sobretudo, da escravidão imposta pelos luso-brasileiros (bandeirantes). Desde o início da fundação das primeiras missões, a disputa com os franciscanos marcou o relacionamento entre as duas ordens religiosas. Houve aldeamentos sob orientações diferentes relativamente próximos um do outro e, por isso, sempre um deles tinha de ser transferido. A República Guarani foi ocupando o território entre os rios Paraná e Uruguai, para depois povoar a área entre os rios Paraguai e Paraná e a leste dos rios Paraná e Uruguai, para o Sul e o Norte. Os padres Antônio Ruiz Montoya, Roque González e Antônio Sepp destacaram-se no século XVII. Eram missionários por vocação e totalmente integrados na cultura guarani. Seus planos consistiam em fundar escolas de língua indígena para futuros missionários cujo lema era “não há laço mais forte para a amizade do que uma língua comum”. Vindos da Europa, alguns missionários jamais chegaram ao destino. As viagens marítimas eram demoradas, desconfortáveis e extremamente perigosas. Ao chegarem ao porto de Buenos Aires ainda tinham de enfrentar a subida pelos rios Uruguai, Paraná ou Paraguai e mais os deslocamentos terrestres, a fome e a sede, os índios hostis, as febres e as incertezas. O primeiro a organizar o vocabulário guarani foi padre Antonio Ruiz Montoya que tornou famosa a rota Norte-Sul ao longo do rio Paraná, com a odisseia do deslocamento de milhares de guaranis de várias missões, 91 Miranda Neto após o ataque dos bandeirantes e as refundações em locais mais seguros e abrigados (1631). O padre Roque González marcou nova fase na organização missionária em expansão. Arquiteto, pedreiro e carpinteiro construiu praças, blocos de casas, escolas, igrejas. Ensinou os índios a arar a terra, semear os grãos e proteger a safra dos predadores. Incentivou a criação de gado, que explodiu nas estâncias do Tape cem anos depois. Ele compreendeu a importância de uma base econômica sólida para garantir o desenvolvimento das missões. Falava guarani, entendia o temperamento do autóctone, estimulou a arte e a música sacra nas festas em que hinos e versos eram cantados, propagando o cristianismo na língua local. O padre Antônio Sepp atuou de 1692 a 1733 nas reduções Yapeyu e São Miguel. Humanista prático, não se limitava à catequese dos índios: iniciou o cultivo do algodão em grande escala, plantou pessegueiros, ameixeiras e inúmeras outras árvores frutíferas. Destacou-se pelo incentivo prestado às vocações musicais, tendo sido ele próprio intérprete de vários compositores da época. Após a autorização real para introduzir armamentos nas missões, os jesuítas conseguiram formar esquadrões de cavalaria (os guaranis adaptaram-se bem aos equinos) e flotilhas fluviais que, devidamente equipadas, tornaram-se imbatíveis. Os rios eram vistos como obstáculos à defesa militar, sobretudo as cachoeiras, embora facilitassem os deslocamentos aos que possuíssem flotilhas equipadas. Ao se reagruparem rio Paraná abaixo, margem direita, os aldeados expulsos de Guairá conseguiram resistir aos invasores. Havia o receio de, ao se armar, os índios poder voltar-se contra os padres e tentar a reconquista de seu território. Mesmo assim, Montoya conseguiu renovar a licença real para armamentos, munições e fortificações das aldeias missionárias. Com isso, os jesuítas espanhóis conseguiram impedir os luso-brasileiros de alcançar as minas de prata de Potosí. Graças ao apoio guarani, a Espanha, na época possuidora de exíguos recursos técnicos e humanos, conservou o domínio do território que caberia a Portugal. Na verdade as áreas das missões permaneciam, em grande parte, autônomas, sob o controle dos jesuítas interessados em estender o alcance de sua obra missionária a um número cada vez maior de indígenas, a mais da metade do continente sul-americano e às Filipinas. A organização militar era apenas um dos aspectos de sua eficiência, disciplina e método. Por absoluta necessidade de sobrevivência, já que as distâncias entre os núcleos urbanos eram enormes e o abastecimento precário, os jesuítas considerar-se-iam responsáveis por um Estado 92 Importância dos Jesuítas e o Legado das Missões autossuficiente, alheios aos interesses ibéricos. Entretanto, a fim de se acautelarem de futuras acusações de usurpação de poder, os jesuítas arquivavam toda a documentação referente aos seus pleitos e à sua atuação administrativa. Provaram, assim, que todas as ações eram respaldadas em decisões do governo espanhol com aprovação real. Do ponto de vista econômico, as missões eram autossuficientes e gozavam de um nível de organização e prosperidade bem superior a todas as demais comunidades autóctones após o Império Inca. Elas constituíam uma aplicação concreta de algumas ideias de Thomas More, autor de Utopia. A virtude da experiência ímpar dos jesuítas consistia na união entre teoria e prática, pois a própria viabilidade socioeconômica-política-ambiental das missões dependia da execução de medidas objetivas, simples, pragmáticas, contextualizadas em um arcabouço sistêmico, dinâmico, flexível. Necessidades prementes e imediatas demandavam decisões corajosas e integradoras. As crianças teriam oportunidade de acesso à leitura, à escrita, à música (através do canto e da instrumentalização) e ao artesanato. Cada redução teria obrigatoriamente uma igreja matriz, um hospital e uma escola. O sistema de propriedade coletiva dos meios de produção, a organização administrativa e a participação do missionário nas decisões relevantes, embora obedecessem a um planejamento global e a uma estrutura unificada, as peculiaridades locais eram consideradas. A maioria dos cronistas da época apoiava a política de segregação dos missionários. Os próprios estrangeiros, impedidos de conviver com os índios, encarregar-se-iam de espalhar o boato de que os jesuítas na verdade não queriam compartilhar seus segredos e seus tesouros. Os jesuítas mantiveram as missões administráveis: antes de se tornarem superpovoadas em relação às suas potencialidades econômicas, fundavam-se outras com o excedente demográfico. No início da colonização, o desperdício no consumo dos alimentos, sobretudo da carne, era enorme pela abundância considerada infinita. Os missionários ensinaram os índios a poupar, a planejar, a salgar e secar a carne, produzindo o charque, a prover as sementes para replantio e sobretudo formar excedentes para comercialização externa e constituir um fundo comum para emergências, enfermos e viúvas idosas. A fim de adquirir bens que não produziam tiveram de transacionar a erva-mate (utilizada até como moeda), o algodão, o tabaco, as madeiras, peles, mel de abelhas, açúcar e resinas aromáticas. O “fundo comum” de excedentes de produção comprava sal, facas, tesouras, serras, enxadas, machados e outras ferramentas e utensílios enviados da sede missionária mais próxima. Devido ao aumento da demanda por couros para a fabricação de cordas, 93 Miranda Neto selas, maletas, e sacolas (para acondicionar tabaco, trigo, algodão e erva-mate) quadruplicou o valor do gado na época da expulsão dos jesuítas. Os carneiros só eram criados pela sua lã e a ovelha alcançava o triplo do valor de uma vaca. Era grande o desprendimento dos jesuítas com sua própria manutenção frugal e a extrema resistência ao consumo mais refinado. A autossustentabilidade das missões tornou-se necessária pelas longas distâncias entre núcleos populacionais e seu difícil acesso provocando seu relativo isolamento no interior do continente, longe do litoral. Foi imprescindível manter os indígenas em comunidades autossustentáveis pois do contrário teriam sido compelidos a procurar os alimentos na floresta e, portanto, tornariam a ser nômades. A biodiversidade constituía a verdadeira riqueza que foi desperdiçada pelos administradores públicos que sucederam aos missionários após sua expulsão. Pequena amostra do que sobrou da riqueza arquitetônica e artística das missões guaranis pode ainda hoje ser vista in loco nas cidades que se originaram dos Sete Povos, sobretudo em São Miguel, e através das belíssimas fotos dos Álbuns Missões JesuíticoGuaranis, São Leopoldo, Unisinos, 1999 e Las Misiones Jesuíticas Del Guayrá. Buenos Aires: Icomos-Unesco, 1995. Os ervais guaranis prosperavam enquanto os dos colonos entravam em decadência já que eram de qualidade inferior e o custo de produção mais elevado. Após o pagamento de taxas à Coroa, sobrava o suficiente para decorar as igrejas e melhorar as casas das missões. Na época da expulsão dos Jesuítas, um ambicioso programa de construções estava em andamento, o que se refletia no esplendor arquitetônico das igrejas, nas casas de pedra, nas ruas pavimentadas, nas oficinas, nas escolas, nos galpões e armazéns abarrotados de estoques. Em uma região com incipiente indústria, as reduções possuíam florescentes fabriquetas como de dez a vinte teares em cada aldeia (em Yapeyú havia trinta e oito). Bem treinados e talentosos carpinteiros, pedreiros, escultores, marmoristas, ourives, fundidores de sinos, calígrafos, luthiers (artesãos de instrumentos musicais) e demais artesãos que, desde 1700 foram treinados por padres alemães, austríacos, tchecos e suíços, impulsionaram o desenvolvimento tecnológico das missões. Tratava-se mais de prosperidade do que de riqueza, pois além de predominar o escambo as despesas absorviam quase toda a receita. Por isso, o inventário das reduções relacionou muitos ativos e nenhuma renda, embora várias aldeias contraíssem dívidas com as demais, com Assunção ou com o Reino. Nenhum tesouro foi encontrado. 94 Importância dos Jesuítas e o Legado das Missões O curioso era que os jesuítas, embora muito competentes e ótimos administradores, responsáveis pelo eficiente funcionamento da infraestrutura, não se preocupavam muito com o lucro. Atuavam mais como gerentes de um ideal ou utopia e preferiam a felicidade à riqueza. 6.1 Formação de Capital Para os guaranis, comprar ou vender terra seria como comprar ou vender homens; pois, após a saída da alma, o corpo se transforma em terra. Assim como o corpo possui pelos, a terra é coberta por árvores, sendo uma loucura a destruição das matas em grandes extensões; a forte erosão pela água e pelo vento antecipa a destruição iminente do mundo. O lugar onde se vive seguindo seus costumes e tradições – tekoha – constitui “área bem definida, delimitada por cerros, arroios e rios, propriedade comunal e exclusiva”17. Logo de saída, guaranis e missionários tiveram que decidir entre o apego à terra e a conveniência de um sítio aprazível para assentar a missão. Para convencê-los da vantagem da mudança ao novo local, os jesuítas os convidavam para observar o modo de vida dos já “reduzidos”, isto é, dos recém-assentados habitantes das missões. Concessões e renúncias marcaram o lento processo de sedentarização de tribos inteiras, habituadas às periódicas mudanças de hábitat. Cada missão, cujo espaço ocupado era delimitado, distanciava das outras entre cinco e dez léguas. Ocorria então uma situação de estabilidade no novo espaço, já incorporado ao cotidiano da comunidade assim constituída. Além da formação em novo modo de vida cristão, havia estímulo para melhorar a capacidade produtiva desde as aldeias primitivas. Alguns caciques consideraram como suas determinadas áreas de ervais, mas tiveram de se conformar com o fato de que as terras das missões prevaleciam e as absorviam. Cada missão abrangia, em média, cerca de 20 léguas quadradas. A maior estância, a de São Miguel, alcançava 40 léguas de comprimento por 20 de largura. Todas as medidas adotadas para eliminar conflitos entre as lideranças das missões e aproveitar ao máximo as vantagens comparativas de cada uma delas na rentabilidade das diversas produções resultaram em um clima de colaboração mútua e complementaridade dentro da Confederação. O que se viabilizou através de um eficiente sistema de comunicações e transportes. Em 1747, todas as missões distavam entre 17 Meliá-Grünberg sg. Masy, Rafael Carbonell de. op. cit. 95 Miranda Neto si cinco léguas em média. Os caminhos mais trafegados dispunham de pontes e/ou canoas para transpor os cursos d’água. Capelas pontuavam os trajetos a fim de garantir apoio e abrigo aos viajantes. Havia também uma razoável rede de vigilância e informação que propiciava segurança, reforçando as comunicações entre os pueblos. Nas missões franciscanas havia igualmente áreas dedicadas a produzir para a comunidade: eram terrenos próximos ao núcleo urbano onde criavam gado (em separado do rebanho dos espanhóis) e cultivavam em maior escala produtos agrícolas para abastecer a população. A preocupação com a produtividade e o crescimento das superfícies cultivadas era evidente a fim de evitar o retorno dos guaranis à vida nômade de caça, pesca e lavoura itinerante que fatalmente ocorreria caso as colheitas fossem insuficientes às necessidades mínimas de sobrevivência. O tupambaé exercia dupla função: abastecer a comunidade, sobretudo os mais necessitados, e os padres. A separação de necessidades e bens, próprios das missões ou dos jesuítas não impediu a solidariedade. Doações de produtos entre comunidades eram frequentes. As mais bem dotadas socorriam suas vizinhas em épocas de crise. Há casos em que até os religiosos não conseguiam alimento adequado e suficiente para seu sustento. O Padre Montoya introduziu em Guairá o gado doado pelo colégio de Assunção para assegurar alimentação aos jesuítas. A expansão das missões no Tape exigiu planejamento do abastecimento duradouro de índios e jesuítas, mais acossados pelas inclemências do tempo e pelas pestes do que por inimigos. “Que não falte comida e roupa aos pobres índios”18. A formação de uma fazenda de gado para o sustento dos padres e dos índios à semelhança da doutrina de Juli no Peru, de onde se distribuíam periodicamente reses para o consumo das diversas aldeias, foi a solução encontrada. Colégios para os filhos dos guaranis que aprendiam a ler, a escrever, música e frequentavam seminários para aperfeiçoamento na língua guarani, foram oferecidos pelo padre Roque González em Santo Inácio-guaçu, onde se encontrava “o mais apurado da língua guarani”. Este projeto educativo motivou a constituição de um fundo especial para mantê-lo tanto em Juli como no Paraguai. Colocar as fazendas e as rendas em nome de missões em situação instável ou de desenvolvimento insuficiente era extremamente arriscado. Para diminuir esse risco, propôs o provincial ao padre geral transformar a missão de Santo Inácio em colégio dirigido por um reitor que, 18 ARSI, Archivum Romanum Societatis Iesu. Arquivo da Companhia de Jesus em Roma. 96 Importância dos Jesuítas e o Legado das Missões assim, se tornava superior a todos e responsável também pelo ensino das crianças. Entretanto, não havia um patrimônio juridicamente destinado a manter a formação de jesuítas e índios. Em 1673, a principal preocupação da VI Congregação Provincial era melhorar a rentabilidade da mão de obra, sobretudo na produção e comercialização da erva-mate. Era ela que iria ser fundamental na sustentação do modelo, pois possibilitava, por exemplo, a aquisição de algodão para a produção de tecidos e de equinos para auxiliar no criatório bovino. O tupambaé teria originalmente caráter de oferenda religiosa e também de contribuição à comunidade sempre enfatizando o coletivo, o espírito comum, o trabalho em equipe, as parcerias, o auxílio mútuo, inclusive entre missões vizinhas. A parte da erva-mate destinada ao padre era direcionada como esmola para os pobres e parte era trocada por outros gêneros. Os “sagrados ministérios” (templos, paramentos e adereços para os cultos) e os auxílios comuns aos pueblos recebiam o restante, de modo que toda a erva-mate colhida era consumida e tinha destino determinado. Mel, sal, lã e algodão também eram adquiridos com a erva-mate que garantia o pagamento de taxas cobradas pela Coroa sem a intermediação do encomendero. Durante um período e devido aos prejuízos sofridos, as missões mais próximas do Brasil gozaram de isenção tributária durante vários decênios. A construção da igreja e da casa do padre ficava a cargo da própria comunidade indígena. Em seguida, em reconhecimento pelos serviços prestados, os missionários retribuíam remunerando os ameríndios de algum modo. Mas faziam questão de ressaltar que “tudo que temos e trabalhamos é destinado a eles”. O tupambaé unia o bem-estar comunitário ao bem-estar pessoal. As plantações, ervais, fruticulturas e vacarias comuns beneficiavam os membros da missão de acordo com as relações palpáveis entre recursos e resultados, objetivando os projetos de produção comuns. Daí o fracasso de grandes estâncias como experiência de produção abrangente a várias missões da bacia do Paraná e Uruguai. Devido à extensão das áreas e ao numeroso rebanho, tornava-se difícil administrar essas estâncias sobretudo no controle e divisão do gado. Para melhorar a produtividade, o padre provincial ordenou que cada missão passasse a utilizar uma estância média conforme sua capacidade e possibilidade. De junho a setembro de cada ano, os guaranis especializados em um ofício trabalhavam alternativamente uma semana nas respectivas tarefas e outras nas plantações, algumas privadas ou familiares (abambaé). 97 Miranda Neto Os demais indígenas que não exerciam ofícios especiais serviam à comunidade no tupambaé às segundas-feiras e aos sábados. O abambaé destinava-se ao abastecimento familiar completado subsidiariamente com a produção comunitária (tupambaé), base também da produção excedente que era vendida ou trocada por outros bens. Foi admirável a lenta e persistente catequese jesuítica que, com simplicidade e pedagogia, soube respeitar e incorporar a cultura autóctone. Admitindo a coparticipação no gerenciamento das aldeias – ao contrário dos missionários portugueses – estimulando o espírito comunitário e o profundo respeito à biodiversidade ambiental, os jesuítas do lado espanhol conseguiram construir e manter a Confederação das Missões com a colaboração ativa dos guaranis por mais de 150 anos. Excelentes professores, experientes no lidar com interesses opostos e perseverantes semeadores de ideias e conceitos novos, os padres souberam tirar proveito da extrema habilidade e talento para as artes, a música e o artesanato dos indígenas convertidos. Treinamento e disciplina, estudo e trabalho prático – requisitos do humanismo cristão – transformaram-nos em partícipes da gestão das aldeias. A meta maior dos missionários era garantir pleno emprego aos habitantes dos povoados. Uma verdadeira obsessão era combater a ociosidade, prevendo ocupação para todos, lazer criativo e dias de festa. A mística religiosa com seu ritual esplendoroso, seus corais, a música instrumental e a arquitetura monumental das igrejas com sua rica ornamentação foram decisivos e determinantes para atrair os neófitos, através do cenário espetacular das pantomimas e dos rituais sacros, à conquista da civilização cristã e à universal utopia de felicidade. Na verdade, os padres italianos, franceses, alemães, belgas, escoceses, que ajudaram a criar e a desenvolver a República Guarani de acordo com os padres espanhóis, não tiveram a intenção de se submeter às ordenações reais. Em primeiro plano atuavam segundo os interesses maiores e transnacionais da Companhia de Jesus. Só num segundo momento procuraram acomodar-se e amparar-se, do melhor modo possível, sob proteção real, já que lhes era favorável este apoio. Os franciscanos, padres Luiz Bolaños e Francisco Solano, conseguiram organizar um dicionário, uma gramática e um catecismo guaranis antes da chegada dos jesuítas que, assim, tiveram sua tarefa facilitada. Os padres foram com frequência vítimas de injustas agressões que tiveram de enfrentar com muita coragem e determinação. Até intrigas envolviam os guaranis e os missionários acusados de cumplicidade com 98 Importância dos Jesuítas e o Legado das Missões os bandeirantes. Os paulistas tentavam enganar os índios quando se disfarçavam em hábitos jesuítas, atribuindo-lhes seus próprios crimes. Na Província do Brasil, os inacianos, cada vez mais odiados, chegaram a ser expulsos pelos colonos em Piratininga, Salvador, São Luiz e Belém. Ameaças de excomunhão contra os escravocratas só exacerbaram os ânimos da população do Rio de Janeiro que chegou a arrombar as portas do Colégio e da Igreja dos jesuítas. Em São Paulo, apesar de sua firmeza, o vigário-geral foi atacado durante a missa e ameaçado de morte. Édito real, assinado em Madri e que exigia a libertação dos neófitos escravizados no Brasil, não produziu efeito. A maioria dos colonos ostensivamente fazia questão de enfrentar os jesuítas, as autoridades e o Rei. A gestão compartilhada das missões concretizou-se quando os padres aceitaram a autoridade dos caciques convocados para chefes de setores. Como várias tribos se agrupavam na nova comunidade, a missão, os serviços administrativos criaram diferentes funções que substituíram e superaram as desempenhadas antes pelos caciques e fizeram surgir uma elite não hereditária. Alguns caciques efetivamente exerceram determinados cargos conforme sua experiência e capacidade. Em cada missão havia às vezes mais de trinta caciques designados a exercer algumas atribuições na administração. Os guaranis aumentaram sua autoestima e confiança ao conseguirem exercer a gestão de sua comunidade sem interferência externa. Todas as decisões por eles tomadas eram fruto da vivência e da real necessidade comum. A organização da produção e da distribuição obedecia ao critério de priorizar o melhor aproveitamento dos recursos locais disponíveis. A ascensão aos cargos ocorria por competência e dignidade já que não havia classes sociais nem privilégios. A partir de 1689, o Regulamento das Missões estabelecia que as funções de justiça só poderiam ser exercidas por homens maduros. Eleito o corregedor, geralmente por cinco anos, só podia ser destituído pelo Superior. Caso fosse aprovado pela comunidade, poderia permanecer além dos cinco anos. Os jesuítas detinham o poder de veto e de conselheiros respeitados e acatados, o que não impedia os guaranis designados de assumirem suas responsabilidades. O “Livro das Ordenações” reunia regulamentos, leis e costumes dos missioneiros cuja aplicação visava à prevenção da criminalidade e dos distúrbios urbanos. Rondas periódicas e controle da disciplina eram garantidos pelas patrulhas que vigiavam também à noite qualquer indício ou ameaça de ataque de tribos hostis e dos paulistas. Os acusados de algum crime ou delito tinham assegurada ampla defesa antes da aplicação 99 Miranda Neto da pena que visava especialmente a reabilitação do infrator via terapia ocupacional. O medo das punições pesava menos do que as medidas preventivas, o ambiente social, o exemplo dos mais velhos e das autoridades. Havia ambiente e condições para a convergência de ações proativas num verdadeiro círculo virtuoso – uma sinergia em benefício da comunidade: o vigor da fé cristã garantia a ordem pública e a expectativa de recompensas reforçava a virtude. Os jesuítas insistiam na fidelidade dos neófitos ao Rei de Espanha a fim de acalmar a desconfiança das autoridades coloniais que os acusavam de criar império independente. A economia autônoma e próspera despertava inveja e cobiça de paraguaios e platinos. Como vários jesuítas eram italianos, franceses e alemães, cuja subordinação ocorria apenas dentro da Companhia de Jesus, na verdade consideravam-se mais desvinculados do poder colonial hispânico. Entretanto, havia uma espécie de pacto secreto que unia os interesses da Coroa e dos missionários sobretudo na defesa estratégica do território já conquistado na América do Sul. Aliás, os colonos dependiam mais do reforço militar dos guaranis armados do que estes da ajuda dos paraguaios. De fato, em diversas oportunidades, Assunção e Buenos Aires deveram aos guaranis os reforços indispensáveis na defesa contra os invasores assim como o cerco à Colônia do Sacramento tornou-se irremediável graças à tática, à persistência e ao arrojo dos estrategistas missioneiros. Houve algumas tentativas de nomear corregedores espanhóis para a administração das missões. Entretanto, nunca foram aceitos pelos guaranis, ciosos de sua independência e liberdade. As tentativas em 1653, 1666 e 1705 fracassaram diante da firmeza dos neófitos em preservar sua autonomia. O maior mérito dos missionários foi manter razoavelmente em bons termos as relações tanto com os poderes constituídos quanto com os indígenas tendo sido, em grande parte, respeitados pela maioria, o que demonstrou extraordinário talento político-diplomático. O receio de os guaranis se armarem e, assim, constituírem ameaça interna, foi superado pela necessidade de defesa contra invasores. Na verdade, aquele cuidado das autoridades hispânicas apenas retardou a providência mais racional e lógica de possibilitar melhores condições de defesa e resistência aos ataques dos bandeirantes: reforço dos postos avançados e importação de armas de fogo com suas respectivas munições 100 Importância dos Jesuítas e o Legado das Missões que, em breve, seriam até produzidas localmente após a descoberta do minério de ferro. O direito à legítima defesa tanto dos guaranis e jesuítas quanto da própria obra missionária e seu patrimônio abrangia a construção e a manutenção de verdadeira Confederação de Missões, guardiã de todo um projeto socioeconômico-político-religioso. De início, os jesuítas não tinham planos nem estavam preparados para enfrentar inimigos com armas de fogo. Também não intencionavam alimentar os instintos guerreiros dos índios. A organização administrativa, social, econômica visava a fraternidade, o cooperativismo e a paz. Só após os insistentes ataques dos bandeirantes, os missionários se convenceram de que o único modo de se defender dos agressores era desenvolver táticas evasivas, de se exercitar no manejo de armas de fogo e fortificar a missão, que passou a ser guarnecida por um corpo de cavalaria (os guaranis eram exímios na montaria) e um de infantaria. Entre 600 e 1000 animais de sela eram preparados em cada missão. Fuzis, mosquetes, espadas, sabres, macanás (porretes), arcos e flechas, fundas e lanças eram as armas utilizadas na época. Em pouco tempo, aperfeiçoando táticas de guerrilha, os guaranis tornaram-se respeitados tanto pelos luso-brasileiros quanto pelos hispânicos de Assunção e Buenos Aires. Houve batalhas em que cerca de 20.000 combatentes, procedentes de oito a dez reduções, foram mobilizados. O Paraguai era pobre em minerais metálicos. Daí a necessidade de importação de ferro para a fundição de canhões, fuzis, ferramentas para a lavoura, equipamentos para a construção civil e o artesanato. Já no século XVII descobriram-se e exploraram-se modestas jazidas de minério de ferro. Com o padre Zea, passou-se a fabricar pólvora, armas de fogo em diversas oficinas, armas brancas, munições em cada missão. As batalhas foram terrestres e fluviais. A frota de embarcações disponíveis foi decisiva para a vitória na batalha de Mbororé, afluente do rio Uruguai em que os bandeirantes sobreviventes bateram em retirada (1641). Por outro lado, a rede fluvial (bacias do Paraná, Uruguai e Paraguai), embora essencial para o transporte de carga e passageiros, tornava as missões vulneráveis, pois facilitava o acesso do inimigo. Os primeiros instrutores dos rapazes convocados para os exercícios militares diários eram jesuítas, ex-oficiais na Europa, como o padre Antonio Bernal, português, que teria sido militar antes de se tornar religioso. As missões eram fortificadas por paliçadas, muralhas, fossos e armadilhas. Na paz, o treino militar transformava-se em jogos e torneios esportivos. 101 Miranda Neto Apesar da preocupação em bem utilizar o período laboral, distribuindo tarefas entre os membros da comunidade ao longo do dia, sempre sobravam horas livres para o lazer e a vida em família durante o almoço e à tarde após a jornada de trabalho, além da quinta-feira, do domingo e dos feriados. A participação ativa em várias atividades – cerâmica, tecelagem, horta doméstica, jardinagem – atestava a importância e o prestígio na comunidade. Os jesuítas apenas criticavam a indulgência dos pais e a pouca energia na educação dos filhos. Para eles, a disciplina, a ordem e a boa divisão do tempo em tarefas úteis e proveitosas à comunidade eram fundamentais. “O sino das reduções soava no coração dos guaranis um pouco mais alegremente do que a sirene de nossas fábricas.19” Todo tempo que sobrava após afazeres diários, naturais descansos e periódicas festividades religiosas, os guaranis jovens dedicavam às orações, à música, à dança, ao teatro, à pantomima, às competições, aos folguedos – em que a comunidade se realizava durante os fins de semana e feriados santos. O religioso e o profano mesclavam-se naturalmente sem agredir nenhum cânone. Havia liberdade e espontaneidade. De início, os rapazes aprendiam a ler, escrever e calcular. A pedagogia jesuítica era inspirada pelas condições da população local na época, dirigida à vida prática, utilitária, profissional de acordo com as maiores necessidades da missão: artesanato, carpintaria, construções, tecelagem, contabilidade (para futuros fiscais, controladores e contadores). As moças se aperfeiçoavam em costura, bordados para ornamentos sacros e profanos, além de roupas para festas e uso diário. A frequência era obrigatória entre 7 e 12 anos de idade. Orações, catecismo, leitura, interpretação completavam o programa escolar. A capacidade de aprendizagem dos guaranis era louvada nas correspondências dos padres: “sentidos apurados, memória extraordinária faziam com que copiassem e imitassem com perfeição”. A língua guarani predominava na comunicação diária nas aldeias. Os missionários demonstraram grande domínio já que organizaram os primeiros dicionários e traduziram textos bíblicos e livros de devoção para o guarani. Cantos litúrgicos foram aprendidos pelas crianças. Livros inteiros em guarani, em espanhol e em latim foram copiados à mão com incrível apuro revelando o capricho e o talento dos neófitos. Contadores minuciosos possibilitavam um controle contábil e uma fiscalização eficiente que muito auxiliavam na organização e no planejamento da administração pública. 19 LUGON, Clóvis. Op. cit. 102 Importância dos Jesuítas e o Legado das Missões Aprendia-se a doutrina cristã na escola. O teatro e o canto reforçavam o aprendizado. Alguns jesuítas revelaram-se exímios em composição e regência, cativando seus jovens discípulos dedicados à música. Além de pregadores, educadores, diplomatas, os padres desempenharam também as funções de inspetores escolares ao avaliarem periodicamente os progressos de seus alunos. Desconfiava-se que os missionários preparavam uma “elite do espírito e da sabedoria”. Na Congregação ficavam os jovens selecionados pelo seu talento e suas inclinações para receberem uma educação especial com disciplina, ordem, reflexão e meditação. No futuro – quem sabe? – seriam sacerdotes, juízes, heróis. A organização e a disciplina dos jesuítas induziram os guaranis a se transformarem de imprevidentes e livres caçadores e coletores em agricultores e criadores eficientes a fim de garantirem razoável alimentação, vestuário e moradia. Os missionários introduziram novas técnicas agrícolas com equipamentos metálicos (enxada, machado, pá, facão e arado) e o criatório bovino e equino que revolucionaram o suprimento alimentar (garantindo sua oferta crescente) das missões a partir de meados do século XVII. Os guaranis aceitaram a nova regulamentação do trabalho e organização do cotidiano, convencidos de que eram úteis e necessárias à obtenção do objetivo maior: a sobrevivência em comunidade. Os jesuítas nunca deixaram de se envolver em assuntos de política colonial tentando influenciar as autoridades cujos segredos dominavam através do confessionário. Conflitos originaram-se da relação entre a empresa missionária e as diretrizes de gestão secular. De início, a orientação sugeria diplomacia e administração de conflitos evitando a tomada de posição. Entretanto, muitos missionários tomavam partido, contrariando interesses coloniais que preferiam o distanciamento da Companhia dos assuntos de política colonial espanhola e de suas relações com a política colonial luso-brasileira. Além de divergências dogmáticas e de objetivos pragmáticos, uma empresa transnacional fatalmente teria outras metas, divergentes dos objetivos coloniais dos grandes blocos econômicos da época, Portugal e Espanha. A princípio, o sistema de aldeias enfrentou problemas. Como habituar índios a conviverem com outros povos de várias procedências e conseguir razoável harmonia e segurança na comunidade? Como evitar que retornassem às aldeias de origem e à vida nômade e sem compromissos de outrora? As primeiras aldeias e escolas jesuíticas foram fundadas em Piratininga (SP), em 1554, e na Bahia, em 1556, antes da chegada de Mem de Sá que concedeu maior estabilidade aos colégios da Companhia. Em 103 Miranda Neto 1564, a escola da Bahia educava cerca de 60 estudantes e em 1568 mais um colégio jesuítico era criado no Rio de Janeiro. Com esta base educacional firmou-se um sistema que garantia a reprodução da atividade missionária (além de conscientizar neófitos para nova mundividência) diminuindo a dependência do envio de jesuítas da Europa. Como de início os padres só poderiam, pelos regulamentos da ordem, ministrar educação de nível superior como resolver o problema de educar as crianças (nível fundamental)? Só com a permissão do Geral em Roma houve a possibilidade de estender a educação a todos os níveis de ensino (os filhos dos colonos já recebiam educação elementar). As dificuldades dos primeiros tempos desencorajava os jovens missionários recém-chegados a se deslocarem para as aldeias. Eles preferiam ministrar aulas nos colégios das cidades coloniais cujos orçamentos eram mais flexíveis. Eles podiam possuir e administrar propriedades produzindo recursos para utilizar na expansão do ensino. Já a renda das casas jesuíticas era limitada pelo voto de pobreza dos irmãos. A correspondência dos padres da Companhia nesta época ressaltava a excessiva atenção dada aos temas seculares ligados à administração dos colégios relegando a segundo plano a missão evangelizadora e seus valores espirituais, que deveriam ser priorizados já que eram a própria razão de ser da Ordem. Subsídios oficiais mantinham os jesuítas no início da colonização. Plantações de cana-de-açúcar nas terras por eles administradas complementavam a renda dos colégios e da Ordem a partir de 1560, no Brasil. Esta atividade era combatida pelo Provincial Luís de Grã, adepto do voto de pobreza e que tentou proibir a posse dos escravos. A expansão da atividade missionária exigia fontes mais regulares de recursos, inclusive humanos, para manter o funcionamento mais autônomo da missão (independente de fontes oficiais). Na Bahia, discutia-se se cem escravos seriam suficientes à manutenção de sua escola. Com habilidade, os missionários atribuíam à Igreja como um todo a propriedade de terras doadas pelo Governador que às vezes eram vendidas. De fato, nenhum jesuíta em particular detinha qualquer bem imóvel, cuja propriedade sempre era registrada em nome da instituição religiosa. Claro que, para produzir, era necessária a colaboração de mão de obra, justificando a escravização dos indígenas ora pela “guerra justa” (conferindo ao vencedor domínio sobre a vida dos vencidos), ora pela “servidão consentida” quando os despossuídos aceitavam trabalhar para alguém em troca de moradia e alimentação. 104 Importância dos Jesuítas e o Legado das Missões A tese da “escravidão natural” dos índios, defendida por Juan Gines de Sepúlveda, fazia parte de uma série de argumentos em defesa dos direitos de conquista da Espanha e condenavam os neófitos “por pecarem contra a natureza e a cristandade”. Justificava assim o direito dos colonos de escravizá-los em decorrência de guerras de conquista. A própria condição sub-humana dos pagãos justificaria sua submissão ao colonizador. Para os índios, a “submissão voluntária” representava uma busca de proteção, a fim de evitar a integração forçada às aldeias onde teriam de se submeter à moral cristã. Nas fazendas podiam preservar seus costumes desde que trabalhassem e fossem “bem mandados”. A escravidão voluntária só se justificava por extrema necessidade. Cedo os missionários perceberam o arraigado nomadismo e a inconstância dos indígenas resultando na dificuldade de adaptá-los ao cultivo da terra, à persistência na produção, ao planejamento e à poupança a fim de vencer o extremo imediatismo e a compulsão à dispersão até para morar. Os índios ainda pagãos eram, segundo a voz corrente, “sem fé, sem lei, sem rei”. 6.2 Relações entre Jesuítas Portugueses e Espanhóis Apesar de a Missão do Paraguai, criada em 1607, estar subordinada à Província Jesuítica do Peru, em várias oportunidades solicitou-se o envio de padres da Província do Brasil. Até a ideia de unir as duas províncias quase frutificou pelas dificuldades de comunicação e pelos constantes ataques de bandeirantes, monçoeiros e aventureiros. Afinal, as “missões volantes” da Província do Brasil prepararam o terreno para instalação das reduções no Guairá, introduzindo no Paraguai os métodos utilizados nas aldeias da Bahia. As “missões volantes” prosseguiram no início do século XVII nas tentativas de contatar indígenas no litoral de Santa Catarina e Rio Grande do Sul. A influência do Padre Anchieta quanto à “catequese estável” (aldeamentos fixos) foi decisiva. Dele é a “Gramática da Língua [então] mais falada na costa do Brasil”. A maioria dos navios espanhóis que vinha da Europa aportava ou na Bahia ou no Rio de Janeiro para encaminhar os jesuítas através de rios e caminhos – o peabiru20 era um deles – até o Guairá e o Paraguai. Outros 20 Extensa estrada de terra aberta pelos indígenas ligando o litoral Sudeste do Brasil ao Paraguai. Teria sido construída no século XVI. 105 Miranda Neto preferiam desembarcar em Buenos Aires, subir o Rio da Prata, o Paraná ou o Uruguai e o Paraguai. Principais Diferenças entre as Missões Jesuíticas LUSO-BRASILEIRAS 1. Respeitavam limites nacionais HISPÂNICAS 1. Transcendiam limites nacionais 2. Constante disputa entre colonos e 2. Interesses jesuítas espanhóis 3. Mais fugazes dominantes eram 3. Mais duradouras 4. A Província Jesuítica do Brasil 4. A Província Jesuítica do Paraguai (criada em 1606) admitia a cogestão (criada em 1553) não admitia a do gentio cogestão do gentio 5. Dependentes do governo luso5. Autossustentáveis -brasileiro Fontes: Manuscritos da Coleção De Angelis. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1951 a 1969. Havia divergências entre as duas orientações missionárias. Nem sempre os jesuítas portugueses apoiaram seus colegas hispânicos. Recomendações veladas e atitudes explícitas evidenciam certa omissão e até conivência dos jesuítas luso-brasileiros com os interesses dos colonos de Piratininga em relação à escravização do gentio e em apoiar os bandeirantes contra os próprios missionários. Houve o caso do Padre Antonio Ruiz de Montoya que chegou a ser solicitado pelos jesuítas do Rio de Janeiro para que em seus sermões “tivesse o cuidado para não irritar os colonos portugueses”. Entre 1640 e 1682, os jesuítas tiveram de abandonar o Guairá, o Itatim e o Tape, instalando-se na mesopotâmia entre os rios Uruguai e Paraná. O primeiro foco de expansão foi o Itatim próximo ao rio Paraguai. As missões, localizadas em pontos estratégicos, foram úteis na defesa da Província do Rio da Prata contra os portugueses que se apropriaram do gado das missões. Havia necessidade de deter o avanço luso para evitar invasões das missões da margem oriental do Uruguai. O gado guarani foi dizimado: dele só se aproveitavam os couros que, preparados, foram exportados para a Europa. O governo português legitimava a conquista por meio da doação de sesmarias. A partir de 1733, diminuiu a resistência guarani. 106 Importância dos Jesuítas e o Legado das Missões O expansionismo luso-brasileiro seria, na visão do Prata, a causa das dificuldades dos colonos espanhóis. Portanto, o rio Paraguai deveria ter sua navegação controlada e as missões – com a respectiva milícia – deveriam participar como postos avançados de defesa estratégica contra o invasor e desestruturador do sistema colonial hispânico. As tropas guaranis foram cruciais na fortificação e na defesa de Montevidéu nesta ocasião (início do século XVIII). Graças à sua receptividade e afinidade espiritual e cultural com os jesuítas e à sua ação, ao mesmo tempo, prudente e audaciosa, durante 150 anos construiu-se um contexto de experiência humana e religiosa sem paralelo, permitindo aos índios ascender ao nível de cidadãos livres como os colonos espanhóis e, sob vários aspectos, até mesmo culturalmente superiores a eles. Entretanto, os detentores do poder civil e eclesiástico deflagraram campanha internacional contra a Companhia de Jesus, provocando a brutal expulsão dos padres em 1767. As missões, entregues a uma administração corrupta e incompetente, entraram em decadência, no momento em que filósofos do iluminismo elogiavam o sucesso da República Guarani como exemplo de competência administrativa e econômica. Os jesuítas não se deixavam iludir com a conversão dos indígenas: sem a distribuição de machados e facas pouco se conseguiria. Por outro lado, a mística e o ritual esplendoroso dos cultos religiosos, a música instrumental, os corais com a participação dos jovens, as artes plásticas, o artesanato e a arquitetura monumental dos templos e prédios de pedra e calcário foram decisivos e determinantes no processo de integração cultural. A imagem e o caráter que os missionários edificaram aos olhos dos índios facilitaram sua ascendência e influência chegando a competir com as dos xamãs das tribos. Estes os consideravam concorrentes e rivais que precisavam ser enfrentados e ridicularizados. Surgia assim mais um obstáculo à obra evangelizadora. A partir da fixação na aldeia, os missionários assumiram de fato a administração geral do gentio: organizavam o trabalho e asseguravam a submissão política ao poder colonial. Claro que tiveram de se adaptar aos costumes e ao modo de vida, habituando-se à relativa solidão e à dificuldade de manter a vida religiosa conforme sua identidade jesuítica. A estratégia do medo a fim de evitar mal maior estimulou e agilizou a conversão do gentio. Os padres se transformaram em “heróis civilizadores”. A redução seria o “espaço de salvação”. O conhecimento da língua guarani e a simpatia dos caciques eram fundamentais. O que 107 Miranda Neto deveras influiu na tarefa evangelizadora foi a grande vulnerabilidade dos índios às novas doenças trazidas pelos colonizadores, às epidemias causadas por falta de higiene e às crises de abastecimento pela má gestão e desperdício de recursos ciclicamente abundantes (imprevidência e má divisão do trabalho e do tempo disponível). A introdução de sementes e ferramentas europeias foi decisiva, criando toda uma nova tecnologia produtiva, uma verdadeira revolução cultural. A nova divisão racional do trabalho provocou mudança socioeconômica, sob orientação e coordenação dos jesuítas, que detinham o controle tecnológico da produção diversificada, utilizando ao máximo os recursos locais disponíveis. O poder coercitivo da religião possibilitou a produção em áreas de exploração coletiva Tupambaé, sobretudo nas grandes extensões que geram oferta excedente comercializável após atender à demanda das famílias, dos órfãos e viúvas, anunciando na prática a concretização do mito indígena da “terra sem males”. A fé e a obediência aos preceitos morais e religiosos garantiriam o usufruto da eterna felicidade e bem-estar. Os próprios padres, tendo sido carpinteiros, ferreiros, músicos, arquitetos, artesãos e artistas plásticos foram, sem dúvida alguma, competentes mestres dos índios que rapidamente assimilaram novas técnicas e conhecimentos agronômicos, acrescentados à milenar tecnologia autóctone. As noções de Bem e Mal, recompensa e castigo, impregnaram o comportamento e as práticas sociais, incluindo o pecado como norteador do comportamento humano. Apesar das frequentes perdas de vidas humanas, os jesuítas regozijavam-se com as almas recém-conquistadas através da evangelização, pois os guaranis mostraram-se extremamente místicos desde os xamãs através dos rituais nativos expressos no canto e na dança. Seu misticismo adaptou-se aos novos tempos. A transformação cultural procedeu-se de modo sutil e profundo, cooptando os caciques e os xamãs, despreparados para enfrentar as grandes epidemias exacerbadas pelo contato com os brancos. Teria sido a necessidade de colaboração e auxílio emergencial, cada vez mais frequente, que forçou uma tolerância e assimilação cultural e tecnológica, útil às duas vivências. Havia uma espécie de tutela educacional dos missionários sobre a elite indígena. A própria organização e desenvolvimento das missões propiciava uma educação popular através do trabalho comunitário e em grupos ou equipes. O exemplo prático disseminou a tecnologia no beneficiamento da erva-mate, do couro e do algodão, construiu instrumentos musicais e relógios, desenvolveu a escultura, a pintura, a 108 Importância dos Jesuítas e o Legado das Missões gravura e a arte da confecção de retábulos21, fabrico de sinos e ferramentas agrícolas e de carpintaria. Foi um grande esforço de aprimorar um verdadeiro ensino profissionalizante para elementos selecionados da elite jovem indígena. Recitação e repetição pontuavam o ensino da doutrina cristã através das crianças. As missões eram espanholas na organização externa (ruas e quadras) e guaranis na organização social interna. Grandes casas comunais sob a liderança dos caciques foram mantidas e preservadas. Conforme Arno Kern, a Confederação das Missões não constituiria nenhuma experiência política totalmente autônoma. Provinciais e procuradores da Companhia de Jesus conseguiram benefícios para reduções, tornando-as mais independentes do controle das autoridades, pois estas tinham interesse em preservá-las como postos avançados na fronteira das possessões espanholas. Entretanto, havia vínculo de dependência com Madri e Roma, conciliando interesses e orientações dos superiores da Igreja e da Coroa. A Confederação das Missões estava coesa pela segurança coletiva e integração econômica dos povoados localizados em frentes de expansão da colonização ibérica. Com a expulsão dos jesuítas, colégios, seminários, reduções, fazendas, estâncias, chácaras, moinhos e outros bens móveis e imóveis sofreram forte ruptura e decadência. Teriam os jesuítas espanhóis usado de sua influência junto aos colegas luso-brasileiros para tentar conciliar os interesses dos colonos e do Reino? E das potências ibéricas entre si e em relação aos indígenas? Os invasores (bandeirantes e tribos belicosas) utilizavam feiticeiros indígenas, travestidos de padres, para imitarem rituais cristãos com grupos de neófitos a fim de facilitar sua entrada e atuação nas missões (e suas instalações) sem despertar suspeita. Alguns guaranis resistiram às frequentes mudanças e transferências e, vítimas de intrigas contra os jesuítas, chegaram a matá-los mesmo após batizados por eles. As intrigas relacionavam os padres a negociações com os colonos espanhóis e até com luso-brasileiros a fim de escravizá-los posteriormente. Os inacianos teriam agrupado o gentio em aldeias para melhor traí-lo, facilitando a ação dos invasores. Os jesuítas portugueses e espanhóis possuíam os mesmos objetivos gerais de superação dos vínculos nacionais. A expansão das missões no final do século XVII coincidiu com a vinda de jesuítas de origem germânica de grande talento e capacidade de trabalho. Na verdade, a Assistência Alemã da Companhia de Jesus incluía suíços, tchecos, austríacos e poloneses. 21 Retábulos: painéis que decoram o altar. 109 Miranda Neto A redução de Juli, no Peru, precursora em 1576 do modelo Missão, dispôs desde o início de qualificados, interessados e diligentes jesuítas (quatro sacerdotes e mais três irmãos coadjutores), visitados pelo provincial José de Acosta e pelo padre Montoya. Eles dominavam a língua e os costumes, atuavam coordenados em missões centralizadas (radiais) com escola de qualificação (seleção) de meninos, organização da caridade e objetivavam a extirpação dos pecados e vícios públicos (idolatria, bebedeira). Os índios eram considerados pelos jesuítas necessitados de contínua orientação e organização. Sua pureza em estado bruto precisava ser lapidada e disciplinada. Inocência e sensibilidade receptivas a estímulos externos que fizessem despontar seus talentos e potencialidades artístico-culturais sob uma pedagogia de convivência, respeitando e tolerando as diversas mundividências. O Padre Geral Cláudio Acquaviva recomendou ao Padre Juan Romero seguir linhas gerais do modelo com dois padres em cada missão, e intensa qualificação dos habitantes. A defesa militar das províncias do Paraguai e do Prata ficou cada vez mais entregue ao “exército guarani-missioneiro” cujo treinamento com arcabuzes, mosquetes, escopetas e flechas era realizado no campo e na praça principal, local dos desfiles comemorativos. A milícia guarani possuía sua própria hierarquia: capitão – alferes real – alferes mini – comissário – mestre de campo – sargento-mor. Capitães de infantaria – tenentes-alferes-de cavalaria – sargentos de cavalaria e ajudantes. Ataques dos bandeirantes em Guairá, cerco dos ingleses a Buenos Aires e dos guaicurus a Assunção apressaram a estruturação e organização da ação militar. As milícias guaranis favoreceram a integração territorial da região para o domínio espanhol. O fato de haver inimigos comuns facilitou a coesão e a união internas. A Batalha de Mbororé, em 1641, foi emblemática para a vitória estratégica e política do exército guarani. Por ocasião da fundação das primeiras missões no Paranapanema, os guaranis lutavam contra o domínio espanhol, desconfiavam da estratégia dos missionários e contestavam a liderança dos padres que, em várias oportunidades, tiveram de se socorrer com o auxílio de colonos e soldados para defendê-los de caciques e xamãs hostis. Alguns destes chegavam a repudiar a presença dos padres em sua área. Mas lentamente os jesuítas conseguiram impor sua liderança, cooptando caciques influentes sempre chamados a opinar sobre decisões importantes como a própria escolha do sítio para a edificação da redução. Segundo Regina de Almeida, da UFF (Universidade Federal Fluminense), as aldeias indígenas criadas pelos jesuítas não foram efêmeras 110 Importância dos Jesuítas e o Legado das Missões nem apenas espaço de dominação e imposição cultural dos padres sobre os índios. Vivenciaram uma experiência nova que, além das perdas, oferecia-lhes condições de sobrevivência no mundo colonial. Apesar da alta taxa de mortalidade, a política missionária colocava os neófitos numa condição jurídica específica, atribuindo-lhes não só obrigações, mas também alguns direitos por eles defendidos com tenacidade até o início do século XIX. Os próprios índios demonstraram o propósito de se manterem na condição de aldeados. Nas missões, os índios ressocializavam-se e vivenciavam intensos processos de transformações. Tensões, conflitos e negociações marcaram o cotidiano habilmente conduzido pelos jesuítas que lhes ensinaram (assim como aprenderam) práticas e tecnologias numa dialética integradora-transformadora na busca de um melhor desempenho da comunidade como um todo. Os indígenas foram, portanto, ao lado dos missionários, igualmente sujeitos do processo de mudança que também lhes interessava pois lhes conferia instrumental indispensável à sobrevivência na nova realidade, o qual utilizavam em seu próprio benefício. Documentos comprovam que, de modo geral, os aldeados assumiram, conscientes e orgulhosos, sua nova identidade: a de súditos cristãos de Sua Majestade. Paulo de Assunção, da USP (Universidade de São Paulo), assegura que a Companhia de Jesus interagiu com o sistema produtivo colonial e utilizou-se do mesmo na produção de gêneros, manufaturas e criatório para a manutenção dos colégios, das residências e das aldeias missionárias. Relacionava-se com produtores, comerciantes, lavradores e escravos adotando práticas coloniais dos senhores de engenho nem sempre aprovadas, porém, consideradas necessárias à sobrevivência econômico-financeira da entidade. A maior dificuldade era lidar com a natural indolência e o comodismo dos neófitos. Desacostumados ao trabalho regular de qualquer tipo, desesperavam-se com o ritmo laboral europeu. Daí a instituição do sistema semicomunal na agricultura e nas obras públicas que marcaram as atividades jesuíticas na América. Quanto mais isoladas as missões tanto mais puro o sistema autossustentável por absoluta ausência de outras opções viáveis. “Marotos astutos”, assim eram por muitos chamados os missionários devido às engenhosas saídas pragmáticas para os problemas enfrentados no dia a dia, como quando preparavam o terreno para grandes obras e plantações comunitárias pois os índios, por si, apenas ocasionalmente cultivavam o suficiente para suas necessidades mais imediatas. Se foi a melhor opção para a felicidade do gentio – essa é outra questão. O certo apenas é constatar que, sem a estrutura econômica e administrativa da 111 Miranda Neto Confederação das Missões, teria sido impossível desenvolver o modelo autossustentável e coparticipativo bem-sucedido da República Guarani. As missões jesuíticas devem ser consideradas fundamentais para se compreender a atual situação socioeconômica, cultural e política dos países do Cone Sul: Paraguai, Argentina, Uruguai e Brasil (sobretudo dos estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul). Muito embora os colonos na época quisessem a proximidade entre as missões e os núcleos urbanos, os jesuítas tentaram evitar o erro cometido no Norte do Brasil, onde os indígenas se tornaram vítimas fáceis dos mercadores de escravos. No Sul, os missionários defenderam com ênfase o modelo de segregação relativa a fim de resguardar os recém-convertidos do contato com os brancos. Qual o suporte econômico-ecológico que garantiu a sustentação do modelo? Supervisores eleitos pela comunidade controlavam as atividades urbanas e rurais fiscalizando, recomendando, sugerindo, corrigindo, premiando, penalizando. Combatia-se a ociosidade “para evitar que os preguiçosos vivessem à custa dos aplicados” e para solidificar a união dos assíduos e esforçados. Os próprios trabalhadores interessavam-se na mais justa divisão de tarefas e distribuição de responsabilidades. Aprovações, incentivos, elogios dos padres ao trabalho bem executado encorajavam os neófitos a cumprirem metas de desempenho. Cantorias acompanhadas por flauta e tambor alegravam as manhãs na missão. O espírito de equipe manifestava-se tanto nos afazeres como no lazer, nos esportes, nos jogos, nas disputas – a maioria efetuados em grupo. Desde cedo, as crianças eram encaminhadas a um ofício cuja aprendizagem era rigorosamente cobrada. O princípio mais seguido era: “de cada um segundo sua capacidade; a cada um segundo seu desempenho e suas necessidades.” A comunidade devia assegurar a todos as condições ideais para aprimorar sua qualificação. Todos usufruíam de modo equânime da prosperidade comum e da tranquilidade de uma assistência educacional e de saúde. A eficiência da administração era garantida pela atuação de contadores e fiscais que acompanhavam a economia urbana e rural. Idosos, doentes, viúvas e órfãos eram mantidos pela comunidade, mas sem a multiplicidade ineficaz de obras aviltantes de beneficência. Ninguém precisava dar esmola já que não havia pobreza nem miséria. Portanto, não se deixava espaço para a malandragem e a mendicância. Ao contribuir para a saúde e qualidade de vida, as medidas de prevenção evitavam a posteriori a necessidade de remediar erros e problemas. 112 Importância dos Jesuítas e o Legado das Missões 6.3 Pedagogia da Alternância Os jesuítas incentivaram o que hoje conhecemos como “pedagogia da alternância”: devido à sazonalidade da produção agrícola, as crianças alternavam as semanas em que trabalhavam na roça com os pais e aquelas em que estudavam e completavam o aprendizado, frequentando a escola e as oficinas de artesanato e manufaturas no núcleo urbano. Participavam também das tarefas cotidianas de limpeza, organização e manutenção do próprio colégio. Os pais participavam da gestão escolar e aprendiam as novidades da tecnologia rural com seus filhos, aperfeiçoando métodos de trabalho. Este acompanhamento sistemático era vital para a eficácia do efeito multiplicador e dinamizador da autoestima e da coparticipação em novos paradigmas de desenvolvimento sustentável. A nobreza de atitudes e a superior cultura e personalidade dos missionários eram reconhecidas pelos guaranis que lhes conferiram autoridade e credibilidade fundamentais à governabilidade das povoações. A afeição, o respeito e a fidelidade dos neófitos aos padres despertaram a atenção dos visitantes e cronistas viajantes dos séculos XVII e XVIII. Mas a abnegação e dedicação heroicas eram indispensáveis. Até 1764, cerca de trinta sacerdotes perderam a vida em pleno exercício missionário, deixando obras e realizações que marcaram o exemplo de vida para várias gerações. O que chama a atenção, quando se analisa a experiência da Confederação das Missões, é a extraordinária harmonia no relacionamento entre jesuítas e guaranis. O grau de comunicação de objetivos comuns e de entendimento não encontra paralelo em nenhuma outra tentativa de colonização missioneira. O espetacular e duradouro processo de desenvolvimento regional integrado, alcançado durante mais de século e meio em uma área de cerca de 500.000 km², constitui evidência suficiente do sucesso do modelo. Apesar de alguns revezes, de repetidas guerras e inúmeras dificuldades, a persistência, as reconstruções e transferências provaram haver metas definidas e uma tenaz vontade de concretizá-las, vencendo todos os eventuais obstáculos. De início, os guaranis – alguns deles – resistiram e falharam, mas a simplicidade, a fé, o desinteresse pelos bens materiais, a união e a caridade a tudo superaram. A República Guarani concretizou uma das mais belas propostas da obra missionária em todo o mundo. As instituições criadas desempenharam um papel fundamental no êxito da Confederação das Missões. O sistema de propriedade coletiva dos meios de produção e a equânime distribuição dos bens e serviços produzidos viabilizaram a paz, a fraternidade, a solidariedade, 113 Miranda Neto a harmonia. Tornaram até mais efetivo o fervor religioso e o humanismo cristão, demonstrando na prática que o interesse individual pode coincidir com o bem da coletividade. Aparentemente não havia contradição entre a fé de cada um, a pregação religiosa e a prática das relações econômicas baseadas na justiça social e na ética. 6.4 Mão de Obra Valores e elementos materiais da sociedade ocidental europeia da época foram implantados pelos jesuítas. Alguns iam sendo aceitos e até desejados pelos guaranis, outros condicionavam a libertação do “serviço pessoal” e da escravidão (vassalagem ao Rei espanhol, pagamento de tributo e instalação do Cabildo segundo modelo hispânico). Cada missão reunia várias tribos em uma mesma comunidade onde elementos culturais e tecnológicos guaranis coexistiam com elementos cristãos ocidentais que, aos poucos, incentivaram a introdução de novas formas de produção utilizando a enxada, o arado e outras ferramentas de ferro, formas artísticas e arquitetônicas que culminaram na construção de templos do “barroco missioneiro” e rituais católicos adaptados ao cotidiano indígena – tudo sob economia mais produtiva e outra organização sociopolítica. As missões religiosas constituíram um esforço de gerar um campesinato indígena sedentário como base para a colonização através da auto-reprodução de uma mão-de-obra em princípio livre (embora forçada ao trabalho por disposições legais e pela coação), a que teriam acesso os próprios religiosos, o governo e os colonos, segundo certas regras22. As relações entre índios e brancos deterioraram-se quando os últimos começaram a obrigá-los aos trabalhos agrícolas. Como não aceitavam a escravidão, constituiu-se o mito da incompatibilidade do gentio com a agricultura e da “preguiça da raça”. Na verdade, os índios não entendiam a necessidade de se trabalhar duro para além das necessidades de subsistência. Não tendo qualquer antecedente de trabalho agrícola intensivo, resistiam fortemente às imposições de um trabalho contínuo, o que lhes valeu a pecha de “preguiçosos”, atribuída pelos que tentavam escravizá-los23. 22 23 CARDOSO, Ciro Flammarion. “O Trabalho na Colônia” in LINHARES. História Geral do Brasil. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008. SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. “Conquista e Colonização da América” in LINHARES, op. cit. 114 Importância dos Jesuítas e o Legado das Missões Os guaranis participaram ativamente como força de trabalho especializado em tarefas manuais, serviços de guerra, transporte, agropecuária e abastecimento. As missões, como centro de formação e capacitação de mão de obra, qualificavam centenas de guaranis para o trabalho regular. Foram fundamentais para a construção e o desenvolvimento da cidade de Buenos Aires, por exemplo, viabilizando-a como núcleo colonial rio-platense, pós-expulsão dos jesuítas e decadência do sistema missões, quando elevada à condição de sede do vice-reinado do Rio de Prata (1776)24. Basicamente, os espanhóis não pretenderam alterar a agricultura dos guaranis. Apenas introduziram implementos e novas espécies vegetais e animais. Aliás, um dos critérios para emigrar para as Índias era a experiência na lavoura. Facilitava-se a aquisição de sementes e mudas de plantas que sofriam rigorosa seleção conforme sua adaptabilidade ao novo ambiente. Os animais para o criatório também eram escolhidos. A convivência entre espanhóis e índios não parece ter alterado a rotina diária dos últimos, pois o solo continuou sendo seu celeiro. Dele não retiravam mais raízes e tubérculos do que necessários para aquele dia e só utilizavam a quantidade de milho suficiente ao preparo dos pratos programados. De regra, não planejavam acumular provisões para o ano e viviam com grande simplicidade sem possuir objetos de valor. Ao final de 1611, as ordenações de Álfaro estabeleciam distância mínima de meia légua entre as missões indígenas e as chácaras e povoados espanhóis, assim como as estâncias de gado bovino e equino das missões antigas cerca de légua e meia, enquanto que as de gado menor, meia légua, sob pena da perda da estância e da metade do gado encontrado. Aquele que ousasse entrar em território indígena podia ser morto sem dó nem piedade. Exigiam também que as missões separassem um terreno contíguo com uma légua de largura onde pudessem criar seus rebanhos sem contato com os dos espanhóis. Dois jesuítas destacaram-se de início: o padre Roque González de Santa Cruz que doou seus vinhedos ao colégio de Assunção ao entrar para a Companhia de Jesus e o irmão Juan de Cárdenas, industrioso em vários ofícios, que se especializou em fabricar barris para guardar mel de cana. Ambos estavam conscientes do poder multiplicador do intercâmbio de conhecimentos e ofícios. As obras escritas pelos jesuítas nos séculos XVII e XVIII adaptaram conhecimentos acumulados dos próprios índios, comprovados empiricamente. Sem dúvida, este processo dialético contínuo tornou-se fundamental para a formação técnica. A tecnologia daí resultante tornou-se apropriada 24 NEUMANN, Eduardo. O Trabalho Guarani Missioneiro no Rio da Prata Colonial, 1640-1750. Porto Alegre: Martins, 1996. 115 Miranda Neto ao desenvolvimento rural. A produção de carne, leite, laticínios supria, em épocas de crise de produção agrícola, o déficit alimentar temporário. A maior contradição neste processo socioeconômico foi aceitar-se a escravidão de africanos enquanto não se tolerava a do indígena em parte dizimado. Tentava-se justificá-la pela necessidade de braços para a lavoura, mas, na verdade, encobria sobretudo o interesse de favorecer o monopólio do tráfico exercido pela Companhia Geral (do Comércio) do Grão-Pará e Maranhão, principalmente após a expulsão dos jesuítas, pelo Marquês de Pombal, dos domínios luso-brasileiros. Na verdade, a política pró-indígena viabilizou-se na prática com o tráfico de escravos africanos. O envolvimento de missionários com práticas escravistas maculava a imagem da Companhia de Jesus. Aos próprios jesuítas repugnava o fato de precisarem de escravos africanos, aliás, por eles já bem utilizados na época. 116 VII - A Utopia Possível. Fim de um Sonho? Muito embora os guaranis aparentemente não demonstrassem nenhum sentimento de nacionalidade, sua ligação com o lugar de origem era intensa. O Tratado de Madri estabelecia a entrega do território dos Sete Povos antes da Colônia do Sacramento, o que aumentava ainda mais a resistência ao seu cumprimento. A esta altura, os espanhóis não estavam mais apoiando os jesuítas – acusados de os impedirem de negociar diretamente com os índios – cujas missões teriam privilégios comerciais que prejudicavam os interesses dos colonos. Apesar de, na ocasião, o Tratado ter sido impopular na Espanha, em Buenos Aires era visto como uma oportunidade de tirar vantagens sobre a economia das missões. Dizia-se que os jesuítas teriam criado um Estado independente. O único artigo de fé infundido nos guaranis teria sido o ódio à Espanha e a Portugal, intensificando as calúnias que culminariam com a expulsão dos inacianos. As piores acusações eram as de que os indígenas tinham sido mais escravizados nas missões do que sob os colonos. E de que os luso-brasileiros teriam pagado aos missionários elevada importância para ficarem com os Sete Povos. Esta última intriga quase sacrifica a vida dos padres nas mãos dos próprios guaranis. O que não se concretizou pelo espírito de unidade alimentada pela fé cristã concedendo aos neófitos a graça das crianças, uma pureza repleta de candura. A devoção ingênua e entusiasta afastara o ódio e o rancor. Apesar de serem missivistas atuantes, os superiores em Roma ignoravam a real situação. A dificuldade de comunicação nas enormes distâncias através 117 Miranda Neto de precários meios de transporte e as frequentes interceptações das autoridades luso-brasileiras explicam a demora nas decisões em socorro dos jesuítas e dos guaranis. Acresce que a propaganda antijesuítica na Europa começava a surtir efeito. Muitos consideravam a Utopia Guarani apenas uma capa para encobrir ambições e propósitos ocultos. A Companhia de Jesus seria julgada na Europa pelo comportamento e pelas atitudes dos missionários no Paraguai. Estes se reuniram em São Miguel, em 2 de abril de 1751, para responder à proposta de adesão incondicional ao Tratado. Reconheceram a impossibilidade de se transferirem todos os habitantes com seus equipamentos e utensílios para a outra margem do rio Uruguai (carta de 14 de abril de 1751 enviada pelo padre José Quiroga ao Conselho das Índias e ao Ministro-chefe do rei Fernando VI da Espanha), em área desprovida de alimentos e moradias. Caso a permuta se concretizasse logo, o contrabando – interessante aos ingleses – iria aumentar pois, ao invés de utilizarem apenas a Colônia do Sacramento, teriam agora sete entradas liberadas às mercadorias ilegais. Por outro lado, como os jesuítas lideravam índios armados e equipados, esta circunstância deixava a suspeita de que escondiam imensos tesouros. Os espanhóis teriam de construir no Uruguai e no Paraná uma linha de fortificações para deter o avanço dos luso-brasileiros que, ao dominar os cavalos das estâncias, dar-lhes-ia um aumento extraordinário do seu raio de ação bélica e ameaçaria as minas de Potosí. Preparativos militares denunciavam a intenção de tomar os sete núcleos à força. E, uma vez de posse deste território, nada impediria os luso-brasileiros de prosseguir o avanço. As missões remanescentes, mesmo não diretamente atacadas, dependiam das estâncias e sua economia entraria em colapso com a perda dos ervais e das florestas ainda plenas de rica biodiversidade. Além de tudo, o controle estratégico estaria com o inimigo. Da venda da erva-mate dependia grande parte das compras de insumos, implementos e armas. E tornava-se inviável transferir o gado através de montanhas, rios e pântanos sem expressivas perdas. Se os guaranis tivessem de entregar todos os ativos a seus antigos inimigos, voltariam as armas contra os próprios espanhóis, a confiança nos missionários estaria abalada e a paz comprometida. Os jesuítas teriam dificuldade de se livrar da suspeita de serem aliados tanto da Espanha quanto de Portugal e de enganarem os autóctones utilizando-os apenas como massa de manobra para seus verdadeiros objetivos. Na verdade, a fé cristã alimentara o espírito fraternal de amizade e igualdade, reduzindo ao mínimo o sentimento de coerção, desarmando qualquer desconfiança ou ressentimento. 118 A Utopia Possível. Fim de um Sonho? Além do mais, pior época não poderia haver para esta forçada migração. A pequena colheita nas missões a Oeste (para onde teriam de se deslocar) só conseguira abastecer a própria população. Como iriam sobreviver as famílias durante o período de construção de suas novas moradias e a germinação e desenvolvimento das sementes plantadas? Nunca será demais recordar que os guaranis sempre apoiaram até com armas – quando solicitados a defendê-los – os espanhóis contra os portugueses e agora se sentiam traídos. Portanto, como se poderia cumprir um tratado tão contrário às leis da natureza, de Deus, da Igreja e do Estado? A única reação admissível seria resistir ao máximo contra a demarcação das fronteiras-limite. Os missionários já haviam demonstrado a habilidade de adaptar os costumes guaranis às tradições cristãs pouco a pouco. Apesar de contestados e desacreditados, a princípio, os jesuítas conseguiram, com coragem e persistência, impor aos poucos sua ética e moral, demonstrando competência na administração, organização e racionalização da vida nas missões, o que conseguiu construir seu poder na comunidade e desenvolver as atividades produtivas autossustentáveis. E a executar, em 1631, a maior operação de deslocamento de 2.500 famílias rio Paraná abaixo em comboios de cerca de setecentas canoas, jangadas e barcos especialmente construídos e que envolveu formidáveis procedimentos de logística ao planejar o abastecimento de 12.000 pessoas durante vários meses em sítios ao abrigo dos bandeirantes e índios hostis. A evangelização pretendia substituir o “nada” (as crenças indígenas) pelo “tudo” (a fé cristã), o bem comum. Na sociedade tribal não existia a noção de pecado. O batismo era o primeiro passo simbólico do “ritual de passagem” para o recém-convertido cristão libertar-se da existência anterior. Os missionários insistiam em acompanhar, através de catequese sistemática, os guaranis batizados para não retornarem à vida tribal. A preparação das crianças para a crisma e a eucaristia possibilitava aos padres incutirem nos neófitos as verdades em que acreditavam. A proposta consistia em transformar a conquista espiritual em atuação prática contínua de militância cristã. A conversão do gentio explicitava o sentido de evangelização nas Américas. Imperceptivelmente o índio, ao receber o missionário, estava abandonando o modo de vida tribal que foi substituído pelo “ser cristão na missão”. Ao se converter pagãos em cristãos, uma nova concepção de mundo surgia nesta transição sem precedentes na história dos povos indígenas. A ambição dos jesuítas era converter os indígenas em cristãos e estes em apóstolos leigos através do 119 Miranda Neto amor expresso em obras que contribuíssem à melhoria da qualidade de vida da comunidade e à convivência pacífica entre diferentes grupos de interesse. O poder era exercido pela persuasão de ideias, o que, na verdade, representava uma forma insidiosa de violência simbólica e oculta, pois, os valores dos cristãos aos poucos passavam a prevalecer sobre os valores ameríndios. Em sua primeira fase, a catequese itinerante, indo atrás dos índios onde eles estivessem, provou ser ineficiente. A solução seria tentar agrupá-los em novos sítios sob supervisão de um jesuíta, o que resultou nas missões ou reduções, pois a ideia era transferi-los de local e transformar os autóctones em cristãos ao obrigá-los a romper com sua tradição tribal, requisito para uni-los à comunidade cristã ocidental. Portanto, a missão consistia no aldeamento de indígenas convertidos. A encomienda regulava o trabalho coletivo. O colono tinha o dever de pagar tributo à Coroa espanhola e o direito de usufruir da mão de obra indígena na lavoura e nas obras desde que providenciasse assistência material e religiosa o que, de fato, caracterizava, na realidade, uma escravidão disfarçada. As Leis das Índias regulamentavam os interesses da Metrópole sobre as terras “saudáveis” ou férteis da América e os do gentio que deveria tornar-se cristão e produtivo para gerar excedentes. Em 1542, foi criado o Vice-Reinado do Peru que pretendia integrar o índio ao sistema colonial espanhol, exigindo fidelidade à fé católica e ao Rei de Espanha, o que significava a destruição da vida tribal. Em 1556, Domingo Martinez de Irala repartiu as terras do Paraguai entre os colonos, conforme a legislação, em área da comunidade e de particulares definindo respectivos limites: 320 encomiendas foram criadas a fim de aumentar a produção de erva-mate. Aliás, o sistema prosperava com os excedentes produzidos pelas comunidades indígenas para pagar tributos à Coroa e providenciar a defesa estratégica e a formação religiosa. Os encomenderos gerenciavam o processo de expropriação que beneficiava as elites castelhanas. A missão possibilitou ao índio usufruir de espaço mais amplo em organização político-administrativa que lhe permitia certa unidade inserida na Cristandade Ocidental e contida no Estado monárquico espanhol. Portanto, a missão garantia a continuidade geográfica do Império Colonial Espanhol. Os missionários tentavam obter o máximo de uniformidade e continuidade entre as várias missões, estabelecendo linhas de comunicação e suprimento regulares. Os povoados possuíam livros de batismos, casamentos e óbitos cujos dados forneciam elementos para as estimativas demográficas da região das missões desde 1643. A Igreja assumia funções de cartório. As 120 A Utopia Possível. Fim de um Sonho? Cartas Ânuas e os relatórios das visitações dos padres completavam as fontes para os principais dados estatísticos. A missão implicava na sedentarização do guarani na comunidade e na construção da “família missioneira”. Os jesuítas insistiam na necessidade do casamento monogâmico e, para evitar a concupiscência e o incesto, tentavam antecipar a idade das uniões. As relações sexuais eram legitimadas pela relação social criada, gerando os direitos e as responsabilidades da paternidade instituindo a linhagem patrilinear. O domicílio era o do pai e marido, a partir daí zeloso da assiduidade à missa aos domingos, da confissão pessoal, do compromisso de não embriagar-se, que passaram a ser consideradas obrigações legais. A família se originava do sacramento do matrimônio. O marido detinha mais poderes do que os demais membros e os netos podiam coabitar o domicílio, o fruto do trabalho provinha do Abambaé (terreno particular) e também do Tupambaé (área coletiva) onde todas as famílias trabalhavam em conjunto. O casamento cristão constituía um rito de passagem assim como o batismo e a confirmação: ato social e secular. A união monogâmica indissolúvel era necessária ao êxito social da missão ao incorporar o guarani ao sistema colonial espanhol. Apesar de combaterem a concupiscência e as uniões fora do casamento, os padres viam com bons olhos a fertilidade das índias e o rápido crescimento populacional que aumentava o rebanho de Cristo. Tanto que, entre 1643 e 1682, as novas almas a serem doutrinadas – os filhos dos fiéis – mantinham constantes as taxas de aumento demográfico. A doutrina Cristã era diariamente ensinada ao lado de ler, escrever, cantar, tocar um instrumento. Havia controle disciplinar sobre a formação infantil e estímulo a novas vocações. O processo missionário também se sustentava em uma sucessão de ritos sacros como o batismo, a confirmação, a confissão, a penitência e o casamento. Eles aumentavam o controle social da comunidade pelos missionários jesuítas. A paz evangélica era obtida com penitência, reconciliando membros da coletividade entre si e com o sobrenatural. O arrependimento levava à remissão dos pecados. A aliança Estado-Igreja interessava à expansão do poder político dos impérios coloniais. Os jesuítas foram de início instrumentos desta aliança. As missões haviam sido localizadas estrategicamente na fronteira do Império Colonial Espanhol como verdadeiros postos avançados de defesa do território e frentes de expansão geopolítica. A missão representava o prolongamento da ação política do Estado, reforçando-o. A relativa autonomia administrativa de cada uma 121 Miranda Neto flexibilizava o controle global adequando-o à realidade da região. As milícias guaranis defendiam o sistema produtivo jesuítico, que representava extraordinário salto tecnológico com enxada, arado, adubo, irrigação, rotação de culturas e produção de sementes. Enfim, Espanha e Portugal superaram seculares rivalidades a fim de mobilizar poderoso exército conjunto com o objetivo de destruir a civilização missioneira, uma ameaça a impérios baseados no colonialismo, no latifúndio e na escravidão. A experiência de sociedade fraternal e livre precisava ser abortada. A recusa dos índios em desocupar as missões gaúchas foi o pretexto para o genocídio guarani e a expulsão dos jesuítas. Muito embora alguns revezes afetassem a continuidade do processo, os padres sempre conseguiam reconstruir sua obra em locais diferentes nestes quinhentos mil quilômetros quadrados. Mas agora, tantos anos de convivência e trabalho em comum não poderiam se extinguir de uma hora para outra. Em diferentes ocasiões, os reforços de guerreiros guaranis na defesa de Assunção, de Buenos Aires e no cerco à Colônia do Sacramento, a serviço das autoridades hispânicas, privava as missões da mão de obra necessária à produção agropecuária durante longos meses. Isto causava decadência econômica, fome e epidemias que se alastravam pelas aldeias, sobretudo após os conflitos quando ex-soldados guaranis, maltrapilhos e famintos, vagavam pelos campos e matas, assaltando e roubando os núcleos que não tinham a quem recorrer. Foi quando se tornou irreversível o declínio da produção e comprometeu a viabilidade da estrutura econômica. A expulsão dos jesuítas após as guerras guaraníticas precipitou ainda mais o trágico desfecho pois as missões desempenharam a função de fronteira na geopolítica hispânica, mantida pelo exército guarani como vanguarda deste domínio territorial. Expulsos os jesuítas, os guaranis ficaram abandonados e tornaram a praticar a religião dos antepassados. A economia teve seu desenvolvimento sustado bruscamente sob pressão dos interesses coloniais, hostis a ela desde o princípio. Todo o desenvolvimento do modelo político a partir de povoados missionários e toda a organização de uma economia autossustentável, que sedentarizava os guaranis em uma estrutura de coparticipação gerencial, ficaram comprometidos. Hoje ainda se percebem os efeitos diretos e indiretos deste enorme esforço de soerguer toda uma proposta cultural, econômica e administrativa. Há núcleos urbanos originados nas missões. A produção pecuária gaúcha, argentina, paraguaia e uruguaia derivou daquele esforço inicial dos guaranis, orientados e estimulados pelos jesuítas. A erva-mate, 122 A Utopia Possível. Fim de um Sonho? com enorme aceitação internacional, foi incentivada, desenvolvida e exportada graças aos missionários e ao trabalho duro do gentio. Centauros eficientes na doma dos rebanhos, os vaqueiros guaranis revelaram-se exímios criadores, mesmo indiretamente submetidos à disciplina religiosa. A par do cultivo e da vida na estância, os jesuítas introduziram a música e as artes, o artesanato em barro, couro e madeira (em parte já praticado nas aldeias), a tecelagem do algodão, a carpintaria civil e naval, a ferraria, a pintura e até as artes plásticas e gráficas. Alguns livros e manuscritos, semelhantes aos produzidos pelos copistas inspirados nos monges medievais europeus, foram produzidos nas missões no século XVIII. A original civilização missioneira duraria 170 anos, deixando fundas raízes na formação histórica e cultural nos países do Cone Sul. Aos jesuítas se deve o conhecimento de geografia, zoologia, botânica, etnias, línguas e costumes dos autóctones. Em cartas, dicionários e outros livros transmitiram informações preciosas. O maior enigma é desvendar o sentido da utopia que decretou seu próprio destino ao tornar-se, dentro da colônia, um projeto anticolonial. Na verdade, as missões provaram ser a utopia possível, desenvolvendo com pertinácia a alternativa autossustentável com gestão compartilhada. E conseguiram propagar sua herança cultural séculos afora. Ícones e relatos, tecnologia e conhecimento, produção e poder até hoje continuam vívidos nas ruínas das catedrais, nas imagens de santos, na saga dos jesuítas e dos guaranis, no maravilhoso esplendor alcançado com o aprimoramento contínuo das artes e ofícios cuja preciosa amostra arqueológica espelha a luta recorrente para a conquista sublime da universal utopia de felicidade, que transcende os povos e os tempos. Após a assinatura do Tratado de Madri, Fernando VI de Espanha alegava ter sido induzido à má avaliação por relatório dos jesuítas que mencionavam os “pobres povoados” guaranis comparáveis às choupanas de palha dos arredores de Buenos Aires. Apesar de várias tentativas para reverter os termos do tratado, só se conseguiu protelar a entrega das áreas a fim de organizar melhor a transferência dos guaranis para outro território. De fato conseguiu-se, com a dilatação do prazo, preparar melhor a resistência armada à demarcação dos novos limites territoriais. O pretexto era sempre a espera da colheita, aguardando a época própria para cada safra agrícola. Apesar disso, a ordem do Padre Geral Inácio Visconti era de se proceder ao cumprimento integral às cláusulas do tratado o que, paradoxalmente, contrariava as noções fundamentais de justiça pregadas pelos próprios jesuítas, sempre resistentes à opressão, à arbitrariedade, ao escravismo. 123 Miranda Neto Os jesuítas a favor do tratado, como o Padre Altamirano, foram ostensivamente hostilizados pelos guaranis. As missões de São Tomé, São Luiz e São Nicolau demonstraram firme resistência à demarcação expulsando os emissários espanhóis, o que fomentou novas adesões. Claro que contaram com apoio de missionários, vistos a partir daí pelos generais Gomes Freire de Andrade, do lado luso brasileiro, e Marquês de Valdelírios, do lado espanhol, como “rebeldes que deveriam ser expulsos do País para cessarem as rebeliões, insolências e desventuras.” Nessa ocasião, Sepé Tiaraju, cacique corregedor de São Miguel, fez demonstração de força apoiado por exército guarani, colocando em retirada os comissários espanhóis de volta a Buenos Aires e os portugueses para a Colônia do Sacramento. Os comissários, que ainda tentavam a demarcação, também foram obrigados a desistir sobretudo pelos fortes argumentos contra o “esbulho possessório” a ser perpetrado. “O que a Coroa espanhola já fizera para conquistar e colonizar aquelas terras a não ser apoderar-se do trabalho dos guaranis e jesuítas? Por que o Rei não oferece aos portugueses Buenos Aires, Santa Fé, Corrientes, Assunção? Por que justamente as terras dos pobres índios? Isso não é uma ordem de Deus mas do Demônio...”, protestavam os neófitos que utilizavam a tática de guerrilha (“terra arrasada”) com greves, boicotes, sabotagens, estimulada por alguns missionários que chegaram a proibir a venda de quaisquer produtos aos “brancos”. Os guaranis aproveitaram o interregno para consolidarem suas posições e aperfeiçoarem seu armamento. À falta de metais em quantidade suficiente, fabricaram peças de artilharia em madeira resistente, o urundi uma espécie de bambu gigante que era recoberto por couro curtido de bovino, demonstrando a criatividade dos guaranis orientados pelos jesuítas. Em janeiro de 1756, quando Portugal e Espanha decidiram prosseguir unidos com as hostilidades contra os guaranis, ambos os lados sofreram pesadas baixas. Sepé Tiaraju morreu em combate e foi substituído por Nicolau Languiru, corregedor de Concepción, que se fortificou na colina de Caybaté, próximo à missão de São João, coordenando as milícias de várias missões. Em fevereiro, uma batalha vitimou Languiru e 1.200 índios em uma emboscada que envolveu muita contrainformação entre as missões aliadas. Em maio, o exército luso-espanhol entrou em São Miguel, já antes incendiada pelos próprios guaranis, em São Lourenço, em São João e em Santo Ângelo. São Nicolau só foi ocupada no final de 1756. A tática de guerrilha e terra arrasada prosseguiu causando grandes transtornos e baixas. Cerca de 14.000 guaranis conseguiram se reagrupar 124 A Utopia Possível. Fim de um Sonho? após recuo estratégico para a outra margem do rio Uruguai. Até os soldados espanhóis se furtavam a conceder total empenho, pois viam a guerra como contrária aos interesses nacionais já que os luso-brasileiros fatalmente lucrariam com a total retirada guarani. Durante algum período, as sete missões gaúchas, semidevastadas, constavam como politicamente integradas aos domínios de Portugal mas sem terem de fato sido evacuadas. Só anos depois os jesuítas conseguiram persuadir os indígenas remanescentes a se transferirem para a margem direita do rio Uruguai. Apesar de a maioria dos padres anuírem a contragosto com a transferência, os jesuítas foram denunciados como rebeldes que instigavam os povos à insurreição. O prejuízo em vidas humanas e recursos financeiros desgastou o já combalido Tesouro de Portugal após o terremoto de Lisboa que forçou a reconstrução da cidade. E intensificou violenta campanha25 contra os jesuítas, apressando sua expulsão. Os jesuítas só administraram as missões até agosto de 1768. O Marquês de Bucarelli26, governador do Rio da Prata, convocou os corregedores guaranis para se prepararem a dar continuidade à gestão e até prometeu fundar Universidade em Candelária onde seus filhos teriam o privilégio de se formarem como gestores civis, militares ou sacerdotes. A perspectiva de futuro animou os guaranis, embora a população continuasse desconfiada e resistente às tentativas de apaziguamento, apesar de os corregedores terem sido bajulados e homenageados por Bucarelli. O governador Bucarelli, iniciou a ocupação dos colégios dos jesuítas em julho de 1767, e das missões no ano seguinte. Entre julho e agosto de 1768, cinco comissões militares ocuparam os trinta povos guaranis, cujos inventários foram concluídos em outubro. Mercedários, franciscanos e dominicanos substituíram os jesuítas expulsos, assumindo a responsabilidade da administração religiosa dos pueblos. Do lado político, as dez missões próximas à fronteira luso-brasileira, tendo São Miguel como capital, passaram a ser subordinadas à jurisdição de um capitão e as vinte restantes da bacia do Paraná e do Uruguai superior determinadas a outro capitão tendo Candelária como capital. A partir de dezembro de 1769, um governador único residente em Candelária, exercia autoridade sobre quinze pueblos diretamente e sobre os quinze restantes através de tenentes subordinados. Em 1775, foram criados cinco departamentos com capitais em Candelária, Santiago, Yapeyú, São Miguel e Conceição, sendo a primeira destinada à residência do governador e as demais aos quatro tenentes nomeados. 25 26 Incentivada por D. José I e seu primeiro-ministro, Sebastião José de Carvalho e Melo, Marquês de Pombal. Don Francisco de Paula Bucarelli y Ursúa. 125 Miranda Neto Do ponto de vista educacional, Bucarelli impôs a introdução do idioma espanhol no ensino desde a alfabetização até os seminários abertos aos autóctones selecionados. Na economia não alterou o sistema de propriedade coletiva dos bens de produção, embora incentivasse em algumas áreas a repartição de terrenos para serem cultivados individualmente, acirrando a competitividade e a produtividade. Criticava a organização jesuítico-guarani anterior que possibilitou “criar índios estúpidos, mansos e úteis”27. De modo geral, os administradores particulares não se mostravam competentes nem preparados a assumir a responsabilidade do cargo. E pior: provaram ser corruptos e só interessados em lucrar e tirar proveito dos privilégios de sua função pública. Impressionava o número dos que exerciam a autoridade: governador do departamento, administrador geral, tenentes do governador, capatazes, protetores dos índios, visitadores, cabildantes, caciques, curas... Tal excesso de dirigentes tornava a gestão ineficiente e muitas vezes inoperante devido a decisões conflitantes e sem diretriz operativa. Fornecedores e negociantes exploravam a seu favor uma economia cada vez mais débil. Dois decênios após a expulsão dos jesuítas, as missões se reduziram a um terço com menos da metade dos habitantes. Dos artífices, artesãos e operários especializados, não havia mais nem vestígios. Lamentavelmente o vandalismo dominou as ações dos novos administradores das missões (civis e militares) a ponto de destruírem o precioso acervo colecionado pelos jesuítas em suas bibliotecas: páginas de livros foram arrancadas e utilizadas para diversos fins. Membros do cabildo de São Luiz por diversas vezes rogaram às autoridades a volta dos jesuítas, elogiados por sua atuação, bondade e persistência. O trabalho em grupo e a propriedade coletiva dos meios de produção foram reputados como mais eficientes do que o individualismo espanhol. Com a saída dos padres, os filhos dos guaranis ficaram desorientados e alguns fugiram para as florestas. Muitas intrigas contra os jesuítas prosperaram na sua ausência. Em 1778, Bucarelli conseguiu que Carlos III aprovasse novo sistema de administração para as missões estimulando o comércio externo com as potências econômicas, mas dificultando o intercâmbio entre os povoados, enfraquecendo a união comercial e o desenvolvimento da República Guarani. Tornou obrigatório o ensino do espanhol, abrindo a comunicação para o mundo colonial. O objetivo seria “assegurar a prosperidade do povo guarani através da agricultura, do comércio e da difusão da 27 AZARA, Félix de. Descripción y Historia del Paraguay y del Rio de la Prata. Buenos Aires, 1943. 126 A Utopia Possível. Fim de um Sonho? língua espanhola”. Outra meta era desvincular o poder civil do poder eclesiástico. Mas seria o Conselho de cada missão mais independente sob poder teocrático ou sob poder civil ligado aos poderosos grupos do comércio internacional? A decadência e a desorganização da Confederação das Missões se agravou a partir do momento em que se permitiu a permanência de colonos nos núcleos “para fomentar relações comerciais”, os quais abusaram da hospitalidade, logrando a boa-fé da população, desrespeitando-a e introduzindo hábitos como o vício do alcoolismo cujos efeitos bem conhecidos conduziam até ao crime, desorganizando a estrutura socioeconômica-política da comunidade. Os terrenos mais férteis foram ilegalmente apropriados, os depósitos e armazéns entregues a corruptos ligados aos colonos, a produção desviada, o que ocorria afrontando os guaranis então já impedidos de utilizar armamentos. Como consequência, o êxodo em massa contribuiu para a decadência econômica; o caos e a desordem sociopolítica com boicotes, sabotagens e outras formas de resistência ao regime de trabalho forçado proliferaram. Os padres remanescentes de outras ordens só poderiam cuidar dos afazeres religiosos. A substituição dos administradores locais por outros que não falavam guarani aumentou a desordem em todas as missões. O rebanho bovino, que era considerável e estava em expansão, teve abrupto declínio sobretudo por sérios roubos que até prejudicaram os leilões das estâncias cujos prováveis potenciais compradores se desinteressaram: preferiram negociar grandes malhadas sem poupar as reses em idade de reprodução. Lavouras abandonadas, pilhagem, dispersão dos habitantes, falta de liderança e motivação completaram a decadência econômica. A ociosidade e o vício começaram a dominar o cotidiano dos guaranis. Faltava algo que abrisse perspectivas para o futuro. As promessas envolvendo a criação da Universidade da Candelária, a manutenção das escolas profissionalizantes e de música nunca se cumpriram. As quatro tipografias instaladas pelos jesuítas foram desmontadas pelo receio de se incentivar a leitura. A educação deixou de ser prioridade. Os adultos precisavam trabalhar duro e só tinham dois dias na semana para cuidar dos lotes particulares cujo sistema foi restaurado. Alguns optavam por ser diaristas dos colonos nas cidades, o que contribuiu à queda da produção nas missões. Outros decidiram viver em cabanas fora do perímetro urbano das missões a fim de não serem controlados e explorados, pois até aluguel era-lhes cobrado. Os prédios se deterioravam por falta de manutenção: colégios, oficinas, igrejas – todos depredados, saqueados, mal utilizados. 127 Miranda Neto Vários apelos na tentativa de retorno dos jesuítas foram em vão. Eclodiram revoltas devido à insatisfação geral. Epidemias também contribuíram ao declínio populacional. Segundo Hernandez e Maeder, o conjunto das missões contava com cerca de 80.000 a 90.000 habitantes em 1770 que se reduziram a 70.000 em 1785, 54.000 em 1797 e 43.000 habitantes em 1801. Yapeyú possuía ainda 5.500 moradores em 1790. Algumas plantações foram distribuídas a colonos espanhóis. Estâncias, grandes culturas, criação de gado bovino e equino e oficinas montadas continuaram de propriedade e uso comum. Os sucessores dos jesuítas foram forçados a manter o sistema de propriedade coletiva dos meios de produção, que provou ter sido o mais adequado e eficiente ao temperamento e aos hábitos dos indígenas. Rações de carne, sal, mate, tecidos estavam se reduzindo e eram de qualidade bem inferior à da época dos jesuítas. Mate, fumo, algodão, melaço, couros e crinas eram exportados para pagar tributos, salários dos administradores, as importações indispensáveis. As terras dos guaranis foram aos poucos apropriadas pelos colonos com apoio dos administradores. Cana-de-açúcar, milho, bananas, mandioca e erva-mate continuavam a ser produzidos coletivamente. Estimativas na década de 1820 para as comunidades de Entre-Rios contavam em torno de 10.000 pessoas. Em 1848, o ditador Solano López extinguiu o sistema de propriedade coletiva dos meios de produção. Remanescentes guaranis foram legalmente destituídos dos imóveis, equipamentos e gado. O desestímulo à produção acelerou a decadência. Em 1851, uma colônia de 300 famílias guaranis ao norte do rio Iguaçu subsistia cultuando tradições e modo de produção herdados dos jesuítas, apesar de já sofrerem franca decadência econômica: demonstravam sua fé mantendo as práticas religiosas (batismos, casamentos, orações pela manhã e à tarde, missa aos domingos). Mas este caso no Guairá foi exceção pois a vida espiritual sofreu forte abalo com a inexorável desorganização do sistema. A falta de unidade entre franciscanos, dominicanos e padres da misericórdia (sucessores dos inacianos), sua deficiente preparação e sobretudo o desconhecimento do idioma guarani prejudicaram o desempenho das comunidades. Apesar da incompetência inicial dos sucessores dos jesuítas, eles se esforçaram em humanizar o cotidiano das missões. A religião e sua prática ajudaram a reorganizar a vida dos guaranis. Entretanto, a relação entre religiosos e administradores foi conflituosa, o que acelerou o caos. Cada missão ia definhando isoladamente. Prédios eram utilizados para outros fins que não os originais, outros incendiados ou até mesmo demolidos como a Igreja de 128 A Utopia Possível. Fim de um Sonho? Encarnación, verdadeiro símbolo da magnificência da República Guarani. Desgraçadamente perdeu-se o encanto, o segredo da vida comunitária em harmonia, da própria felicidade humana, da Utopia Guarani. Em 1852, Martin de Moussy em Mémoire sur la Ruine des Missions des Jésuites, tentava comparar “a prosperidade passada com a miséria atual; ao pensar na fé e na resignação dessa gente agora infeliz, as lágrimas vieram-nos aos olhos.” 7.1 Obras dos Guaranis e Jesuítas das Missões Entre 1703 e 1728, tipografias em Loreto, Corpus Christi, São Miguel, Santa Maria Maior e São Francisco Xavier já publicavam obras. O primeiro livro impresso em São Miguel teria sido Martirologio Romano atribuído ao padre João Batista Neumann. Antes, em 1639, o padre Montoya havia publicado em Madri uma gramática e um vocabulário Tesoro y Catecismo en Lengua Guarani. Já no século anterior, o Padre Anchieta no Brasil teve a ideia de tentar padronizar as características comuns aos vários dialetos e sintetizar os fonemas a fim de difundir a “língua geral”, utilíssima na comunicação entre as tribos e destas com os jesuítas e os colonos. Deve-se este esforço aos missionários. A língua guarani continuou sendo a mais falada no Paraguai e além-fronteiras após a expulsão dos jesuítas. Os missionários, professores de guarani na Universidade de Córdoba, conseguiam que trabalhos em guarani fossem escritos e impressos nas próprias missões que antecederam em 80 anos as primeiras oficinas gráficas de Buenos Aires. Em 1703, Sermões e Catecismos em guarani, elaborados pelos padres Neumann e Serrano foram impressos e distribuídos aos fiéis nas missões. Dois anos depois, o padre Juan Eusébio Nieremberg conseguiu editar De la Diferencia entre lo Temporal y Eterno, em Loreto, traduzida para o guarani pelo padre José Serrano, considerada ainda hoje uma das mais preciosas obras impressas na colônia, rica em belas gravuras confeccionadas pelos neófitos. Em 1713, o padre Antônio Garriga publicou também em Loreto Instrucción Práctica para Ordenar Santamente la Vida. O padre Restivo dedicou-se a Trabajos Lingüísticos. Dentre as geografias e descrições de viagem, destacam-se a Descrição do Rio Paraguai do padre Quiroga e os mapas para a ligação entre o Prata e o Peru através do rio Paraguai, a República Guarani e o território dos Chiquitos. 129 Miranda Neto Cartas astronômicas das reduções chegaram a ser confeccionadas pelo padre Buenaventura Suárez que construiu também telescópios e relógios. Catálogos de Botânica, com descrições das propriedades de cada espécie, utilíssimos à fitoterapia jesuítico-guarani, foram atribuídos aos padres Pedro Montenegro (1711) Sigmund Asperger, Serdahely, Vasconcelos e Lozano, incluindo ilustrações. As descrições de vegetais ainda não classificados são bilíngues: em guarani e em espanhol. Alguns autores guaranis também se destacaram: Nicolás Yapuguay com Explicación del Catecismo e Sermones y Ejemplos e o índio Melchior com Historia del Pueblo de Corpus Christi. No inventário das bibliotecas após a expulsão dos jesuítas, de todos os criminosos incêndios, depredações e massacres, restaram 4.725 livros em Candelária, onde residiam os padres superiores, 460 em Corpus Christi, 445 em Santa Maria Maior, 382 em Santos Mártires e 315 em Loreto. Até a partitura de uma ópera – Santiago – foi encontrada no inventário das missões jesuíticas. Estima-se que cerca de 30 mil músicos chegaram a ser formados nos 33 povoados pelos professores jesuítas Louis Berger (francês), Jean Vassaux (belga) e António Sepp (alemão). Vassaux tinha sido músico na corte de Carlos V e faleceu em Loreto em 1623. O principal conservatório funcionava em Yapeyú, sede da principal oficina de luthiers, ressaltando o papel educativo do artesanato especializado em confecção e manutenção de instrumentos musicais: lira, órgão, violão, violino, clarinete, fagote, flauta, trompete, cítara, maracá e tambor. Segundo o padre Cardiel, os guaranis representavam óperas, peças teatrais de fundo religioso, pintavam o corpo e o rosto, mascaravamse, cantavam e dançavam, voltando às origens com toda inocência e espontaneidade. O índio Inácio Paicá tornou-se famoso como factotum refinado. Além de ferreiro, funileiro e fundidor era polidor de objetos de metal. 7.2 Outros Grupos de Missões sob Modelo Guarani (Séculos XVII – XVIII) Chiquitos. As 20 missões, fundadas a partir de 1691, ocuparam a região ao norte da República Guarani, a Sudeste da atual Bolívia. Em 1726, sua população total atingia 46.000 habitantes e chegou a dobrar, de acordo com o padre Arcé. Moxós. As 16 missões, fundadas a partir de 1670, superaram 30.000 habitantes, vivendo em uma área ao Norte da atual Bolívia. 130 A Utopia Possível. Fim de um Sonho? Chaco. A partir de 1693, as tribos do Chaco formaram 15 missões de Mocobis e Abipones, a oeste da República Guarani. Pampas. Essas povoações formadas pelas tribos desde a Cordilheira dos Andes até a Terra de Magalhães foram destruídas a partir de 1750 pelas tropas luso-espanholas. Chiriguanas. As tribos chegaram a construir quatro missões. Tarumã. Entre os Chiquitos e os Guaranis formaram-se três missões que tiveram sobrevida efêmera. 131 Considerações Finais A descoberta do Novo Mundo influenciou extraordinariamente as perspectivas da conquista espiritual de mouros, ex-judeus e indígenas que, mais tarde, seriam considerados “cristãos novos”. A ânsia de liberdade moveu os jovens a explorar terras d’além-mar, a expandir o cristianismo e a fé católica para continentes ainda desconhecidos. Por outro lado, explodia o horror ao Tribunal da Inquisição espanhola cuja atuação precipitava migrações forçadas: levas e levas de refugiados ansiavam por tentar descobrir onde pudessem viver livres e felizes (cap. 1). A Companhia de Jesus, fundada como ordem laica, foi considerada no início como uma espécie de milícia particular do Papa no momento em que a Reforma protestante desconstruía o catolicismo. Subordinados diretamente ao Vaticano, os jesuítas não sofriam as restrições de outras ordens religiosas, limitadas a conventos e a paróquias. Movimentavam-se livremente e agiam como agentes e soldados (Inácio de Loyola tinha sido militar antes de se converter). Ao invés de criar fanáticos, formou hábeis negociadores com extraordinária vocação para humanidades e o ensino religioso. Em 1508, o papa Julio II concedeu aos reis espanhóis o direito do padroado sobre a Igreja nas terras americanas conquistadas. A aliança entre o trono e o altar possibilitou a fundação, a organização e a expansão das missões jesuíticas na Colônia que conseguiram colocar em pratica um magnífico exercício de aculturação do gentio (cap. 1). Em 1519, os reis católicos assumiram direitos sobre as terras descobertas ou a descobrir e a serem incorporadas ao império espanhol. 133 Miranda Neto As chamadas Leis das Índias Ocidentais constituíam o aparato legal criado durante a ocupação das terras do Paraguai com o fim de preservar os interesses da Espanha na América. Elas definiam o espaço geográfico a ocupar, apto a semear e a colher, a dita “terra saudável”. O gentio local deveria aprender o Evangelho e ser convertido ao cristianismo. Em 1542, foi criado o Vice-reinado do Peru cujo objetivo principal, além da posse territorial, era a “integração do indígena ao sistema colonial espanhol”. Em 1556, Domingo Martínez de Irala aplicou a legislação espanhola ao repartir as terras do Paraguai entre os colonos. O direito de acesso à terra seria concedido aos colonizadores hispânicos que exigissem dos índios fidelidade à fé católica e ao Rei da Espanha, retirando-lhes qualquer direito à posse dos terrenos por eles ocupados (cap. 1). O Conselho das Índias nomeava funcionários e autoridades, inclusive da Igreja, e exercia o poder extensivo no Império Colonial na América através da legislação, administração e justiça. As missões surgiram durante o Império Colonial espanhol dos Habsburgos e se desarticularam no dos Bourbons, redimensionando o papel do Estado. O governo de Castela fundou reduções de início atendidas, quanto ao espiritual, por franciscanos, dominicanos e clero secular. No Brasil, a experiência de aldeias indígenas foi ainda anterior à doutrina de Juli, Peru (1568-1576), sob responsabilidade de jesuítas embora com características diversas. No aspecto laico, civil, as áreas das doutrinas ou missões assemelharam-se aos municípios espanhóis. Do ponto de vista religioso, correspondiam às paróquias de administração eclesiástica. A principal fonte inspiradora foi o próprio modelo indígena de organização ao qual os missionários se adaptaram, apenas introduzindo alguns valores e nova tecnologia, procedente da elite cultural europeia. As comunidades tribais praticavam o cooperativismo, caracterizado pela propriedade coletiva dos meios de produção, possibilitando à sociedade indígena organizar-se conforme as necessidades comuns. As horas de lazer eram preenchidas por aprendizado de novas técnicas, competições esportivas, catecismo e rituais religiosos. Resultava em sociedade plenamente participante, capaz de conduzir seu destino, organizando-se social, econômica e politicamente. A propriedade comum favorecia a solidariedade entre pessoas e grupos. Como só as reais necessidades influíam na decisão de produzir e consumir, a fartura era uma decorrência natural, evitando-se o desperdício (cada um obtinha o suficiente para sua sobrevivência em harmonia). Encontrou-se um meio de varrer a indigência desta sociedade. Todos 134 Considerações Finais se beneficiaram de igual abundância. Não havia necessidade de coação econômica ou política. A autoridade baseava-se nos valores que o próprio grupo cultivava. Os fundamentos do sucesso da intervenção podem ser assim sintetizados: 1. prestigiar a autoridade dos caciques; 2. localizar a aldeia em local alto próximo a curso d’água; 3. dispor de recursos suficientes para garantir a autossustentabilidade; 4.coordenar as missões entre si e com o governo espanhol tentando cooptar os caciques. A ação missionária conseguiu, com relativo esforço, o abandono da antropofagia, da poligamia e do culto às divindades tribais, caracterizando o novo índio cristão, fiel à Igreja Católica. A coroa desejava transformá-lo em súdito, agente e defensor da “causa política comum”. Queria que lutasse para defender os interesses do colonizador, após a reorganização da vida tribal, convertendo-se aos valores do cristianismo e da civilização europeia. Na prática, foram os colonos e os missionários que mais tiveram de se adaptar aos costumes e ao modo de vida autóctone para sobreviver razoavelmente em um contexto desconhecido. O cunhadismo, o compadrio e a miscigenação foram práticas de aliança e de parentesco economicamente vantajosas para os colonos. O indígena era submetido a uma organização totalmente diversa onde as formas de controle o condicionavam a produzir um excedente que nem sempre lhe era destinado. O sistema de trabalho, com uso intensivo do tempo, a vigilância e a severa coordenação eram-lhe estranhos, pois, na economia tribal, as formas simples de cooperação garantiam a reprodução dos meios de subsistência na medida suficiente à sua sobrevivência (cap.2). Tribos nômades eram mantidas unidas e relativamente afastadas dos povoados hispânicos pelos missionários, responsáveis por fixá-los a gleba, fora do alcance dos colonos. Estes, entretanto, os convocavam como mediadores de conflitos com tribos ainda hostis às forças espanholas. Os indígenas, felizes por escapar às perseguições tanto dos encomenderos quanto dos bandeirantes luso-brasileiros, convergiram para as missões onde eram catequizados e habituados à vida mais sedentária. Entretanto, como o ritmo de trabalho e a disciplina dos jesuítas eram rígidos, alguns voltavam para suas antigas aldeias e ao nomadismo da caça e da pesca. Com um paciente e pertinaz trabalho de convencimento, 135 Miranda Neto os padres iam atrás deles tentando fazê-los retornar. A fim de ganhar sua confiança, restringiam ao mínimo o contato com os colonos espanhóis, proibidos de permanecer mais de três dias em uma aldeia indígena ou missão jesuítica (cap. 2). A segregação relativa dos neófitos viabilizou-se também pela barreira da linguagem. Os missionários preferiam estudar e se comunicar na língua dos nativos aos quais era vedado o aprendizado do espanhol e do português. Logo, o contato inter-racial e intercultural só se efetivaria caso o visitante às missões dominasse o idioma guarani. Os estranhos ou eram bem-vindos ou poderiam até ser hostilizados e expulsos pelos índios, a critério deles e dos padres (cap. 2). As missões, como proposta de civilização, sedentarizaram, organizaram e disciplinaram as atividades dos ameríndios. A organização e a disciplina dos jesuítas induziram os guaranis a se transformarem de imprevidentes e livres caçadores e coletores em agricultores e criadores eficientes, a fim de garantirem razoável alimentação, vestuário e moradia. Os missionários introduziram novas técnicas agrícolas com equipamentos metálicos (enxada, machado, pá, facão e arado) e criatórios bovino e equino que revolucionaram o suprimento alimentar, garantindo a oferta crescente das missões a partir de meados do século XVII. Os guaranis aceitaram com reserva a nova regulamentação do trabalho e a organização do cotidiano, em parte convencidos de que eram úteis e necessários ao alcance do objetivo maior: a sobrevivência em comunidade. A fundação das primeiras missões no vale do Paranapanema coincidiu com grave crise de desagregação social e dispersão da “sociedade guarani”. Revoltas e episódios de resistência à opressão caracterizaram este período, dificultaram o aldeamento e contestaram a liderança dos padres. Colonos e soldados foram convocados a socorrê-los (cap. 2). A pluralidade linguística na América Latina do século XVII e XVIII compreendia o tupi, o guarani, o português, o espanhol, o latim e os demais idiomas indígenas falados pelos autóctones. Uma das principais exigências da Companhia de Jesus era que seus padres aprendessem a língua dos povos da terra a fim de melhor catequizá-los. Na consolidação do processo colonizador, os jesuítas pouco a pouco substituíram a catequese pela educação da elite dos povos sul-americanos, influindo na condução política e na cultura socioeconômica das respectivas nações. As missões assumiram a defesa do índio contra a exploração e a opressão. A estratégia do medo no sentido de evitar mal maior estimulou e agilizou a conversão do gentio. Os padres se transformaram em “heróis civilizadores”. A redução passou a ser “espaço de salvação”. O 136 Considerações Finais conhecimento da língua guarani e a conquista da simpatia dos caciques tornaram-se fundamentais. O que deveras facilitou a evangelização foi a vulnerabilidade dos índios às doenças introduzidas pelos colonizadores, às epidemias causadas por falta de higiene e às crises de abastecimento pela má gestão e pelo desperdício de recursos ciclicamente abundantes. Havia imprevidência e má divisão do trabalho e do tempo disponível (cap. 2). De início, a Companhia de Jesus apoiou com ênfase o trabalho missionário, mas, aos poucos, passou a priorizar os colégios, a partir dos quais os jesuítas influíram vigorosamente na sociedade colonial, sobretudo na vida acadêmica até após sua expulsão. Entretanto, foi a prática missionária que modificou o conhecimento em geografia, biologia, filosofia natural e introduziu novos conceitos e práticas pedagógicas, revolucionando a visão de mundo a partir do século XVIII. Contrastava com a postura inicial dos colonizadores que basicamente impuseram a disciplina do medo. Muito embora a visão de mundo tenha se enriquecido, os novos conhecimentos ficaram praticamente monopolizados pelos jesuítas e restritos a eles. A estrutura socioeconômica do sistema missões se caracterizava pelo elevado sentido de responsabilidade social diante das populações indígenas que os missionários aliciavam, assegurando-lhes uma existência própria dentro da comunidade, ocupada com sua própria subsistência e desenvolvimento. A eficácia econômica evidenciava-se na produção de artigos para os mercados interno, regional e externo, que garantiam a maioria dos bens importados, indispensáveis à manutenção e à expansão da rede de missões, graças ao rápido crescimento da população ativa motivada para o trabalho e culturalmente unificada, padronizada em nova função de produção e tecnologia mais eficiente. O sistema de trabalho nas missões seguia um esquema elaborado. A divisão de tarefas dava-se por sexo e idade, em turnos sucessivos. O coletivismo dos guaranis evidenciava-se na moradia, na produção, na repartição dos produtos. Cada missão tinha no seu Conselho o resultado de uma práxis política consensual em que a Confederação das “Pequenas Repúblicas” mostrava-se soberana. Essa forma de administração garantia uma constante ajuda mútua de comunidades fraternas. A garantia da manutenção do bem comum estava no zelo pela eficiente administração da propriedade coletiva. O modo de produção missionário valorizava o destino do resultado em seis utilizações principais: 137 Miranda Neto 1. reposição do que foi consumido; 2. destinado a emergências e eventualidades; 3. expansão da produção; 4.necessidades coletivas (comunidade, escola, saúde, igreja, festividades); 5. intercâmbios entre missões e núcleos coloniais; 6. pagamento de tributos régios. O projeto missionário estava inserido no sistema mercantil espanhol em uma verdadeira aliança entre o estado eclesiástico e a sociedade política dos séculos XVII e XVIII, abrangendo o Vice-Rei, o Governador e o Cabildo indígena, onde o corregedor, o alcaide, os regedores e os chefes de setores se destacavam ao lado dos padres. O excedente da produção coletiva (agropecuária e agricultura extensiva) destinava-se à economia colonial enquanto a pequena lavoura de subsistência alimentar abastecia as famílias, garantindo relativa autossuficiência do modelo. As relações de trabalho eram livres no caso dos artesãos e/ou coletivas no caso da grande produção destinada à exportação (cap. 3). A experiência em distribuir lotes de exploração privada aos guaranis fracassou em parte porque o trabalho em comum nas terras indivisas era mais animado, alegre e melhor executado pois todos colaboravam com entusiasmo e cantorias. Quando tinham de trabalhar em seus lotes individuais “ficavam estendidos o dia inteiro em suas redes, suspensas entre duas árvores”.28 Na verdade, as tentativas de loteamento foram mal planejadas e executadas, não conseguiram prosperar dentro da estrutura econômica guarani, toda voltada à utilização comunitária, sem grande preocupação em obter excedentes de produção. Pouco antes de sua expulsão, os missionários, por pressão externa, tentaram em vão que cada família se autossustentasse subsistindo com lavoura e algumas reses leiteiras e outras utilizadas para tração animal. O artesanato, a manufatura, a grande lavoura e a pecuária extensiva continuaram sendo praticadas coletivamente. Os guaranis mostraram-se indiferentes ao lote vitalício que se tentou introduzir, pois valorizavam a solidariedade e a cooperação. Edificações, moradias e oficinas foram construídas pela própria comunidade que as administrava para uso coletivo. Os ofícios eram exercidos nas oficinas comunitárias, nos pátios dos colégios sob orientação de mestres indicados pelos missionários e aprovados pelos operários. Apenas a fiação, a tecelagem e a cerâmica ficavam a cargo das mulheres. 28 SEPP, Antonio, op. cit. 138 Considerações Finais As embarcações e as carroças também eram comuns a todos. Oficinas, tanoarias (que produziam barris), fundições, moinhos e curtumes produziam para a comunidade. Recebiam em troca gêneros alimentícios distribuídos conforme as necessidades dos “dispensados de cultivar a terra devido ao seu ofício”. Mas todos eram obrigados a trabalhar igualmente. O artesanato era de propriedade individual e permutado entre si. Os preferidos eram os objetos de couro, madeira e cerâmica fabricados geralmente em turnos de 6 horas/dia em média. As roupas eram lavadas em lavanderias públicas. As mulheres trabalhavam em grupo em costura, jardinagem e arranjos domésticos nas varandas de suas moradias, nas horas de folga de suas lides caseiras. Na tecelagem produziam quantidade de tecido suficiente para a demanda interna. Na lavoura só eram convocadas para a colheita: todo o trabalho mais pesado ficava a cargo dos homens. As crianças ajudavam conforme a “pedagogia da alternância”: quando não estavam na escola, colhiam frutos, bagos, raízes medicinais e mel de abelha, sempre enxotando as aves e os insetos. Entretanto, os rapazes nos campos ficavam afastados dos pais “porque estes não sabem vigiá-los” conforme criticava o Padre José Cardiel29. As meninas ajudavam as mães nas tarefas domésticas e aprendiam a fiar, costurar, bordar, cozinhar. Já os rapazes selecionados tornavam-se aprendizes nas oficinas e na horta onde se ministravam as aulas práticas de agricultura, obrigatórias a todos os cidadãos que aprendiam ao menos a semear e a colher determinados produtos da lavoura e da fitoterapia, às vezes até interrompendo as atividades, nas oficinas. Todos participavam das colheitas festivamente e os que mais se destacavam eram premiados (cap. 3). Hortas e jardins bem cuidados e ricos em espécies comestíveis e farmacêuticas tomaram-se o orgulho de muitos jesuítas. Os missionários combatiam tenazmente a ociosidade e conseguiram organizar melhor o tempo dos neófitos, disciplinando o trabalho, o lazer e as cerimônias festivas e religiosas. O talento inato dos guaranis foi despertado pelo trabalho em equipe orientado pelos sacerdotes, inclinados a exercer seu lado paternal e pedagógico. A autoridade era exercida “com doçura e moderação”, em contraste com o paternalismo hipócrita interesseiro das classes dirigentes coloniais. A boa imagem de autoridade, respeito e carinho permaneceu durante muito tempo após a expulsão dos jesuítas. Afeição, confiança, estima decorriam das virtudes e das obras que os padres deixaram, cuja seriedade, amor e irrepreensível candura deram bom exemplo. “Palavras podem convencer mas só os exemplos arrastam!” (Padre Antonio Vieira). 29 CARDIEL, José, S.J. “Breve Relación de las Missiones del Paraguay”, in HERNÁNDEZ, Pablo. S.J. Organización Social de las Doctrinas Guaranis. Barcelona, 1913 (v.2). 139 Miranda Neto Ao viverem com simplicidade um cotidiano sem conforto, demonstrando desapego aos bens materiais supérfluos, mas com muita ordem, disciplina e força de vontade, conseguiam aos poucos, com persistência e carinho, transformar criativamente a arquitetura socioeconômica da rede de núcleos populacionais em uma verdadeira região geoeconômica em franco desenvolvimento integrado. Os missionários sabiam utilizar os materiais disponíveis da melhor forma. Transformavam ócios inúteis em maravilhosos, animados e entusiasmados putiruns30, unindo homens, mulheres e crianças na realização de trabalhos comunitários, acompanhados de palmas, cantorias e brincadeiras em intervalos predeterminados (cap.3). A técnica de cultivo guarani consistia no preparo do solo, na sementeira e na colheita. A limpeza do terreno (capina) era feita à mão pelos meninos após a chuva. A introdução dos bois para puxarem o arado facilitava o preparo do solo sem removê-lo em profundidade assim como na ocasião da limpeza de ervas daninhas o plantio efetivado. A fim de melhorar a fertilidade de solos ácidos, adicionava-se cal para corrigi-los. As transformações eram introduzidas em um contexto sociocultural. À medida que os homens assumiam tarefas na lavoura e na criação de gado e as mulheres cuidavam mais da prole e dos afazeres domésticos, mudava a divisão do trabalho por sexo em algumas tarefas. Incapazes de compreender que uma sociedade indígena pudesse ter incorporado o desenvolvimento tecnológico e aumentado sua produção, viajantes atribuíam o progresso das missões à existência e exploração de minas clandestinas de ouro e prata. Na verdade, o relativo sucesso provinha do uso de tecnologia apropriada na agricultura que propiciou melhores rendimentos dos produtos tradicionais como milho, mandioca, feijão, batata e também algodão e tabaco. A fiação de tecidos de algodão e o beneficiamento do tabaco possibilitaram a exportação de excedentes com valor agregado. Mas foi a venda em grande escala da erva-mate produzida com tecnologia aprimorada pelos jesuítas que se destacou nas relações de intercâmbio dos núcleos produtores. As maiores características das formas de produção e distribuição foram às relações de trabalho cooperativas e de reciprocidade utilizadas com frequência, confundidas pelos estudiosos eurocêntricos com socialismo e comunismo. A originalidade do sistema econômico jesuítico-guarani residia em uma estrutura fundamental indígena que, orientada pelos jesuítas, adotou novas técnicas e tecnologias e se abriu a um discreto 30 V. Glossário. 140 Considerações Finais comércio externo que controlava suficientemente a demanda de produtos vitais. Propriedade coletiva dos meios de produção, formas cooperativas de trabalho, distribuição igualitária do produto final, solidariedade entre grupos e indivíduos até hoje despertam o interesse pela atualidade de sua problemática. A receita e a despesa de cada missão contabilizadas pelos jesuítas constituem rica fonte de informações. Os ofícios das missões ou procuradorias controlavam e coordenavam a redistribuição do excedente dos núcleos. Administravam as compras e as vendas tanto na fase de expansão quanto na crise. Registravam os censos demográficos e econômicos, a formação de capital para além das necessidades básicas imediatas, com autonomia econômica. Os excedentes fomentavam a complementaridade entre os núcleos. Desenvolveu-se tecnologia compatível com os recursos disponíveis e os objetivos ou metas. As cooperativas guaranis constituíam uma banca em que as sobras líquidas (saldos de produtos) financiavam investimentos em estradas, escolas, hospitais e estoques reguladores a fim de enfrentar os usurários. Na venda para comunidades externas às missões, priorizavam bens com valor agregado, estimulando sua produção, como tecidos, móveis, erva-mate beneficiada, couro trabalhado, embarcações fluviais. A cíclica escassez de grãos era enfrentada com o consumo de carne, hortaliças, frutas e mandioca. Houve aproveitamento racional dos recursos agrícolas, pecuários e florestais com desenvolvimento das atividades artesanais e industriais em um ambiente favorável que permitia satisfazer as necessidades dos guaranis, não apenas as básicas, como também as compatíveis com uma vida social, religiosa e cultural intensas. Em uma segunda fase, ocorreu a intensificação do intercâmbio de bens e serviços entre os núcleos, abertura ao comércio regional, a fixação periódica de preços em função de um ajuste entre oferta e demanda que incentivava a produção e assegurava uma distribuição igualitária dos resultados. A principal característica do sistema organizado nas missões era a habilidade e a capacidade de criar uma economia autossuficiente que assegurava bons rendimentos produtivos e ao mesmo tempo autonomia frente aos colonos espanhóis. Oposição e acusações surgiram em consequência dos interesses criados, da fantasia e da suspeita. O êxito da economia das missões comprovava que os guaranis podiam produzir, usufruir de seus bens e progredir sem necessidade de submeterem-se à encomienda. A tecnologia dinamizava a técnica, promovia transformação e incorporava novo conhecimento. Os guaranis já possuíam hábitos agrícolas e conheciam técnicas de lavoura rudimentares. O 141 Miranda Neto desmatamento antes da semeadura era feito com cunhas de pedra e um bastão pesado e afilado na ponta, feito de urunday (Astronium urundeuva), madeira duríssima que servia para cavar sulcos no terreno. O arar era feito habitualmente com o machete31. O homem que sulcava o solo era seguido por mulheres ou garotos que lançavam as sementes no interior dos sulcos. Os europeus agricultores introduziram novas espécies vegetais e animais assim como instrumentos agrícolas para as suas necessidades. A transformação se processava do neolítico à idade dos metais. Cunhas, anzóis, facas eram adquiridos em permuta. Os nativos colhiam a quantidade necessária de alimentos para o consumo imediato. O restante era armazenado no próprio solo. De regra, não faziam provisões para o ano. A introdução do gado menor – suíno, ovino, caprino – não causou alterações significativas de tal modo que é pouco mencionada nos relatos. O gado bovino, introduzido em 1555 no Paraguai, foi também em pequeno número e seu preço alcançava níveis inimagináveis. De 1569 a 1576, o gado trazido do Alto Peru através de Tarija fez baixar o custo. A multiplicação do gado bovino ocasionou protestos por ser descontrolada e prejudicar os cultivos nos pueblos indígenas. Em 1611, o padre Diogo de Álfaro estabeleceu limites nesta expansão, conseguindo afastar as chácaras dos colonos das aldeias e roças guaranis, criando uma faixa de légua a légua e meia separando umas das outras. Os jesuítas que se destacaram nesta época foram Roque González de Santa Cruz, Juan de Cárdenas, Diego de Torres, Oñate e Mastrilli Durán que compartilhavam a dedicação aos índios, valorizavam a educação e doavam recursos para melhorar a capacidade produtiva das missões, dos colégios e ofícios. Dezesseis anos antes, no Peru, o Padre José de Acosta procurou incentivar a produção como visitador em colégios com dívidas e “muita fome por granjas e lavouras”. O aproveitamento dos prados foi proporcional às oportunidades e aos riscos de outras produções alimentícias. O padre Montoya introduziu o gado vacum em Guairá a partir de uma ilha fluvial (aluvial) de Paranapané. Deste núcleo inicial desenvolveu-se a criação bovina na serra de Tape que originou a Vacaria do Mar, em 1670 (cap. 3). No último decênio do século XVII, foi criada a Vacaria do Rio Negro (no Norte do afluente do Uruguai e do Cuareím), vizinha à missão de Yapeyú. Assim, o gado selvagem tornou-se mais acessível às missões, menos trabalhoso ao rodeio e ao transporte para a engorda complementar 31 Terçado ou facão de mato. 142 Considerações Finais nos campos de pastagem. Em 1705, prevendo a exaustão da Vacaria do Mar e da Vacaria do Rio Negro, esgotadas por aqueles que lucravam com a exportação de couros, sebos e graxas, o Padre Provincial Lauro Nuñez determinou a criação da Vacaria dos Pinhais (60 léguas cercadas de serras e bosques espessos) dotada de mananciais e ricos pastos. Na 1ª fase, mais de 100.000 reses percorreram 200 léguas para o norte em diversas etapas. A trágica realidade foi que, em grande parte, as missões não chegaram a desfrutar desta reserva de gado, tão oportuna quanto abundante durante a crise alimentar de 1733-1740, devido ao saque para um comércio depredador empreendido por colonos e funcionários corruptos. A perda das prósperas vacarias estimulou mudanças tecnológicas em 1740: seleção de grandes estâncias para a criação de gado assim como o fomento de estâncias menores segundo as possibilidades de cada missão. O gado rosilho, de origem andaluza, com carcaças bem desenvolvidas, destinado mais ao abate do que ao abastecimento leiteiro, capaz de se alimentar de pasto natural, encontrou nas planícies do Uruguai uma área propícia, as estâncias de Yapeyú e São Miguel, com rebanho em expansão cujo abate só se efetivava após os oito anos de idade. A taxa de nascimentos por ano, de 25% sobre o total do rebanho, superava os 20% das fazendas “crioulas”. Yapeyú podia abastecer as missões do Paraná a partir de suas estâncias nas duas margens do rio Uruguai. Em 1750, a grande estância de São Miguel, que media 40x20 léguas, chegou a reunir mais de 200.000 reses. Ainda hoje podemos descobrir vestígios de currais rústicos de pedras completados com estacas toscas (tocos ou esteiotes) que retinham o gado para sua posterior distribuição. A uns 250 km, ao sul de São Miguel, no atual município de Lavras do Sul, chama a atenção o “Vale dos Padres da Companhia”, uma drenagem de duas milhas e meia que criou prados baixos onde vicejavam pastos permanentes, excelentes para a engorda do gado ameaçado pela seca. A inovação técnica foi fruto da soma de esforços e de muitos anos de planejamento, avanços e recuos (cap. 6). A transferência das missões para a margem oposta do rio Uruguai, longe de resolver o problema do trânsito ilegal de mercadorias, antes realizado pela Colônia do Sacramento, agravou o contrabando de produtos hispânicos através de várias passagens via Sete Povos das Missões, a partir daí de domínio luso-brasileiro. “Fechou-se uma janela e abriram-se todas as portas”. Para os guaranis, a transferência foi um desastre. Representou a destruição do trabalho de gerações e a deportação de mais de 30.000 pessoas. Estâncias e fazendas de gado, yerbales e ricas florestas foram invadidos e saqueados (cap.7). 143 Miranda Neto Em 1801, a conquista definitiva das missões pelos luso-brasileiros procedentes de São Paulo consolidou-se pelo contrabando do gado guarani com a conivência das autoridades espanholas que lucravam recebendo comissões. No cotidiano da missão, praticamente todas as atividades eram vinculadas ao culto religioso. A distribuição de alimentos, de ferramentas e de tarefas efetuava-se após as orações diárias, assim como a ração de erva-mate que, depois de preparada, era ingerida antes de iniciar-se a jornada de trabalho. O padre e o regedor determinavam as tarefas do dia, convocavam os trabalhadores para as sementeiras ou para as oficinas e obras públicas, conforme plano determinado e época do ano. Enquanto a maioria da população ativa estava envolvida com as suas atribuições, os padres visitavam os doentes, as salas de aula e as oficinas, orientando e fiscalizando a atuação dos respectivos responsáveis e o desempenho da coletividade. O controle era também executado pelos fiscais de quadra, responsáveis por cada setor de moradores cuja frequência às missas, aos trabalhos e às aulas era rigorosamente registrada e cobrada. Oração, trabalho e lazer estavam organizados ritualmente pelo tempo. Todas as atividades obedeciam a determinado horário. Estimulava-se o casamento precoce e a escolha do parceiro e a iniciativa muitas vezes era da jovem. Os nubentes recebiam um belo reforço na cota de alimentos, além da rede de dormir e a designação da moradia. A cerimônia coletiva apresentava toda pompa e brilho, com a igreja festivamente decorada para receber os casais ao som de cânticos e melodias sacras que valorizavam o evento (cap. 4). Como os Vice-Reis e os governadores regionais dependiam das tropas guaranis para sua segurança, os missionários detinham o poder para acompanhar o cumprimento das leis que garantiam a liberdade dos índios, impediam a oferta de bebidas alcoólicas e a própria entrada dos colonos nas missões. Como a legislação europeia do século XVII protegia os autóctones como se fossem “incapazes”, na verdade servia aos propósitos dos jesuítas. Embora considerados cristãos, na prática, os indígenas continuavam a ser tutelados como seres humanos com capacidade intelectual limitada. A partir do século XVI, a política espanhola de segregação no Novo Mundo teria razões humanitárias. As demais etnias estavam impedidas de morar nas aldeias guaranis que apoiavam o modelo de segregação relativa. As devastadoras epidemias de 1576 e 1579 ajudaram a reforçar esta política: temia-se a promiscuidade e o contágio por doenças para as quais o autóctone não apresentava resistência. 144 Considerações Finais Algumas construções resistiram a temporais e ventanias durante mais de 150 anos e eram bem adaptadas às necessidades coletivas e ao clima local. Sua vitalidade residual, a energia nelas incorporada até hoje impressiona, nas ruínas das missões onde formigas, cupins, umidade e descaso contribuíram para dilapidar o patrimônio ímpar, já abalado por tantos assaltos e incêndios. Os pisos das igrejas cederam e as paredes se inclinaram por falta de suporte dos alicerces minados pelos insetos com seus labirintos de túneis de comunicação. Visitantes se impressionavam com a higiene, o asseio (mediante frequentes banhos de rio) e a saúde dos índios. Sob este aspecto, as missões destacavam-se das cidades hispânicas sul-americanas. Em Santo Inácio-guaçu há restos de um túnel de 2m x 1m que conduzia a água do rio em baldes suspensos por um sistema de roldanas. Com frequência igarapés eram desviados para higienizar os toilettes, reduzindo o risco de contaminação. Era habitual um dos padres residir na sede da missão enquanto o outro jesuíta visitava os doentes, trazia neófitos para a catequese e rezava missa nas capelas das estâncias. O missionário recém-chegado tinha como primeira tarefa aprender a língua durante cerca de três meses para ser examinado por uma banca de quatro padres apontados pelo Provincial. Só então era considerado apto às demais funções. Quando longas distâncias podiam ser vencidas por água, os missionários adaptavam as canoas indígenas a suas necessidades. Cerca de duas mil embarcações trafegavam no rio Paraná e outras tantas no Uruguai e no Paraguai. Por terra, os padres mais velhos viajavam em carruagens puxadas por bois, os novatos montavam a cavalo. As estradas de terra eram razoavelmente conservadas. Nos deslocamentos mais demorados, levavam galinhas para garantir a alimentação durante a viagem. As principais rotas se dirigiam para Assunção, Corrientes, Yapeyú e Candelária. No Alto Uruguai, havia oito postos equipados com sentinelas, mensageiros e cavalos a postos para emergências. Havia caminhos ainda bem perigosos, sujeitos a feras, emboscadas de índios hostis, conhecidos como trechos evitáveis pelo elevado número de ocorrências. A manutenção das vias de acesso era compartilhada pelas reduções beneficiadas, o que incluía o reparo de pontes e aterros (cap. 6). Ao fim da brutal ação militar conjunta luso-espanhola para expulsar os autóctones, o processo colonizador acabou aniquilando e suplantando os ideais missioneiros. A imagem-síntese que permaneceu após a hecatombe32 foi a de que algumas crianças guaranis sobreviventes 32 Imagens inicial e final do filme “A Missão” de Roland Joffé. 145 Miranda Neto voltaram à missão devastada pelo massacre e recuperaram um violino de fabricação guarani, encantado objeto abandonado que flutuava ao léu da correnteza do riacho... Assim como no início do processo evangelizador, os jesuítas atraíam os indígenas tocando flauta, ao final a tragédia da brutal conquista militar luso-espanhola pode ser simbolizada por outro delicado instrumento abandonado intacto em meio à destruição e devastações gerais, salvo de seu triste destino pelas inocentes e puras mãos de uma criança guarani que ainda valorizava o que seus pais tinham produzido com tanto talento e carinho com o objetivo de continuar encantando futuras gerações. A atração que a música e os cânticos sacros em latim exerciam sobre os guaranis foi observada pelos jesuítas que utilizaram muito o recurso de valorizar o acompanhamento metódico em seus deslocamentos e no dia a dia. A princípio desconfiados e arredios, os ameríndios deixaram-se enlevar pelos sons celestiais e, entre curiosos e maravilhados, aproximavam-se fascinados. Havia um quê de sobrenatural e universal nesta forma de comunicação. Atraídos pela música atiravam-se à água e perseguiam nadando o barco mágico que conduzia os missionários. Arcos e flechas escapavam-lhes das mãos, tal a admiração e encantamento. Os missionários sentiam-se na obrigação de traduzir para o guarani o que haviam cantado, despertando-lhes o interesse de tal modo a se comprometerem a repetir para os mais velhos da tribo as canções e seu significado. Os padres agora estavam convencidos do efeito mágico dos corais sacros e iriam tirar o máximo proveito desta constatação: quaisquer resistências à evangelização e ao ordenamento disciplinar dos afazeres diários poderiam ser quebrados pela música celestial e pelo badalar dos sinos. Os próprios talentosos índios iriam tornar-se aplicados discípulos dos mestres de música missionários e os mais jovens começaram a participar dos corais religiosos. Cantar no coral passou a ser dever do cidadão. Praticamente todas as atividades nas missões desenvolviam-se ao som de acompanhamentos musicais. Tambores acordavam, sinos convocavam para as missas em que todos cantavam, corais e instrumentos musicais coloriam de sons a dura labuta diária (cap. 5). Os jesuítas utilizavam com habilidade o recurso das frequentes procissões e festas religiosas para atrair o gentio. Cada missão possuía seu santo padroeiro em cujo dia era feriado e todos regozijavam, extravasando sua alegria em fogos de artifício. A população se reunia na primeira missa matutina e os missionários cuidavam para que todos se sentissem partícipes do ritual festivo e da administração da comunidade, envolvidos com o sucesso da missão. Os cultos religiosos eram celebrados com acompanhamento musical composto de flauta, oboé, fagote, alaúde, harpa, 146 Considerações Finais corneta, clarineta, violino e viola. Após a missa, as danças começavam na praça defronte da igreja. O principal objetivo dos Exercícios Espirituais, como que considerada uma “pedagogia do sobrenatural”, seria regrar a vida do fiel cristão para que participasse regularmente dos rituais religiosos e dos cultos na Igreja, convivendo na comunidade e considerando-se integrado a ela. O desenvolvimentos espiritual do exercitante tenderia a ultrapassar suas forças naturais ao tentar descobrir a vontade divina na disposição de viver para a salvação de sua alma. O progresso espiritual dependeria da vontade de Deus e do seu comportamento como cristão. A lenda de Pay Zumé – identificado pelos jesuítas como São Tomé – teria predisposto os guaranis a acolherem os padres com hospitalidade, aceitando ser “reduzidos” e governados pelos missionários. Eles os conduziriam à “terra sem mal”, livrando-os da futura destruição do seu território, prevista na lenda. Os padres conseguiram aos poucos mesclar elementos cristãos às crenças guaranis e, com habilidade e competência, curar os enfermos e ministrar rituais, rivalizando com os pajés (cap. 5). A evangelização foi facilitada pelo conhecimento da língua guarani por parte dos padres que, entretanto, não ensinavam o espanhol, alfabetizando os indígenas no seu próprio idioma. Os jesuítas utilizaram-se também da música, dos cânticos sacros, das representações teatrais, da dança – ocasião em que os neófitos voltavam às suas origens, pintando o rosto, o corpo e mascarando-se para representar seus personagens – para cativá-los e, aos poucos, introduzi-los à cultura ocidental e ao cristianismo. Artes plásticas como escultura, pintura, cerâmica, artesanato contribuíam à complementação pedagógica enriquecedora da personalidade, para quebrar a monotonia do ritual religioso e o cotidiano das tarefas, pois o indígena se aborrecia e se cansava logo com os demorados sermões, demonstrando desinteresse e incapacidade de compreender o que os padres tentavam lhes explicar. As peças teatrais giravam em tomo da eterna luta entre o bem e o mal, o pecado e a salvação (cap. 5). O projeto da missão cristã na Província Jesuítica do Paraguai pretendia ser a conversão a novo paradigma de vida onde se introduziam elementos ainda que permanecessem muitos dos antigos, se bem que com novas relações. A originalidade das missões guaranis estava no modo concreto como os elementos se relacionavam, como se ajustavam os diversos modos de ser guarani à nova realidade. Havia como que uma intercomunicação de modelos, uma eficiente dialética com permanente feedback, uma cotidiana vontade de efetivar na prática, de realizar localmente o supremo projeto de construção de uma alternativa mais 147 Miranda Neto humana, democrática e comunitária, cuja eficiência se comprovou através do excelente nível de comunicação alcançado com o domínio linguístico, tanto pelos missionários quanto pelos guaranis que chegaram a produzir textos e cartas veementes dirigidas às autoridades espanholas, civis e eclesiásticas (cap. 5). Desde o início, o aldeamento jesuítico foi uma prática, teologicamente orientada, que sofreu contínuos reajustes e adaptações à medida das necessidades locais e dos interesses dos “jesuítas da missão”, conhecedores dos índios e das vicissitudes da catequese, em contraste com os objetivos dos “jesuítas do colégio”, mais teóricos e ligados aos planos de Roma. Havia, portanto, divergências sérias no interior da Companhia de Jesus. O que parece bem claro é a persistente adequação pragmática do modelo de catequese de início adotado nas primeiras aldeias até alcançar solução compatível com a mais eficiente utilização da estrutura tecnológica e do arcabouço teórico disponíveis (cap.5). Com o passar dos anos, tornou-se evidente a incompatibilidade entre a missão populosa e a técnica tradicional habitual autóctone (guarani). Houve a preocupação com melhor rentabilidade e conservação ambiental ao preservar algumas árvores para sombrear, deixar o solo úmido sob os bosques conservados semi-intactos. Os troncos derrubados eram selecionados para carpintaria civil/ religiosa e naval. Evitava-se a perda inútil com queimadas descontroladas. Um desafio era a escolha do sítio para sede da missão: as condições propícias deviam atender a duas culturas diversas com objetivos que deveriam tornar-se convergentes. Mas o fundamental era o fácil acesso aos abundantes recursos naturais e a posição estratégica, a salvo de investidas hostis inesperadas. E que permitisse a sedentarização das tribos. A ventilação era requisito valorizado pois garantia as condições salutares da região escolhida. A temperatura em geral era amena e não sofria grandes oscilações durante as estações do ano. Os padres substituíram as cunhas de pedra por cunhas de ferro, úteis também para construir canoas. Introduziram ainda espécies vegetais e animais diversificadas em solos férteis selecionados, isentos de geadas e secas, o que permitiu espetaculares inovações (missões de Ipanápané, Loreto e Santo Inácio em Guairá). Os padres desenvolveram chácaras (granjas) experimentais com espécies-chave para alimentação, vestuário e saúde (plantas medicinais). A rotação de culturas e pastagens ocorria de 3 a 5 anos conforme a topografia e a fertilidade do terreno. Em meados do século XVII, os jesuítas, insistentemente questionados por suas múltiplas atividades financeiras e por não 148 Considerações Finais observarem as limitações impostas pelo Papa, decidiram enviar o padre Francisco Burgés como procurador à Congregação de 1670 em Roma, a fim de rebater as acusações como visitador, com plenos poderes para esclarecer a situação e providenciar medidas necessárias para contornar o problema. A partir deste episódio resultaram fecundos empreendimentos econômicos concretizados pelos missionários: entre 1680 e 1720 produziu-se a consolidação da infraestrutura construtiva das missões, destacando-se o Padre Lauro Núñez, responsável pelo intensivo apoio em efetivar a realização deste extraordinário esforço coordenado que dotou a maioria dos povoados missioneiros das condições mínimas indispensáveis para enfrentar as dificuldades que advieram no decorrer do século XVIII (cap. 3). Tornou-se vital para o progresso da Companhia de Jesus o desenvolvimento de uma mentalidade voltada para o trabalho eficiente, o espírito de equipe, o emprego de uma rede de ofícios tanto para o cotidiano da missão quanto para as diferentes profissões mecânicas e manufatureiras. Os próprios missionários foram obrigados a aprimorar suas habilidades e a empregá-las nas atividades indispensáveis à sobrevivência e à manutenção do bem-estar da comunidade. Pouco a pouco, as novas técnicas de produção iam se difundindo entre seus discípulos e os neófitos envolvidos nas atividades econômicas coloniais. Como à época, artesãos, artífices e artistas eram escassos, a empresa missionária revelou-se competente difusora de nova tecnologia ao se dedicar à formação de mão de obra qualificada indispensável ao desenvolvimento regional do sistema missões, necessitado de impulso dinamizador através de inúmeras atividades econômicas diversificadas, utilizando diferenciadas funções de produção. Os ofícios constituíam o início do processo de conversão para o sistema de trabalho considerado pelos jesuítas como “modelo civilizador” na colônia (cap. 6). Gradualmente inserido à colônia luso-brasileira, o território das missões foi transformado em módulos de propriedade privada após a expulsão dos jesuítas. Os guarani-missioneiros, egressos dos Sete Povos e estabelecidos em aldeamentos no Rio Grande de São Pedro, enfrentaram três opções de “projetos civilizatórios”: o oficial do Diretório Pombalino, o da aristocracia sul-rio-grandense ligada aos pecuaristas luso-brasileiros e o das autoridades locais, todos interessados na melhor utilização da mão de obra disponível, sempre do ponto de vista de seus objetivos mais imediatos. Uma sutil diferença destacou os aldeados gaúchos (sociedade “crioula”, na periferia das missões) a quem foi prometida garantia de sobrevivência nas estâncias já de seu domínio anterior (cap. 7). 149 Miranda Neto A consolidação da Colônia do Sacramento, defronte de Buenos Aires, sob administração luso-brasileira afrontava os interesses hispânicos de duas formas. Estrategicamente enfraquecia o controle militar sobre o Prata e economicamente favorecia o contrabando de riquezas, quebrando o monopólio da Espanha no comércio externo de produtos regionais. A pressão dos contrariados comerciantes espanhóis sobre a Coroa, no sentido de reassumir o controle do fluxo econômico via Buenos Aires e do Marquês de Pombal para afastar os jesuítas do comando político-econômico da República Guarani, viabilizou a assinatura do Tratado de Madri. Entretanto, cumpri-lo foi difícil (cap. 7). Como os guaranis reagiram, recusando-se a desocupar as sete missões, e os padres os apoiaram, reforçaram-se os argumentos favoráveis à sua expulsão. Os superiores protestaram contra o tratado que seria lesivo aos próprios interesses da Espanha. Argumentavam que os guaranis haviam prestado inúmeros serviços defendendo os hispânicos dos invasores luso-brasileiros, como a manutenção das Províncias do Paraguai e do Prata sob domínio espanhol e salvando Buenos Aires do cerco dos ingleses ao disponibilizarem uma frota em apoio ao governador, transportando em segurança o exército de Corrientes a Buenos Aires que havia sido cercada pelos britânicos em 1667 e 1671. Assunção foi salva dos guaicurus e mocovis, quando o Paraguai sofria graves desordens, em 1734 e 1736. Até a autonomia da República Guarani em relação à Espanha fora invocada como argumento da não obrigatoriedade de se cumprir o Tratado de Madri. Só anos depois os jesuítas conseguiram persuadir os guaranis remanescentes a se transferirem para a margem direita do rio Uruguai, talvez receosos de acrescentar mais ódio e intriga às já problemáticas relações entre a Corte e os missionários. Entretanto, esta tentativa de aplacar a ira de Pombal “foi um erro que, em lugar de preservá-los, acelerou sua queda”33, pois teria evidenciado sua fragilidade e ajudado a desorganizar a Confederação das Missões. Apesar de a maioria dos padres anuírem a contragosto com a transferência, os jesuítas foram denunciados como rebeldes que instigavam os povos à insurreição. De fato, alguns, de início, pregaram o cumprimento das resoluções do Tratado, mas foram contestados pelos corregedores-índios que se opuseram veementemente. No final, a resistência dominou a reação jesuítico-guarani que em breve iria se transformar em tragédia não só dolorosa pelas perdas humanas como também dispendiosa para as Cortes, tanto da Espanha como de Portugal, cujas finanças já estavam comprometidas com a reconstrução de Lisboa, destruída pelo terremoto de 1755. 33 LUGON, Clóvis, op. cit. 150 Considerações Finais Na verdade, a resistência guarani acabara salvando para a Espanha, durante um período, vasto e rico território, “verdadeira muralha” contra as ambições luso-brasileiras sobre o Paraguai e as minas de Potosí. Após anos de combates e sofrimentos, as diretrizes dos padres, sua disciplina e organização estavam pouco a pouco sendo esquecidas, muito embora tivessem recuperado, em parte, o antigo esplendor econômico. Durante o interregno 1767-1768, jesuítas e corregedores das missões se empenharam em convencer a população da inutilidade de persistir na resistência. Com o decreto de janeiro de 1768, de Carlos III, foi efetivada a expulsão dos missionários concretizada a 22 de julho, à força: 150 padres foram presos nas províncias do Paraguai, Prata e Tucumã e levados para Corrientes, Santa Fé, Córdoba, Montevidéu e Buenos Aires. A 3 de agosto, todos os jesuítas tinham sido expulsos das colônias espanholas. O diário do padre Peramás relata os horrores a que foram submetidos durante a prisão, sem as mínimas condições de sobrevivência condigna34. Para agravar a situação, a pena de morte ameaçava qualquer pessoa que se comunicasse com os jesuítas neste período. Entre 1767 e 1769, mais de 2.337 padres foram transportados para a Europa, além de 200 ou mais que acabaram falecendo em consequência das péssimas condições do cárcere, prolongado por 2 a 3 anos sem julgamento. A Espanha se recusou a recebê-los e tiveram de se deslocar para a Itália. Ao largo da costa, aguardaram atracação sob violentas tempestades até que a Córsega finalmente concordou em recebê-los. A 21 de julho de 1773, o Papa Clemente XIV, influenciado pela violenta campanha contra os jesuítas, focada na ousada autonomia da República Guarani, resolveu suprimir a ordem assinando o Breve Dominus ac Redemptor. Antes da expulsão, em 1767, em todo o Paraguai encontravam-se apenas 78 missionários (cap. 7). A experiência missioneira evidenciou a importância da contribuição dos valores autóctones à construção de nova civilização em que modernidade, progresso e desenvolvimento – categorias na época desconhecidas e ainda ignoradas – estavam latentes com toda possibilidade de demonstrar sua potencialidade. Integração regional, autossustentabilidade, desenvolvimento ambiental eram na verdade praticados no dia a dia sem sequer terem sido teorizados e transformados em metas econômico-ecológicas de administração pública. O mais curioso é que muitos destes conceitos surgiram do amálgama de valores já consolidados no cotidiano indígena tribal com os valores introduzidos 34 HUONDER, Padre, S.J. Katholische Missionen. Freiburg, 1900. 151 Miranda Neto pelas mais avançadas tecnologias e modelos gerenciais das elites intelectuais europeias. O sistema missões contrariava os objetivos dos colonos, mas não os da colonização espanhola. Ao aceitarem os rituais católicos, os guaranis não compactuavam com a superficialidade e hipocrisia da “ética religiosa” mas compreendiam que seria preferível deixar-se maravilhar pelo colorido religioso-místico-musical. Desse modo, garantiam sua sobrevivência e reprodução, conseguindo incorporar valores muito caros ao seu íntimo à lógica organizacional jesuíta, indispensável à nova racionalidade de administração do tempo para o máximo de produtividade dos núcleos populacionais. O idioma guarani era por alguns considerado como um dos mais evoluídos pois possuía tal riqueza e sonoridade que encantava os estudiosos e todos que usufruíam de sua complexa harmonia e capacidade descritiva dos fenômenos naturais. Considerado onomatopeico, expressava toda a biodiversidade da natureza exuberante em movimento. Seria a língua mais apropriada para dialogar com o ambiente natural e a primeira via de contato entre jesuítas e autóctones, meio de comunicação para entender e transmitir valores, captar o sentido das atitudes e reações. Os jesuítas tentaram entender, estudaram, analisaram e explicaram gramaticalmente esta língua desconhecida e a divulgaram no exterior. Desde o início a respeitaram e a utilizavam como meio de comunicação no dia a dia das missões. O alcance de sua área de abrangência cultural estendia-se desde o Caribe até o rio da Prata. Os outros meios de atração e comunicação foram a música e o ritual religioso. Hoje o arqueólogo descobre, através dos objetos, o homem que os produziu. Dos acampamentos romanos, das cidades da Antiguidade aos mosteiros e abadias medievais, a herança europeia e a herança indígena (ocas) construíram cidades coloniais e missões que desenvolveram um modo de ser todo característico conforme os conceitos de espaço e organização dos colonos jesuítas e dos guaranis na América espanhola. Houve um acúmulo desigual de espacialidades. De início, deve-se considerar o espaço natural com toda sua biodiversidade, seu clima e sua inter-relação com o homem que acaba produzindo o espaço construído, o qual induz às projeções mentais do espaço pensado ou espaço ideal projetado, resultado da avaliação dos erros e acertos constatados. Cada povoado guarani funcionava como uma célula do sistema de aldeias, teoricamente subordinado à coroa espanhola, administrado pelos padres e caciques. Não houve hegemonia entre eles e a distância de um povoado para o outro não ultrapassava um dia de marcha, facilitando 152 Considerações Finais a comunicação, o transporte e o socorro mútuo. O modelo urbanístico, baseado nas ordenações de Felipe II e inspirado nos conjuntos de mosteiros autossuficientes da Idade Média baseava-se em uma grande praça; centro da vida comunitária onde despontavam a Igreja representando o poder religioso e o Cabildo, o poder civil. No entorno ficavam as habitações dos neófitos cujo acesso se dava por passarelas cobertas ao abrigo do sol e da chuva. Em Candelária, na Biblioteca do Superior das Missões que atendia os 30 pueblos em empréstimo de livros, segundo o inventário de 1768 figuravam 102 livros “matemáticos” que enumeravam técnicas e tecnologias apropriadas e estudos quantitativos do mundo físico; eram volumes interdisciplinares úteis para a agricultura, a medicina, a astronomia, a meteorologia, a arquitetura. A autonomia de cada missão com seus recursos humanos e naturais estimulava a criatividade, a especialização compatível com uma prudente diversidade de produtos e serviços e a adaptação tecnológica. As atividades comuns a vários pueblos, o intercâmbio e a solidariedade ante as emergências estimulavam a difusão intensa de conhecimentos e habilidades técnicas. “Quantos contribuíram ao desenvolvimento de técnicas e tecnologias apropriadas aos pueblos guaranis! A maioria permanecerá no anonimato, até o dia em que veremos publicada a rica documentação ainda inédita sobre as diversas artes aplicadas nestes pueblos”35. Desenvolveu-se uma tecnologia própria suscetível a novos aperfeiçoamentos. Deve-se ressaltar que a maioria dos jesuítas da província do Paraguai no século XVIII nasceram em terras americanas. A comunicação entre ofícios, colégios, residências e missões facilitou a construção de original e eficiente tecnologia de sobrevivência e desenvolvimento regional sustentável (Cap.6). A respeito da distinção entre jesuítas germânicos e latinos, cumpre esclarecer: antes de 1871 não existia um Estado alemão único. A Assistência Alemã da Companhia de Jesus incluía missionários holandeses, alemães, suíços, austríacos, húngaros, poloneses e tchecos, correspondentes aos reinos da antiga dinastia austro-húngara dos Habsburgos e os territórios do Sacro Império Romano-Germânico. Eles só puderam vir para as Américas após 1648, ao término da Guerra dos Trinta Anos na Europa (Paz de Westfália), igualmente porque Portugal e Espanha impediram a entrada de estrangeiros em seus domínios no início da colonização, sobretudo na área das missões. Quando, enfim, foi permitida a participação dos não ibéricos, 35 MASY, Rafael Carbonell de, op. cit. 153 Miranda Neto ela, contudo, não poderia ultrapassar um quarto do total de missionários. Mas foram eles que produziram uma “revolução tecnológica” (cap.6). A redistribuição das missões entre as jurisdições civil e eclesiástica gerou conflitos de competência. Em 1617 houve a separação da província do Rio da Prata da Província do Paraguai e em 1620 ocorreu a subdivisão do bispado. De 1695 a 1715 dois supervisores subordinados ao Provincial eram assessorados por quatro consultores no Paraná e quatro no Uruguai. Havia quatro superintendentes para situações de conflitos no alto rio Uruguai, no baixo Uruguai, no Uruguai oriental e no alto Paraná, onde ocorreu a instalação das primeiras missões, todas as quatro consideradas zonas de fronteira sujeitas a iminente ameaça externa. Em 1727 o critério geográfico de divisória de águas (entre os rios da bacia do Paraná e os da bacia do Uruguai) foi adotado para repartir competências: treze missões eram politicamente subordinadas ao Paraguai (Assunção) e dezessete a Buenos Aires. O padre superior deveria residir em Candelária, localizada em ponto estratégico acessível a todos (cap. 7). Política a administrativamente, as missões subordinaram-se a Buenos Aires embora do ponto de vista eclesiástico estivessem repartidas entre Assunção e Buenos Aires. Um superior da Província de Misiones poderia coordenar a Confederação das Missões enquanto a administração interna dos pueblos era secundada pelos curas. A comercialização da produção ficava a cargo das procuradorias (ofícios) de Santa Fé e Buenos Aires. A integração e organização interna foi seriamente afetada pela crise pós-expulsão dos jesuítas, concluída em julho – agosto de 1768. O governador de Buenos Aires, Francisco de Paula Bucarelli (1766-1770) tentou reorganizar o espaço das missões (cap. 7). A Companhia de Jesus sabia utilizar-se da mídia para divulgar seus documentos e sua ação evangelizadora de modo eficiente e inédito, no contexto histórico. As Cartas Ânuas constituíram um verdadeiro fenômeno de marketing político, uma das primeiras campanhas propagandísticas dos tempos modernos. Seus membros eram incentivados a periodicamente escrever cartas a seus superiores relatando suas atividades e opiniões. A Companhia tornou-se, em pouco tempo, empresa internacional tanto pelo destino de suas ações quanto pela origem de seus membros que deveriam “estar unidos entre si e com a cabeça”. No decorrer de suas conquistas e realizações, os escravos negros tornaram-se fundamentais à manutenção e ao crescimento econômico patrimonial dos colégios e empresas da Companhia de Jesus, o que maculou profundamente o sentido ético de sua atuação. Sem a escravização 154 Considerações Finais dos africanos seria impossível montar a empresa da colonização, um dos maiores empreendimentos do capital comercial na época. A Colonização é a resolução de carências e conflitos da matriz e uma tentativa de retomar, sob novas condições, o domínio sobre a natureza e o semelhante que tem acompanhado universalmente o chamado processo civilizatório. Constitui um projeto totalizante com o objetivo de ocupar um novo chão, explorar os seus bens, submeter os seus naturais. Novas terras, novos bens abrem-se à cobiça dos invasores. Reaviva-se o ímpeto predatório e mercantil que leva à aceleração econômica da matriz em termos da acumulação de riqueza. Pode-se calcular o que significou para a burguesia europeia, em plano mercantilismo, a maciça exploração açucareira e mineira da América Latina. A colonização do Novo Mundo atuou como um agente modernizador da rede comercial europeia durante os séculos XVI, XVII e XVIII. Nesse contexto, a economia colonial foi efeito e estímulo dos mercados metropolitanos na longa fase que medeia entre a agonia do feudalismo e o surto da Revolução Industrial36. Ao contrário dos bandeirantes, cujo objetivo era tão somente o apresamento do índio (e não a expansão territorial), a empresa das missões visava também a ocupação física como estratégia geopolítica de caráter permanente pela sua própria finalidade. O que “a Companhia de Jesus realizou com singular pertinácia e sem nenhum sentido nacional”37. Quando houve “o refluxo jesuítico para a mesopotâmia Paraná-Uruguai e para o Paraguai, deixou vazio o território em que se haviam articulado as missões”, sem ocorrer na ocasião nenhuma tentativa, por parte dos paulistas, de ocupação do território recém-desocupado. Nas planícies sulinas, entretanto, onde as missões mantinham suas estâncias, o gado encontrou um meio físico extremamente favorável e nele se multiplicou à lei da natureza. Foram estes os rebanhos que, nas Vacarias do Mar e dos Pinhais, os paulistas encontraram, em época posterior, servindo de base ao povoamento do continente de São Pedro. 36 37 BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização. São Paulo: Cia. das Letras, 1995. SODRÉ, Nelson Werneck. Formação Histórica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1968. 155 Apêndice Teórico – Metodológico Alguns modelos de desenvolvimento regional podem ser identificados na experiência de cerca de século e meio do sistema Missões: – Dependente de crescente disponibilidade de recursos em que a oferta abundante provocava sua própria demanda (A mudança técnica utilizou conhecimentos já existentes enquanto que a mudança tecnológica introduzia novos conhecimentos). – Dependente da expansão dos mercados com enfoque keynesiano. – Dependente do planejamento do espaço geográfico e da distribuição dos recursos. – Dependente das instituições com propósito comum na resolução de conflitos e conforme normas de comportamento (A mudança institucional contribuiu para o desenvolvimento rural dos pueblos guaranis)38. A empresa evangelizadora nunca se separou da empresa dedicada ao desenvolvimento das comunidades rurais. O espiritual era indissociável do temporal. A gradual formação de populações com bem-estar físico e espiritual simultâneos eram requisitos necessários 38 MASY, Rafael Carbonell de. Estratégias. 157 Miranda Neto à catequese e à colonização dos pueblos. Prioridades na designação de pessoas, recursos e atividades foram atribuições da Companhia de Jesus que agia de acordo com diferentes grupos de ameríndios, organizações políticas, eclesiásticas e missionárias envolvidas nas ações econômicas e sociais no novo continente. Alguns questionamentos, entretanto, precisam ser colocados. As comunidades guaranis teriam conseguido participar ativamente da gestão dos programas em seu benefício? Os resultados corresponderiam às expectativas? Qualquer pesquisa imparcial e objetiva necessita libertar-se de todas as formas de preconceito. As estratégias de desenvolvimento aperfeiçoaram a capacidade produtiva e de serviços de cada missão. Para viabilizá-las, comprometeram recursos a longo prazo. Expectativas e resultados em dois contextos institucionais distintos precisam ser comparados. Muitas estratégias de desenvolvimento rural de ontem repetem-se hoje e, assim, tornam-se pedagogicamente reveladoras. As intrigas políticas, calúnias e acusações contra os jesuítas na época de sua expulsão das possessões portuguesas e espanholas prejudicaram até a recuperação de farta documentação sobre as missões guaranis. A avaliação de evolução das estratégias de desenvolvimento socioeconômico das missões da Província Jesuítica do Paraguai precisa basear-se nas suas fontes: Manuscritos da Coleção de Ângelis, Cartas Ânuas, relatos dos jesuítas, Atos das Congregações Provinciais, Documentação dos Ofícios de Missões e bibliografia básica indispensável. Além das manifestações dos autóctones que, por meio de suas atividades, comportamentos e reações, procuravam evidenciar sua criatividade e sensibilidade e tentavam alcançar o bem-estar possível com os meios ao seu alcance em cada contexto histórico (objetos de cerâmica, madeira, instrumentos musicais). Até que ponto os povos guaranis seguiram modelos preestabelecidos conforme a experiência de Juli39 ou se submeteram a tentativas de salvar a autodeterminação e a sustentabilidade das missões? O cultivo da mandioca caracterizava os tupis. O do milho, os guaranis. Adotavam a rotação de culturas segundo as necessidades próprias de cada produto agrícola. Os guaranis, entretanto, careciam de uma organização sociopolítica unificadora. Só se coordenavam por razões de sobrevivência e defesa. O “império permanente” nem era cogitado. Dentro de cada grupo, os chefes de unidades macrofamiliares reuniam vassalos e quem pudesse ampliar seu prestígio médico-religioso com a persuasão retórica, atraindo jovens do sexo feminino de outros grupos 39 Melhor detalhada a seguir. 158 Apêndice Teórico – Metodológico vizinhos a fim de integrá-las em sua moradia comunal, reservando-se o direito sobre a prole ou para uni-las a membros da macrofamília (cunhadismo, compadrio). De 1580 a 1640, deu-se a união das Coroas Ibéricas. Em 1607, o governador Hernan d’Árias sugeriu ao rei desmembrar a província de Guairá. Em 1617, o desmembramento foi efetivado, desde Corrientes para o sul com capital em Buenos Aires, e administração do Paraguai com capital em Assunção. Guairá permanecia com fronteiras imprecisas onde os guaranis sofriam tanto pressão dos encomenderos espanhóis quanto dos paulistas traficantes de escravos. Contudo, com a união entre Espanha e Portugal, o povoamento, a convivência pacífica e a evangelização poderiam ter sido estimuladas, atingindo novo impulso e dinamismo. A missão consistia em reunir tribos dispersas em núcleos localizados geralmente em promontórios à beira de cursos d’água onde se erigia a igreja, para cuja construção deveriam haver recursos disponíveis incluindo a manutenção dos padres, a celebração de cultos e a liberação dos índios nos dias santos e fins de semana. Os franciscanos Luís de Bolaños e Alonso de Buenaventura fundaram as primeiras reduções e aldeias no Paraguai entre 1580 e 1615, ainda sujeitas à jurisdição do Rio da Prata. Em 1589, na província de Guairá, os jesuítas Ortega e Fields continuaram a obra dos franciscanos. Observe-se que a Companhia de Jesus iniciara suas atividades em 1549 no Brasil, e aos poucos conseguira aperfeiçoar o modelo missões, incorporando a experiência adquirida. A lei de 30-07-1609 declarou livres os índios cristãos e não cristãos; e, como pessoas livres, só poderiam trabalhar por salário. Em 1611, na região colonizada pela Espanha, a legislação em Assunção eliminou o “serviço pessoal” e impôs um tributo ao índio submetido a um trabalho limitado (mitayos). Tanto a corrente humanitária quanto a mercantilista não conseguia resolver os problemas por mero decreto, nem no Brasil nem nas administrações do Rio da Prata e Paraguai. Com a união das Coroas caiu a barreira principal. Os jesuítas do Brasil foram ao Paraguai como numa missão pastoral a partir de 1587, com apoio do primeiro bispo de Tucumán frei Francisco de Vitória (em 1584, ele solicitara envio de jesuítas aos provinciais do Brasil e do Peru). Os do Peru consideravam os procedentes do Brasil como seus mestres pelo domínio do guarani e a grande experiência. O padre geral Acquaviva decidiu criar, em 1604, a Província do Paraguai abrangendo Tucumán e Rio da Prata, cujo primeiro provincial foi o padre Diego de Torres, que resolvera adotar a doutrina desenvolvida no Peru como modelo. 159 Miranda Neto O Padre Diego de Torres, superior da residência jesuítica de Juli entre 1581 e 1586, defendeu a assistência perpétua da Companhia de Jesus aos índios. Desde novembro de 1576, quatro padres e três irmãos jesuítas coordenavam a doutrina de Juli, às margens do lago Titicaca na província de Chucuito, a mais povoada do Peru, com cerca de 4000 índios que pagavam tributo ao rei, totalizando quase 14.000 habitantes. A doutrina estava dividida em três paróquias. A escola infantil e as irmandades estimulavam uma participação ativa na catequese, na música, nas representações teatrais educativas, nas repreensões dos jovens aos adultos pelas bebedeiras, pela idolatria, etc. Havia grande expectativa com a educação desses rapazes e moças na evolução dos costumes nos pueblos. Na residência de Juli os jesuítas podiam orar, estudar línguas e planejar soluções para diversos problemas. Conforme Juli ampliava sua influência, a economia se diversificava: exploração de salinas, pesca e pecuária. Mesmo assim, o início foi difícil. Ante as necessidades sanitárias e alimentícias, as decisões eram meramente assistenciais: esmolas aos pobres e tratamento de enfermos em improvisado hospital. O planejamento a longo prazo deveria definir claramente o compromisso permanente dos jesuítas. O investimento em pecuária seguia critérios de solidariedade cristã. Ao lado da produção de gado de corte e leite havia o projeto de constituir colégios. As próprias lideranças indígenas reconheciam a importância da escola na educação da fé católica, na leitura, na escrita e nos bons costumes, em complemento ao projeto jesuítico do seminário de estudos em que os noviços também aprendiam línguas indígenas e conheciam seus hábitos e tradições. Cada vez que ocorria fracasso das colheitas, sobretudo de cereais, em especial de milho, os produtos da pecuária compensavam as falhas no abastecimento. Além das crises transitórias na oferta de alimentos, os cuidados com a manutenção da mãe de família, responsável pela cerâmica, tecelagem e artesanato mereciam destaque. Havia grande preocupação com o bem-estar da mulher produtiva e apoio às mais idosas ou incapacitadas. A estância abastecia de carne as quatro paróquias. Um dos maiores problemas sofridos pela “doutrina” de Juli eram os deslocamentos anuais dos mitayos a fim de prestar serviços diversos em Potosí. Muitos indígenas fugiam e davam trabalho aos alguacis (oficiais de justiça) e preocupação à mão de obra remanescente. No início do século XVII, cerca de 1.900 índios da Província de Chucuito foram trabalhar nas minas. Nesta época, a população total ascendia a 5000 habitantes. Em 1578, já haveria 10.000 160 Apêndice Teórico – Metodológico adultos cristãos e em 1600, entre 18.000 e 20.000. Nesta época, as quinze igrejas ainda eram de construção precária. O pior de tudo era a forte oposição de um grupo de autóctones que, além de se mostrarem arredios à catequese, perseguiam, debochavam e insultavam os devotos e virtuosos fiéis. Os caciques de Juli saíam em defesa dos padres e de sua obra, tendo conseguido interceptar uma carta dos índios rebeldes a Felipe II exigindo pronta substituição dos jesuítas. A experiência de Juli foi positiva, plena de ensinamentos e sugestões, mas também sujeita a aspectos indesejáveis e discutíveis. O importante era situar as missões em uma comunidade à parte e não ao lado de pueblos espanhóis ou dentro deles como Cuzco, Potosí... E com recursos programados suficientes para sustentar o modelo até nas crises. A estratégia viável das missões recomendava iniciá-las nas terras confinantes às dos indígenas, facilitando o contato com cristãos e, assim, o acesso a sítios mais distantes. Os guaranis aceitavam os espanhóis desde que observados a amizade e o mútuo respeito; nunca em condições de subordinação imposta. Os primeiros núcleos de apoio às missões foram: 1. Cidade Real de Guairá; 2. Vila Rica do Espírito Santo; 3.Assunção; 4. Santiago de Xerez; 5.Corrientes; 6. Santa Fé; 7. Conceição do Rio Vermelho; 8. Buenos Aires. A experiência de Juli influenciou os jesuítas na fundação das primeiras missões no Paraguai. A relação direta com a Coroa e não com os encomenderos diferenciou as características das missões jesuíticas das missões dos franciscanos. A Carta Régia de Felipe II de 1591 autorizava e apoiava os jesuítas na fundação das missões que só se reiniciou quando a Companhia de Jesus conseguiu melhorar a segurança dos missionários ao impedir as agressões dos colonos aos índios, que antipatizavam, hostilizavam e desconfiavam de todos os “cristãos” (autointitulados). O padre Torres incentivava os jesuítas a darem o exemplo ao estabelecerem relações contratuais livres com os autóctones assistidos pelos respectivos colégios. Os guaranis eram considerados bons agricultores/lavradores que semeavam em colinas e a cada três anos, pelo menos, trocavam de sítio. 161 Miranda Neto Arbustos eram arrancados e cortados, em seguida as árvores maiores também eram podadas; após um curto período, os galhos (com as folhas) cortados já secos eram queimados; as cinzas daí resultantes aqueciam e fertilizavam o solo. Após as primeiras chuvas, plantava-se milho, mandioca e outras raízes e legumes que produziam boas colheitas. Em algumas terras próximas a Assunção obtinham até duas safras de milho ao ano. Havia empenho em escolher os solos mais férteis como condição indispensável para desenvolver uma missão. A divisão dos terrenos e o início das lavouras exigiam paciência e generosidade. Quando os homens assumiam algum importante serviço para a comunidade ou iam à caça sabiam que poderiam festejar à noite ingerindo uma bebida fermentada obtida a partir do milho (espécie de chicha). Contudo, índios e índias ouviam a orientação do missionário e, aos poucos, transferiam-se para o sítio da missão recém-formada onde os solos eram mais férteis. Tratava-se de lento processo de convencimento e troca de presentes, gratificações e lembranças como anzóis, contas de vidro, facas, cunhas de ferro, pentes, doces. Mas a adesão incondicional só ocorria quando indígenas fiéis arriscavam suas vidas para defender a comunidade dos belicosos payaguás que, com suas velozes pirogas, espalhavam pânico nos rios. Cada cacique queria ser o comandante de seu povo, sem sujeitar-se a outro. Foi difícil persuadir da necessidade de haver um só chefe. Igualmente foi um longo exercício tentar adequar o tamanho e o número de missões aos recursos disformes e às características dos guaranis “reduzidos”. Sem pressões externas, por convencimento pessoal, gradualmente, os guaranis deixavam seu sítio de origem, sua taba, seu modo de vida e tentavam adaptar-se da melhor maneira possível à nova realidade. Os terrenos eram férteis, extensos e suficientes para ocupar muitos trabalhadores. Havia fartura de água e lenha. Nas matas, grande variedade de caças. Com a criação de bovinos, resolvia-se também o problema do transporte e da lavoura, pois as reses ajudavam a arar o solo. O abastecimento de carne e leite para a comunidade e os padres também ficava garantido e reforçava a alimentação diária. A residência dos jesuítas, sustentada com recursos próprios, deveria tornar-se um seminário de línguas, pois abrigava a nata guarani. As moradias do novo pueblo eram logo ocupadas pelas famílias já que os chefes estavam ansiosos em repartir as quadras entre si. No centro ficava a praça, a igreja e a residência do padre. O uso racional do bosque não permitia a queimada desnecessária das plantações circunvizinhas. As madeiras eram reservadas para a 162 Apêndice Teórico – Metodológico construção da igreja e da moradia com o menor custo e trabalho dos índios possível. Tanto eles quanto os jesuítas sentiam-se recompensados e felizes pela obra realizada. O tamanho da missão dependia das características próprias de cada grupo indígena e os limitados recursos naturais. E também a possibilidade de adequada instrução religiosa condicionava a expansão da rede de missões em função do número de jesuítas disponíveis. Evolução da População das Missões e do Número de Jesuítas, Século XVII Ano Nº de Missões População Total Sacerdotes Irmãos Coadjutores 1647 20 28.714 42 5 1660 20 37.412 36 4 1682 20 67.561 44 3 1700 27 86.172 66 4 Fontes: CARBONELL DE MASY, Rafael op. cit. MAEDER, A. J., op. cit. Os planos de evangelização concretizaram-se em duas etapas: 1. Bacia do Paraná (1614-1619) 2. Bacia do Uruguai (1619-1628) O padre Roque, em sua vida missionária, distinguiu-se em ambas. A abundância em algumas missões socorria a escassez em outras e foi essa colaboração mútua e esse intercâmbio solidário que caracterizou a excelência da administração “confederativa” e o desenvolvimento regional sustentável, pois respeitava a natureza e só utilizava os recursos disponíveis. Desde o início, os guaranis só aceitaram a assessoria dos padres, repudiando a administração direta dos espanhóis, em varias tentativas do governador do Rio da Prata em ferir a autonomia das missões. Os índios chegaram a exigir a expulsão dos regedores hispânicos nomeados por Francisco de Céspedes “se não quisessem ver perdida toda esta província”. O governador foi obrigado a voltar atrás. Havia também a disputa pelo poder com os xamãs, temerosos de se verem alijados pelos missionários da liderança do gentio. Em 1628, uma revolta liderada por Ñezu culminou com o assassinato dos padres 163 Miranda Neto Roque González, Alonso Rodrigues e Juan de Castillo e abriu severa crise na evolução da Confederação das Missões. As missões, fundadas a certa distância dos povoados espanhóis, objetivavam preservar legítima autonomia sem se isolar completamente da outra sociedade sujeita à mesma coroa. Sempre houve a esperança de manter a possibilidade de acordos e bom relacionamento entre grupos indígenas e espanhóis trabalhando em condições mutuamente vantajosas. O que urgia era eliminar o tráfico de índios escravizados para o Brasil ou para Buenos Aires, à margem das autoridades públicas. Afinal, a Coroa reconheceu o direito dos guaranis “reduzidos” de se defender adequadamente com armas de fogo. A palavra régia reforçava o respeito a suas terras e seus bens. A autodeterminação e a segurança garantiam a base fundamental para desenvolver os novos núcleos rurais na região mais fértil da bacia uruguaia. A propalada riqueza mineral de Guairá contribuía para produzir cunhas, facas e outros instrumentos de ferro, úteis para aumentar a produtividade e eficiência do trabalho agrícola e para as permutas por outros bens. A preferência inicial pela bacia do rio Tibagi se explicava por ter sido considerada à época a região mais povoada de índios e pastoralmente abandonada. O conhecimento mútuo entre distintos grupos indígenas fornecia as condições iniciais para fundar as missões assim como a segurança frente a um serviço pessoal abusivo que forçava decidir entre escravidão ou morte e o possível aproveitamento agrícola dos recursos disponíveis. Os progressos alcançados no ensino, na doutrina e na convivência cristã serviam de atrativo aos caciques de outras tribos afastadas que solicitavam adesão aos padres responsáveis pelas missões bem-sucedidas. Apesar de muitas dificuldades e intrigas políticas, nada conseguiu deter o desenvolvimento rural de Loreto e Santo Inácio, modelos inovadores no aproveitamento eficiente dos recursos naturais da região de Guairá. A margem dos cursos d’água era preferida tanto pela pesca quanto pelo saneamento, pois era protegida por matas ciliares que ocultavam o sítio dos inimigos e permitiam a prática de uma lavoura temporária, em solos arenosos e úmidos, sobretudo produzindo cereais e tubérculos como a mandioca. Muitas vezes esse cultivo era limitado pelo receio dos índios de serem descobertos, o que diminuía também a área cultivada de milho e feijões. O trabalho insano de colher, transportar e beneficiar a erva-mate com mercado em ascensão era incentivado por aqueles que lucravam com o contrabando da prata e a venda de mercadorias. 164 Apêndice Teórico – Metodológico Na pecuária, em Guairá, os espanhóis só haviam conseguido criar caprinos, ovinos, suínos e equinos. Só a partir de 1614, os padres Cataldino e Montoya introduziram, procedentes de Assunção, uns cinquenta bovinos. Uma ilha (a 3 léguas de outras ilhas contíguas) com cerca de 2km2 de área e que dividia o Paranapanema era utilizada como estância para o gado. A população dos núcleos missioneiros, agora mais concentrada, demandava novas produções e uso mais seletivo dos solos, desde hortaliças iniciadas pelos padres, mandioca, legumes, cana-de-açúcar, trigo, videira, arroz... As grandes variações de temperatura prejudicavam as colheitas de algodão e a própria saúde humana. O gado bovino e caprino fornecia leite, manteiga e queijo. A lamparina votiva do Santíssimo Sacramento em Loreto utilizava manteiga como combustível. Havia vários testemunhos de que os missionários a esta altura conseguiram “reduzir” diversas tribos guaranis “a forma de una muy ordenada republica... en tierra donde jamás se vio nada de esto; han hecho los padres estancia de vacas, ovejas, cabras y plantado viña y cañas dulces; hecho unas iglesias admirables y capacíssimas...”40. Os guaranis participavam ativamente do novo modo de vida. Os caciques conseguiram conter as bebedeiras e apoiar a colaboração mútua. Os missionários, a partir de determinado momento, com a configuração dos pueblos cristalizada, não precisavam mais produzir para sua própria sobrevivência: ocorria a contribuição real e dos índios que se esforçavam em abastecer a dispensa dos padres com legumes, pescado, frutos silvestres e mel. Por escambo, muitos bens foram adquiridos, emprestados e permutados. A cordial hospitalidade dos guaranis confortava quem com eles convivia. Com o progresso econômico e técnico, as missões conjugavam o intercâmbio entre os próprios índios com a generosidade e apoiavam a expansão do sistema para outras regiões. O conjunto de missões apresentava a síntese do desenvolvimento rural mutuamente complementar. Loreto, com sua especialidade em pecuária, era ampliada com novas pastagens. Santo Inácio produzia algodão e cereais. Além da produção comunitária (lavoura e gado) havia a produção intensiva do grupo familiar liderado pelo seu respectivo cacique (avicultura e hortaliças). A tecelagem do algodão movimentava razoável comércio de tecidos que conseguia vestir viajantes, índios e europeus. Em Guairá, foram contratados carpinteiros espanhóis para ensinar seu ofício aos guaranis (pedagogia ativa dos jesuítas que incentivava a criatividade). 40 Carta Ânua II p. 204, 1617. 165 Miranda Neto Os índios tinham a obrigação de servir aos encomenderos colonos de Assunção durante dois meses ao ano e, em contrapartida, serem por eles defendidos, o que de fato raramente ocorreu. Os teares de Santo Inácio ofereciam tecidos a preços mais vantajosos em intercâmbio com erva-mate. Os espanhóis chegavam a explorar minas de ferro cujo produto era trocado por tecidos de algodão procedentes das missões guaranis. A navegabilidade dos rios Paraná e Uruguai facilitava a comunicação entre as missões fundadas pelo padre Roque. Algumas, como Itapuá, produtora de cereais e gado, Conceição e São Nicolau, exerciam também a função de ponto de parada obrigatória aos viajantes, venda, pousada e hospital. Por outro lado, a topografia acidentada a leste, ao longo do litoral, e ao sul, limitava o intercâmbio até com tribos de línguas e culturas diferentes, pois tornavam “penoso o caminho dos missionários desprovidos de equinos durante mais de 18 anos”. Portanto, no Guairá, as missões consolidadas situavam-se distantes das novas frentes de expansão tanto em direção leste quanto sul. Um dos alimentos mais consumidos na região das araucárias eram os pinhões, que reforçavam a dieta no segundo trimestre de cada ano. Em 1625, São Francisco Xavier, que havia crescido para mais de 1.500 habitantes, sofreu devastador incêndio, forçando o corregedor à reconstrução do núcleo em melhor sítio localizado em um promontório bem abastecido de água, lenha e solo propício à cultura de vinhedos. O padre provincial estabeleceu o limite de 1.300 familiares a fim de que a superpopulação não se tornasse ingovernável. Os missionários só batizavam os índios devidamente preparados que o solicitassem. Em 1626, fundou-se Encarnação às margens do Tibagi, trasladada em 1627 para uma serra cujo vale fértil era dotado de águas cristalinas o que propiciou a expansão de uma comunidade próspera e emoldurada por araucárias. Todas essas missões apresentavam um padrão comum que servia de modelo às demais. A de São José, fundada em 1625, havia sido construída equidistante de São Francisco Xavier e Santo Inácio, sob orientação do padre Durán Mastrilli, a fim de facilitar a comunicação por terra entre elas. A carne seca bovina de Loreto abastecia os viajantes. Por esta estrada também eram conduzidas as reses vivas em direção a São Francisco Xavier, pois, desde que houvessem condições propícias à pecuária, estâncias seriam criadas entre os núcleos populacionais. Encarnação (Itapuá), como ponto de partida ou escala para a fundação de outras missões, cultivava rabanetes, salsa, cenoura, alho, cebola; e, naturalmente, milho e feijão, sob orientação dos padres Mendoza e 166 Apêndice Teórico – Metodológico Espinosa que se dedicaram também às oficinas e depósitos de utensílios, ferramentas e produtos. A escassez de missionários forçava a determinação de prioridades. Em 1621, em Guairá, atuavam sete jesuítas em duas missões com visitas periódicas a diversas aldeias. Em 1625, seis padres atendiam cinco missões sendo que apenas São Francisco Xavier já então contava com 1.300 famílias. O padre Montoya precisou administrar a contradição de consolidar as missões fundadas, coordenando as atividades e ao mesmo tempo atender às necessidades prementes dos demais grupos indígenas dispersos e diversificados. O sistema de ajuda mútua complementar criava novo potencial produtivo em uma missão através do auxílio recebido de outra e a comercialização, por escambo entre os núcleos, de ferramentas metálicas por tecidos de algodão, por exemplo, e até o planejamento de um pueblo incorporando a exploração de salinas recém-descobertas. O objetivo real era consolidar as missões graças à cooperação, ao intercâmbio e à complementaridade entre elas. O padre Antonio Ruiz de Montoya, adepto desta ideia, conseguiu (com a ajuda de caciques das aldeias do rio Paraná) abrir uma estrada unindo-as ao Guairá e estabelecendo o intercâmbio entre ambos os grupos de missões. O novo itinerário, que possibilitava a colaboração até com as missões do Uruguai foi, entretanto, em fevereiro de 1629, proibido de ser utilizado pelos jesuítas por ordem do governador do Paraguai, Luiz Céspedes Xería, com interesses econômicos no Brasil. Os missionários arriscavam suas vidas em meio a tribos em sua maioria hostis e inconstantes. Ao lado dos espanhóis amigos havia uma população oportunista dominada pela cobiça e por autoridades corruptas. A experiência demonstrou que apenas os cultivos não sustentavam a missão. Havia necessidade de criar gado maior e menor a fim de obter os subprodutos – carne, leite, laticínios, couros – além de garantir animais de tração e transporte. Apesar disso, os índios “reduzidos” continuaram com seus deslocamentos habituais a fim de cultivar e colher a erva-mate nos ervais silvestres tanto para autoabastecimento quanto para produção mais diversificada e elaborada, destinada à venda externa. Em 1628, os bandeirantes aliados aos tupis iniciaram os ataques às missões em busca de mão de obra para os engenhos de açúcar, principalmente. Calcula-se que cerca de 40.000 guaranis já estivessem “reduzidos”, coordenados pelos missionários. Em 1629, foram escravizados cerca de 10.000. Em 1631, perto de 30.000 (muitos acabaram morrendo antes de chegar ao destino). 167 Miranda Neto Embora a legislação real a favor dos índios tivesse sido sancionada, na verdade ela nunca fora de fato aplicada. Sempre as autoridades coloniais conseguiam contorná-la, obrigando os homens disponíveis a trabalhar nos ervais para os encomenderos. Na iminência dos ataques dos bandeirantes, em fins de 1631, o padre Montoya organizou o êxodo de cerca de 10.000 habitantes de Loreto e Santo Inácio. Mais 2.000 pessoas de outras missões em cerca de 700 balsas e canoas desceram o rio Paraná e tentaram fixar-se ao sul do salto Guairá. Com os sobreviventes da acidentada e trabalhosa viagem finalmente conseguiram refundar Loreto e Santo Inácio. As dificuldades foram muitas mas, aos poucos, foram superadas com persistência, trabalho árduo, organização e disciplina. Dos 12.000 que saíram de Guairá só sobreviveram 4.000. Ao todo, dos milhares de índios escravizados já “reduzidos”, apenas mil sobreviveram para serem comercializados. O que salvou essa hercúlea tentativa de reerguer a confederação das missões foi a intensa solidariedade entre elas e o significativo aporte de gado bovino procedente de Corrientes doado pelo mestre do campo Manuel Cabral. Teriam sido cerca de 40.000 reses. Apesar das dificuldades, foram adquiridas sementes para garantir o plantio de várias culturas cujas safras demorariam meses, além das inevitáveis perdas causadas por pragas e intempéries. Em Itatim, distante 50 léguas de Assunção de cujo colégio receberam apoio, e distante 12 léguas do rio Paraguai, os padres belgas Van Suerck e Ransonnier, o padre francês Hénard e o padre italiano De Martino fundaram quatro missões, cada uma com 300 famílias em média, que podiam contar com bovinos e equipamentos agrícolas: Santo Inácio de Caaguaçu dotada de ervais, muita caça e pesca e depósitos de sal; Nossa Senhora da Fé, Santo Inácio II e Santiago. No Tape foram criadas doze missões entre 1631 e 1635, sob orientação do padre Roque González. Neste período, 1580-1640, com a União das Coroas Ibéricas, a imprecisão de limites entre possessões hispânicas e luso-brasileiras prosseguia durante todo o século XVII. Entretanto, os guaranis nas missões tinham plena consciência das suas terras e autonomia. Após a vitória de Mbororé em 1641, patrulhas de vigilância de índios cristãos recorriam periodicamente à banda oriental. Em 1645, o Padre Provincial ordenou ao Superior das Missões colocar mais vacas nos pastos das antigas missões sem imaginar que o gado, posteriormente abandonado durante a precipitada fuga de 1637, iria descer em direção ao sul e à costa atlântica, originando a Vacaria do Mar. 168 Apêndice Teórico – Metodológico Os guaranis confiavam bastante na própria capacidade potencializada mediante esforços unidos, multiplicados e assessoria oportuna. Ocorria com frequência a atuação dinâmica do jesuíta não sacerdote, às vezes desconcertante, que animava a participação laboral e profissional dos guaranis nas missões, conhecidos como “carpinteiros do irmão” enquanto aprendiam seu ofício. Havia os equivalentes ferreiros, enfermeiros, ceramistas, escultores, pintores. O trabalho agrícola era desempenhado por todos, ao menos durante os meses decisivos para garantir a semeadura e a colheita conforme o produto, o solo e a região. Em cada missão havia o costume de fazer outras grandes sementeiras de todos os gêneros nas melhores terras, subsidiando o cultivo particular com o comunitário. O trabalho agrícola, os diversos ofícios e artes nas missões contrastavam com o isolamento e a falta de civismo nas estâncias. “As criações de gado cresceram muito com considerável dano aos pobres índios, sobretudo aos rapazes, ao criar-se adultos broncos e sem doutrina devido a se acharem tão afastados dos núcleos dos pueblos” (carta do padre Rada de 17-11-1666). A convivência cada vez mais complexa nas missões multiplicava as necessidades e motivava a procura de possibilidades para atendê-las. A comunicação dos padres organizava-se repartindo as tarefas pelas parcialidades de cada cacique e falando a cada família ou índios em particular, o que se aperfeiçoou com as demandas maiores, resultantes do crescimento demográfico. Anualmente era destinado a cada família um terreno suficiente para o cultivo dos produtos essenciais à sua alimentação e vestuário; sementes e bois eram repartidos entre as famílias. Como a produção familiar tornava-se às vezes insuficiente e sujeita a riscos, as sementeiras, estâncias comunitárias e vacarias garantiam o abastecimento. A criação de gado bovino foi tão bem-sucedida nos extensos campos das duas margens do rio Uruguai que várias missões puderam abastecer-se durante período expressivo. O escambo e a ajuda mútua predominavam. Nas calamidades (como secas, infestação de pragas) nenhum pueblo ficava desatendido. Antes de 1677 ocorria a troca entre reses vacum e erva-mate ou tecido, o que facilitava um aprovisionamento satisfatório de carne. A distribuição de carne e sua frequência variava conforme a disponibilidade dos demais alimentos. Só as lactantes tinham o direito de recebê-la diariamente. O sistema religioso e cultural dos guaranis foi profundamente afetado pelo prolongado contato com os jesuítas das missões. Houve interferências, rupturas e adaptações que, entretanto, não desintegraram a cultura a não ser de modo parcial e apenas em algumas comunidades. 169 Miranda Neto Após a expulsão dos missionários, alguns elementos culturais foram integrados de maneira satisfatória no sistema guarani “sem que este perdesse o seu cunho original”. Como a sociedade indígena não prestigiava a posse de bens materiais, não havia estímulo à produtividade econômica. Daí a percepção equivocada quanto à “indolência” dos ameríndios, conhecidos como inconstantes no trabalho, desprezando o conforto, o lucro e a poupança. Para satisfazer ao “consumismo” inconsequente induzido pelo colono – que criava falsas necessidades – e, dada a sua proverbial penúria monetária, os autóctones eram, com frequência, levados ao furto e a outras contravenções e desvios de conduta. As principais razões ponderadas para o desprezo à ganância, ao esforço econômico e ao lucro podem-se destacar: o regime comunitário de produção e consumo (propriedade coletiva dos bens), a orientação da cultura e o relevo dado à comunhão com o sobrenatural. Portanto, o estímulo ao trabalho relacionava-se com a intensidade do sentimento de solidariedade social. Só depois, com a progressiva individualização da produção e aceitação dos valores daí advindos como elementos de diferenciação social, as dicotomias produtivo x ocioso e pobre x rico adquiriram algum significado41. Há que ressaltar a dimensão globalizante da visão e dos projetos de Inácio de Loyola. Os jesuítas foram os precursores da globalização. Para concretizar este domínio, estudaram a língua dos índios. Aprender outro idioma é globalizar-se. Os jesuítas sentiram que podiam compartilhar a mesma fé e propuseram um sistema de vida que lhes parecia mais político e humano, aceito pela maioria dos indígenas os quais não tiveram de abandonar sua língua nem sua economia. A língua autóctone teve de ser convertida em escrita e gramática. Dicionários foram organizados a fim de facilitar a tradução das ideias. Verdadeiros monumentos linguísticos, admirados pelos pesquisadores. Conseguiram os indígenas, com a orientação dos religiosos, construir conjuntos urbanísticos notáveis, hoje declarados Patrimônios da Humanidade pela Unesco42. Artes plásticas como a escultura alcançaram elevado nível. Além da cópia e da imitação, os guaranis provaram sua criatividade até em estilos que não lhes eram próprios. Foram mestres na música e na confecção de instrumentos musicais. A Utopia encontrou seu lugar no Paraguai. 41 42 SCHADEN, Egon. Aspectos Fundamentais da Cultura Guarani. São Paulo: Edusp, 1974. MELIÁ, S. J. Bartolomeu. “As missões jesuíticas nos Sete Povos das Missões” in A Globalização e os Jesuitas: origens, história e impactos. Anais do Seminário Internacional, 25 a 29 setembro 2006. PUC-RJ / UNISINOS / FJFT. São Paulo: Ed. Loyola, 2007. 170 Apêndice Teórico – Metodológico O início das missões foi turbulento e difícil, sobretudo o relacionamento entre os feiticeiros (xamãs) e os jesuítas: três deles foram trucidados nesta fase: Roque González, Alonso Rodrigues e Juan de Castilho. Mas pouco a pouco a acolhida melhorou com o respeito mútuo. A fundação dos povoados respeitou o gosto e o modo de vida dos guaranis. A aprendizagem da língua só poderia ocorrer com alto grau de convivência. Os autóctones participavam com entusiasmo dos trabalhos agrícolas e da liturgia cristã, admirando o ritual e as festividades – todos os atos eram solenes e plenos de novidades. Representações teatrais e jogos diversos – entre eles o da bola com o pé – eram diversões frequentes nos dias de festas. As crianças de tudo participavam e aprendiam, na prática, artesanato e trabalhos manuais direcionados às artes e ofícios. A escravização praticada aos autóctones visava extrair riquezas do trabalho e do comércio do escravo. A captura objetivava impor nova pratica ético – moral, valores, regras e códigos estabelecidos e alterar a cultura autóctone. Os jesuítas procuravam identificar as semelhanças em duas culturas diferentes e condenar as diferenças que violavam as verdades jurídicas e teológicas consagradas na cultura dominante. O melhor conhecimento da cultura dominada era praticado pelo estudo de sua língua e poderia assim ressaltar as semelhanças e os valores indígenas antípodas. Conhecer a língua do dominado era a melhor forma de catequizá-lo e de introduzir um objetivo moral, jesuítas colonos e índios se conheciam mutuamente, criavam novas formas de organização e novos valores. Difícil era conseguir penetrar no imaginário do outro43. A captura é, de certo modo, mais perversa do que a escravidão em si, pois subliminarmente submete um grupo aos valores e interesses do outro por meio de supostos consentimentos mútuos. A modernidade ocidental caracterizou-se pela captura de mentes e culturas. A catequese, a doutrinação dos filhos dos gentios, ocorreu de modo fluido sob formas refinadas de convencimento e de atuação sobre a ação moral do outro, facilitando a colonização e a aculturação. Ao invés de se ensinar o idioma português ao índio (o que também se fazia), os padres aprendiam o tupi ou o guarani para ensinar-lhes o princípio moral fundador da religião cristã, ou seja, a oposição entre o Bem e o Mal. Mais do que ensinar a língua portuguesa aos índios, os jesuítas ensinavam pela prática cotidiana de repreensão e ajustamento dos valores morais dos índios aos dos europeus. 43 FAVACHO, André Picanço. “A Captura: o fundamento do governo pedagógico aplicado aos meninos dos gentios no Brasil quinhentista”, in A Globalização e os Jesuítas. 171 Miranda Neto Eles eram especialistas na atividade moral-religiosa que prezava pelas formas indiretas e brandas de conversão ao demonstrar o interesse em aprender o idioma do gentio para melhor poder atuar (modelo de dominação extremamente refinado). As artes e os ofícios dos missionários (ao lado do trabalho apostólico) eram indispensáveis à sobrevivência da Companhia de Jesus. Os irmãos artesãos mantiveram oficinas, fábricas, engenhos próprios, tornando-se independentes dos fornecedores monopolistas. As oficinas de colégios e aldeias tornaram-se importantes locais de aprendizagem, exercício e execução de artes e ofícios, formando mestres carpinteiros, pedreiros, ferreiros, escultores e pintores desde aprendizes, artesãos e operários44. A Companhia de Jesus se convencera da necessidade de ter meios econômicos próprios, tornando-se os padres independentes da caridade das autoridades ou dos colonos. Obtiveram terrenos para a construção das casas da Companhia em locais estratégicos na periferia dos núcleos urbanos, porém mais próximos do contato com o gentio. Os jesuítas se defrontaram com grandes obstáculos materiais para suas construções que incluíam os colégios. O Brasil representou o primeiro ensaio de experiência apostólica da Companhia fora da Europa. A educação foi o caminho que, através das crianças, transmitiria a cultura europeia católica para os habitantes do Novo Mundo. Aprendizagem, folguedos, colheita e pesca interagiam. A Companhia de Jesus propôs a Ratio Studiorum45 para estruturar e orientar o sistema de ensino valorizando a aula participativa, a cooperação, o papel do professor e as especificidades infantis com o uso de diferentes materiais para o ensino das letras, da leitura, da escrita e da aritmética. Os recursos incluíam jogos educativos. A prática escolar de vários países em que a Companhia de Jesus atuara foi incorporada à Ratio Studiorum elaborada de 1548 a 1599 com a colaboração dos melhores educadores da Europa. O projeto era missionário, religioso, político, colonizador e econômico46. Os jesuítas fizeram dos colégios centros de saber e formação de cidadãos atingindo o objetivo maior: a difusão e o fortalecimento da fé católica, conciliando o cristianismo com o humanismo renascentista. Como GADELHA, Regina. “Para além da catequese: Artes e Ofícios dos Jesuítas da Província do Brasil (séculos XVI – XVII)”, in Os Jesuítas e a Globalização origens, história e impactos (Anais do Seminário Internacional, 25 a 29 de setembro 2006. PUC-RJ / UNISINOS / FJFT. São Paulo: Ed Loyola 2007 (v2). 45 Ratio atque Institutio Studiorum Societatis Jesu – Versão definitiva enviada em 1599 pelo Superior geral Claudio Acquaviva a todas as escolas da Companhia de Jesus. 46 NOGUEIRA, Ephigênia, “Jogos, brinquedos e brincadeiras” in A Globalização e os jesuítas. 44 172 Apêndice Teórico – Metodológico materiais pedagógicos, os jesuítas usavam imagens como o círculo para os meses do ano, a esfera para o ensino das declinações de latim, as partes do próprio corpo, como a mão para ensinar contagem, a árvore genealógica para o ensino da gramática, a partir das raízes das palavras. O alfabeto era apresentado com a palavra e a imagem de um objeto que se iniciava com a letra destacada. Outro recurso pedagógico era o uso do diálogo para o ensino das regras gramaticais. Os jogos educativos e a competição entre os alunos com premiação aos melhores constituíam formas de incentivar cada vez mais o mérito. Os exercícios visavam manter os alunos atentos e participativos. O canto, a dança, as oficinas completavam a pedagogia missionária. A mente deveria manter-se sempre ocupada com pensamentos elevados, criativos e construtivos. Daí as ideias poderiam transformar sonhos em realidade. A cultura local e a língua nativa deveriam ser sempre valorizadas. Alguns objetos eram subdivididos para possibilitar à criança interagir com o material, separando e juntando as peças conforme o conteúdo estudado. Os jesuítas desenvolveram um sistema de educação orgânico e coerente em escala mundial, respeitando as peculiaridades das culturas locais. Em verdade, lançaram os fundamentos da escola moderna. Por intermédio das brincadeiras, as crianças reproduziam situações, transformavam objetos e apropriavam-se de modelos dando novo significado aos conteúdos culturais. Elas modificavam e adaptavam o mundo exterior ao seu com liberdade e iniciativa. Era através dessas representações que as crianças enfrentavam suas limitações e dependência dos adultos e se projetavam em um universo alternativo onde tudo era possível. Após as lições, todas se dirigiam cantando, animadas, à caça, à pesca, ou à colheita pelo prazer da brincadeira e também para prover a casa com alimentos. O canto, a dança, a confecção de instrumentos musicais, depois por eles usados, completavam as atividades lúdico-pedagógicas dos guaranis. Uma das maiores contribuições indígenas aos jogos infantis foram as competições com bola de borracha, utilizada tanto com a cabeça quanto com os pés. A educação musical pode ser avaliada através das óperas cujos temas eram religiosos (bíblicos ou não) e históricos relacionados à religião no estilo barroco italiano, em moda na Europa. Todas se perderam (exceto a “Santo Inácio” que foi encontrada na Bolívia, composta por Domenico Zípoli e Martin Schmidt)47. 47 ANDREOTTI, Décio. “O Valor da Educação Musical nos Sete Povos das Missões” in A Globalização e os Jesuítas. 173 Miranda Neto As óperas eram cantadas nas igrejas. Os índios privilegiavam os registros altos de voz e aprendiam com facilidade e rapidez. Os antigos instrumentos indígenas, fabricados pelos jovens luthiers sob orientação dos padres, cederam lugar aos europeus (cordas e sopros). De tão bem confeccionados, eram exportados para a Europa. O esplendor da educação musical missioneira durou mais de cem anos após a derrota dos bandeirantes e a prosperidade da Confederação das Missões. O Padre Sepp destacou-se como educador musical e incentivador das artes. Reformulou e modernizou, para a época, a música nas missões. Trouxe a nova escrita musical e os novos estilos, sobretudo o barroco austríaco (na época o mais moderno). Ensinou partituras de compositores europeus (como Schmelzer e Biber) ainda desconhecidos na Espanha. Cada redução tinha seu coro e sua orquestra que se apresentava também nas demais povoações nas datas festivas. Na verdade, através da música facilitava-se a educação das demais disciplinas e a criança se completava e se realizava. A missão de Yapeyú tornou-se um importante conservatório para onde a elite de Buenos Aires enviava seus filhos para se aperfeiçoarem musicalmente em pleno ambiente indígena. A educação jesuítica no Brasil caracterizou-se pelo desenvolvimento das capacidades intelectuais partindo do pressuposto de que a racionalidade é o que define o homem. Segundo Nietzsche, o jesuitismo representava, de fato, um dos grandes movimentos revolucionários que sacudiu a Europa no século XVI. A sociedade criada por Inácio de Loyola ousou o diferente, soube encontrar a forma ideal de superar situações difíceis, procurou evitar o passivismo inerte para assumir um ativismo transformador, uma ação criativa de um modo de vida, uma postura existencial frente aos desafios provocados pela Reforma Protestante. Imbuídos de uma formação personalizada e humanizadora, de tenacidade e mobilidade, os jesuítas se congregaram em uma experiência em escala planetária na conquista de novos cristãos mundo afora. Em seu “aprendizado da colonização” revelaram práticas sociais e políticas que resultaram na dominação colonial de extensos territórios. A empresa das missões visava também à ocupação física como estratégia geopolítica de caráter permanente pela sua própria finalidade. Com frequência havia o predomínio da religião sobre a economia. Atividades econômicas eram utilizadas para a realização de cerimoniais de contato com o sobrenatural. O putirum da ajuda mútua na colheita de safra, a partida para uma viagem – tudo constituía motivo para festas religiosas e danças comemorativas. O ciclo produtivo confundia-se com o ciclo de vida religiosa, acompanhando atividades de subsistência, em 174 Apêndice Teórico – Metodológico especial as fases da cultura do milho. A mandioca teria importância secundaria embora indispensável durante o período de escassez do milho. Um gradual mas constante processo de transformação cultural se desenvolveu ao longo de um século e meio. Entretanto, muitos elementos tradicionais da sociedade autóctone foram preservados. A cultura indígena manteve seus padrões originais como evidenciam os vestígios arqueológicos: cerâmica artesanal, artefatos de pedra lascada e polida, os aspectos sociopolíticos como o cacicado, a língua guarani com sua imensa riqueza verbal, as relações sociais de solidarismo e reciprocidade, as tradições guerreiras, a caça e a pesca. Na horticultura destacaram-se na domesticação de plantas como milho, mandioca, amendoim, abóbora, feijão, pimentão, tabaco e erva-mate. Os jesuítas introduziram inovações técnico-culturais como a escrita e a imprensa, o arado e a metalurgia do ferro, possibilitando a fabricação de ferramentas e implementos agrícolas, a olaria industrial e a arquitetura barroca missioneira. Os missionários também conseguiram que os ameríndios adotassem a família nuclear e a inserção do caciquismo na estrutura político-administratativa do sistema hispânico de governo (cabildo espanhol). Alguns guerreiros guaranis organizaram-se em milícia armada a serviço dos interesses espanhóis de domínio e expansão dos territórios ocupados. Aos poucos, os guaranis foram incentivados a produzir para o mercado consumidor platino, seus vizinhos geopolíticos, e o resto do mundo. As missões desempenharam importante papel na frente de colonização ibérica, ao voltar-se para a integração das etnias indígenas com o segmento colonial da sociedade europeia mediante uma relação diferenciada entre dominadores e dominados. Pela primeira vez, os guaranis puderam considerar-se partícipes de seu próprio desenvolvimento. 175 ANEXOS Glossário ABAMBAÉ – Área cultivada individualmente pelas famílias guaranis. Os sistemas privado e coletivo coexistiam nas missões, influenciando-se reciprocamente. AQUARAYBAY – Matéria-prima vegetal do “bálsamo das missões”. ASSISTÊNCIA – Conjunto de “províncias” da Companhia de Jesus atuando em determinado território, em geral, correspondendo ao respectivo país. CABILDO – Conselho formado, nas missões jesuíticas, pelo corregedor (espécie de prefeito), alcaide (vice-prefeito), alguacil (comissário executivo), fiscais, juízes, quatro regedores (conselheiros municipais), mayordomo (procurador), um tenente e um alferes real. Cada missão era administrada também por um padre jesuíta subordinado ao Superior que coordenava a confederação. CHACRA – Terreno cultivado coletivamente. Os excedentes da produção destinavam-se a uma “caixa comum” ou “estoque regulador”. CHICHA – Aguardente produzida pela fermentação do milho ou da mandioca. COTIGUAÇU – Residência, nas missões, das viúvas e solteironas da tribo, dedicadas à fiação, à costura, à confecção, artesanato de palha ou madeira e à cerâmica ensinada às jovens que desde cedo colaboravam em grupo. 179 Miranda Neto ENCOMENDERO – Colono espanhol que usufruía do sistema de encomienda ao submeter o autóctone à exploração de recursos e riquezas. ENCOMIENDA – Sistema de servidão total em que o encomendero submetia, por mercê real, a trabalhos em obras públicas ou minas, os índios aprisionados em combate (yanaconas). A servidão parcial consentida dos índios (mitayos) ocorria durante dois a quatro meses ao ano, geralmente nas residências dos colonos, sendo que, no período restante, poderiam permanecer em seus respectivos aldeamentos. MITA – De origem inca, o sistema consistia em impor trabalhos aos indígenas (mitayos) durante determinado período mediante pagamento de salário considerado irrisório. MONÇOEIROS – Aventureiros-exploradores que penetravam pelas vias fluviais aproveitando a época propícia de cheia dos rios (de março a maio) conhecida como monções (por analogia com o período de ventos na Ásia) para partirem de Porto Feliz (São Paulo) em direção aos rios Paraná e depois Paraguai até Cuiabá. A jornada durava cerca de cinco meses em busca das lendárias riquezas. OFÍCIO – Espécie de procuradoria, representação, ponto de apoio e armazém que coordenava, controlava, administrava e contabilizava grupo de missões, financiando-as quando em dificuldade, até através de estoques reguladores. PARCIALIDADE – Lote de cada missão dominado por determinado cacique. PEABIRU – Estrada primitiva de terra batida aberta provavelmente no século XVI pelos ameríndios a partir do Sudoeste de São Paulo até as margens do rio Paraná e muito utilizada pelos monçoeiros, bandeirantes, aventureiros em busca de riquezas e mão de obra. PUTIRUM – Sistema de trabalho coletivo em que os vizinhos se ajudam mutuamente. Mutirão. QUABIRI-MIRIM – Árvore frutífera da região utilizada no beneficiamento da erva-mate. 180 ANEXOS RAFIÃO – Animal macho cobridor de fêmeas. REDUÇÃO – Aldeamento indígena, missão, de início chamada doutrina como a de Juli no antigo Peru, origem e modelo de todo o sistema de pueblos ou aldeias missionárias. RETOVAR – Enganar a égua ou a vaca ao fazê-la aceitar a adoção do potro ou bezerro, desde que sob disfarce do filho legítimo. TERNEIRO – Bezerro. TUPAMBAÉ – Área comum característica do sistema coletivo de produção guarani. URUNDI – Bambu gigante ou tronco avantajado usado como canhão pelos índios durante as “guerras guaraníticas”. XARAYES – Povo indígena que inspirou, no século XVII, a denominação da extensa área de campos alagados, atual Pantanal mato-grossense, lugar de passagem e união entre o Cerrado, o Chaco e a Amazônia. Na verdade, o grande complexo de lagos, lagunas e canais apenas espraiava o rio Paraguai, via de penetração e acesso para aventureiros, exploradores, missionários e colonizadores. YANACONA – Índio submetido ao regime de servidão, obrigado a trabalhar duro. YERBA CAAMINI – Erva-mate cultivada e beneficiada segundo tecnologia apropriada. Era a mais disputada no século XVIII, alcançando preços elevados. YERBA DE PALOS – Erva-mate silvestre apenas colhida e pouco beneficiada. 181 Miranda Neto ESTRUTURA POLÍTICO-ADMINISTRATIVA DO SISTEMA COLONIAL ESPANHOL PODER ESPIRITUAL PODER MATERIAL REI (Madri) PAPA (Roma) CONGREGAÇÃO DOS PADRES GERAIS (Roma) VICE-REI DO PERU (Lima) CONSELHO DAS ÍNDIAS (Madri) (Poder Executivo) PROVÍNCIA JESUÍTICA DO PARAGUAI NAS CIDADES NO INTERIOR ARCEBISPO (Lima) BISPO DE B. AIRES (Poder Jurídico) GOVERNADOR DA PROVÍNCIA DO RIO DA PRATA (Buenos Aires) GOVERNADOR DA PROVÍNCIA DO PARAGUAI (Assunção) PROVINCIAL (Córdoba) BISPO DE ASSUNÇÃO SUPERIOR (Candelária) CIDADES, ALDEIAS, POVOADOS MISSIONÁRIOS, FAZENDAS, ESTÂNCIAS E ERVAIS PADRES MISSIONÁRIOS CABILDOS INDÍGENAS (CONSULTORES DOS CABILDOS) (CONSELHOS) CONFEDERAÇÃO DAS MISSÕES CADA MISSÃO 1ª. fase SUPERIORES JESUÍTAS 1. GUAIRÁ (Paraná) 2. YAPEYÚ (Uruguai) CABILDO (CONSELHO) CORREGEDOR (Prefeito) CACIQUE ALCAIDE (Vice-Prefeito, Inspetor de Ensino) 2ª. fase UM SUPERIOR Visitava reduções (Adm. Itinerante) 2 JUIZES Diretrizes de Política Desenvolvimentista UNIDADE + UNIFORMIDADE FISCAL 2 OFICIAIS DE POLICIA ALGUACIL comissário 4 REGEDORES + ASSESSORES (Cf. n hab.) CHEFES DE SETORES Escolhidos pelos indígenas “dentre fervorosos cristãos” sob supervisão dos jesuítas Total: de dez a vinte pessoas “as mais qualificadas” 182 ANEXOS 183 Miranda Neto 184 ANEXOS 185 Miranda Neto CRONOLOGIA DA INSTALAÇÃO DAS MISSÕES JESUÍTICO-GUARANÍS Fundação Missões Localização Observação População em 1765 1609 Nossa Senhora de Loreto 1 R. Paranapanema margem esquerda (Paraná) 2.393 1609 Santo Inácio (menor ou mini) 1 R. Paranapanema margem esquerda (Paraná) 3.141 1614 Itapuã ou Encarnação 1 R. Paraná margem direita (atual Paraguai) 4.542 1620 Nossa Senhora da Conceição 1 R. Uruguai margem direita (atual Argentina) 2.872 1622 Corpus Christi R. Paraná margem esquerda (atual Argentina) 4.342 1625 Yapeyú (Santos Reis) R. Uruguai margem direita (atual Argentina) 7.715 1625 São Francisco Xavier 1 R. Uruguai margem direita (atual Argentina) 1.311 1631 São Carlos (Panambi) R. Uruguai margem direita (atual Argentina) 2.265 1632 Santa Maria da Fé R. Uruguai margem direita (atual Paraguai) 3.945 1633 Santa Maria Maior 1 R. Uruguai margem direita (atual Argentina) 1.375 1637 Apóstolos (Cruz Alta) R. Uruguai margem direita (atual Argentina) 2.048 R. Uruguai margem direita (atual Argentina) 1.954 1639 São Tomé (Jaguari) 1 1657 Santa Cruz (La Cruz) R. Uruguai margem direita (atual Argentina) 3.197 1659 Santo Inácio (guaçu) R. Paraná margem direita (atual Paraguai) 1.985 1660 Sant’ana R. Paraná margem esquerda (atual Argentina) 4.161 1660 São José (S. Vicente do Sul) 1 R. Uruguai margem direita (atual Argentina) 2.037 1665 Candelária R. Paraná margem esquerda (atual Argentina) 2.879 1672 San Tiago R. Paraná margem direita (atual Paraguai) 2.711 1675 Jesus Maria R. Paraná margem direita (atual Paraguai) 2.278 Continua 186 ANEXOS Continuação CRONOLOGIA DA INSTALAÇÃO DAS MISSÕES JESUÍTICO-GUARANÍS 1675 São Miguel Arcanjo 1 2 R. Piratini 3 margem direita (atual R. G. do Sul) 2.861 1688 São Nicolau 2 R. Piratini margem direita (atual R. G. do Sul) 4.028 1690 São (Francisco de) Borja 2 R. Uruguai margem esquerda (atual R. G. do Sul) 2.733 1691 São Lourenço 2 R. Piratini margem direita (atual R. G. do Sul) 1.185 1696 São João Batista2 R. Piratini margem direita (atual R. G. do Sul) 3.923 1696 Santa Rosa R. Paraná margem direita (atual Paraguai) 1.934 1704 Santos Mártires R. Uruguai margem direita (atual Argentina) 1.688 1706 Santíssima Trindade R. Paraná margem direita (atual Paraguai) 2.633 1707 Santo Ângelo 2 R. Piratini margem direita (atual R. G. do Sul) 2.473 1712 (1746) São Joaquim R. Paraguai margem esquerda (atual Paraguai) 1.805 1720 São Luiz Gonzaga 2 R. Piratini margem direita (atual R. G. do Sul) 2.207 1720 (1749) São Estanislau (Kosther) R. Paraguai margem esquerda (atual Paraguai) 2.325 1740 São Cosme (e Damião) R. Paraná margem direita (atual Paraguai) 2.223 1760 Belém R. Paraguai margem esquerda (atual Paraguai) 2.142 – Atacadas pelos bandeirantes deslocaram-se para oeste (Paraguai) e para o Sul (Rio Grande do Sul). 2 – Consideradas do 2º. Ciclo Missioneiro (1675-1767) correspondem, com suas estâncias, aos Sete Povos das Missões. 3 – O rio Piratini é afluente do rio Uruguai Fonte: Manuscritos da Coleção De Angelis. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1951/69 1 187 Miranda Neto 188 ANEXOS 189 Miranda Neto 190 ANEXOS * O rebanho total conferido em 1768 após a expulsão dos jesuítas contava com 769.869 bovinos, 139.634 equinos e 138.141 ovinos. Só Yapeyú chegou a criar mais de 200.000 reses vacum. 191 Miranda Neto 192 ANEXOS Cronologia Dos Núcleos Urbanos Na Área Das Missões 1535. Pedro González de Mendoza funda, na foz do rio da Prata, a cidade de Nuestra Señora del Buen Aire, futura sede do Vice-Reinado do Prata (Argentina e Uruguai), na jurisdição do Vice-Reinado do Peru. 1536. Juan de Ayolas, comandado de Mendoza, funda Assunción às margens do rio Paraguai. 1552. Domingo de Irala, governador do Paraguai, apoia guaranis contra tupis e paulistas, iniciando política expansionista. 1580. Juan de Garay funda, pela segunda vez, a cidade de Buenos Aires, estimulando os colonos à agricultura e à pecuária. De 1580 a 1640, Felipe II de Espanha domina Portugal e Colônias, invalidando o Tratado de Tordesilhas. – O primeiro bispo de Assunção, Frei Pedro de la Torre, e jesuítas Manuel Ortega e Tomaz Fields, vindos de Assunção, planejam integrar missionários e guaranis em grandes aldeamentos sob a administração da Ordem a partir de Cidade Real de Guairá (1554) e Vila Rica do Espírito Santo (1576), subordinadas à Província Jesuítica do Paraguai que se estenderia por todo Sudoeste da América Latina. 1593. Rui Dias de Gusmán funda Santiago de Xerez, no Itatim, próxima às futuras missões de Chiquitos (MS) e de Moxós (MT). 1607. Os jesuítas chegam a Assunção vindos de Lima estimulados por Hernan Árias de Saavedra, governador do Paraguai e rio da Prata, que propõe a criação da província de Guairá até a ilha de Santa Catarina, onde porto ideal escoaria a prata de Potosi (Peru). 1610 a 1628. Padres Cataldino, Lorenzana, Maceta e Montoya fundam 13 missões no Guairá (Província de Vera cf. Cabeza de Vaca). Em 1613 Montoya organiza vocabulário guarani, utilíssimo à compreensão mútua de espanhóis e autóctones. 1620. A Província do Rio da Prata, ainda subordinada ao Vice-Reinado do Peru, começa a destacar-se das demais. 1625. Santiago de Xerez é transferida para a planície do rio Taquari, afluente do Paraguai. 1629. O bandeirante Antônio Raposo Tavares, em várias expedições para aprisionar indígenas, consegue destruir as reduções São Paulo, São Francisco Xavier, São Pedro, Conceição, Jesus Maria, Santo Antônio e São Miguel – ao todo eram sete provisórias. As de Loreto e Santo Inácio-guaçu foram abandonadas, mas depois reconstruídas pelo Padre Montoya em outro local. 1631. Inicia-se a migração para Sudoeste dos habitantes das reduções de Guairá por decisão do Padre Montoya que consegue permissão para armar os índios. As cidades de Guairá e Vila Rica são destruídas pelos paulistas. O caminho de peabiru, aberto pelos indígenas no século anterior, facilitou a invasão. Continua 193 Miranda Neto Continuação Cronologia Dos Núcleos Urbanos Na Área Das Missões 1632. Jesuítas estabelecem suas missões no Itatim (MS), ponto estratégico entre Prata, Peru e Amazônia. As investidas paulistas estimularam os jesuítas a expandirem as missões para outras áreas, transferindo suas respectivas populações para Sul e Oeste, após ataque dos paulistas. Ao mesmo tempo, as aldeias são fortificadas e armadas. 1636. Destruídas mais 15 reduções entre os rios Piratini, Ijuí Grande, Jacuí (ainda “provisórias”) no Rio Grande do Sul. Só depois tiveram edificação permanente. Muitas missões, embora atacadas, foram reconstruídas e fortificadas. 1641. Até este ano os bandeirantes devastaram inúmeras missões do Iguaçu, mas, após sua grande derrota na batalha de Mbororé, afluente do rio Uruguai (1641) rarearam novas incursões. A administração geral das missões decide transferir parte das populações para o sul, dando origem aos Sete Povos das Missões na região do Tape, Rio Grande do Sul: S. Nicolau (1626), S. Miguel (1632), S. Luiz (1673), S. Francisco de Borja (1690), S. Lourenço (1691), S. João Batista (1697), Sto. Ângelo (1707). 1680. A Colônia do Sacramento é fundada por D. Manuel Lobo, português, onde hoje é o Uruguai, logo atacada pelos espanhóis. Mesmo assim, foi reconstruída com ajuda dos ingleses, aliados do rei de Portugal. 1715. Tratado de Utrecht determina a restituição da Colônia do Sacramento aos portugueses. 1724. Espanhóis fundam Montevidéu, a certa distância da Colônia do Sacramento. 1737. Portugueses dão início à colonização do Rio Grande do Sul interessados no gado das estâncias. 1750. Tratado de Madri, entre os reis D. João V de Portugal e D. Fernando VI de Espanha, que eram cunhados, estabelece permuta entre Colônia do Sacramento para Espanha e Sete Povos das Missões para Portugal. O brasileiro Alexandre de Gusmão defendeu com brilhantismo os interesses lusos. A Espanha ficaria com as terras da margem esquerda do rio Ibicuí, ao Sul. Portugal ficaria com as terras da margem direita do rio Ibicuí, ao Norte. O rio Ibicuí é afluente do rio Uruguai e atravessa o Rio Grande do Sul de Leste para Oeste. Os rios Pardo e Jacuí demarcaram o posto avançado luso que resistiu às investidas de Buenos Aires: em 1752 é construído o forte ou “tranqueira invicta”, origem da cidade de Rio Pardo. 1753 a 1756. Guerra Guaranítica 1ª fase. Tropas luso-brasileiras são obrigadas a se retirarem devido à resistência dos guaranis apoiados pela Espanha e reforços dos padres. Sepé Tiaraju e Nicolau Languiru comandaram os índios nesta ocasião. Continua 194 ANEXOS Continuação Cronologia Dos Núcleos Urbanos Na Área Das Missões 1756 a 1759. Guerra Guaranítica 2ª fase, de resistência dos autóctones às demarcações resultantes do Tratado de Madri que impôs pesados revezes aos luso-brasileiros e portenhos empenhados em removê-los. A Espanha devia aos guaranis a defesa de Buenos Aires ameaçada pelos ingleses (1667 e 1671), de Assunção atacada pelos guaicurus (1734-1736) e o cerco à Colônia do Sacramento (1735 e 1760). 1759. A oposição dos missionários e guaranis serve de pretexto para a campanha de expulsão dos jesuítas encetada principalmente pelo Marquês de Pombal e concretizada em 1767 pelo próprio governo espanhol. Morre Fernando VI de Espanha, sucedido por seu irmão Carlos III. 1761. Portugueses retomam a Colônia do Sacramento, de onde são expulsos pelos espanhóis em 1762. 1773. O Papa Clemente XIV extingue a Companhia de Jesus sob o argumento de injustamente ter usufruído de benefícios, isenções e privilégios além de ter interferido nas decisões político-administrativas e nos negócios de Estado. 1777. Tratado de Santo Ildefonso: Colônia do Sacramento definitivamente entregue aos espanhóis. Em compensação, Portugal consolidava o domínio sobre terras extensas a oeste de Tordesilhas originadas das missões jesuíticas, após a expulsão da Ordem, e que vieram a constituir o Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, Mato Grosso, Amazonas e oeste do Pará. • O Paraguai teve origem nas povoações: Cidade Real do Guairá na foz do Piquiri, Assunción no rio Paraguai, Vila Rica do Espírito Santo no rio Ivaí e Encarnación ou Itapuã, no Paraná que, devido às incursões paulistas, se deslocaram para oeste. • A Argentina se originou das missões de Entre Rios (rios Paraguai e Uruguai) e da vila de Buenos Aires. • O Uruguai desenvolveu-se a partir do Tratado de Madri (1750) e a permuta entre a Colônia do Sacramento e os Sete Povos ou reduções da margem esquerda do rio Uruguai, remanescentes do 2º Ciclo Missioneiro (1675 a 1767) até a definitiva expulsão dos jesuítas: São Miguel, São Nicolau, São Borja, São Lourenço, São João Batista, Santo Ângelo, São Luiz Gonzaga. A Colônia do Sacramento, de colonização luso-brasileira, seria entregue aos espanhóis em troca dos Sete Povos das Missões. 195 Fontes Bibliográficas ABOU, Selim. La “Republique” Jesuite des Guaranis (1609 a 1768) et son Héritage. Perrin: Université Saint Joseph, 2002. ALMEIDA, Rita Heloisa de. O Diretório dos Índios: Um projeto de “Civilização” no Brasil do Século XVIII. Brasília: UnB, 1997. ALDEN, Dauril. The Making of an Enterprise: The Society of Jesus in Portugal, its Empire, and Beyond, 1540-1750. Stanford: Stanford University, 1996. ALENCASTRO, Luis Felipe de. O Trato dos Viventes: Formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Cia. das Letras, 2000. ANAIS DO SIMPÓSIO NACIONAL DE ESTUDOS MISSIONEIROS. Santa Rosa: Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras Dom Bosco, RS, do I ao X de 1975 a 1994. ASSUNÇÃO, Paulo de. Negócios Jesuíticos. São Paulo: Edusp, 2004. AZARA, Félix de. Descripción y Historia del Paraguay y de Rio de la Plata. Buenos Aires, 1943. BANDEIRA, Moniz. O Expansionismo Brasileiro e a Formação dos Estados na Bacia do Prata. Brasília / São Paulo: UnB., 1995. 197 Miranda Neto BELMONTE. No Tempo dos Bandeirantes. São Paulo: Melhoramentos, 1998. BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. BLUMERS, Teresa. La Contabilidad en las Reduciones Guaranies. Assunção: Universidad Católica, 1992. BRABO, Francisco Xavier. Inventários de los Bienes de los Jesuítas. Madri: 1872 BRUXEL, Arnaldo. Os Trinta Povos Guaranis. Caixas do Sul: UCS/Porto Alegre: EST, 1978. BUENO, Eduardo. Capitães do Brasil: a Saga dos Primeiros Colonizadores. Rio de Janeiro: Objetiva, 1999. BURDA, Janete. Missões Guaranis. Curitiba: Chain, 2001. CABEZA DE VACA, Alvar Núñez. Naufrágios e Comentários. Porto Alegre: L&PM, 2003. CARAMAN, Philip. The Lost Paradise: The Jesuit Republic in South America. New York: The Seabury Press, 1976. CARBONELL DE MASY, Rafael. Estrategias de Desarrollo Rural en los Pueblos Guaranies (1609-1767). Barcelona: Antoni Bosch, 1992. _________.Tecnica y Tecnologia Agrarias Apropriadas en las Misiones Guaranies. Estudos-Íbero-Americanos. Porto Alegre: PUC.RS vol XV, nº 1, jun, 1989. CARDIEL, José. Breve Relación de las Misiones del Paraguay. Buenos Aires: Teoria, 1994. CARDOSO, Ciro Flammarion. BRIGNOLI, Héctor. História Econômica da América Latina. Rio de Janeiro: Graal, 1984. CARTAS ÂNUAS de La Província Jesuítica del Paraguay. Buenos Aires: Academia Nacional de La Historia, 1991. 198 Fontes Bibliográficas CARVALHO, Delgado de. História Diplomática do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959. CASTELNAU – L’ÉTOILE, Charlotte. Les Ouvriers d’un Vigne Stérile: les Jésuites et la Conversion des Indiens au Brésil, 1580-1620. Paris: Caluste Gulbenkian, 2000. CÉSAR. Guilhermino. História do Rio Grande do Sul: Período Colonial. Porto Alegre: Martins, 2002 (3ª ed.). CHARLEVOIX, P. Histoire du Paraguay. Paris: 1756 (3 v). CLASTRES, Pierre. A Sociedade contra o Estado. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. CORTESÃO, Jaime. Raposo Tavares e a Formação Territorial do Brasil. Lisboa: Portugália, 1966. (2 vols.). _________. A Colonização do Brasil. Lisboa: Portugália, 1969. CORTESÃO, Jaime (org.). Jesuítas e Bandeirantes no Guairá (1549-1640). Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1951. (manuscritos da Coleção de Angelis). _________. Jesuítas e Bandeirantes no Itatim (1596-1760). Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1952. (manuscritos da Coleção de Angelis). CORTESÃO, Jaime (org.). Jesuítas e Bandeirantes no Tape (1615-1641). Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1969. (manuscritos da Coleção de Angelis). _________. Jesuítas e Bandeirantes no Paraguai (1703-1751). Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1955. (manuscritos da Coleção de Angelis). _________.Tratado de Madri. Colônia do Sacramento (1669-1749). Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1954. (manuscritos da Coleção de Angelis). _________.Do Tratado de Madri à Conquista dos Sete Povos. (1750-1802). Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1969. (manuscritos da Coleção de Angelis). COSTA, Maria de Fátima. História de um País Inexistente. O Pantanal entre os séculos XVI e XVIII. São Paulo: Estação Liberdade: Kosmos, 1999. 199 Miranda Neto DALCIN, Ignácio. Em Busca de uma “Terra sem Males”: As Reduções Jesuítico– Guaranis. Porto Alegre: EST, 1993. EISENBERG, José. As Missões Jesuíticas e o Pensamento Político Moderno. Belo Horizonte: UFMG, 2000. FERNANDES, Fernando Lannes. Da Conquista das Almas à Conquista do Território: Religião e Poder, Território e Identidade nos Aldeamentos Jesuíticos. Niterói: UFF, 2003. (tese mestrado). FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Viagem Filosófica pelas Capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá (1783-1793). Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional / Conselho Federal de Cultura, 1974. FLECK, Eliane. Sobre Martírios e Curas: Medicina nas Reduções JesuíticoGuaranis. Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre: PUC-RS, jun. 2005. FLORES, Moacyr. Colonialismo e Missões Jesuíticas. Porto Alegre: EST/ Instituto de Cultura Hispánica do RS,1983. FRANZEN, Beatriz Vasconcelos. Jesuítas Portugueses e Espanhóis e sua Ação Missionária no Sul do Brasil. São Leopoldo: Unisinos, 1999. _________. Jesuítas e Espanhóis no Sul do Brasil e Paraguai Coloniais.São Leopoldo: Unisinos, 2003. FREITAS, Décio. O Socialismo Missioneiro. Porto Alegre: Movimento, 1982 FREITAS, Décio et allii. Missões Jesuítico-Guaranis. São Leopoldo: Unisinos, 1999. FÜLOP-MILLER, René. Macht und Geheimnis der Jesuiten. Berlin: Knaur, 1932. FURLONG, Guillermo. Los Jesuítas y la Cultura Rioplatense. Buenos Aires: 1969. _________. Misiones y sus Pueblos Guaraníes. Buenos Aires:1962. GADELHA, Regina Maria. As Missões Jesuíticas do Itatim. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. 200 Fontes Bibliográficas Gadelha, Regina Maria. (ed) Missões Guarani: Impacto na Sociedade Contemporânea. São Paulo: Educ, 1999. GAMA, José Basílio da. O Uraguai. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 1941. GAMBINI, Roberto. Espelho Índio: a formação da alma brasileira. São Paulo: Axis Mundi, 2000. GAY, Jean Pierre. História da República Jesuítica do Paraguai. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1942. GOES FILHO, Synésio Sampaio. Navegantes, Bandeirantes, Diplomatas: um ensaio sobre a formação das fronteiras do Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 2001. GOLIN, Tau. A Guerra Guaranítica (1750-1761). Porto Alegre: UFRGS, 1999 (2ª edição). _________. A Fronteira. Porto Alegre: L&PM, 2002. _________. A Expedição: Imaginário Artístico na Conquista Militar dos Sete Povos Jesuítico-Guaranis. Porto Alegre: Sulina, 1997 GRAHAM, R. B. Cunninghame. A Vanished Arcadia: Some Account of the Jesuits in Paraguay: 1607 to 1767. New York: Haskell, 1968. GUTIERREZ, Ramón. As Missões Jesuíticas dos Guaranis. Rio de Janeiro: UNESCO/Fundação Pró-Memória, 1987. HARNISCH, Wolfgang Hoffmann. O Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Globo, 1941. HAUBERT, Maxime. Índios e Jesuítas no Tempo das Missões. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. HERNÁNDEZ, Pablo, S. J. Organización Social de las Doctrinas Guaraníes de la Compañia de Jesús. Barcelona: G. Gili, 1913 (2 vols.) HOLANDA, Sérgio Buarque de (coord.). História Geral da Civilização Brasileira. Tomo I. A Época Colonial. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. 201 Miranda Neto HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e Fronteiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. ________.Visão do Paraíso. São Paulo: Brasiliense, 1994. HUONDER, P.A., S.J. Deutsche Jesuiten Missionare. Freiburg, 1899. JACKSON, Robert. Missões nas Fronteiras da América Espanhola. Estudos Íbero-Americanos. Porto Alegre: PUC-RS, Dez.2003. KERN, Arno. Missões: uma Utopia Política. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982. ________. Utopias e Missões Jesuíticas. Porto Alegre: UFRGS, 1994. LACOUTURE, Jean. Os Jesuítas. Lisboa: Estampa, 1993. (2 vols.) LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1950. (10 vols.) LINHARES, Maria Yedda (org.). História Geral do Brasil. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008. LINHARES, Temístocles. História Econômica do Mate. Rio de Janeiro: José Olympio, 1969. LOBO, Eulália Maria Lahmeyer. Caminho de Chiquitos às Missões Guaranis de 1690 a 1718. São Paulo: Revista de História, 1960. LOBO, Haddock. História Universal. São Paulo: Egéria, 1979 (vol.2). LUGON, Clóvis. A Republica “Comunista” Cristã dos Guaranis . Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. LUGONES, Leopoldo. El Imperio Jesuitico. Buenos Aires: C.A.F.I., 1945. LUTTERBECK, Jorge Alfredo. S.J. Jesuítas no Sul do Brasil. São Leopoldo: Instituto Anchietano de Pesquisas, 1977. MADUREIRA, J. M. de. A Liberdade dos Índios, a Companhia de Jesus, sua Pedagogia e seus Resultados. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1929. 202 Fontes Bibliográficas MAEDER, Ernesto. Misiones del Paraguay: Conflictos y Disolución de la Sociedad Guarani, 1768-1850. Madri: Mapfre, 1992. MALLEY, John W. O. Os Primeiros Jesuítas. São Leopoldo: Unisinos, 2004. MELIÁ, Bartolomeu. El Guarani Conquistado e Reducido. Assunção: Universidad Católica, 1988. MELLO, Sebastião José de Carvalho e. (Marquês de Pombal) República Jesuítica Ultramarina. Lisboa: 1757 (1ª. ed). Porto Alegre: Martins, 1989 (2ª. ed). MENDONÇA, Marcos Carneiro de. O Marquês de Pombal e o Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1960. MENZ, Maximiliano. A Integração do Guarani Missioneiro na Sociedade SulRiograndense. Porto Alegre: UFRS, 2001. MIRANDA NETO, Manoel José de. Alexandre Rodrigues Ferreira. Rio de Janeiro: Revista do Livro 26, 1964. MONTERO, Paula (org.). Entre o Mito e a História. Petrópolis: Vozes, 1996. MONTOYA, Pe. Antônio Ruiz. Conquista Espiritual do Paraguai. Porto Alegre: Martins, 1985. MOOG, Clodomir Vianna. Bandeirantes e Pioneiros. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981. MORAES, Carlos Dante de. Figuras e Ciclos da História Rio-Grandense. Porto Alegre: Globo, 1959. MÖRNER, Magnus. The Political and Economic Activities of the Jesuits in the La Plata Region. Estocolmo, Pettersons, 1953. MOUSSY, Martin de. Mémoire sur la Ruine des Missions des Jesuites. Paris, 1860. NEUMANN, Eduardo. O Trabalho Guarani Missioneiro no Rio da Prata Colonial, 1640-1750. Porto Alegre: Martins, 1996. 203 Miranda Neto NEVES, Luiz Felipe Baêta. O Combate dos Soldados de Cristo na Terra dos Papagaios: Colonialismo e Repressão Cultural. Rio de Janeiro: ForenseUniversitária, 1978. OLIVEIRA, Marilda. Identidade e Interculturalidade. História e Arte Guarani. Santa Maria: UFSM, 2004. ORNELLAS, Manoelito de. Gaúchos e Beduínos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956. PAGE, Carlos (ed.) Educación y Evagelización. X Jornadas Internacionales sobre Misiones Jesuíticas. Córdoba: Universidad Católica, 2005. PASTELLS. Pablo, S.J. História de la Compañia de Jesus en la Província del Paraguay. Madrid: Suárez, 1912. PERAMÁS, José Manoel, S.J. La República de Platón y los Guaraníes. Buenos Aires: M.C., 1946. POPESCU, Oreste. El Sistema Económico en las Misiones Jesuíticas. Barcelona: Ariel, 1967. PORTO, Aurélio. História das Missões Orientais do Uruguai. Vol. I. O Ciclo da Civilização Jesuítica das Missões. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1943. PRADO JR. Caio. História Econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1959. (5a ed.) _________. Formação do Brasil Contemporâneo. Colônia. São Paulo: Brasiliense, 1976. (14a ed.). PUC-SP. IX Jornada Internacional sobre as Missões Jesuíticas. São Paulo. PUCSP, 8 a 11 Out. 2002. QUEVEDO, Júlio. A Guerra Guaranítica. São Paulo: Ática, 1996. _________. As Missões: Crise e Redefinição. São Paulo: Ática, 1993. _________. Guerreiros e Jesuítas na Utopia do Prata. Bauru: Sagrado Coração, 2000. 204 Fontes Bibliográficas RABUSKE, Arthur, S. J. Padre Antonio Sepp, S. J., o Gênio das Reduções Guaranis. São Leopoldo: Unisinos, 2003. _________. A Doutrina de Juli como Modelo das Reduções. Anais I Simpósio Nacional de Estudos Missioneiros. Santa Rosa: Faculdade Dom Bosco, 1975. RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro. A Formação e o Sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. RIBEIRO, João. História do Brasil. Rio de Janeiro: São José, 1957. RODRIGUES, José Honório. História da História do Brasil. Histografia Colonial. São Paulo: Nacional, 1979. _________. José Honório. O Continente do Rio Grande. Rio de Janeiro: São José, 1954. ROSA, Henrique. Os Jesuítas: de sua origem aos nossos dias. Petrópolis: Vozes, 1954. SCHADEN, Egon. Aculturação Indígena. São Paulo: Pioneira, 1969. _________. Aspectos Fundamentais da Cultura Guarani. São Paulo: Edusp, 1974. SCHALLENBERGER, Erneldo. Missões Jesuíticas: Fronteiras Coloniais do Prata: Canoas, RS, La Salle. 1998. _________. A Integração do Prata no Sistema Colonial. Toledo, PR: Toledo, 1997. SEPP, Antônio. Viagem às Missões Jesuíticas. São Paulo: Edusp, 1980. SEVERAL, Rejane da Silva. A Guerra Guaranítica. Porto Alegre: Martins, 1985. SILVEIRA, Hemetério José Velloso da. As Missões Orientais e seus Antigos Domínios. Porto Alegre: Erus, 1979. SIMON, Mário. Os Sete Povos das Missões: Trágica Experiência. Santo Ângelo: GESA, 1984. 205 Miranda Neto SIMONSEN, Roberto. História Econômica do Brasil (1500-1820). São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969. SOARES, Teixeira. História da Formação das Fronteiras do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1973. SODRÉ, Nelson Werneck. Formação Histórica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1968. SOUZA, José Otávio Catafesto de. O Sistema Econômico nas Sociedades Indígenas Guaranis Pré-Coloniais. Horizontes Antropológicos. Porto Alegre: ano 8, nº 18, dez. 2002. TAUNAY, Affonso de E. História das Bandeiras Paulistas. São Paulo: Melhoramentos, 1975 (3 vols.). TECHO, Nicolás del. Historia de la Província del Paraguay de la Compañia de Jesús. Madri: Uribe, 1897. TESCHAUER, Carlos. História do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Selbach, 1918 a 1922. (3 vols.) VAINFAS, Ronaldo. Dicionário do Brasil Colonial (1500-1808). Rio de Janeiro: Objetiva, 2000. VASCONCELOS, Simão de. Crônica da Companhia de Jesus. Petrópolis: Vozes, 1977. VELLINHO, Moysés. Capitania d’El-Rey. Porto Alegre: Globo, 1964. _________. Fronteira. Porto Alegre: Globo, 1973. VERÍSSIMO, Érico. O Tempo e o Vento. O Continente. Rio de Janeiro: Aguilar, 1967. VERÍSSIMO, Ignácio José. Pombal, os Jesuítas e o Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa do Exército, 1961. VIANNA, Hélio. História Diplomática do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1958. 206 Fontes Bibliográficas VIANNA, Hélio (org.). Jesuítas e Bandeirantes no Uruguai (1611-1758). Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1970. (manuscritos da coleção de Angelis). WEHLING, Arno e Maria José. Formação do Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005. 207 Mapas Mapas Mapa 1 - Rompe-se o cordão de Tordesilhas Fonte: TEIXEIRA SOARES (1973). 211 Miranda Neto Mapa 1A - A América do Sul no século XVII Fonte: CARAMAN, Philip (1976). 212 Mapas Mapa 2 - Missões do Guairá Fonte: QUEVEDO (1996). 213 Miranda Neto Mapa 2A - Missões de Itatim (1631-1669) Fonte: CARAMAN (1976). 214 Mapas Mapa 3 - Reduções Jesuíticas do Tape (até 1640) Fonte: QUEVEDO (1996). 215 Miranda Neto Mapa 3A - Estâncias e Ervais das Missões Orientais (1637-1737) Fonte: HARNISCH (1941). 216 Mapas Mapa 4 - Trinta povos das Missões Jesuíticas Fonte: QUEVEDO (1996). 217 Miranda Neto Mapa 5 - Algumas Bandeiras Fonte: GOES FILHO (2001). 218 mapas Mapa 6 - Importância estratégica da Colônia do Sacramento Fonte: SOARES (1973). 219 Miranda Neto Mapa 7 - A rota das monções Cuiabanas e do caminho de Peabiru 220 mapas Mapa 8 - As flutuações da fronteira no sul Fonte: SOARES (1973). 221 Miranda Neto Mapa 9 - Os fortes balizaram a nova fronteira Fonte: SOARES (1973). 222 Amostras da Arte Missioneira Amostras da Arte Missioneira Amostra 1 - Vista de uma redução Fonte: QUEVEDO (1996). Amostra 2 - Reconstituição de uma Missão Fonte: FREITAS (1999). 225 Miranda Neto Amostra 3 - Esquema da redução de Trinidad, no Paraguai Fonte: LUGON (1977). Amostra 4 - Instrumentos musicais Fonte: QUEVEDO (1996). 226 Amostras da Arte Missioneira Amostra 5 - San Pedro de las Lágrimas Fonte: FREITAS (1999). Amostra 6 - Ruínas da Missão de São Miguel Fonte: FREITAS (1999). 227 Miranda Neto Amostra 7 - Ruínas do Cabildo de Trinidad no Paraguai Amostra 8 - Interior da Igreja de São Miguel Fonte: QUEVEDO (1996). 228 Amostras da Arte Missioneira Amostra 9 - A construção das reduções Fonte: FREITAS (1999). 229 Miranda Neto Amostra 10 – Arte das Missões Fonte: QUEVEDO (1996). 230 Créditos das Imagens MAPAS CARAMAN, Philip. The Lost Paradise: The Jesuit Republic in South America. New York: The Seabury Press, 1976............................................................... Mapas 1A e 2A. GOES FILHO, Synésio Sampaio. Navegantes, Bandeirantes, Diplomatas:São Paulo: Martins Fontes, 2001........................................................... Mapas 5 e 7. HARNISH, Wolfgang Hoffmann. O Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Globo, 1941............................................................................................................................Mapa 3A. QUEVEDO, Júlio. A Guerra Guaranítica. São Paulo: Ática, 1996......Mapas 2, 3 e 4. SOARES, TEIXEIRA, História da Formação das Fronteiras do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1973.................................................. Mapas 1, 6, 8 e 9. 231 Miranda Neto AMOSTRAS FREITAS, Décio et allii. Missões Jesuítico-Guaranis. S. Leopoldo: Unisinos, 1999............................................................................. Amostras 2, 5, 6 e 9. LUGON, Clóvis. A República “Comunista” Cristã dos Guaranis. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977..................................................................Amostra 3. QUEVEDO, Júlio. A Guerra Guaranítica. São Paulo: Ática, 1996....Amostras 1, 4, 7, 8 e 10. 232 Índice de Nomes Acosta, José de Acquaviva, Cláudio (padre geral) Adami, Enrico Alembert (Jean Baptiste Le Rond d´) Álfaro, Diogo de (padre) Álfaro, Francisco de Almeida, Regina de Alpoín, Manuel Cabral Altamirano (padre) Anchieta, José de Andrade, Gomes Freire de Andreotti, Décio Árias, Herman d´. Asperger, Segismundo (padre) Assunção, Paulo de Azara, Félix de Basauri, Diego Berger, Louis (padre) Bernal, Antonio Biber Bolaños, Luís de Bosi, Alfredo Brasanelli, José Bucarelli, Francisco de Paula Buenaventura, Alonso Cabeza de Vaca, Alvar Núnes Caboto, Sebastian Cabral, Manuel Caravaglia, Juan Carlos Cárdenas, Juan de Páginas 110, 142 110, 159 64 15 142 53, 115 111 53 124 88, 105, 129 28, 124 173 159 46, 64, 130 13, 111 126 64 56, 130 101 174 159 155 78 125, 126, 154 159 28 18 168 46 115, 142 233 Miranda Neto Cardenosa, Bartolomeu Cardiel, José (padre) Cardoso, Ciro Flammarion Carlos III Carlos V Carreras, Jaime (padre) Castillo, Juan de Cataldino, José (padre) Céspedes, Francisco de Cheuiche, Alcy Clemente XIV (papa) Couto, Francisco Danesi, Pablo (padre) De Martino Durán, Nicolau Espinosa, Pedro Falkner, Thomas Favacho, André Picanço Felipe II Fields, S.J. Franck, Charles (frei) Freitas, Décio Gadelha, Regina Garcia, Aleixo Garriga, Antônio Garrige, Antonio (padre) Giannetti, Eduardo González, Rocque Grã, Luiz de Gusmão, Alexandre de Hénard (padre) Hernández, Pablo Irala, Domingo Martinez de 234 78 70, 130, 139 114 126, 151 28, 130 55 164, 171 78, 165 163 15 151 64 55 168 65 78 64 171 76, 161 159 55 14 172 18 129 40 13 28, 69, 78, 91, 92, 115, 142, 163, 164, 168, 171 104 7, 8 168 38, 128 120, 134 índice de nomES João V (dom) José I (dom) Júlio II (papa) Kern, Arno Labrador, Sánchez Languiru, Nicolau Lobato, João López, Solano Loyola, Inácio de (Íñigo Lopes da Recalde) Lozano, Pedro (padre) Lugon, Clóvis Luís de Bolaños (frei) Maeder, Ernesto Mastrilli, Durán (padre) Másy, Rafael Carbonell de Meliá, Bartolomeu Mendoza (padre) Montenegro, Pedro (padre) Montes, Enrique Montes, Juan de Montoya, Antonio Morais, Francisco de More, Thomas Morner, Magnus Mostesquieu (Charles de Secondat, Barão de) Moussy, Martin de Neumann, Eduardo Neumann, João Batista Ñezu (xamã guarani) Nieremberg, Juan Eusébio Nietzsche 7 125 133 109 45 124 18 128 17, 21, 77, 170, 174 64, 130 60 28, 98 128 56, 142, 166 13, 40, 73, 75, 95, 157 170 166 46, 64, 130 18 64 28, 82, 91, 96, 106, 110, 129, 142, 165, 167 19 15, 93 13 15 129 115 129 163 129 174 235 Miranda Neto Nóbrega, Manuel da Nogueira, Ephigênia Nuñez, Lauro (padre) Oñate (padre) Orozco, Gregório de (padre) Ortega, S.J. Paicá, Inácio (guarani) Pais, José da Silva Paulo III (papa) Pizarro, Francisco Platão Pombal, Marquês de (Sebastião José de Carvalho e Melo) Popescu, Oreste Prémoli, João Batista Quiroga, José (padre) Ramírez, Melchior Ransonnier (padre) Restivo (padre) Rodrigues, Alonso Rodrigues, Jerônimo Romero, Juan Schaden, Egon Schmelzer Schmidt, Martin Sepp, Antonio Sepúlveda, Juan Gines de Sequeira, Inácio Serdahely (padre) Serrano, José Silva, Francisco Carlos Teixeira da Sodré, Nelson Werneck Solano, Francisco 236 88 172 149 142 51 159 130 28 18 18 15 26, 29, 125, 150 13 77, 78 118, 129 18 168 129 164, 171 19 110 170 174 173 56, 64, 70, 91, 92, 130, 138, 174 105 19 130 129 114 155 98 índice de nomES Solis, Juan Díaz de Suárez, Boaventura (padre) Tamburini, Michele Angelo (Padre Geral) Tiaraju, Sepé Torres, Diego de (padre) Torres, Domingo Tubi Chapota, Januário (guarani) Valdelírios Marquês de Van Suerck (padre) Vasconcelos (padre) Vassaux, Jean Baez (padre) Vera, Pedro de Veríssimo, Érico Viana, Joaquim de Vieira, Antônio Visconti, Inácio Vitória, Francisco de (frei) Voltaire (François Marie Arouet) Yapuguay, Nicolas (guarani) Zea (padre) Zípoli, Domenico 18 56 40 124 142, 159, 160 64, 78 84 124 168 130 56, 130 53 15 58 139 123 159 15 130 101 78, 173 237 Formato 15,5 x 22,5 cm Mancha gráfica 12 x 18,3cm Papel pólen soft 80g (miolo), cartão supremo 250g (capa) Fontes Verdana 13/17 (títulos), Book Antiqua 10,5/13 (textos)