A UTOPIA POSSÍVEL
Missões Jesuíticas em Guairá, Itatim e Tape,
1609-1767, e seu suporte econômico-ecológico
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ao Ministério das Relações Exteriores e tem a finalidade de levar à sociedade civil
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Miranda Neto
A UTOPIA POSSÍVEL
Missões Jesuíticas em Guairá, Itatim e Tape,
1609-1767, e seu suporte econômico-ecológico
Brasília, 2012
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Missões Jesuítico-Guaranis. São Leopoldo: Unisinos, 1999.
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Impresso no Brasil 2012
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Miranda Neto.
A utopia possível : missões jesuíticas em Guairá, Itatim e Tape, 1609-1767,
e seu suporte econômico-ecológico / Miranda Neto. ─ Brasília : FUNAG, 2012.
237 p.; 15,5 x 22,5 cm.
ISBN: 978-85-7631-386-1
1. Jesuítas - Brasil. 2. Missões religiosas. I. Fundação Alexandre de Gusmão.
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Rafael Chambouleyron
Regina Gadelha
Regina Daguer
Verônica Secreto
APRESENTAÇÃO
Miranda Neto nos oferece um relato fascinante intitulado “A Utopia
Possível”, ou seja, a história das missões jesuíticas das regiões do Guairá,
Itatim e Tape e a sua agonia no século XVIII. Curiosamente, os fatos que
tanto sofrimento iriam causar provêm de um decisão sábia das coroas da
Espanha e de Portugal para dirimir velhas pendências sobre a colônia do
Sacramento, que já haviam produzido tanto sangue. Os enfrentamentos
militares contínuos motivados pela presença portuguesa defronte a
Buenos Aires constituíam um desafio insuportável para as autoridades
portenhas e que indiscutivelmente perturbavam o importante comércio
da prata que chegava da Bolívia para ser exportada para a Espanha.
O mestre do Tratado de Madri, de 1750, foi o brasileiro Alexandre
de Gusmão, homem de confiança do rei de Portugal D. João V. Se na
época a questão da colônia do Sacramento era importante para Lisboa,
ele enxergava muito mais longe e tentou resolver o problema que tanto
irritava espanhóis e argentinos, conseguindo comprovar pela teoria do uti
possidetis, o direito de quem tinha a posse da terra. Com a assinatura desse
importantíssimo tratado, ele alargou extraordinariamente as fronteiras
norte e oeste de nosso país, formando assim o Brasil de hoje.
Gusmão utilizou habilmente o fato de que os espanhóis haviam
ultrapassado largamente as fronteiras da linha de Tordesillas no Oceano
Pacífico, ao conquistar e colonizar as ilhas Filipinas, valiosa colônia
espanhola. A troca das Filipinas pelas imensas terras ao norte e a oeste da
linha demarcada de Tordesillas, que passava pelo meridiano de Belém,
não significava muito para os espanhóis, que estavam interessados em
resolver a questão da colônia do Sacramento. Essa troca nos obteria efeitos
espetaculares pela demarcação das fronteiras com a Venezuela, Colômbia
e Bolívia pelos padres matemáticos italianos contratados por Alexandre de
Gusmão e que empurraram nossos limites até os contrafortes do Andes.
Os espanhóis não davam valor a essas áreas, nem as conheciam bem,
tanto que nem chegaram a enviar seus técnicos para fazer o trabalho de
demarcação dessas fronteiras, que ficaram pacificamente estabelecidas. As
autoridades espanholas aceitaram tacitamente os cálculos astronômicos
feitos pelos técnicos italianos contratados pelos portugueses para delimitar
aquelas enormes áreas.
Já no sul era preciso ajustar fronteiras povoadas e quem pagou
altíssimo preço por isso foram os indígenas das missões jesuíticas. Milhares
de índios tiveram de ser deslocados à força dos locais onde viviam para
as outras margens dos rios, já que o antigo território espanhol, onde
estavam instaladas, passou a ser território português. Os sofrimentos
foram imensos, resultado de combates ferrenhos, e a disputa, que parecia
dirimida pela simples aplicação dos tratados de Madri e de Santo Ildefonso,
produziu um verdadeiro banho de sangue. A resistência dos jesuítas foi
punida pela sua expulsão de Portugal e do Brasil pelo Marquês de Pombal.
Após a independência da Argentina, seus dirigentes continuaram criando
litígios com as autoridades brasileiras sobre aquela região, que só foram
resolvidos em definitivo na última década do século XIX pelo barão do
Rio Branco, que obteve do presidente dos Estados Unidos da América
uma sentença favorável de arbitragem em nosso favor.
O relato de Miranda Neto, escrito em linguagem elegante,
agradável e escorreita, é uma avaliação bem fundamentada, imparcial
e competente da formação das missões, da sua eficiente organização
e o drama de sua transferência, tudo baseado em novas pesquisas que
enriquecem a bibliografia desses problemas históricos da época. As belas
ruínas das missões jesuíticas ainda estão a testemunhar a importância
daquelas instalações.
Rio de Janeiro, maio de 2012.
Vasco Mariz
Sócio emérito do IHGB
SUMÁRIO
Introdução........................................................................................................ 13
I - O Mito do Maravilhoso............................................................................. 17
II - As Missões Guaranis............................................................................... 21
2.1. Fases da Colonização Missioneira...................................................... 29
III - Estrutura, Produção e Renda................................................................. 33
3.1 Caixas de “Censos” da Comunidade.................................................. 36
3.2 Ofícios de Missões................................................................................. 37
3.3 Agricultura, Abastecimento e Comercialização................................ 40
3.4 Alimentação............................................................................................ 42
3.5 Erva-Mate................................................................................................ 44
3.6 Autossustentabilidade.......................................................................... 47
3.7 Pecuária................................................................................................... 50
3.8 Manufaturas, Artesanato, Artes Plásticas, Música........................... 55
3.9 Tecnologia............................................................................................... 57
IV - O Cotidiano da Criatividade Missioneira.......................................... 61
4.1 Saúde....................................................................................................... 63
4.2 Vestuário................................................................................................. 66
4.3 Plano Urbano. Traçado das Missões................................................... 67
4.4 As Construções...................................................................................... 69
4.5 A Redivisão Territorial......................................................................... 72
4.6 As Igrejas e seus Construtores............................................................. 76
4.7 Construção da Catedral de São Miguel Arcanjo............................... 77
4.8 Padres Construtores de Igrejas e demais construções...................... 78
V - Cultura, Rituais e Religiosidade............................................................ 79
VI - Importância dos Jesuítas e o Legado das Missões............................ 87
6.1 Formação de Capital............................................................................. 95
6.2 Relações entre Jesuítas Portugueses e Espanhóis........................... 105
6.3 Pedagogia da Alternância.................................................................. 113
6.4 Mão de Obra......................................................................................... 114
VII - A Utopia Possível. Fim de Um Sonho?............................................ 117
7.1 Obras dos Guaranis e Jesuítas das Missões..................................... 129
7.2 Outros Grupos de Missões sob modelo Guarani............................ 130
Considerações Finais.................................................................................... 133
Apêndice Teórico – Metodológico............................................................. 157
Anexos
Glossário.......................................................................................................... 179
Estrutura Político-Administrativa............................................................... 182
Elite Dirigente................................................................................................. 183
As Principais Missões e seus Fundadores.................................................. 185
Cronologia da Instalação das Missões........................................................ 186
Evolução Demográfica das Missões............................................................ 188
Cronologia das Missões originais atacadas pelos Paulistas.................... 190
Cronologia dos ataques dos Bandeirantes................................................. 190
Cronologia das Missões da Argentina, do Uruguai, do Paraguai.......... 191
A Relativa Especialização Econômico-Espacial......................................... 191
Padres que se Destacaram............................................................................ 192
Cronologia dos Núcleos Urbanos na Área das Missões........................... 193
Fontes Bibliográficas.................................................................................... 197
Mapas.............................................................................................................. 209
Amostras da Arte Missioneira.................................................................... 223
Crédito das Imagens..................................................................................... 231
Índice de Nomes............................................................................................ 233
Introdução
Admiração e entusiasmo pela extraordinária experiência das
missões jesuítico-guaranis caracterizaram o primeiro contato com a rica
documentação sobre o tema. Eduardo Giannetti expressou com muita
propriedade:
A idéia de perfeição é obviamente uma ficção humana. Seu grande mérito –
como é o caso das utopias em geral – é servir como um contraste que inspire
e permita realçar com tintas fortes a extensão do hiato entre o que é e o que pode
ser: a distância que nos separa do nosso potencial. Mais que um sonho, o ideal é
uma arma com a qual se desnuda um mundo injusto, corrompido e opressivo.
Muito embora alguns ensaios sobre esta matéria sejam polêmicos
e a maioria tente abordar os aspectos antropológicos, sociais, políticos e
religiosos, pouquíssimos se detiveram na análise econômico-ecológica
do empreendimento. Entre estes, destacam-se os de Rafael Carbonell de
Másy, Oreste Popescu, Magnus Mörner e Paulo de Assunção.
Deve-se ressaltar ainda a estratégia de defesa dos terrenos
conquistados, caracterizando uma geopolítica colonial de longo prazo de
ocupação produtiva e colonização que não desprezava as fortificações,
as milícias e o armamento. A integração entre os núcleos povoados era
alcançada através dos Ofícios de Missões com diligente organização,
coordenação, administração e racionalidade até na divisão do tempo entre
trabalho, lazer e atividades religiosas.
13
Miranda Neto
O combate persistente à ociosidade e ao desperdício, a valorização
do trabalho produtivo, o amor à natureza, o respeito ao equilíbrio ecológico
e à diversidade completavam o cotidiano das missões nos séculos XVII e
XVIII cuja organização incentivava a ajuda mútua ou putirum (mutirão)
através de atividades lúdicas e cantorias animando as crianças que,
brincando e se divertindo, aprendiam as tarefas.
Uma das maiores dificuldades dos jesuítas foi conseguir solucionar
o dilema imediatismo x poupança convencendo os autóctones da necessidade
de armazenar parte da produção agrícola para garantir seu sustento no
amanhã, impedindo-os de consumirem ainda durante a colheita. Os
alimentos de ciclo curto eram, portanto, os preferidos como a mandioca,
o milho e a banana.
A Utopia Possível pretende divulgar o sucesso de uma experiência de
desenvolvimento regional integrado de pueblos guaranis que dominaram
terras das bacias dos rios Paraguai, Paraná e Uruguai, do século XVII ao
século XVIII em cerca de 500.000 Km².
A análise do suporte econômico-ecológico do “modelo missões”
revela a atuação dinâmica dos jesuítas e sua diversificada cultura
humanista, a introdução de nova disciplina e tecnologia tanto no setor
rural como no artesanato, na construção civil e naval e, sobretudo, o
usufruto racional de biodiversidade regional, respeitando o equilíbrio
ecológico. Ao criarem uma alternativa de sistema integrado de vários
núcleos urbanos, interligados com seu respectivo entorno agropecuário de
subsistência e abastecimento, conseguiram formar uma sociedade dotada
de avançada tecnologia por quase dois séculos, segundo planos estudados
e aperfeiçoados ao longo do tempo, adaptados à região e incorporados à
vivência e à cultura guarani.
O maior mistério é descobrir de que modo os missionários
conseguiram transferir populações inteiras de ameríndios para povoados
sob outra organização social – verdadeira transmigração de tribos diversas,
com culturas diferenciadas. E como conseguiram – respeitando em parte
a cultura autóctone – integrar aos poucos esses povos em uma proposta
alternativa aceita pelos guaranis, copartícipes da gestão comunitária dos
vários núcleos urbanos. Historiadores estão empenhados em desvendá-lo.
As missões jesuíticas desmentem em parte a noção geralmente
aceita da irremediável destruição de culturas autóctones pela conquista,
colonização ou contato. Evidente que neste processo de aculturação há
sempre uma certa perda de identidade cultural, que em casos extremos,
pode até representar o fim de um grupo étnico. Décio Freitas, da Unisinos
(Universidade do Vale do Rio dos Sinos), ressalta que:
14
Introdução
As missões jesuítico-guaranis desmentiram, de forma concreta e eloqüente,
o preconceito de que os índios seriam incapazes para a vida sedentária
e inadaptáveis às formas superiores de civilização, argumento utilizado
para tentar justificar sua escravização ou extermínio. Na verdade, criaram
comunidades livres, fraternais e igualitárias sem outras armas que a
compreensão e a persuasão, em contraste com a maciça e desumana violência
que marcou o empreendimento colonial.
Novos talentos nas artes, na manufatura, no artesanato, na música,
na escultura, na construção civil e naval, na cerâmica, na tipografia, na
ferraria, na marcenaria e na carpintaria demonstraram que os neófitos
estavam felizes, orgulhosos e realizados em sua nova condição de aldeados.
A política de aldeamentos colocava os índios em uma condição
jurídica específica atribuindo-lhes, além de obrigações, alguns direitos
que eles lutaram por garantir. Assumiram-se como sujeitos desse processo
de mudança que os transformou e adaptou à nova realidade, utilizando
com eficiência o instrumental necessário para a plena realização de sua
identidade missioneira, colocado à sua disposição pelos jesuítas.
Qual a importância, para o Brasil de hoje, de se analisar uma
alternativa válida no século XVIII? Na verdade, o sucesso das missões
jesuítico-guaranis são a prova de que um modelo de desenvolvimento
sustentável tem muito a nos ensinar quanto ao trabalho comunitário, à
propriedade coletiva dos meios de produção, à tolerância a mundividências
diversas, à preservação da biodiversidade.
Apesar de severos críticos dos jesuítas, Voltaire, D’Alembert e
Montesquieu destacaram o sucesso das missões guaranis, fundamentadas
nas Utopias de Platão e Thomas More, como “triunfo da Humanidade”.
Inúmeros episódios da epopeia guarani de tão ricos e dramáticos podem
inspirar argumentos para romances, filmes e minisséries de TV como já
ocorreu com A missão, filme da década de 1970, O Tempo e o Vento, romance
de Érico Veríssimo e Sepé Tiaraju, romance de Alcy Cheuiche.
Esses colonizadores-missionários desbravadores ultrafronteiras
eram homens de grande tenacidade e determinação que, com astúcia,
observavam atentamente o processo social para poder transformá-lo,
apesar da escassez de seus membros. Mas eles não eram conquistadores.
Sua sobrevivência e seu sucesso não foram resultado de força física superior
nem de esmagadora dominação cultural mas de uma bem-sucedida e
inevitável adaptação à sociedade indígena.
O mais importante aspecto da República Guarani é ter
comprovado na prática a viabilidade da alternativa autossustentável,
15
Miranda Neto
revelando profundo respeito aos recursos naturais e perfeita integração
de diversas tecnologias e visões de mundo ao reproduzir com êxito a
opção agroambiental.
Ainda não foi devidamente avaliada a importância do extraordinário
sucesso alcançado pelas missões guaranis durante mais de século e meio,
apesar das brutais investidas dos bandeirantes, das crises de abastecimento,
das doenças, dos ataques das feras e de outros povos belicosos. Os jesuítas
se destacaram como missionários, eficientes administradores, educadores
até hoje disputados, linguistas, artistas, construtores, arquitetos, músicos,
cultos e hábeis conciliadores e negociadores diplomatas além de religiosos
competentes em sua catequese que respeitava outra cultura e outros valores
dentro de engenhoso “modelo de segregação relativa” do autóctone.
Analisar os resultados da ação desta diversificada cultura humanista
que possibilitou o desenvolvimento do sistema autossustentável com
tecnologia cabocla e usufruto racional da biodiversidade constitui o
objetivo do presente estudo.
Torna-se vital desvendar o sentido da utopia que decretou
seu próprio destino ao tornar-se, na colônia, um projeto anticolonial.
Na verdade, as missões provaram ser a utopia possível desenvolvendo
com pertinácia a opção autossustentável com gestão compartilhada. E
conseguiram propagar sua herança cultural séculos afora. Ícones e relatos,
tecnologia e conhecimento, produção e poder até hoje continuam vívidos
nas ruínas das catedrais, nas imagens dos santos, na saga dos jesuítas e
dos guaranis, no maravilhoso esplendor alcançado com o aprimoramento
contínuo das artes e ofícios cuja preciosa amostra arqueológica espelha a
luta recorrente para a conquista sublime da universal utopia de felicidade,
que transcende os povos e os tempos.
16
I - O Mito do Maravilhoso
O fascínio do mistério e da riqueza sempre impregnou o imaginário
dos jovens idealistas do século XVI na Europa, ávidos em conquistar
fama e adeptos da cruzada de expansão do cristianismo pelo mundo.
Para o jovem europeu havia o anseio de tornar-se missionário em terras
misteriosas no Novo Mundo. O ethos de peregrino era recorrente assim
como o desejo de conhecer-aprender-ensinar-agir-ajudar para transformar a
humanidade a partir da criança.
A história da Companhia de Jesus e da reforma da cristandade na
primeira metade do século XVI está ligada à vida e obra de seu fundador,
Inácio de Loyola. Nascido em 1491 em um castelo na Espanha, empregou-se
jovem como pajem real. Ao dedicar-se à carreira militar, acabou ferido na perna
durante a defesa da cidade de Pamplona contra os franceses em 1521. Durante
sua demorada convalescença, concentrou-se em profundas meditações e
decidiu reciclar sua vida. Original interpretação da fé cristã e prática de devoção
religiosa, seu livro Exercícios Espirituais – fruto de vários anos de reflexão –
tornou-se mais tarde principal guia dos missionários.
Cursou a Universidade de Salamanca aprofundando-se em Teologia,
História, Geografia e Literatura (sobretudo sacra). Concluiu os estudos em
Paris onde o ambiente cultural lhe era favorável. Em 1539, com mais seis
colegas universitários, fundou a Companhia de Jesus, então ainda uma
ordem laica baseada em hierarquia, disciplina, organização, humildade,
simplicidade, caridade, persistência, algumas qualidades herdadas de sua
formação militar e que se tornaram muito úteis à catequese de outros povos.
17
Miranda Neto
Só em 1540, o Papa Paulo III, interessado na contrarreforma
religiosa e na expansão do cristianismo através do mundo, reconheceu a
Sociedade de Jesus conferindo-lhe um status religioso e prestigiando sua
atuação global.
As terras misteriosas da bacia do alto rio Paraguai, por todo o
século XVI, despertavam a cobiça e a imaginação de nobres e aventureiros
europeus que, movidos por relatos de fabulosas riquezas, organizaram
custosas expedições rio acima a partir do Prata. Como as reais fronteiras
permaneciam indefinidas, missionários, colonizadores, bandeirantes e
monçoeiros1 competiam na dominação e aculturação do gentio autóctone.
As expedições paulistas, de início visando o ouro e as pedras
preciosas de Cuiabá (MT), utilizavam o itinerário a partir de Porto Feliz (SP) –
que faziam questão de manter secreto – conhecido só de alguns bandeirantes
pioneiros, pois percorriam território ainda em litígio. O ciclo das águas, os
selvagens hostis, as feras e as febres palustres completavam os desafios que
em parte garantiam a inacessibilidade desta região misteriosa e, apesar de
tudo, atraente. Até o final do século XVIII ela permaneceu como terra de
ninguém e, portanto, disputada. Só com os tratados de limites entre Portugal
e Espanha (de 1750 a 1801) ganhou contornos mais definidos e se tornou
mundialmente conhecida. Entretanto, nunca perdeu seu caráter de região
de passagem, via de acesso às minas mato-grossenses, riquezas dos Andes e
Serras de Prata. Subindo o rio da Prata e o rio Paraguai, poder-se-ia atravessar
o Chaco ou a lagoa de Xarayes (Pantanal) sempre transpondo terrenos
encharcados entre rios, lagoas e cursos d’água menores, que apresentavam
paisagens rapidamente mutáveis regidas pelo ciclo das águas. As notícias das
aventuras em busca de riquezas se espalhavam.
Particular característica da história das terras do alto Paraguai era o
domínio indígena durante por mais de dois séculos sobre esta significativa
região cobiçada tanto por hispânicos como por luso-brasileiros.
Antes do conquistador Francisco Pizarro, o português Aleixo
Garcia, náufrago de Solis no sul de Santa Catarina (1515), percorreu os
rios Paraná e Paraguai acima, atravessou o Pantanal (1520) e o Chaco,
atingiu o Peru atual (terras dos Incas), descobriu suas riquezas, combateu
os autóctones e se apoderou de valiosas peças de prata, adornos e
roupas. Rechaçado, carregou tudo de volta ao Pantanal onde, com seus
companheiros, terminou morto pelos selvagens.
Em 1526, Sebastian Caboto, Melchior Ramírez e Enrique Montes
também resolveram subir o rio da Prata em direção às sonhadas riquezas
1 Expedicionários fluviais em busca de índios e riquezas.
18
O Mito do Maravilhoso
tão guardadas na região do Paraguai. Defrontaram-se com os Payaguaes,
senhores da região, mas acabaram saindo vitoriosos e em 1530, retornaram
a Sevilha, Espanha, portando algumas peças de ouro e prata. Os relatos
dessas expedições incendiaram a imaginação de espíritos aventureiros.
Antes de criadas as aldeias indígenas pelos jesuítas espanhóis à
margem esquerda do rio Uruguai, exploradores luso-brasileiros visitaram
a costa do Rio Grande do Sul. Houve um ciclo missionário português
precursor às famosas “reduções” guaranis: padres João Lobato e Jerônimo
Rodrigues, Inácio de Sequeira e Francisco de Morais instalaram missões
entre 1605 e 1617 próximo ao Tramandaí.
19
II - As Missões Guaranis
As missões constituíram uma estratégia de dominação político-econômica de vastas áreas da América do Sul, através da conquista
espiritual de povos nativos por diversas ordens religiosas, destacando-se
a Companhia de Jesus, fundada na Europa pelo padre Inácio de Loyola.
Jesuítas espanhóis, italianos, alemães e franceses tentaram convencer
o gentio da importância da fé cristã para sua formação cultural e espiritual, ao
lado do trabalho em comunidade, respeitando a sua vocação e o seu talento.
A vida em comum é um aprendizado, às vezes lento e doloroso,
pleno de contradições e até de impasses e, não poucas vezes, sofrido
no sangue. Nesse complexo inventário histórico, algumas tentativas se
destacam audaciosas, promissoras.
A República Guarani foi uma sociedade fraternal organizada
segundo os princípios cristãos. O espírito comunitário estava presente na
sua estrutura, no seu regime de propriedade, nos seus modos de produção
e distribuição e em todas as suas instituições. Os costumes eram puros,
uma amizade sincera unia os corações, as principais necessidades humanas
eram satisfatoriamente atendidas. A abundância parecia inesgotável e
universal. Esta sociedade fraternal, onde o ódio e a disputa não tinham
lugar, baseava-se na propriedade coletiva dos meios de produção. Tanto
os equipamentos como as ferramentas, as terras, o gado e a produção
agrícola e artesanal pertenciam à comunidade.
Inexistia o Estado tal como hoje o conhecemos, tampouco a divisão
em classes sociais. A mão de obra urbana e rural organizava-se em
21
Miranda Neto
associações livres autoadministradas. Um decisivo apoio à produção e à
criatividade eliminava qualquer possibilidade de cartelização, monopólio
ou controle da oferta. Inexistiam também privilégios ou prioridades quer
aos interesses urbanos, quer aos interesses rurais que eram igualmente
contemplados. De cada indivíduo exigia-se o esforço e o trabalho segundo
a sua capacidade e a cada um era destinada a produção conforme a sua
necessidade.
Todo o incentivo era concedido ao desenvolvimento cultural,
artístico e tecnológico do ser humano. Para culminar, a República Guarani
primava pela ênfase em propiciar uma total libertação da personalidade
desvinculada das preocupações de sobrevivência e resistente às investidas
dos poderosos.
O curioso aspecto observado pela atuação jesuítica junto aos
guaranis era a lenta assimilação do cristianismo pelos indígenas mais
renitentes que continuavam a praticar a poligamia. Os noivados ocorriam
antes da “idade da razão”.
Os missionários passaram a optar pela força do exemplo, abandonando
a coerção, a admoestação e a ameaça de castigo. O poder dos jesuítas junto
às crianças tornou-se preponderante. Tudo era feito para atraí-las: passeios,
brincadeiras, disputas, concursos com prêmios e incentivos em guloseimas.
Com frequência eram os jovens nomeados funcionários da comunidade. O
tratamento privilegiado dispensado aos adolescentes, além de os tornarem
cristãos devotos, os transformava em eficientes agentes de informação!
Revelavam tudo que se passava na redução: chegada de viajantes, aproximação
de estranhos suspeitos, nascimentos, doenças, preparativos para festividades
indígenas, infrações à moral pública e privada. A hierarquia dos jovens
compreendia os estudantes, os cantores, os dançarinos que se sobressaíam na
massa de crianças do catecismo, distribuídos em seções sob a responsabilidade
dos decuriões2.
Caso a colheita fosse insuficiente, sempre havia a possibilidade de se
voltar à caça, à pesca ou à coleta. O excedente era seco e defumado, assado
ou reduzido a pó. Para os índios, a mandioca era o alimento providencial:
apresentava o melhor rendimento, exigia poucos cuidados, era resistente
à seca e podia ser preservada por períodos de até dois anos, de forma que
a colheita se fazia à medida das necessidades. Adequadamente torrada
e acondicionada, a farinha de mandioca podia ser conservada por mais
de um ano. Na área rural cultivavam-se a erva-mate, o algodão e o trigo.
A pecuária desenvolveu estâncias e vacarias de grandes extensões que
produziam carne, couro, leite e derivados.
2
Decuriões – monitores de turma responsabilizados por grupos de cerca de dez alunos.
22
As Missões Guaranis
Algo de grandioso e belo, o modelo guarani constituiu o encontro
de duas culturas. Em mais de século e meio, os missionários organizaram
um sistema social cooperativo, mediante diferentes formas de trabalho
comunitário, socializando a produção e o consumo. Com habilidade
manteve-se considerável autonomia em relação ao regime colonial e à
Coroa de Espanha.
Trinta e três prósperos povoados – as reduções – evoluíram na
então Província do Paraguay – correspondente hoje a áreas do Brasil,
Argentina, Paraguai e Uruguai, onde se desenvolvia agricultura e pecuária
promissoras, e se prestigiava o artesanato, a arte e a ciência.
Cada missão era coordenada por dois padres e podia comportar
milhares de índios. Em 1732, cerca de 140.000 indígenas viviam nos
trinta e três povoados, quantidade que representava mais da metade da
população das províncias do Rio da Prata.
Nas reduções, a igreja era o prédio mais importante que centralizava
a residência dos padres, o colégio, as oficinas, o cemitério e o cotiguaçu,
onde viviam as viúvas e os órfãos. A biblioteca abrigava obras religiosas,
de literatura espanhola e universal. A educação incluía a formação técnica
e artística. A língua guarani, transmitida tradicionalmente de forma oral,
foi estudada, escrita e traduzida com auxílio de dicionários organizados
pelos missionários.
Nas oficinas eram confeccionados os instrumentos e utensílios
utilizados nas construções e na vida cotidiana. Eram peças de artesanato
em madeira, móveis, instrumentos musicais, ferragens, pratarias,
cerâmicas, tecelagens, pinturas e esculturas.
Olarias e curtumes situavam-se na periferia das aldeias. Fontes,
utilizadas junto às nascentes dos rios, abasteciam de água cristalina as
missões jesuíticas que exploravam portos fluviais, açudes e uma rede de
estradas que interligavam as povoações.
O barroco europeu influenciou o urbanismo, a arquitetura e as artes
como a escultura, a pintura, o teatro e a música. O estilo que caracterizou
as obras criadas por padres e seus discípulos indígenas ficou conhecido
como “barroco missioneiro”. As igrejas eram decoradas com esculturas em
madeira policromada e telas pintadas a óleo. Seus exteriores continham
relevo em arenito representando motivos religiosos e elementos da fauna
e flora locais.
Os aldeamentos prestigiavam seus coros, formados por cerca de
30 índios, seus conjuntos musicais, seus orfeões compostos também por
instrumentos de corda que acompanhavam as missas. As músicas, de
origem sobretudo espanhola e italiana, eram acompanhadas por violinos,
23
Miranda Neto
chirimias3 e harpas rústicas. Os autos sacros, representações teatrais, eram
encenados defronte às igrejas.
A influência dos guaranis no tratamento de determinadas
doenças foi enorme e contou com a ajuda dos próprios índios e seus
conhecimentos sobre plantas e animais. O ensino da Matemática e da
Astronomia, ministrado pelos missionários, contava até com rudimentares
observatórios em algumas aldeias.
O surpreendente progresso alcançado pelas missões na economia
e nas artes despertou a inveja de povos vizinhos e até nas cortes da Europa
que chegaram a se sentir ameaçadas de perder o controle sobre a Colônia.
Quando em 1768 as Missões do Paraguai saíram das mãos dos jesuítas,
já tinham alcançado um nível de organização que chamou a atenção e a
cobiça das nações vizinhas, inclusive do Brasil.
A experiência missioneira dos guaranis destacou-se pelo enorme
e significativo legado econômico e cultural que deixou. Infelizmente a
República Guarani ainda não conseguiu servir de modelo às soluções
criativas para a atual crise agrária brasileira.
O Rio Grande de São Pedro foi povoado pelo governo português a
fim de garantir a posse da Colônia do Sacramento, localizada às margens
do rio da Prata e para facilitar a comunicação com Laguna, povoado hoje
pertencente a Santa Catarina e ponto de partida de muitas expedições. A
partir de São Vicente, através da Serra Geral (do Mar), os bandeirantes
iam procurar ouro, prata, pedras preciosas, arrebanhar gado bovino e
cavalos selvagens e aprisionar indígenas para escravizá-los.
Seguiam o curso dos rios, embrenhavam-se nas matas e, a braço
e com perseverança, abriam picadas para facilitar a penetração até os
Sete Povos das Missões, colonizadas pelos jesuítas espanhóis e cobiçadas
por sua produção, riqueza e progresso, mas sobretudo por seus nativos
aculturados e semiqualificados disponíveis, uma preciosidade.
Invernadas e currais deram origem a estâncias, muitas já com
Cartas de Sesmaria. Em 1737, foi construído um presídio militar no Rio
Grande, demonstrando o interesse luso-brasileiro em colonizá-lo.
Os vicentistas, senhores de estâncias de gado, eram descendentes
dos bandeirantes que contribuíram para a destruição das províncias
jesuíticas de Guairá e Itatim. O maior temor dos espanhóis era o ataque dos
luso-brasileiros aos Sete Povos das Missões que se interpunham exatamente
entre as terras do sul do Brasil, a partir de São Vicente e de Laguna e a
Colônia do Sacramento, situada na região que hoje pertence ao Uruguai.
3 Chirimia – antigo instrumento musical. V. anexos.
24
As Missões Guaranis
Os descendentes de espanhóis e guaranis, jovens da nova geração
de idealistas, sonhavam com um mundo onde os povos não mais seriam
governados por senhores de terras e nobres corruptos. Seria a sociedade
prometida, o “quinto império teocrático do mundo”, que haveria de
erguer-se acima das nações, acima de todos os interesses materiais,
acima da cobiça, das injustiças e das maquinações políticas. Um mundo
de igualdade que teria como base a dignidade do ser humano e seu
amor e reverência a Deus. Não haveria mais senhores e escravos, a terra
seria explorada cooperativamente pelos produtores. Nos Sete Povos
das Missões o que era de um deveria ser de todos. Cada habitante teria
oportunidades iguais4.
Os missionários se maravilhavam ao acompanharem a
transformação de cada indígena em um cristão, um artista, um músico, um
construtor. Estavam conscientes da miséria e da ignorância de milhares
de seres humanos que não tiveram o privilégio de receber orientação
e incentivo apenas por falta de quem lhes despertasse a vocação, a
potencialidade, o desejo de se aperfeiçoar ao produzir, criar e desenvolver
objetos úteis e belos com suas próprias mãos e com o sopro do espírito.
Perceberam igualmente que, para conseguir este mundo ideal, seria
necessário se defender dos que, por indiferença ou egoísmo, desprezavam os
humildes, os simples e os inocentes. Na opinião dos superiores da Companhia
de Jesus, seria indispensável colonizar o Novo Mundo, segregar o indígena da
influência do conquistador, organizar uma poderosa “república teocrática”
que poderia influenciar as nações vizinhas. Os jesuítas acreditavam na
necessidade de serem obstinados e implacáveis através de um autoritarismo
justo, mas inevitável. Tornava-se preciso pregar, influir na educação e na
disciplina dos jovens a fim de que eles se conscientizassem da importância da
Nova Ordem. A dinâmica ação dos jesuítas se explica por provirem, em sua
maioria, da burguesia trabalhadora e, após rigorosa seleção, aperfeiçoamento
e ensino, revelarem-se cultos e competentes administradores.
Anos depois, devido aos constantes ataques dos espanhóis à
Colônia do Sacramento e aos revides dos luso-brasileiros contra os Sete
Povos das Missões, entre as duas potências foi assinado o Tratado de
Madri em 1750 e o de Santo Ildefonso em 1777 para tentar resolver as
desavenças, permutando-se os respectivos territórios, dando origem
ao atual estado do Rio Grande do Sul e às Repúblicas do Uruguai, da
Argentina e do Paraguai.
Os jesuítas foram acusados de insuflar a resistência indígena e de
dificultar as demarcações dos limites territoriais entre Portugal e Espanha fixados
4 VERÍSSIMO, Érico. O Tempo e o Vento; O Continente. Rio de Janeiro: Aguilar, 1967.
25
Miranda Neto
pelo Tratado de Madri. Como o Marquês de Pombal já estava em campanha
contra os inacianos devido à afrontosa autonomia e autossustentabilidade das
missões, a guerra guaranítica apressou sua expulsão.
Os jesuítas conseguiram transformar tribos nômades de selvagens
em uma Confederação de Missões que chegou a totalizar mais de cem mil
cristãos. Cedo perceberam o talento e a capacidade dos nativos. Embora pouco
inventivos eram excelentes em copiar e imitar. Qualquer novidade despertavalhes o interesse imediato; adoravam os rituais pomposos e as indumentárias
vistosas. Os missionários conseguiam atraí-los através da música e da paciência
através do exemplo, do efeito-demonstração, da reciprocidade e dos resultados
e ensinavam-lhes a preparar o solo para o plantio, a cultivar e a tecer o algodão
para a produção de roupas, a pastorar o gado, a ler e a escrever, a fabricar
instrumentos musicais e a extrair-lhes música divina. Adaptaram-nos a novo
estilo de organização socioeconômica e incentivaram-nos a eleger livremente os
membros do Cabildo e o corregedor, aceitando a cogestão ao lado de caciques
e pajés sem desafiá-los nem enfrentá-los.
Os guaranis foram os únicos nativos da América a viver, durante
mais de 150 anos, livres do jugo dos colonizadores. Dos Maias, Astecas
e Incas só restam ruínas. Cada missão se relacionava com as demais,
assumia seus problemas e projetava suas potencialidades.
Havia situações em que os jesuítas, fervorosos humanistas
dedicados ao labor, eram menosprezados por determinados indígenas
habituados à indolência que em certas ocasiões ainda ousavam exigir mais
comida e a reclamar do rigor da disciplina na missão. Lá os padres tinham
enorme trabalho em convencer os neófitos a permanecerem envolvidos
nas tarefas cotidianas, pois estes ameaçavam voltar à vida nômade de caça,
pesca e coleta de recursos naturais. Até o roubo da produção alheia era
justificado sob o pretexto de obedecer ao preceito da necessidade moral de
se compartilhar com os demais membros da tribo todos os bens da missão.
O diferencial da República Guarani foi ter primazia de construir
em terreno virgem. Apesar de se atingir certo ritmo de desenvolvimento, o
princípio comunitário-coletivista não se alterou: mantido pela fraternidade
e fé cristãs, conseguiu diluir a sensação de coerção.
Hábitos sociais novos, disciplina coletiva, sentido de responsabilidade
ampliado pelas múltiplas funções criadas e desenvolvidas transformavam
as primitivas comunidades que conviviam em um ambiente de paz,
fraternidade e trabalho em equipes.
As viagens para contatos e intercâmbio eram longas, penosas
e arriscadas. Alguns missionários, já idosos e fragilizados por doenças,
26
As Missões Guaranis
suportavam o desconforto e enfrentavam o desconhecido. Sua tarefa não
era fácil nem simples.
Após a renúncia ao nomadismo, os membros de uma tribo eram
estimulados a construir em terreno alto e plano, de preferência à beira
de curso d’água, a semear, a adquirir rebanhos. Os próprios padres se
dispunham a trabalhar duro, apesar de “bem nascidos” (originários de
famílias bem situadas): na missão tornavam-se agricultores, talhadores de
carne, carpinteiros, pedreiros, artesãos, escultores e, sobretudo, músicos.
De início, as construções eram provisórias, meros abrigos. As
habitações familiares, com certa estética e funcionalidade, foram erguidas
em seguida.
Muito embora as missões fossem autônomas, em caso de
necessidade elas se ajudavam reciprocamente, tendo sido todas as
transações, fluxos financeiros e de bens contabilizados e tempos depois
devidamente regularizados.
Na escolha da localização de cada missão pesava a topografia do
terreno, dando-se preferência aos promontórios ribeirinhos. Cada aldeia
distava 7 a 8 léguas uma da outra. Outros critérios contemplavam a
qualidade do solo, o clima, a paisagem e as condições de defesa natural e
localização estratégica, a salvo de ataques traiçoeiros.
Os conquistadores, militares e civis espanhóis, partiam para o
Novo Mundo com o sonho do rápido enriquecimento como proprietários
de grandes extensões de terra que eram abundantes e precisavam de mão
de obra disponível. Como estavam habituados à ociosidade e à aventura
desprezavam o trabalho braçal, tarefa de escravos. Envergonhavam-se
de se ocupar diretamente com a construção, o plantio ou o criatório. Os
missionários eram exceção, pois sempre se dispuseram a empenhar seu
talento, criatividade e habilidades manuais na execução de inúmeras tarefas
indispensáveis ao bom funcionamento da missão. O trabalho do jesuíta
entusiasmado em parceria com os indígenas foi, sem dúvida, decisivo para
o rápido progresso da República Guarani.
A catequese representou o esforço inicial de ocupação territorial
que pecisou enfrentar os insistentes ataques dos bandeirantes e tribos hostis.
Os luso-brasileiros adotaram o enclave como estratégia para enfrentar a
Confederação das Missões jesuítico-guaranis ao fundar e manter a Colônia
do Sacramento ostensivamente defronte de Buenos Aires. Na verdade,
a fronteira entre as áreas já ocupadas por espanhóis e luso-brasileiros
era delimitada pela constelação de aldeias guaranis, pois o governo
espanhol soube fazer uso da custódia desta “fronteira viva” executada com
extraordinária competência pelos índios missioneiros a fim de deter o avanço
27
Miranda Neto
da colonização lusa. Havia postos avançados em estado permanente de alerta
em pontos-chave que preveniam qualquer invasão exógena. Além disso, as
forças guaranis socorreram os hispânicos em diversas ocasiões tanto em
Buenos Aires quanto em Assunção e outras cidades e principalmente durante
o longo cerco à Colônia do Sacramento e depois a Montevidéu. Desde 1524,
o Conselho das Índias estabeleceu normas político-administrativas para as
missões baseadas na legislação espanhola. O Vice-reino do Peru compreendia
o governo das províncias do Paraguai (Assunção) e do Rio da Prata (Buenos
Aires) responsáveis pela fiscalização das missões.
Em 1541, padres espanhóis chegaram a Santa Catarina com Alvar
Núñes Cabeza de Vaca, nomeado governador por Carlos V para suceder
Irala; revelou-se o mais humano dos conquistadores, justo e amigo
dos índios. [Percorreu cerca de 2.000 milhas sem matar nem aprisionar
nenhum]. Sua política era aldeá-los para cristianizá-los, o que originou
as missões. Infelizmente, teve de enfrentar os colonos de Assunção,
interessados em subjugar os autóctones e utilizá-los como serviçais.
Belas jovens guaranis facilitavam a dominação através da coabitação que
resultava no compadrio estreitador de laços de parentesco. Cabeza de
Vaca acabou deposto, preso e enviado de volta a Madri, o que abalou o
processo de evangelização: os primeiros padres tinham de se preocupar
com os próprios colonos espanhóis.
Em 1575, Frei Luís de Bolaños, franciscano, foi o primeiro
missionário a aldear guaranis e dominar seu idioma. O franciscano
Francisco Solano teve atuação semelhante com os índios do Chaco. Ao
chegarem a Assunção, os jesuítas já estavam estabelecidos, familiarizados
com a língua tupi (ramo guarani) desde a Província Jesuítica do Brasil.
Os padres precisavam entender guarani. A doutrina cristã era pregada
através de cantos repetitivos durante os cultos na Igreja. E havia punição
para os faltosos às missas.
Após várias tentativas, o povoamento do Rio Grande do Sul tomou
impulso com a transmigração de parte da população de Laguna (SC) que
vivia da pesca.
Em 1727, a partir de Viamão, as primeiras estâncias e roças de
subsistência garantiam o início da colonização que se espraiou ao longo
do litoral sul. Daí para a integração do território desde Rio de Janeiro, São
Vicente, Laguna e Colônia do Sacramento.
A ação dos mercadores de gado foi decisiva desde o Uruguai até as feiras
de Sorocaba. Aventureiros e sertanistas transformados em tropeiros rompiam
os primeiros caminhos entre as minas de ouro das Gerais recém-descobertas e
28
As Missões Guaranis
as vacarias do Sul. O transporte das mercadorias era feito em lombo de burro e
a “carne era pouca para suprir os sôfregos arraiais que fermentavam em torno
dos garimpos”.
O ponto de apoio no Sul de toda esta movimentação era a Colônia
do Sacramento em local estratégico no Rio da Prata.
Em 1736, José da Silva Pais foi indicado por Gomes Freire de
Andrade, governador das capitanias do Rio de Janeiro e Minas Gerais,
para defender a Colônia do Sacramento e consolidar a incorporação da
banda superior do Rio da Prata ao Estado do Brasil. A fortificação de
Jesus-Maria-José garantiu de início este apoio militar à segurança da
recém-criada Capitania D’El-Rei no Continente de São Pedro.
A fim de resguardar a Colônia do Sacramento, seria necessário
vencer a guarnição castelhana de Montevidéu que iria receber reforço
missioneiro.
Mais tarde, a política portuguesa desencadeada por Pombal
intencionava a integração povo e território em uma comunidade política
a fim de promover a unidade nacional. A colônia era concebida como
extensão de terra sobre a qual se deveria impor uma geopolítica uniforme
e globalizante para impedir sua fragmentação.
Para Pombal, os objetivos de promover a integração nacional
priorizaram a defesa do território, a militarização da população, o
combate aos espanhóis e à Companhia de Jesus, a expansão econômica
vinculando a agricultura ao comércio, o fortalecimento do poder real pela
oposição aos missionários e aos nobres e pela extinção das capitanias. Os
esteios da política integracionista de Pombal centravam-se na ocupação-colonização de caráter militar-estratégico e socioeconômico para garantir a
articulação entre os setores e áreas de interesses luso-brasileiros de exploração
comercial, forma inicial de exercício da soberania. A infiltração econômica na
frente hispânica de expansão colonial no sul do continente fez-se necessária e
urgente. A reação, drástica e definitiva, concretizou-se na expulsão e confisco
dos bens dos missionários e na destruição da Confederação das Missões que
afrontava o domínio e o controle estratégico na geopolítica luso-brasileira que
na realidade era da Metrópole.
2.1 Fases da Colonização Missioneira
1ª) 1609-1641. Início da Evangelização. Primeiras missões a partir
de Assunção, cidade Real de Guairá (1554) e Vila Rica do Espírito Santo
(1576). Pioneiros foram os franciscanos cujas missões incorporavam
29
Miranda Neto
índios já submetidos ao regime de encomienda enquanto os jesuítas
aldeavam guaranis da periferia sem prévio contato com os colonos. De
1628 a 1641, intensificaram-se os ataques dos bandeirantes, obrigando a
transferência de várias missões do Paranapanema para as margens dos
rios Paraná, Paraguai e Uruguai.
2ª) 1641-1685. Primeira Contração Territorial. Transmigração para
o Sul e o Oeste. Houve significativa redução do espaço ocupado e do
número de missões, de 40 para 22, tendo 16 sido reconstruídas. Em
1641, a batalha de Mbororé conseguiu repelir o último grande ataque
paulista. A organização interna se consolidou assim como a liderança
dos jesuítas Antônio Montoya e Rocque González. As bases econômicas
e a evangelização se aprofundaram embora o espaço ocupado tivesse
diminuído. Aos poucos a mesopotâmia argentina foi habitada e teve
início o desenvolvimento da pecuária. Introduziram-se novas técnicas
e equipamentos agrícolas europeus como no cultivo do algodão e nos
ervais. Melhoraram a intercomunicação e o apoio recíprocos, com maior
homogeneidade cultural e resistência militar. Intensificou-se o artesanato,
a cerâmica, as manufaturas, os teares, as ferrarias, os curtumes.
3ª) 1685-1740. Recuperação do Espaço. Apogeu das Missões. De 1682 a
1732, a população duplicou atingindo 141.000 habitantes. Em 1720, com
os excedentes demográficos, dez novas missões foram fundadas, sendo
sete no vale do Ijuí e Uruguai oriental e três no Sudeste do Paraguai.
A expansão destas missões deveu-se aos índios nascidos, criados e
batizados nas missões e não a neófitos agregados das circunvizinhanças.
Novas construções urbanas, dotadas de infraestrutura conforme modelo
já testado, destacaram-se nesta fase. A planificação urbana estava no
auge assim como a expansão agropecuária das grandes estâncias,
vacarias e ervais. No final do período, devido às epidemias, à prestação
de serviços públicos e militares às autoridades coloniais, a população
total das missões diminuiu de 141.000 para 74.000 habitantes.
4ª) 1740-1759. Segunda Contração Territorial. Tratados de Limites.
Nesta fase intensificou-se a pressão das populações luso-brasileiras das
regiões marginais como Mato Grosso e Rio Grande do Sul, deslocando
as fronteiras por decisão política de Espanha e Portugal que optaram por
solução diplomática a fim de agilizar a fixação dos limites regularizando
a posse das respectivas áreas. Em 1750, foi assinado o Tratado de Madri
pelo qual a Colônia do Sacramento foi permutada por sete missões,
várias estâncias, vacarias e ervais. Houve significativa perda da área
total das missões. As gestões protelatórias dos jesuítas fracassaram.
Os guaranis negaram-se a abandonar seus “pueblos”. Após algumas
30
As Missões Guaranis
negociações, a drástica execução militar do Tratado de Madri sufocou
a resistência guarani que durou anos5. Os jesuítas foram expulsos das
colônias portuguesas em 1759 e das espanholas em 1767.
5ª) 1759-1810. Fragmentação da Região Missioneira. Desagregação da
Sociedade Guarani. Com a quebra da unidade territorial e administrativa
e a secularização da gestão missioneira, houve perda de autonomia, pois
as decisões político-administrativas procediam da Coroa: as missões
foram integradas à sociedade colonial. Prosseguia o avanço da fronteira
pecuária luso-brasileira por parte da sociedade hispano-crioula e lusitano-rio-grandense. Outros religiosos, pouco comprometidos com os interesses
das missões, substituíram os jesuítas. Mas a orientação, a coordenação e a
administração efetiva foram exercidas pelas autoridades coloniais segundo
ordens de Madri. Intensificou-se o comércio, a mestiçagem, houve brutal
ruptura da cultura guarani, desorganizou-se a economia com o abalo da
solidariedade comunitária, as frequentes deserções e a queda abrupta
da população autóctone. Entretanto, a sociedade crioula na periferia se
expandia rapidamente agregando terrenos para sua pecuária, penetrando
nas vacarias, estâncias e ervais. Só no século seguinte cristalizaram-se as
fronteiras-limites entre Paraguai, Argentina, Uruguai e Brasil no território
correspondente às missões guaranis.
5 Período conhecido por “guerras guaraníticas” (1753 a 1759).
31
III - Estrutura, Produção e Renda
Uma república-modelo dominou mais de trinta missões jesuíticas
guaranis em cerca de 500 mil quilômetros quadrados desde o atual Paraguai
até o Uruguai, do Paraná ao Rio Grande do Sul durante mais de 150 anos.
Nela vigorava o regime de propriedade coletiva dos meios de produção
e uma estrutura ímpar de organização político-administrativa voltada
ao crescimento socioeconômico e às artes – tudo sob orientação cristã. O
sucesso e a sustentabilidade do modelo guarani despertava inveja e cobiça
de outros povos e culminou nos insistentes assaltos dos bandeirantes,
ávidos em escravizar os qualificados artesãos, agricultores e pecuaristas e
em se apoderar de sua diversificada produção, prova material da existência
de outro caminho na exploração e repartição da riqueza.
A República Guarani estruturou suas próprias leis civis e penais,
delegou funções próprias às autoridades e controlava rigorosamente seu
orçamento. As fronteiras eram bem delimitadas e defendidas, sobretudo
após a Coroa espanhola ter permitido a seus habitantes armarem-se contra
as agressões externas. Sua economia era autossustentável: não dependia
de fluxos financeiros internacionais. Representava, portanto, uma ameaça
aos grandes interesses que dominavam o mundo colonial.
Cada missão era administrada por um Conselho ou Cabildo formado
pelo corregedor ou prefeito, geralmente o próprio cacique indígena, no
exercício da administração, auxiliado por um alcaide (vice-prefeito) na função
de inspetor de ensino, por um fiscal e cartorário, um alguacil ou comissário-administrativo, dois juízes e dois oficiais de polícia. Quatro conselheiros
33
Miranda Neto
e respectivos assessores em número proporcional ao número de habitantes
completavam a estrutura político-administrativa. Os chefes de setores eram
escolhidos pelos próprios indígenas “dentre os mais fervorosos cristãos”,
sob supervisão dos jesuítas.
As sessões de conferência reuniam pároco, corregedor e conselho
com a assessoria e a orientação dos jesuítas. Cada redução formava pequena
república independente para sua administração interna. A Confederação
das Missões se reunia para coordenar as diretrizes de Comércio Exterior,
a Legislação Civil, Penal e Militar. Durante a primeira fase da República
Guarani, dois superiores administravam a Confederação das Missões:
um em Guairá no Paraná e outro em Yapeyú no Uruguai. Na segunda
fase, um só Superior Geral visitava regularmente todas as reduções para
poder traçar diretrizes de política de desenvolvimento para o conjunto de
comunidades com o objetivo de manter sua unidade e uniformidade.
Os jesuítas conservavam controle sobre o funcionamento da
estrutura político-administrativa e exerciam sua autoridade, na plenitude.
Em qualquer dúvida ou disputa eram chamados pelos índios. Entretanto,
deixavam-nos assumir sua responsabilidade. Em certos casos o bom senso e
a consciência substituíam a lei. A manutenção da ordem e a aplicação das leis
eram exercidas sobretudo de modo preventivo. As punições se restringiam
a orações, jejuns, prisão e açoite não ultrapassando vinte e cinco aplicações.
Se necessário, o azorrague seria utilizado novamente alguns dias após. Os
crimes mais graves eram punidos com prisão perpétua ou banimento para
missões distantes. Não se aplicava a pena de morte.
Em comparação com o Direito Penal vigente na Europa, a legislação nas
missões era bem magnânima, pois a convicção dos jesuítas fundamentava-se
no vigor da fé cristã em proteger os costumes e a ordem pública. A ascensão
social ocorria pelo valor e mérito pessoal nessas comunidades sem classes nem
privilégios, sem intermediação da moeda. Só podia exercer algum cargo público
quem denotasse competência e honestidade.
A ordem pública conseguiu se manter durante século e meio nas
trinta e tantas reduções prezando a liberdade individual, o respeito ao
próximo e a autoridade jesuítica cujo poder moral conservou-se inalterado.
De início os bens pertenciam a todos os habitantes da redução.
Desconhecia-se o comércio privado: o resultado da colheita era recolhido
aos armazéns públicos para depois ser distribuído pelos chefes de
bairro e estes pelas famílias conforme o número de seus dependentes.
Não havia cercas demarcatórias entre terrenos diversos, pois tanto os
equipamentos quanto a terra pertenciam a toda a comunidade. Apesar
de ninguém possuir nada próprio, todos dispunham e tinham acesso a
34
Estrutura, Produção e Renda
tudo. A propriedade coletiva dos meios de produção predominou entre
os índios das reduções na fase inicial da colonização. Tupambaé era a área
comum e Abambaé correspondia ao terreno de cada família. Pouco antes
de sua expulsão, os jesuítas tentaram introduzir um sistema híbrido que
contemplava a propriedade privada, não tendo obtido êxito devido ao
desinteresse e resistência passiva dos guaranis. Mesmo assim, em alguns
povoados surgiram “empreendedores individuais de alguns lotes” pois já
tinham conseguido aval do Conselho para iniciarem a experiência. Os lotes
eram “emprestados” pela República: cada família poderia apenas exercer
o usufruto e não o herdava. O lote do pai retornava à comunidade quando
de sua morte. A viúva e os filhos teriam direito somente à subsistência até
o casamento de cada jovem, quando outro lote lhe era cedido, iniciando-se
novo ciclo. Com as moradias ocorria o mesmo.
Os instrumentos de trabalho, os animais de tração, as sementes
e o gado de corte e leiteiro continuaram sendo propriedade comum.
A experiência em distribuir os bovinos e os equinos entre os guaranis
na esperança de estimulá-los a produzir não deu certo. Nem mesmo se
conseguiu que se interessassem mais pelo lote. Contentavam-se só em
possuir um único cavalo ou uma mula para seu transporte. A ideia de
apropriação de terras permanecia estranha à sua mentalidade. Bastava-lhes
a segurança e a previdência coletivas suficientemente integrais.
Entretanto, eram considerados excelentes vaqueiros e elogiados na
sua maneira de cuidar das estâncias, sem interferência dos missionários.
O trabalho em comum era executado com prazer e alegria. Já a produção
nos lotes era negligenciada, sem os cuidados tomados nos terrenos
coletivos. As grandes plantações – tabaco, cana-de-açúcar, mate, anil,
algodão – exigiam extensões de terra contínuas. Portanto, o sistema de
lotes não as afetou, pois a maioria dos agricultores continuou produzindo.
O loteamento destinava-se apenas às culturas alimentares de subsistência.
Apesar dos esforços da administração geral das reduções, a
tentativa de introduzir o regime de propriedade privada fracassou pois os
índios já estavam acostumados a produzir em comum nas terras indivisas.
As condições de trabalho comportavam jornadas de 6 a 8 horas diárias
com intervalo para almoço. Praticamente todos se dedicavam à agricultura
sendo que as mulheres cuidavam da costura, da lavagem de roupas, da
alimentação, do artesanato – este ensinado às crianças e aos jovens os
quais eram estimulados à caça, à pesca, à coleta de sementes e frutos –
tudo intercalado com esportes, brincadeiras e jogos. Danças e pantomimas
também animavam as festas após as grandes colheitas em que todos
participavam com alegria. As da erva-mate transformavam-se às vezes em
35
Miranda Neto
penosas expedições a áreas longínquas e inóspitas, pois a demanda externa
exigia enormes cultivares.
Alguns campos eram irrigados por canais artificiais que se
prolongavam pelas lavanderias comunais e grandes viveiros hortícolas
das reduções. Os índios já cultivavam milho, mandioca, batata-doce e
erva-mate. Os jesuítas introduziram o trigo, a cevada, o arroz, a cana-deaçúcar, o algodão, o fumo e o cânhamo para a produção de tecidos. Os
padres reservavam uma horta para experimentação sempre nos fundos
do Colégio. Hortaliças e frutas, flores e plantas ornamentais e medicinais
garantiam a alimentação e a saúde da comunidade.
3.1 Caixas de “Censos” da Comunidade
O sistema de autofinanciamento dos guaranis teve origem uns
50 anos antes de 1606 quando, durante o governo do Rio da Prata os
franciscanos resolveram fundar missões fixas como a de São José de
Caazapá, substituindo os gestores dos encomenderos. Àquela época já
estavam aplicando os conceitos de bens e caixas de réditos da comunidade
destinadas a empréstimos públicos nas províncias do vice-reino do Peru e
da Nova Espanha. Os autóctones tinham acesso aos recursos disponíveis,
pagavam menos impostos e gozavam de melhores condições de trabalho
do que nos regimes anteriores. Empréstimos e doações geravam juros e
lucros assim como os arrendamentos de terras a terceiros. Havia estreita
relação entre a “caixa comunitária” e os armazéns de abastecimento, cujos
estoques reguladores nas entressafras poderiam ficar comprometidos. O
principal resultado econômico deste sistema se refletiu no aumento da
diversificação da capacidade produtiva, possibilitando investimentos em
hospitais, estâncias, ervais e criatórios; na expansão dos cultivos, da pesca
e na extração do sal e outros minerais. A contabilidade, as anotações diárias
e os balanços semanais ofereciam um retrato da administração financeira
das “doutrinas”, reduções ou missões. Ao reconhecer para os indígenas
o direito de propriedade e uso de suas terras, as minas de ouro e prata
poderiam igualmente ser exploradas por eles ou pelos colonos espanhóis.
A produção de várias missões (e suas compras) era coordenada a
fim de melhorar a vida e a participação dos próprios guaranis. A renda
auferida com a venda de produtos e serviços, bem como as doações podiam
ser reinvestidas para o aumento da própria capacidade produtiva e para
as obras públicas (hospitais, escolas) em várias paróquias, diversificando
atividades em regiões de solos pouco férteis.
36
Estrutura, Produção e Renda
Entretanto, alguns problemas prejudicaram o desempenho
das “caixas comunitárias”: a aptidão e responsabilidade de seus
administradores, a inadimplência gerando atrasos nos réditos (juros,
lucros) e dificultando a recuperação das importâncias aplicadas sobretudo
as efetuadas pelas autoridades em nome da comunidade. A consequência
mais grave era o prejuízo coletivo já que, durante um determinado
período, havia a privação do estoque regulador na entressafra gerando
grande risco para a coletividade.
Durante o clima social de conflito, os custos de transação
(conhecimento do mercado, riscos, capacidade de negociar com os
comerciantes) aumentavam. Contudo os jesuítas sempre contavam com
amigos e admiradores fiéis em Assunção e outras cidades estratégicas para
garantir a comercialização de seus produtos e o abastecimento próprio
das missões.
3.2 Ofícios de Missões
Os guaranis conseguiram participar do processo de comercialização,
inserindo-se em outros mercados, através de procuradorias representativas
– os Ofícios de Missões – em cidades estratégicas. Sua origem remonta
aos colégios de Buenos Aires, Assunção, Santa Fé, Córdoba, Santiago Del
Estero, São Miguel de Tucumán, Salta e Jujuy, todas relacionadas ao fluxo
comercial dos produtos e serviços guaranis desde o Atlântico até o alto Peru.
O colégio, desde a sua fundação, cumpria também a função de
apoio aos jesuítas ocupados em atender comunidades ou grupos de
espanhóis dispersos, material e espiritualmente necessitados. Todos
os colégios estavam ligados às missões mantendo com elas relações de
interdependência e coordenação. Os reitores dos colégios de Assunção,
Buenos Aires e Santa Fé apoiaram a formação de procuradorias ou
ofícios incumbidos de prover as missões e a comunidade de jesuítas nelas
residentes. A partir das esmolas evoluiu-se à prestação regular de serviços
organizados na segunda metade do século XVII quando os pueblos, já com
sua estrutura de defesa montada, começaram a encarar a tributação e a
intensificação do comércio (sistemas de trocas de produtos e serviços)
como meio quase exclusivo de abastecimento em uma economia aberta a
mercados cada vez mais amplos.
Os procuradores possuíam poderes necessários para vender
os produtos das missões e, com o montante apurado, pagar os tributos
e comprar os gêneros necessários em falta. A Procuradoria de Missões
37
Miranda Neto
possuía, tal como uma cooperativa central, maior capacidade de
negociação pelo expressivo volume comercializado. Os gastos comuns
eram arcados pelos vários pueblos. Serviços recebidos ou prestados,
resultados das compras e das vendas – tudo era registrado e contabilizado
sob a supervisão do reitor de cada colégio e do padre provincial. No século
XVIII ficou mais explícita a subordinação dos procuradores ao Superior
das Missões. Os produtos das missões e dos colégios compartilhavam as
mesmas rotas e serviços. A economia de ambas as instituições tornava-se
menos vulnerável pela coordenação e complementaridade de compras e
vendas em comum. Em especial, quando a oferta de um produto-chave
superava amplamente a demanda.
Apesar de a maioria das transações (venda de erva-mate a bom
preço à vista) em meados do século XVII terem sido realizadas em moeda
metálica (prata), de modo a possibilitar o pagamento do tributo, por volta
de 1673, pela ganância dos comerciantes, estes passaram a pagar não só
um preço inferior como teriam forçado os índios a aceitar quinquilharias
inúteis e desnecessárias6.
Os colégios para a formação de padres e as residências em Buenos
Aires, Santa Fé e Córdoba formavam a base das procuradorias chamadas
Ofícios, representando um elo econômico importante para as missões
guaranis cujos livros de contabilidade representam, até hoje, fonte
inestimável para a melhor compreensão das prioridades e diretrizes de
fato implementadas (séculos XVII e XVIII).
As “parcialidades” – lotes de cada missão dominados por
determinado cacique – vinculavam as subdivisões de terrenos entre os
caciques e seus subordinados. Os missionários precisavam convencer
para cooptar uns 30 a 40 caciques e suas respectivas “parcialidades” para
sua unificação e edificação em determinado local a fim de fundar uma
missão com suas igrejas, escolas, residências.
As oferendas, contribuições e esmolas passaram a fazer parte da
cultura guarani: acostumaram-se a separar sempre um pouco de erva-mate
para o padre de sua “doutrina” (missão), denominando-as de “oferendas a
Deus e esmolas que se dão em seu nome”.
O mate também era utilizado como unidade de troca que equivalia
a moeda metálica e servia para adquirir bens e animais (gado bovino e
equino) destinados às vacarias. O algodão era a matéria-prima dos tecidos
usados no vestuário.
A união da “oferenda a Deus” e do “serviço à comunidade” resultava
na obtenção de bens do Tupambaé (de todos, da comunidade, de Deus)
6 HERNÁNDEZ, Pablo. Organización Social de las Doctrinas Guaranies de la Compañía de Jesú., Barcelona: 1913, vol.2.
38
Estrutura, Produção e Renda
e a contribuição livre, espontânea transformou-se em responsabilidade
compartilhada.
Definiam-se, assim, os conceitos de dois tipos de bens:
a)particulares: os terrenos dos caciques e seus agregados para
semear;
b) comuns: grandes plantações de tabaco, algodão, cana-de-açúcar,
erva-mate, criações de gado vacum e cavalar cuja distribuição da
colheita e o abate eram efetivados de acordo com os missionários
e os indígenas, “seus verdadeiros donos”, mediante sua anuência
e participação.
A colaboração entre vários pueblos aumentava o poder e a
autoestima dos guaranis que contavam com os serviços disponíveis nos
Ofícios das Missões, verdadeiros pontos de apoio onde podiam contar
com a assessoria de competentes jesuítas e seculares nas residências e
colégios situados nas vias de acesso de regiões cruciais para o comércio
dos produtos procedentes das missões.
Em Buenos Aires e Santa Fé, os Ofícios das Missões (representações
nas cidades) forneciam informações sobre as oportunidades de mercado,
a quantidade e a qualidade dos produtos destinados à comercialização
e dos necessários à importação. Ofícios ou procuradorias funcionavam
também em Potosí, Santiago e Lima.
Nunca houve guerra de preços entre as missões que se
organizavam para comprar e vender em grandes quantidades seguindo
contratos fielmente cumpridos em prazos adrede estipulados. Havia
descentralização do controle de qualidade e de quantidade, fiscalizando-se
com rigor tentativas de suborno e corrupção. A seleção dos credenciados
a cumprir os contratos era fundamental para evitar a ida aos tribunais.
Corregedores e cabildos eram sempre consultados, o que robustecia o
sentimento de responsabilidade comunitária.
A solidariedade entre as missões não criava situações de permanente
dependência. Em condições de produzir, cada uma devia contribuir para
resolver seus problemas. A diversificação da produção deixava menos
vulnerável uma economia demasiado dependente de apenas alguns
produtos agrícolas como erva-mate e tabaco versus produtos têxteis de
algodão, artesanato de madeira, couro e cerâmica.
Caso os Ofícios das Missões tivessem captado depósitos de terceiros
para investir a taxas razoáveis, predominava o autofinanciamento retendo
os rendimentos ou destinando contribuições aos povoados. Só em casos
39
Miranda Neto
excepcionais os mutuários pagavam os juros do empréstimo. A chave do
autofinanciamento consistia em coordená-lo com a complementaridade de
atividades lucrativas dos pueblos, sempre avaliadas pelos seus resultados.
A colaboração mútua entre as missões melhorou sua transparência
e motivou a eficiência mediante os preceitos do Padre Antônio Garrige
que, entre 1709 e 1713, foi visitador e vice-Provincial do Paraguay e
confirmados pelo Padre Geral Tamburini em 1711:
1. Atividades econômicas efetivadas deveriam ser registradas em
detalhe.
2. Os bens remetidos deveriam ter seu custo de aquisição acrescido do
frete de transporte e de uma percentagem referente ao risco de perda.
3. A equidade deveria prevalecer na fixação dos preços dos bens.
4. Os excedentes e as perdas deveriam ser redistribuídos
proporcionalmente de modo equânime entre as missões.
5. Os excedentes e as perdas deveriam ser apenas devidos
àqueles que para tanto contribuíram (nunca para procuradores,
superiores ou provinciais).
Medidas para incentivar o senso de responsabilidade de
cada missão eram fundamentais pois a situação patrimonial de uma
indiretamente repercutia na capacidade de autofinanciamento das demais.
Alguns colégios de jesuítas eram generosos com determinadas missões
em momentos difíceis, mas todo o esforço deveria ser empreendido para
manter a equidade evitando-se, a todo custo, “um oportunismo sem
perspectiva duradoura”.
A presença de jesuítas em Buenos Aires, Assunção e outras cidades
responsáveis pela formação do clero e de seculares nos colégios, criava
ambientes favoráveis aos próprios pueblos guaranis.
A organização econômica das missões, ao apresentar relações
absolutamente claras e transparentes, estende – segundo De Masy – uma
forte e inspiradora ponte para o presente.
3.3 Agricultura, Abastecimento e Comercialização
Entre os guaranis, todos se socorriam em suas necessidades. Como
usavam de liberalidade com os visitantes, evitavam o furto vivendo em
paz, sem litígios. Mesmo antes de 1639, o cultivo familiar da terra era uma
realidade assim como a pequena criação de animais.
40
Estrutura, Produção e Renda
Entretanto, paralela à produção familiar – abambaé – desenvolvia-se
a produção comunitária – tupambaé. Atividades tipicamente masculinas
como a roça, a caça, a pesca, a fabricação de canoas e de armas só se
tornavam eficientes quando coletivas. O mesmo ocorria com as atividades
femininas como o plantio, a colheita, a cerâmica, a tecelagem. Havia, pois,
sempre necessidade de se fazer uso do mutirão ou putirum isto é, da ajuda
mútua eventual em determinadas ocasiões como festividades, atividades
específicas ou sazonais.
Outra expressão de solidariedade guarani era o yo-poi ou
troca-socorro. Por exemplo, uma família em determinado dia especial
comemorativo carneava sua rês e a repartia com os vizinhos, distribuindo
os cortes a cada um segundo as necessidades familiares; em outra ocasião, o
vizinho retribuía e, em nenhum destes casos, a porção entregue era pesada
a fim de calcular a equivalência entre o oferecido e o recebido.
Como cada missão não podia produzir os principais bens de troca
com a mesma quantidade e com a mesma qualidade já que a distribuição
dos recursos naturais e a capacidade dos recursos humanos era desigual,
especializava-se e se aperfeiçoava na produção do que lhe proporcionava maior
retorno, permutando, com outras missões, as sobras dos seus produtos-líderes
pelos gêneros de que necessitavam, procedentes de pueblos vizinhos. Estes,
depois de economicamente organizados, conseguiram manter uma produção
integrada e diversificada, menos vulnerável a fatores externos. O intercâmbio
proporcionava maior estabilidade ao abastecimento mais diversificado.
Quando um produto-chave escasseava ou apresentava uma superoferta, a
fixação dos preços garantia o abastecimento e evitava o enriquecimento de
alguns e a miséria de outros, sem paternalismo nem filantropia.
Tanto na produção agrícola quanto na pecuária, cada missão
objetivava autoabastecer-se. Por isso, plantava-se o maior número possível de
gêneros compatíveis com o solo. Só na escassez de algum produto essencial
havia a necessidade de intercâmbio ou doação por parte de outra missão.
As primeiras tentativas de cultivar algodão fracassaram devido
às geadas. As ovelhas adquiridas nesta época compensaram parte do
prejuízo e garantiram a produção de tecidos para as roupas de lã. Anos
depois, os missionários conseguiram terras melhor protegidas contra as
geadas e a tecelagem de algodão explodiu.
Loreto e Santo Inácio acolheram os emigrados de Tape fornecendo
alimento e alojamento, ajudando no cultivo dos campos e na construção
das casas. Só Loreto conseguiu, durante um período, manter outras duas
missões necessitadas de auxílio temporário, emprestando sementes ao
plantio, preparando os campos, roçando a mata virgem. Até suas mulheres
41
Miranda Neto
ajudaram a alimentar os filhos das hóspedes. Loreto e Santo Inácio que,
em 1631, haviam sido auxiliadas pelas missões do Paraná em 1638 e 1639,
retribuíram a acolhida como quem “aprendeu por sua própria experiência
a lastimar (e confortar) os sofrimentos alheios” (Cartas Ânuas 1636-1639).
A capacidade das missões para enfrentar ajuda tão generosa
não só refletia seus recursos produtivos como também a capacidade de
armazenamento. Em 1646, já eram dotadas de celeiros para abrigar suas
colheitas, destacando-se nitidamente dos demais núcleos autóctones. O
excedente, que podia ser posteriormente intercambiado ou emprestado,
aguardando sua recuperação, era armazenado, preservado, conservado.
As habilidades e o aperfeiçoamento dos recursos humanos
potencializaram a diversificação através do incentivo aos ofícios e às artes
conforme os recursos naturais disponíveis na região. Os serviços e produtos
intercambiados variavam: desde o transporte até a fabricação de carretas
e de barcos. Como exemplo deste intenso fluxo de trocas destacava-se a
missão de São Carlos que desfrutou por quatro anos do direito de vaquejar
ou retirar o gado na jurisdição de Santa Fé como pagamento pelo retábulo
(painel que decora o altar da igreja) que para lá produziu.
Na distribuição equitativa da produção pela população do núcleo
não se admitia nenhum intermediário comercial privado. As entradas e
saídas dos produtos eram diariamente checadas e contabilizadas para o
controle dos estoques disponíveis. Não circulava moeda de ouro nem de
prata. A cada início de mês, os funcionários dos armazéns entregavam
aos chefes de setores (bairros) a provisão de gêneros para os trinta dias,
distribuída às famílias conforme o número de seus dependentes. A carne,
obtida com os periódicos abates, era repartida três vezes por semana.
Tecidos e roupas também eram distribuídos de acordo com as demandas.
As necessidades comuns precediam as individuais. O escambo (troca
direta) predominava embora às vezes algum bem, aceito por todos,
pudesse intermediar a comercialização como, por exemplo, chá-mate,
fumo, mel e milho. A maior parte da produção destinava-se ao mercado
interno. Só o excedente era comercializado fora da comunidade.
3.4 Alimentação
Apesar de variada, baseada na caça, na pesca, nos frutos das
matas, nos cultivos de milho, mandioca, batata e legumes, a alimentação
dos habitantes dos núcleos cada vez mais dependia da carne bovina
obtida a partir da grande Vacaria do Mar no extremo sul, prolongada pela
42
Estrutura, Produção e Renda
Vacaria do Rio Negro, na margem oriental do rio Uruguai, e da Vacaria
dos Pinhais situada próximo às nascentes do rio Uruguai.
Os missionários procuravam aumentar a produção agrícola e ao
mesmo tempo restringir o consumo de carne vacum, até para propiciar o
rápido aumento do número de reses. O consumo diário per capita subiu de
300g para 400g, do século XVII para meados do século XVIII. Cada família
recebia cerca de 2kg de carne.
A principal produção agrícola consistia em milho, legumes e
algodão cultivados nas plantações comunitárias. O milho, considerado
“panaceia do Paraguai”, era distribuído pelos padres como estímulo ao
trabalho comunitário e, devido às múltiplas utilizações, para as mais
diversas iguarias nutritivas e saborosas.
A produção do trigo sempre ocupou lugar secundário. Entretanto,
o consumo da mandioca superava até o do milho. Da farinha de
mandioca fazia-se pão. As diversas espécies de mandioca originavam
usos diferenciados. Suas raízes consumiam-se assadas, cozidas ou
como farinha, amido. Dos resíduos formavam bolas que secavam ao sol
penduradas do telhado das casas, provisão útil durante parte do ano em
que são aos poucos cozidas com carne, à guisa de pão.
Estima-se o consumo per capita diário inferior a 500g de mandioca,
batata ou abóbora. Nunca faltavam batata e mandioca, que possuía ainda
a grande vantagem de, após seis meses estar apta a ser consumida e poder
ser armazenada no próprio solo, conservando-se disponível até três anos,
sempre madura. Nas áreas mais úmidas, sobretudo nos dez últimos anos
de administração jesuítica, predominava o cultivo do arroz de várzea.
Depois do milho e da mandioca, os legumes se destacavam como
as favas, os grãos-de-bico, as lentilhas, consumidos uns 30kg por pessoa/
ano, nas épocas de baixo consumo de carne.
Açúcar e mel, além do consumo interno, eram vendidos fora das
missões. Ao lado das hortas dos padres que estimulavam a produção
e o consumo de diversas espécies vegetais, cultivavam-se árvores
frutíferas (laranjas, pêssegos) nativas e importadas da Europa. Devido
à sedentarização dos homens e à relativa abundância de carne, tanto
a caça quanto a pesca haviam diminuído. O consumo de erva-mate,
característico da cultura guarani e um dos principais produtos de
exportação considerado até como moeda de troca, correspondia a mais
de 17kg por família/ano já que a distribuição em alguns pueblos atingia
a três vezes ao dia.
Periodicamente mascates estrangeiros visitavam as missões onde
se alojavam, oferecendo suas mercadorias. Assunção e Buenos Aires
43
Miranda Neto
comercializavam alimentos através de feiras regulares nas periferias de
Santo Inácio-guaçu, Santa Maria da Fé, Santiago, Santa Rosa, São Carlos,
Yapeyú e São Cosme. Na verdade, o contato com os mercadores diminuía
o fervor religioso dos neófitos.
As missões de Guairá se especializaram em produzir fumo, mate
e algodão e intercambiavam com a lã, os legumes e a carne das aldeias do
Tape, mais ao sul. O saldo das transações destinava-se ao tributo anual ao
rei, à aquisição de ferramentas, equipamentos agrícolas e, principalmente,
à manutenção das igrejas.
Embarcações à vela ou remo predominavam no transporte e na
comercialização dos produtos das missões, a maioria delas situada à
beira de cursos d’água. A frota mercante guarani despertava a atenção
dos povos vizinhos e chegou a transportar tropas de Corrientes a Buenos
Aires, bloqueada pelos ingleses em 1667 e em 1671.
Caminhos com relativa pavimentação formavam rede de
transportes terrestres. Os principais produtos que eram transacionados
entre as missões e para Assunção, Buenos Aires, Corrientes, Santa Fé, Vila
Rica do Espírito Santo e até para a Europa eram: erva-mate, fumo, açúcar,
tecidos de algodão, móveis, esculturas, tinturas, rendas, bordados, pavios,
círios, rosários, escapulários, mel, frutos, couros para embalagens, casacos
e calçados e peles de animais, excedentes manufaturados e artesanato. A
maioria das missões importava ouro, prata, cobre, ferro (metal em bruto)
para produção de ferramentas, armas, decoração de templos e produtos
industrializados. O sal era basicamente fornecido pelas missões de
Santiago e São José que exploravam salinas. A seda, o papel e o vinho da
missa provinham da Europa. Até o século XVII ainda não se conseguira
produzir o famoso vinho gaúcho. O elevado custo do frete somado aos
impostos reais tornavam as importações proibitivas e dificultavam até
as exportações do mate, agravadas pelas restrições de cota determinadas
pelas autoridades para o produto procedente das missões.
3.5 Erva-Mate
Nada indicava melhor a afeição guarani à erva-mate do que o risco
enfrentado para produzi-la até em regiões infestadas de inimigos. Desde
que dispusessem de área extensa e segura, os guaranis selecionavam os
ervais apropriados com acesso ao transporte terrestre e fluvial. A ocupação
de um espaço seguro com ervais era lenta. Em 1655, os índios das missões
iam buscar a erva navegando em canoas por rios durante uma média de
44
Estrutura, Produção e Renda
três meses (ida e volta) de muito trabalho exaustivo, enfrentando feras,
febres e tribos hostis. O interesse maior era intercambiar o mate com
cavalos, indispensáveis para vaquejar, algodão para os tecidos de suas
roupas e sementes para suas lavouras. Grande parte da erva era destinada
ao Colégio de Assunção que auxiliava nas aquisições requeridas.
Os alcaides de Assunção se indignaram com a venda de erva-mate
a terceiros e acusaram os jesuítas de explorar os índios. Estes responderam
que a produziam para si próprios a fim de satisfazer suas necessidades
e pagar os tributos. E solicitaram ao Rei permissão para que “os índios
pudessem beneficiar e transportar livremente a erva”. A Cédula Real de
1-06-1645 a concedeu e advertiu governadores, corregedores e demais
ministros das províncias para não colocarem nenhum impedimento sob
pena de sofrerem punições severas. E deveriam auxiliar os índios no que
fosse necessário da melhor maneira possível.
O curioso era que os guaranis ofereciam a erva-mate aos padres
como esmola, pois consideravam-na um bem de todos, a “erva da
comunidade” tanto para as necessidades da igreja quanto para os neófitos
paroquianos menos aquinhoados.
O tipo de beneficiamento diferenciava a erva caaminí (caamirí) da
comum ou de palos.
Cortados os galhos do vegetal, chamuscavam-nos na chama, dependuravam-nos
em paliçadas (traçando as varas) ou casas tecidas de varas, sobre brasa viva para
que se tostasse a folha. Depois moíam e enfeixavam-na em surrões. Este era o
modo descuidado utilizado pelos espanhóis. Os guaranis tinham pilões de hastes
e tudo que era necessário para a higiene. Os espanhóis não retiravam os espinhos
das ramas e misturavam-nos com as folhas e os trituravam juntos. Daí que a erva
chamada de palos não ter sido estimada. Os guaranis moíam apenas as folhas e
separavam cuidadosamente as impurezas e os resíduos. Esta era a afamada caaminí7.
O excesso de oferta em meados do século XVII desvalorizava
ainda mais a erva de palos. Enquanto isso, a venda da erva caaminí das
missões não ultrapassou as 12.000 arrobas anuais nos mercados.
Devido à premente necessidade de pagar tributos em moeda metálica,
os missioneiros conseguiram aumentar as vendas de 1.500 arrobas a
5.500 arrobas. Como os guaranis produziam a erva em alguns terrenos
pertencentes à cidade de Assunção, os espanhóis exigiram o chamado
“tributo assunceno de estanco”: um carregamento de erva por quarenta
que haviam transportado.
7
LABRADOR, Sánchez. El Paraguay Católico. II. Pp. 245-246.
45
Miranda Neto
No século XVII, Santa Fé era o centro mais importante de
redistribuição da erva-mate que se tornou “o melhor gênero existente em
todo o Peru para transformar em prata”8.
A erva-mate – caamini – era uma bebida muito apreciada pelos
ameríndios sobretudo guaranis já antes da conquista e colonização. De
início, proibida, depois incentivada, tornou-se um dos principais produtos
de exportação das missões. Foi considerada “vício elegante” da aristocracia
colonial. É uma árvore nativa, silvestre, em mata heterogênea, ao longo do
Paraguai, Uruguai e Paraná. Em Lima, os incas colocavam folhas de mate
para acompanhar seus mortos ao lado de armas, roupas e joias.
Os jesuítas introduziram novas técnicas no cultivo e preparo
do mate cujo segredo era colher as folhas na época exata sem deixar a
umidade interferir, triturá-las bem e tostá-las, eliminando os gravetos.
Os padres Segismundo Asperger e Pedro Montenegro, botânicos, foram
os primeiros que divulgaram as propriedades e virtudes medicinais do mate:
fortificante, digestivo, diurético, refrescante no verão (se ingerido frio) e bebida quente
(no inverno). Recomendava-se ingeri-lo sem excessos, em pequenas doses. A erva
macerada podia ser usada para curar feridas e como antiespasmódico. Além disso,
servia para combater a insolação e fortalecer as gengivas se mastigadas suas folhas.
A erva-mate (caá) propiciou vultosos rendimentos, garantindo
em parte a sustentabilidade econômica das missões. Após um século da
expulsão dos jesuítas, 5000 toneladas ainda eram exportadas (1867).
A yerba de palos era obtida da erva-mate silvestre após cortados os
galhos que tostavam em uma espécie de grelha durante 24 horas, para depois
serem reduzidas a pó mediante batidas com estacas. O cultivo racional
em áreas próximas às aldeias demorou a produzir resultados satisfatórios
(de 8 a 10 anos). De 1670 a 1747 quase todas as reduções já possuíam seus
próprios ervais que produziam as caamini (ervas cultivadas) preferidas à
yerba de palos, alcançando o dobro do preço em meados do século XVIII.
8 CARAVAGLIA, Juan Carlos. Mercado Interno y Economia Colonial. México: Grijalbo, 1983.
46
Estrutura, Produção e Renda
A fim de melhorar o sabor, os jesuítas aprenderam a misturar
a erva-mate com as folhas de uma árvore frutífera, a quabiri mirim. Ao
secarem as folhas, cuidava-se de reter um pouco de sua viscosidade.
Missionários resolveram intensificar o criatório para garantir o
suprimento de carne aos coletores da yerba. As expedições levavam o rebanho
e os bois de tração para áreas próximas da colheita do mate a fim de transportar
o produto final na volta. Os acessos ainda eram primitivos e difíceis.
A colheita da erva-mate em estado selvagem, nas condições
insalubres e em regiões distantes e inóspitas, provocava inúmeras baixas
entre os guaranis devido também ao ritmo intenso exigido de homens mal
alimentados. Em cada missão, cerca de 50 coletores da yerba se deslocavam
durante meses para longe de suas famílias, submetidos a duras privações
e sob ameaça de insetos, cobras e outras feras.
A boa aceitação do mate suplantou o consumo da chicha,
aguardente produzida a partir da mandioca, tornando-se um valioso
produto de exportação com demanda garantida. Após a missa, os padres
faziam questão de distribuí-lo em folhas aos fiéis, adotando oficialmente
seu consumo por ser mais saudável e produzir menores inconvenientes.
No início do século XVIII, as mudas selecionadas cultivadas pelos
jesuítas começaram a se multiplicar próximo às áreas centrais das missões,
um sucesso pelo empenho na tecnologia agronômica. A erva cultivada era
muito disputada, como, aliás, todos os produtos das missões, geralmente
melhores do que os provenientes da gestão colonial. O segredo da
“tecnologia” desenvolvida pelos jesuítas teria se perdido com sua expulsão.
3.6 Autossustentabilidade
À medida que as missões se tornavam superpovoadas, as antigas
técnicas ficavam ultrapassadas, ineficientes e incompatíveis com o
desenvolvimento sustentável. Os índios a princípio já evitavam desmatar
47
Miranda Neto
completamente as áreas, deixando sempre bosques intercalados cujas
árvores protegiam o solo da erosão pluvial, conservando a umidade
e a fertilidade. Praticavam também a rotação de culturas com áreas em
descanso ou pousio para só serem utilizadas no plantio após alguns anos.
Os implementos agrícolas de ferro ampliavam o espaço cultivável
em menos tempo e os jesuítas ainda agregavam uma gradual diversificação
de espécies vegetais e animais. Para maior eficiência da expansão, eram
criteriosos na seleção dos solos mais férteis, a salvo de geadas e estiagens.
A horta dos padres era considerada verdadeira chácara experimental com
espécies-chaves para alimentação, vestimenta e saúde (plantas medicinais).
Como a capacidade das terras cultiváveis próximas às missões
ficava limitada pelo desmatamento e pela queda da fertilidade dos solos,
a cada três anos, pelo menos, os guaranis mudavam de sítio. Praticava-se
também a cuidadosa separação prévia dos troncos a serem utilizados na
construção civil e naval, impedindo o desperdício com a queima acidental
e desnecessária.
A localização das missões priorizava o abastecimento de água
de boa qualidade tanto fluvial quanto subterrânea. Quando possível,
os promotórios beira-rio garantiam segurança estratégica, transporte e
alimentação farta, já que os cursos d’água eram piscosos, o que assegurava
periódica complementaridade dietética. E, sobretudo, fundamental era
situar-se longe dos alagadiços em sítios mais elevados, bem ventilados e
próximos a veios fluviais. O clima era favorável ao plantio e ao criatório.
O uso racional dos recursos naturais limitava os tradicionais
desmatamentos que, entretanto, eram praticados nem sempre tomando os
devidos cuidados. Um dos critérios para a escolha do sítio era justamente
a proximidade de bosques plenos de biodiversidade. Só se fazia uso das
árvores já desenvolvidas e a preocupação era deixar sempre touceiras
aptas à reprodução das respectivas espécies vegetais e evitar perdas
desnecessárias e devastadoras ações antrópicas. Até cipós, galhos e nós
dos madeiros eram aproveitados para o artesanato missioneiro como as
belíssimas imagens de santos e rosários elaborados a partir da árvore
curiy. As folhagens secas caídas protegiam o solo da erosão.
Muitas espécies trazidas da Europa enriqueceram ainda mais a flora
nativa. Apesar de preocupações com o ambiente, padres queixavam-se de
inúmeras agressões antrópicas que afetavam o equilíbrio ecológico, a capacidade
de suporte das áreas ocupadas e o próprio desenvolvimento dos núcleos.
Os recursos das matas e dos campos naturais eram complementares.
A biodiversidade dos bosques preservava a fertilidade do solo e a
produtividade agrícola.
48
Estrutura, Produção e Renda
A boa técnica não depende tanto do instrumento quanto da sua
utilização adequada para determinados produtos vegetais. Já no início do
século XVIII os guaranis das missões transplantavam pequenas matas dos
ervais silvestres. Ao se descobrir que bem lavadas, as sementes recém-colhidas
da árvore brotavam com facilidade, a técnica difundiu-se entre os missionários
nos terrenos adequados ao plantio.
Dispor de plantas perenes, menos sensíveis a variações climáticas,
próximas às missões, reduzia os riscos e os trabalhos dos cultivos anuais
periódicos, permitindo atender melhor outras tarefas como capina rigorosa
de limpeza das ervas daninhas com a grade de arado. Os cultivos perenes
permitiam disponibilizar maior tempo para o início das roças em novas
frentes; para obras comunitárias tanto no campo quanto na zona urbana;
para diversificar a produção com legumes e arrozais; para potencializar
estas inovações através do melhoramento planejado dos solos.
A transformação tecnológica implicava em um trabalho de equipe
dos missionários junto às lideranças indígenas, incluindo assessorias
eventuais de técnicos europeus especialmente convidados que sempre
recomendavam a escolha criteriosa de sementes de plantas vigorosas e
de solos cujo potencial produtivo poderia ser melhorado. Também se
preocupavam com o transporte e o armazenamento adequados tanto das
sementes quanto do produto final cujo consumo nem sempre era imediato.
A adubação e a irrigação dos terrenos já eram consideradas àquela época.
Assim como o pousio alternado de certas áreas na prática de rotação de
culturas a fim de manter a produtividade dos solos conforme os diversos
plantios, suas características e peculiaridades.
Alguns jesuítas tiveram a ideia de secar lagunas e pântanos cavando
fossos mantidos desobstruídos e construindo barreiras a fim de preparar
o solo para belíssimas hortas de árvores frutíferas que produziram em
abundância. Os materiais advindos desses trabalhos eram aproveitados
na elevação artificial de parte dos terrenos, sempre bem drenados.
O esterco animal junto com o resíduo vegetal possibilitava
cultivos precoces com maior produtividade: até a palha, por mais seca
que estivesse, apodrecia e fermentava com os excrementos, tornando-se
excelente e duradouro adubo para o plantio.
A autonomia de cada pueblo com seus recursos humanos e naturais
peculiares estimulava a criatividade, a especialização compatível com
uma prudente diversidade de produtos e serviços, e adaptação técnica.
As atividades comuns a várias missões, o intercâmbio e a solidariedade
ante as emergências incentivavam a difusão desinteressada de
conhecimentos e habilidades técnicas. Os trinta pueblos contavam em 1767
49
Miranda Neto
com uma tecnologia adequada para satisfazer plenamente suas próprias
necessidades; uma tecnologia que revalidava os recursos naturais
autóctones conforme os valores essenciais ao modo de ser guarani e que
agregava novas metas.
Os guaranis continuaram abrindo novas roças em meio a bosques
cuidando de controlar o corte e o fogo. Os solos eram propícios para cultivar
algodão ou desenvolver pastagens férteis. Desenvolveu-se uma tecnologia
própria, mas aberta a novos aperfeiçoamentos. De início, os missionários
europeus trouxeram seus conhecimentos técnicos, mas no século XVIII,
a maioria dos jesuítas da província do Paraguai já havia nascido em
terras americanas. A comunicação entre os colégios, residências, ofícios
e missões facilitava o descobrimento dos “espanhóis curiosos” tendo em
comum o fato de já serem sul-americanos desejosos de um melhor, mais
racional e sustentável aproveitamento dos recursos naturais.
Baseados em sua experiência, os jesuítas lançaram um vasto
programa agrícola sustentável. A falta de pastagens em Itatim obrigou-os
a criar rebanhos menores compatíveis com áreas restritas conquistadas
às matas e às encostas. A fim de reter água na estação seca, açudes
foram construídos. Lhamas de origem peruana foram introduzidas:
suportavam o frio e as frequentes cargas quando utilizados na tração
animal. Produzia-se mais feijão, limão e abóbora do que maçãs, peras e
laranjas. Apesar de pequenos surtos de prosperidade, nunca chegaram a
alcançar o nível das missões do Paraná (Guairá).
A baunilha também era comercializada. Produzida nas regiões
mais úmidas das missões em associação com palmeiras, o maço (feixe)
triangular repleto de pequenas sementes era procurado pelos espanhóis
como um dos insumos na fabricação de chocolates. Seu uso só se
intensificou no final do período jesuítico.
Com o êxito da produção, sobretudo agropecuária, a oferta
abundante permitia uma eficiente repartição entre as famílias residentes.
Após quatro anos, a carne de bovinos começou a garantir o sustento
dos habitantes cuja habilidade e competência com as lides campeiras
favoreceram a expansão do criatório.
3.7 Pecuária
A introdução do gado vacum impôs aos missionários cuidadosa
seleção inclusive de pastagens não só para assegurar uma nutrição
adequada como também para proteger o gado de outros riscos como
50
Estrutura, Produção e Renda
inundações, feras, invasões, furtos. Na Vacaria do Mar a partir de 1670
a preocupação maior tornou-se expandir o rebanho a fim de garantir
o satisfatório consumo de carne para os habitantes das missões. Para
consegui-lo, implantaram-se pequenos bosques intercalados, caminhos
entre eles com boas aguadas, sombra e alimento: paradas de descanso e
recuperação, evitando-se as matas fechadas cheias de perigos.
Os índios acostumaram-se a organizar verdadeiras expedições à caça
do gado bravio, fugido, sem dono certo, entre dezembro e fevereiro. Mais
de 50 vaqueiros levavam cinco cavalos cada um, e um lote de bois mansos
para servirem de guias na condução das reses, que eram cercadas e trazidas
de volta, misturadas umas às outras, aos currais. Os cavaleiros tinham muito
trabalho para manter a malhada unida, sem “espirrar” nenhuma rês mais
arredia. Durante o trajeto, caída a noite, eram obrigados a acender fogueiras
para evitar o “estouro” da boiada. Desta maneira, os 50 índios em dois a três
meses, conseguiam trazer à missão, em uma distância de 100 léguas, de 5
a 6 mil cabeças. Sempre ocorriam graves incidentes, muitos cavalos eram
chifrados ou morriam de exaustão, correndo atrás de reses rebeldes também
afetadas pelos maus tratos recebidos. Muitos animais ficavam imprestáveis
durante todo o ano e eram recuperados em pastagens verdejantes a eles
reservadas. O segredo era manter suficientes equinos disponíveis para
conduzi-los à vacaria, que se tornava estância e pasto para as trinta missões
que se mantiveram abastecidas durante mais de 50 anos.
Tornou-se vital encurtar o trajeto entre a Vacaria do Mar e a
estância de São José, pertencente à missão de Yapeyú, entre o rio Uruguai
e seus afluentes, Ibicuí ao norte e Quaraí ao sul, onde milhares de reses
abandonadas se multiplicavam. Daí que a estância de São José tornou-se
de importância estratégica para a retirada do gado da Vacaria do Mar.
De 1677 a 1691 a taxa de desfrute anual do gado foi de tal ordem
que o padre provincial, Gregório de Orozco, ordenou que as missões
passassem a “vaquejar” apenas de dois em dois anos. Neste período,
as missões da bacia do Uruguai estabeleciam estâncias onde o gado
engordava e se multiplicava.
Em 1692, o governador do Rio de Prata solicitou às missões que
retirassem para suas estâncias todo o gado procedente da Vacaria do Mar
ampliada com a de São Gabriel, projeto inexequível mesmo criando uma
grande vacaria ao norte do Rio Negro.Em 1704, foi criada a Vacaria dos
Pinhais, a leste do Alto Uruguai, que já começara a receber gado desde
1701. A Vacaria do Rio Negro, dividida em duas, a primeira entre o rio
Negro e o rio Quaray, e a outra ao sul do Rio Negro até o litoral atlântico
se formou com o gado das missões do vale do Uruguai entre 1702 e 1709.
51
Miranda Neto
Em 1717, a Vacaria dos Pinhais se expandiu com o rebanho das
missões de São Lourenço, São Luiz, São Miguel e outras já que as Vacarias
do Mar e do Rio Negro se ressentiram do sacrifício intensivo de reses para
o comércio depredador de couros, graxa e sebo, desperdiçando os demais
subprodutos.
Vale ressaltar o planejamento coordenado da produção e
distribuição do gado ao utilizar o mesmo espaço geográfico criando uma
reserva complementar oportuna que enfrentou a grande crise alimentar de
1733 a 1740. A seleção do gado e de novas estâncias, banhadas de cursos
d’água e dotadas de pastagens permanentes, garantiu excelente melhora do
plantio e recuperação do rebanho que tornou a expandir-se. Enquanto uma
fazenda crioula extensiva apresentava a taxa de crescimento líquido anual
de 20% sobre o total do rebanho, o novo plantel missionário alcançava 25%
em criatório semi-intensivo em terrenos cercados, com bons bebedouros,
manejo adequado, obtendo gado manso de melhor qualidade.
O progresso técnico foi resultado de anos de experimentação e
soma de esforços. Até na criação de ovinos a produtividade na extração
de lã aumentou no século XVIII. Mas constatou-se que apenas as técnicas
aplicadas não conseguiam superar a crise alimentar de 1733 a 1740 cuja
solução seria encontrar terras mais aptas ao cultivo nas missões afetadas
pela baixa produtividade. Sobretudo, pela recuperação de solos exauridos
durante intensiva exploração agrícola.
A criação de gado exerceu a função de atividade produtiva
complementar à agricultura, fornecendo animais de tração e transporte,
carne, leite e laticínios. Aos poucos, os jesuítas foram descobrindo as
regiões mais propícias à pecuária como o sudeste e o centro-norte de Tape
(atual Rio Grande do Sul) nas bacias do rio Uruguai e parte do Paraná
(vacarias do Mar, do Sul e dos Pinhais, mais para o norte).
Enquanto os homens caçavam, pescavam e campeavam, as
mulheres semeavam e colhiam. A expansão do rebanho bovino e sua
manutenção tornaram-se incompatíveis com a tendência em caçá-lo e
devorá-lo sem medida. Entretanto, conseguiu-se substituir as atividades
mais extensivas ao se permitir e até incentivar o aproveitamento do gado
fugido e disperso na proporção de um quarto do total.
Em 1555, teria entrado no Paraguai o primeiro lote de gado vacum.
De 1569 a 1576, ocorreu a intensificação do fluxo de bovinos procedentes
do Alto Peru através de Tarija.
Os rebanhos bovinos e equinos originavam-se dos lotes do
fundador Alonso de Vera amealhados em Assunção desde 1588 por
Hernan d’Árias, posteriormente apropriados pelos vizinhos, já que
52
Estrutura, Produção e Renda
estavam dispersos e fracos. Seu filho Pedro de Vera, após reclamar seus
direitos de herdeiro, obteve em 1611 um acordo com o cabildo da cidade
sobre o usufruto do gado, perante o ouvidor Francisco de Álfaro. Em 1627,
Pedro de Vera vendeu seus direitos a Manuel Cabral de Alpoín, que os
exerceu com firmeza e determinação por um longo período.
As vacarias eram campinas cercadas de acidentes geográficos que
continham o gado vacum destinado ao Tape em sua fase de expansão
(1632) e ao abastecimento dos novos reassentamentos das missões (1637).
A Vacaria do Mar constituiu a base do posterior desenvolvimento pecuário
das missões.
Cerca de três mil reses da cidade de Corrientes foram adquiridas
para os campos do Tape cabendo centenas a cada pueblo a fim de fundar
suas estâncias. Uma das estâncias localizava-se nas proximidades de
São Miguel entre os rios Ibicuí e Jacuí. A dispersão do gado e o ataque
frequente de índios hostis forçavam a multiplicação de currais, estâncias e
vacarias próximas às missões.
Itapuá (Encarnação) influenciava as demais missões no “direito
de vaquejar” que concedia em épocas determinadas e na engorda do
gado em invernadas dotadas de pastagens de melhor qualidade que
eram emprestadas quando necessário. Com as investidas luso-brasileiras,
algumas missões do Tape tiveram de ser reassentadas e abandonaram as
cerca de duas mil reses (de origem andaluz) nos pastos. As “pradarias
ricas em gado” desfiguraram a história do desenvolvimento pecuário dos
pueblos guaranis, supervalorizados quanto a seus recursos.
Em 1638, os fugitivos da banda oriental do Uruguai (17.500 pessoas)
equivaliam à metade da população das 20 missões com aptidões agrícolas
relativamente homogêneas situadas entre os rios Uruguai e Paraná.
A comercialização dos tecidos que serviam para seu próprio
vestuário e dívidas contraídas em prata em troca de 6.000 a 7.000 bovinos
não eram suficientes para satisfazer os refugiados. O governador do Rio
da Prata chegou a autorizar em 23-08-1638 aos guaranis “que pudessem
vaquejar o gado disperso próximo às missões do Paraná”. Essa região
ficou conhecida como Vacaria do Iberá ou Entre Rios. Este acesso facilitado
ao gado aumentou a consumo de carne per capita, melhorando a dieta
da população e a expansão do rebanho, incentivando a que as missões
tivessem “uma estância de vacas comum a todas” depois subdividida em
várias menores “conforme sua real capacidade” de controle, administração
e produção para o mercado interno.
Após a vitória de Mbororé, patrulhas das missões recorriam à
margem oriental do Uruguai, destruíam as fortificações dos luso-brasileiros
53
Miranda Neto
e libertavam os índios cativos. O gado abandonado em 1637 proveniente
das missões foi encontrado em 1644. Depois este rebanho se expandiu
para o sul, ao longo do litoral. Nada agradava tanto os guaranis do Tape
como retornar às suas terras de origem a fim de espioná-las, dobrar o gado
remanescente ou colher os ervais outrora próprios. Em 1646, os melhores
soldados tapes também precisavam defender as vacarias de Assunção, na
margem ocidental do rio Paraguai, em benefício da população de Corrientes.
Em 1657, as autoridades da missão de São Francisco Xavier
fundaram sua primeira estância na margem oriental do Uruguai, seguida
por Yapeyú, coordenando estas instalações com a defesa militar do
território compreendido. Em 1679, cada uma das vinte missões contava
com sua própria estância para criação de gado além da Vacaria do Mar.
A cidade de Corrientes compartilhava com as vinte missões a extensa
vacaria e permutava com elas produtos e serviços dos guaranis dos
quais ocasionalmente necessitassem. As chácaras dos índios ficavam
distanciadas dos núcleos e, por motivo de segurança, recomendou-se que
o cultivo dos terrenos fosse incentivado nas proximidades da área urbana.
Uma das consequências deste distanciamento era indisciplina
e insubordinação dos rapazes das estâncias criadas longe das vistas do
pároco. Para corrigi-lo, recomendava-se que “se aplicassem ao cultivo de
suas chácaras, indispensáveis para o seu próprio sustento”.
A exploração racional da Vacaria do Mar assegurava abastecimento
regular das missões e das estâncias, sobretudo para aquelas que retornaram
à margem oriental do rio Uruguai a partir de 1682.
Dez anos depois, todo o gado das Vacarias do Mar e de São Gabriel
deveria ter sido incorporado às missões a fim de evitar que os luso-brasileiros
da Colônia do Sacramento se aproveitassem da facilidade de acesso e dele
se utilizassem em proveito próprio.
Todos os que podiam, trabalhavam. Não havia esmoleres. Os
demais eram mantidos pela comunidade. Nenhum índio cultivava algo
só. O trabalho comunitário recebia estímulo, supervisão, coordenação.
No plantio, na limpeza e na colheita, todos colaboravam: mulheres e
crianças cantavam e batiam palmas para afastar os predadores. A safra
colhida era armazenada para posterior distribuição. Havia o cuidado de
prever as sementes para os plantios sucessivos e o estoque excedente para
emergências (reserva de alimentos e moeda de troca por bens europeus).
Portanto, funcionava um sistema cooperativo a fim de garantir
o bem-estar. Não havia direitos de herança: a família sobrevivente era
cuidada pela comunidade. Na teoria, o Estado Espanhol era o detentor da
54
Estrutura, Produção e Renda
propriedade da terra sul-americana mas, na prática, de fato, a Província
Jesuítica do Paraguai exercia o domínio efetivo.
Como não circulava moeda, tornava-se impossível transacionar
terrenos sobretudo pelos colonos, impedidos de ter acesso às missões, de
adquirir terrenos. Cada chefe de família guarani recebia da comunidade o
que necessitava para sustentar seus dependentes. Mais terras significavam
mais trabalho, mais produção.
Os equinos eram amansados para montaria ainda segundo o
método cruel de serem deixados presos sem alimento durante dias. Os
potros eram doados a quem os quisesse criar. A passo de viagem, duas
léguas eram percorridas em uma hora.
O curioso era que o índio raramente cuidava do “seu” animal, fosse
boi ou cavalo. Findo o serviço, esquecia-se de retirar a sela, de alimentá-lo e
tratá-lo, chegando ao ponto de esquartejá-lo para assar sua carne. Por isso,
os missionários passaram a controlar o acesso às montarias até para evitar
roubos de gado e abandono por parte dos guaranis de suas respectivas
famílias. Tanto que o rebanho manteve-se relativamente estável, antes de
explodir no século XVIII.
Desperdiçava-se a carne quando o interesse era apenas aproveitar
o couro: a carcaça ficava à mercê de urubus, cachorros e raposas. O gado
tornou-se abundante. Um cavalo valia uma faca.
Viajantes eram obrigados a mandar vaqueiros à sua frente para
abrir caminhos – tantas eram as reses bravias e dispersas que impediam
sua passagem e assustavam o caminhante.
3.8 Manufaturas, Artesanato, Artes Plásticas, Música
As missões possuíam fornos nas olarias para produzir tijolos e
telhas. Em Santa Rosa, o padre Sepp utilizava dois fornos. Em São João os
três fornos fabricavam vários milheiros de peças de cerâmica.
Os sinos eram fundidos com metal importado de Coquimbo, Chile.
Armamentos e munições, ferramentas e equipamentos eram montados
em diversas oficinas. Tipografias, ateliês e laboratórios completavam o
diferencial entre algumas missões e as cidades sul-americanas na época
colonial.
Os missionários prezavam a medição do tempo tanto por
quadrantes solares quanto por relógios a fim de bem regular as atividades
cotidianas e as ocupações dos habitantes. Os padres Jaime Carreras e Pablo
Danesi e o frei Charles Franck orientaram os guaranis na arte e técnica da
55
Miranda Neto
relojoaria. Relógios de sol até hoje atestam o capricho e a preocupação dos
missionários em bem aproveitar o tempo disponível.
A primeira oficina de impressão instalada no Vice-Reino do Prata
foi de iniciativa dos jesuítas, que produziram livros em língua guarani
com caracteres tipográficos especiais tentando reproduzir a pronúncia
da maneira mais fiel possível. Em 1705, Loreto publicou a obra Temporal
y Eterno em espanhol e um dicionário. Os trabalhos impressos eram bem
apresentados. Candelária, Loreto, Santa Maria e São Francisco tiveram suas
oficinas destruídas após a expulsão dos jesuítas. As obras linguísticas do
padre Restivo encontra-se ainda hoje no Museu Histórico de Buenos Aires.
Os mapas da América do Sul impressos pelos guaranis e os
mapas celestes do padre Boaventura Suárez também se destacaram
entre alguns dos melhores exemplares produzidos nas missões. Dotados
de grande sensibilidade artística e fidelidade ao original, os neófitos
eram extremamente hábeis em imitar, copiar e transcrever, produzir
instrumentos musicais, tecer redes de dormir, tapetes, tecidos em geral.
Corporações organizavam as principais atividades. Desde cedo, os
jovens eram encaminhados a uma profissão. Mestres estimulavam seus
discípulos e não temiam a futura concorrência. Não havia privilégios nem
mecanismos para travar o progresso como a tecnoburocracia e a corrupção
funcional-administrativa. Havia espírito de equipe, cooperativismo. As
tarefas eram orientadas, coordenadas, fiscalizadas, acompanhadas com
muita atenção, zelo e carinho. A aprovação da comunidade e dos padres
era a láurea almejada.
Além de apurado gosto estético, os jovens guaranis demonstraram
senso de proporção e perspectiva, ótimo ouvido e ritmo que muito
contribuíram para desenvolver o talento para o desenho, a pintura, a
escultura, o canto, a música instrumental e a dança.
Logo de início, os missionários observaram que os cânticos
sacros atraíam a atenção dos indígenas. O padre Louis Berger pode ser
considerado o primeiro mestre de música instrumental e vocal, escultor
e pintor, admirado até pelo seu superior, o padre Mastrilli; ele conseguiu
converter inúmeros infiéis com seu violão. O padre belga Jean Baez
Vassaux aperfeiçoou musicalmente os guaranis divulgando repertórios
consagrados e composições individuais. O padre Antonio Sepp também
se destacou como músico de talento, intérprete em vários gêneros e
instrumentos além de compositor. Foi grande incentivador do ensino
da música aos guaranis no século XVIII. Em cada missão foi criada uma
escola de canto coral, música e dança. Saber cantar fazia parte da educação
para a cidadania.
56
Estrutura, Produção e Renda
Os instrumentos musicais – órgãos, violinos, violas, harpas, flautas
e trompetes – eram confeccionados nas missões pelos jesuítas, muitos
deles alemães. As forjas que trabalhavam o ferro foram instaladas também
para garantir a fabricação de armas, ferramentas e outros utensílios
indispensáveis à construção de um sistema mais seguro e eficiente. O ferro,
metal trazido de Potosí, possibilitou a fabricação de serrotes, enxadas,
plainas, machados e relógios de mesa. Tesouras e lancetas eram raras e
valorizadas. A indústria de cera das abelhas jataí (do tamanho de moscas)
teria financiado a compra de minério de ferro.
3.9 Tecnologia
Além de rica biodiversidade com frutos variados em abundância,
extensas pradarias possibilitavam promissora criação de gado – cedo
vislumbrada pelos jesuítas – que poderia, como de fato complementou,
a caça e a pesca. Aliás, a pecuária foi um dos principais sustentáculos
econômicos da Confederação das Missões.
A beleza natural, o clima ameno, a exuberância destas plagas
encantaram os primeiros missionários cujos afazeres eram inúmeros e
diversificados e os sobrecarregavam: além das tarefas religiosas, havia
o ensino, a hortifruticultura, o artesanato, o ensino da música (canto,
instrumentos musicais, dança), a administração e a hábil gestão diplomática
de interesses conflitantes com ousadia, dinamismo e pragmatismo.
Cervos em abundância eram abatidos a paus de tão dóceis. O mel
de abelhas era utilizado como tempero no lugar do óleo e do vinagre.
Pescava-se à mão com curare (tóxico que atordoava os peixes) ou com
pregos de pontas encurvadas na falta de anzóis.
Às sextas-feiras e domingos havia missa solene com sermões formais e
cânticos sacros. Aos sábados ocorriam os casamentos. No primeiro dia do mês
celebrava-se a missa de réquiem para os recém-falecidos. Procissões anuais
eram realizadas às vezes pelos rios. A catequese das crianças, o atendimento
aos enfermos e a educação regular ocupavam boa parte do tempo dos padres,
alguns dos quais habilitados a manipular os elementos fitoterápicos e a
produzir os fármacos das riquíssimas flora e fauna que eram prescritos.
Ao adotarem nova tecnologia incorporando ferramentas,
instrumentos e equipamentos (agrícolas, artesanais, musicais), os
missionários conseguiram ampliar a área plantada e a produtividade,
tornando mais eficiente o trabalho manual e transformando os sons
emitidos pelas mãos e pela boca. A transformação foi tão significativa que
57
Miranda Neto
se tornou decisiva no convencimento dos demais neófitos ainda arredios às
missões. Ela pode ser comparada à introdução das máquinas na revolução
industrial. E só se tornou possível com a colaboração entusiasmada das
crianças.
A ajuda mútua e o trabalho em grupo ao som de cânticos ao lado
das crianças era uma constante entre os guaranis. Caso determinada
missão sofresse crise de abastecimento por colheita insuficiente, os
vizinhos se reuniam para suprir as momentâneas necessidades e garantir
a safra seguinte. Na instalação de nova comunidade, todas as povoações
próximas contribuíam com seus homens, animais (bovinos e equinos),
equipamentos e matérias-primas.
O governador do Prata em Montevidéu, Dom Joaquim de Viana,
exclamou, após visitar as missões que deveriam ser permutadas pela
Colônia do Sacramento: “E são estas as ‘aldeias’ que temos de entregar
aos portugueses? Os nossos cavalheiros em Madri devem ter perdido a
cabeça para assim renunciarem a tais cidades, que não têm paralelo em
todo o Paraguai!”.
Na agricultura, os guaranis utilizavam o sistema de afolhamentos
(rotação de culturas) e alqueive (pousio) concedendo ao solo descansos
periódicos. Já naquela época queixavam-se de tempestades que destelhavam
as casas e as destruíam em grande número. Geadas aniquilavam colheitas
inteiras. Canais irrigavam os campos e se prolongavam às lavanderias e às
grandes hortas. Máquinas hidráulicas puncionavam a água dos rios. Em
1745, uma grande seca atingiu a região. Em diversas ocasiões, nuvens de
gafanhotos devastavam as plantações.
Às pequenas plantações de milho, mandioca, batata-doce, erva-mate,
os jesuítas acrescentaram as de trigo, centeio, cevada, arroz, cana-de-açúcar,
algodão, fumo e cânhamo para a produção de tecidos. De modo geral,
plantava-se no outono (abril – maio) e colhia-se na primavera (setembro
– outubro). Cada missão comportava de seis a oito hortas e pomares além
do jardim dos padres que na verdade era uma horta experimental de
aclimatação de cerca de três hectares nos fundos do colégio onde havia
hortaliças, legumes, flores, plantas medicinais e ornamentais. O “bálsamo
das missões”, extraído do aquaraybay era até importado pelas farmácias de
Madri. Temperos, perfumes, essências passaram a ser disputados. Aleias de
laranjeiras e pessegueiros sombreavam as avenidas de algumas missões. Os
padres adaptaram os seus conhecimentos à experiência e vivência dos índios.
Anotavam detalhes dos experimentos com enxertos e demais métodos de
reprodução dos vegetais e os classificavam, conservavam, arquivavam. O
Almanaque Agrícola de 1765 informava e orientava sobre diversas culturas.
58
Estrutura, Produção e Renda
Até 1700, pela ausência de metais, empregavam-se charruas (estacas de
madeira afiada para arar o solo) que se desgastavam muito. O desafio de
transformar caçadores, pescadores e coletores de sementes e frutos em
agricultores era enorme.
O algodão teve três variedades sendo cultivadas chegando a 2000
arrobas a produção em cada comunidade. A cana-de-açúcar também se
destacou sendo que em 1860 a fabricação de açúcar cristalizado ainda
subsistia em São Cosme. A produção vinícola só prosperou no Uruguai
que exportava o “vinho da missa” para as reduções, embora o mais
disputado fosse o vinho de la Cruz, na atual Argentina, fronteira com
o Rio Grande do Sul. O tabaco do Paraguai era considerado um dos
melhores na época.
Estâncias de gado bovino e equino e plantações de erva-mate
e algodão se expandiam nas planuras e encostas gaúchas próximos
às culturas de milho e mandioca, determinando a construção de silos,
currais, olarias e matadouros.
A regularidade das construções e a organização do espaço eram
evidentes, condicionando toda a sustentabilidade do cotidiano das
missões, limitando as atividades e sedentarizando a comunidade, antes
habituada à vida nômade, em contínua busca do seu sustento. O grande
diferencial missioneiro consistia no êxito dos jesuítas em providenciar
oferecer certas condições favoráveis que poderiam oferecer relativa
garantia de abastecimento regular pela introdução de produtos, técnicas
e implementos agrícolas que melhoraram a rentabilidade, diversificaram
a produção e diluíram os riscos e as perdas.
Os jesuítas, em seu afã evangelizador, encontraram áreas de
coincidências com a mentalidade guarani que permitiram fundar sobre
bases firmes a empresa missional: compartilhavam um modo de ser
religioso, um modo de vida em comunidade no qual o trabalho e a
produção de bens eram imprescindíveis para assegurar a subsistência,
mas cujo objetivo maior ia além: a vida religiosa reforçada pelas artes
plásticas, a música e o canto sacro, na verdade o marco superior da
existência humana.
Os professores do Colégio eram índios selecionados bem treinados
que exigiam frequência intensiva das crianças de cinco a doze anos de
idade. No 1º ciclo ensinavam catecismo, leitura, escrita, rudimentos de
matemática, dança e cantos sacros. No 2º ciclo havia a especialização de
cada aluno em Teologia, História, Geografia e Latim para os que iriam
tornar-se líderes da comunidade e membros do Cabildo, reunindo os
mais aptos e capazes.
59
Miranda Neto
Os membros do Cabildo eram eleitos em cada final de ano. Sua
permanência nos respectivos cargos dependia da estima e do respeito da
coletividade sem classes nem privilégios. Os padres eram conselheiros
do Cabildo para assuntos relevantes e polêmicos com poder de veto em
casos de conflito ou abuso de poder. Exerciam o papel de elo de ligação
entre cada redução e a Confederação das Missões, coordenada pelo
Superior (com sede em Yapeyú) que visitava regularmente os povoados,
verificando se as diretrizes gerais de política desenvolvimentista estavam
sendo seguidas.
De acordo com Clóvis Lugon “Nenhuma outra região da América
conheceu nos séculos XVII e XVIII uma prosperidade tão geral nem um
desenvolvimento tão equilibrado e saudável”9.
9 LUGON, Clóvis. A República “Comunista” Cristã dos Guaranis. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
60
IV - O Cotidiano da Criatividade Missioneira
Como os missionários tentaram desenvolver o potencial
adormecido dos autóctones?
Inigualáveis na cópia e na imitação, irônicos e céticos, os indígenas
conseguiam em pouco tempo formar e apresentar um coral, representar
uma pantomima, ridicularizar alguém autoritário ou antipático. Após
alfabetizados e educados, alguns guaranis tornaram-se excelentes
calígrafos, copiando com absoluta fidelidade e elegância páginas de
missais e outros livros, ainda hoje amostras da habilidade inata para o
desenho, a pintura e as artes plásticas em geral. Após a expulsão dos
jesuítas, caciques das missões escreveram de próprio punho ao Rei de
Espanha implorando a volta dos padres ao Paraguai.
Os jesuítas estabeleceram escolas em todas as reduções a fim de,
no futuro, poderem delegar o máximo de tarefas e responsabilidades para
os recém-convertidos. Aos poucos, os mais capazes e competentes iam
assumindo diversas funções na administração da comunidade.
Alguns guaranis tornaram-se professores. Começavam ensinando a
ler, escrever e somar, o que já os destacava da população das cidades e vilas
dos colonos hispânicos. Meninos excepcionalmente dotados aprendiam latim.
A língua guarani era comumente falada pelos colonos, que não obrigavam os
índios a dominar o espanhol. Os jesuítas também obtinham pouco êxito em
fazê-los falar em seu idioma a não ser para distinguir os numerais.
A autoridade dos caciques foi preservada na medida do possível.
Seus filhos eram selecionados pelos padres para terem educação especial
61
Miranda Neto
e prestígio só antes conferido por provas de destreza na guerra. Deste
modo, os jesuítas respeitavam a hierarquia vigente e tentavam influir
através dela na lenta transformação de hábitos e convicções.
A pequena burocracia dirigente das missões originava-se
basicamente do cacique que, no organograma das aldeias, era o corregedor,
cargo equivalente a prefeito.
Cada quadra do núcleo populacional era administrada pelo
tenente e seus alcaides –assistentes que comunicavam ao padre, após a
missa dominical, as principais ocorrências e necessidades da semana.
Sua atribuição era conhecer as famílias moradoras do respectivo distrito
a quem transmitiam as decisões tomadas, fiscalizavam as obras e os
trabalhos determinados e concediam prêmios aos mais eficientes.
Como símbolo de poder, os alcaides portavam um bastão de ébano
ou marfim com a extremidade de prata. O privilégio de beijar as mãos do
sacerdote lhes asseguraria a vida após a morte.
As eleições para os cargos executivos ocorriam anualmente em
dezembro a partir de uma relação de candidatos organizada com os
funcionários que se aposentavam. O Conselho das Índias concedia ao
padre da paróquia o direito de vetar as indicações. No primeiro dia útil
do ano, os eleitos tomavam posse com sua insígnia na entrada da igreja.
O governador da província referendava a posteriori confirmando
a investidura nos cargos. Os jesuítas também nomeavam seus auxiliares
diretos. O segredo do sucesso administrativo dos missionários talvez esteja
na extraordinária habilidade na comunicação com sociedades primitivas
cujas demandas tocavam em algo profundo do ser humano.
Por natureza indolente e acomodado, o indígena precisava
de um sistema de trabalho bem regulamentado, a fim de manter a
autossustentabilidade econômica das missões. A maioria dos homens
participava de trabalhos comunitários, sobretudo na colheita, na construção
das casas e no “fechamento” do gado. O lazer compreendia igualmente a
caça e a pesca, cujo resultado era útil igualmente aos demais moradores da
missão. À tarde o treinamento com exercícios militares e guerras simuladas
completava o conjunto de atividades diárias. A destreza dos índios com arco e
flecha maravilhava os europeus assim como uma forma primitiva de futebol
com bola de borracha com que se exercitavam na corrida pelo campo.
As mulheres, além de cuidar dos afazeres domésticos, moldavam
peças de cerâmica do barro dos rios, teciam redes, panos, cordas com
a cota de algodão fornecida pelo armazém da comunidade: com o
excedente da produção, ferramentas eram adquiridas. Algumas mulheres
acompanhavam os maridos nas tarefas agrícolas.
62
O Cotidiano da Criatividade Missioneira
Tanto as crianças como os adultos se ocupavam com catecismo,
jogos, brincadeiras, músicas e cantorias além de ajudarem os pais na
lavoura, afugentando pássaros e outros predadores, batendo palmas,
gritando e gesticulando. Meninos e meninas viviam em relativa segregação
com tarefas e brincadeiras diferenciadas. Os pais conseguiam melhor
concentrar-se nos trabalhos cotidianos na ausência dos filhos.
A vida sexual começava cedo. Os padres insistiam em oficializar as
uniões a partir dos 14 anos para as garotas e dos 16 anos para os rapazes. A
comunidade fornecia os meios. Nenhum dote era necessário; casa, rede de
dormir, couro de boi, sal, pães e uma vaca para a festa de casamento eram
rapidamente obtidos com os amigos. O casamento guarani era prático
e objetivo. Em alguns sábados, mais de 50 pares contraíam matrimônio
simultaneamente. A comunidade também providenciava a sobrevivência
inicial dos bebês. A criança gozava de vida saudável ao ar livre com muita
alegria, sol e banhos de rio o que, por si só, afastava muitas doenças e más-formações. O cabelo dos homens, usualmente comprido, era aparado por
insistência dos jesuítas e distinguia cristãos de pagãos, amigos de inimigos
durante uma batalha. A barba era geralmente rala por natureza.
4.1 Saúde
Como nem todos os jesuítas tinham experiência médico-cirúrgica,
os padres provinciais solicitavam irmãos coadjutores, cirurgiões e
boticários à Holanda, França, Itália, Alemanha e Áustria.
No início do século XVIII as missões da bacia do Uruguai já
hospedavam um irmão que exercia o cargo de médico-clínico, auxiliado
por um jesuíta e colaboradores índios. Enquanto os colégios possuíam
medicamentos importados da Europa, as missões utilizavam, sobretudo,
ervas medicinais de cada região. As epidemias de sarampo e varíola entre
1733 e 1738 obrigaram a planejar melhor a assistência médico-hospitalar
com isolamento, assepsia, arejamento e ao abrigo dos ventos fortes. O
abastecimento de água era fundamental e normas rigorosas de higiene
recomendadas. A informação imediata sobre os primeiros sintomas dava
o alarme para os procedimentos profiláticos tanto para encaminhar os
pacientes, quanto para evitar o contágio.
Tudo visava a uma participação ativa da comunidade na luta
contra as enfermidades. Os deslocamentos massivos impostos aos
guaranis com o Tratado de Limites de 1750 romperam um plano de
prevenção e assistência médica organizada, proporcional ao tamanho
63
Miranda Neto
de cada missão, o que teria facilitado a propagação das duas pestes
devastadoras posteriores a 1738.
Na alimentação, predominava a ingestão de carne mal cozida,
causa de inúmeras doenças intestinais, apesar da recomendação dos
jesuítas em bem cozê-la após preparo com temperos. A expectativa de
vida média entre os guaranis não ultrapassava 50 anos de idade. As
verminoses também proliferavam devido à quantidade de carne bovina
semicrua consumida, causando algumas mortes. Com o objetivo de
evitá-las, os padres produziam medicamentos à base de folhas de tabaco
a fim de provocar vômitos: o enfermo devia tomar ainda leite com limão
misturado à menta e à arruda.
Havia ainda surtos de sarampo que interferiam no cotidiano das
missões. A varíola atacava mais as regiões da Bacia do Prata e causava
enormes baixas entre os índios, que não apresentavam nenhuma
resistência. Há registros de epidemias em 1618, 1619, 1635, 1636 e 1692.
Em 1733, cerca de 13.000 crianças morreram e em 1737 mais de 30.000
guaranis foram afetados de uma ou outra maneira. Em 1765 calculava-se
que aproximadamente 12.000 habitantes foram vitimados pela epidemia.
A participação ativa dos padres no tratamento dos enfermos
relacionava-se ao conhecimento, por parte dos indígenas, dos fármacos
naturais da flora e da fauna eficazes para determinadas doenças. O
quinino utilizado no tratamento da malária foi introduzido na Europa em
1650 graças à divulgação realizada pelos jesuítas. Enrico Adami, Pedro
Montenegro, Pedro Lozano, Segismundo Aperger, Thomas Falkner, Diego
Basauri, Francisco Couto (único português), Juan de Montes, Domingo
Torres e Antonio Sepp foram alguns dos médicos-enfermeiros-jesuítas
que se destacaram nas missões nesta época na Província do Paraguai.
Enfermarias eram improvisadas e voluntários cuidavam dos
doentes. Entretanto, a maioria dos indígenas resistia a ser tratado no
“hospital”, preferindo ficar de quarentena repousando na choupana.
Enfermeiros acompanhavam os soldados-índios em suas campanhas.
Enquanto cada redução possuía o seu enfermeiro, apenas dois jesuítas-médicos atendiam a todos.
Missionários e guaranis sofriam muito com os frequentes ataques
de bandos de jaguares e onças pintadas que dizimavam o rebanho à
noite e atacavam as aldeias. Para se protegerem, abandonavam pedaços
de carne bovina a fim de que seus habitantes sobrevivessem incólumes.
Muros protetores e paliçadas atrás das quais os moradores chegaram a
ficar sitiados durante quatro dias, provaram ser mais eficazes do que as
armadilhas.
64
O Cotidiano da Criatividade Missioneira
Os jaguares nadavam e ameaçavam viajantes descuidados.
Na falta de alimento na selva, procuravam-no nos cursos d’água e nas
proximidades das habitações humanas. Estimulavam-se caçadas aos
predadores realizadas a cavalo de cima do qual se laçava e puxava a presa
até estrangulá-la. Alguns índios preferiam o arpão e as armadilhas. À
noite as fogueiras afugentavam as feras. O cuidado que se tinha de ter era
não deixar apagá-las.
A elevada capacidade intelectual dos missionários não os impediu
de subavaliar a dos índios, sempre considerados imaturos, despreparados,
dependentes de orientação e supervisão, imediatistas sem perseverança:
os padres se achavam na obrigação de constante curadoria destes “seres
inferiores”.
Habituados à fartura e à abundância de recursos naturais – para
eles inesgotáveis – eram avessos à provisão para futuras colheitas e menos
ainda para formar excedentes comercializáveis e novos plantios através
de reservas de sementeiras.
A abundância de carne bovina devido aos rebanhos em expansão
(em Yapejú, 50 bois eram abatidos três vezes por semana) propiciou grande
desperdício e pouco rendimento. As rações eram distribuídas do depósito
de carnes. Preparava-se charque tentando aumentar a produtividade, a
conservação e a durabilidade do produto. Diversificava-se a alimentação
com perdizes, outras caças e os peixes. Os jesuítas tiveram dificuldades
em controlar os estoques, pois os índios não obedeciam à hora para as
refeições. Comiam quando sentiam fome e tinham o alimento à mão.
Índios e padres bebiam normalmente água. Nas festividades, alguns
preferiam a chicha, espécie de cerveja obtida da mandioca fermentada.
A vida em comunidade não poderia se manter sem um mínimo
padrão de comportamento. Em 1623, Nicolau Durán, Provincial do
Paraguai, estabeleceu as primeiras normas jurídicas para as missões. A
lei seria aplicada com moderação pelos alcaides (responsáveis pela ordem
pública), sob supervisão dos jesuítas. Nenhuma punição drástica, apenas
correções de estilo paternal. Casos raros exigiriam castigos maiores. Havia
o cuidado para evitar a associação entre fé cristã e código punitivo. Os
padres estavam impedidos de punir por suas próprias mãos. Entretanto,
formou-se um sistema penal especialmente para selvagens hostis.
As punições mais comuns eram alguns açoites aplicados pelo
corregedor. Os caciques e altos funcionários estavam isentos de castigos
em público. Cada crime admitia determinado número de açoites que
variavam conforme as circunstâncias da ocorrência. Em 150 anos nenhuma
revolta séria ocorreu contra os padres enquanto várias eclodiram entre
65
Miranda Neto
os índios das encomiendas. Dois párocos em cada núcleo eram suficientes
para supervisionar de 6 a 7 mil guaranis.
À noite, a vigilância das missões era dividida em três turnos.
Comunicava-se qualquer incidente, velavam-se os doentes, vigiavam-se
as aproximações de elementos estranhos à comunidade e de feras que
tentassem invadir as moradias e adjacências. As sentinelas formavam
força preventiva doméstica, paternalística e não coercitiva.
As prisões só começaram a ser construídas e utilizadas a partir
do final do século XVII e atendiam a grupos de missões. Geralmente as
maiores penas não excediam a dez anos e só eram aplicadas nos casos
mais graves como assaltos e assassinatos.
Uma Corte chegou a funcionar com cinco padres cujas decisões
tinham de ser referendados pelo Provincial dos Jesuítas. As principais
causas referiam-se a disputas de terras entre as invernadas para o gado e
as populações das missões. Desavenças internas, se não resolvidas, teriam
direito a apelação em tribunal composto por três padres de outra redução.
Na última instância, o Provincial e seus assistentes apresentariam a
decisão final.
Os missionários, desde logo observados pelos caciques, xamãs,
mulheres e crianças, analisavam o comportamento dos recém-convertidos.
Seu método era redirecionar os hábitos e impulsos primitivos. Os guaranis
demonstravam enorme sensibilidade para a música, principal fator de
atração desde os primeiros contatos, que os aproximou e foi bem utilizado
durante toda a fase missioneira. Festivais de música e dança, movidos
a farta e variada alimentação, ajudaram a fixar os índios às missões e a
sedimentar a cultura cristã, a qual permanece até hoje, apesar das agressões
e da decadência econômica posterior.
4.2 Vestuário
As missões alcançaram a autossuficiência na produção de algodão
quando este cultivo se desenvolvia em terrenos e clima adequados. No
século XVII nas missões do Paraná foram inúmeras as aquisições de
algodão e lã em troca de produtos procedentes de outras missões ou do
fio de algodão. Nelas o vestuário adotado era comum às classes sociais
menos abonadas de Assunção: reduzia-se ao gibão e a uns calções curtos e
uma camiseta para os homens e o tipoy cobrindo um vestido tipo saco com
duas aberturas para os braços para as índias, os quais raramente eram
lavados ou remendados e usados até o descarte.
66
O Cotidiano da Criatividade Missioneira
Frequente era o intercâmbio de tecidos por lã nas cidades
espanholas. O incentivo à criação ovina nas missões permitiu melhorar
o vestuário. Mesmo assim, dificilmente calçavam sapatos durante o dia
a dia dos trabalhos no campo e na sede da missão, exceção concedida às
festividades e procissões religiosas, consideradas “ocasiões de gala” em
que os “principais” se sentiam orgulhosos em se destacar dos demais.
Aliás, algumas peças do vestuário contrastavam com a extrema pobreza
dos demais, verdadeiro luxo que os missionários contiveram.
O cultivo do algodão e a produção de lã a partir da criação de
ovinos estavam intimamente ligados à fiação e à tecelagem, com a ativa
participação dos jovens e idosos que recebiam donativos em pagamento
pelo trabalho.
O nível da alimentação e do vestuário dependia da porção de terra
destinada a cada família para cultivo. Cada família em sua respectiva casa
conseguia viver razoavelmente sem, contudo, prescindir do trabalho diário.
Só os incapazes estavam dispensados desta contraprestação para subsistir.
Ao visitarmos uma missão no século XVIII, em seu esplendor, o
que chamava a atenção era a ausência de mendigos andrajosos à porta
do templo e a uniformidade dos vestuários tanto nas mulheres como nos
homens. As mulheres usavam os cabelos soltos ou em duas tranças e seus
vestidos de algodão de cor clara eram compridos e cobertos por uma túnica
de tecido idêntico cingida sobre o vestido. Os homens, de cabelos curtos
para se distinguirem dos infiéis, vestiam gibões e culotes semelhantes aos
dos espanhóis, cobertos por leves ponchos de pano claro ou riscado.
Todos andavam descalços e de cabeça descoberta. Nas missas, os
que não cabiam na igreja, ajoelhavam-se na relva da praça em contrição.
O desjejum mais consumido era constituído de broas de milho e
leite fresco.
4.3 Plano urbano. Traçado das missões
Observemos a simplicidade, a harmonia e a beleza do conjunto
urbano.
O coração do núcleo era a igreja em uma ampla praça, local de festas,
desfiles militares e torneios convocados para os dias santos especiais. Da
praça seguiam em paralelo ruas ocupadas por conjuntos de casas cobertas
por telhas de barro cozido. Suas paredes eram caiadas. Todas abriam seus
quartos e sala para um longo alpendre que intercomunicava as moradias
permitindo o deslocamento ao abrigo do sol e da chuva. As principais
67
Miranda Neto
avenidas dispunham de passarelas cobertas possibilitando atravessar o
núcleo urbano a pé enxuto. A praça e as vias públicas eram arborizadas.
Fontes forneciam água potável.
O interior dos lares impressionava pela ausência de móveis.
Utensílios e roupas eram pendurados às paredes ou guardados em baús
de couro. De herança nômade, os guaranis dormiam em redes e evitavam
pertences que tolhessem sua rápida evasão. Instrumentos de caça e pesca
dividiam o espaço com imagens de santos.
A igreja era flanqueada pelo cemitério, pela escola, pelo cotiguaçu
(casa das viúvas e dos órfãos), pelas oficinas de trabalho artesanal e pelos
alojamentos. Circundando-os, o jardim, o pomar e a horta garantiam
as flores, os frutos, as verduras e os medicamentos que mantinham a
qualidade de vida dos habitantes da missão.
Caso a povoação se expandisse, a partir da artéria principal nova
rua era aberta permitindo a edificação de casas no mesmo padrão.
Edifícios públicos como o Cabildo, os depósitos de alimentos
(armazéns ou celeiros públicos), o paiol de armas e as enfermarias – uma
para homens e outra para mulheres – completavam as principais e maiores
construções da área central da redução.
As moradoras do cotiguaçu não viviam no ócio. Todas eram
estimuladas a aprender algum ofício e a exercê-lo em comunidade.
Produziam bens para uma espécie de Cooperativa Central.
Através da propriedade coletiva – Tupambaé – dos bens de
produção (terras, gado, equipamentos) criava-se um fundo comum
de reserva que compensava o excedente da produção da propriedade
particular de cada um, Abambaé. Desse modo, evitava-se o uso do dinheiro
e de seu poder de corrupção. Todos contribuíam para a produção comum
sem se preocupar em acumular lucro.
Para não despertar a cobiça do mundo colonial, os missionários
referiam-se aos núcleos urbanos guaranis como se fossem aldeias quando,
na verdade, formavam autênticas cidades, superiores até às da América
hispânica na época, tanto pela concepção geral, dimensões, arquitetura
dos prédios quanto por sua vida socioeconômica intensa, com atividades
variadas e pela própria população e taxa de crescimento demográfico.
Na fase inicial as residências dos padres distinguiam-se das
moradias dos índios: choupanas na terra batida com paredes de adobe
(barro), teto de palha sem chaminés nem janelas e porta de couro de
boi. O mobiliário era mais despojado do que o casebre de um camponês
europeu da mesma época. No interior da choupana viviam em comum
os pais, as crianças e animais domésticos.
68
O Cotidiano da Criatividade Missioneira
O jardim da habitação do Padre Antônio Sepp, em Yapeyú, por
exemplo, era dividido em setores destinados às flores, às ervas, aos
vegetais e às árvores frutíferas. Ele era grande apreciador e cultor da
música e gostava de ouvi-la, sobretudo em uma ilhota fluvial no rio
Uruguai onde pintava quadros após degustar melões, pêssegos e figos.
Dentre os livros das estantes das bibliotecas das missões, havia
vários dicionários guaranis, bíblias, livros religiosos e de arte sacra, de
geografia, astronomia e navegação.
Ao visitar índios enfermos, os padres se deparavam com
ambientes esfumaçados e fétidos que os nauseavam. Deitados em redes ou
simplesmente sobre peles de animais, os pacientes recebiam os missionários.
Lareiras à noite, fogões de dia aqueciam o ar e a comida. Usavam abóboras
ocas como canecas, panelas de barro, banquinhos e cadeiras toscas de
madeira. Na maioria das vezes sentavam-se de pernas cruzadas no chão na
posição de yoga (lótus) em volta do fogo que ardia dia e noite. Apesar de
não utilizarem fechaduras nem ferrolhos nas portas, desconhecia-se o furto.
Índios reduzidos não poderiam ser escravizados, estavam livres do
“serviço pessoal” para os encomenderos. Na missão, o guarani missioneiro
transformou-se em factotum e mão de obra especializada. O maior pecado
era a ociosidade voluntária, aos poucos vencida com muita competência
pelos padres.
4.4 As Construções
De início, as casas dos guaranis eram cabanas coletivas cobertas de
palha com paredes de madeira (troncos, galhos e algumas tábuas).
Após algum período de adaptação e convencimento, o padre
Roque González conseguiu aos poucos que os moradores de Santo
Inácio-guaçu se transferissem para as novas casas, divididas cada uma
em cinco seções a fim de que as famílias tivessem suas individualidades
preservadas com seus limites determinados. O que preocupava era o
fogão, cujas fagulhas resultantes do seu uso prejudicavam a saúde e
representavam risco de incêndio por causa da palha seca da cobertura.
Só em 1637 passou-se a usar telhas, de início difíceis de serem
produzidas pois o barro apropriado ainda era pouco encontrado. Achados
arqueológicos confirmam que existiram casas de adobe com telhados de
telha na missão de Candelária do Ibicuí. Por volta de meados do século
XVII, predominavam as paredes de bambu revestidas de barro, a chamada
taipa francesa (adobe), com teto de galhos de árvores e uma porta, mas sem
69
Miranda Neto
janelas. Frequentes incêndios aceleraram a troca dos telhados por telhas
de barro.
Os padres provinciais e o padre geral insistiram em modificar
a habitação e o modo de vida dos guaranis. O problema era bem mais
abrangente, pois se estendia à criação de novas missões resultantes da
desconcentração daquelas com tendência à saturação e à superpopulação.
Ao fim do século XVII, o panorama urbano de Yapeyú descrito
pelo padre Sepp era: “as casas formam arruamentos amplos, são muito
baixas, não possuem piso lajotado nem de madeira, pois os índios vivem
diretamente sobre o solo. As paredes não são construídas de pedras mas de
barro amassado. Os tetos são cobertos de palha, a porta é de couro de boi e
nunca é fechada pois nada há a roubar”10. Ele compreendeu que a habitação
não cumpria as funções da casa centro-europeia, pois, para o guarani, ela
não era o lugar principal de convivência.
Em 1747, os trinta povos se situavam em sítios estratégicos, com
casas de telha, ruas bem direcionadas e traçadas, dotadas de portais.
Todas tinham apenas um pavimento (eram térreas), iguais em altura
já com porta e janela. A largura das vias oscilava entre 12m e 15m. Os
pórticos serviam de proteção ao sol e à chuva, facilitavam a comunicação
dentro de uma mesma quadra, respeitando a intimidade da vida familiar.
Cada casa consistia em um único aposento de aproximadamente 6m2, com
porta e janela. A um canto estava atada uma rede para o casal e no outro,
mais algumas para os filhos com esteiras estendidas por debaixo.
Os pórticos eram apoiados sobre pilares de pedra ou madeira. As
paredes das casas possuíam os alicerces de pedra, mas a parte superior
era de adobe (argamassa) com pedras e apresentava a espessura de 0,60
a 0,80m, isolando o ambiente interno tanto da umidade quanto do calor.
As missões eram divididas em parcialidades até oito ou dez
conforme sua população. Cada parcialidade abrangia quatro a seis
cacicados. Os caciques eram considerados nobres pelo rei da Espanha
e comandavam mais de trinta vassalos que os acompanhavam nas
solenidades públicas, prestando-lhes obediência e respeito11.
As praças, no centro do núcleo populacional, mediam cerca de
125m x 130m em média, e eram ladeadas pelas melhores casas, pela igreja
e cemitério e pela residência dos padres. A igreja media de 58m a 67m x
22m a 25m. Capelas, capelinhas, oratórios pontilhavam os arrabaldes do
núcleo e as estâncias. Além do cemitério ao lado da igreja, havia alguns na
periferia destinados especificamente às vítimas de epidemias.
10 11 SEPP, Antonio. Op. cit.
CARDIEL, José. S.J. Carta Relación de 1747. Buenos Aires, 1953
70
.
O Cotidiano da Criatividade Missioneira
A casa dos padres, também construída em um só pavimento,
comportava seis aposentos destinados a dois ou três religiosos mais os
hóspedes missionários, convidados para as festividades eclesiásticas.
Adjacentes funcionavam uma dispensa-armazém e um refeitório. Todos
os cômodos debruçavam-se sobre um pátio interno de cerca de 50m2.
Um deles era ocupado pelo mordomo e outro se destinava às armas e
à rouparia (guarda-roupa). Completavam o conjunto a sala de aula e de
música. Outro pátio congregava várias oficinas. No centro, um relógio de
sol servia de orientação à produtividade laboral.
O matadouro e o açougue funcionavam próximos e distribuíam as
rações de carne às famílias guaranis. Em São Miguel e São João o matadouro
era localizado na periferia do núcleo urbano. Os currais, que retinham o
rebanho de gado manso, emprestavam os bois e os cavalos que cada família
ou serviço comunitário necessitava. Completavam o conjunto urbano a casa
das viúvas, o orfanato, o cárcere e a pousada (casa dos hóspedes).
Nas missões, as primitivas habitações eram choupanas, logo
substituídas por galpões coletivos, cabanas familiares e residências de
tijolos, pedras, cal e telhas de barro, dotados de varandas e alpendres ou
pátios internos. As amostras da arquitetura missioneira ainda hoje provam
a elevada qualificação dos operários que participaram da construção das
edificações: pedreiros, carpinteiros, marceneiros. Os prédios públicos
e os colégios foram em parte recuperados e preservados como sedes de
prefeituras e quartéis, após a saída dos jesuítas e a destruição de grande
parte do patrimônio missioneiro. As pedras de talha e as ardósias eram
extraídas de pedreiras existentes próximas a cada missão.
Uma das mais importantes, mais difíceis e mais decisivas
reformas a favor do núcleo familiar – sua moral e funcionalidade – foi
determinada pela reestruturação das moradias. Tanto quanto possível,
a partir do estabelecimento das missões em caráter mais duradouro nos
sítios previamente escolhidos, cada família teria direito a uma residência,
acabando com a “promiscuidade e a desordem” das moradias coletivas –
verdadeiros galpões que abrigavam até duzentas pessoas. Mesmo após a
transformação do estilo de vida, a poligamia ainda teve, em alguns casos,
de ser tolerada. Entretanto, os missionários foram incisivos em valorizar a
mulher e a família estável para garantir mais felicidade e qualidade de vida
até pela introdução de hábitos de higiene, profilaxia, disciplina, organização
e melhor uso do tempo disponível ao combater com vigor a ociosidade.
Os guaranis cristianizados tornaram-se economicamente
produtivos. A ação cultural dos jesuítas tinha como suporte material uma
organização espacial planejada tanto urbanística quanto arquitetônica.
71
Miranda Neto
O hábitat planejado e o estabelecimento de práticas e rotinas introduzidas
pelo europeu converteram o selvagem em “civilizado”. A programação
do espaço desenhava novos códigos de comportamento ligados à
vida sedentária, condicionava-se a moral, exaltava-se a religiosidade e
direcionava-se a vida cotidiana. A Companhia de Jesus não visava apenas
a conversão religiosa ou o domínio espiritual, mas o estabelecimento
de uma base material adequada à educação e à produção de bens, ao
regulamento das relações sociais e ao controle da força de trabalho. A vida
social era programada quanto ao trabalho, ao culto e ao lazer. Admitia-se
apenas a dinâmica interna direcionada à progressiva aculturação.
De início, os padres cederam a certos hábitos guaranis para adiante,
com diplomacia, aos poucos, impor modos de vida mais modernos e
higiênicos. Os enormes galpões de moradia coletiva foram substituídos
por habitações familiares monogâmicas. Apenas a poligamia dos caciques
foi tolerada para cooptá-los e enfrentar a liderança espiritual dos xamãs. A
infraestrutura completava-se com moinhos de vento e de água, serrarias,
curtumes, usinas de açúcar, fornos de tijolos nas olarias, armazéns para a
secagem e a torrefação do chá, todos localizados na periferia de cada missão.
A igualdade de oportunidades, de acesso, de tratamento
caracterizava a sociedade das missões. Os trajes, o tecido e o corte eram
uniformes para todos. Só se calçavam sapatos e meias no frio chuvoso
e nas viagens. Gorros ou chapéus só eram usados excepcionalmente. Os
jesuítas orientaram os homens a aparar os cabelos para se destacarem
das mulheres e dos infiéis. Um vestido comprido sem mangas com cinto
e túnica (tipoí) constituía a roupa das mulheres que cingiam sua fronte
com uma faixa apertada para sustentar o que levassem apoiado em seus
ombros. Apesar dos trajes simples, de modo geral os guaranis se vestiam
melhor do que a maioria dos colonos das cidades vizinhas.
Em cada missão, as avenidas principais dispunham de galerias
cobertas, boulevards ou promenades de 2,5m de largura, pavimentadas a um
metro acima do nível da calçada, ao abrigo do sol e da chuva, interligando
as moradias. As coberturas das galerias se apoiavam nas arcadas de
madeira ou pedra de arenito de único bloco, esculpidas de modo que
“uma rosácea finamente cinzelada ornamentava o arremate da abóboda”.
4.5 A Redivisão Territorial
A magnitude e suntuosidade dos templos, obras de mil braços,
em dezenas de anos, impressionava. Uma análise dos mecanismos de
72
O Cotidiano da Criatividade Missioneira
explotação talvez explique essas inversões suntuárias. Os guaranis
convocavam uns e outros para reunir os materiais, derrubar os troncos
necessários para erigir a Deus digno monumento. A fim de consegui-lo
não poupavam zelo nem esforços. Se necessário, transportavam esses
materiais, mesmo a custos elevados.
O estímulo entre os pueblos animava a atividade artística e
artesanal, a colaboração da mão de obra qualificada e o aproveitamento
dos recursos em tarefas prioritárias do interesse da comunidade. A
habilidade profissional na construção de templos e na elaboração de
retábulos permitiu aos guaranis prestar serviços a outras comunidades e
até obter renda necessária para adquirir gado, por exemplo.
As vestimentas de seda usadas pelos artistas nas festas
contrastavam com a indumentária dos índios mais necessitados. Tentouse impedir a aquisição de matérias-primas supérfluas no futuro. Os novos
jesuítas já traziam consigo ornamentos e objetos para o culto, legalmente
autorizados, possibilitando que o número de horas que seriam empregadas
na elaboração dos artigos pudessem ser alocadas em outras atividades
mais importantes como alimentação e vestuário.
Segundo Rafael Carbonell de Masy, o excedente originado das
exportações de erva-mate, couros, algodão, artesanato, etc., das missões
guaranis corresponderia a um percentual do investimento líquido
anual. Este excedente foi vital para gerar atividades produtivas ou
adquirir recursos novos. Um exemplo que se destacou neste fluxo era a
comercialização da erva-mate garantindo a introdução de cavalos e éguas
nas estâncias. O trabalho coordenado e a ocupação do potencial produtivo
reforçaram a formação de capital.
Após terem sido atendidas as principais demandas da comunidade,
restavam mais recursos do que se necessitava para ornamentar as igrejas,
prover os índios de armas, ferramentas para seus trabalhos e ofícios e
suprir os fiéis de velas de cera e vinho de missa para os cultos e outras
festividades religiosas.
A sustentabilidade e a competência gerencial se comprovaram
quando a expansão das atividades e das despesas acompanhou o aumento
das receitas e da população ativa dos pueblos. Em diversos períodos, as
vendas dos produtos das trinta missões cresciam a um ritmo maior do
que sua população. Além dos gastos com o funcionamento e manutenção,
havia necessidade de investimento líquido inclusive para construir
novos armazéns e silos ou ampliar os existentes nos Ofícios de Missões.
Os almoxarifados e as instalações físicas com todas as anotações de
73
Miranda Neto
fornecedores, clientes, relações das transações realizadas entre as missões
– tudo contabilizado nos ofícios de Buenos Aires e Santa Fé – podem
ainda hoje oferecer uma ideia mais completa da evolução econômica, da
capacidade de compra e de venda, indicadores da capacidade de produção
e de intercâmbio entre os pueblos de 1731 a 1763 de tal modo a superar
situações graves de endividamento como a de 1738.
Um dos problemas mais frequentes era como criar nova missão a
partir de outra que já tivera atingido sua capacidade máxima de potencial
produtivo e sustentabilidade ambiental? Quando se ultrapassava o limite
demográfico (população superior a 1.600 habitantes) correspondente ao
respectivo ambiente tornava-se difícil governá-lo, deixando de produzir
economicamente e começando a afetar o equilíbrio ecológico daquela
região, decidia-se logo deslocar parte dos habitantes para novo sítio
previamente escolhido a fim de atender ao bem-estar da comunidade
e do conjunto de missões. Mas como fazê-lo? Quem ficaria e quem se
transferiria? Como financiar esse deslocamento e toda a infraestrutura
necessária à instalação do novo pueblo?
A primeira saída foi fazer com que, os que permanecessem, financiassem
aos poucos os novos colonos a fim de facilitar as primeiras atividades e
providências indispensáveis à fundação. A maior dificuldade era a mudança
em si, pois uma existência habituada a determinado local sempre sofria e
resistia a qualquer ameaça à sua tranquilidade, estabilidade e perspectiva de
futuro. Boas águas para beber, banhar-se e pescar, abundância de bosques para
caçar e retirar madeira inclusive para usar como lenha, solo fértil em sítio alto,
porém plano, bem ventilado, sem montanhas próximas, apropriado à pecuária,
era difícil de encontrar a fim de direcionar parte da população.
Dois padres experientes na redivisão territorial eram encarregados
de registrar os armazéns, silos, celeiros e organizar a partilha dos cereais
assim como dos demais bens em quantidade e qualidade. Do mesmo modo
procediam com o gado. Como os missionários estavam planejando com
frequência casas e templos novos, conseguiam realizar o procedimento com
eficiência e equidade. Portanto, a metade do valor da igreja, das moradias
e demais instalações era dividida entre os moradores remanescentes e os
migrantes que iam se instalar no novo sítio, justificando a ajuda inicial aos
pioneiros fundadores da missão recém-implantada. Entretanto, muitos
guaranis resistiam à mudança, demonstrando seu grande apego à terra
onde já profundos laços os vinculava à origem.
Em 1750, apenas a metade dos trinta povos habitava suas terras
nativas. A redivisão territorial obedeceu à consulta às comunidades. O
fato de se reunir no mesmo núcleo parcialidades indígenas diversas de
74
O Cotidiano da Criatividade Missioneira
procedências e origens bem definidas resultou em inúmeros conflitos,
posteriormente dirimidos através do Arquivo da Candelária, então
sede do Superior das Missões, onde se conservavam cuidadosamente os
documentos originais da propriedade das terras. Eventuais divergências
ainda existentes podiam ser superadas através de compensações
financeiras ou de mercado aos “pretensamente prejudicados” como
mediante algumas reses bovinas.
Os terrenos correspondentes à Vacaria dos Pinhais pertenciam aos
guaranis assentados em Sant’Ana, São Cristóvão, Santa Tereza e Jesus
Maria, antes situados na margem oriental do rio de São Pedro.
A diversidade de parcialidades e de grupos indígenas
linguisticamente distintos em sua origem explica a extensão de Yapeyú, a
capacidade de seu povo, os rebanhos bovinos dispersos e o núcleo urbano
denso. Foi até proposta a redivisão do pueblo. Entretanto, o Tratado de
Limites de 1750 impediu a criação de nova missão na margem oriental do
rio Uruguai.
Desenvolvimento pressupõe participação consciente dos habitantes
envolvidos em instituições que relacionem prioridades, recursos e formas
de colaboração, comportamentos e resultados, iniciativas e convivências
(De Masy). As instituições ancestrais indígenas tiveram de coexistir no
novo espaço e modo de vida da missão em um processo difícil de adaptação
e convivência sobretudo ao considerar as diferentes normas de divisão
do tempo para o trabalho mais produtivo e rentável, categorias antes
desprezadas pelos guaranis. As mancebias, o concubinato, as idolatrias,
a antropofagia e as bebedeiras também foram condenadas pelos jesuítas,
bem mais rígidos do que os franciscanos, cujas missões em grande parte
estavam ainda submetidas ao serviço dos encomenderos.
A carta régia de 15 de junho de 1654 reconhecia as missões
administradas pelos jesuítas como “doutrinas subordinadas ao Real
Patronato”, categoria na qual se classificavam após dez anos, prorrogados
por mais dez, em que os guaranis aceitavam a fé católica e a autoridade
régia fazendo jus à isenção tributária de vinte anos. Ainda mais que sua
permanência e ocupação da respectiva área representava certa garantia de
defesa do território, cuja população era exageradamente considerada até
como “guarnição de fronteira”.
As missões representavam uma revolução econômica e político-administrativa. Para constituí-las eram respeitadas as autoridades
indígenas – caciques e pajés (xamãs) – e todos teriam acesso a bens e
serviços antes desconhecidos ou inacessíveis como roupas, calçado, pão,
vinho, azeite, mantimentos em geral, tecidos de seda, algodão, cânhamo;
75
Miranda Neto
conheceriam e participariam da criação de equinos, bovinos, suínos,
utilizariam ferramentas, armamento e demais utensílios trazidos da Europa.
Alguns jovens mais talentosos seriam ensinados e treinados em
artes e ofícios. Aliás, foi esta especialização técnica e artística o que mais
fascinava os neófitos ao lado do deslumbramento com o esplendoroso
ritual do culto e das festividades religiosas.
4.6 As Igrejas e seus Construtores
Cada povoado guarani funcionava como uma célula do sistema de
aldeias, teoricamente subordinado à Coroa espanhola, administrado pelos
padres e caciques. Não havia hegemonia entre elas e a distância de uma
para outra não ultrapassava um dia de marcha, facilitando a comunicação, o
transporte e o socorro mútuo. O modelo urbanístico, baseado nas Ordenações
de Felipe II e inspirados nos conjuntos de mosteiros autossuficientes da
Idade Média, baseava-se em uma grande praça, centro da vida comunitária
onde despontavam a igreja representando o poder religioso e o cabildo
civil. No entorno ficavam as habitações dos neófitos cujo acesso se dava por
passarelas cobertas ao abrigo do sol e da chuva.
Anexo ao flanco esquerdo da igreja sobressaíam as oficinas e os
ateliês, as salas de aula, a residência dos padres em torno de um pátio
interno. Mais além, pomar, horta, jardim isolados por altos muros só eram
acessíveis aos religiosos: frutos, hortaliças, flores e plantas medicinais
eram cultivados com ciência e carinho.
Em outro pátio dava-se o aprendizado diário e a produção artesanal
de ferragens, ferramentas, ladrilhos, cerâmicas, tijolos, telhas, esculturas,
pinturas, instrumentos musicais. Teares e tipografias completavam o
conjunto de tecnologias introduzidas da Europa pelos jesuítas em algumas
missões.
No flanco direito da igreja geralmente ficavam a enfermaria e o
cemitério.
Modelos europeus de arquitetura religiosa e organização
urbanística adquiriram na colônia feições próprias. As igrejas de Trindade,
São Miguel e Jesus foram construídas em pedra talhada, com pilares em
pedras e a cobertura de madeira de lei.
As mais suntuosas igrejas localizavam-se na região de Entre-Rios
e no atual Uruguai, mas foram destruídas. A de Santa Rosa, incendiada
em 1883, compara-se a elas. Suas paredes foram erguidas em grandes
blocos de pedras vermelhas sobrepostas sem argamassa. A cobertura
76
O Cotidiano da Criatividade Missioneira
era revestida de lambril, sustentada por colunas geminadas, tendo o
pórtico em forma de concha constituindo enormes estruturas de madeira
ricamente trabalhada. Ornamentos enriqueciam todo o conjunto.
Estatuetas de santos em madeira talhada povoavam as laterais. A cúpula
era esculpida e pintada em vermelho e ouro. Em média doze colunas
geminadas sustentavam a nave e, entre elas, estátuas dos apóstolos em
tamanho natural. As sete capelas laterais alternavam-se com os quatro
confessionários. O batistério como pequeno santuário ficava anexo ao
corpo principal da igreja. A sacristia, atrás do altar-mor, era ricamente
decorada. Uma fonte de mármore despejava água em uma grande bacia de
prata. A “concha” do pórtico era coberta de lambris esculpidos e pintados
cujas tonalidades estavam já esmaecidas quando visitada no século XIX.
Todos os objetos e monumentos das igrejas foram saqueados.
Além da famosa Igreja de São Miguel, outros templos se destacaram:
o de Corpus, na margem do rio Paraná e o de Trindade, na mesma região.
4.7 Construção da Catedral de São Miguel Arcanjo
A Igreja de São Miguel apresentava a arquitetura monumental
despojada, sóbria, reduzida à essencialidade construtiva, e fez pensar no
enorme esforço do povo guarani que empregou toda sua criatividade para
suprir carências de materiais e técnica de construção, aproveitando a própria
experiência na edificação das grandes malocas indígenas, culminando na
afirmação do triunfo da civilização europeia adaptada às condições regionais.
Início: 15 de agosto de 1734 (exatamente dois séculos após o dia
em que Inácio de Loyola reunira seus primeiros seguidores em Paris) sob
projeto e orientação do padre João Batista Prímoli12, arquiteto notável. São
Miguel contava então cerca de 5000 habitantes. A construção levaria 10
anos. Projeto aprovado pelo Cabildo em 30 dias.
Características: 70m x 30m. Paredes com mais de 3m de espessura.
Peristilo (galeria de colunas em torno do pátio da igreja) de cinco portais
ogivados enquadrados por colunas esculpidas. Acesso ao pórtico
monumental através de seis degraus. No interior, três naves para cinco
altares de talha dourada. Ao estilo das igrejas italianas, a torre de 25m
de altura abrigaria um carrilhão de seis sinos. Na abóbada, pinturas e
imagens de santos de elevado padrão. Em 1753 a igreja de São Miguel foi
avaliada em um milhão de pesos.
12 Padre Prímoli já havia construído a Catedral de Córdoba, o Cabildo e a Igreja de São Francisco em Buenos Aires.
77
Miranda Neto
A construção: Enormes blocos de pedra retiradas das margens do
arroio Santa Bárbara e transportados em carroças puxadas por oito e até
doze juntas de bois para serem içados ao seu lugar nas paredes e em seguida
rejuntados com massa composta de areia, barro, cal, conchas trituradas,
leite e água. As conchas eram recolhidas no rio Jacuí e transportadas em
carretas até São Miguel.
A própria construção tornou-se rico aprendizado para os guaranis
que, no início, foram vítimas de sua inexperiência e natural ansiedade
ao causar e sofrer alguns acidentes. Cerca de mil homens trabalharam
durante dez anos na edificação e no acabamento.
Andamento da obra: Agosto de 1738. Concluído o arcabouço das três
naves e sua cobertura. Celebrada a primeira missa na catedral em construção.
As festividades paralelas incluíam desfile civil e militar, corridas a pé e a
cavalo e banquete em homenagem ao Padre Provincial que foi de Buenos
Aires para inspecionar as obras. Em um mês (de julho a agosto de 1738), o
Padre Domingos Zípoli, antigo organista da Companhia de Jesus em Roma,
conseguira reorganizar o conjunto de músicos, desmontar, limpar e afinar
o velho órgão e ainda ensaiar grupos de dança e música para o grande dia
da pré-inauguração da Catedral de São Miguel cuja construção, no entanto,
nunca chegou a ser totalmente concluída.
4.8 Padres Construtores de Igrejas e demais construções
1ª Fase: Padres peritos no início do século XVII. Destacaram-se Rocque
González, Antônio Ruiz de Montoya, José Cataldino e Pedro Espinosa
construíram palhoças-capelas que foram substituídas por enormes
galpões com cobertura de palha (trançado de ripas coberto de barro) e
paredes de pau a pique.
2ª Fase: Padres arquitetos. Destacaram-se Bartolomeu Cardenosa,
Domingos Torres (também estrategista militar na batalha de Mbororé)
e, em 1690, José Brasanelli, “Miguel Ângelo das Missões”, construtor
responsável pelas igrejas de São Borja, Itapuá, Loreto, Sant’Ana, São
Francisco Xavier, Santo Inácio-mini. No início do século XVIII, destacou-se
o padre João Batista Prímoli, responsável pela construção das monumentais
igrejas de São Miguel, Trindade e Conceição, e Antônio Forcada, construtor
das Igrejas de Jesus e São Luiz.
78
V - Cultura, Rituais e Religiosidade
Lendas e mitos, transmitidos de geração a geração, perpetuaram
episódios que lembram até hoje a catástrofe do dilúvio bíblico entre os
guaranis.
A crença na imortalidade da alma e a noção do “pecado original”,
por exemplo, foram orientadas pela religião cristã, recém-adotada pelos
neófitos. Ideias e rituais tornaram-se mais nítidos e definidos. O contato com
a civilização europeia era visto como uma fase na evolução cultural guarani.
Como convencer os indígenas da importância da conversão? Só a
pregação da palavra não era suficiente. Havia três obstáculos à conversão:
1. A conversão incompleta ou a manutenção dos antigos costumes
nativos (canibalismo, poligamia) sob a capa do ritual religioso
recém-incorporado ao seu cotidiano.
2. A desconfiança em relação aos colonos escravistas associados
aos jesuítas por serem de mesma raça e procedência. Como
convencer os índios do bom exemplo se os próprios colonos
viviam em pecado e se comportavam da pior maneira possível?
3. A corrupção do clero secular que prejudicava os jesuítas.
A partir da experiência dos missionários luso-brasileiros
aperfeiçoou-se a “tecnologia da catequese” na abordagem e
convencimento dos neófitos. Nóbrega quis transferir missões para a
região do Paraguai, só temia violar o Tratado de Tordesilhas. Anchieta
79
Miranda Neto
curava e depois convertia os índios: suas práticas medicinais facilitavam
a conversão.
Os missionários tinham de convencer os índios de que possuíam
o poder de conversar com os espíritos, tal como os pajés. Antes da
conversão religiosa precisavam demonstrar suas habilidades médicas e
farmacêuticas. Assim competiam frente a frente com os pajés. À falta de
médicos, os missionários poderiam tratar de doentes; entretanto era-lhes
vedado o envolvimento com o comércio terapêutico.
O envolvimento dos jesuítas com atividades de cura originou-se
através da administração e do controle feito pelos religiosos nos hospitais
na Europa. No século XVI, a ciência aperfeiçoou conhecimentos de
anatomia, farmacologia e técnicas cirúrgicas, mas aos padres se reservava
apenas entender, confortar e encomendar a alma dos doentes. Apesar da
resistência da Igreja, a medicina aos poucos conseguiu predominar nos
tratamentos bem-sucedidos.
Os missionários possuíam incipiente conhecimento médico, mas
o suficiente para identificar as enfermidades introduzidas pelo branco na
população indígena, vulnerável ao ataque dos germes. Esta característica
contribuiu para aumentar o poder dos jesuítas, cuja autoridade sobrepujava-se
à dos pajés cuja rivalidade fazia proliferar intrigas que criticavam os métodos e
os resultados dos tratamentos ministrados pelos padres.
Ritos de fé (batismo, confissão, penitência, eucaristia, confirmação,
extrema-unção) concorriam com cantos e objetos mágicos do pajé. A maioria
dos batismos só eram realizados à beira da morte, pois tornava-se difícil
convencer os autóctones a batizar seus recém-nascidos. Com o avançar da
idade, todos queriam garantir o rumo do paraíso.
Para enfrentar a poligamia, os religiosos forçavam-nos a escolher
apenas uma das mulheres, abandonando as demais. Como convencê-los
a praticar os bons costumes se nas cidades os colonos abastados se
amancebavam com várias índias? Casamentos consanguíneos, canibalismo
e demais práticas só aos poucos foram abandonadas. Os indígenas aceitavam
ser casados pelos jesuítas, mas não abandonavam as demais mulheres. Os
jesuítas optaram então por casar mais cedo os jovens pela primeira vez,
ignorando as esposas que viessem a adquirir em seguida. Mas não seria
hipócrita diferenciar poligamia de relações extraconjugais?
O canibalismo na verdade só era praticado em situações de guerra
como ritual milenar significando “o auferir as qualidades do morto”. Nativos
consideravam-no um fim honrado e corajoso para o inimigo aprisionado
em conflito. O sucesso dos jesuítas é explicado em parte pela sua tolerância
com os ritos nativos e pela competência com algumas práticas terapêuticas.
80
Cultura, Rituais e Religiosidade
Para tornar-se mais aceitável e popular, a cerimônia da missa
introduzia às vezes peças teatrais em que crianças representavam episódios
da Bíblia na língua guarani. Cânticos, danças e pantomimas enriqueciam
também o ritual cristão que incorporava instrumentos, ritmos e adereços
indígenas. Acreditavam os jesuítas que palavras persuadiam bem mais se
acompanhadas de música e drama. A comunicação social completava-se
com pantomimas, outro meio eficiente de convencimento.
Conhecimento e respeito à cultura nativa, pregações em guarani,
tratamento dos enfermos, tolerância e adaptação aos rituais conforme a
audiência das missas contribuíam como estratégia para converter índios
ao cristianismo. Jesuítas eram flexíveis, criativos e persistentes.
As “tecnologias do simbolismo” deram aos espanhóis vantagem sobre as
culturas do Novo Mundo. Controle dos ibéricos na escrita, dominação das culturas
orais, uso da tradução de intérpretes. Como as crianças aprendiam com maior
facilidade, adotou-se o emprego de intérpretes infantis na confissão dos adultos,
violando-se assim o princípio da privacidade. A força do símbolo não é mera
função de seu significado, mas do contexto mais amplo dos “ritos institucionais”
que transformam o símbolo corrente, amplamente entendido e aceito. Há as
origens pré-linguísticas do poder social comprovadas pelo desenvolvimento da
“tecnologia para a conversão de nativos” baseada no tratamento dos enfermos
(ritos terapêuticos) e nos rituais religiosos (magia social).
A força dos ritos pré-linguísticos – como a cura de enfermidades
e os rituais religiosos – expressava-se no entendimento e na sua aceitação
prévia à comunicação pela linguagem. Jesuítas eram identificados
como pajés-guaçu (respeitados curandeiros vindos de outras paragens)
ao superarem a condição de estrangeiros e comprovarem ser hábeis
terapeutas capazes de se comunicarem com os espíritos, mediar conflitos
entre tribos e poderosos e de convencer os nativos a migrarem em massa
para a “terra sem mal”. Os missionários relataram curas, batismos,
casamentos, missas e confissões. Entretanto, a maioria das tentativas de
conversão dos primeiros períodos fracassou.
Legitimação do poder através do consentimento gerado pelo medo
e o conceito de direito subjetivo13 são contribuições importantes dos jesuítas
da Península Ibérica à Teoria Política do século XVII. Como torná-las
coerentes com leis naturais e civis? Na verdade, reforçaram os argumentos
e os normatizaram para serem utilizados na prática da evangelização.
A conversão dos guaranis sofreu dificuldades relacionadas com
a poligamia dos caciques, a embriaguez nas festividades, o canibalismo
durante certo período praticado por alguns grupos, o ódio aos colonos
13 Direito subjetivo – direito dos índios, sujeito à vontade do colono (seu proprietário).
81
Miranda Neto
espanhóis. Pode-se avaliar como foram complicados os primeiros
tempos dos missionários. E o grande risco por eles assumido ao tentarem
adaptar uma cultura totalmente diversa à outra. Até 1643, quando o
padre Montoya publicou o Memorial, já 16 missionários haviam morrido
em plena atividade de catequese. Assim como adotavam a nova fé, os
guaranis podiam de uma hora para outra renegá-la.
Só aos poucos o cristianismo foi sendo aceito e adotado. Mesmo
assim, apóstatas14 surgiam aqui e ali. Tremenda persistência, paciência,
abnegação, dedicação integral à causa da fé caracterizaram a atuação dos
jesuítas que revelaram ainda muita perspicácia, coragem e resistência
física. Sua experiência em lidar com interesses conflitantes e vasta cultura
geral possibilitaram-lhes enfrentar os desafios.
Os cânticos religiosos, o ritual e a música sensibilizaram os
guaranis, facilitando sua conversão. O primeiro passo era convencer o
gentio a se tornar sedentário, a dividir o tempo de maneira produtiva e
criativa, a organizar-se em outro tipo de comunidade. A ociosidade seria
tenazmente combatida. Havia muito a fazer: organizar o plano urbano da
missão, construir os prédios públicos, a igreja, as moradias, os depósitos, os
armazéns, cuidar das hortas e plantações, manter a limpeza e a circulação
do núcleo, disciplinar as relações econômicas, sociais e de trabalho.
As festividades religiosas eram cuidadosamente planejadas
para não interferirem no cotidiano da produção agrícola, pecuária, da
manufatura e artesanato da comunidade.
O ritual e o ensino religioso só se generalizaram após a organização
da aldeia e sua vida social cotidiana. A fim de atrair mais neófitos para
sua paróquia, um missionário e alguns fiéis penetravam o interior. Muitas
expedições enfrentavam imprevistos e fracassavam, às vezes com a
morte dos padres. Entretanto, raramente solicitavam auxílio aos militares
espanhóis. Pelo contrário, em várias ocasiões eram os colonos de Assunção
e Buenos Aires que puderam contar com reforços das milícias guaranis
sob coordenação dos jesuítas.
Os padres sabiam cativar, através do exemplo e da eloquência, seus
novos discípulos e convencê-los a melhorar de vida ao se incorporarem à
missão cujos atrativos deviam sensibilizar o cacique, pois ele arrastaria
sua tribo. Facões, anzóis, agulhas e ferramentas de trabalho reforçavam o
convencimento: o índio presenteado sentia-se vinculado ao padre por elo
sagrado. Os caciques convertidos, tocados pelas amostras das missões bem-sucedidas, ajudavam a atrair cada vez mais famílias à nova organização.
Quando toda uma comunidade emigrava, formava-se primeiro sólido
14 Apóstatas - os que renegavam, os que desertavam da religião.
82
Cultura, Rituais e Religiosidade
núcleo em nova missão que contava com as reservas de alimento e mão de
obra especializada da redução vizinha.
Por outro lado, os padres tinham muito trabalho em convencer o
gentio a acreditar nas escrituras, profecias e ameaças bíblicas. Pouco a pouco,
dedicavam-se às orações, à pregação, às tentativas bem-sucedidas de tornar
os rituais religiosos atraentes através dos cânticos sacros, dos paramentos
da igreja e da própria organização do culto. As pinturas e imagens sacras
ajudavam a compor a atmosfera favorável à majestade das cerimônias e à
devoção dos fiéis, atraídos periodicamente pela igreja cristã.
As orações da manhã e o catecismo ocorriam ao ar livre diante
da igreja cujos portões se abriam para a entrada de meninos e meninas
cantando salmos religiosos em guarani e cânticos de louvores ao Senhor,
inspiradores de devoção sincera e profunda. Aos poucos, adultos também
lotavam o interior do templo. Findo o culto, saíam todos no maior silêncio.
Procissões atraíam grande número de fiéis e os cânticos eram
entoados com ritmo e devoção. Estimulava-se nos adolescentes a
caridade, a disciplina, a ordem, a competência na conversão dos infiéis e
a assiduidade no comparecimento aos cultos religiosos. Eram admitidos
nas congregações, uma glória para a família. Bastava uma falta grave
para serem excluídos, o que era suficiente para puni-los. Esta foi uma das
maneiras de conter o alcoolismo.
Reuniões periódicas das diversas congregações representavam o
poder da elite religiosa. Coordenavam-se e controlavam-se as missões
de cinco a dez mil moradores, educados, disciplinados, organizados pela
autoridade moral de apenas dois missionários desarmados. Aos poucos,
o hábito da leitura e da pesquisa ia se difundindo entre os membros dos
Cabildos e a administração das missões onde preciosos trabalhos foram
impressos em guarani.
Embora os deveres da fé prevalecessem sobre as demais atividades
e a religião fizesse parte da vida cotidiana da comunidade, o batismo era
concedido sem a exigência de profunda e longa preparação. Quatro mil
guaranis já haviam sido batizados em São Francisco Xavier logo após cinco
meses de criada a missão. Muitos criticavam este açodado procedimento
que levaria à acomodação e ao fatalismo do devoto induzido a acreditar
em seu destino traçado e a se considerar superior aos demais.
As cerimônias de batismo eram solenes para demonstrar a
importância do rito de passagem na introdução à fé cristã. Dois ou
três idosos, os mais respeitáveis da comunidade, eram escolhidos para
padrinhos de todas as crianças a serem batizadas, que adotavam nomes
de santos católicos: José, João, Antônio, Inácio, Maria, Luzia, Isabel... Os
83
Miranda Neto
bispos de Assunção e Buenos Aires periodicamente visitavam as missões
guaranis para a solenidade de confirmação. A viagem de Buenos Aires
a Yapeyú era difícil, arriscada e exigia uma logística complexa e cara,
financiada pela Confederação das Missões.
Aos domingos, pela manhã, eram celebrados os casamentos antes
da missa. Abençoavam-se os noivados e as uniões concedendo, com
elaborado ritual, ares de superioridade espiritual às paixões e sentimentos
humanos. Os enfermos ansiavam pelos sacramentos religiosos que lhes
aliviariam culpas e sofrimentos. Durante graves enfermidades, a devoção
impressionava até os missionários.
Nenhum guarani chegou a completar sua formação sacerdotal,
embora muitos tivessem apresentado as condições necessárias e
demonstrassem competência após anos de preparação adequada. Os
colégios, os seminários e a Universidade de Córdoba estavam sob controle
dos jesuítas do Paraguai e do Prata e poderiam ter conduzido a elite
jovem indígena ao sacerdócio com formação superior. Mas resistiram
sob pretexto da necessidade do celibato obrigatório totalmente inviável
frente à fama de polígamos dos guaranis. Só após a expulsão dos jesuítas,
foi ordenado abade o guarani Januário Tubichapota que concluiu os
cursos de filosofia e teologia no seminário diocesano de Buenos Aires.
Os franciscanos também não teriam elevado nenhum indígena ao
sacerdócio. A jovem elite não foi capacitada a gerir seu futuro.
A direção e coordenação geral das missões foi sempre exercida
pelos padres. Aos guaranis cabiam os conselhos locais ou comunais.
Nunca se cogitou de criar um conselho da Confederação das Missões nem
mesmo reuniões ocasionais de todos os corregedores, tentando unificar
ações de médio e longo prazo. A instalação de um Conselho Geral talvez
tivesse contribuído ao amadurecimento da competência guarani para
enfrentar as turbulências e as crises advindas das guerras guaraníticas
contra os efeitos dos Tratados de Limites e a expulsão dos jesuítas.
O poder espanhol incentivava os neófitos a preencher funções
administrativas e não os proibia de ser ordenados padres. Havia, sim, forte
preconceito e receio de riscos de consequências futuras e de concorrência.
Caso os guaranis tivessem efetivamente participado da cúpula do clero,
o desenvolvimento da Confederação das Missões decerto teria tomado
outro rumo.
Entretanto, alguns guaranis tornaram-se tão estreitos colaboradores
dos missionários que iam ao interior como “apóstolos neófitos” atrair
aborígenes até de outro grupo, aumentando a diversificação étnico-cultural e dificultando a catequese pois às vezes nem a língua nem a cultura
84
Cultura, Rituais e Religiosidade
possuíam algo em comum com a dos guaranis. Tolerância e paciência
resultavam em sucesso a longo prazo. Os que sabiam, traduziam prédicas,
sermões e textos bíblicos a fim de facilitar a compreensão e a aceitação
da doutrina cristã. Estes apóstolos guaranis arriscavam suas vidas, pois
muitos se tornaram mártires tal como os primeiros missionários.
Quando nem a atração do esplendoroso ritual religioso, nem a
música, os cânticos e a pantomima eram suficientes para atrair o gentio das
tribos para as aldeias missionárias foi o receio da morte por doença ou em
combate e do aprisionamento/escravização que reforçou o convencimento
a esta forçada migração. Era o medo legitimando o poder dos missionários
em transferir, catequizar, aldear e administrar o destino dos neófitos. À
falta de opção menos traumática – o que foi magistralmente explorado
no convencimento decisivo praticado pelos jesuítas – restou organizar
os recém-chegados em produtivas missões. Ao transferir nativos de suas
tribos originais para grandes aldeias missionárias onde coabitariam com
indígenas de outras procedências, os jesuítas conseguiram desarticular a
hierarquia tribal minando a autoridade dos pajés e caciques, agora sob o
poder dos “protetores da aldeia”, os missionários que arbitrariam conflitos
e julgariam crimes e pecados. A maioria das funções, até as assumidas
pelo “conselho dos sábios”, passou a ser exercida pelos padres, o que
apressou o surgimento da nova organização sociopolítica, rearticulando a
parceria entre os poderes guarani e jesuíta.
A aceitação da autoridade dos sacerdotes era obtida pelo temor ao
uso da violência por parte dos colonos espanhóis que preferiam escravizar
os indígenas para colocá-los a seu serviço. Entre se deixar matar ou
aprisionar, os guaranis optavam por participar da construção de novas
relações sociais e de produção sob gestão dos padres.
Nas habitações de barro alongadas tipo barracões viviam em
conjunto todos os descendentes de um mesmo clã – o que foi respeitado
pelos jesuítas ao edificarem moradias mais resistentes. Eram divididas em
peças contíguas onde habitavam as famílias.
Caciques e pajés dividiam o controle sociopolítico da tribo, sendo
que os primeiros do ponto de vista político-administrativo e os últimos
do ponto de vista místico-religioso. Caciques famosos destacaram-se nas
guerras guaraníticas e exerceram forte liderança: Arapizandu colaborou
na organização das primeiras missões e Nicolau Neenguiru e Sepé Tiaraju
na evangelização do Tape.
Caraoié era o patriarca, sábio, respeitado pela sua experiência,
espécie de profeta errante, filósofo e líder espiritual. Sua missão era
conduzir seu povo à “Terra sem Males”, um lugar maravilhoso, paraíso
85
Miranda Neto
indestrutível e fértil, misto de destino após a morte e também prêmio às
boas ações, terra encantada perfeitamente alcançável em vida através do
amor, amizade, fraternidade, solidariedade e confiança. Os missionários
conseguiram elaborar em cima deste mito, ideal preexistente na cultura
guarani e reavivado pelos jesuítas que, com habilidade, iam introduzindo
valores cristãos.
Em resumo, as missões se justificariam pelos princípios: medo e
consentimento. Mais tarde comprovariam que, embora o seu início tenha
sido, de certa maneira provocado por artimanhas, conseguiram ao longo
do tempo, apesar de todas as dificuldades, autossustentar-se. Assim como
em 1558 os jesuítas e o governo geral forçaram os índios habitantes de
quatro aldeias próximas a Rio Vermelho a se transferirem para São Paulo,
primeira missão criada pós-reforma, no século XVII os missionários da
Província do Paraguai fundaram várias missões com neófitos de aldeias
dispersas circunvizinhas.
Além de cantorias sacras, representações teatrais eram muito
empregadas para impressioná-los. Festivais de música e dança eram
frequentes ao ar livre sob arcos triunfais, nas procissões e nas igrejas. Mas
o que fixava realmente os neófitos à missão era a alimentação abundante e
variada: carne bovina, leite, verduras, frutas, cereais e chás. Completavam
o leque de atrações: a moradia bem construída em arruamentos planejados,
o vestuário para abrigo do frio intenso, o ritual religioso e o calendário de
festividades programadas para o ano inteiro que garantiam em conjunto
o sucesso da catequese.
Os guaranis tiveram, na época, o sustentáculo de sua unidade,
identidade e resistência, sem o que, certamente, teriam sido absorvidos pela
civilização dos brancos. O projeto das missões jesuíticas veio ao encontro
dessa aspiração e parece corresponder à utopia da “Terra sem Males”, um
mundo perfeito onde dor, angústia e sofrimento não existiriam15.
15 Confrontar com o mito do paraíso perdido, presente na história de vários povos.
86
VI - Importância dos Jesuítas
e o Legado das Missões
Os missionários possuíam, por necessidade de sobrevivência, além
de um bem estruturado arcabouço espiritual, um profundo conhecimento
do sistema produtivo local. Na verdade eram convergentes os interesses
temporais e espirituais, obrigando a Companhia de Jesus a interagir
continuamente com a produção agropecuária, visando o abastecimento das
próprias residências e colégios jesuítas. Portanto, constituía uma necessidade
vital obter a colaboração da mão de obra suficientemente qualificada, confiável
e sempre disponível, garantia da continuidade do processo produtivo.
As cartas dos jesuítas revelam preocupações com a falta de
liquidez, a dependência de crédito, a manutenção dos meios de produção,
transporte e distribuição, além dos cotidianos deveres espirituais inerentes
ao cargo. Usufruíam, no início do seu gigantesco empreendimento, de
privilégios como isenção de taxas e impostos reais além da garantia de
relativa autonomia devido ao reconhecimento de seu papel na defesa e
propagação do cristianismo através do mundo.
A deterioração econômica do século XVIII coincide com a
campanha contrária à Companhia de Jesus na Europa e na América Latina.
A partir daí, os missionários perdem seus privilégios, o relacionamento
com o poder real e com as demais autoridades afinadas com os interesses
dos colonos fica tenso. Torna-se difícil compatibilizar o temporal com
o espiritual e continuar se revelando competentes administradores,
educadores, artistas, diplomatas e, sobretudo construtores e religiosos em
sua catequese nas missões guaranis.
87
Miranda Neto
Sempre foi tumultuada a relação de interesses entre os poderes
apesar da incontestável quantidade de serviços prestados pelos jesuítas
na administração do Reino. Logo após a assinatura do Tratado de Madri
de 1750, acordos secretos foram tentados entre as Coroas Ibéricas para
garantir a simultaneidade da permuta de territórios e a responsabilidade
da mútua desocupação, apesar da resistência dos jesuítas e dos guaranis. A
preocupação derivou do risco iminente de ruptura da paz e da conciliação.
Em represália às duras condições do Tratado, os religiosos ignoraram as
decisões pontificais e reais, inclusive visando o mínimo prejuízo para as
partes envolvidas.
A campanha contra os jesuítas repercutia no Reino e no Vaticano
precipitando sua expulsão, em 1759, de Portugal e colônias. Suspeitava-se
do enorme poderio do Império de cerca de 500.000 km² (correspondentes
a mais de 30 missões) que ameaçaria a segurança europeia, a hegemonia
das economias ibéricas e os interesses britânicos, fomentadores do
contrabando no Rio da Prata.
A interferência dos religiosos nas decisões políticas na Europa
e a grande expansão econômica de seus estabelecimentos e de suas
missões na América, mantendo relativa autossuficiência mediante gestão
coparticipativa em um modelo bem-sucedido de segregação relativa do
autóctone, afrontava a Metrópole. Sobretudo porque conseguiram resistir
mais de 150 anos praticando um sistema autossustentável com tecnologia
indígena em perfeita harmonia com as potencialidades ambientais.
Muito embora os jesuítas de início usufruíssem de privilégios,
isenções e incentivos, as contribuições reais nem sempre eram suficientes
e regulares, escasseando à medida que se deterioravam suas relações com
as cortes, os colonos interessados na escravização do gentio e o Vaticano.
Os missionários em sua obra evangelizadora provaram que a
comunhão entre duas culturas diferentes deveria basear-se na fraternidade
como fonte de impulso vital. Os jesuítas precisavam dominar os idiomas
nativos para pregar e se fazer entender pelos indígenas que tinham
dificuldade de assimilar o sentido dos sacramentos e o significado das
práticas religiosas. A música, a pantomima, o badalo dos sinos das igrejas,
as roupas vistosas e os paramentos ajudavam a atrair o gentio mas foi o
medo, a ameaça de perigo e a insegurança que acabaram por convencer
a maioria dos indecisos a se transferirem das tribos para as aldeias dos
missionários. Entre serem aprisionados, escravizados ou mortos pelas tropas
coloniais ou abrigados pelos missionários em novos povoamentos onde
seriam convertidos à “civilização” cristã, tornava-se evidente a segunda
opção como vitoriosa. Anchieta e Nóbrega em São Vicente, Piratininga e
88
Importância dos Jesuítas e o Legado das Missões
Sul do Brasil; Montoya em Guairá, Paraná; e Roque González no Paraguai
destacaram-se pelas primeiras conversões em massa de neófitos tementes às
forças da natureza e à sabedoria dos pajés. Conseguiram esses missionários
transformar a catequese nômade das “missões volantes”16 em aldeamentos
planejados das “missões fixas” pois as aldeias primitivas, além de dispersas,
eram provisórias. Esse seminomadismo impossibilitava uma ação mais
eficaz de aculturação do gentio. Os índios permaneciam no máximo de dois
a três anos em um mesmo sítio e, quando se deslocavam, o faziam em levas
sucessivas de apenas alguns elementos.
As missões volantes, acompanhando as tribos nômades, apesar de
alguns sucessos, não conseguiram a constituição de comunidades cristãs
consistentes e duradouras; tornou-se indispensável fixar os neófitos em
torno de uma igreja, distanciados dos colonos corrompidos e corruptores.
Com a rede de missões formar-se-ia um “cinturão” ou barreira que
garantiria a liberdade e a moralidade das tribos ainda não convertidas,
condição necessária à catequese e à evangelização.
As primeiras tentativas de aldeamento uniam várias tribos em uma
nova aldeia com igreja, colégios, grandes depósitos e moradias em taipa. As
cerimônias solenes e rituais sacros de instalação muito impressionaram o gentio
que também adorava novidades, vestimentas vistosas, a pompa, os cânticos e a
música das festas religiosas. Havia a necessidade de agrupar os povoados nas
proximidades das vilas existentes. O Regimento Real criava as Aldeias d’El-Rei
subordinadas ao governador geral que indicava a ordem religiosa responsável
por elas. Os Superiores das aldeias passaram a ter jurisdição secular gerando
sérios atritos entre os jesuítas e as autoridades civis.
Os jesuítas concorriam com os pajés nos tratamentos de certos males,
tanto do corpo quanto do espírito. Música e representações dramáticas
persuadiam mais do que apenas a linguagem. A adaptação e a tolerância
aos ritos sacramentais facilitavam a conversão dos índios ao cristianismo.
A maioria das tentativas de conversão no período inicial da catequese
fracassou apesar de ajudar a elevar a autoridade dos padres. Os jesuítas
só se tornavam respeitados quando conseguiam superar a condição de
“estrangeiros” demonstrando competência como terapeutas e “capacidade
de se comunicar com os espíritos”. O poder de curar e de mediar conflitos
e a capacidade de convencer os nativos a se deslocarem em busca da “terra
sem mal” dependiam do conhecimento científico e do carisma que nem
todos os missionários possuíam. Tornava-se necessário levar a missão de
catequese para além da palavra e da cura. Todo o procedimento deveria
ser reformulado, sobretudo os fundamentos teóricos e os conceitos que, ao
16 “Missões volantes” em que os jesuítas acompanhavam o deslocamento dos indígenas.
89
Miranda Neto
serem sistematizados na Europa do século XVII, contribuíram para uma
verdadeira revolução das ideias políticas contemporâneas cuja origem – é
bom lembrar – provém das primeiras experiências e fracassos dos jesuítas
missionários em terras sul-americanas.
A história da empresa missionária sempre oscilou entre
luta-resistência-conciliação na construção de uma confederação
relativamente autossustentável. De início, contava com o apoio dos Reis
Católicos de Portugal e Espanha à jurisdição espiritual e civil, liberada
para organizar-se economicamente com suporte militar à expansão
de seus domínios na América e à cruzada da fé católica na Europa.
Na verdade, a República Guarani constituía uma ameaça crescente à
complementação geográfica do Brasil meridional – isto do ponto de
vista luso-brasileiro.
Os jesuítas foram os grandes construtores das futuras nações
latino-americanas e com frequência pagaram com a vida. Estudaram as
línguas indígenas, adaptaram o ritual e o culto cristão às tradições locais.
Seu esforço para fazerem-se entender tinha por objetivo tanto a pregação
cristã, quanto o ensino profissionalizante. Combateram sem tréguas o
canibalismo e a poligamia, apesar da forte reação dos índios.
As missões naquela época não dispunham de um mercado
estruturado. A economia de subsistência com pequeno excedente era
autossustentável e respeitava a biodiversidade. A Companhia de Jesus
sempre demonstrou um anseio orgânico por constante expansão e
duradoura atuação na transformação de mentalidades e comportamentos,
gerando comunidades integradas entre si mas relativamente autônomas
em relação ao poder colonial.
As uniões de hispânicos com mulheres guaranis ajudaram a
preservar a paz. Os descendentes destas uniões eram reconhecidos como
espanhóis e, após algumas gerações, os mais preparados eram selecionados
pelos padres para se tornarem missionários. Já no início do século XVII
havia a formação de seminaristas e noviços em Córdoba.
Um dos problemas enfrentados pelos jesuítas era a concorrência dos
xamãs, feiticeiros, curandeiros, conselheiros e sábios da tribo. Seu poder
sobrepujava o do próprio cacique cuja autoridade só era plena durante
operações de guerra. O xamã detinha o segredo das fórmulas fitoterápicas e
dos procedimentos curativos, conservava a ascendência moral e a autoridade
sobre os neófitos. Ao primeiro contato com os missionários, os guaranis
praticavam canibalismo e poligamia. Houve xamãs que lideraram revoltas
contra os espanhóis, proclamando o início da “Era Dourada”. Nessas ocasiões
uma tribo deixava o seu território à procura da “Terra sem Mal”.
90
Importância dos Jesuítas e o Legado das Missões
O mate era usado a princípio como erva milagrosa apenas pelos
xamãs. De fato é diurético, estimulante, digestivo, compensando a ingestão
de alimentos “pesados”. No auge de sua produção, a erva-mate era
transportada em carroças até o rio Paraná por onde seguia até Buenos Aires
para ser exportada à Europa. A maioria dos ervais ficava no Tape (RS).
Os jesuítas deveriam ser encarados como protetores dos índios. A
prática do “serviço pessoal” doméstico (ou não) virou abuso. Os missionários
enfrentaram a opinião pública pois, em sua maioria, a população hispânica
das vilas dependia das “encomendas” e do “serviço pessoal” do gentio. Os
padres interferiram na relação provocando a ira dos colonos.
Em resposta à atuação dos jesuítas, alguns colonos deixaram
de sustentá-los e os expulsaram para a zona rural quando as primeiras
calúnias contra os padres eclodiram. Dizia-se que pretendiam monopolizar
o trabalho dos índios em proveito próprio e assim amealhar grande
fortuna. Apesar dos desmentidos, a confiança das autoridades foi abalada,
ameaçando os privilégios e as isenções dos missionários.
Os guaranis adotaram a lei de Deus, mas abominavam os espanhóis
e temiam os paulistas. O modelo de segregação relativa dos jesuítas protegia
os índios das doenças dos espanhóis e da sua moral e, sobretudo, da
escravidão imposta pelos luso-brasileiros (bandeirantes).
Desde o início da fundação das primeiras missões, a disputa com
os franciscanos marcou o relacionamento entre as duas ordens religiosas.
Houve aldeamentos sob orientações diferentes relativamente próximos
um do outro e, por isso, sempre um deles tinha de ser transferido. A
República Guarani foi ocupando o território entre os rios Paraná e Uruguai,
para depois povoar a área entre os rios Paraguai e Paraná e a leste dos rios
Paraná e Uruguai, para o Sul e o Norte.
Os padres Antônio Ruiz Montoya, Roque González e Antônio
Sepp destacaram-se no século XVII. Eram missionários por vocação
e totalmente integrados na cultura guarani. Seus planos consistiam em
fundar escolas de língua indígena para futuros missionários cujo lema era
“não há laço mais forte para a amizade do que uma língua comum”.
Vindos da Europa, alguns missionários jamais chegaram ao destino.
As viagens marítimas eram demoradas, desconfortáveis e extremamente
perigosas. Ao chegarem ao porto de Buenos Aires ainda tinham de enfrentar
a subida pelos rios Uruguai, Paraná ou Paraguai e mais os deslocamentos
terrestres, a fome e a sede, os índios hostis, as febres e as incertezas.
O primeiro a organizar o vocabulário guarani foi padre Antonio
Ruiz Montoya que tornou famosa a rota Norte-Sul ao longo do rio Paraná,
com a odisseia do deslocamento de milhares de guaranis de várias missões,
91
Miranda Neto
após o ataque dos bandeirantes e as refundações em locais mais seguros
e abrigados (1631).
O padre Roque González marcou nova fase na organização
missionária em expansão. Arquiteto, pedreiro e carpinteiro construiu
praças, blocos de casas, escolas, igrejas. Ensinou os índios a arar a terra,
semear os grãos e proteger a safra dos predadores. Incentivou a criação
de gado, que explodiu nas estâncias do Tape cem anos depois. Ele
compreendeu a importância de uma base econômica sólida para garantir o
desenvolvimento das missões. Falava guarani, entendia o temperamento
do autóctone, estimulou a arte e a música sacra nas festas em que hinos e
versos eram cantados, propagando o cristianismo na língua local.
O padre Antônio Sepp atuou de 1692 a 1733 nas reduções Yapeyu
e São Miguel. Humanista prático, não se limitava à catequese dos índios:
iniciou o cultivo do algodão em grande escala, plantou pessegueiros,
ameixeiras e inúmeras outras árvores frutíferas. Destacou-se pelo incentivo
prestado às vocações musicais, tendo sido ele próprio intérprete de vários
compositores da época.
Após a autorização real para introduzir armamentos nas missões,
os jesuítas conseguiram formar esquadrões de cavalaria (os guaranis
adaptaram-se bem aos equinos) e flotilhas fluviais que, devidamente
equipadas, tornaram-se imbatíveis. Os rios eram vistos como obstáculos
à defesa militar, sobretudo as cachoeiras, embora facilitassem
os deslocamentos aos que possuíssem flotilhas equipadas. Ao se
reagruparem rio Paraná abaixo, margem direita, os aldeados expulsos de
Guairá conseguiram resistir aos invasores. Havia o receio de, ao se armar,
os índios poder voltar-se contra os padres e tentar a reconquista de seu
território. Mesmo assim, Montoya conseguiu renovar a licença real para
armamentos, munições e fortificações das aldeias missionárias. Com isso,
os jesuítas espanhóis conseguiram impedir os luso-brasileiros de alcançar
as minas de prata de Potosí.
Graças ao apoio guarani, a Espanha, na época possuidora de
exíguos recursos técnicos e humanos, conservou o domínio do território
que caberia a Portugal. Na verdade as áreas das missões permaneciam,
em grande parte, autônomas, sob o controle dos jesuítas interessados em
estender o alcance de sua obra missionária a um número cada vez maior
de indígenas, a mais da metade do continente sul-americano e às Filipinas.
A organização militar era apenas um dos aspectos de sua eficiência,
disciplina e método. Por absoluta necessidade de sobrevivência, já que
as distâncias entre os núcleos urbanos eram enormes e o abastecimento
precário, os jesuítas considerar-se-iam responsáveis por um Estado
92
Importância dos Jesuítas e o Legado das Missões
autossuficiente, alheios aos interesses ibéricos. Entretanto, a fim de se
acautelarem de futuras acusações de usurpação de poder, os jesuítas
arquivavam toda a documentação referente aos seus pleitos e à sua atuação
administrativa. Provaram, assim, que todas as ações eram respaldadas em
decisões do governo espanhol com aprovação real.
Do ponto de vista econômico, as missões eram autossuficientes e
gozavam de um nível de organização e prosperidade bem superior a todas
as demais comunidades autóctones após o Império Inca. Elas constituíam
uma aplicação concreta de algumas ideias de Thomas More, autor de Utopia.
A virtude da experiência ímpar dos jesuítas consistia na união entre
teoria e prática, pois a própria viabilidade socioeconômica-política-ambiental
das missões dependia da execução de medidas objetivas, simples, pragmáticas,
contextualizadas em um arcabouço sistêmico, dinâmico, flexível. Necessidades
prementes e imediatas demandavam decisões corajosas e integradoras. As
crianças teriam oportunidade de acesso à leitura, à escrita, à música (através
do canto e da instrumentalização) e ao artesanato. Cada redução teria
obrigatoriamente uma igreja matriz, um hospital e uma escola. O sistema de
propriedade coletiva dos meios de produção, a organização administrativa e
a participação do missionário nas decisões relevantes, embora obedecessem a
um planejamento global e a uma estrutura unificada, as peculiaridades locais
eram consideradas.
A maioria dos cronistas da época apoiava a política de segregação
dos missionários. Os próprios estrangeiros, impedidos de conviver com
os índios, encarregar-se-iam de espalhar o boato de que os jesuítas na
verdade não queriam compartilhar seus segredos e seus tesouros.
Os jesuítas mantiveram as missões administráveis: antes de se
tornarem superpovoadas em relação às suas potencialidades econômicas,
fundavam-se outras com o excedente demográfico. No início da
colonização, o desperdício no consumo dos alimentos, sobretudo da
carne, era enorme pela abundância considerada infinita. Os missionários
ensinaram os índios a poupar, a planejar, a salgar e secar a carne,
produzindo o charque, a prover as sementes para replantio e sobretudo
formar excedentes para comercialização externa e constituir um fundo
comum para emergências, enfermos e viúvas idosas. A fim de adquirir
bens que não produziam tiveram de transacionar a erva-mate (utilizada
até como moeda), o algodão, o tabaco, as madeiras, peles, mel de abelhas,
açúcar e resinas aromáticas. O “fundo comum” de excedentes de produção
comprava sal, facas, tesouras, serras, enxadas, machados e outras
ferramentas e utensílios enviados da sede missionária mais próxima.
Devido ao aumento da demanda por couros para a fabricação de cordas,
93
Miranda Neto
selas, maletas, e sacolas (para acondicionar tabaco, trigo, algodão e erva-mate) quadruplicou o valor do gado na época da expulsão dos jesuítas.
Os carneiros só eram criados pela sua lã e a ovelha alcançava o triplo do
valor de uma vaca.
Era grande o desprendimento dos jesuítas com sua própria
manutenção frugal e a extrema resistência ao consumo mais refinado.
A autossustentabilidade das missões tornou-se necessária pelas longas
distâncias entre núcleos populacionais e seu difícil acesso provocando
seu relativo isolamento no interior do continente, longe do litoral. Foi
imprescindível manter os indígenas em comunidades autossustentáveis
pois do contrário teriam sido compelidos a procurar os alimentos na
floresta e, portanto, tornariam a ser nômades.
A biodiversidade constituía a verdadeira riqueza que foi
desperdiçada pelos administradores públicos que sucederam aos
missionários após sua expulsão. Pequena amostra do que sobrou da
riqueza arquitetônica e artística das missões guaranis pode ainda hoje ser
vista in loco nas cidades que se originaram dos Sete Povos, sobretudo em
São Miguel, e através das belíssimas fotos dos Álbuns Missões JesuíticoGuaranis, São Leopoldo, Unisinos, 1999 e Las Misiones Jesuíticas Del Guayrá.
Buenos Aires: Icomos-Unesco, 1995.
Os ervais guaranis prosperavam enquanto os dos colonos entravam
em decadência já que eram de qualidade inferior e o custo de produção
mais elevado. Após o pagamento de taxas à Coroa, sobrava o suficiente
para decorar as igrejas e melhorar as casas das missões.
Na época da expulsão dos Jesuítas, um ambicioso programa
de construções estava em andamento, o que se refletia no esplendor
arquitetônico das igrejas, nas casas de pedra, nas ruas pavimentadas, nas
oficinas, nas escolas, nos galpões e armazéns abarrotados de estoques. Em
uma região com incipiente indústria, as reduções possuíam florescentes
fabriquetas como de dez a vinte teares em cada aldeia (em Yapeyú havia
trinta e oito). Bem treinados e talentosos carpinteiros, pedreiros, escultores,
marmoristas, ourives, fundidores de sinos, calígrafos, luthiers (artesãos
de instrumentos musicais) e demais artesãos que, desde 1700 foram
treinados por padres alemães, austríacos, tchecos e suíços, impulsionaram
o desenvolvimento tecnológico das missões.
Tratava-se mais de prosperidade do que de riqueza, pois além de
predominar o escambo as despesas absorviam quase toda a receita. Por
isso, o inventário das reduções relacionou muitos ativos e nenhuma renda,
embora várias aldeias contraíssem dívidas com as demais, com Assunção
ou com o Reino. Nenhum tesouro foi encontrado.
94
Importância dos Jesuítas e o Legado das Missões
O curioso era que os jesuítas, embora muito competentes e
ótimos administradores, responsáveis pelo eficiente funcionamento da
infraestrutura, não se preocupavam muito com o lucro. Atuavam mais
como gerentes de um ideal ou utopia e preferiam a felicidade à riqueza.
6.1 Formação de Capital
Para os guaranis, comprar ou vender terra seria como comprar ou
vender homens; pois, após a saída da alma, o corpo se transforma em terra.
Assim como o corpo possui pelos, a terra é coberta por árvores, sendo
uma loucura a destruição das matas em grandes extensões; a forte erosão
pela água e pelo vento antecipa a destruição iminente do mundo. O lugar
onde se vive seguindo seus costumes e tradições – tekoha – constitui “área
bem definida, delimitada por cerros, arroios e rios, propriedade comunal
e exclusiva”17.
Logo de saída, guaranis e missionários tiveram que decidir entre
o apego à terra e a conveniência de um sítio aprazível para assentar a
missão. Para convencê-los da vantagem da mudança ao novo local, os
jesuítas os convidavam para observar o modo de vida dos já “reduzidos”,
isto é, dos recém-assentados habitantes das missões.
Concessões e renúncias marcaram o lento processo de
sedentarização de tribos inteiras, habituadas às periódicas mudanças de
hábitat. Cada missão, cujo espaço ocupado era delimitado, distanciava
das outras entre cinco e dez léguas. Ocorria então uma situação de
estabilidade no novo espaço, já incorporado ao cotidiano da comunidade
assim constituída. Além da formação em novo modo de vida cristão,
havia estímulo para melhorar a capacidade produtiva desde as aldeias
primitivas. Alguns caciques consideraram como suas determinadas áreas
de ervais, mas tiveram de se conformar com o fato de que as terras das
missões prevaleciam e as absorviam.
Cada missão abrangia, em média, cerca de 20 léguas quadradas. A
maior estância, a de São Miguel, alcançava 40 léguas de comprimento por
20 de largura. Todas as medidas adotadas para eliminar conflitos entre as
lideranças das missões e aproveitar ao máximo as vantagens comparativas
de cada uma delas na rentabilidade das diversas produções resultaram
em um clima de colaboração mútua e complementaridade dentro da
Confederação. O que se viabilizou através de um eficiente sistema de
comunicações e transportes. Em 1747, todas as missões distavam entre
17 Meliá-Grünberg sg. Masy, Rafael Carbonell de. op. cit.
95
Miranda Neto
si cinco léguas em média. Os caminhos mais trafegados dispunham de
pontes e/ou canoas para transpor os cursos d’água. Capelas pontuavam
os trajetos a fim de garantir apoio e abrigo aos viajantes. Havia também
uma razoável rede de vigilância e informação que propiciava segurança,
reforçando as comunicações entre os pueblos.
Nas missões franciscanas havia igualmente áreas dedicadas a
produzir para a comunidade: eram terrenos próximos ao núcleo urbano
onde criavam gado (em separado do rebanho dos espanhóis) e cultivavam
em maior escala produtos agrícolas para abastecer a população. A
preocupação com a produtividade e o crescimento das superfícies
cultivadas era evidente a fim de evitar o retorno dos guaranis à vida
nômade de caça, pesca e lavoura itinerante que fatalmente ocorreria caso as
colheitas fossem insuficientes às necessidades mínimas de sobrevivência.
O tupambaé exercia dupla função: abastecer a comunidade,
sobretudo os mais necessitados, e os padres. A separação de necessidades
e bens, próprios das missões ou dos jesuítas não impediu a solidariedade.
Doações de produtos entre comunidades eram frequentes. As mais bem
dotadas socorriam suas vizinhas em épocas de crise. Há casos em que
até os religiosos não conseguiam alimento adequado e suficiente para
seu sustento. O Padre Montoya introduziu em Guairá o gado doado pelo
colégio de Assunção para assegurar alimentação aos jesuítas.
A expansão das missões no Tape exigiu planejamento do
abastecimento duradouro de índios e jesuítas, mais acossados pelas
inclemências do tempo e pelas pestes do que por inimigos. “Que não falte
comida e roupa aos pobres índios”18.
A formação de uma fazenda de gado para o sustento dos padres e
dos índios à semelhança da doutrina de Juli no Peru, de onde se distribuíam
periodicamente reses para o consumo das diversas aldeias, foi a solução
encontrada.
Colégios para os filhos dos guaranis que aprendiam a ler, a
escrever, música e frequentavam seminários para aperfeiçoamento na
língua guarani, foram oferecidos pelo padre Roque González em Santo
Inácio-guaçu, onde se encontrava “o mais apurado da língua guarani”.
Este projeto educativo motivou a constituição de um fundo especial
para mantê-lo tanto em Juli como no Paraguai. Colocar as fazendas e as
rendas em nome de missões em situação instável ou de desenvolvimento
insuficiente era extremamente arriscado.
Para diminuir esse risco, propôs o provincial ao padre geral
transformar a missão de Santo Inácio em colégio dirigido por um reitor que,
18 ARSI, Archivum Romanum Societatis Iesu. Arquivo da Companhia de Jesus em Roma.
96
Importância dos Jesuítas e o Legado das Missões
assim, se tornava superior a todos e responsável também pelo ensino das
crianças. Entretanto, não havia um patrimônio juridicamente destinado a
manter a formação de jesuítas e índios. Em 1673, a principal preocupação
da VI Congregação Provincial era melhorar a rentabilidade da mão de
obra, sobretudo na produção e comercialização da erva-mate. Era ela que
iria ser fundamental na sustentação do modelo, pois possibilitava, por
exemplo, a aquisição de algodão para a produção de tecidos e de equinos
para auxiliar no criatório bovino.
O tupambaé teria originalmente caráter de oferenda religiosa e
também de contribuição à comunidade sempre enfatizando o coletivo,
o espírito comum, o trabalho em equipe, as parcerias, o auxílio mútuo,
inclusive entre missões vizinhas.
A parte da erva-mate destinada ao padre era direcionada como
esmola para os pobres e parte era trocada por outros gêneros. Os
“sagrados ministérios” (templos, paramentos e adereços para os cultos)
e os auxílios comuns aos pueblos recebiam o restante, de modo que toda
a erva-mate colhida era consumida e tinha destino determinado. Mel,
sal, lã e algodão também eram adquiridos com a erva-mate que garantia
o pagamento de taxas cobradas pela Coroa sem a intermediação do
encomendero. Durante um período e devido aos prejuízos sofridos, as
missões mais próximas do Brasil gozaram de isenção tributária durante
vários decênios.
A construção da igreja e da casa do padre ficava a cargo da própria
comunidade indígena. Em seguida, em reconhecimento pelos serviços
prestados, os missionários retribuíam remunerando os ameríndios
de algum modo. Mas faziam questão de ressaltar que “tudo que
temos e trabalhamos é destinado a eles”. O tupambaé unia o bem-estar
comunitário ao bem-estar pessoal. As plantações, ervais, fruticulturas e
vacarias comuns beneficiavam os membros da missão de acordo com as
relações palpáveis entre recursos e resultados, objetivando os projetos de
produção comuns. Daí o fracasso de grandes estâncias como experiência
de produção abrangente a várias missões da bacia do Paraná e Uruguai.
Devido à extensão das áreas e ao numeroso rebanho, tornava-se difícil
administrar essas estâncias sobretudo no controle e divisão do gado.
Para melhorar a produtividade, o padre provincial ordenou que cada
missão passasse a utilizar uma estância média conforme sua capacidade
e possibilidade.
De junho a setembro de cada ano, os guaranis especializados em
um ofício trabalhavam alternativamente uma semana nas respectivas
tarefas e outras nas plantações, algumas privadas ou familiares (abambaé).
97
Miranda Neto
Os demais indígenas que não exerciam ofícios especiais serviam à
comunidade no tupambaé às segundas-feiras e aos sábados.
O abambaé destinava-se ao abastecimento familiar completado
subsidiariamente com a produção comunitária (tupambaé), base também
da produção excedente que era vendida ou trocada por outros bens.
Foi admirável a lenta e persistente catequese jesuítica que,
com simplicidade e pedagogia, soube respeitar e incorporar a cultura
autóctone. Admitindo a coparticipação no gerenciamento das aldeias
– ao contrário dos missionários portugueses – estimulando o espírito
comunitário e o profundo respeito à biodiversidade ambiental, os jesuítas
do lado espanhol conseguiram construir e manter a Confederação das
Missões com a colaboração ativa dos guaranis por mais de 150 anos.
Excelentes professores, experientes no lidar com interesses opostos
e perseverantes semeadores de ideias e conceitos novos, os padres
souberam tirar proveito da extrema habilidade e talento para as artes,
a música e o artesanato dos indígenas convertidos. Treinamento e
disciplina, estudo e trabalho prático – requisitos do humanismo cristão –
transformaram-nos em partícipes da gestão das aldeias.
A meta maior dos missionários era garantir pleno emprego aos
habitantes dos povoados. Uma verdadeira obsessão era combater a
ociosidade, prevendo ocupação para todos, lazer criativo e dias de festa.
A mística religiosa com seu ritual esplendoroso, seus corais, a música
instrumental e a arquitetura monumental das igrejas com sua rica
ornamentação foram decisivos e determinantes para atrair os neófitos,
através do cenário espetacular das pantomimas e dos rituais sacros, à
conquista da civilização cristã e à universal utopia de felicidade.
Na verdade, os padres italianos, franceses, alemães, belgas,
escoceses, que ajudaram a criar e a desenvolver a República Guarani de
acordo com os padres espanhóis, não tiveram a intenção de se submeter
às ordenações reais. Em primeiro plano atuavam segundo os interesses
maiores e transnacionais da Companhia de Jesus. Só num segundo
momento procuraram acomodar-se e amparar-se, do melhor modo
possível, sob proteção real, já que lhes era favorável este apoio.
Os franciscanos, padres Luiz Bolaños e Francisco Solano,
conseguiram organizar um dicionário, uma gramática e um catecismo
guaranis antes da chegada dos jesuítas que, assim, tiveram sua tarefa
facilitada.
Os padres foram com frequência vítimas de injustas agressões que
tiveram de enfrentar com muita coragem e determinação. Até intrigas
envolviam os guaranis e os missionários acusados de cumplicidade com
98
Importância dos Jesuítas e o Legado das Missões
os bandeirantes. Os paulistas tentavam enganar os índios quando se
disfarçavam em hábitos jesuítas, atribuindo-lhes seus próprios crimes.
Na Província do Brasil, os inacianos, cada vez mais odiados, chegaram
a ser expulsos pelos colonos em Piratininga, Salvador, São Luiz e Belém.
Ameaças de excomunhão contra os escravocratas só exacerbaram os
ânimos da população do Rio de Janeiro que chegou a arrombar as portas
do Colégio e da Igreja dos jesuítas. Em São Paulo, apesar de sua firmeza, o
vigário-geral foi atacado durante a missa e ameaçado de morte. Édito real,
assinado em Madri e que exigia a libertação dos neófitos escravizados no
Brasil, não produziu efeito. A maioria dos colonos ostensivamente fazia
questão de enfrentar os jesuítas, as autoridades e o Rei.
A gestão compartilhada das missões concretizou-se quando os
padres aceitaram a autoridade dos caciques convocados para chefes de
setores. Como várias tribos se agrupavam na nova comunidade, a missão,
os serviços administrativos criaram diferentes funções que substituíram
e superaram as desempenhadas antes pelos caciques e fizeram surgir
uma elite não hereditária. Alguns caciques efetivamente exerceram
determinados cargos conforme sua experiência e capacidade. Em cada
missão havia às vezes mais de trinta caciques designados a exercer
algumas atribuições na administração.
Os guaranis aumentaram sua autoestima e confiança ao
conseguirem exercer a gestão de sua comunidade sem interferência
externa. Todas as decisões por eles tomadas eram fruto da vivência e da
real necessidade comum. A organização da produção e da distribuição
obedecia ao critério de priorizar o melhor aproveitamento dos recursos
locais disponíveis.
A ascensão aos cargos ocorria por competência e dignidade já que
não havia classes sociais nem privilégios. A partir de 1689, o Regulamento
das Missões estabelecia que as funções de justiça só poderiam ser exercidas
por homens maduros. Eleito o corregedor, geralmente por cinco anos, só
podia ser destituído pelo Superior. Caso fosse aprovado pela comunidade,
poderia permanecer além dos cinco anos. Os jesuítas detinham o poder
de veto e de conselheiros respeitados e acatados, o que não impedia os
guaranis designados de assumirem suas responsabilidades.
O “Livro das Ordenações” reunia regulamentos, leis e costumes
dos missioneiros cuja aplicação visava à prevenção da criminalidade e
dos distúrbios urbanos. Rondas periódicas e controle da disciplina eram
garantidos pelas patrulhas que vigiavam também à noite qualquer indício
ou ameaça de ataque de tribos hostis e dos paulistas. Os acusados de
algum crime ou delito tinham assegurada ampla defesa antes da aplicação
99
Miranda Neto
da pena que visava especialmente a reabilitação do infrator via terapia
ocupacional.
O medo das punições pesava menos do que as medidas preventivas,
o ambiente social, o exemplo dos mais velhos e das autoridades. Havia
ambiente e condições para a convergência de ações proativas num
verdadeiro círculo virtuoso – uma sinergia em benefício da comunidade: o
vigor da fé cristã garantia a ordem pública e a expectativa de recompensas
reforçava a virtude.
Os jesuítas insistiam na fidelidade dos neófitos ao Rei de Espanha a
fim de acalmar a desconfiança das autoridades coloniais que os acusavam de
criar império independente. A economia autônoma e próspera despertava
inveja e cobiça de paraguaios e platinos. Como vários jesuítas eram
italianos, franceses e alemães, cuja subordinação ocorria apenas dentro da
Companhia de Jesus, na verdade consideravam-se mais desvinculados do
poder colonial hispânico.
Entretanto, havia uma espécie de pacto secreto que unia os
interesses da Coroa e dos missionários sobretudo na defesa estratégica do
território já conquistado na América do Sul. Aliás, os colonos dependiam
mais do reforço militar dos guaranis armados do que estes da ajuda dos
paraguaios.
De fato, em diversas oportunidades, Assunção e Buenos Aires
deveram aos guaranis os reforços indispensáveis na defesa contra
os invasores assim como o cerco à Colônia do Sacramento tornou-se
irremediável graças à tática, à persistência e ao arrojo dos estrategistas
missioneiros.
Houve algumas tentativas de nomear corregedores espanhóis
para a administração das missões. Entretanto, nunca foram aceitos pelos
guaranis, ciosos de sua independência e liberdade. As tentativas em 1653,
1666 e 1705 fracassaram diante da firmeza dos neófitos em preservar sua
autonomia.
O maior mérito dos missionários foi manter razoavelmente em
bons termos as relações tanto com os poderes constituídos quanto com
os indígenas tendo sido, em grande parte, respeitados pela maioria, o que
demonstrou extraordinário talento político-diplomático.
O receio de os guaranis se armarem e, assim, constituírem ameaça
interna, foi superado pela necessidade de defesa contra invasores. Na
verdade, aquele cuidado das autoridades hispânicas apenas retardou
a providência mais racional e lógica de possibilitar melhores condições
de defesa e resistência aos ataques dos bandeirantes: reforço dos postos
avançados e importação de armas de fogo com suas respectivas munições
100
Importância dos Jesuítas e o Legado das Missões
que, em breve, seriam até produzidas localmente após a descoberta do
minério de ferro. O direito à legítima defesa tanto dos guaranis e jesuítas
quanto da própria obra missionária e seu patrimônio abrangia a construção
e a manutenção de verdadeira Confederação de Missões, guardiã de todo
um projeto socioeconômico-político-religioso.
De início, os jesuítas não tinham planos nem estavam preparados
para enfrentar inimigos com armas de fogo. Também não intencionavam
alimentar os instintos guerreiros dos índios. A organização administrativa,
social, econômica visava a fraternidade, o cooperativismo e a paz. Só após
os insistentes ataques dos bandeirantes, os missionários se convenceram
de que o único modo de se defender dos agressores era desenvolver táticas
evasivas, de se exercitar no manejo de armas de fogo e fortificar a missão,
que passou a ser guarnecida por um corpo de cavalaria (os guaranis eram
exímios na montaria) e um de infantaria. Entre 600 e 1000 animais de sela
eram preparados em cada missão. Fuzis, mosquetes, espadas, sabres,
macanás (porretes), arcos e flechas, fundas e lanças eram as armas utilizadas
na época.
Em pouco tempo, aperfeiçoando táticas de guerrilha, os
guaranis tornaram-se respeitados tanto pelos luso-brasileiros quanto
pelos hispânicos de Assunção e Buenos Aires. Houve batalhas em que
cerca de 20.000 combatentes, procedentes de oito a dez reduções, foram
mobilizados.
O Paraguai era pobre em minerais metálicos. Daí a necessidade
de importação de ferro para a fundição de canhões, fuzis, ferramentas
para a lavoura, equipamentos para a construção civil e o artesanato. Já no
século XVII descobriram-se e exploraram-se modestas jazidas de minério
de ferro. Com o padre Zea, passou-se a fabricar pólvora, armas de fogo em
diversas oficinas, armas brancas, munições em cada missão.
As batalhas foram terrestres e fluviais. A frota de embarcações
disponíveis foi decisiva para a vitória na batalha de Mbororé, afluente do
rio Uruguai em que os bandeirantes sobreviventes bateram em retirada
(1641).
Por outro lado, a rede fluvial (bacias do Paraná, Uruguai e
Paraguai), embora essencial para o transporte de carga e passageiros,
tornava as missões vulneráveis, pois facilitava o acesso do inimigo. Os
primeiros instrutores dos rapazes convocados para os exercícios militares
diários eram jesuítas, ex-oficiais na Europa, como o padre Antonio Bernal,
português, que teria sido militar antes de se tornar religioso. As missões
eram fortificadas por paliçadas, muralhas, fossos e armadilhas. Na paz, o
treino militar transformava-se em jogos e torneios esportivos.
101
Miranda Neto
Apesar da preocupação em bem utilizar o período laboral,
distribuindo tarefas entre os membros da comunidade ao longo do dia,
sempre sobravam horas livres para o lazer e a vida em família durante
o almoço e à tarde após a jornada de trabalho, além da quinta-feira, do
domingo e dos feriados.
A participação ativa em várias atividades – cerâmica, tecelagem,
horta doméstica, jardinagem – atestava a importância e o prestígio na
comunidade. Os jesuítas apenas criticavam a indulgência dos pais e a
pouca energia na educação dos filhos. Para eles, a disciplina, a ordem e a
boa divisão do tempo em tarefas úteis e proveitosas à comunidade eram
fundamentais. “O sino das reduções soava no coração dos guaranis um
pouco mais alegremente do que a sirene de nossas fábricas.19”
Todo tempo que sobrava após afazeres diários, naturais descansos
e periódicas festividades religiosas, os guaranis jovens dedicavam às
orações, à música, à dança, ao teatro, à pantomima, às competições, aos
folguedos – em que a comunidade se realizava durante os fins de semana
e feriados santos. O religioso e o profano mesclavam-se naturalmente sem
agredir nenhum cânone. Havia liberdade e espontaneidade.
De início, os rapazes aprendiam a ler, escrever e calcular. A
pedagogia jesuítica era inspirada pelas condições da população local
na época, dirigida à vida prática, utilitária, profissional de acordo com
as maiores necessidades da missão: artesanato, carpintaria, construções,
tecelagem, contabilidade (para futuros fiscais, controladores e
contadores). As moças se aperfeiçoavam em costura, bordados para
ornamentos sacros e profanos, além de roupas para festas e uso diário. A
frequência era obrigatória entre 7 e 12 anos de idade. Orações, catecismo,
leitura, interpretação completavam o programa escolar. A capacidade de
aprendizagem dos guaranis era louvada nas correspondências dos padres:
“sentidos apurados, memória extraordinária faziam com que copiassem e
imitassem com perfeição”.
A língua guarani predominava na comunicação diária nas aldeias.
Os missionários demonstraram grande domínio já que organizaram os
primeiros dicionários e traduziram textos bíblicos e livros de devoção
para o guarani. Cantos litúrgicos foram aprendidos pelas crianças. Livros
inteiros em guarani, em espanhol e em latim foram copiados à mão com
incrível apuro revelando o capricho e o talento dos neófitos. Contadores
minuciosos possibilitavam um controle contábil e uma fiscalização
eficiente que muito auxiliavam na organização e no planejamento da
administração pública.
19 LUGON, Clóvis. Op. cit.
102
Importância dos Jesuítas e o Legado das Missões
Aprendia-se a doutrina cristã na escola. O teatro e o canto
reforçavam o aprendizado. Alguns jesuítas revelaram-se exímios em
composição e regência, cativando seus jovens discípulos dedicados
à música. Além de pregadores, educadores, diplomatas, os padres
desempenharam também as funções de inspetores escolares ao avaliarem
periodicamente os progressos de seus alunos.
Desconfiava-se que os missionários preparavam uma “elite do
espírito e da sabedoria”. Na Congregação ficavam os jovens selecionados
pelo seu talento e suas inclinações para receberem uma educação especial
com disciplina, ordem, reflexão e meditação. No futuro – quem sabe? –
seriam sacerdotes, juízes, heróis.
A organização e a disciplina dos jesuítas induziram os guaranis
a se transformarem de imprevidentes e livres caçadores e coletores em
agricultores e criadores eficientes a fim de garantirem razoável alimentação,
vestuário e moradia. Os missionários introduziram novas técnicas
agrícolas com equipamentos metálicos (enxada, machado, pá, facão e
arado) e o criatório bovino e equino que revolucionaram o suprimento
alimentar (garantindo sua oferta crescente) das missões a partir de meados
do século XVII. Os guaranis aceitaram a nova regulamentação do trabalho
e organização do cotidiano, convencidos de que eram úteis e necessárias à
obtenção do objetivo maior: a sobrevivência em comunidade.
Os jesuítas nunca deixaram de se envolver em assuntos de política
colonial tentando influenciar as autoridades cujos segredos dominavam
através do confessionário. Conflitos originaram-se da relação entre a empresa
missionária e as diretrizes de gestão secular. De início, a orientação sugeria
diplomacia e administração de conflitos evitando a tomada de posição.
Entretanto, muitos missionários tomavam partido, contrariando interesses
coloniais que preferiam o distanciamento da Companhia dos assuntos de
política colonial espanhola e de suas relações com a política colonial luso-brasileira. Além de divergências dogmáticas e de objetivos pragmáticos, uma
empresa transnacional fatalmente teria outras metas, divergentes dos objetivos
coloniais dos grandes blocos econômicos da época, Portugal e Espanha.
A princípio, o sistema de aldeias enfrentou problemas. Como
habituar índios a conviverem com outros povos de várias procedências
e conseguir razoável harmonia e segurança na comunidade? Como
evitar que retornassem às aldeias de origem e à vida nômade e sem
compromissos de outrora?
As primeiras aldeias e escolas jesuíticas foram fundadas em
Piratininga (SP), em 1554, e na Bahia, em 1556, antes da chegada de Mem
de Sá que concedeu maior estabilidade aos colégios da Companhia. Em
103
Miranda Neto
1564, a escola da Bahia educava cerca de 60 estudantes e em 1568 mais
um colégio jesuítico era criado no Rio de Janeiro.
Com esta base educacional firmou-se um sistema que garantia
a reprodução da atividade missionária (além de conscientizar neófitos
para nova mundividência) diminuindo a dependência do envio de
jesuítas da Europa.
Como de início os padres só poderiam, pelos regulamentos da
ordem, ministrar educação de nível superior como resolver o problema
de educar as crianças (nível fundamental)? Só com a permissão do Geral
em Roma houve a possibilidade de estender a educação a todos os níveis
de ensino (os filhos dos colonos já recebiam educação elementar).
As dificuldades dos primeiros tempos desencorajava os jovens
missionários recém-chegados a se deslocarem para as aldeias. Eles
preferiam ministrar aulas nos colégios das cidades coloniais cujos
orçamentos eram mais flexíveis. Eles podiam possuir e administrar
propriedades produzindo recursos para utilizar na expansão do ensino. Já
a renda das casas jesuíticas era limitada pelo voto de pobreza dos irmãos.
A correspondência dos padres da Companhia nesta época
ressaltava a excessiva atenção dada aos temas seculares ligados à
administração dos colégios relegando a segundo plano a missão
evangelizadora e seus valores espirituais, que deveriam ser priorizados
já que eram a própria razão de ser da Ordem.
Subsídios oficiais mantinham os jesuítas no início da colonização.
Plantações de cana-de-açúcar nas terras por eles administradas
complementavam a renda dos colégios e da Ordem a partir de 1560, no
Brasil. Esta atividade era combatida pelo Provincial Luís de Grã, adepto
do voto de pobreza e que tentou proibir a posse dos escravos.
A expansão da atividade missionária exigia fontes mais regulares de
recursos, inclusive humanos, para manter o funcionamento mais autônomo
da missão (independente de fontes oficiais). Na Bahia, discutia-se se cem
escravos seriam suficientes à manutenção de sua escola.
Com habilidade, os missionários atribuíam à Igreja como um
todo a propriedade de terras doadas pelo Governador que às vezes eram
vendidas. De fato, nenhum jesuíta em particular detinha qualquer bem
imóvel, cuja propriedade sempre era registrada em nome da instituição
religiosa. Claro que, para produzir, era necessária a colaboração de mão
de obra, justificando a escravização dos indígenas ora pela “guerra justa”
(conferindo ao vencedor domínio sobre a vida dos vencidos), ora pela
“servidão consentida” quando os despossuídos aceitavam trabalhar
para alguém em troca de moradia e alimentação.
104
Importância dos Jesuítas e o Legado das Missões
A tese da “escravidão natural” dos índios, defendida por Juan
Gines de Sepúlveda, fazia parte de uma série de argumentos em defesa dos
direitos de conquista da Espanha e condenavam os neófitos “por pecarem
contra a natureza e a cristandade”. Justificava assim o direito dos colonos de
escravizá-los em decorrência de guerras de conquista. A própria condição
sub-humana dos pagãos justificaria sua submissão ao colonizador.
Para os índios, a “submissão voluntária” representava uma
busca de proteção, a fim de evitar a integração forçada às aldeias onde
teriam de se submeter à moral cristã. Nas fazendas podiam preservar
seus costumes desde que trabalhassem e fossem “bem mandados”. A
escravidão voluntária só se justificava por extrema necessidade.
Cedo os missionários perceberam o arraigado nomadismo e a
inconstância dos indígenas resultando na dificuldade de adaptá-los ao
cultivo da terra, à persistência na produção, ao planejamento e à poupança
a fim de vencer o extremo imediatismo e a compulsão à dispersão até para
morar.
Os índios ainda pagãos eram, segundo a voz corrente, “sem fé,
sem lei, sem rei”.
6.2 Relações entre Jesuítas Portugueses e Espanhóis
Apesar de a Missão do Paraguai, criada em 1607, estar subordinada
à Província Jesuítica do Peru, em várias oportunidades solicitou-se o envio
de padres da Província do Brasil. Até a ideia de unir as duas províncias
quase frutificou pelas dificuldades de comunicação e pelos constantes
ataques de bandeirantes, monçoeiros e aventureiros.
Afinal, as “missões volantes” da Província do Brasil prepararam o
terreno para instalação das reduções no Guairá, introduzindo no Paraguai
os métodos utilizados nas aldeias da Bahia. As “missões volantes”
prosseguiram no início do século XVII nas tentativas de contatar indígenas
no litoral de Santa Catarina e Rio Grande do Sul.
A influência do Padre Anchieta quanto à “catequese estável”
(aldeamentos fixos) foi decisiva. Dele é a “Gramática da Língua [então]
mais falada na costa do Brasil”.
A maioria dos navios espanhóis que vinha da Europa aportava ou
na Bahia ou no Rio de Janeiro para encaminhar os jesuítas através de rios
e caminhos – o peabiru20 era um deles – até o Guairá e o Paraguai. Outros
20 Extensa estrada de terra aberta pelos indígenas ligando o litoral Sudeste do Brasil ao Paraguai. Teria sido construída no
século XVI.
105
Miranda Neto
preferiam desembarcar em Buenos Aires, subir o Rio da Prata, o Paraná
ou o Uruguai e o Paraguai.
Principais Diferenças entre as Missões Jesuíticas
LUSO-BRASILEIRAS
1. Respeitavam limites nacionais
HISPÂNICAS
1. Transcendiam limites nacionais
2. Constante disputa entre colonos e 2.
Interesses
jesuítas
espanhóis
3. Mais fugazes
dominantes
eram
3. Mais duradouras
4. A Província Jesuítica do Brasil 4. A Província Jesuítica do Paraguai
(criada em 1606) admitia a cogestão
(criada em 1553) não admitia a
do gentio
cogestão do gentio
5. Dependentes do governo luso5. Autossustentáveis
-brasileiro
Fontes: Manuscritos da Coleção De Angelis. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1951 a 1969.
Havia divergências entre as duas orientações missionárias.
Nem sempre os jesuítas portugueses apoiaram seus colegas hispânicos.
Recomendações veladas e atitudes explícitas evidenciam certa omissão
e até conivência dos jesuítas luso-brasileiros com os interesses dos
colonos de Piratininga em relação à escravização do gentio e em apoiar
os bandeirantes contra os próprios missionários. Houve o caso do Padre
Antonio Ruiz de Montoya que chegou a ser solicitado pelos jesuítas do Rio
de Janeiro para que em seus sermões “tivesse o cuidado para não irritar os
colonos portugueses”.
Entre 1640 e 1682, os jesuítas tiveram de abandonar o Guairá, o
Itatim e o Tape, instalando-se na mesopotâmia entre os rios Uruguai
e Paraná. O primeiro foco de expansão foi o Itatim próximo ao rio
Paraguai.
As missões, localizadas em pontos estratégicos, foram úteis
na defesa da Província do Rio da Prata contra os portugueses que se
apropriaram do gado das missões. Havia necessidade de deter o avanço
luso para evitar invasões das missões da margem oriental do Uruguai.
O gado guarani foi dizimado: dele só se aproveitavam os couros que,
preparados, foram exportados para a Europa.
O governo português legitimava a conquista por meio da
doação de sesmarias. A partir de 1733, diminuiu a resistência guarani.
106
Importância dos Jesuítas e o Legado das Missões
O expansionismo luso-brasileiro seria, na visão do Prata, a causa das
dificuldades dos colonos espanhóis. Portanto, o rio Paraguai deveria
ter sua navegação controlada e as missões – com a respectiva milícia –
deveriam participar como postos avançados de defesa estratégica contra
o invasor e desestruturador do sistema colonial hispânico. As tropas
guaranis foram cruciais na fortificação e na defesa de Montevidéu nesta
ocasião (início do século XVIII).
Graças à sua receptividade e afinidade espiritual e cultural com os
jesuítas e à sua ação, ao mesmo tempo, prudente e audaciosa, durante 150 anos
construiu-se um contexto de experiência humana e religiosa sem paralelo,
permitindo aos índios ascender ao nível de cidadãos livres como os colonos
espanhóis e, sob vários aspectos, até mesmo culturalmente superiores a
eles. Entretanto, os detentores do poder civil e eclesiástico deflagraram
campanha internacional contra a Companhia de Jesus, provocando a brutal
expulsão dos padres em 1767. As missões, entregues a uma administração
corrupta e incompetente, entraram em decadência, no momento em que
filósofos do iluminismo elogiavam o sucesso da República Guarani como
exemplo de competência administrativa e econômica.
Os jesuítas não se deixavam iludir com a conversão dos indígenas:
sem a distribuição de machados e facas pouco se conseguiria. Por outro
lado, a mística e o ritual esplendoroso dos cultos religiosos, a música
instrumental, os corais com a participação dos jovens, as artes plásticas,
o artesanato e a arquitetura monumental dos templos e prédios de pedra
e calcário foram decisivos e determinantes no processo de integração
cultural.
A imagem e o caráter que os missionários edificaram aos olhos
dos índios facilitaram sua ascendência e influência chegando a competir
com as dos xamãs das tribos. Estes os consideravam concorrentes e rivais
que precisavam ser enfrentados e ridicularizados. Surgia assim mais um
obstáculo à obra evangelizadora.
A partir da fixação na aldeia, os missionários assumiram de fato
a administração geral do gentio: organizavam o trabalho e asseguravam
a submissão política ao poder colonial. Claro que tiveram de se adaptar
aos costumes e ao modo de vida, habituando-se à relativa solidão e
à dificuldade de manter a vida religiosa conforme sua identidade
jesuítica.
A estratégia do medo a fim de evitar mal maior estimulou e
agilizou a conversão do gentio. Os padres se transformaram em “heróis
civilizadores”. A redução seria o “espaço de salvação”. O conhecimento
da língua guarani e a simpatia dos caciques eram fundamentais. O que
107
Miranda Neto
deveras influiu na tarefa evangelizadora foi a grande vulnerabilidade
dos índios às novas doenças trazidas pelos colonizadores, às epidemias
causadas por falta de higiene e às crises de abastecimento pela má gestão
e desperdício de recursos ciclicamente abundantes (imprevidência e má
divisão do trabalho e do tempo disponível). A introdução de sementes
e ferramentas europeias foi decisiva, criando toda uma nova tecnologia
produtiva, uma verdadeira revolução cultural.
A nova divisão racional do trabalho provocou mudança
socioeconômica, sob orientação e coordenação dos jesuítas, que detinham
o controle tecnológico da produção diversificada, utilizando ao máximo
os recursos locais disponíveis.
O poder coercitivo da religião possibilitou a produção em áreas de
exploração coletiva Tupambaé, sobretudo nas grandes extensões que geram
oferta excedente comercializável após atender à demanda das famílias, dos
órfãos e viúvas, anunciando na prática a concretização do mito indígena
da “terra sem males”. A fé e a obediência aos preceitos morais e religiosos
garantiriam o usufruto da eterna felicidade e bem-estar.
Os próprios padres, tendo sido carpinteiros, ferreiros, músicos,
arquitetos, artesãos e artistas plásticos foram, sem dúvida alguma,
competentes mestres dos índios que rapidamente assimilaram novas
técnicas e conhecimentos agronômicos, acrescentados à milenar tecnologia
autóctone. As noções de Bem e Mal, recompensa e castigo, impregnaram o
comportamento e as práticas sociais, incluindo o pecado como norteador
do comportamento humano.
Apesar das frequentes perdas de vidas humanas, os jesuítas
regozijavam-se com as almas recém-conquistadas através da evangelização,
pois os guaranis mostraram-se extremamente místicos desde os xamãs
através dos rituais nativos expressos no canto e na dança. Seu misticismo
adaptou-se aos novos tempos. A transformação cultural procedeu-se de
modo sutil e profundo, cooptando os caciques e os xamãs, despreparados
para enfrentar as grandes epidemias exacerbadas pelo contato com os
brancos. Teria sido a necessidade de colaboração e auxílio emergencial,
cada vez mais frequente, que forçou uma tolerância e assimilação cultural
e tecnológica, útil às duas vivências.
Havia uma espécie de tutela educacional dos missionários sobre
a elite indígena. A própria organização e desenvolvimento das missões
propiciava uma educação popular através do trabalho comunitário
e em grupos ou equipes. O exemplo prático disseminou a tecnologia
no beneficiamento da erva-mate, do couro e do algodão, construiu
instrumentos musicais e relógios, desenvolveu a escultura, a pintura, a
108
Importância dos Jesuítas e o Legado das Missões
gravura e a arte da confecção de retábulos21, fabrico de sinos e ferramentas
agrícolas e de carpintaria. Foi um grande esforço de aprimorar um
verdadeiro ensino profissionalizante para elementos selecionados da elite
jovem indígena. Recitação e repetição pontuavam o ensino da doutrina
cristã através das crianças.
As missões eram espanholas na organização externa (ruas e
quadras) e guaranis na organização social interna. Grandes casas comunais
sob a liderança dos caciques foram mantidas e preservadas.
Conforme Arno Kern, a Confederação das Missões não constituiria
nenhuma experiência política totalmente autônoma. Provinciais e
procuradores da Companhia de Jesus conseguiram benefícios para
reduções, tornando-as mais independentes do controle das autoridades,
pois estas tinham interesse em preservá-las como postos avançados
na fronteira das possessões espanholas. Entretanto, havia vínculo de
dependência com Madri e Roma, conciliando interesses e orientações dos
superiores da Igreja e da Coroa.
A Confederação das Missões estava coesa pela segurança coletiva
e integração econômica dos povoados localizados em frentes de expansão
da colonização ibérica. Com a expulsão dos jesuítas, colégios, seminários,
reduções, fazendas, estâncias, chácaras, moinhos e outros bens móveis e
imóveis sofreram forte ruptura e decadência.
Teriam os jesuítas espanhóis usado de sua influência junto aos
colegas luso-brasileiros para tentar conciliar os interesses dos colonos e
do Reino? E das potências ibéricas entre si e em relação aos indígenas?
Os invasores (bandeirantes e tribos belicosas) utilizavam feiticeiros
indígenas, travestidos de padres, para imitarem rituais cristãos com
grupos de neófitos a fim de facilitar sua entrada e atuação nas missões (e
suas instalações) sem despertar suspeita.
Alguns guaranis resistiram às frequentes mudanças e transferências
e, vítimas de intrigas contra os jesuítas, chegaram a matá-los mesmo após
batizados por eles. As intrigas relacionavam os padres a negociações com
os colonos espanhóis e até com luso-brasileiros a fim de escravizá-los
posteriormente. Os inacianos teriam agrupado o gentio em aldeias para
melhor traí-lo, facilitando a ação dos invasores.
Os jesuítas portugueses e espanhóis possuíam os mesmos objetivos
gerais de superação dos vínculos nacionais. A expansão das missões no final
do século XVII coincidiu com a vinda de jesuítas de origem germânica de
grande talento e capacidade de trabalho. Na verdade, a Assistência Alemã
da Companhia de Jesus incluía suíços, tchecos, austríacos e poloneses.
21 Retábulos: painéis que decoram o altar.
109
Miranda Neto
A redução de Juli, no Peru, precursora em 1576 do modelo Missão,
dispôs desde o início de qualificados, interessados e diligentes jesuítas
(quatro sacerdotes e mais três irmãos coadjutores), visitados pelo provincial
José de Acosta e pelo padre Montoya. Eles dominavam a língua e os costumes,
atuavam coordenados em missões centralizadas (radiais) com escola de
qualificação (seleção) de meninos, organização da caridade e objetivavam a
extirpação dos pecados e vícios públicos (idolatria, bebedeira).
Os índios eram considerados pelos jesuítas necessitados de
contínua orientação e organização. Sua pureza em estado bruto precisava
ser lapidada e disciplinada. Inocência e sensibilidade receptivas a estímulos
externos que fizessem despontar seus talentos e potencialidades artístico-culturais sob uma pedagogia de convivência, respeitando e tolerando as
diversas mundividências. O Padre Geral Cláudio Acquaviva recomendou
ao Padre Juan Romero seguir linhas gerais do modelo com dois padres em
cada missão, e intensa qualificação dos habitantes.
A defesa militar das províncias do Paraguai e do Prata ficou cada
vez mais entregue ao “exército guarani-missioneiro” cujo treinamento
com arcabuzes, mosquetes, escopetas e flechas era realizado no campo
e na praça principal, local dos desfiles comemorativos. A milícia guarani
possuía sua própria hierarquia: capitão – alferes real – alferes mini –
comissário – mestre de campo – sargento-mor. Capitães de infantaria –
tenentes-alferes-de cavalaria – sargentos de cavalaria e ajudantes.
Ataques dos bandeirantes em Guairá, cerco dos ingleses a Buenos
Aires e dos guaicurus a Assunção apressaram a estruturação e organização
da ação militar.
As milícias guaranis favoreceram a integração territorial da região
para o domínio espanhol. O fato de haver inimigos comuns facilitou a
coesão e a união internas. A Batalha de Mbororé, em 1641, foi emblemática
para a vitória estratégica e política do exército guarani.
Por ocasião da fundação das primeiras missões no Paranapanema,
os guaranis lutavam contra o domínio espanhol, desconfiavam da estratégia
dos missionários e contestavam a liderança dos padres que, em várias
oportunidades, tiveram de se socorrer com o auxílio de colonos e soldados
para defendê-los de caciques e xamãs hostis. Alguns destes chegavam a
repudiar a presença dos padres em sua área. Mas lentamente os jesuítas
conseguiram impor sua liderança, cooptando caciques influentes sempre
chamados a opinar sobre decisões importantes como a própria escolha do
sítio para a edificação da redução.
Segundo Regina de Almeida, da UFF (Universidade Federal
Fluminense), as aldeias indígenas criadas pelos jesuítas não foram efêmeras
110
Importância dos Jesuítas e o Legado das Missões
nem apenas espaço de dominação e imposição cultural dos padres sobre os
índios. Vivenciaram uma experiência nova que, além das perdas, oferecia-lhes
condições de sobrevivência no mundo colonial. Apesar da alta taxa de
mortalidade, a política missionária colocava os neófitos numa condição
jurídica específica, atribuindo-lhes não só obrigações, mas também alguns
direitos por eles defendidos com tenacidade até o início do século XIX. Os
próprios índios demonstraram o propósito de se manterem na condição de
aldeados. Nas missões, os índios ressocializavam-se e vivenciavam intensos
processos de transformações. Tensões, conflitos e negociações marcaram o
cotidiano habilmente conduzido pelos jesuítas que lhes ensinaram (assim
como aprenderam) práticas e tecnologias numa dialética integradora-transformadora na busca de um melhor desempenho da comunidade como
um todo. Os indígenas foram, portanto, ao lado dos missionários, igualmente
sujeitos do processo de mudança que também lhes interessava pois lhes
conferia instrumental indispensável à sobrevivência na nova realidade, o qual
utilizavam em seu próprio benefício. Documentos comprovam que, de modo
geral, os aldeados assumiram, conscientes e orgulhosos, sua nova identidade: a
de súditos cristãos de Sua Majestade.
Paulo de Assunção, da USP (Universidade de São Paulo),
assegura que a Companhia de Jesus interagiu com o sistema produtivo
colonial e utilizou-se do mesmo na produção de gêneros, manufaturas
e criatório para a manutenção dos colégios, das residências e das aldeias
missionárias. Relacionava-se com produtores, comerciantes, lavradores
e escravos adotando práticas coloniais dos senhores de engenho nem
sempre aprovadas, porém, consideradas necessárias à sobrevivência
econômico-financeira da entidade.
A maior dificuldade era lidar com a natural indolência e o
comodismo dos neófitos. Desacostumados ao trabalho regular de qualquer
tipo, desesperavam-se com o ritmo laboral europeu. Daí a instituição do
sistema semicomunal na agricultura e nas obras públicas que marcaram
as atividades jesuíticas na América.
Quanto mais isoladas as missões tanto mais puro o sistema
autossustentável por absoluta ausência de outras opções viáveis.
“Marotos astutos”, assim eram por muitos chamados os missionários
devido às engenhosas saídas pragmáticas para os problemas enfrentados
no dia a dia, como quando preparavam o terreno para grandes obras e
plantações comunitárias pois os índios, por si, apenas ocasionalmente
cultivavam o suficiente para suas necessidades mais imediatas. Se foi a
melhor opção para a felicidade do gentio – essa é outra questão. O certo
apenas é constatar que, sem a estrutura econômica e administrativa da
111
Miranda Neto
Confederação das Missões, teria sido impossível desenvolver o modelo
autossustentável e coparticipativo bem-sucedido da República Guarani.
As missões jesuíticas devem ser consideradas fundamentais para se
compreender a atual situação socioeconômica, cultural e política dos países
do Cone Sul: Paraguai, Argentina, Uruguai e Brasil (sobretudo dos estados
do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul). Muito embora os colonos
na época quisessem a proximidade entre as missões e os núcleos urbanos,
os jesuítas tentaram evitar o erro cometido no Norte do Brasil, onde os
indígenas se tornaram vítimas fáceis dos mercadores de escravos. No Sul, os
missionários defenderam com ênfase o modelo de segregação relativa a fim
de resguardar os recém-convertidos do contato com os brancos.
Qual o suporte econômico-ecológico que garantiu a sustentação
do modelo?
Supervisores eleitos pela comunidade controlavam as atividades
urbanas e rurais fiscalizando, recomendando, sugerindo, corrigindo,
premiando, penalizando. Combatia-se a ociosidade “para evitar que os
preguiçosos vivessem à custa dos aplicados” e para solidificar a união dos
assíduos e esforçados. Os próprios trabalhadores interessavam-se na mais
justa divisão de tarefas e distribuição de responsabilidades. Aprovações,
incentivos, elogios dos padres ao trabalho bem executado encorajavam
os neófitos a cumprirem metas de desempenho. Cantorias acompanhadas
por flauta e tambor alegravam as manhãs na missão. O espírito de equipe
manifestava-se tanto nos afazeres como no lazer, nos esportes, nos jogos,
nas disputas – a maioria efetuados em grupo. Desde cedo, as crianças eram
encaminhadas a um ofício cuja aprendizagem era rigorosamente cobrada.
O princípio mais seguido era: “de cada um segundo sua
capacidade; a cada um segundo seu desempenho e suas necessidades.” A
comunidade devia assegurar a todos as condições ideais para aprimorar
sua qualificação. Todos usufruíam de modo equânime da prosperidade
comum e da tranquilidade de uma assistência educacional e de saúde.
A eficiência da administração era garantida pela atuação de
contadores e fiscais que acompanhavam a economia urbana e rural.
Idosos, doentes, viúvas e órfãos eram mantidos pela comunidade, mas
sem a multiplicidade ineficaz de obras aviltantes de beneficência.
Ninguém precisava dar esmola já que não havia pobreza nem miséria.
Portanto, não se deixava espaço para a malandragem e a mendicância. Ao
contribuir para a saúde e qualidade de vida, as medidas de prevenção
evitavam a posteriori a necessidade de remediar erros e problemas.
112
Importância dos Jesuítas e o Legado das Missões
6.3 Pedagogia da Alternância
Os jesuítas incentivaram o que hoje conhecemos como “pedagogia
da alternância”: devido à sazonalidade da produção agrícola, as crianças
alternavam as semanas em que trabalhavam na roça com os pais e aquelas
em que estudavam e completavam o aprendizado, frequentando a escola
e as oficinas de artesanato e manufaturas no núcleo urbano. Participavam
também das tarefas cotidianas de limpeza, organização e manutenção do
próprio colégio. Os pais participavam da gestão escolar e aprendiam as
novidades da tecnologia rural com seus filhos, aperfeiçoando métodos de
trabalho. Este acompanhamento sistemático era vital para a eficácia do
efeito multiplicador e dinamizador da autoestima e da coparticipação em
novos paradigmas de desenvolvimento sustentável.
A nobreza de atitudes e a superior cultura e personalidade dos
missionários eram reconhecidas pelos guaranis que lhes conferiram
autoridade e credibilidade fundamentais à governabilidade das
povoações. A afeição, o respeito e a fidelidade dos neófitos aos padres
despertaram a atenção dos visitantes e cronistas viajantes dos séculos
XVII e XVIII. Mas a abnegação e dedicação heroicas eram indispensáveis.
Até 1764, cerca de trinta sacerdotes perderam a vida em pleno exercício
missionário, deixando obras e realizações que marcaram o exemplo de
vida para várias gerações.
O que chama a atenção, quando se analisa a experiência da Confederação
das Missões, é a extraordinária harmonia no relacionamento entre jesuítas e
guaranis. O grau de comunicação de objetivos comuns e de entendimento não
encontra paralelo em nenhuma outra tentativa de colonização missioneira.
O espetacular e duradouro processo de desenvolvimento regional integrado,
alcançado durante mais de século e meio em uma área de cerca de 500.000 km²,
constitui evidência suficiente do sucesso do modelo. Apesar de alguns revezes,
de repetidas guerras e inúmeras dificuldades, a persistência, as reconstruções
e transferências provaram haver metas definidas e uma tenaz vontade de
concretizá-las, vencendo todos os eventuais obstáculos. De início, os guaranis
– alguns deles – resistiram e falharam, mas a simplicidade, a fé, o desinteresse
pelos bens materiais, a união e a caridade a tudo superaram. A República
Guarani concretizou uma das mais belas propostas da obra missionária em
todo o mundo.
As instituições criadas desempenharam um papel fundamental
no êxito da Confederação das Missões. O sistema de propriedade
coletiva dos meios de produção e a equânime distribuição dos bens e
serviços produzidos viabilizaram a paz, a fraternidade, a solidariedade,
113
Miranda Neto
a harmonia. Tornaram até mais efetivo o fervor religioso e o humanismo
cristão, demonstrando na prática que o interesse individual pode coincidir
com o bem da coletividade. Aparentemente não havia contradição entre
a fé de cada um, a pregação religiosa e a prática das relações econômicas
baseadas na justiça social e na ética.
6.4 Mão de Obra
Valores e elementos materiais da sociedade ocidental europeia da
época foram implantados pelos jesuítas. Alguns iam sendo aceitos e até
desejados pelos guaranis, outros condicionavam a libertação do “serviço
pessoal” e da escravidão (vassalagem ao Rei espanhol, pagamento de
tributo e instalação do Cabildo segundo modelo hispânico).
Cada missão reunia várias tribos em uma mesma comunidade
onde elementos culturais e tecnológicos guaranis coexistiam com
elementos cristãos ocidentais que, aos poucos, incentivaram a introdução
de novas formas de produção utilizando a enxada, o arado e outras
ferramentas de ferro, formas artísticas e arquitetônicas que culminaram
na construção de templos do “barroco missioneiro” e rituais católicos
adaptados ao cotidiano indígena – tudo sob economia mais produtiva e
outra organização sociopolítica.
As missões religiosas constituíram um esforço de gerar um campesinato
indígena sedentário como base para a colonização através da auto-reprodução
de uma mão-de-obra em princípio livre (embora forçada ao trabalho por
disposições legais e pela coação), a que teriam acesso os próprios religiosos,
o governo e os colonos, segundo certas regras22.
As relações entre índios e brancos deterioraram-se quando os últimos
começaram a obrigá-los aos trabalhos agrícolas. Como não aceitavam a
escravidão, constituiu-se o mito da incompatibilidade do gentio com a
agricultura e da “preguiça da raça”. Na verdade, os índios não entendiam a
necessidade de se trabalhar duro para além das necessidades de subsistência.
Não tendo qualquer antecedente de trabalho agrícola intensivo, resistiam
fortemente às imposições de um trabalho contínuo, o que lhes valeu a pecha
de “preguiçosos”, atribuída pelos que tentavam escravizá-los23.
22 23
CARDOSO, Ciro Flammarion. “O Trabalho na Colônia” in LINHARES. História Geral do Brasil. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008.
SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. “Conquista e Colonização da América” in LINHARES, op. cit.
114
Importância dos Jesuítas e o Legado das Missões
Os guaranis participaram ativamente como força de trabalho
especializado em tarefas manuais, serviços de guerra, transporte, agropecuária
e abastecimento. As missões, como centro de formação e capacitação de mão
de obra, qualificavam centenas de guaranis para o trabalho regular. Foram
fundamentais para a construção e o desenvolvimento da cidade de Buenos Aires,
por exemplo, viabilizando-a como núcleo colonial rio-platense, pós-expulsão
dos jesuítas e decadência do sistema missões, quando elevada à condição de
sede do vice-reinado do Rio de Prata (1776)24.
Basicamente, os espanhóis não pretenderam alterar a agricultura
dos guaranis. Apenas introduziram implementos e novas espécies
vegetais e animais. Aliás, um dos critérios para emigrar para as Índias era
a experiência na lavoura. Facilitava-se a aquisição de sementes e mudas
de plantas que sofriam rigorosa seleção conforme sua adaptabilidade ao
novo ambiente. Os animais para o criatório também eram escolhidos.
A convivência entre espanhóis e índios não parece ter alterado a
rotina diária dos últimos, pois o solo continuou sendo seu celeiro. Dele
não retiravam mais raízes e tubérculos do que necessários para aquele dia
e só utilizavam a quantidade de milho suficiente ao preparo dos pratos
programados. De regra, não planejavam acumular provisões para o ano e
viviam com grande simplicidade sem possuir objetos de valor.
Ao final de 1611, as ordenações de Álfaro estabeleciam distância
mínima de meia légua entre as missões indígenas e as chácaras e povoados
espanhóis, assim como as estâncias de gado bovino e equino das missões
antigas cerca de légua e meia, enquanto que as de gado menor, meia
légua, sob pena da perda da estância e da metade do gado encontrado.
Aquele que ousasse entrar em território indígena podia ser morto sem dó
nem piedade. Exigiam também que as missões separassem um terreno
contíguo com uma légua de largura onde pudessem criar seus rebanhos
sem contato com os dos espanhóis.
Dois jesuítas destacaram-se de início: o padre Roque González
de Santa Cruz que doou seus vinhedos ao colégio de Assunção ao entrar
para a Companhia de Jesus e o irmão Juan de Cárdenas, industrioso em
vários ofícios, que se especializou em fabricar barris para guardar mel de
cana. Ambos estavam conscientes do poder multiplicador do intercâmbio
de conhecimentos e ofícios. As obras escritas pelos jesuítas nos séculos
XVII e XVIII adaptaram conhecimentos acumulados dos próprios índios,
comprovados empiricamente.
Sem dúvida, este processo dialético contínuo tornou-se fundamental
para a formação técnica. A tecnologia daí resultante tornou-se apropriada
24 NEUMANN, Eduardo. O Trabalho Guarani Missioneiro no Rio da Prata Colonial, 1640-1750. Porto Alegre: Martins, 1996.
115
Miranda Neto
ao desenvolvimento rural. A produção de carne, leite, laticínios supria,
em épocas de crise de produção agrícola, o déficit alimentar temporário.
A maior contradição neste processo socioeconômico foi aceitar-se
a escravidão de africanos enquanto não se tolerava a do indígena em parte
dizimado. Tentava-se justificá-la pela necessidade de braços para a lavoura,
mas, na verdade, encobria sobretudo o interesse de favorecer o monopólio
do tráfico exercido pela Companhia Geral (do Comércio) do Grão-Pará e
Maranhão, principalmente após a expulsão dos jesuítas, pelo Marquês de
Pombal, dos domínios luso-brasileiros. Na verdade, a política pró-indígena
viabilizou-se na prática com o tráfico de escravos africanos.
O envolvimento de missionários com práticas escravistas maculava a
imagem da Companhia de Jesus. Aos próprios jesuítas repugnava o fato de
precisarem de escravos africanos, aliás, por eles já bem utilizados na época.
116
VII - A Utopia Possível. Fim de um Sonho?
Muito embora os guaranis aparentemente não demonstrassem
nenhum sentimento de nacionalidade, sua ligação com o lugar de origem
era intensa. O Tratado de Madri estabelecia a entrega do território dos
Sete Povos antes da Colônia do Sacramento, o que aumentava ainda mais
a resistência ao seu cumprimento. A esta altura, os espanhóis não estavam
mais apoiando os jesuítas – acusados de os impedirem de negociar
diretamente com os índios – cujas missões teriam privilégios comerciais
que prejudicavam os interesses dos colonos. Apesar de, na ocasião, o
Tratado ter sido impopular na Espanha, em Buenos Aires era visto como
uma oportunidade de tirar vantagens sobre a economia das missões.
Dizia-se que os jesuítas teriam criado um Estado independente. O
único artigo de fé infundido nos guaranis teria sido o ódio à Espanha e a
Portugal, intensificando as calúnias que culminariam com a expulsão dos
inacianos. As piores acusações eram as de que os indígenas tinham sido
mais escravizados nas missões do que sob os colonos. E de que os luso-brasileiros teriam pagado aos missionários elevada importância para
ficarem com os Sete Povos. Esta última intriga quase sacrifica a vida dos
padres nas mãos dos próprios guaranis. O que não se concretizou pelo
espírito de unidade alimentada pela fé cristã concedendo aos neófitos a
graça das crianças, uma pureza repleta de candura. A devoção ingênua e
entusiasta afastara o ódio e o rancor.
Apesar de serem missivistas atuantes, os superiores em Roma ignoravam
a real situação. A dificuldade de comunicação nas enormes distâncias através
117
Miranda Neto
de precários meios de transporte e as frequentes interceptações das autoridades
luso-brasileiras explicam a demora nas decisões em socorro dos jesuítas e dos
guaranis. Acresce que a propaganda antijesuítica na Europa começava a surtir
efeito. Muitos consideravam a Utopia Guarani apenas uma capa para encobrir
ambições e propósitos ocultos.
A Companhia de Jesus seria julgada na Europa pelo
comportamento e pelas atitudes dos missionários no Paraguai. Estes se
reuniram em São Miguel, em 2 de abril de 1751, para responder à proposta
de adesão incondicional ao Tratado. Reconheceram a impossibilidade de
se transferirem todos os habitantes com seus equipamentos e utensílios
para a outra margem do rio Uruguai (carta de 14 de abril de 1751 enviada
pelo padre José Quiroga ao Conselho das Índias e ao Ministro-chefe do rei
Fernando VI da Espanha), em área desprovida de alimentos e moradias.
Caso a permuta se concretizasse logo, o contrabando – interessante
aos ingleses – iria aumentar pois, ao invés de utilizarem apenas a Colônia
do Sacramento, teriam agora sete entradas liberadas às mercadorias ilegais.
Por outro lado, como os jesuítas lideravam índios armados e equipados,
esta circunstância deixava a suspeita de que escondiam imensos tesouros.
Os espanhóis teriam de construir no Uruguai e no Paraná uma
linha de fortificações para deter o avanço dos luso-brasileiros que, ao
dominar os cavalos das estâncias, dar-lhes-ia um aumento extraordinário
do seu raio de ação bélica e ameaçaria as minas de Potosí.
Preparativos militares denunciavam a intenção de tomar os sete
núcleos à força. E, uma vez de posse deste território, nada impediria os
luso-brasileiros de prosseguir o avanço. As missões remanescentes, mesmo
não diretamente atacadas, dependiam das estâncias e sua economia
entraria em colapso com a perda dos ervais e das florestas ainda plenas
de rica biodiversidade. Além de tudo, o controle estratégico estaria com o
inimigo. Da venda da erva-mate dependia grande parte das compras de
insumos, implementos e armas. E tornava-se inviável transferir o gado
através de montanhas, rios e pântanos sem expressivas perdas.
Se os guaranis tivessem de entregar todos os ativos a seus antigos
inimigos, voltariam as armas contra os próprios espanhóis, a confiança
nos missionários estaria abalada e a paz comprometida. Os jesuítas teriam
dificuldade de se livrar da suspeita de serem aliados tanto da Espanha
quanto de Portugal e de enganarem os autóctones utilizando-os apenas
como massa de manobra para seus verdadeiros objetivos. Na verdade, a
fé cristã alimentara o espírito fraternal de amizade e igualdade, reduzindo
ao mínimo o sentimento de coerção, desarmando qualquer desconfiança
ou ressentimento.
118
A Utopia Possível. Fim de um Sonho?
Além do mais, pior época não poderia haver para esta forçada
migração. A pequena colheita nas missões a Oeste (para onde teriam de
se deslocar) só conseguira abastecer a própria população. Como iriam
sobreviver as famílias durante o período de construção de suas novas
moradias e a germinação e desenvolvimento das sementes plantadas?
Nunca será demais recordar que os guaranis sempre apoiaram até
com armas – quando solicitados a defendê-los – os espanhóis contra os
portugueses e agora se sentiam traídos. Portanto, como se poderia cumprir
um tratado tão contrário às leis da natureza, de Deus, da Igreja e do Estado?
A única reação admissível seria resistir ao máximo contra a demarcação das
fronteiras-limite.
Os missionários já haviam demonstrado a habilidade de adaptar
os costumes guaranis às tradições cristãs pouco a pouco. Apesar de
contestados e desacreditados, a princípio, os jesuítas conseguiram, com
coragem e persistência, impor aos poucos sua ética e moral, demonstrando
competência na administração, organização e racionalização da vida
nas missões, o que conseguiu construir seu poder na comunidade e
desenvolver as atividades produtivas autossustentáveis. E a executar,
em 1631, a maior operação de deslocamento de 2.500 famílias rio Paraná
abaixo em comboios de cerca de setecentas canoas, jangadas e barcos
especialmente construídos e que envolveu formidáveis procedimentos
de logística ao planejar o abastecimento de 12.000 pessoas durante vários
meses em sítios ao abrigo dos bandeirantes e índios hostis.
A evangelização pretendia substituir o “nada” (as crenças
indígenas) pelo “tudo” (a fé cristã), o bem comum. Na sociedade tribal
não existia a noção de pecado. O batismo era o primeiro passo simbólico
do “ritual de passagem” para o recém-convertido cristão libertar-se da
existência anterior. Os missionários insistiam em acompanhar, através de
catequese sistemática, os guaranis batizados para não retornarem à vida
tribal.
A preparação das crianças para a crisma e a eucaristia possibilitava
aos padres incutirem nos neófitos as verdades em que acreditavam.
A proposta consistia em transformar a conquista espiritual em atuação
prática contínua de militância cristã. A conversão do gentio explicitava
o sentido de evangelização nas Américas. Imperceptivelmente o índio,
ao receber o missionário, estava abandonando o modo de vida tribal
que foi substituído pelo “ser cristão na missão”. Ao se converter pagãos
em cristãos, uma nova concepção de mundo surgia nesta transição sem
precedentes na história dos povos indígenas. A ambição dos jesuítas era
converter os indígenas em cristãos e estes em apóstolos leigos através do
119
Miranda Neto
amor expresso em obras que contribuíssem à melhoria da qualidade de
vida da comunidade e à convivência pacífica entre diferentes grupos de
interesse.
O poder era exercido pela persuasão de ideias, o que, na verdade,
representava uma forma insidiosa de violência simbólica e oculta, pois,
os valores dos cristãos aos poucos passavam a prevalecer sobre os valores
ameríndios. Em sua primeira fase, a catequese itinerante, indo atrás dos
índios onde eles estivessem, provou ser ineficiente. A solução seria tentar
agrupá-los em novos sítios sob supervisão de um jesuíta, o que resultou
nas missões ou reduções, pois a ideia era transferi-los de local e transformar
os autóctones em cristãos ao obrigá-los a romper com sua tradição tribal,
requisito para uni-los à comunidade cristã ocidental. Portanto, a missão
consistia no aldeamento de indígenas convertidos.
A encomienda regulava o trabalho coletivo. O colono tinha o dever
de pagar tributo à Coroa espanhola e o direito de usufruir da mão de obra
indígena na lavoura e nas obras desde que providenciasse assistência
material e religiosa o que, de fato, caracterizava, na realidade, uma
escravidão disfarçada. As Leis das Índias regulamentavam os interesses
da Metrópole sobre as terras “saudáveis” ou férteis da América e os do
gentio que deveria tornar-se cristão e produtivo para gerar excedentes.
Em 1542, foi criado o Vice-Reinado do Peru que pretendia integrar o
índio ao sistema colonial espanhol, exigindo fidelidade à fé católica e ao Rei
de Espanha, o que significava a destruição da vida tribal. Em 1556, Domingo
Martinez de Irala repartiu as terras do Paraguai entre os colonos, conforme
a legislação, em área da comunidade e de particulares definindo respectivos
limites: 320 encomiendas foram criadas a fim de aumentar a produção de
erva-mate. Aliás, o sistema prosperava com os excedentes produzidos pelas
comunidades indígenas para pagar tributos à Coroa e providenciar a defesa
estratégica e a formação religiosa. Os encomenderos gerenciavam o processo
de expropriação que beneficiava as elites castelhanas.
A missão possibilitou ao índio usufruir de espaço mais amplo
em organização político-administrativa que lhe permitia certa unidade
inserida na Cristandade Ocidental e contida no Estado monárquico
espanhol. Portanto, a missão garantia a continuidade geográfica do
Império Colonial Espanhol. Os missionários tentavam obter o máximo
de uniformidade e continuidade entre as várias missões, estabelecendo
linhas de comunicação e suprimento regulares.
Os povoados possuíam livros de batismos, casamentos e óbitos
cujos dados forneciam elementos para as estimativas demográficas da
região das missões desde 1643. A Igreja assumia funções de cartório. As
120
A Utopia Possível. Fim de um Sonho?
Cartas Ânuas e os relatórios das visitações dos padres completavam as
fontes para os principais dados estatísticos.
A missão implicava na sedentarização do guarani na comunidade
e na construção da “família missioneira”. Os jesuítas insistiam na
necessidade do casamento monogâmico e, para evitar a concupiscência
e o incesto, tentavam antecipar a idade das uniões. As relações sexuais
eram legitimadas pela relação social criada, gerando os direitos e as
responsabilidades da paternidade instituindo a linhagem patrilinear. O
domicílio era o do pai e marido, a partir daí zeloso da assiduidade à missa
aos domingos, da confissão pessoal, do compromisso de não embriagar-se,
que passaram a ser consideradas obrigações legais.
A família se originava do sacramento do matrimônio. O marido
detinha mais poderes do que os demais membros e os netos podiam
coabitar o domicílio, o fruto do trabalho provinha do Abambaé (terreno
particular) e também do Tupambaé (área coletiva) onde todas as famílias
trabalhavam em conjunto.
O casamento cristão constituía um rito de passagem assim como
o batismo e a confirmação: ato social e secular. A união monogâmica
indissolúvel era necessária ao êxito social da missão ao incorporar o
guarani ao sistema colonial espanhol.
Apesar de combaterem a concupiscência e as uniões fora do
casamento, os padres viam com bons olhos a fertilidade das índias e o
rápido crescimento populacional que aumentava o rebanho de Cristo.
Tanto que, entre 1643 e 1682, as novas almas a serem doutrinadas – os filhos
dos fiéis – mantinham constantes as taxas de aumento demográfico.
A doutrina Cristã era diariamente ensinada ao lado de ler, escrever,
cantar, tocar um instrumento. Havia controle disciplinar sobre a formação
infantil e estímulo a novas vocações. O processo missionário também se
sustentava em uma sucessão de ritos sacros como o batismo, a confirmação,
a confissão, a penitência e o casamento. Eles aumentavam o controle social
da comunidade pelos missionários jesuítas. A paz evangélica era obtida
com penitência, reconciliando membros da coletividade entre si e com o
sobrenatural. O arrependimento levava à remissão dos pecados.
A aliança Estado-Igreja interessava à expansão do poder político
dos impérios coloniais. Os jesuítas foram de início instrumentos desta
aliança. As missões haviam sido localizadas estrategicamente na fronteira
do Império Colonial Espanhol como verdadeiros postos avançados de
defesa do território e frentes de expansão geopolítica.
A missão representava o prolongamento da ação política do
Estado, reforçando-o. A relativa autonomia administrativa de cada uma
121
Miranda Neto
flexibilizava o controle global adequando-o à realidade da região. As
milícias guaranis defendiam o sistema produtivo jesuítico, que representava
extraordinário salto tecnológico com enxada, arado, adubo, irrigação,
rotação de culturas e produção de sementes.
Enfim, Espanha e Portugal superaram seculares rivalidades a fim
de mobilizar poderoso exército conjunto com o objetivo de destruir a
civilização missioneira, uma ameaça a impérios baseados no colonialismo,
no latifúndio e na escravidão. A experiência de sociedade fraternal e livre
precisava ser abortada. A recusa dos índios em desocupar as missões
gaúchas foi o pretexto para o genocídio guarani e a expulsão dos jesuítas.
Muito embora alguns revezes afetassem a continuidade do
processo, os padres sempre conseguiam reconstruir sua obra em locais
diferentes nestes quinhentos mil quilômetros quadrados. Mas agora,
tantos anos de convivência e trabalho em comum não poderiam se
extinguir de uma hora para outra.
Em diferentes ocasiões, os reforços de guerreiros guaranis na defesa
de Assunção, de Buenos Aires e no cerco à Colônia do Sacramento, a serviço
das autoridades hispânicas, privava as missões da mão de obra necessária
à produção agropecuária durante longos meses. Isto causava decadência
econômica, fome e epidemias que se alastravam pelas aldeias, sobretudo
após os conflitos quando ex-soldados guaranis, maltrapilhos e famintos,
vagavam pelos campos e matas, assaltando e roubando os núcleos que
não tinham a quem recorrer. Foi quando se tornou irreversível o declínio
da produção e comprometeu a viabilidade da estrutura econômica. A
expulsão dos jesuítas após as guerras guaraníticas precipitou ainda mais
o trágico desfecho pois as missões desempenharam a função de fronteira
na geopolítica hispânica, mantida pelo exército guarani como vanguarda
deste domínio territorial.
Expulsos os jesuítas, os guaranis ficaram abandonados e
tornaram a praticar a religião dos antepassados. A economia teve seu
desenvolvimento sustado bruscamente sob pressão dos interesses
coloniais, hostis a ela desde o princípio. Todo o desenvolvimento do
modelo político a partir de povoados missionários e toda a organização de
uma economia autossustentável, que sedentarizava os guaranis em uma
estrutura de coparticipação gerencial, ficaram comprometidos.
Hoje ainda se percebem os efeitos diretos e indiretos deste
enorme esforço de soerguer toda uma proposta cultural, econômica e
administrativa. Há núcleos urbanos originados nas missões. A produção
pecuária gaúcha, argentina, paraguaia e uruguaia derivou daquele esforço
inicial dos guaranis, orientados e estimulados pelos jesuítas. A erva-mate,
122
A Utopia Possível. Fim de um Sonho?
com enorme aceitação internacional, foi incentivada, desenvolvida e
exportada graças aos missionários e ao trabalho duro do gentio. Centauros
eficientes na doma dos rebanhos, os vaqueiros guaranis revelaram-se
exímios criadores, mesmo indiretamente submetidos à disciplina religiosa.
A par do cultivo e da vida na estância, os jesuítas introduziram a música
e as artes, o artesanato em barro, couro e madeira (em parte já praticado
nas aldeias), a tecelagem do algodão, a carpintaria civil e naval, a ferraria,
a pintura e até as artes plásticas e gráficas. Alguns livros e manuscritos,
semelhantes aos produzidos pelos copistas inspirados nos monges
medievais europeus, foram produzidos nas missões no século XVIII.
A original civilização missioneira duraria 170 anos, deixando
fundas raízes na formação histórica e cultural nos países do Cone Sul.
Aos jesuítas se deve o conhecimento de geografia, zoologia, botânica,
etnias, línguas e costumes dos autóctones. Em cartas, dicionários e outros
livros transmitiram informações preciosas.
O maior enigma é desvendar o sentido da utopia que decretou
seu próprio destino ao tornar-se, dentro da colônia, um projeto
anticolonial. Na verdade, as missões provaram ser a utopia possível,
desenvolvendo com pertinácia a alternativa autossustentável com gestão
compartilhada. E conseguiram propagar sua herança cultural séculos
afora. Ícones e relatos, tecnologia e conhecimento, produção e poder até
hoje continuam vívidos nas ruínas das catedrais, nas imagens de santos,
na saga dos jesuítas e dos guaranis, no maravilhoso esplendor alcançado
com o aprimoramento contínuo das artes e ofícios cuja preciosa amostra
arqueológica espelha a luta recorrente para a conquista sublime da
universal utopia de felicidade, que transcende os povos e os tempos.
Após a assinatura do Tratado de Madri, Fernando VI de Espanha
alegava ter sido induzido à má avaliação por relatório dos jesuítas que
mencionavam os “pobres povoados” guaranis comparáveis às choupanas
de palha dos arredores de Buenos Aires. Apesar de várias tentativas
para reverter os termos do tratado, só se conseguiu protelar a entrega
das áreas a fim de organizar melhor a transferência dos guaranis para
outro território. De fato conseguiu-se, com a dilatação do prazo, preparar
melhor a resistência armada à demarcação dos novos limites territoriais.
O pretexto era sempre a espera da colheita, aguardando a época própria
para cada safra agrícola. Apesar disso, a ordem do Padre Geral Inácio
Visconti era de se proceder ao cumprimento integral às cláusulas do
tratado o que, paradoxalmente, contrariava as noções fundamentais de
justiça pregadas pelos próprios jesuítas, sempre resistentes à opressão, à
arbitrariedade, ao escravismo.
123
Miranda Neto
Os jesuítas a favor do tratado, como o Padre Altamirano, foram
ostensivamente hostilizados pelos guaranis. As missões de São Tomé,
São Luiz e São Nicolau demonstraram firme resistência à demarcação
expulsando os emissários espanhóis, o que fomentou novas adesões.
Claro que contaram com apoio de missionários, vistos a partir daí pelos
generais Gomes Freire de Andrade, do lado luso brasileiro, e Marquês de
Valdelírios, do lado espanhol, como “rebeldes que deveriam ser expulsos
do País para cessarem as rebeliões, insolências e desventuras.”
Nessa ocasião, Sepé Tiaraju, cacique corregedor de São Miguel,
fez demonstração de força apoiado por exército guarani, colocando em
retirada os comissários espanhóis de volta a Buenos Aires e os portugueses
para a Colônia do Sacramento. Os comissários, que ainda tentavam a
demarcação, também foram obrigados a desistir sobretudo pelos fortes
argumentos contra o “esbulho possessório” a ser perpetrado. “O que a
Coroa espanhola já fizera para conquistar e colonizar aquelas terras a não
ser apoderar-se do trabalho dos guaranis e jesuítas? Por que o Rei não
oferece aos portugueses Buenos Aires, Santa Fé, Corrientes, Assunção?
Por que justamente as terras dos pobres índios? Isso não é uma ordem
de Deus mas do Demônio...”, protestavam os neófitos que utilizavam a
tática de guerrilha (“terra arrasada”) com greves, boicotes, sabotagens,
estimulada por alguns missionários que chegaram a proibir a venda de
quaisquer produtos aos “brancos”.
Os guaranis aproveitaram o interregno para consolidarem suas
posições e aperfeiçoarem seu armamento. À falta de metais em quantidade
suficiente, fabricaram peças de artilharia em madeira resistente, o urundi
uma espécie de bambu gigante que era recoberto por couro curtido de
bovino, demonstrando a criatividade dos guaranis orientados pelos jesuítas.
Em janeiro de 1756, quando Portugal e Espanha decidiram
prosseguir unidos com as hostilidades contra os guaranis, ambos os lados
sofreram pesadas baixas. Sepé Tiaraju morreu em combate e foi substituído
por Nicolau Languiru, corregedor de Concepción, que se fortificou na
colina de Caybaté, próximo à missão de São João, coordenando as milícias
de várias missões.
Em fevereiro, uma batalha vitimou Languiru e 1.200 índios em
uma emboscada que envolveu muita contrainformação entre as missões
aliadas. Em maio, o exército luso-espanhol entrou em São Miguel, já
antes incendiada pelos próprios guaranis, em São Lourenço, em São
João e em Santo Ângelo. São Nicolau só foi ocupada no final de 1756.
A tática de guerrilha e terra arrasada prosseguiu causando grandes
transtornos e baixas. Cerca de 14.000 guaranis conseguiram se reagrupar
124
A Utopia Possível. Fim de um Sonho?
após recuo estratégico para a outra margem do rio Uruguai. Até os
soldados espanhóis se furtavam a conceder total empenho, pois viam a
guerra como contrária aos interesses nacionais já que os luso-brasileiros
fatalmente lucrariam com a total retirada guarani. Durante algum
período, as sete missões gaúchas, semidevastadas, constavam como
politicamente integradas aos domínios de Portugal mas sem terem de
fato sido evacuadas. Só anos depois os jesuítas conseguiram persuadir
os indígenas remanescentes a se transferirem para a margem direita
do rio Uruguai. Apesar de a maioria dos padres anuírem a contragosto
com a transferência, os jesuítas foram denunciados como rebeldes que
instigavam os povos à insurreição. O prejuízo em vidas humanas e
recursos financeiros desgastou o já combalido Tesouro de Portugal após
o terremoto de Lisboa que forçou a reconstrução da cidade. E intensificou
violenta campanha25 contra os jesuítas, apressando sua expulsão.
Os jesuítas só administraram as missões até agosto de 1768.
O Marquês de Bucarelli26, governador do Rio da Prata, convocou os
corregedores guaranis para se prepararem a dar continuidade à gestão e
até prometeu fundar Universidade em Candelária onde seus filhos teriam
o privilégio de se formarem como gestores civis, militares ou sacerdotes. A
perspectiva de futuro animou os guaranis, embora a população continuasse
desconfiada e resistente às tentativas de apaziguamento, apesar de os
corregedores terem sido bajulados e homenageados por Bucarelli.
O governador Bucarelli, iniciou a ocupação dos colégios dos jesuítas
em julho de 1767, e das missões no ano seguinte. Entre julho e agosto de
1768, cinco comissões militares ocuparam os trinta povos guaranis, cujos
inventários foram concluídos em outubro.
Mercedários, franciscanos e dominicanos substituíram os jesuítas
expulsos, assumindo a responsabilidade da administração religiosa dos
pueblos. Do lado político, as dez missões próximas à fronteira luso-brasileira,
tendo São Miguel como capital, passaram a ser subordinadas à jurisdição de
um capitão e as vinte restantes da bacia do Paraná e do Uruguai superior
determinadas a outro capitão tendo Candelária como capital. A partir
de dezembro de 1769, um governador único residente em Candelária,
exercia autoridade sobre quinze pueblos diretamente e sobre os quinze
restantes através de tenentes subordinados. Em 1775, foram criados cinco
departamentos com capitais em Candelária, Santiago, Yapeyú, São Miguel
e Conceição, sendo a primeira destinada à residência do governador e as
demais aos quatro tenentes nomeados.
25 26 Incentivada por D. José I e seu primeiro-ministro, Sebastião José de Carvalho e Melo, Marquês de Pombal.
Don Francisco de Paula Bucarelli y Ursúa.
125
Miranda Neto
Do ponto de vista educacional, Bucarelli impôs a introdução
do idioma espanhol no ensino desde a alfabetização até os seminários
abertos aos autóctones selecionados. Na economia não alterou o sistema
de propriedade coletiva dos bens de produção, embora incentivasse
em algumas áreas a repartição de terrenos para serem cultivados
individualmente, acirrando a competitividade e a produtividade.
Criticava a organização jesuítico-guarani anterior que possibilitou “criar
índios estúpidos, mansos e úteis”27.
De modo geral, os administradores particulares não se mostravam
competentes nem preparados a assumir a responsabilidade do cargo. E
pior: provaram ser corruptos e só interessados em lucrar e tirar proveito
dos privilégios de sua função pública. Impressionava o número dos que
exerciam a autoridade: governador do departamento, administrador geral,
tenentes do governador, capatazes, protetores dos índios, visitadores,
cabildantes, caciques, curas... Tal excesso de dirigentes tornava a gestão
ineficiente e muitas vezes inoperante devido a decisões conflitantes e sem
diretriz operativa. Fornecedores e negociantes exploravam a seu favor
uma economia cada vez mais débil.
Dois decênios após a expulsão dos jesuítas, as missões se reduziram
a um terço com menos da metade dos habitantes. Dos artífices, artesãos e
operários especializados, não havia mais nem vestígios.
Lamentavelmente o vandalismo dominou as ações dos novos
administradores das missões (civis e militares) a ponto de destruírem o
precioso acervo colecionado pelos jesuítas em suas bibliotecas: páginas de
livros foram arrancadas e utilizadas para diversos fins.
Membros do cabildo de São Luiz por diversas vezes rogaram às
autoridades a volta dos jesuítas, elogiados por sua atuação, bondade e
persistência. O trabalho em grupo e a propriedade coletiva dos meios de
produção foram reputados como mais eficientes do que o individualismo
espanhol. Com a saída dos padres, os filhos dos guaranis ficaram
desorientados e alguns fugiram para as florestas. Muitas intrigas contra os
jesuítas prosperaram na sua ausência.
Em 1778, Bucarelli conseguiu que Carlos III aprovasse novo sistema
de administração para as missões estimulando o comércio externo com as
potências econômicas, mas dificultando o intercâmbio entre os povoados,
enfraquecendo a união comercial e o desenvolvimento da República
Guarani. Tornou obrigatório o ensino do espanhol, abrindo a comunicação
para o mundo colonial. O objetivo seria “assegurar a prosperidade
do povo guarani através da agricultura, do comércio e da difusão da
27 AZARA, Félix de. Descripción y Historia del Paraguay y del Rio de la Prata. Buenos Aires, 1943.
126
A Utopia Possível. Fim de um Sonho?
língua espanhola”. Outra meta era desvincular o poder civil do poder
eclesiástico. Mas seria o Conselho de cada missão mais independente
sob poder teocrático ou sob poder civil ligado aos poderosos grupos do
comércio internacional?
A decadência e a desorganização da Confederação das Missões se
agravou a partir do momento em que se permitiu a permanência de colonos
nos núcleos “para fomentar relações comerciais”, os quais abusaram
da hospitalidade, logrando a boa-fé da população, desrespeitando-a e
introduzindo hábitos como o vício do alcoolismo cujos efeitos bem conhecidos
conduziam até ao crime, desorganizando a estrutura socioeconômica-política da comunidade. Os terrenos mais férteis foram ilegalmente
apropriados, os depósitos e armazéns entregues a corruptos ligados aos
colonos, a produção desviada, o que ocorria afrontando os guaranis então já
impedidos de utilizar armamentos. Como consequência, o êxodo em massa
contribuiu para a decadência econômica; o caos e a desordem sociopolítica
com boicotes, sabotagens e outras formas de resistência ao regime de
trabalho forçado proliferaram. Os padres remanescentes de outras ordens
só poderiam cuidar dos afazeres religiosos.
A substituição dos administradores locais por outros que não
falavam guarani aumentou a desordem em todas as missões. O rebanho
bovino, que era considerável e estava em expansão, teve abrupto declínio
sobretudo por sérios roubos que até prejudicaram os leilões das estâncias
cujos prováveis potenciais compradores se desinteressaram: preferiram
negociar grandes malhadas sem poupar as reses em idade de reprodução.
Lavouras abandonadas, pilhagem, dispersão dos habitantes, falta de
liderança e motivação completaram a decadência econômica. A ociosidade
e o vício começaram a dominar o cotidiano dos guaranis. Faltava algo que
abrisse perspectivas para o futuro.
As promessas envolvendo a criação da Universidade da
Candelária, a manutenção das escolas profissionalizantes e de música
nunca se cumpriram. As quatro tipografias instaladas pelos jesuítas foram
desmontadas pelo receio de se incentivar a leitura. A educação deixou
de ser prioridade. Os adultos precisavam trabalhar duro e só tinham
dois dias na semana para cuidar dos lotes particulares cujo sistema foi
restaurado. Alguns optavam por ser diaristas dos colonos nas cidades, o
que contribuiu à queda da produção nas missões. Outros decidiram viver
em cabanas fora do perímetro urbano das missões a fim de não serem
controlados e explorados, pois até aluguel era-lhes cobrado. Os prédios se
deterioravam por falta de manutenção: colégios, oficinas, igrejas – todos
depredados, saqueados, mal utilizados.
127
Miranda Neto
Vários apelos na tentativa de retorno dos jesuítas foram em
vão. Eclodiram revoltas devido à insatisfação geral. Epidemias também
contribuíram ao declínio populacional. Segundo Hernandez e Maeder, o
conjunto das missões contava com cerca de 80.000 a 90.000 habitantes em
1770 que se reduziram a 70.000 em 1785, 54.000 em 1797 e 43.000 habitantes
em 1801. Yapeyú possuía ainda 5.500 moradores em 1790.
Algumas plantações foram distribuídas a colonos espanhóis.
Estâncias, grandes culturas, criação de gado bovino e equino e oficinas
montadas continuaram de propriedade e uso comum. Os sucessores dos
jesuítas foram forçados a manter o sistema de propriedade coletiva dos
meios de produção, que provou ter sido o mais adequado e eficiente ao
temperamento e aos hábitos dos indígenas. Rações de carne, sal, mate,
tecidos estavam se reduzindo e eram de qualidade bem inferior à da época
dos jesuítas. Mate, fumo, algodão, melaço, couros e crinas eram exportados
para pagar tributos, salários dos administradores, as importações
indispensáveis. As terras dos guaranis foram aos poucos apropriadas pelos
colonos com apoio dos administradores. Cana-de-açúcar, milho, bananas,
mandioca e erva-mate continuavam a ser produzidos coletivamente.
Estimativas na década de 1820 para as comunidades de Entre-Rios
contavam em torno de 10.000 pessoas.
Em 1848, o ditador Solano López extinguiu o sistema de
propriedade coletiva dos meios de produção. Remanescentes guaranis
foram legalmente destituídos dos imóveis, equipamentos e gado. O
desestímulo à produção acelerou a decadência.
Em 1851, uma colônia de 300 famílias guaranis ao norte do rio Iguaçu
subsistia cultuando tradições e modo de produção herdados dos jesuítas,
apesar de já sofrerem franca decadência econômica: demonstravam sua
fé mantendo as práticas religiosas (batismos, casamentos, orações pela
manhã e à tarde, missa aos domingos). Mas este caso no Guairá foi exceção
pois a vida espiritual sofreu forte abalo com a inexorável desorganização
do sistema. A falta de unidade entre franciscanos, dominicanos e padres
da misericórdia (sucessores dos inacianos), sua deficiente preparação
e sobretudo o desconhecimento do idioma guarani prejudicaram o
desempenho das comunidades.
Apesar da incompetência inicial dos sucessores dos jesuítas, eles se
esforçaram em humanizar o cotidiano das missões. A religião e sua prática
ajudaram a reorganizar a vida dos guaranis. Entretanto, a relação entre
religiosos e administradores foi conflituosa, o que acelerou o caos. Cada missão
ia definhando isoladamente. Prédios eram utilizados para outros fins que não
os originais, outros incendiados ou até mesmo demolidos como a Igreja de
128
A Utopia Possível. Fim de um Sonho?
Encarnación, verdadeiro símbolo da magnificência da República Guarani.
Desgraçadamente perdeu-se o encanto, o segredo da vida comunitária em
harmonia, da própria felicidade humana, da Utopia Guarani.
Em 1852, Martin de Moussy em Mémoire sur la Ruine des Missions
des Jésuites, tentava comparar “a prosperidade passada com a miséria
atual; ao pensar na fé e na resignação dessa gente agora infeliz, as lágrimas
vieram-nos aos olhos.”
7.1 Obras dos Guaranis e Jesuítas das Missões
Entre 1703 e 1728, tipografias em Loreto, Corpus Christi, São
Miguel, Santa Maria Maior e São Francisco Xavier já publicavam obras.
O primeiro livro impresso em São Miguel teria sido Martirologio Romano
atribuído ao padre João Batista Neumann.
Antes, em 1639, o padre Montoya havia publicado em Madri uma
gramática e um vocabulário Tesoro y Catecismo en Lengua Guarani.
Já no século anterior, o Padre Anchieta no Brasil teve a ideia de
tentar padronizar as características comuns aos vários dialetos e sintetizar
os fonemas a fim de difundir a “língua geral”, utilíssima na comunicação
entre as tribos e destas com os jesuítas e os colonos. Deve-se este esforço
aos missionários. A língua guarani continuou sendo a mais falada no
Paraguai e além-fronteiras após a expulsão dos jesuítas.
Os missionários, professores de guarani na Universidade de
Córdoba, conseguiam que trabalhos em guarani fossem escritos e
impressos nas próprias missões que antecederam em 80 anos as primeiras
oficinas gráficas de Buenos Aires.
Em 1703, Sermões e Catecismos em guarani, elaborados pelos
padres Neumann e Serrano foram impressos e distribuídos aos fiéis nas
missões. Dois anos depois, o padre Juan Eusébio Nieremberg conseguiu
editar De la Diferencia entre lo Temporal y Eterno, em Loreto, traduzida
para o guarani pelo padre José Serrano, considerada ainda hoje uma
das mais preciosas obras impressas na colônia, rica em belas gravuras
confeccionadas pelos neófitos. Em 1713, o padre Antônio Garriga publicou
também em Loreto Instrucción Práctica para Ordenar Santamente la Vida. O
padre Restivo dedicou-se a Trabajos Lingüísticos.
Dentre as geografias e descrições de viagem, destacam-se a
Descrição do Rio Paraguai do padre Quiroga e os mapas para a ligação entre
o Prata e o Peru através do rio Paraguai, a República Guarani e o território
dos Chiquitos.
129
Miranda Neto
Cartas astronômicas das reduções chegaram a ser confeccionadas pelo
padre Buenaventura Suárez que construiu também telescópios e relógios.
Catálogos de Botânica, com descrições das propriedades de cada
espécie, utilíssimos à fitoterapia jesuítico-guarani, foram atribuídos
aos padres Pedro Montenegro (1711) Sigmund Asperger, Serdahely,
Vasconcelos e Lozano, incluindo ilustrações. As descrições de vegetais
ainda não classificados são bilíngues: em guarani e em espanhol.
Alguns autores guaranis também se destacaram: Nicolás Yapuguay
com Explicación del Catecismo e Sermones y Ejemplos e o índio Melchior com
Historia del Pueblo de Corpus Christi.
No inventário das bibliotecas após a expulsão dos jesuítas, de
todos os criminosos incêndios, depredações e massacres, restaram 4.725
livros em Candelária, onde residiam os padres superiores, 460 em Corpus
Christi, 445 em Santa Maria Maior, 382 em Santos Mártires e 315 em Loreto.
Até a partitura de uma ópera – Santiago – foi encontrada no inventário das
missões jesuíticas.
Estima-se que cerca de 30 mil músicos chegaram a ser formados
nos 33 povoados pelos professores jesuítas Louis Berger (francês), Jean
Vassaux (belga) e António Sepp (alemão). Vassaux tinha sido músico na
corte de Carlos V e faleceu em Loreto em 1623. O principal conservatório
funcionava em Yapeyú, sede da principal oficina de luthiers, ressaltando o
papel educativo do artesanato especializado em confecção e manutenção
de instrumentos musicais: lira, órgão, violão, violino, clarinete, fagote,
flauta, trompete, cítara, maracá e tambor.
Segundo o padre Cardiel, os guaranis representavam óperas, peças
teatrais de fundo religioso, pintavam o corpo e o rosto, mascaravamse, cantavam e dançavam, voltando às origens com toda inocência e
espontaneidade. O índio Inácio Paicá tornou-se famoso como factotum
refinado. Além de ferreiro, funileiro e fundidor era polidor de objetos de
metal.
7.2 Outros Grupos de Missões sob Modelo Guarani (Séculos XVII – XVIII)
Chiquitos. As 20 missões, fundadas a partir de 1691, ocuparam a
região ao norte da República Guarani, a Sudeste da atual Bolívia. Em 1726,
sua população total atingia 46.000 habitantes e chegou a dobrar, de acordo
com o padre Arcé.
Moxós. As 16 missões, fundadas a partir de 1670, superaram 30.000
habitantes, vivendo em uma área ao Norte da atual Bolívia.
130
A Utopia Possível. Fim de um Sonho?
Chaco. A partir de 1693, as tribos do Chaco formaram 15 missões
de Mocobis e Abipones, a oeste da República Guarani.
Pampas. Essas povoações formadas pelas tribos desde a Cordilheira
dos Andes até a Terra de Magalhães foram destruídas a partir de 1750
pelas tropas luso-espanholas.
Chiriguanas. As tribos chegaram a construir quatro missões.
Tarumã. Entre os Chiquitos e os Guaranis formaram-se três
missões que tiveram sobrevida efêmera.
131
Considerações Finais
A descoberta do Novo Mundo influenciou extraordinariamente as
perspectivas da conquista espiritual de mouros, ex-judeus e indígenas que,
mais tarde, seriam considerados “cristãos novos”. A ânsia de liberdade
moveu os jovens a explorar terras d’além-mar, a expandir o cristianismo e a
fé católica para continentes ainda desconhecidos. Por outro lado, explodia
o horror ao Tribunal da Inquisição espanhola cuja atuação precipitava
migrações forçadas: levas e levas de refugiados ansiavam por tentar
descobrir onde pudessem viver livres e felizes (cap. 1).
A Companhia de Jesus, fundada como ordem laica, foi considerada no
início como uma espécie de milícia particular do Papa no momento em que a
Reforma protestante desconstruía o catolicismo. Subordinados diretamente
ao Vaticano, os jesuítas não sofriam as restrições de outras ordens religiosas,
limitadas a conventos e a paróquias. Movimentavam-se livremente e agiam como
agentes e soldados (Inácio de Loyola tinha sido militar antes de se converter).
Ao invés de criar fanáticos, formou hábeis negociadores com
extraordinária vocação para humanidades e o ensino religioso.
Em 1508, o papa Julio II concedeu aos reis espanhóis o direito do
padroado sobre a Igreja nas terras americanas conquistadas. A aliança
entre o trono e o altar possibilitou a fundação, a organização e a expansão
das missões jesuíticas na Colônia que conseguiram colocar em pratica um
magnífico exercício de aculturação do gentio (cap. 1).
Em 1519, os reis católicos assumiram direitos sobre as terras
descobertas ou a descobrir e a serem incorporadas ao império espanhol.
133
Miranda Neto
As chamadas Leis das Índias Ocidentais constituíam o aparato legal
criado durante a ocupação das terras do Paraguai com o fim de preservar
os interesses da Espanha na América. Elas definiam o espaço geográfico
a ocupar, apto a semear e a colher, a dita “terra saudável”. O gentio local
deveria aprender o Evangelho e ser convertido ao cristianismo.
Em 1542, foi criado o Vice-reinado do Peru cujo objetivo principal,
além da posse territorial, era a “integração do indígena ao sistema colonial
espanhol”.
Em 1556, Domingo Martínez de Irala aplicou a legislação espanhola
ao repartir as terras do Paraguai entre os colonos. O direito de acesso à
terra seria concedido aos colonizadores hispânicos que exigissem dos
índios fidelidade à fé católica e ao Rei da Espanha, retirando-lhes qualquer
direito à posse dos terrenos por eles ocupados (cap. 1).
O Conselho das Índias nomeava funcionários e autoridades,
inclusive da Igreja, e exercia o poder extensivo no Império Colonial
na América através da legislação, administração e justiça. As missões
surgiram durante o Império Colonial espanhol dos Habsburgos e se
desarticularam no dos Bourbons, redimensionando o papel do Estado.
O governo de Castela fundou reduções de início atendidas, quanto
ao espiritual, por franciscanos, dominicanos e clero secular. No Brasil, a
experiência de aldeias indígenas foi ainda anterior à doutrina de Juli, Peru
(1568-1576), sob responsabilidade de jesuítas embora com características
diversas. No aspecto laico, civil, as áreas das doutrinas ou missões
assemelharam-se aos municípios espanhóis. Do ponto de vista religioso,
correspondiam às paróquias de administração eclesiástica.
A principal fonte inspiradora foi o próprio modelo indígena de
organização ao qual os missionários se adaptaram, apenas introduzindo
alguns valores e nova tecnologia, procedente da elite cultural europeia.
As comunidades tribais praticavam o cooperativismo, caracterizado pela
propriedade coletiva dos meios de produção, possibilitando à sociedade
indígena organizar-se conforme as necessidades comuns. As horas de
lazer eram preenchidas por aprendizado de novas técnicas, competições
esportivas, catecismo e rituais religiosos. Resultava em sociedade
plenamente participante, capaz de conduzir seu destino, organizando-se
social, econômica e politicamente.
A propriedade comum favorecia a solidariedade entre pessoas e
grupos. Como só as reais necessidades influíam na decisão de produzir e
consumir, a fartura era uma decorrência natural, evitando-se o desperdício
(cada um obtinha o suficiente para sua sobrevivência em harmonia).
Encontrou-se um meio de varrer a indigência desta sociedade. Todos
134
Considerações Finais
se beneficiaram de igual abundância. Não havia necessidade de coação
econômica ou política. A autoridade baseava-se nos valores que o próprio
grupo cultivava.
Os fundamentos do sucesso da intervenção podem ser assim
sintetizados:
1. prestigiar a autoridade dos caciques;
2. localizar a aldeia em local alto próximo a curso d’água;
3. dispor
de
recursos
suficientes
para
garantir
a
autossustentabilidade;
4.coordenar as missões entre si e com o governo espanhol
tentando cooptar os caciques.
A ação missionária conseguiu, com relativo esforço, o abandono da
antropofagia, da poligamia e do culto às divindades tribais, caracterizando
o novo índio cristão, fiel à Igreja Católica. A coroa desejava transformá-lo
em súdito, agente e defensor da “causa política comum”. Queria que
lutasse para defender os interesses do colonizador, após a reorganização
da vida tribal, convertendo-se aos valores do cristianismo e da civilização
europeia. Na prática, foram os colonos e os missionários que mais
tiveram de se adaptar aos costumes e ao modo de vida autóctone para
sobreviver razoavelmente em um contexto desconhecido. O cunhadismo,
o compadrio e a miscigenação foram práticas de aliança e de parentesco
economicamente vantajosas para os colonos.
O indígena era submetido a uma organização totalmente diversa
onde as formas de controle o condicionavam a produzir um excedente que
nem sempre lhe era destinado. O sistema de trabalho, com uso intensivo
do tempo, a vigilância e a severa coordenação eram-lhe estranhos, pois, na
economia tribal, as formas simples de cooperação garantiam a reprodução
dos meios de subsistência na medida suficiente à sua sobrevivência (cap.2).
Tribos nômades eram mantidas unidas e relativamente afastadas
dos povoados hispânicos pelos missionários, responsáveis por fixá-los a
gleba, fora do alcance dos colonos. Estes, entretanto, os convocavam como
mediadores de conflitos com tribos ainda hostis às forças espanholas.
Os indígenas, felizes por escapar às perseguições tanto dos
encomenderos quanto dos bandeirantes luso-brasileiros, convergiram para
as missões onde eram catequizados e habituados à vida mais sedentária.
Entretanto, como o ritmo de trabalho e a disciplina dos jesuítas eram
rígidos, alguns voltavam para suas antigas aldeias e ao nomadismo da
caça e da pesca. Com um paciente e pertinaz trabalho de convencimento,
135
Miranda Neto
os padres iam atrás deles tentando fazê-los retornar. A fim de ganhar sua
confiança, restringiam ao mínimo o contato com os colonos espanhóis,
proibidos de permanecer mais de três dias em uma aldeia indígena ou
missão jesuítica (cap. 2).
A segregação relativa dos neófitos viabilizou-se também pela
barreira da linguagem. Os missionários preferiam estudar e se comunicar
na língua dos nativos aos quais era vedado o aprendizado do espanhol e
do português. Logo, o contato inter-racial e intercultural só se efetivaria
caso o visitante às missões dominasse o idioma guarani. Os estranhos
ou eram bem-vindos ou poderiam até ser hostilizados e expulsos pelos
índios, a critério deles e dos padres (cap. 2).
As missões, como proposta de civilização, sedentarizaram,
organizaram e disciplinaram as atividades dos ameríndios. A organização
e a disciplina dos jesuítas induziram os guaranis a se transformarem de
imprevidentes e livres caçadores e coletores em agricultores e criadores
eficientes, a fim de garantirem razoável alimentação, vestuário e moradia.
Os missionários introduziram novas técnicas agrícolas com equipamentos
metálicos (enxada, machado, pá, facão e arado) e criatórios bovino e
equino que revolucionaram o suprimento alimentar, garantindo a oferta
crescente das missões a partir de meados do século XVII. Os guaranis
aceitaram com reserva a nova regulamentação do trabalho e a organização
do cotidiano, em parte convencidos de que eram úteis e necessários ao
alcance do objetivo maior: a sobrevivência em comunidade.
A fundação das primeiras missões no vale do Paranapanema
coincidiu com grave crise de desagregação social e dispersão da “sociedade
guarani”. Revoltas e episódios de resistência à opressão caracterizaram
este período, dificultaram o aldeamento e contestaram a liderança dos
padres. Colonos e soldados foram convocados a socorrê-los (cap. 2).
A pluralidade linguística na América Latina do século XVII e
XVIII compreendia o tupi, o guarani, o português, o espanhol, o latim e os
demais idiomas indígenas falados pelos autóctones. Uma das principais
exigências da Companhia de Jesus era que seus padres aprendessem a
língua dos povos da terra a fim de melhor catequizá-los. Na consolidação
do processo colonizador, os jesuítas pouco a pouco substituíram a
catequese pela educação da elite dos povos sul-americanos, influindo na
condução política e na cultura socioeconômica das respectivas nações.
As missões assumiram a defesa do índio contra a exploração e a
opressão. A estratégia do medo no sentido de evitar mal maior estimulou
e agilizou a conversão do gentio. Os padres se transformaram em
“heróis civilizadores”. A redução passou a ser “espaço de salvação”. O
136
Considerações Finais
conhecimento da língua guarani e a conquista da simpatia dos caciques
tornaram-se fundamentais. O que deveras facilitou a evangelização foi a
vulnerabilidade dos índios às doenças introduzidas pelos colonizadores,
às epidemias causadas por falta de higiene e às crises de abastecimento
pela má gestão e pelo desperdício de recursos ciclicamente abundantes.
Havia imprevidência e má divisão do trabalho e do tempo disponível
(cap. 2).
De início, a Companhia de Jesus apoiou com ênfase o trabalho
missionário, mas, aos poucos, passou a priorizar os colégios, a partir dos
quais os jesuítas influíram vigorosamente na sociedade colonial, sobretudo
na vida acadêmica até após sua expulsão.
Entretanto, foi a prática missionária que modificou o conhecimento
em geografia, biologia, filosofia natural e introduziu novos conceitos e
práticas pedagógicas, revolucionando a visão de mundo a partir do século
XVIII. Contrastava com a postura inicial dos colonizadores que basicamente
impuseram a disciplina do medo. Muito embora a visão de mundo tenha se
enriquecido, os novos conhecimentos ficaram praticamente monopolizados
pelos jesuítas e restritos a eles.
A estrutura socioeconômica do sistema missões se caracterizava
pelo elevado sentido de responsabilidade social diante das populações
indígenas que os missionários aliciavam, assegurando-lhes uma existência
própria dentro da comunidade, ocupada com sua própria subsistência e
desenvolvimento. A eficácia econômica evidenciava-se na produção de
artigos para os mercados interno, regional e externo, que garantiam a
maioria dos bens importados, indispensáveis à manutenção e à expansão
da rede de missões, graças ao rápido crescimento da população ativa
motivada para o trabalho e culturalmente unificada, padronizada em
nova função de produção e tecnologia mais eficiente.
O sistema de trabalho nas missões seguia um esquema elaborado.
A divisão de tarefas dava-se por sexo e idade, em turnos sucessivos. O
coletivismo dos guaranis evidenciava-se na moradia, na produção, na
repartição dos produtos. Cada missão tinha no seu Conselho o resultado
de uma práxis política consensual em que a Confederação das “Pequenas
Repúblicas” mostrava-se soberana. Essa forma de administração garantia
uma constante ajuda mútua de comunidades fraternas. A garantia da
manutenção do bem comum estava no zelo pela eficiente administração
da propriedade coletiva.
O modo de produção missionário valorizava o destino do resultado
em seis utilizações principais:
137
Miranda Neto
1. reposição do que foi consumido;
2. destinado a emergências e eventualidades;
3. expansão da produção;
4.necessidades coletivas (comunidade, escola, saúde, igreja,
festividades);
5. intercâmbios entre missões e núcleos coloniais;
6. pagamento de tributos régios.
O projeto missionário estava inserido no sistema mercantil espanhol
em uma verdadeira aliança entre o estado eclesiástico e a sociedade
política dos séculos XVII e XVIII, abrangendo o Vice-Rei, o Governador e
o Cabildo indígena, onde o corregedor, o alcaide, os regedores e os chefes
de setores se destacavam ao lado dos padres. O excedente da produção
coletiva (agropecuária e agricultura extensiva) destinava-se à economia
colonial enquanto a pequena lavoura de subsistência alimentar abastecia
as famílias, garantindo relativa autossuficiência do modelo. As relações de
trabalho eram livres no caso dos artesãos e/ou coletivas no caso da grande
produção destinada à exportação (cap. 3).
A experiência em distribuir lotes de exploração privada aos
guaranis fracassou em parte porque o trabalho em comum nas terras
indivisas era mais animado, alegre e melhor executado pois todos
colaboravam com entusiasmo e cantorias. Quando tinham de trabalhar
em seus lotes individuais “ficavam estendidos o dia inteiro em suas redes,
suspensas entre duas árvores”.28 Na verdade, as tentativas de loteamento
foram mal planejadas e executadas, não conseguiram prosperar dentro da
estrutura econômica guarani, toda voltada à utilização comunitária, sem
grande preocupação em obter excedentes de produção.
Pouco antes de sua expulsão, os missionários, por pressão externa,
tentaram em vão que cada família se autossustentasse subsistindo com
lavoura e algumas reses leiteiras e outras utilizadas para tração animal.
O artesanato, a manufatura, a grande lavoura e a pecuária extensiva
continuaram sendo praticadas coletivamente. Os guaranis mostraram-se
indiferentes ao lote vitalício que se tentou introduzir, pois valorizavam a
solidariedade e a cooperação.
Edificações, moradias e oficinas foram construídas pela própria
comunidade que as administrava para uso coletivo. Os ofícios eram
exercidos nas oficinas comunitárias, nos pátios dos colégios sob orientação
de mestres indicados pelos missionários e aprovados pelos operários.
Apenas a fiação, a tecelagem e a cerâmica ficavam a cargo das mulheres.
28 SEPP, Antonio, op. cit.
138
Considerações Finais
As embarcações e as carroças também eram comuns a todos.
Oficinas, tanoarias (que produziam barris), fundições, moinhos e curtumes
produziam para a comunidade. Recebiam em troca gêneros alimentícios
distribuídos conforme as necessidades dos “dispensados de cultivar a terra
devido ao seu ofício”. Mas todos eram obrigados a trabalhar igualmente.
O artesanato era de propriedade individual e permutado entre si. Os
preferidos eram os objetos de couro, madeira e cerâmica fabricados geralmente
em turnos de 6 horas/dia em média. As roupas eram lavadas em lavanderias
públicas. As mulheres trabalhavam em grupo em costura, jardinagem e
arranjos domésticos nas varandas de suas moradias, nas horas de folga de
suas lides caseiras. Na tecelagem produziam quantidade de tecido suficiente
para a demanda interna. Na lavoura só eram convocadas para a colheita: todo
o trabalho mais pesado ficava a cargo dos homens. As crianças ajudavam
conforme a “pedagogia da alternância”: quando não estavam na escola,
colhiam frutos, bagos, raízes medicinais e mel de abelha, sempre enxotando as
aves e os insetos. Entretanto, os rapazes nos campos ficavam afastados dos pais
“porque estes não sabem vigiá-los” conforme criticava o Padre José Cardiel29.
As meninas ajudavam as mães nas tarefas domésticas e aprendiam a fiar,
costurar, bordar, cozinhar. Já os rapazes selecionados tornavam-se aprendizes
nas oficinas e na horta onde se ministravam as aulas práticas de agricultura,
obrigatórias a todos os cidadãos que aprendiam ao menos a semear e a colher
determinados produtos da lavoura e da fitoterapia, às vezes até interrompendo
as atividades, nas oficinas. Todos participavam das colheitas festivamente e os
que mais se destacavam eram premiados (cap. 3).
Hortas e jardins bem cuidados e ricos em espécies comestíveis e
farmacêuticas tomaram-se o orgulho de muitos jesuítas.
Os missionários combatiam tenazmente a ociosidade e conseguiram
organizar melhor o tempo dos neófitos, disciplinando o trabalho, o lazer
e as cerimônias festivas e religiosas. O talento inato dos guaranis foi
despertado pelo trabalho em equipe orientado pelos sacerdotes, inclinados
a exercer seu lado paternal e pedagógico. A autoridade era exercida
“com doçura e moderação”, em contraste com o paternalismo hipócrita
interesseiro das classes dirigentes coloniais. A boa imagem de autoridade,
respeito e carinho permaneceu durante muito tempo após a expulsão dos
jesuítas. Afeição, confiança, estima decorriam das virtudes e das obras que
os padres deixaram, cuja seriedade, amor e irrepreensível candura deram
bom exemplo. “Palavras podem convencer mas só os exemplos arrastam!”
(Padre Antonio Vieira).
29 CARDIEL, José, S.J. “Breve Relación de las Missiones del Paraguay”, in HERNÁNDEZ, Pablo. S.J. Organización Social de
las Doctrinas Guaranis. Barcelona, 1913 (v.2).
139
Miranda Neto
Ao viverem com simplicidade um cotidiano sem conforto,
demonstrando desapego aos bens materiais supérfluos, mas com
muita ordem, disciplina e força de vontade, conseguiam aos poucos,
com persistência e carinho, transformar criativamente a arquitetura
socioeconômica da rede de núcleos populacionais em uma verdadeira
região geoeconômica em franco desenvolvimento integrado.
Os missionários sabiam utilizar os materiais disponíveis da
melhor forma. Transformavam ócios inúteis em maravilhosos, animados
e entusiasmados putiruns30, unindo homens, mulheres e crianças na
realização de trabalhos comunitários, acompanhados de palmas, cantorias
e brincadeiras em intervalos predeterminados (cap.3).
A técnica de cultivo guarani consistia no preparo do solo, na
sementeira e na colheita. A limpeza do terreno (capina) era feita à mão
pelos meninos após a chuva. A introdução dos bois para puxarem o arado
facilitava o preparo do solo sem removê-lo em profundidade assim como
na ocasião da limpeza de ervas daninhas o plantio efetivado. A fim de
melhorar a fertilidade de solos ácidos, adicionava-se cal para corrigi-los.
As transformações eram introduzidas em um contexto
sociocultural. À medida que os homens assumiam tarefas na lavoura e
na criação de gado e as mulheres cuidavam mais da prole e dos afazeres
domésticos, mudava a divisão do trabalho por sexo em algumas tarefas.
Incapazes de compreender que uma sociedade indígena pudesse ter
incorporado o desenvolvimento tecnológico e aumentado sua produção,
viajantes atribuíam o progresso das missões à existência e exploração de
minas clandestinas de ouro e prata.
Na verdade, o relativo sucesso provinha do uso de tecnologia
apropriada na agricultura que propiciou melhores rendimentos dos
produtos tradicionais como milho, mandioca, feijão, batata e também
algodão e tabaco. A fiação de tecidos de algodão e o beneficiamento do
tabaco possibilitaram a exportação de excedentes com valor agregado.
Mas foi a venda em grande escala da erva-mate produzida com tecnologia
aprimorada pelos jesuítas que se destacou nas relações de intercâmbio dos
núcleos produtores.
As maiores características das formas de produção e distribuição
foram às relações de trabalho cooperativas e de reciprocidade utilizadas
com frequência, confundidas pelos estudiosos eurocêntricos com
socialismo e comunismo. A originalidade do sistema econômico jesuítico-guarani residia em uma estrutura fundamental indígena que, orientada
pelos jesuítas, adotou novas técnicas e tecnologias e se abriu a um discreto
30 V. Glossário.
140
Considerações Finais
comércio externo que controlava suficientemente a demanda de produtos
vitais. Propriedade coletiva dos meios de produção, formas cooperativas
de trabalho, distribuição igualitária do produto final, solidariedade entre
grupos e indivíduos até hoje despertam o interesse pela atualidade de sua
problemática.
A receita e a despesa de cada missão contabilizadas pelos
jesuítas constituem rica fonte de informações. Os ofícios das missões
ou procuradorias controlavam e coordenavam a redistribuição do
excedente dos núcleos. Administravam as compras e as vendas tanto na
fase de expansão quanto na crise. Registravam os censos demográficos
e econômicos, a formação de capital para além das necessidades básicas
imediatas, com autonomia econômica. Os excedentes fomentavam
a complementaridade entre os núcleos. Desenvolveu-se tecnologia
compatível com os recursos disponíveis e os objetivos ou metas. As
cooperativas guaranis constituíam uma banca em que as sobras líquidas
(saldos de produtos) financiavam investimentos em estradas, escolas,
hospitais e estoques reguladores a fim de enfrentar os usurários. Na
venda para comunidades externas às missões, priorizavam bens com
valor agregado, estimulando sua produção, como tecidos, móveis,
erva-mate beneficiada, couro trabalhado, embarcações fluviais.
A cíclica escassez de grãos era enfrentada com o consumo de carne,
hortaliças, frutas e mandioca. Houve aproveitamento racional dos recursos
agrícolas, pecuários e florestais com desenvolvimento das atividades
artesanais e industriais em um ambiente favorável que permitia satisfazer
as necessidades dos guaranis, não apenas as básicas, como também as
compatíveis com uma vida social, religiosa e cultural intensas. Em uma
segunda fase, ocorreu a intensificação do intercâmbio de bens e serviços
entre os núcleos, abertura ao comércio regional, a fixação periódica de
preços em função de um ajuste entre oferta e demanda que incentivava a
produção e assegurava uma distribuição igualitária dos resultados.
A principal característica do sistema organizado nas missões era
a habilidade e a capacidade de criar uma economia autossuficiente que
assegurava bons rendimentos produtivos e ao mesmo tempo autonomia
frente aos colonos espanhóis. Oposição e acusações surgiram em consequência
dos interesses criados, da fantasia e da suspeita. O êxito da economia das
missões comprovava que os guaranis podiam produzir, usufruir de seus
bens e progredir sem necessidade de submeterem-se à encomienda.
A tecnologia dinamizava a técnica, promovia transformação
e incorporava novo conhecimento. Os guaranis já possuíam
hábitos agrícolas e conheciam técnicas de lavoura rudimentares. O
141
Miranda Neto
desmatamento antes da semeadura era feito com cunhas de pedra e
um bastão pesado e afilado na ponta, feito de urunday (Astronium
urundeuva), madeira duríssima que servia para cavar sulcos no terreno.
O arar era feito habitualmente com o machete31. O homem que sulcava
o solo era seguido por mulheres ou garotos que lançavam as sementes
no interior dos sulcos.
Os europeus agricultores introduziram novas espécies vegetais
e animais assim como instrumentos agrícolas para as suas necessidades.
A transformação se processava do neolítico à idade dos metais. Cunhas,
anzóis, facas eram adquiridos em permuta. Os nativos colhiam a
quantidade necessária de alimentos para o consumo imediato. O restante
era armazenado no próprio solo. De regra, não faziam provisões para o ano.
A introdução do gado menor – suíno, ovino, caprino – não causou
alterações significativas de tal modo que é pouco mencionada nos relatos.
O gado bovino, introduzido em 1555 no Paraguai, foi também em pequeno
número e seu preço alcançava níveis inimagináveis. De 1569 a 1576, o gado
trazido do Alto Peru através de Tarija fez baixar o custo. A multiplicação
do gado bovino ocasionou protestos por ser descontrolada e prejudicar os
cultivos nos pueblos indígenas.
Em 1611, o padre Diogo de Álfaro estabeleceu limites nesta
expansão, conseguindo afastar as chácaras dos colonos das aldeias e roças
guaranis, criando uma faixa de légua a légua e meia separando umas das
outras.
Os jesuítas que se destacaram nesta época foram Roque González
de Santa Cruz, Juan de Cárdenas, Diego de Torres, Oñate e Mastrilli Durán
que compartilhavam a dedicação aos índios, valorizavam a educação e
doavam recursos para melhorar a capacidade produtiva das missões, dos
colégios e ofícios. Dezesseis anos antes, no Peru, o Padre José de Acosta
procurou incentivar a produção como visitador em colégios com dívidas
e “muita fome por granjas e lavouras”.
O aproveitamento dos prados foi proporcional às oportunidades e
aos riscos de outras produções alimentícias. O padre Montoya introduziu
o gado vacum em Guairá a partir de uma ilha fluvial (aluvial) de
Paranapané. Deste núcleo inicial desenvolveu-se a criação bovina na serra
de Tape que originou a Vacaria do Mar, em 1670 (cap. 3).
No último decênio do século XVII, foi criada a Vacaria do Rio
Negro (no Norte do afluente do Uruguai e do Cuareím), vizinha à missão
de Yapeyú. Assim, o gado selvagem tornou-se mais acessível às missões,
menos trabalhoso ao rodeio e ao transporte para a engorda complementar
31 Terçado ou facão de mato.
142
Considerações Finais
nos campos de pastagem. Em 1705, prevendo a exaustão da Vacaria do
Mar e da Vacaria do Rio Negro, esgotadas por aqueles que lucravam com
a exportação de couros, sebos e graxas, o Padre Provincial Lauro Nuñez
determinou a criação da Vacaria dos Pinhais (60 léguas cercadas de serras
e bosques espessos) dotada de mananciais e ricos pastos. Na 1ª fase, mais
de 100.000 reses percorreram 200 léguas para o norte em diversas etapas.
A trágica realidade foi que, em grande parte, as missões não
chegaram a desfrutar desta reserva de gado, tão oportuna quanto
abundante durante a crise alimentar de 1733-1740, devido ao saque
para um comércio depredador empreendido por colonos e funcionários
corruptos.
A perda das prósperas vacarias estimulou mudanças tecnológicas
em 1740: seleção de grandes estâncias para a criação de gado assim como o
fomento de estâncias menores segundo as possibilidades de cada missão. O
gado rosilho, de origem andaluza, com carcaças bem desenvolvidas, destinado
mais ao abate do que ao abastecimento leiteiro, capaz de se alimentar de pasto
natural, encontrou nas planícies do Uruguai uma área propícia, as estâncias
de Yapeyú e São Miguel, com rebanho em expansão cujo abate só se efetivava
após os oito anos de idade. A taxa de nascimentos por ano, de 25% sobre o
total do rebanho, superava os 20% das fazendas “crioulas”.
Yapeyú podia abastecer as missões do Paraná a partir de suas
estâncias nas duas margens do rio Uruguai. Em 1750, a grande estância
de São Miguel, que media 40x20 léguas, chegou a reunir mais de 200.000
reses. Ainda hoje podemos descobrir vestígios de currais rústicos de
pedras completados com estacas toscas (tocos ou esteiotes) que retinham o
gado para sua posterior distribuição. A uns 250 km, ao sul de São Miguel,
no atual município de Lavras do Sul, chama a atenção o “Vale dos Padres
da Companhia”, uma drenagem de duas milhas e meia que criou prados
baixos onde vicejavam pastos permanentes, excelentes para a engorda do
gado ameaçado pela seca. A inovação técnica foi fruto da soma de esforços
e de muitos anos de planejamento, avanços e recuos (cap. 6).
A transferência das missões para a margem oposta do rio
Uruguai, longe de resolver o problema do trânsito ilegal de mercadorias,
antes realizado pela Colônia do Sacramento, agravou o contrabando
de produtos hispânicos através de várias passagens via Sete Povos das
Missões, a partir daí de domínio luso-brasileiro. “Fechou-se uma janela
e abriram-se todas as portas”. Para os guaranis, a transferência foi um
desastre. Representou a destruição do trabalho de gerações e a deportação
de mais de 30.000 pessoas. Estâncias e fazendas de gado, yerbales e ricas
florestas foram invadidos e saqueados (cap.7).
143
Miranda Neto
Em 1801, a conquista definitiva das missões pelos luso-brasileiros
procedentes de São Paulo consolidou-se pelo contrabando do gado guarani
com a conivência das autoridades espanholas que lucravam recebendo
comissões.
No cotidiano da missão, praticamente todas as atividades eram
vinculadas ao culto religioso. A distribuição de alimentos, de ferramentas
e de tarefas efetuava-se após as orações diárias, assim como a ração de
erva-mate que, depois de preparada, era ingerida antes de iniciar-se a
jornada de trabalho. O padre e o regedor determinavam as tarefas do dia,
convocavam os trabalhadores para as sementeiras ou para as oficinas e
obras públicas, conforme plano determinado e época do ano. Enquanto
a maioria da população ativa estava envolvida com as suas atribuições,
os padres visitavam os doentes, as salas de aula e as oficinas, orientando
e fiscalizando a atuação dos respectivos responsáveis e o desempenho da
coletividade. O controle era também executado pelos fiscais de quadra,
responsáveis por cada setor de moradores cuja frequência às missas,
aos trabalhos e às aulas era rigorosamente registrada e cobrada. Oração,
trabalho e lazer estavam organizados ritualmente pelo tempo. Todas as
atividades obedeciam a determinado horário. Estimulava-se o casamento
precoce e a escolha do parceiro e a iniciativa muitas vezes era da jovem.
Os nubentes recebiam um belo reforço na cota de alimentos, além da rede
de dormir e a designação da moradia. A cerimônia coletiva apresentava
toda pompa e brilho, com a igreja festivamente decorada para receber os
casais ao som de cânticos e melodias sacras que valorizavam o evento
(cap. 4).
Como os Vice-Reis e os governadores regionais dependiam das
tropas guaranis para sua segurança, os missionários detinham o poder
para acompanhar o cumprimento das leis que garantiam a liberdade
dos índios, impediam a oferta de bebidas alcoólicas e a própria entrada
dos colonos nas missões. Como a legislação europeia do século XVII
protegia os autóctones como se fossem “incapazes”, na verdade servia
aos propósitos dos jesuítas. Embora considerados cristãos, na prática,
os indígenas continuavam a ser tutelados como seres humanos com
capacidade intelectual limitada.
A partir do século XVI, a política espanhola de segregação no Novo
Mundo teria razões humanitárias. As demais etnias estavam impedidas
de morar nas aldeias guaranis que apoiavam o modelo de segregação
relativa. As devastadoras epidemias de 1576 e 1579 ajudaram a reforçar
esta política: temia-se a promiscuidade e o contágio por doenças para as
quais o autóctone não apresentava resistência.
144
Considerações Finais
Algumas construções resistiram a temporais e ventanias durante
mais de 150 anos e eram bem adaptadas às necessidades coletivas e ao
clima local. Sua vitalidade residual, a energia nelas incorporada até hoje
impressiona, nas ruínas das missões onde formigas, cupins, umidade e
descaso contribuíram para dilapidar o patrimônio ímpar, já abalado por
tantos assaltos e incêndios. Os pisos das igrejas cederam e as paredes se
inclinaram por falta de suporte dos alicerces minados pelos insetos com
seus labirintos de túneis de comunicação.
Visitantes se impressionavam com a higiene, o asseio (mediante
frequentes banhos de rio) e a saúde dos índios. Sob este aspecto, as
missões destacavam-se das cidades hispânicas sul-americanas. Em Santo
Inácio-guaçu há restos de um túnel de 2m x 1m que conduzia a água do
rio em baldes suspensos por um sistema de roldanas. Com frequência
igarapés eram desviados para higienizar os toilettes, reduzindo o risco de
contaminação.
Era habitual um dos padres residir na sede da missão enquanto o
outro jesuíta visitava os doentes, trazia neófitos para a catequese e rezava
missa nas capelas das estâncias. O missionário recém-chegado tinha como
primeira tarefa aprender a língua durante cerca de três meses para ser
examinado por uma banca de quatro padres apontados pelo Provincial.
Só então era considerado apto às demais funções.
Quando longas distâncias podiam ser vencidas por água, os
missionários adaptavam as canoas indígenas a suas necessidades. Cerca
de duas mil embarcações trafegavam no rio Paraná e outras tantas
no Uruguai e no Paraguai. Por terra, os padres mais velhos viajavam
em carruagens puxadas por bois, os novatos montavam a cavalo. As
estradas de terra eram razoavelmente conservadas. Nos deslocamentos
mais demorados, levavam galinhas para garantir a alimentação durante
a viagem. As principais rotas se dirigiam para Assunção, Corrientes,
Yapeyú e Candelária. No Alto Uruguai, havia oito postos equipados
com sentinelas, mensageiros e cavalos a postos para emergências. Havia
caminhos ainda bem perigosos, sujeitos a feras, emboscadas de índios
hostis, conhecidos como trechos evitáveis pelo elevado número de
ocorrências. A manutenção das vias de acesso era compartilhada pelas
reduções beneficiadas, o que incluía o reparo de pontes e aterros (cap. 6).
Ao fim da brutal ação militar conjunta luso-espanhola para
expulsar os autóctones, o processo colonizador acabou aniquilando e
suplantando os ideais missioneiros. A imagem-síntese que permaneceu
após a hecatombe32 foi a de que algumas crianças guaranis sobreviventes
32 Imagens inicial e final do filme “A Missão” de Roland Joffé.
145
Miranda Neto
voltaram à missão devastada pelo massacre e recuperaram um violino de
fabricação guarani, encantado objeto abandonado que flutuava ao léu da
correnteza do riacho... Assim como no início do processo evangelizador,
os jesuítas atraíam os indígenas tocando flauta, ao final a tragédia da brutal
conquista militar luso-espanhola pode ser simbolizada por outro delicado
instrumento abandonado intacto em meio à destruição e devastações
gerais, salvo de seu triste destino pelas inocentes e puras mãos de uma
criança guarani que ainda valorizava o que seus pais tinham produzido
com tanto talento e carinho com o objetivo de continuar encantando
futuras gerações.
A atração que a música e os cânticos sacros em latim exerciam sobre
os guaranis foi observada pelos jesuítas que utilizaram muito o recurso de
valorizar o acompanhamento metódico em seus deslocamentos e no dia a dia.
A princípio desconfiados e arredios, os ameríndios deixaram-se enlevar pelos
sons celestiais e, entre curiosos e maravilhados, aproximavam-se fascinados.
Havia um quê de sobrenatural e universal nesta forma de comunicação.
Atraídos pela música atiravam-se à água e perseguiam nadando o barco mágico
que conduzia os missionários. Arcos e flechas escapavam-lhes das mãos, tal
a admiração e encantamento. Os missionários sentiam-se na obrigação de
traduzir para o guarani o que haviam cantado, despertando-lhes o interesse
de tal modo a se comprometerem a repetir para os mais velhos da tribo as
canções e seu significado. Os padres agora estavam convencidos do efeito
mágico dos corais sacros e iriam tirar o máximo proveito desta constatação:
quaisquer resistências à evangelização e ao ordenamento disciplinar dos
afazeres diários poderiam ser quebrados pela música celestial e pelo badalar
dos sinos. Os próprios talentosos índios iriam tornar-se aplicados discípulos
dos mestres de música missionários e os mais jovens começaram a participar
dos corais religiosos. Cantar no coral passou a ser dever do cidadão.
Praticamente todas as atividades nas missões desenvolviam-se ao som de
acompanhamentos musicais. Tambores acordavam, sinos convocavam para
as missas em que todos cantavam, corais e instrumentos musicais coloriam
de sons a dura labuta diária (cap. 5).
Os jesuítas utilizavam com habilidade o recurso das frequentes
procissões e festas religiosas para atrair o gentio. Cada missão possuía seu
santo padroeiro em cujo dia era feriado e todos regozijavam, extravasando
sua alegria em fogos de artifício. A população se reunia na primeira
missa matutina e os missionários cuidavam para que todos se sentissem
partícipes do ritual festivo e da administração da comunidade, envolvidos
com o sucesso da missão. Os cultos religiosos eram celebrados com
acompanhamento musical composto de flauta, oboé, fagote, alaúde, harpa,
146
Considerações Finais
corneta, clarineta, violino e viola. Após a missa, as danças começavam na
praça defronte da igreja.
O principal objetivo dos Exercícios Espirituais, como que
considerada uma “pedagogia do sobrenatural”, seria regrar a vida do fiel
cristão para que participasse regularmente dos rituais religiosos e dos
cultos na Igreja, convivendo na comunidade e considerando-se integrado
a ela. O desenvolvimentos espiritual do exercitante tenderia a ultrapassar
suas forças naturais ao tentar descobrir a vontade divina na disposição de
viver para a salvação de sua alma. O progresso espiritual dependeria da
vontade de Deus e do seu comportamento como cristão.
A lenda de Pay Zumé – identificado pelos jesuítas como São Tomé –
teria predisposto os guaranis a acolherem os padres com hospitalidade,
aceitando ser “reduzidos” e governados pelos missionários. Eles os
conduziriam à “terra sem mal”, livrando-os da futura destruição do seu
território, prevista na lenda. Os padres conseguiram aos poucos mesclar
elementos cristãos às crenças guaranis e, com habilidade e competência,
curar os enfermos e ministrar rituais, rivalizando com os pajés (cap. 5).
A evangelização foi facilitada pelo conhecimento da língua
guarani por parte dos padres que, entretanto, não ensinavam o espanhol,
alfabetizando os indígenas no seu próprio idioma. Os jesuítas utilizaram-se
também da música, dos cânticos sacros, das representações teatrais, da
dança – ocasião em que os neófitos voltavam às suas origens, pintando o
rosto, o corpo e mascarando-se para representar seus personagens – para
cativá-los e, aos poucos, introduzi-los à cultura ocidental e ao cristianismo.
Artes plásticas como escultura, pintura, cerâmica, artesanato contribuíam
à complementação pedagógica enriquecedora da personalidade, para
quebrar a monotonia do ritual religioso e o cotidiano das tarefas, pois
o indígena se aborrecia e se cansava logo com os demorados sermões,
demonstrando desinteresse e incapacidade de compreender o que os
padres tentavam lhes explicar. As peças teatrais giravam em tomo da
eterna luta entre o bem e o mal, o pecado e a salvação (cap. 5).
O projeto da missão cristã na Província Jesuítica do Paraguai
pretendia ser a conversão a novo paradigma de vida onde se introduziam
elementos ainda que permanecessem muitos dos antigos, se bem que
com novas relações. A originalidade das missões guaranis estava no
modo concreto como os elementos se relacionavam, como se ajustavam
os diversos modos de ser guarani à nova realidade. Havia como que uma
intercomunicação de modelos, uma eficiente dialética com permanente
feedback, uma cotidiana vontade de efetivar na prática, de realizar
localmente o supremo projeto de construção de uma alternativa mais
147
Miranda Neto
humana, democrática e comunitária, cuja eficiência se comprovou através
do excelente nível de comunicação alcançado com o domínio linguístico,
tanto pelos missionários quanto pelos guaranis que chegaram a produzir
textos e cartas veementes dirigidas às autoridades espanholas, civis e
eclesiásticas (cap. 5).
Desde o início, o aldeamento jesuítico foi uma prática,
teologicamente orientada, que sofreu contínuos reajustes e adaptações à
medida das necessidades locais e dos interesses dos “jesuítas da missão”,
conhecedores dos índios e das vicissitudes da catequese, em contraste com
os objetivos dos “jesuítas do colégio”, mais teóricos e ligados aos planos
de Roma. Havia, portanto, divergências sérias no interior da Companhia
de Jesus. O que parece bem claro é a persistente adequação pragmática
do modelo de catequese de início adotado nas primeiras aldeias até
alcançar solução compatível com a mais eficiente utilização da estrutura
tecnológica e do arcabouço teórico disponíveis (cap.5).
Com o passar dos anos, tornou-se evidente a incompatibilidade
entre a missão populosa e a técnica tradicional habitual autóctone
(guarani). Houve a preocupação com melhor rentabilidade e conservação
ambiental ao preservar algumas árvores para sombrear, deixar o solo
úmido sob os bosques conservados semi-intactos.
Os troncos derrubados eram selecionados para carpintaria civil/
religiosa e naval. Evitava-se a perda inútil com queimadas descontroladas.
Um desafio era a escolha do sítio para sede da missão: as condições
propícias deviam atender a duas culturas diversas com objetivos que
deveriam tornar-se convergentes. Mas o fundamental era o fácil acesso aos
abundantes recursos naturais e a posição estratégica, a salvo de investidas
hostis inesperadas. E que permitisse a sedentarização das tribos. A
ventilação era requisito valorizado pois garantia as condições salutares da
região escolhida. A temperatura em geral era amena e não sofria grandes
oscilações durante as estações do ano.
Os padres substituíram as cunhas de pedra por cunhas de ferro,
úteis também para construir canoas. Introduziram ainda espécies vegetais
e animais diversificadas em solos férteis selecionados, isentos de geadas
e secas, o que permitiu espetaculares inovações (missões de Ipanápané,
Loreto e Santo Inácio em Guairá). Os padres desenvolveram chácaras
(granjas) experimentais com espécies-chave para alimentação, vestuário e
saúde (plantas medicinais). A rotação de culturas e pastagens ocorria de 3
a 5 anos conforme a topografia e a fertilidade do terreno.
Em meados do século XVII, os jesuítas, insistentemente
questionados por suas múltiplas atividades financeiras e por não
148
Considerações Finais
observarem as limitações impostas pelo Papa, decidiram enviar o padre
Francisco Burgés como procurador à Congregação de 1670 em Roma,
a fim de rebater as acusações como visitador, com plenos poderes para
esclarecer a situação e providenciar medidas necessárias para contornar
o problema.
A partir deste episódio resultaram fecundos empreendimentos econômicos
concretizados pelos missionários: entre 1680 e 1720 produziu-se a consolidação
da infraestrutura construtiva das missões, destacando-se o Padre Lauro Núñez,
responsável pelo intensivo apoio em efetivar a realização deste extraordinário
esforço coordenado que dotou a maioria dos povoados missioneiros das condições
mínimas indispensáveis para enfrentar as dificuldades que advieram no decorrer
do século XVIII (cap. 3).
Tornou-se vital para o progresso da Companhia de Jesus o
desenvolvimento de uma mentalidade voltada para o trabalho eficiente,
o espírito de equipe, o emprego de uma rede de ofícios tanto para o
cotidiano da missão quanto para as diferentes profissões mecânicas e
manufatureiras. Os próprios missionários foram obrigados a aprimorar
suas habilidades e a empregá-las nas atividades indispensáveis à
sobrevivência e à manutenção do bem-estar da comunidade. Pouco
a pouco, as novas técnicas de produção iam se difundindo entre seus
discípulos e os neófitos envolvidos nas atividades econômicas coloniais.
Como à época, artesãos, artífices e artistas eram escassos, a empresa
missionária revelou-se competente difusora de nova tecnologia ao
se dedicar à formação de mão de obra qualificada indispensável ao
desenvolvimento regional do sistema missões, necessitado de impulso
dinamizador através de inúmeras atividades econômicas diversificadas,
utilizando diferenciadas funções de produção. Os ofícios constituíam o
início do processo de conversão para o sistema de trabalho considerado
pelos jesuítas como “modelo civilizador” na colônia (cap. 6).
Gradualmente inserido à colônia luso-brasileira, o território das
missões foi transformado em módulos de propriedade privada após a
expulsão dos jesuítas. Os guarani-missioneiros, egressos dos Sete Povos e
estabelecidos em aldeamentos no Rio Grande de São Pedro, enfrentaram
três opções de “projetos civilizatórios”: o oficial do Diretório Pombalino,
o da aristocracia sul-rio-grandense ligada aos pecuaristas luso-brasileiros
e o das autoridades locais, todos interessados na melhor utilização da
mão de obra disponível, sempre do ponto de vista de seus objetivos mais
imediatos. Uma sutil diferença destacou os aldeados gaúchos (sociedade
“crioula”, na periferia das missões) a quem foi prometida garantia de
sobrevivência nas estâncias já de seu domínio anterior (cap. 7).
149
Miranda Neto
A consolidação da Colônia do Sacramento, defronte de Buenos
Aires, sob administração luso-brasileira afrontava os interesses hispânicos
de duas formas. Estrategicamente enfraquecia o controle militar sobre o
Prata e economicamente favorecia o contrabando de riquezas, quebrando
o monopólio da Espanha no comércio externo de produtos regionais.
A pressão dos contrariados comerciantes espanhóis sobre a Coroa, no
sentido de reassumir o controle do fluxo econômico via Buenos Aires
e do Marquês de Pombal para afastar os jesuítas do comando político-econômico da República Guarani, viabilizou a assinatura do Tratado de
Madri. Entretanto, cumpri-lo foi difícil (cap. 7).
Como os guaranis reagiram, recusando-se a desocupar as sete
missões, e os padres os apoiaram, reforçaram-se os argumentos favoráveis
à sua expulsão. Os superiores protestaram contra o tratado que seria lesivo
aos próprios interesses da Espanha. Argumentavam que os guaranis haviam
prestado inúmeros serviços defendendo os hispânicos dos invasores luso-brasileiros, como a manutenção das Províncias do Paraguai e do Prata
sob domínio espanhol e salvando Buenos Aires do cerco dos ingleses ao
disponibilizarem uma frota em apoio ao governador, transportando em
segurança o exército de Corrientes a Buenos Aires que havia sido cercada
pelos britânicos em 1667 e 1671. Assunção foi salva dos guaicurus e
mocovis, quando o Paraguai sofria graves desordens, em 1734 e 1736. Até a
autonomia da República Guarani em relação à Espanha fora invocada como
argumento da não obrigatoriedade de se cumprir o Tratado de Madri.
Só anos depois os jesuítas conseguiram persuadir os guaranis
remanescentes a se transferirem para a margem direita do rio Uruguai,
talvez receosos de acrescentar mais ódio e intriga às já problemáticas
relações entre a Corte e os missionários. Entretanto, esta tentativa de
aplacar a ira de Pombal “foi um erro que, em lugar de preservá-los,
acelerou sua queda”33, pois teria evidenciado sua fragilidade e ajudado a
desorganizar a Confederação das Missões. Apesar de a maioria dos padres
anuírem a contragosto com a transferência, os jesuítas foram denunciados
como rebeldes que instigavam os povos à insurreição. De fato, alguns, de
início, pregaram o cumprimento das resoluções do Tratado, mas foram
contestados pelos corregedores-índios que se opuseram veementemente.
No final, a resistência dominou a reação jesuítico-guarani que em breve
iria se transformar em tragédia não só dolorosa pelas perdas humanas
como também dispendiosa para as Cortes, tanto da Espanha como de
Portugal, cujas finanças já estavam comprometidas com a reconstrução de
Lisboa, destruída pelo terremoto de 1755.
33 LUGON, Clóvis, op. cit.
150
Considerações Finais
Na verdade, a resistência guarani acabara salvando para a Espanha,
durante um período, vasto e rico território, “verdadeira muralha” contra
as ambições luso-brasileiras sobre o Paraguai e as minas de Potosí.
Após anos de combates e sofrimentos, as diretrizes dos padres, sua
disciplina e organização estavam pouco a pouco sendo esquecidas, muito
embora tivessem recuperado, em parte, o antigo esplendor econômico.
Durante o interregno 1767-1768, jesuítas e corregedores das missões se
empenharam em convencer a população da inutilidade de persistir na
resistência.
Com o decreto de janeiro de 1768, de Carlos III, foi efetivada a
expulsão dos missionários concretizada a 22 de julho, à força: 150 padres
foram presos nas províncias do Paraguai, Prata e Tucumã e levados para
Corrientes, Santa Fé, Córdoba, Montevidéu e Buenos Aires.
A 3 de agosto, todos os jesuítas tinham sido expulsos das colônias
espanholas. O diário do padre Peramás relata os horrores a que foram
submetidos durante a prisão, sem as mínimas condições de sobrevivência
condigna34. Para agravar a situação, a pena de morte ameaçava qualquer
pessoa que se comunicasse com os jesuítas neste período.
Entre 1767 e 1769, mais de 2.337 padres foram transportados para a
Europa, além de 200 ou mais que acabaram falecendo em consequência das
péssimas condições do cárcere, prolongado por 2 a 3 anos sem julgamento.
A Espanha se recusou a recebê-los e tiveram de se deslocar para a Itália.
Ao largo da costa, aguardaram atracação sob violentas tempestades até
que a Córsega finalmente concordou em recebê-los.
A 21 de julho de 1773, o Papa Clemente XIV, influenciado pela
violenta campanha contra os jesuítas, focada na ousada autonomia
da República Guarani, resolveu suprimir a ordem assinando o Breve
Dominus ac Redemptor. Antes da expulsão, em 1767, em todo o Paraguai
encontravam-se apenas 78 missionários (cap. 7).
A experiência missioneira evidenciou a importância da
contribuição dos valores autóctones à construção de nova civilização
em que modernidade, progresso e desenvolvimento – categorias na
época desconhecidas e ainda ignoradas – estavam latentes com toda
possibilidade de demonstrar sua potencialidade. Integração regional,
autossustentabilidade, desenvolvimento ambiental eram na verdade
praticados no dia a dia sem sequer terem sido teorizados e transformados
em metas econômico-ecológicas de administração pública. O mais curioso
é que muitos destes conceitos surgiram do amálgama de valores já
consolidados no cotidiano indígena tribal com os valores introduzidos
34 HUONDER, Padre, S.J. Katholische Missionen. Freiburg, 1900.
151
Miranda Neto
pelas mais avançadas tecnologias e modelos gerenciais das elites
intelectuais europeias.
O sistema missões contrariava os objetivos dos colonos, mas não
os da colonização espanhola. Ao aceitarem os rituais católicos, os guaranis
não compactuavam com a superficialidade e hipocrisia da “ética religiosa”
mas compreendiam que seria preferível deixar-se maravilhar pelo colorido
religioso-místico-musical. Desse modo, garantiam sua sobrevivência e
reprodução, conseguindo incorporar valores muito caros ao seu íntimo à lógica
organizacional jesuíta, indispensável à nova racionalidade de administração
do tempo para o máximo de produtividade dos núcleos populacionais.
O idioma guarani era por alguns considerado como um dos mais
evoluídos pois possuía tal riqueza e sonoridade que encantava os estudiosos
e todos que usufruíam de sua complexa harmonia e capacidade descritiva
dos fenômenos naturais. Considerado onomatopeico, expressava toda
a biodiversidade da natureza exuberante em movimento. Seria a língua
mais apropriada para dialogar com o ambiente natural e a primeira via de
contato entre jesuítas e autóctones, meio de comunicação para entender e
transmitir valores, captar o sentido das atitudes e reações.
Os jesuítas tentaram entender, estudaram, analisaram e explicaram
gramaticalmente esta língua desconhecida e a divulgaram no exterior.
Desde o início a respeitaram e a utilizavam como meio de comunicação
no dia a dia das missões. O alcance de sua área de abrangência cultural
estendia-se desde o Caribe até o rio da Prata.
Os outros meios de atração e comunicação foram a música e o
ritual religioso.
Hoje o arqueólogo descobre, através dos objetos, o homem que os
produziu. Dos acampamentos romanos, das cidades da Antiguidade aos
mosteiros e abadias medievais, a herança europeia e a herança indígena
(ocas) construíram cidades coloniais e missões que desenvolveram
um modo de ser todo característico conforme os conceitos de espaço e
organização dos colonos jesuítas e dos guaranis na América espanhola.
Houve um acúmulo desigual de espacialidades. De início, deve-se
considerar o espaço natural com toda sua biodiversidade, seu clima e sua
inter-relação com o homem que acaba produzindo o espaço construído, o
qual induz às projeções mentais do espaço pensado ou espaço ideal projetado,
resultado da avaliação dos erros e acertos constatados.
Cada povoado guarani funcionava como uma célula do sistema
de aldeias, teoricamente subordinado à coroa espanhola, administrado
pelos padres e caciques. Não houve hegemonia entre eles e a distância de
um povoado para o outro não ultrapassava um dia de marcha, facilitando
152
Considerações Finais
a comunicação, o transporte e o socorro mútuo. O modelo urbanístico,
baseado nas ordenações de Felipe II e inspirado nos conjuntos de mosteiros
autossuficientes da Idade Média baseava-se em uma grande praça; centro da
vida comunitária onde despontavam a Igreja representando o poder religioso
e o Cabildo, o poder civil. No entorno ficavam as habitações dos neófitos cujo
acesso se dava por passarelas cobertas ao abrigo do sol e da chuva.
Em Candelária, na Biblioteca do Superior das Missões que
atendia os 30 pueblos em empréstimo de livros, segundo o inventário
de 1768 figuravam 102 livros “matemáticos” que enumeravam técnicas
e tecnologias apropriadas e estudos quantitativos do mundo físico;
eram volumes interdisciplinares úteis para a agricultura, a medicina, a
astronomia, a meteorologia, a arquitetura.
A autonomia de cada missão com seus recursos humanos e naturais
estimulava a criatividade, a especialização compatível com uma prudente
diversidade de produtos e serviços e a adaptação tecnológica. As atividades
comuns a vários pueblos, o intercâmbio e a solidariedade ante as emergências
estimulavam a difusão intensa de conhecimentos e habilidades técnicas.
“Quantos contribuíram ao desenvolvimento de técnicas e tecnologias
apropriadas aos pueblos guaranis! A maioria permanecerá no anonimato, até
o dia em que veremos publicada a rica documentação ainda inédita sobre as
diversas artes aplicadas nestes pueblos”35.
Desenvolveu-se uma tecnologia própria suscetível a novos
aperfeiçoamentos. Deve-se ressaltar que a maioria dos jesuítas da
província do Paraguai no século XVIII nasceram em terras americanas.
A comunicação entre ofícios, colégios, residências e missões facilitou
a construção de original e eficiente tecnologia de sobrevivência e
desenvolvimento regional sustentável (Cap.6).
A respeito da distinção entre jesuítas germânicos e latinos, cumpre
esclarecer: antes de 1871 não existia um Estado alemão único. A Assistência
Alemã da Companhia de Jesus incluía missionários holandeses, alemães,
suíços, austríacos, húngaros, poloneses e tchecos, correspondentes aos
reinos da antiga dinastia austro-húngara dos Habsburgos e os territórios do
Sacro Império Romano-Germânico. Eles só puderam vir para as Américas
após 1648, ao término da Guerra dos Trinta Anos na Europa (Paz de
Westfália), igualmente porque Portugal e Espanha impediram a entrada de
estrangeiros em seus domínios no início da colonização, sobretudo na área
das missões. Quando, enfim, foi permitida a participação dos não ibéricos,
35 MASY, Rafael Carbonell de, op. cit.
153
Miranda Neto
ela, contudo, não poderia ultrapassar um quarto do total de missionários.
Mas foram eles que produziram uma “revolução tecnológica” (cap.6).
A redistribuição das missões entre as jurisdições civil e eclesiástica
gerou conflitos de competência. Em 1617 houve a separação da província
do Rio da Prata da Província do Paraguai e em 1620 ocorreu a subdivisão
do bispado.
De 1695 a 1715 dois supervisores subordinados ao Provincial eram
assessorados por quatro consultores no Paraná e quatro no Uruguai. Havia
quatro superintendentes para situações de conflitos no alto rio Uruguai,
no baixo Uruguai, no Uruguai oriental e no alto Paraná, onde ocorreu a
instalação das primeiras missões, todas as quatro consideradas zonas de
fronteira sujeitas a iminente ameaça externa.
Em 1727 o critério geográfico de divisória de águas (entre os rios
da bacia do Paraná e os da bacia do Uruguai) foi adotado para repartir
competências: treze missões eram politicamente subordinadas ao Paraguai
(Assunção) e dezessete a Buenos Aires. O padre superior deveria residir em
Candelária, localizada em ponto estratégico acessível a todos (cap. 7).
Política a administrativamente, as missões subordinaram-se a
Buenos Aires embora do ponto de vista eclesiástico estivessem repartidas
entre Assunção e Buenos Aires. Um superior da Província de Misiones
poderia coordenar a Confederação das Missões enquanto a administração
interna dos pueblos era secundada pelos curas.
A comercialização da produção ficava a cargo das procuradorias
(ofícios) de Santa Fé e Buenos Aires. A integração e organização interna
foi seriamente afetada pela crise pós-expulsão dos jesuítas, concluída em
julho – agosto de 1768. O governador de Buenos Aires, Francisco de Paula
Bucarelli (1766-1770) tentou reorganizar o espaço das missões (cap. 7).
A Companhia de Jesus sabia utilizar-se da mídia para divulgar seus
documentos e sua ação evangelizadora de modo eficiente e inédito, no
contexto histórico. As Cartas Ânuas constituíram um verdadeiro fenômeno
de marketing político, uma das primeiras campanhas propagandísticas
dos tempos modernos. Seus membros eram incentivados a periodicamente
escrever cartas a seus superiores relatando suas atividades e opiniões. A
Companhia tornou-se, em pouco tempo, empresa internacional tanto pelo
destino de suas ações quanto pela origem de seus membros que deveriam
“estar unidos entre si e com a cabeça”.
No decorrer de suas conquistas e realizações, os escravos negros
tornaram-se fundamentais à manutenção e ao crescimento econômico
patrimonial dos colégios e empresas da Companhia de Jesus, o que
maculou profundamente o sentido ético de sua atuação. Sem a escravização
154
Considerações Finais
dos africanos seria impossível montar a empresa da colonização, um dos
maiores empreendimentos do capital comercial na época.
A Colonização é a resolução de carências e conflitos da matriz e uma
tentativa de retomar, sob novas condições, o domínio sobre a natureza e
o semelhante que tem acompanhado universalmente o chamado processo
civilizatório. Constitui um projeto totalizante com o objetivo de ocupar
um novo chão, explorar os seus bens, submeter os seus naturais. Novas
terras, novos bens abrem-se à cobiça dos invasores. Reaviva-se o ímpeto
predatório e mercantil que leva à aceleração econômica da matriz em
termos da acumulação de riqueza. Pode-se calcular o que significou para a
burguesia europeia, em plano mercantilismo, a maciça exploração açucareira
e mineira da América Latina. A colonização do Novo Mundo atuou como
um agente modernizador da rede comercial europeia durante os séculos
XVI, XVII e XVIII. Nesse contexto, a economia colonial foi efeito e estímulo
dos mercados metropolitanos na longa fase que medeia entre a agonia do
feudalismo e o surto da Revolução Industrial36.
Ao contrário dos bandeirantes, cujo objetivo era tão somente
o apresamento do índio (e não a expansão territorial), a empresa das
missões visava também a ocupação física como estratégia geopolítica de
caráter permanente pela sua própria finalidade. O que “a Companhia de
Jesus realizou com singular pertinácia e sem nenhum sentido nacional”37.
Quando houve “o refluxo jesuítico para a mesopotâmia Paraná-Uruguai e para o Paraguai, deixou vazio o território em que se haviam
articulado as missões”, sem ocorrer na ocasião nenhuma tentativa, por
parte dos paulistas, de ocupação do território recém-desocupado.
Nas planícies sulinas, entretanto, onde as missões mantinham
suas estâncias, o gado encontrou um meio físico extremamente favorável
e nele se multiplicou à lei da natureza. Foram estes os rebanhos que,
nas Vacarias do Mar e dos Pinhais, os paulistas encontraram, em época
posterior, servindo de base ao povoamento do continente de São Pedro.
36 37 BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização. São Paulo: Cia. das Letras, 1995.
SODRÉ, Nelson Werneck. Formação Histórica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1968.
155
Apêndice Teórico – Metodológico
Alguns modelos de desenvolvimento regional podem ser
identificados na experiência de cerca de século e meio do sistema Missões:
– Dependente de crescente disponibilidade de recursos em que a oferta
abundante provocava sua própria demanda (A mudança técnica utilizou
conhecimentos já existentes enquanto que a mudança tecnológica introduzia
novos conhecimentos).
– Dependente da expansão dos mercados com enfoque keynesiano.
– Dependente do planejamento do espaço geográfico e da distribuição dos
recursos.
– Dependente das instituições com propósito comum na resolução de conflitos
e conforme normas de comportamento (A mudança institucional contribuiu
para o desenvolvimento rural dos pueblos guaranis)38.
A empresa evangelizadora nunca se separou da empresa
dedicada ao desenvolvimento das comunidades rurais. O espiritual
era indissociável do temporal. A gradual formação de populações com
bem-estar físico e espiritual simultâneos eram requisitos necessários
38 MASY, Rafael Carbonell de. Estratégias.
157
Miranda Neto
à catequese e à colonização dos pueblos. Prioridades na designação de
pessoas, recursos e atividades foram atribuições da Companhia de Jesus
que agia de acordo com diferentes grupos de ameríndios, organizações
políticas, eclesiásticas e missionárias envolvidas nas ações econômicas e
sociais no novo continente.
Alguns questionamentos, entretanto, precisam ser colocados.
As comunidades guaranis teriam conseguido participar ativamente
da gestão dos programas em seu benefício? Os resultados corresponderiam
às expectativas?
Qualquer pesquisa imparcial e objetiva necessita libertar-se de
todas as formas de preconceito. As estratégias de desenvolvimento
aperfeiçoaram a capacidade produtiva e de serviços de cada missão.
Para viabilizá-las, comprometeram recursos a longo prazo. Expectativas
e resultados em dois contextos institucionais distintos precisam ser
comparados. Muitas estratégias de desenvolvimento rural de ontem
repetem-se hoje e, assim, tornam-se pedagogicamente reveladoras.
As intrigas políticas, calúnias e acusações contra os jesuítas na época
de sua expulsão das possessões portuguesas e espanholas prejudicaram
até a recuperação de farta documentação sobre as missões guaranis. A
avaliação de evolução das estratégias de desenvolvimento socioeconômico
das missões da Província Jesuítica do Paraguai precisa basear-se nas suas
fontes: Manuscritos da Coleção de Ângelis, Cartas Ânuas, relatos dos
jesuítas, Atos das Congregações Provinciais, Documentação dos Ofícios de
Missões e bibliografia básica indispensável. Além das manifestações dos
autóctones que, por meio de suas atividades, comportamentos e reações,
procuravam evidenciar sua criatividade e sensibilidade e tentavam
alcançar o bem-estar possível com os meios ao seu alcance em cada
contexto histórico (objetos de cerâmica, madeira, instrumentos musicais).
Até que ponto os povos guaranis seguiram modelos preestabelecidos
conforme a experiência de Juli39 ou se submeteram a tentativas de salvar a
autodeterminação e a sustentabilidade das missões?
O cultivo da mandioca caracterizava os tupis. O do milho, os
guaranis. Adotavam a rotação de culturas segundo as necessidades
próprias de cada produto agrícola. Os guaranis, entretanto, careciam de
uma organização sociopolítica unificadora. Só se coordenavam por razões
de sobrevivência e defesa. O “império permanente” nem era cogitado.
Dentro de cada grupo, os chefes de unidades macrofamiliares
reuniam vassalos e quem pudesse ampliar seu prestígio médico-religioso
com a persuasão retórica, atraindo jovens do sexo feminino de outros grupos
39 Melhor detalhada a seguir.
158
Apêndice Teórico – Metodológico
vizinhos a fim de integrá-las em sua moradia comunal, reservando-se
o direito sobre a prole ou para uni-las a membros da macrofamília
(cunhadismo, compadrio).
De 1580 a 1640, deu-se a união das Coroas Ibéricas. Em 1607, o
governador Hernan d’Árias sugeriu ao rei desmembrar a província de
Guairá. Em 1617, o desmembramento foi efetivado, desde Corrientes
para o sul com capital em Buenos Aires, e administração do Paraguai com
capital em Assunção. Guairá permanecia com fronteiras imprecisas onde
os guaranis sofriam tanto pressão dos encomenderos espanhóis quanto dos
paulistas traficantes de escravos. Contudo, com a união entre Espanha e
Portugal, o povoamento, a convivência pacífica e a evangelização poderiam
ter sido estimuladas, atingindo novo impulso e dinamismo.
A missão consistia em reunir tribos dispersas em núcleos
localizados geralmente em promontórios à beira de cursos d’água onde se
erigia a igreja, para cuja construção deveriam haver recursos disponíveis
incluindo a manutenção dos padres, a celebração de cultos e a liberação
dos índios nos dias santos e fins de semana.
Os franciscanos Luís de Bolaños e Alonso de Buenaventura
fundaram as primeiras reduções e aldeias no Paraguai entre 1580 e 1615,
ainda sujeitas à jurisdição do Rio da Prata.
Em 1589, na província de Guairá, os jesuítas Ortega e Fields
continuaram a obra dos franciscanos. Observe-se que a Companhia de
Jesus iniciara suas atividades em 1549 no Brasil, e aos poucos conseguira
aperfeiçoar o modelo missões, incorporando a experiência adquirida.
A lei de 30-07-1609 declarou livres os índios cristãos e não cristãos;
e, como pessoas livres, só poderiam trabalhar por salário. Em 1611, na
região colonizada pela Espanha, a legislação em Assunção eliminou o
“serviço pessoal” e impôs um tributo ao índio submetido a um trabalho
limitado (mitayos). Tanto a corrente humanitária quanto a mercantilista
não conseguia resolver os problemas por mero decreto, nem no Brasil nem
nas administrações do Rio da Prata e Paraguai.
Com a união das Coroas caiu a barreira principal. Os jesuítas do
Brasil foram ao Paraguai como numa missão pastoral a partir de 1587, com
apoio do primeiro bispo de Tucumán frei Francisco de Vitória (em 1584, ele
solicitara envio de jesuítas aos provinciais do Brasil e do Peru). Os do Peru
consideravam os procedentes do Brasil como seus mestres pelo domínio do
guarani e a grande experiência. O padre geral Acquaviva decidiu criar, em
1604, a Província do Paraguai abrangendo Tucumán e Rio da Prata, cujo
primeiro provincial foi o padre Diego de Torres, que resolvera adotar a
doutrina desenvolvida no Peru como modelo.
159
Miranda Neto
O Padre Diego de Torres, superior da residência jesuítica de Juli
entre 1581 e 1586, defendeu a assistência perpétua da Companhia de
Jesus aos índios. Desde novembro de 1576, quatro padres e três irmãos
jesuítas coordenavam a doutrina de Juli, às margens do lago Titicaca
na província de Chucuito, a mais povoada do Peru, com cerca de 4000
índios que pagavam tributo ao rei, totalizando quase 14.000 habitantes.
A doutrina estava dividida em três paróquias. A escola infantil e as
irmandades estimulavam uma participação ativa na catequese, na música,
nas representações teatrais educativas, nas repreensões dos jovens aos
adultos pelas bebedeiras, pela idolatria, etc. Havia grande expectativa
com a educação desses rapazes e moças na evolução dos costumes nos
pueblos. Na residência de Juli os jesuítas podiam orar, estudar línguas e
planejar soluções para diversos problemas.
Conforme Juli ampliava sua influência, a economia se diversificava:
exploração de salinas, pesca e pecuária. Mesmo assim, o início foi
difícil. Ante as necessidades sanitárias e alimentícias, as decisões eram
meramente assistenciais: esmolas aos pobres e tratamento de enfermos
em improvisado hospital. O planejamento a longo prazo deveria definir
claramente o compromisso permanente dos jesuítas.
O investimento em pecuária seguia critérios de solidariedade
cristã. Ao lado da produção de gado de corte e leite havia o projeto de
constituir colégios. As próprias lideranças indígenas reconheciam a
importância da escola na educação da fé católica, na leitura, na escrita e
nos bons costumes, em complemento ao projeto jesuítico do seminário
de estudos em que os noviços também aprendiam línguas indígenas e
conheciam seus hábitos e tradições.
Cada vez que ocorria fracasso das colheitas, sobretudo de cereais,
em especial de milho, os produtos da pecuária compensavam as falhas
no abastecimento. Além das crises transitórias na oferta de alimentos,
os cuidados com a manutenção da mãe de família, responsável pela
cerâmica, tecelagem e artesanato mereciam destaque. Havia grande
preocupação com o bem-estar da mulher produtiva e apoio às mais idosas
ou incapacitadas.
A estância abastecia de carne as quatro paróquias. Um dos maiores
problemas sofridos pela “doutrina” de Juli eram os deslocamentos anuais
dos mitayos a fim de prestar serviços diversos em Potosí. Muitos indígenas
fugiam e davam trabalho aos alguacis (oficiais de justiça) e preocupação
à mão de obra remanescente. No início do século XVII, cerca de 1.900
índios da Província de Chucuito foram trabalhar nas minas. Nesta época,
a população total ascendia a 5000 habitantes. Em 1578, já haveria 10.000
160
Apêndice Teórico – Metodológico
adultos cristãos e em 1600, entre 18.000 e 20.000. Nesta época, as quinze
igrejas ainda eram de construção precária.
O pior de tudo era a forte oposição de um grupo de autóctones
que, além de se mostrarem arredios à catequese, perseguiam, debochavam
e insultavam os devotos e virtuosos fiéis. Os caciques de Juli saíam em
defesa dos padres e de sua obra, tendo conseguido interceptar uma carta
dos índios rebeldes a Felipe II exigindo pronta substituição dos jesuítas.
A experiência de Juli foi positiva, plena de ensinamentos e
sugestões, mas também sujeita a aspectos indesejáveis e discutíveis. O
importante era situar as missões em uma comunidade à parte e não ao
lado de pueblos espanhóis ou dentro deles como Cuzco, Potosí... E com
recursos programados suficientes para sustentar o modelo até nas crises.
A estratégia viável das missões recomendava iniciá-las nas terras
confinantes às dos indígenas, facilitando o contato com cristãos e, assim, o acesso
a sítios mais distantes. Os guaranis aceitavam os espanhóis desde que observados
a amizade e o mútuo respeito; nunca em condições de subordinação imposta.
Os primeiros núcleos de apoio às missões foram:
1. Cidade Real de Guairá;
2. Vila Rica do Espírito Santo;
3.Assunção;
4. Santiago de Xerez;
5.Corrientes;
6. Santa Fé;
7. Conceição do Rio Vermelho;
8. Buenos Aires.
A experiência de Juli influenciou os jesuítas na fundação das
primeiras missões no Paraguai. A relação direta com a Coroa e não com
os encomenderos diferenciou as características das missões jesuíticas das
missões dos franciscanos.
A Carta Régia de Felipe II de 1591 autorizava e apoiava os jesuítas
na fundação das missões que só se reiniciou quando a Companhia de Jesus
conseguiu melhorar a segurança dos missionários ao impedir as agressões
dos colonos aos índios, que antipatizavam, hostilizavam e desconfiavam
de todos os “cristãos” (autointitulados). O padre Torres incentivava os
jesuítas a darem o exemplo ao estabelecerem relações contratuais livres
com os autóctones assistidos pelos respectivos colégios.
Os guaranis eram considerados bons agricultores/lavradores que
semeavam em colinas e a cada três anos, pelo menos, trocavam de sítio.
161
Miranda Neto
Arbustos eram arrancados e cortados, em seguida as árvores maiores
também eram podadas; após um curto período, os galhos (com as folhas)
cortados já secos eram queimados; as cinzas daí resultantes aqueciam
e fertilizavam o solo. Após as primeiras chuvas, plantava-se milho,
mandioca e outras raízes e legumes que produziam boas colheitas. Em
algumas terras próximas a Assunção obtinham até duas safras de milho
ao ano. Havia empenho em escolher os solos mais férteis como condição
indispensável para desenvolver uma missão. A divisão dos terrenos e o
início das lavouras exigiam paciência e generosidade.
Quando os homens assumiam algum importante serviço para
a comunidade ou iam à caça sabiam que poderiam festejar à noite
ingerindo uma bebida fermentada obtida a partir do milho (espécie de
chicha). Contudo, índios e índias ouviam a orientação do missionário e,
aos poucos, transferiam-se para o sítio da missão recém-formada onde os
solos eram mais férteis. Tratava-se de lento processo de convencimento
e troca de presentes, gratificações e lembranças como anzóis, contas de
vidro, facas, cunhas de ferro, pentes, doces. Mas a adesão incondicional
só ocorria quando indígenas fiéis arriscavam suas vidas para defender
a comunidade dos belicosos payaguás que, com suas velozes pirogas,
espalhavam pânico nos rios.
Cada cacique queria ser o comandante de seu povo, sem sujeitar-se a
outro. Foi difícil persuadir da necessidade de haver um só chefe. Igualmente
foi um longo exercício tentar adequar o tamanho e o número de missões
aos recursos disformes e às características dos guaranis “reduzidos”. Sem
pressões externas, por convencimento pessoal, gradualmente, os guaranis
deixavam seu sítio de origem, sua taba, seu modo de vida e tentavam
adaptar-se da melhor maneira possível à nova realidade.
Os terrenos eram férteis, extensos e suficientes para ocupar
muitos trabalhadores. Havia fartura de água e lenha. Nas matas, grande
variedade de caças. Com a criação de bovinos, resolvia-se também o
problema do transporte e da lavoura, pois as reses ajudavam a arar o solo.
O abastecimento de carne e leite para a comunidade e os padres também
ficava garantido e reforçava a alimentação diária. A residência dos jesuítas,
sustentada com recursos próprios, deveria tornar-se um seminário de
línguas, pois abrigava a nata guarani.
As moradias do novo pueblo eram logo ocupadas pelas famílias já
que os chefes estavam ansiosos em repartir as quadras entre si. No centro
ficava a praça, a igreja e a residência do padre.
O uso racional do bosque não permitia a queimada desnecessária
das plantações circunvizinhas. As madeiras eram reservadas para a
162
Apêndice Teórico – Metodológico
construção da igreja e da moradia com o menor custo e trabalho dos índios
possível. Tanto eles quanto os jesuítas sentiam-se recompensados e felizes
pela obra realizada.
O tamanho da missão dependia das características próprias
de cada grupo indígena e os limitados recursos naturais. E também a
possibilidade de adequada instrução religiosa condicionava a expansão
da rede de missões em função do número de jesuítas disponíveis.
Evolução da População das Missões e do Número de Jesuítas, Século XVII
Ano
Nº de
Missões
População
Total
Sacerdotes
Irmãos Coadjutores
1647
20
28.714
42
5
1660
20
37.412
36
4
1682
20
67.561
44
3
1700
27
86.172
66
4
Fontes: CARBONELL DE MASY, Rafael op. cit. MAEDER, A. J., op. cit.
Os planos de evangelização concretizaram-se em duas etapas:
1. Bacia do Paraná (1614-1619)
2. Bacia do Uruguai (1619-1628)
O padre Roque, em sua vida missionária, distinguiu-se em ambas.
A abundância em algumas missões socorria a escassez em outras e
foi essa colaboração mútua e esse intercâmbio solidário que caracterizou
a excelência da administração “confederativa” e o desenvolvimento
regional sustentável, pois respeitava a natureza e só utilizava os recursos
disponíveis.
Desde o início, os guaranis só aceitaram a assessoria dos padres,
repudiando a administração direta dos espanhóis, em varias tentativas
do governador do Rio da Prata em ferir a autonomia das missões. Os
índios chegaram a exigir a expulsão dos regedores hispânicos nomeados
por Francisco de Céspedes “se não quisessem ver perdida toda esta
província”. O governador foi obrigado a voltar atrás.
Havia também a disputa pelo poder com os xamãs, temerosos de
se verem alijados pelos missionários da liderança do gentio. Em 1628,
uma revolta liderada por Ñezu culminou com o assassinato dos padres
163
Miranda Neto
Roque González, Alonso Rodrigues e Juan de Castillo e abriu severa
crise na evolução da Confederação das Missões.
As missões, fundadas a certa distância dos povoados espanhóis,
objetivavam preservar legítima autonomia sem se isolar completamente
da outra sociedade sujeita à mesma coroa. Sempre houve a esperança
de manter a possibilidade de acordos e bom relacionamento entre
grupos indígenas e espanhóis trabalhando em condições mutuamente
vantajosas. O que urgia era eliminar o tráfico de índios escravizados para
o Brasil ou para Buenos Aires, à margem das autoridades públicas.
Afinal, a Coroa reconheceu o direito dos guaranis “reduzidos”
de se defender adequadamente com armas de fogo. A palavra régia
reforçava o respeito a suas terras e seus bens. A autodeterminação e a
segurança garantiam a base fundamental para desenvolver os novos
núcleos rurais na região mais fértil da bacia uruguaia.
A propalada riqueza mineral de Guairá contribuía para produzir
cunhas, facas e outros instrumentos de ferro, úteis para aumentar a
produtividade e eficiência do trabalho agrícola e para as permutas por
outros bens.
A preferência inicial pela bacia do rio Tibagi se explicava por ter
sido considerada à época a região mais povoada de índios e pastoralmente
abandonada. O conhecimento mútuo entre distintos grupos indígenas
fornecia as condições iniciais para fundar as missões assim como a
segurança frente a um serviço pessoal abusivo que forçava decidir entre
escravidão ou morte e o possível aproveitamento agrícola dos recursos
disponíveis.
Os progressos alcançados no ensino, na doutrina e na convivência
cristã serviam de atrativo aos caciques de outras tribos afastadas que
solicitavam adesão aos padres responsáveis pelas missões bem-sucedidas.
Apesar de muitas dificuldades e intrigas políticas, nada conseguiu deter o
desenvolvimento rural de Loreto e Santo Inácio, modelos inovadores no
aproveitamento eficiente dos recursos naturais da região de Guairá.
A margem dos cursos d’água era preferida tanto pela pesca quanto pelo
saneamento, pois era protegida por matas ciliares que ocultavam o sítio dos
inimigos e permitiam a prática de uma lavoura temporária, em solos arenosos e
úmidos, sobretudo produzindo cereais e tubérculos como a mandioca. Muitas
vezes esse cultivo era limitado pelo receio dos índios de serem descobertos, o
que diminuía também a área cultivada de milho e feijões.
O trabalho insano de colher, transportar e beneficiar a erva-mate
com mercado em ascensão era incentivado por aqueles que lucravam com
o contrabando da prata e a venda de mercadorias.
164
Apêndice Teórico – Metodológico
Na pecuária, em Guairá, os espanhóis só haviam conseguido
criar caprinos, ovinos, suínos e equinos. Só a partir de 1614, os padres
Cataldino e Montoya introduziram, procedentes de Assunção, uns
cinquenta bovinos. Uma ilha (a 3 léguas de outras ilhas contíguas) com
cerca de 2km2 de área e que dividia o Paranapanema era utilizada como
estância para o gado.
A população dos núcleos missioneiros, agora mais concentrada,
demandava novas produções e uso mais seletivo dos solos, desde
hortaliças iniciadas pelos padres, mandioca, legumes, cana-de-açúcar,
trigo, videira, arroz... As grandes variações de temperatura prejudicavam
as colheitas de algodão e a própria saúde humana.
O gado bovino e caprino fornecia leite, manteiga e queijo. A
lamparina votiva do Santíssimo Sacramento em Loreto utilizava manteiga
como combustível. Havia vários testemunhos de que os missionários a
esta altura conseguiram “reduzir” diversas tribos guaranis “a forma de
una muy ordenada republica... en tierra donde jamás se vio nada de esto;
han hecho los padres estancia de vacas, ovejas, cabras y plantado viña y
cañas dulces; hecho unas iglesias admirables y capacíssimas...”40.
Os guaranis participavam ativamente do novo modo de vida. Os
caciques conseguiram conter as bebedeiras e apoiar a colaboração mútua.
Os missionários, a partir de determinado momento, com a configuração
dos pueblos cristalizada, não precisavam mais produzir para sua própria
sobrevivência: ocorria a contribuição real e dos índios que se esforçavam
em abastecer a dispensa dos padres com legumes, pescado, frutos
silvestres e mel. Por escambo, muitos bens foram adquiridos, emprestados
e permutados. A cordial hospitalidade dos guaranis confortava quem
com eles convivia. Com o progresso econômico e técnico, as missões
conjugavam o intercâmbio entre os próprios índios com a generosidade e
apoiavam a expansão do sistema para outras regiões.
O conjunto de missões apresentava a síntese do desenvolvimento
rural mutuamente complementar. Loreto, com sua especialidade em
pecuária, era ampliada com novas pastagens. Santo Inácio produzia
algodão e cereais. Além da produção comunitária (lavoura e gado) havia a
produção intensiva do grupo familiar liderado pelo seu respectivo cacique
(avicultura e hortaliças).
A tecelagem do algodão movimentava razoável comércio de
tecidos que conseguia vestir viajantes, índios e europeus. Em Guairá,
foram contratados carpinteiros espanhóis para ensinar seu ofício aos
guaranis (pedagogia ativa dos jesuítas que incentivava a criatividade).
40 Carta Ânua II p. 204, 1617.
165
Miranda Neto
Os índios tinham a obrigação de servir aos encomenderos colonos de
Assunção durante dois meses ao ano e, em contrapartida, serem por eles
defendidos, o que de fato raramente ocorreu.
Os teares de Santo Inácio ofereciam tecidos a preços mais vantajosos
em intercâmbio com erva-mate. Os espanhóis chegavam a explorar minas
de ferro cujo produto era trocado por tecidos de algodão procedentes das
missões guaranis.
A navegabilidade dos rios Paraná e Uruguai facilitava a
comunicação entre as missões fundadas pelo padre Roque. Algumas, como
Itapuá, produtora de cereais e gado, Conceição e São Nicolau, exerciam
também a função de ponto de parada obrigatória aos viajantes, venda,
pousada e hospital. Por outro lado, a topografia acidentada a leste, ao
longo do litoral, e ao sul, limitava o intercâmbio até com tribos de línguas
e culturas diferentes, pois tornavam “penoso o caminho dos missionários
desprovidos de equinos durante mais de 18 anos”. Portanto, no Guairá, as
missões consolidadas situavam-se distantes das novas frentes de expansão
tanto em direção leste quanto sul.
Um dos alimentos mais consumidos na região das araucárias eram
os pinhões, que reforçavam a dieta no segundo trimestre de cada ano.
Em 1625, São Francisco Xavier, que havia crescido para mais de
1.500 habitantes, sofreu devastador incêndio, forçando o corregedor à
reconstrução do núcleo em melhor sítio localizado em um promontório
bem abastecido de água, lenha e solo propício à cultura de vinhedos. O
padre provincial estabeleceu o limite de 1.300 familiares a fim de que
a superpopulação não se tornasse ingovernável. Os missionários só
batizavam os índios devidamente preparados que o solicitassem.
Em 1626, fundou-se Encarnação às margens do Tibagi, trasladada
em 1627 para uma serra cujo vale fértil era dotado de águas cristalinas o
que propiciou a expansão de uma comunidade próspera e emoldurada
por araucárias. Todas essas missões apresentavam um padrão comum
que servia de modelo às demais. A de São José, fundada em 1625, havia
sido construída equidistante de São Francisco Xavier e Santo Inácio, sob
orientação do padre Durán Mastrilli, a fim de facilitar a comunicação
por terra entre elas. A carne seca bovina de Loreto abastecia os viajantes.
Por esta estrada também eram conduzidas as reses vivas em direção a
São Francisco Xavier, pois, desde que houvessem condições propícias
à pecuária, estâncias seriam criadas entre os núcleos populacionais.
Encarnação (Itapuá), como ponto de partida ou escala para a fundação
de outras missões, cultivava rabanetes, salsa, cenoura, alho, cebola;
e, naturalmente, milho e feijão, sob orientação dos padres Mendoza e
166
Apêndice Teórico – Metodológico
Espinosa que se dedicaram também às oficinas e depósitos de utensílios,
ferramentas e produtos.
A escassez de missionários forçava a determinação de prioridades.
Em 1621, em Guairá, atuavam sete jesuítas em duas missões com visitas
periódicas a diversas aldeias. Em 1625, seis padres atendiam cinco
missões sendo que apenas São Francisco Xavier já então contava com
1.300 famílias. O padre Montoya precisou administrar a contradição de
consolidar as missões fundadas, coordenando as atividades e ao mesmo
tempo atender às necessidades prementes dos demais grupos indígenas
dispersos e diversificados.
O sistema de ajuda mútua complementar criava novo potencial
produtivo em uma missão através do auxílio recebido de outra e a
comercialização, por escambo entre os núcleos, de ferramentas metálicas
por tecidos de algodão, por exemplo, e até o planejamento de um pueblo
incorporando a exploração de salinas recém-descobertas. O objetivo
real era consolidar as missões graças à cooperação, ao intercâmbio e à
complementaridade entre elas.
O padre Antonio Ruiz de Montoya, adepto desta ideia, conseguiu
(com a ajuda de caciques das aldeias do rio Paraná) abrir uma estrada
unindo-as ao Guairá e estabelecendo o intercâmbio entre ambos os grupos
de missões. O novo itinerário, que possibilitava a colaboração até com as
missões do Uruguai foi, entretanto, em fevereiro de 1629, proibido de
ser utilizado pelos jesuítas por ordem do governador do Paraguai, Luiz
Céspedes Xería, com interesses econômicos no Brasil.
Os missionários arriscavam suas vidas em meio a tribos em sua
maioria hostis e inconstantes. Ao lado dos espanhóis amigos havia uma
população oportunista dominada pela cobiça e por autoridades corruptas.
A experiência demonstrou que apenas os cultivos não sustentavam
a missão. Havia necessidade de criar gado maior e menor a fim de obter
os subprodutos – carne, leite, laticínios, couros – além de garantir animais
de tração e transporte. Apesar disso, os índios “reduzidos” continuaram
com seus deslocamentos habituais a fim de cultivar e colher a erva-mate
nos ervais silvestres tanto para autoabastecimento quanto para produção
mais diversificada e elaborada, destinada à venda externa.
Em 1628, os bandeirantes aliados aos tupis iniciaram os ataques
às missões em busca de mão de obra para os engenhos de açúcar,
principalmente. Calcula-se que cerca de 40.000 guaranis já estivessem
“reduzidos”, coordenados pelos missionários. Em 1629, foram
escravizados cerca de 10.000. Em 1631, perto de 30.000 (muitos acabaram
morrendo antes de chegar ao destino).
167
Miranda Neto
Embora a legislação real a favor dos índios tivesse sido sancionada,
na verdade ela nunca fora de fato aplicada. Sempre as autoridades
coloniais conseguiam contorná-la, obrigando os homens disponíveis a
trabalhar nos ervais para os encomenderos.
Na iminência dos ataques dos bandeirantes, em fins de 1631,
o padre Montoya organizou o êxodo de cerca de 10.000 habitantes de
Loreto e Santo Inácio. Mais 2.000 pessoas de outras missões em cerca
de 700 balsas e canoas desceram o rio Paraná e tentaram fixar-se ao
sul do salto Guairá. Com os sobreviventes da acidentada e trabalhosa
viagem finalmente conseguiram refundar Loreto e Santo Inácio. As
dificuldades foram muitas mas, aos poucos, foram superadas com
persistência, trabalho árduo, organização e disciplina. Dos 12.000
que saíram de Guairá só sobreviveram 4.000. Ao todo, dos milhares
de índios escravizados já “reduzidos”, apenas mil sobreviveram para
serem comercializados.
O que salvou essa hercúlea tentativa de reerguer a confederação
das missões foi a intensa solidariedade entre elas e o significativo aporte
de gado bovino procedente de Corrientes doado pelo mestre do campo
Manuel Cabral. Teriam sido cerca de 40.000 reses. Apesar das dificuldades,
foram adquiridas sementes para garantir o plantio de várias culturas
cujas safras demorariam meses, além das inevitáveis perdas causadas por
pragas e intempéries.
Em Itatim, distante 50 léguas de Assunção de cujo colégio
receberam apoio, e distante 12 léguas do rio Paraguai, os padres belgas
Van Suerck e Ransonnier, o padre francês Hénard e o padre italiano De
Martino fundaram quatro missões, cada uma com 300 famílias em média,
que podiam contar com bovinos e equipamentos agrícolas: Santo Inácio de
Caaguaçu dotada de ervais, muita caça e pesca e depósitos de sal; Nossa
Senhora da Fé, Santo Inácio II e Santiago. No Tape foram criadas doze
missões entre 1631 e 1635, sob orientação do padre Roque González. Neste
período, 1580-1640, com a União das Coroas Ibéricas, a imprecisão de
limites entre possessões hispânicas e luso-brasileiras prosseguia durante
todo o século XVII. Entretanto, os guaranis nas missões tinham plena
consciência das suas terras e autonomia.
Após a vitória de Mbororé em 1641, patrulhas de vigilância de
índios cristãos recorriam periodicamente à banda oriental. Em 1645, o
Padre Provincial ordenou ao Superior das Missões colocar mais vacas
nos pastos das antigas missões sem imaginar que o gado, posteriormente
abandonado durante a precipitada fuga de 1637, iria descer em direção ao
sul e à costa atlântica, originando a Vacaria do Mar.
168
Apêndice Teórico – Metodológico
Os guaranis confiavam bastante na própria capacidade potencializada
mediante esforços unidos, multiplicados e assessoria oportuna. Ocorria
com frequência a atuação dinâmica do jesuíta não sacerdote, às vezes
desconcertante, que animava a participação laboral e profissional dos guaranis
nas missões, conhecidos como “carpinteiros do irmão” enquanto aprendiam
seu ofício. Havia os equivalentes ferreiros, enfermeiros, ceramistas, escultores,
pintores. O trabalho agrícola era desempenhado por todos, ao menos durante
os meses decisivos para garantir a semeadura e a colheita conforme o produto,
o solo e a região. Em cada missão havia o costume de fazer outras grandes
sementeiras de todos os gêneros nas melhores terras, subsidiando o cultivo
particular com o comunitário.
O trabalho agrícola, os diversos ofícios e artes nas missões
contrastavam com o isolamento e a falta de civismo nas estâncias. “As
criações de gado cresceram muito com considerável dano aos pobres
índios, sobretudo aos rapazes, ao criar-se adultos broncos e sem doutrina
devido a se acharem tão afastados dos núcleos dos pueblos” (carta do
padre Rada de 17-11-1666).
A convivência cada vez mais complexa nas missões multiplicava
as necessidades e motivava a procura de possibilidades para atendê-las.
A comunicação dos padres organizava-se repartindo as tarefas pelas
parcialidades de cada cacique e falando a cada família ou índios em
particular, o que se aperfeiçoou com as demandas maiores, resultantes do
crescimento demográfico. Anualmente era destinado a cada família um
terreno suficiente para o cultivo dos produtos essenciais à sua alimentação
e vestuário; sementes e bois eram repartidos entre as famílias. Como a
produção familiar tornava-se às vezes insuficiente e sujeita a riscos, as
sementeiras, estâncias comunitárias e vacarias garantiam o abastecimento.
A criação de gado bovino foi tão bem-sucedida nos extensos
campos das duas margens do rio Uruguai que várias missões puderam
abastecer-se durante período expressivo. O escambo e a ajuda mútua
predominavam. Nas calamidades (como secas, infestação de pragas)
nenhum pueblo ficava desatendido.
Antes de 1677 ocorria a troca entre reses vacum e erva-mate ou tecido,
o que facilitava um aprovisionamento satisfatório de carne. A distribuição
de carne e sua frequência variava conforme a disponibilidade dos demais
alimentos. Só as lactantes tinham o direito de recebê-la diariamente.
O sistema religioso e cultural dos guaranis foi profundamente
afetado pelo prolongado contato com os jesuítas das missões. Houve
interferências, rupturas e adaptações que, entretanto, não desintegraram
a cultura a não ser de modo parcial e apenas em algumas comunidades.
169
Miranda Neto
Após a expulsão dos missionários, alguns elementos culturais
foram integrados de maneira satisfatória no sistema guarani “sem que
este perdesse o seu cunho original”.
Como a sociedade indígena não prestigiava a posse de bens
materiais, não havia estímulo à produtividade econômica. Daí a percepção
equivocada quanto à “indolência” dos ameríndios, conhecidos como
inconstantes no trabalho, desprezando o conforto, o lucro e a poupança.
Para satisfazer ao “consumismo” inconsequente induzido pelo
colono – que criava falsas necessidades – e, dada a sua proverbial penúria
monetária, os autóctones eram, com frequência, levados ao furto e a outras
contravenções e desvios de conduta.
As principais razões ponderadas para o desprezo à ganância, ao
esforço econômico e ao lucro podem-se destacar: o regime comunitário
de produção e consumo (propriedade coletiva dos bens), a orientação da
cultura e o relevo dado à comunhão com o sobrenatural.
Portanto, o estímulo ao trabalho relacionava-se com a intensidade
do sentimento de solidariedade social. Só depois, com a progressiva
individualização da produção e aceitação dos valores daí advindos como
elementos de diferenciação social, as dicotomias produtivo x ocioso e pobre
x rico adquiriram algum significado41.
Há que ressaltar a dimensão globalizante da visão e dos projetos
de Inácio de Loyola. Os jesuítas foram os precursores da globalização. Para
concretizar este domínio, estudaram a língua dos índios. Aprender outro
idioma é globalizar-se. Os jesuítas sentiram que podiam compartilhar a
mesma fé e propuseram um sistema de vida que lhes parecia mais político
e humano, aceito pela maioria dos indígenas os quais não tiveram de
abandonar sua língua nem sua economia. A língua autóctone teve de ser
convertida em escrita e gramática. Dicionários foram organizados a fim
de facilitar a tradução das ideias. Verdadeiros monumentos linguísticos,
admirados pelos pesquisadores. Conseguiram os indígenas, com a
orientação dos religiosos, construir conjuntos urbanísticos notáveis, hoje
declarados Patrimônios da Humanidade pela Unesco42.
Artes plásticas como a escultura alcançaram elevado nível. Além da
cópia e da imitação, os guaranis provaram sua criatividade até em estilos
que não lhes eram próprios. Foram mestres na música e na confecção de
instrumentos musicais. A Utopia encontrou seu lugar no Paraguai.
41 42 SCHADEN, Egon. Aspectos Fundamentais da Cultura Guarani. São Paulo: Edusp, 1974.
MELIÁ, S. J. Bartolomeu. “As missões jesuíticas nos Sete Povos das Missões” in A Globalização e os Jesuitas: origens,
história e impactos. Anais do Seminário Internacional, 25 a 29 setembro 2006. PUC-RJ / UNISINOS / FJFT. São Paulo:
Ed. Loyola, 2007.
170
Apêndice Teórico – Metodológico
O início das missões foi turbulento e difícil, sobretudo o
relacionamento entre os feiticeiros (xamãs) e os jesuítas: três deles
foram trucidados nesta fase: Roque González, Alonso Rodrigues e Juan
de Castilho. Mas pouco a pouco a acolhida melhorou com o respeito
mútuo. A fundação dos povoados respeitou o gosto e o modo de vida
dos guaranis. A aprendizagem da língua só poderia ocorrer com alto
grau de convivência. Os autóctones participavam com entusiasmo
dos trabalhos agrícolas e da liturgia cristã, admirando o ritual e
as festividades – todos os atos eram solenes e plenos de novidades.
Representações teatrais e jogos diversos – entre eles o da bola com o
pé – eram diversões frequentes nos dias de festas. As crianças de tudo
participavam e aprendiam, na prática, artesanato e trabalhos manuais
direcionados às artes e ofícios.
A escravização praticada aos autóctones visava extrair riquezas
do trabalho e do comércio do escravo. A captura objetivava impor nova
pratica ético – moral, valores, regras e códigos estabelecidos e alterar a
cultura autóctone. Os jesuítas procuravam identificar as semelhanças
em duas culturas diferentes e condenar as diferenças que violavam as
verdades jurídicas e teológicas consagradas na cultura dominante. O
melhor conhecimento da cultura dominada era praticado pelo estudo de
sua língua e poderia assim ressaltar as semelhanças e os valores indígenas
antípodas. Conhecer a língua do dominado era a melhor forma de
catequizá-lo e de introduzir um objetivo moral, jesuítas colonos e índios
se conheciam mutuamente, criavam novas formas de organização e novos
valores. Difícil era conseguir penetrar no imaginário do outro43.
A captura é, de certo modo, mais perversa do que a escravidão
em si, pois subliminarmente submete um grupo aos valores e interesses
do outro por meio de supostos consentimentos mútuos. A modernidade
ocidental caracterizou-se pela captura de mentes e culturas.
A catequese, a doutrinação dos filhos dos gentios, ocorreu de
modo fluido sob formas refinadas de convencimento e de atuação sobre a
ação moral do outro, facilitando a colonização e a aculturação.
Ao invés de se ensinar o idioma português ao índio (o que também
se fazia), os padres aprendiam o tupi ou o guarani para ensinar-lhes o
princípio moral fundador da religião cristã, ou seja, a oposição entre o Bem
e o Mal. Mais do que ensinar a língua portuguesa aos índios, os jesuítas
ensinavam pela prática cotidiana de repreensão e ajustamento dos valores
morais dos índios aos dos europeus.
43 FAVACHO, André Picanço. “A Captura: o fundamento do governo pedagógico aplicado aos meninos dos gentios no Brasil
quinhentista”, in A Globalização e os Jesuítas.
171
Miranda Neto
Eles eram especialistas na atividade moral-religiosa que prezava
pelas formas indiretas e brandas de conversão ao demonstrar o interesse
em aprender o idioma do gentio para melhor poder atuar (modelo de
dominação extremamente refinado).
As artes e os ofícios dos missionários (ao lado do trabalho
apostólico) eram indispensáveis à sobrevivência da Companhia de Jesus.
Os irmãos artesãos mantiveram oficinas, fábricas, engenhos próprios,
tornando-se independentes dos fornecedores monopolistas. As oficinas
de colégios e aldeias tornaram-se importantes locais de aprendizagem,
exercício e execução de artes e ofícios, formando mestres carpinteiros,
pedreiros, ferreiros, escultores e pintores desde aprendizes, artesãos e
operários44.
A Companhia de Jesus se convencera da necessidade de ter meios
econômicos próprios, tornando-se os padres independentes da caridade
das autoridades ou dos colonos. Obtiveram terrenos para a construção
das casas da Companhia em locais estratégicos na periferia dos núcleos
urbanos, porém mais próximos do contato com o gentio. Os jesuítas se
defrontaram com grandes obstáculos materiais para suas construções que
incluíam os colégios. O Brasil representou o primeiro ensaio de experiência
apostólica da Companhia fora da Europa.
A educação foi o caminho que, através das crianças, transmitiria
a cultura europeia católica para os habitantes do Novo Mundo.
Aprendizagem, folguedos, colheita e pesca interagiam.
A Companhia de Jesus propôs a Ratio Studiorum45 para estruturar
e orientar o sistema de ensino valorizando a aula participativa, a
cooperação, o papel do professor e as especificidades infantis com o
uso de diferentes materiais para o ensino das letras, da leitura, da escrita
e da aritmética. Os recursos incluíam jogos educativos. A prática escolar
de vários países em que a Companhia de Jesus atuara foi incorporada à
Ratio Studiorum elaborada de 1548 a 1599 com a colaboração dos melhores
educadores da Europa. O projeto era missionário, religioso, político,
colonizador e econômico46.
Os jesuítas fizeram dos colégios centros de saber e formação de
cidadãos atingindo o objetivo maior: a difusão e o fortalecimento da fé
católica, conciliando o cristianismo com o humanismo renascentista. Como
GADELHA, Regina. “Para além da catequese: Artes e Ofícios dos Jesuítas da Província do Brasil (séculos XVI – XVII)”, in
Os Jesuítas e a Globalização origens, história e impactos (Anais do Seminário Internacional, 25 a 29 de setembro 2006.
PUC-RJ / UNISINOS / FJFT. São Paulo: Ed Loyola 2007 (v2).
45 Ratio atque Institutio Studiorum Societatis Jesu – Versão definitiva enviada em 1599 pelo Superior geral Claudio Acquaviva
a todas as escolas da Companhia de Jesus.
46 NOGUEIRA, Ephigênia, “Jogos, brinquedos e brincadeiras” in A Globalização e os jesuítas.
44 172
Apêndice Teórico – Metodológico
materiais pedagógicos, os jesuítas usavam imagens como o círculo para os
meses do ano, a esfera para o ensino das declinações de latim, as partes
do próprio corpo, como a mão para ensinar contagem, a árvore genealógica
para o ensino da gramática, a partir das raízes das palavras. O alfabeto
era apresentado com a palavra e a imagem de um objeto que se iniciava
com a letra destacada. Outro recurso pedagógico era o uso do diálogo
para o ensino das regras gramaticais. Os jogos educativos e a competição
entre os alunos com premiação aos melhores constituíam formas de
incentivar cada vez mais o mérito. Os exercícios visavam manter os alunos
atentos e participativos. O canto, a dança, as oficinas completavam a
pedagogia missionária. A mente deveria manter-se sempre ocupada com
pensamentos elevados, criativos e construtivos. Daí as ideias poderiam
transformar sonhos em realidade.
A cultura local e a língua nativa deveriam ser sempre valorizadas.
Alguns objetos eram subdivididos para possibilitar à criança interagir com
o material, separando e juntando as peças conforme o conteúdo estudado.
Os jesuítas desenvolveram um sistema de educação orgânico e
coerente em escala mundial, respeitando as peculiaridades das culturas
locais. Em verdade, lançaram os fundamentos da escola moderna.
Por intermédio das brincadeiras, as crianças reproduziam
situações, transformavam objetos e apropriavam-se de modelos dando
novo significado aos conteúdos culturais. Elas modificavam e adaptavam
o mundo exterior ao seu com liberdade e iniciativa. Era através dessas
representações que as crianças enfrentavam suas limitações e dependência
dos adultos e se projetavam em um universo alternativo onde tudo era
possível.
Após as lições, todas se dirigiam cantando, animadas, à caça, à
pesca, ou à colheita pelo prazer da brincadeira e também para prover a casa
com alimentos. O canto, a dança, a confecção de instrumentos musicais,
depois por eles usados, completavam as atividades lúdico-pedagógicas
dos guaranis.
Uma das maiores contribuições indígenas aos jogos infantis foram
as competições com bola de borracha, utilizada tanto com a cabeça quanto
com os pés.
A educação musical pode ser avaliada através das óperas cujos
temas eram religiosos (bíblicos ou não) e históricos relacionados à religião
no estilo barroco italiano, em moda na Europa. Todas se perderam (exceto
a “Santo Inácio” que foi encontrada na Bolívia, composta por Domenico
Zípoli e Martin Schmidt)47.
47 ANDREOTTI, Décio. “O Valor da Educação Musical nos Sete Povos das Missões” in A Globalização e os Jesuítas.
173
Miranda Neto
As óperas eram cantadas nas igrejas. Os índios privilegiavam os
registros altos de voz e aprendiam com facilidade e rapidez.
Os antigos instrumentos indígenas, fabricados pelos jovens luthiers
sob orientação dos padres, cederam lugar aos europeus (cordas e sopros).
De tão bem confeccionados, eram exportados para a Europa. O esplendor
da educação musical missioneira durou mais de cem anos após a derrota
dos bandeirantes e a prosperidade da Confederação das Missões.
O Padre Sepp destacou-se como educador musical e incentivador
das artes. Reformulou e modernizou, para a época, a música nas missões.
Trouxe a nova escrita musical e os novos estilos, sobretudo o barroco
austríaco (na época o mais moderno). Ensinou partituras de compositores
europeus (como Schmelzer e Biber) ainda desconhecidos na Espanha.
Cada redução tinha seu coro e sua orquestra que se apresentava também
nas demais povoações nas datas festivas. Na verdade, através da música
facilitava-se a educação das demais disciplinas e a criança se completava e
se realizava. A missão de Yapeyú tornou-se um importante conservatório
para onde a elite de Buenos Aires enviava seus filhos para se aperfeiçoarem
musicalmente em pleno ambiente indígena.
A educação jesuítica no Brasil caracterizou-se pelo desenvolvimento
das capacidades intelectuais partindo do pressuposto de que a
racionalidade é o que define o homem.
Segundo Nietzsche, o jesuitismo representava, de fato, um dos
grandes movimentos revolucionários que sacudiu a Europa no século XVI.
A sociedade criada por Inácio de Loyola ousou o diferente, soube encontrar
a forma ideal de superar situações difíceis, procurou evitar o passivismo
inerte para assumir um ativismo transformador, uma ação criativa de um
modo de vida, uma postura existencial frente aos desafios provocados
pela Reforma Protestante. Imbuídos de uma formação personalizada e
humanizadora, de tenacidade e mobilidade, os jesuítas se congregaram
em uma experiência em escala planetária na conquista de novos cristãos
mundo afora. Em seu “aprendizado da colonização” revelaram práticas
sociais e políticas que resultaram na dominação colonial de extensos
territórios. A empresa das missões visava também à ocupação física como
estratégia geopolítica de caráter permanente pela sua própria finalidade.
Com frequência havia o predomínio da religião sobre a economia.
Atividades econômicas eram utilizadas para a realização de cerimoniais
de contato com o sobrenatural. O putirum da ajuda mútua na colheita de
safra, a partida para uma viagem – tudo constituía motivo para festas
religiosas e danças comemorativas. O ciclo produtivo confundia-se com
o ciclo de vida religiosa, acompanhando atividades de subsistência, em
174
Apêndice Teórico – Metodológico
especial as fases da cultura do milho. A mandioca teria importância
secundaria embora indispensável durante o período de escassez do milho.
Um gradual mas constante processo de transformação cultural se
desenvolveu ao longo de um século e meio. Entretanto, muitos elementos
tradicionais da sociedade autóctone foram preservados.
A cultura indígena manteve seus padrões originais como
evidenciam os vestígios arqueológicos: cerâmica artesanal, artefatos de
pedra lascada e polida, os aspectos sociopolíticos como o cacicado, a língua
guarani com sua imensa riqueza verbal, as relações sociais de solidarismo
e reciprocidade, as tradições guerreiras, a caça e a pesca.
Na horticultura destacaram-se na domesticação de plantas como
milho, mandioca, amendoim, abóbora, feijão, pimentão, tabaco e erva-mate.
Os jesuítas introduziram inovações técnico-culturais como a
escrita e a imprensa, o arado e a metalurgia do ferro, possibilitando a
fabricação de ferramentas e implementos agrícolas, a olaria industrial e
a arquitetura barroca missioneira. Os missionários também conseguiram
que os ameríndios adotassem a família nuclear e a inserção do caciquismo
na estrutura político-administratativa do sistema hispânico de governo
(cabildo espanhol). Alguns guerreiros guaranis organizaram-se em
milícia armada a serviço dos interesses espanhóis de domínio e expansão
dos territórios ocupados.
Aos poucos, os guaranis foram incentivados a produzir para
o mercado consumidor platino, seus vizinhos geopolíticos, e o resto
do mundo. As missões desempenharam importante papel na frente de
colonização ibérica, ao voltar-se para a integração das etnias indígenas
com o segmento colonial da sociedade europeia mediante uma relação
diferenciada entre dominadores e dominados. Pela primeira vez, os guaranis
puderam considerar-se partícipes de seu próprio desenvolvimento.
175
ANEXOS
Glossário
ABAMBAÉ – Área cultivada individualmente pelas famílias guaranis. Os sistemas
privado e coletivo coexistiam nas missões, influenciando-se reciprocamente.
AQUARAYBAY – Matéria-prima vegetal do “bálsamo das missões”.
ASSISTÊNCIA – Conjunto de “províncias” da Companhia de Jesus atuando
em determinado território, em geral, correspondendo ao respectivo país.
CABILDO – Conselho formado, nas missões jesuíticas, pelo corregedor (espécie
de prefeito), alcaide (vice-prefeito), alguacil (comissário executivo), fiscais,
juízes, quatro regedores (conselheiros municipais), mayordomo (procurador),
um tenente e um alferes real. Cada missão era administrada também por um
padre jesuíta subordinado ao Superior que coordenava a confederação.
CHACRA – Terreno cultivado coletivamente. Os excedentes da produção
destinavam-se a uma “caixa comum” ou “estoque regulador”.
CHICHA – Aguardente produzida pela fermentação do milho ou da
mandioca.
COTIGUAÇU – Residência, nas missões, das viúvas e solteironas da tribo,
dedicadas à fiação, à costura, à confecção, artesanato de palha ou madeira
e à cerâmica ensinada às jovens que desde cedo colaboravam em grupo.
179
Miranda Neto
ENCOMENDERO – Colono espanhol que usufruía do sistema de
encomienda ao submeter o autóctone à exploração de recursos e riquezas.
ENCOMIENDA – Sistema de servidão total em que o encomendero
submetia, por mercê real, a trabalhos em obras públicas ou minas, os índios
aprisionados em combate (yanaconas). A servidão parcial consentida dos
índios (mitayos) ocorria durante dois a quatro meses ao ano, geralmente
nas residências dos colonos, sendo que, no período restante, poderiam
permanecer em seus respectivos aldeamentos.
MITA – De origem inca, o sistema consistia em impor trabalhos aos
indígenas (mitayos) durante determinado período mediante pagamento
de salário considerado irrisório.
MONÇOEIROS – Aventureiros-exploradores que penetravam pelas vias
fluviais aproveitando a época propícia de cheia dos rios (de março a maio)
conhecida como monções (por analogia com o período de ventos na Ásia)
para partirem de Porto Feliz (São Paulo) em direção aos rios Paraná e
depois Paraguai até Cuiabá. A jornada durava cerca de cinco meses em
busca das lendárias riquezas.
OFÍCIO – Espécie de procuradoria, representação, ponto de apoio e
armazém que coordenava, controlava, administrava e contabilizava
grupo de missões, financiando-as quando em dificuldade, até através de
estoques reguladores.
PARCIALIDADE – Lote de cada missão dominado por determinado
cacique.
PEABIRU – Estrada primitiva de terra batida aberta provavelmente no
século XVI pelos ameríndios a partir do Sudoeste de São Paulo até as
margens do rio Paraná e muito utilizada pelos monçoeiros, bandeirantes,
aventureiros em busca de riquezas e mão de obra.
PUTIRUM – Sistema de trabalho coletivo em que os vizinhos se ajudam
mutuamente. Mutirão.
QUABIRI-MIRIM – Árvore frutífera da região utilizada no beneficiamento
da erva-mate.
180
ANEXOS
RAFIÃO – Animal macho cobridor de fêmeas.
REDUÇÃO – Aldeamento indígena, missão, de início chamada doutrina
como a de Juli no antigo Peru, origem e modelo de todo o sistema de
pueblos ou aldeias missionárias.
RETOVAR – Enganar a égua ou a vaca ao fazê-la aceitar a adoção do potro
ou bezerro, desde que sob disfarce do filho legítimo.
TERNEIRO – Bezerro.
TUPAMBAÉ – Área comum característica do sistema coletivo de produção
guarani.
URUNDI – Bambu gigante ou tronco avantajado usado como canhão
pelos índios durante as “guerras guaraníticas”.
XARAYES – Povo indígena que inspirou, no século XVII, a denominação
da extensa área de campos alagados, atual Pantanal mato-grossense,
lugar de passagem e união entre o Cerrado, o Chaco e a Amazônia. Na
verdade, o grande complexo de lagos, lagunas e canais apenas espraiava o
rio Paraguai, via de penetração e acesso para aventureiros, exploradores,
missionários e colonizadores.
YANACONA – Índio submetido ao regime de servidão, obrigado a
trabalhar duro.
YERBA CAAMINI – Erva-mate cultivada e beneficiada segundo tecnologia
apropriada. Era a mais disputada no século XVIII, alcançando preços
elevados.
YERBA DE PALOS – Erva-mate silvestre apenas colhida e pouco
beneficiada.
181
Miranda Neto
ESTRUTURA POLÍTICO-ADMINISTRATIVA DO SISTEMA COLONIAL ESPANHOL
PODER ESPIRITUAL
PODER MATERIAL
REI
(Madri)
PAPA
(Roma)
CONGREGAÇÃO DOS
PADRES GERAIS
(Roma)
VICE-REI
DO PERU
(Lima)
CONSELHO
DAS ÍNDIAS
(Madri)
(Poder Executivo)
PROVÍNCIA JESUÍTICA DO
PARAGUAI
NAS CIDADES
NO INTERIOR
ARCEBISPO
(Lima)
BISPO DE
B. AIRES
(Poder Jurídico)
GOVERNADOR
DA
PROVÍNCIA
DO RIO DA
PRATA
(Buenos Aires)
GOVERNADOR
DA
PROVÍNCIA
DO PARAGUAI
(Assunção)
PROVINCIAL
(Córdoba)
BISPO DE
ASSUNÇÃO
SUPERIOR
(Candelária)
CIDADES, ALDEIAS, POVOADOS MISSIONÁRIOS, FAZENDAS, ESTÂNCIAS E ERVAIS
PADRES MISSIONÁRIOS
CABILDOS INDÍGENAS
(CONSULTORES DOS CABILDOS)
(CONSELHOS)
CONFEDERAÇÃO DAS MISSÕES
CADA MISSÃO
1ª. fase
SUPERIORES JESUÍTAS
1.
GUAIRÁ (Paraná)
2.
YAPEYÚ (Uruguai)
CABILDO
(CONSELHO)
CORREGEDOR (Prefeito) CACIQUE
ALCAIDE (Vice-Prefeito, Inspetor de Ensino)
2ª. fase
UM SUPERIOR
Visitava reduções
(Adm. Itinerante)
2 JUIZES
Diretrizes de Política Desenvolvimentista
UNIDADE + UNIFORMIDADE
FISCAL
2 OFICIAIS
DE POLICIA
ALGUACIL
comissário
4 REGEDORES + ASSESSORES (Cf. n hab.)
CHEFES DE SETORES
Escolhidos pelos indígenas “dentre fervorosos cristãos”
sob supervisão dos jesuítas
Total: de dez a vinte pessoas “as mais qualificadas”
182
ANEXOS
183
Miranda Neto
184
ANEXOS
185
Miranda Neto
CRONOLOGIA DA INSTALAÇÃO DAS MISSÕES JESUÍTICO-GUARANÍS
Fundação
Missões
Localização
Observação
População
em 1765
1609
Nossa Senhora de
Loreto 1
R. Paranapanema
margem esquerda
(Paraná)
2.393
1609
Santo Inácio
(menor ou mini) 1
R. Paranapanema
margem esquerda
(Paraná)
3.141
1614
Itapuã ou
Encarnação 1
R. Paraná
margem direita
(atual Paraguai)
4.542
1620
Nossa Senhora da
Conceição 1
R. Uruguai
margem direita
(atual Argentina)
2.872
1622
Corpus Christi
R. Paraná
margem esquerda
(atual Argentina)
4.342
1625
Yapeyú (Santos
Reis)
R. Uruguai
margem direita
(atual Argentina)
7.715
1625
São Francisco
Xavier 1
R. Uruguai
margem direita
(atual Argentina)
1.311
1631
São Carlos
(Panambi)
R. Uruguai
margem direita
(atual Argentina)
2.265
1632
Santa Maria da Fé
R. Uruguai
margem direita
(atual Paraguai)
3.945
1633
Santa Maria
Maior 1
R. Uruguai
margem direita
(atual Argentina)
1.375
1637
Apóstolos (Cruz
Alta)
R. Uruguai
margem direita
(atual Argentina)
2.048
R. Uruguai
margem direita
(atual Argentina)
1.954
1639
São Tomé (Jaguari)
1
1657
Santa Cruz (La
Cruz)
R. Uruguai
margem direita
(atual Argentina)
3.197
1659
Santo Inácio
(guaçu)
R. Paraná
margem direita
(atual Paraguai)
1.985
1660
Sant’ana
R. Paraná
margem esquerda
(atual Argentina)
4.161
1660
São José (S. Vicente
do Sul) 1
R. Uruguai
margem direita
(atual Argentina)
2.037
1665
Candelária
R. Paraná
margem esquerda
(atual Argentina)
2.879
1672
San Tiago
R. Paraná
margem direita
(atual Paraguai)
2.711
1675
Jesus Maria
R. Paraná
margem direita
(atual Paraguai)
2.278
Continua
186
ANEXOS
Continuação
CRONOLOGIA DA INSTALAÇÃO DAS MISSÕES JESUÍTICO-GUARANÍS
1675
São Miguel
Arcanjo 1 2
R. Piratini 3
margem direita
(atual R. G. do Sul)
2.861
1688
São Nicolau 2
R. Piratini
margem direita
(atual R. G. do Sul)
4.028
1690
São (Francisco de)
Borja 2
R. Uruguai
margem esquerda
(atual R. G. do Sul)
2.733
1691
São Lourenço 2
R. Piratini
margem direita
(atual R. G. do Sul)
1.185
1696
São João Batista2
R. Piratini
margem direita
(atual R. G. do Sul)
3.923
1696
Santa Rosa
R. Paraná
margem direita
(atual Paraguai)
1.934
1704
Santos Mártires
R. Uruguai
margem direita
(atual Argentina)
1.688
1706
Santíssima
Trindade
R. Paraná
margem direita
(atual Paraguai)
2.633
1707
Santo Ângelo 2
R. Piratini
margem direita
(atual R. G. do Sul)
2.473
1712 (1746)
São Joaquim
R. Paraguai
margem esquerda
(atual Paraguai)
1.805
1720
São Luiz Gonzaga 2
R. Piratini
margem direita
(atual R. G. do Sul)
2.207
1720 (1749)
São Estanislau
(Kosther)
R. Paraguai
margem esquerda
(atual Paraguai)
2.325
1740
São Cosme (e
Damião)
R. Paraná
margem direita
(atual Paraguai)
2.223
1760
Belém
R. Paraguai
margem esquerda
(atual Paraguai)
2.142
– Atacadas pelos bandeirantes deslocaram-se para oeste (Paraguai) e para o Sul (Rio Grande
do Sul).
2
– Consideradas do 2º. Ciclo Missioneiro (1675-1767) correspondem, com suas estâncias, aos
Sete Povos das Missões.
3
– O rio Piratini é afluente do rio Uruguai
Fonte: Manuscritos da Coleção De Angelis. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1951/69
1
187
Miranda Neto
188
ANEXOS
189
Miranda Neto
190
ANEXOS
* O rebanho total conferido em 1768 após a expulsão dos jesuítas contava com 769.869 bovinos,
139.634 equinos e 138.141 ovinos. Só Yapeyú chegou a criar mais de 200.000 reses vacum.
191
Miranda Neto
192
ANEXOS
Cronologia Dos Núcleos Urbanos Na Área Das Missões
1535.
Pedro González de Mendoza funda, na foz do rio da Prata, a cidade de Nuestra
Señora del Buen Aire, futura sede do Vice-Reinado do Prata (Argentina e
Uruguai), na jurisdição do Vice-Reinado do Peru.
1536.
Juan de Ayolas, comandado de Mendoza, funda Assunción às margens do rio
Paraguai.
1552.
Domingo de Irala, governador do Paraguai, apoia guaranis contra tupis e
paulistas, iniciando política expansionista.
1580.
Juan de Garay funda, pela segunda vez, a cidade de Buenos Aires, estimulando
os colonos à agricultura e à pecuária. De 1580 a 1640, Felipe II de Espanha
domina Portugal e Colônias, invalidando o Tratado de Tordesilhas.
– O primeiro bispo de Assunção, Frei Pedro de la Torre, e jesuítas Manuel Ortega
e Tomaz Fields, vindos de Assunção, planejam integrar missionários e guaranis
em grandes aldeamentos sob a administração da Ordem a partir de Cidade Real
de Guairá (1554) e Vila Rica do Espírito Santo (1576), subordinadas à Província
Jesuítica do Paraguai que se estenderia por todo Sudoeste da América Latina.
1593.
Rui Dias de Gusmán funda Santiago de Xerez, no Itatim, próxima às futuras
missões de Chiquitos (MS) e de Moxós (MT).
1607.
Os jesuítas chegam a Assunção vindos de Lima estimulados por Hernan Árias
de Saavedra, governador do Paraguai e rio da Prata, que propõe a criação da
província de Guairá até a ilha de Santa Catarina, onde porto ideal escoaria a
prata de Potosi (Peru).
1610 a
1628.
Padres Cataldino, Lorenzana, Maceta e Montoya fundam 13 missões no Guairá
(Província de Vera cf. Cabeza de Vaca). Em 1613 Montoya organiza vocabulário
guarani, utilíssimo à compreensão mútua de espanhóis e autóctones.
1620.
A Província do Rio da Prata, ainda subordinada ao Vice-Reinado do Peru,
começa a destacar-se das demais.
1625.
Santiago de Xerez é transferida para a planície do rio Taquari, afluente do
Paraguai.
1629.
O bandeirante Antônio Raposo Tavares, em várias expedições para aprisionar
indígenas, consegue destruir as reduções São Paulo, São Francisco Xavier, São
Pedro, Conceição, Jesus Maria, Santo Antônio e São Miguel – ao todo eram sete
provisórias. As de Loreto e Santo Inácio-guaçu foram abandonadas, mas depois
reconstruídas pelo Padre Montoya em outro local.
1631.
Inicia-se a migração para Sudoeste dos habitantes das reduções de Guairá por
decisão do Padre Montoya que consegue permissão para armar os índios. As
cidades de Guairá e Vila Rica são destruídas pelos paulistas. O caminho de
peabiru, aberto pelos indígenas no século anterior, facilitou a invasão.
Continua
193
Miranda Neto
Continuação
Cronologia Dos Núcleos Urbanos Na Área Das Missões
1632.
Jesuítas estabelecem suas missões no Itatim (MS), ponto estratégico entre Prata,
Peru e Amazônia. As investidas paulistas estimularam os jesuítas a expandirem
as missões para outras áreas, transferindo suas respectivas populações para Sul
e Oeste, após ataque dos paulistas. Ao mesmo tempo, as aldeias são fortificadas
e armadas.
1636.
Destruídas mais 15 reduções entre os rios Piratini, Ijuí Grande, Jacuí (ainda
“provisórias”) no Rio Grande do Sul. Só depois tiveram edificação permanente.
Muitas missões, embora atacadas, foram reconstruídas e fortificadas.
1641.
Até este ano os bandeirantes devastaram inúmeras missões do Iguaçu, mas,
após sua grande derrota na batalha de Mbororé, afluente do rio Uruguai (1641)
rarearam novas incursões. A administração geral das missões decide transferir
parte das populações para o sul, dando origem aos Sete Povos das Missões na
região do Tape, Rio Grande do Sul: S. Nicolau (1626), S. Miguel (1632), S. Luiz
(1673), S. Francisco de Borja (1690), S. Lourenço (1691), S. João Batista (1697), Sto.
Ângelo (1707).
1680.
A Colônia do Sacramento é fundada por D. Manuel Lobo, português, onde hoje
é o Uruguai, logo atacada pelos espanhóis. Mesmo assim, foi reconstruída com
ajuda dos ingleses, aliados do rei de Portugal.
1715.
Tratado de Utrecht determina a restituição da Colônia do Sacramento aos
portugueses.
1724.
Espanhóis fundam Montevidéu, a certa distância da Colônia do Sacramento.
1737.
Portugueses dão início à colonização do Rio Grande do Sul interessados no
gado das estâncias.
1750.
Tratado de Madri, entre os reis D. João V de Portugal e D. Fernando VI de
Espanha, que eram cunhados, estabelece permuta entre Colônia do Sacramento
para Espanha e Sete Povos das Missões para Portugal. O brasileiro Alexandre
de Gusmão defendeu com brilhantismo os interesses lusos. A Espanha ficaria
com as terras da margem esquerda do rio Ibicuí, ao Sul. Portugal ficaria com as
terras da margem direita do rio Ibicuí, ao Norte. O rio Ibicuí é afluente do rio
Uruguai e atravessa o Rio Grande do Sul de Leste para Oeste. Os rios Pardo e
Jacuí demarcaram o posto avançado luso que resistiu às investidas de Buenos
Aires: em 1752 é construído o forte ou “tranqueira invicta”, origem da cidade
de Rio Pardo.
1753 a
1756.
Guerra Guaranítica 1ª fase. Tropas luso-brasileiras são obrigadas a se retirarem
devido à resistência dos guaranis apoiados pela Espanha e reforços dos padres.
Sepé Tiaraju e Nicolau Languiru comandaram os índios nesta ocasião.
Continua
194
ANEXOS
Continuação
Cronologia Dos Núcleos Urbanos Na Área Das Missões
1756 a
1759.
Guerra Guaranítica 2ª fase, de resistência dos autóctones às demarcações
resultantes do Tratado de Madri que impôs pesados revezes aos luso-brasileiros
e portenhos empenhados em removê-los. A Espanha devia aos guaranis a defesa
de Buenos Aires ameaçada pelos ingleses (1667 e 1671), de Assunção atacada
pelos guaicurus (1734-1736) e o cerco à Colônia do Sacramento (1735 e 1760).
1759.
A oposição dos missionários e guaranis serve de pretexto para a campanha
de expulsão dos jesuítas encetada principalmente pelo Marquês de Pombal e
concretizada em 1767 pelo próprio governo espanhol. Morre Fernando VI de
Espanha, sucedido por seu irmão Carlos III.
1761.
Portugueses retomam a Colônia do Sacramento, de onde são expulsos pelos
espanhóis em 1762.
1773.
O Papa Clemente XIV extingue a Companhia de Jesus sob o argumento de
injustamente ter usufruído de benefícios, isenções e privilégios além de ter
interferido nas decisões político-administrativas e nos negócios de Estado.
1777.
Tratado de Santo Ildefonso: Colônia do Sacramento definitivamente entregue
aos espanhóis. Em compensação, Portugal consolidava o domínio sobre
terras extensas a oeste de Tordesilhas originadas das missões jesuíticas, após
a expulsão da Ordem, e que vieram a constituir o Rio Grande do Sul, Santa
Catarina, Paraná, Mato Grosso, Amazonas e oeste do Pará.
• O Paraguai teve origem nas povoações: Cidade Real do Guairá na foz do
Piquiri, Assunción no rio Paraguai, Vila Rica do Espírito Santo no rio Ivaí
e Encarnación ou Itapuã, no Paraná que, devido às incursões paulistas, se
deslocaram para oeste.
• A Argentina se originou das missões de Entre Rios (rios Paraguai e Uruguai)
e da vila de Buenos Aires.
• O Uruguai desenvolveu-se a partir do Tratado de Madri (1750) e a permuta
entre a Colônia do Sacramento e os Sete Povos ou reduções da margem
esquerda do rio Uruguai, remanescentes do 2º Ciclo Missioneiro (1675 a
1767) até a definitiva expulsão dos jesuítas: São Miguel, São Nicolau, São
Borja, São Lourenço, São João Batista, Santo Ângelo, São Luiz Gonzaga. A
Colônia do Sacramento, de colonização luso-brasileira, seria entregue aos
espanhóis em troca dos Sete Povos das Missões.
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Mapa 1 - Rompe-se o cordão de Tordesilhas
Fonte: TEIXEIRA SOARES (1973).
211
Miranda Neto
Mapa 1A - A América do Sul no século XVII
Fonte: CARAMAN, Philip (1976).
212
Mapas
Mapa 2 - Missões do Guairá
Fonte: QUEVEDO (1996).
213
Miranda Neto
Mapa 2A - Missões de Itatim (1631-1669)
Fonte: CARAMAN (1976).
214
Mapas
Mapa 3 - Reduções Jesuíticas do Tape (até 1640)
Fonte: QUEVEDO (1996).
215
Miranda Neto
Mapa 3A - Estâncias e Ervais das Missões Orientais (1637-1737)
Fonte: HARNISCH (1941).
216
Mapas
Mapa 4 - Trinta povos das Missões Jesuíticas
Fonte: QUEVEDO (1996).
217
Miranda Neto
Mapa 5 - Algumas Bandeiras
Fonte: GOES FILHO (2001).
218
mapas
Mapa 6 - Importância estratégica da Colônia do Sacramento
Fonte: SOARES (1973).
219
Miranda Neto
Mapa 7 - A rota das monções Cuiabanas e do caminho de Peabiru
220
mapas
Mapa 8 - As flutuações da fronteira no sul
Fonte: SOARES (1973).
221
Miranda Neto
Mapa 9 - Os fortes balizaram a nova fronteira
Fonte: SOARES (1973).
222
Amostras da Arte Missioneira
Amostras da Arte Missioneira
Amostra 1 - Vista de uma redução
Fonte: QUEVEDO (1996).
Amostra 2 - Reconstituição de uma Missão
Fonte: FREITAS (1999).
225
Miranda Neto
Amostra 3 - Esquema da redução de Trinidad, no Paraguai
Fonte: LUGON (1977).
Amostra 4 - Instrumentos musicais
Fonte: QUEVEDO (1996).
226
Amostras da Arte Missioneira
Amostra 5 - San Pedro de las Lágrimas
Fonte: FREITAS (1999).
Amostra 6 - Ruínas da Missão de São Miguel
Fonte: FREITAS (1999).
227
Miranda Neto
Amostra 7 - Ruínas do Cabildo de Trinidad no Paraguai
Amostra 8 - Interior da Igreja de São Miguel
Fonte: QUEVEDO (1996).
228
Amostras da Arte Missioneira
Amostra 9 - A construção das reduções
Fonte: FREITAS (1999).
229
Miranda Neto
Amostra 10 – Arte das Missões
Fonte: QUEVEDO (1996).
230
Créditos das Imagens
MAPAS
CARAMAN, Philip. The Lost Paradise: The Jesuit Republic in South America. New
York: The Seabury Press, 1976............................................................... Mapas 1A e 2A.
GOES FILHO, Synésio Sampaio. Navegantes, Bandeirantes, Diplomatas:São
Paulo: Martins Fontes, 2001........................................................... Mapas 5 e 7.
HARNISH, Wolfgang Hoffmann. O Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Globo,
1941............................................................................................................................Mapa 3A.
QUEVEDO, Júlio. A Guerra Guaranítica. São Paulo: Ática, 1996......Mapas 2, 3 e 4.
SOARES, TEIXEIRA, História da Formação das Fronteiras do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1973.................................................. Mapas 1, 6, 8 e 9.
231
Miranda Neto
AMOSTRAS
FREITAS, Décio et allii. Missões Jesuítico-Guaranis. S. Leopoldo: Unisinos, 1999............................................................................. Amostras 2, 5, 6 e 9.
LUGON, Clóvis. A República “Comunista” Cristã dos Guaranis. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1977..................................................................Amostra 3.
QUEVEDO, Júlio. A Guerra Guaranítica. São Paulo: Ática, 1996....Amostras 1, 4,
7, 8 e 10.
232
Índice de Nomes
Acosta, José de
Acquaviva, Cláudio (padre geral)
Adami, Enrico
Alembert (Jean Baptiste Le Rond d´)
Álfaro, Diogo de (padre)
Álfaro, Francisco de
Almeida, Regina de
Alpoín, Manuel Cabral
Altamirano (padre)
Anchieta, José de
Andrade, Gomes Freire de
Andreotti, Décio
Árias, Herman d´.
Asperger, Segismundo (padre)
Assunção, Paulo de
Azara, Félix de
Basauri, Diego
Berger, Louis (padre)
Bernal, Antonio
Biber
Bolaños, Luís de
Bosi, Alfredo
Brasanelli, José
Bucarelli, Francisco de Paula
Buenaventura, Alonso
Cabeza de Vaca, Alvar Núnes
Caboto, Sebastian
Cabral, Manuel
Caravaglia, Juan Carlos
Cárdenas, Juan de
Páginas
110, 142
110, 159
64
15
142
53, 115
111
53
124
88, 105, 129
28, 124
173
159
46, 64, 130
13, 111
126
64
56, 130
101
174
159
155
78
125, 126, 154
159
28
18
168
46
115, 142
233
Miranda Neto
Cardenosa, Bartolomeu
Cardiel, José (padre)
Cardoso, Ciro Flammarion
Carlos III
Carlos V
Carreras, Jaime (padre)
Castillo, Juan de
Cataldino, José (padre)
Céspedes, Francisco de
Cheuiche, Alcy
Clemente XIV (papa)
Couto, Francisco
Danesi, Pablo (padre)
De Martino
Durán, Nicolau
Espinosa, Pedro
Falkner, Thomas
Favacho, André Picanço
Felipe II
Fields, S.J.
Franck, Charles (frei)
Freitas, Décio
Gadelha, Regina
Garcia, Aleixo
Garriga, Antônio
Garrige, Antonio (padre)
Giannetti, Eduardo
González, Rocque
Grã, Luiz de
Gusmão, Alexandre de
Hénard (padre)
Hernández, Pablo
Irala, Domingo Martinez de
234
78
70, 130, 139
114
126, 151
28, 130
55
164, 171
78, 165
163
15
151
64
55
168
65
78
64
171
76, 161
159
55
14
172
18
129
40
13
28, 69, 78, 91, 92, 115, 142, 163, 164, 168, 171
104
7, 8
168
38, 128
120, 134
índice de nomES
João V (dom)
José I (dom)
Júlio II (papa)
Kern, Arno
Labrador, Sánchez
Languiru, Nicolau
Lobato, João
López, Solano
Loyola, Inácio de
(Íñigo Lopes da Recalde)
Lozano, Pedro (padre)
Lugon, Clóvis
Luís de Bolaños (frei)
Maeder, Ernesto
Mastrilli, Durán (padre)
Másy, Rafael Carbonell de
Meliá, Bartolomeu
Mendoza (padre)
Montenegro, Pedro (padre)
Montes, Enrique
Montes, Juan de
Montoya, Antonio
Morais, Francisco de
More, Thomas
Morner, Magnus
Mostesquieu
(Charles de Secondat, Barão de)
Moussy, Martin de
Neumann, Eduardo
Neumann, João Batista
Ñezu (xamã guarani)
Nieremberg, Juan Eusébio
Nietzsche
7
125
133
109
45
124
18
128
17, 21, 77, 170, 174
64, 130
60
28, 98
128
56, 142, 166
13, 40, 73, 75, 95, 157
170
166
46, 64, 130
18
64
28, 82, 91, 96, 106, 110, 129, 142, 165, 167
19
15, 93
13
15
129
115
129
163
129
174
235
Miranda Neto
Nóbrega, Manuel da
Nogueira, Ephigênia
Nuñez, Lauro (padre)
Oñate (padre)
Orozco, Gregório de (padre)
Ortega, S.J.
Paicá, Inácio (guarani)
Pais, José da Silva
Paulo III (papa)
Pizarro, Francisco
Platão
Pombal, Marquês de
(Sebastião José de Carvalho e Melo)
Popescu, Oreste
Prémoli, João Batista
Quiroga, José (padre)
Ramírez, Melchior
Ransonnier (padre)
Restivo (padre)
Rodrigues, Alonso
Rodrigues, Jerônimo
Romero, Juan
Schaden, Egon
Schmelzer
Schmidt, Martin
Sepp, Antonio
Sepúlveda, Juan Gines de
Sequeira, Inácio
Serdahely (padre)
Serrano, José
Silva, Francisco Carlos Teixeira da
Sodré, Nelson Werneck
Solano, Francisco
236
88
172
149
142
51
159
130
28
18
18
15
26, 29, 125, 150
13
77, 78
118, 129
18
168
129
164, 171
19
110
170
174
173
56, 64, 70, 91, 92, 130, 138, 174
105
19
130
129
114
155
98
índice de nomES
Solis, Juan Díaz de
Suárez, Boaventura (padre)
Tamburini, Michele Angelo
(Padre Geral)
Tiaraju, Sepé
Torres, Diego de (padre)
Torres, Domingo
Tubi Chapota, Januário (guarani)
Valdelírios Marquês de
Van Suerck (padre)
Vasconcelos (padre)
Vassaux, Jean Baez (padre)
Vera, Pedro de
Veríssimo, Érico
Viana, Joaquim de
Vieira, Antônio
Visconti, Inácio
Vitória, Francisco de (frei)
Voltaire (François Marie Arouet)
Yapuguay, Nicolas (guarani)
Zea (padre)
Zípoli, Domenico
18
56
40
124
142, 159, 160
64, 78
84
124
168
130
56, 130
53
15
58
139
123
159
15
130
101
78, 173
237
Formato
15,5 x 22,5 cm
Mancha gráfica
12 x 18,3cm
Papel
pólen soft 80g (miolo), cartão supremo 250g (capa)
Fontes
Verdana 13/17 (títulos),
Book Antiqua 10,5/13 (textos)
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