APRENDER
Caderno de Filosofia
e Psicologia da Educação
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia
REITOR
Prof. Abel Rebouças São José
VICE-REITORA
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PRÓ-REITOR – PROEX
Prof. Paulo Sérgio Cavalcante Costa
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DIRETOR – EDIÇÕES UESB
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COMITÊ EDITORIAL
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Prof. Dr. Antonio Jorge Del Rei Moura
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Prof. Ms. Marco Antônio Araújo Longuinhos
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Prof. Ms. Paulo Sérgio Cavalcante Costa
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Catalogação na publicação: Biblioteca Central da Uesb
Aprender – Caderno de Filosofia e Psicologia da Educação. Ano 3, n. 4, jan./
100
jun. 2005. Vitória da Conquista: Edições Uesb, 2005
A661a
Semestral.
ISSN 1678-7846
1. Filosofia – Periódicos. 2. Psicologia. I. Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. II. Título.
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APRENDER
Caderno de Filosofia
e Psicologia da Educação
ISSN 1678-7846
APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação
Vitória da Conquista Ano III
n. 4
p. 3-206
2005
Copyright ©2005 by Edições Uesb
APRENDER
Caderno de Filosofia e Psicologia da Educação
Caderno do Departamento de Filosofia e Ciências Humanas da
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia
Ano III – n. 4, jan/jun. 2005
Editores Responsáveis
Prof. Ms. Leonardo Maia Bastos Machado – Uesb
Prof. Ms. Ruben de Oliveira Nascimento – Uesb
Editoria Científica
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APRENDER – Caderno de Filosofia e Psicologia da Educação
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SUMÁRIO
DOSSIÊ TEMÁTICO: Infância e Educação
Introdução ............................................................................................. 9-10
A infância no processo civilizador
Anilde Tombolato Tavares da Silva ........................................................ 11-27
Lipman e o ensino de uma filosofia ideal
Liliane Barreira Sanchez ....................................................................... 29-48
Música e cultura infantil: uma breve revisão bibliográfica para a educação
infantil
Ana Lúcia Castilhano de Araújo ........................................................... 49-65
Teatro infantil: um olhar para o desenvolvimento da criança
Sandra Márcia Campos Pereira ............................................................. 67-88
Relação pais e filhos e o processo de aprendizagem escolar: um estudo
de caso
Maria Aparecida C. Bonfim Silva e Rubem de O. Nascimento .... 89-110
ARTIGOS
Adolescência e arte: estética e práticas culturais
Celso Vitelli ........................................................................................ 113-140
O governo da razão: escolarização, subjetivação e psicologia genética
Paulo Gurgel ...................................................................................... 141-160
Heidegger educador: acerca do aprender e do ensinar
Roberto Saraiva Kahlmeyer-Mertens ................................................... 161-171
Sartre, 100 anos
Leonardo Maia Bastos Machado ........................................................ 173-174
Existencialismo e educação – a filosofia sartriana da liberdade como
fundamento pedagógico?
Luciano Donizetti da Silva ................................................................. 175-200
Normas para apresentação de trabalhos ................................... 201-203
DOSSIÊ TEMÁTICO
Infância e Educação
DOSSIÊ TEMÁTICO
Infância e Educação
INTRODUÇÃO
É com satisfação que apresentamos, nesse número do Caderno
Aprender, um dossiê temático abordando Infância e Educação.
Apesar da complexidade e amplitude de estudos que esse campo
temático evoca, apresentamos reflexões sobre quatro importantes
aspectos, que merecem ser mais discutidos, estudados e aplicados: a
infância como um dos centros do processo civilizador; o ensino de
filosofia para crianças; a arte na Educação Infantil; as práticas educativas
familiares e sua relação com o processo de aprendizagem escolar.
São trabalhos que envolvem aspectos como: mecanismos
reguladores do pensamento e da formação de estruturas sociais de
civilização; a filosofia como base de uma Educação Infantil calcada no
desenvolvimento do pensamento e do questionamento do cotidiano;
a música e o teatro infantil e sua importância para o processo educacional
e de desenvolvimento da criança; o envolvimento da criança com o
processo de aprendizagem escolar e sua inter-relação com práticas
educativas familiares.
Infância e Educação, como alicerces do desenvolvimento
humano, tanto em termos individuais quanto sociais, preocupam por
seu impacto na formação do individuo. O Caderno Aprender procura,
com esse dossiê, contribuir com o estudo e a discussão dessa relação,
enfocando aspectos que podem ser mais explorados pela escola,
envolvendo não apenas a capacidade cognitiva da criança, mas também
suas emoções, sua formação familiar e sua sensibilizada artística.
Os Editores.
DOSSIÊ TEMÁTICO
Infância e Educação
A INFÂNCIA NO PROCESSO CIVILIZADOR
Anilde Tombolato Tavares da Silva *
Resumo: O presente trabalho busca trazer alguns apontamentos em relação ao
processo civilizador do sociólogo alemão Norbert Elias, principalmente no que
se refere às relações de correspondência ocorridas entre as transformações sociais
com as alterações na estrutura psicológica dos indivíduos, que incidem nos
padrões de comportamento, para que possamos refletir sobre as contribuições
da infância neste processo. Tomamos como base para este trabalho a obra O
Processo Civilizador, na qual o autor faz uma análise histórica das mudanças
que localizou no desenvolvimento da personalidade e das normas sociais no
processo formador da civilização moderna para o presente. Entendendo a
civilização como um processo contínuo e inacabado, apontamos a infância como
um ponto crucial para a moldagem dos padrões de comportamento do
indivíduo, visando o desenvolvimento da sociedade moderna.
Palavras-chave: Infância. Processo civilizador. Padrão de comportamento.
O presente trabalho busca trazer alguns apontamentos em
relação ao processo civilizador do sociólogo alemão Norbert Elias e
refletir sobre as contribuições da infância neste processo. Consideramos
Doutoranda em Educação pela Unesp de Marília – SP. Docente do Departamento de
Educação da Universidade Estadual de Londrina. E-mail: [email protected]
*
APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano III
n. 4
p. 11-27
2005
12
Anilde Tombolato Tavares da Silva
esta uma empreitada ousada, já que o autor não teve o tema da infância
como foco principal de suas obras, mas buscamos através da análise
histórica do processo civilizador e das mudanças que Elias localizou
no desenvolvimento da personalidade e das normas sociais no processo
formador da civilização moderna para o presente, a fonte para a análise
a que nos propomos.
Tomamos como base para este ensaio a obra O Processo
Civilizador, principalmente, o primeiro volume: Uma História dos
Costumes, que parte da origem do conceito de civilité, o qual, segundo
Elias nasce com a sociedade cavaleiresca medieval e com a unidade da
Igreja Católica, uma vez que os valores, atitudes, comportamentos e
costumes são inter-relacionados nos ideais de uma nobreza armada e
de uma igreja culta, pelo menos racionalmente, em sua forma de orientar
o pensamento naquilo que era designado como o ideal de civilização.
Os costumes ocidentais construídos e vivenciados até ali são os
comportamentos construídos, entre outras coisas, do que se
convencionou chamar de “civilização”. A civilização, que no sentido
eliasiano, nasce na formação social da sociedade de corte e do seu
ideal de conduta e vivência, na interdependência específica de um
momento histórico em que se está formando o absolutismo europeu.
Nas suas obras, Elias busca explicitar a sua teoria dos processos
de civilização, baseando-se nas relações sociais existentes na sociedade
guerreira, feudal, de corte e absolutista, terminando no advento da
sociedade burguesa, sempre mostrando as relações de correspondência
ocorridas entre as transformações sociais e as alterações na estrutura
psicológica dos indivíduos dessas sociedades. Para o autor, “a lembrança
de que a cavalaria e a fé romano-latina representa uma fase peculiar da
sociedade ocidental, um estágio pelo qual passaram todos os grandes
povos do Ocidente, certamente não desapareceu” (ELIAS, 1994, p. 67).
Sua preocupação volta-se, principalmente, à produção do
conhecimento sobre o passado, articulando a processos sociais mais
amplos, como parte da construção de uma experiência histórica e social,
que nada mais é do que a própria civilização. E como afirma Elias:
A infância no processo civilizador
13
A moderação das emoções espontâneas, o controle dos
sentimentos, a ampliação do espaço mental além do momento
presente, levando em conta o passado e o futuro, o hábito de
ligar os fatos em cadeias de causa e efeito – todos estes distintos
aspectos da mesma transformação de conduta que
necessariamente ocorre com a monopolização da violência física
e a extensão das cadeias da ação e interdependência social.
Ocorre uma mudança “civilizadora” do comportamento
(E LIAS, 1993, p. 198).
O que o autor busca teorizar é um processo civilizador que
comporta uma dimensão que é necessariamente coletiva e social, mas
também uma dimensão particular e individualizada, que remete para a
compreensão dos processos de introjeção das demandas e pressões
sociais e coletivas. Elias nos sugere dois enfoques para a análise do
processo civilizador, capazes de entender a construção social da
civilização como uma forma específica e particular de configuração
social, historicamente marcada, e que, conjuntamente, formam a teoria
dos processos de civilização do autor: do ponto de vista da Psicogênese
(plano psicológico individual) e da Sociogênese (plano onde ocorrem
as relações sociais) .
Sendo assim, a civilização inscreve-se no campo das ações e
decisões humanas, comportando um olhar sobre os indivíduos como
construtores e construídos pela sociedade; ou seja, é possível afirmar
que a civilização comporta um projeto de ordenação do mundo, quer
para o presente, quer para o futuro, em que, no nosso entendimento, a
infância tem um papel fundamental de construção da sociedade cada
vez mais civilizada, à medida que “a vida delas tem que ser rapidamente
submetida ao controle rigoroso e à modelagem específica que dão a
nossa sociedade seu caráter e que se formou na lentidão dos séculos”
(ELIAS, 1994, p. 145).
São essas demandas do processo civilizador que foca o olhar
de Elias em direção a dois pontos centrais, capazes de aumentar o
espaço de experiência das sociedades humanas: em direção ao passado
e ao futuro. Um olhar que organiza o passado segundo os princípios
14
Anilde Tombolato Tavares da Silva
de uma narrativa que não deixa espaços vazios entre o passado e o
presente, articulando eventos numa cadeia de causas e efeitos, que
tendem a naturalizar aquilo que resultou de uma decisão, de uma escolha,
dentre as possíveis aos homens enquanto seres históricos. Nesse sentido,
o passado transforma-se num vir a ser do presente, uma afirmação da
necessidade deste mesmo presente, apagando as lutas e tensões que
resultaram nele.
Nesse projeto de civilização de que nos fala Elias, aprender o
passado apreendendo-o é, para nós, parte do esforço de entender as
alterações sofridas na estrutura psicológica dos indivíduos no decorrer
do processo civilizatório e em suas relações com a “moderação das
emoções espontâneas” e “controle dos sentimentos”, poderoso
antídoto contra um risco sempre iminente de aproximar a experiência
humana daquilo que seria seu contrário – a natureza associada à barbárie.
Buscando a compreensão da experiência humana na sociedade
industrial, encontramos Krieken (1996), que ao argumentar sobre a
autodisciplina na história da sociedade, cita Louis Mumford que ressalta
a “mudança da mente”, a “reorientação dos desejos, hábitos e objetivos”
que acompanharam a rendição das sociedades européias “à máquina”.
Segundo este autor,
os teóricos da escola de Frankfurt desenvolveram este ponto
extensamente com o argumento de que o capitalismo moderno
racionalizado produz um tipo disciplinado particular de
constituição psíquica – baseados em seu interesse em desenvolver
uma dimensão psicológica para a teoria social através da integração
da psicanálise e do marxismo (KRIEKEN, 1996, p. 154).
Ainda nos coloca que a história das sociedades ocidentais tem
sido caracterizada pela crescente objetivação e disciplinarização da
subjetividade, um ordenamento da alma sempre intensificado, que
conjugado com uma crescente individualização tornou o indivíduo
moderno completamente “autocontrolado”, “autista neutro” e
“deprimido”. Busca em Marx a observação dos efeitos disciplinares
A infância no processo civilizador
15
do trabalho fabril, a “compulsão cega” da utilização do trabalho e a
emergência de uma classe trabalhadora que “por educação, tradição,
hábito, vê as condições do modo (capitalista) de produção como leis
naturais auto evidentes” (KRIEKEN, 1996, p. 154).
Foucault contribui nesta argumentação, à medida que aponta
para uma das características definitivas da formação do estado europeu,
desde o princípio do período moderno que foi
a transição de um poder de estado soberano, que operava
negativamente pela colocação de limites e coerções, para um poder
disciplinar descentralizado que penetra nossas almas, corpos e
mentes, transformado-os ativamente e produzindo efeitos
positivos que nos tornam a todos cidadãos autodominados
(KRIEKEN, 1996, p. 155).
Assim como Foucault, Norbert Elias também vê a história social
européia em termos de transformação gradual da estrutura da
personalidade, de uma intensiva dinâmica da “coerção para a
autocoerção”, na qual a regulação do corpo humano, tanto quanto
nossos impulsos, paixões e desejos são submetidos a um “processo
civilizatório”. Para Krieken (1996, p. 156):
Elias explica tal processo em temos de uma crescente
monopolização da violência que acompanhou o processo de
formação do estado, dos efeitos de uma competição intensificada
entre e intra grupos sociais característicos da economia de mercado,
bem como de uma concomitante tendência histórica em direção
à interdependência social crescente.
O ponto comum destes dois autores está na noção de que houve
uma “socialização do eu”, uma transição da história européia, de uma
ordem social baseada na coerção externa (poder soberano, poder
tradicional), para uma dependente da internalização da coerção (poder
disciplinar, dominação racional) (KRIEKEN, 1996, p. 157).
Estudando a história dos costumes e a formação dos Estados
nacionais como aspectos interdependentes do processo civilizatório,
16
Anilde Tombolato Tavares da Silva
Elias defendia que a civilização deve ser entendida como um processo
contínuo e inacabado. Por isso, um dos objetivos de sua teoria é analisar
a formação e as alterações sofridas na estrutura psicológica dos
indivíduos, e, dessa forma, podemos apontar a infância como um
ponto crucial para a moldagem dos padrões de comportamento,
visando ao desenvolvimento da sociedade civilizada que, como o
próprio autor nos afirma,
[...] nada mais é do que o processo civilizador individual a que
todos os jovens, como resultado de um processo civilizador
social operante durante muitos séculos, são automaticamente
submetidos desde a mais tenra infância, em maior ou menor
grau e com maior ou menor sucesso (ELIAS, 1994, p. 15).
O que propriamente quer nos dizer é explicado numa nota de
rodapé, onde argumenta que o que cabe ser frisado é o fato de que,
mesmo na sociedade civilizada, “nenhum ser humano chega civilizado
ao mundo e que o processo civilizador individual que ele
obrigatoriamente sofre é uma função do processo civilizador social”
(ELIAS, 1994, p. 15). E é nesse sentido que aponta a semelhança entre a
estrutura dos sentimentos e consciência da criança com a das pessoas
“incivis”, e, portanto, pressionada a se modelar conforme os padrões
de comportamento exigidos pela sociedade civilizada.
Atualmente, o círculo de preceitos e normas é traçado com tanta
nitidez em volta das pessoas, a censura e pressão da vida social
que lhes modela os hábitos são tão fortes, que os jovens têm
apenas uma alternativa: submeter-se ao padrão de
comportamento exigido pela sociedade, ou ser excluído da vida
num “ambiente decente”. A criança que não atinge o nível de
controle das emoções exigido pela sociedade é considerada como
“doente”, “anormal”, “criminosa”, ou simplesmente
“insuportável” do ponto de vista de uma determinada casta ou
classe e, em conseqüência, excluída da vida (ELIAS, 1994 ,p. 146,
grifo nosso).
A infância no processo civilizador
17
É possível, então, entender que a especificidade da teoria de
Elias está na indissociabilidade entre o desenvolvimento das estruturas
de personalidade e das estruturas sociais; ou seja, não se pode entender
as transformações sofridas pelas sociedades separadamente das
alterações ocorridas nas estruturas de personalidade dos indivíduos
que as formam. Os conceitos de indivíduo e de sociedade não são
antagônicos. O controle social altera a conduta ou o padrão de
comportamento das pessoas, sendo lentamente transformado, de
forma que passe a policiar o próprio comportamento. É o que Elias
chama de “controle das emoções”, ou dos impulsos e paixões dos
indivíduos que se constitui num dos resultados dos processos de
civilização.
Para Elias o autocontrole e o superego são precisamente o
produto final dos efeitos das coerções externas sobre a psique humana,
de uma rede de interdependência ou das coerções exercidas pelos
adultos sobre as crianças. A maioria das crianças é moldada dentro de
uma conformidade, com um certo padrão, pela coerção externa ou
compulsão (KRIEKEN, 1996, p. 159).
O controle das emoções e o próprio autocontrole são faces do
policiamento do comportamento quando já está internalizado no
indivíduo. À medida que a criança vai sendo condicionada desde a
mais tenra idade a controlar suas emoções, contribui no processo de
civilização da sociedade e vai delineando os padrões de
comportamento, ou
um conjunto de regras presentes na nossa estrutura psicológica e
de práticas cotidianas de convívio social. O padrão de
comportamento produz, por sua vez, patamares para as emoções
humanas, acima dos quais, sentimentos como a vergonha, o
embaraço e repugnância, por exemplo, se explicitam (BRANDÃO,
2000, p. 125).
É neste conjunto de regras do padrão de comportamento que
a infância se insere, criando um conjunto de regras na estrutura
18
Anilde Tombolato Tavares da Silva
psicológica e das práticas cotidianas de convívio social. Lembrando
que aquilo que consideramos inteiramente natural é porque “somos
adaptados e condicionados a esse padrão social desde a mais tenra
infância e teve no início que ser lenta e laboriosamente adquirido para
a sociedade como um todo” (ELIAS, 1994, p. 82).
A criança até os meados do século XIX era tratada como um
“adulto em miniatura” e não se fazia qualquer distinção de tratamento,
ou de comportamento entre o adulto e a criança. Os sentimentos de
vergonha e nojo não tinham a mesma conotação que têm na sociedade
atual. “O grau de comedimento e controle esperado pelos adultos
entre si não era maior do que o imposto às crianças” (ELIAS, 1994, p.
146). Hoje percebemos que a criança tem de atingir, em curto espaço
de tempo, o nível avançado de vergonha e nojo que demorou séculos
para se desenvolver. O padrão que está emergindo em nossa fase de
civilização caracteriza-se por uma profunda discrepância entre o
comportamento dos chamados “adultos” e das “crianças” (ELIAS,
1994, p. 145).
No século XIX, segundo Elias, novos modos são inculcados,
do adulto para a criança, através de um discurso verbal, na repetição
de comportamentos, na implantação de novos sentimentos. A
socialização modifica-se pouco a pouco, passa por mudanças lentas e
conscientes realizadas pelos adultos durante séculos, para uma
doutrinação rápida e silenciosa e que passa a fazer parte da vida das
crianças desde muito cedo. Nenhuma justificativa é oferecida à maioria
delas; a cortesia tornou-se absoluta e objetivo a se alcançar. Nas
sociedades modernas, a socialização da maioria das crianças
automaticamente inculca e reprime um sentimento indispensável para
o controle das emoções do indivíduo: a vergonha.
A infância é um universo de várias emoções e sentimentos que
vão se fundindo para contribuir na formação do adulto inserido no
processo civilizador. A vergonha, um dos sentimentos discutidos por
Elias, foi o instrumento que a família e a escola usaram para conduzir
a repressão das emoções na civilização moderna.
A infância no processo civilizador
19
Embora Elias tenha feito uma análise clara sobre a vergonha
n’O Processo Civilizador, não foi este o elemento chave de sua
argumentação e da sua teoria. Aproveitamos aqui, no entanto, seu
reconhecimento da aplicabilidade da análise da vergonha para o
problema do controle social inserindo nesta argumentação o papel
central que este sentimento representa como ferramenta de
disciplinamento da infância.
A infância marca o início deste processo de inculcação do
sentimento de vergonha e do controle, juntamente com a família e a
escola, e se intensifica, na medida em que o padrão de conduta da
sociedade é transferido do adulto para a criança, ou “imposto por
elementos de alta categoria social aos seus inferiores, ou, no máximo,
aos seus socialmente iguais” (ELIAS, 1994, p. 142) Na busca de explicitar
o papel da família como retransmissora de padrões sociais e de controle
dos instintos de sua prole, Elias se remete ao momento histórico em
que a família ganha importância:
Só relativamente mais tarde, quando a classe burguesa
compreendendo um maior número de pares sociais, torna-se a
classe superior, governante, é que a família vem a ser a única – ou,
para ser mais exata, a principal e dominante – instituição com a
função de instilar controle dos impulsos. Só então a dependência
social da criança face aos pais torna-se particularmente importante
como alavanca para a regulação e moldagem socialmente requeridas
dos impulsos e das emoções (ELIAS, 1994, p. 142).
É através desse processo regulador e modelador da família e
do adulto sobre a criança que se determinam e criam-se as regras para
os sentimentos. Elias vai documentando mudanças graduais, mas de
caráter inexorável e usa de estudos dos manuais que contribuíram na
imposição de padrões de comportamento e se instalaram de forma
silenciosa sobre a confiança de costumes, de estilos; de identidade sobre
o respeito, a honra, o orgulho e sobre os sentimentos de vergonha,
repugnância e embaraço de cada sociedade.
20
Anilde Tombolato Tavares da Silva
Exemplo deste processo é o estudo que faz da obra: Da
civilidade em crianças (De civilitate morum puerilum) de Erasmo de
Roterdam, um trabalho dedicado pelo holandês a um menino nobre,
filho de príncipe e escrito para a educação de crianças. Este manual
[...] assinala também, no tocante a essas áreas, um ponto na
curva de civilização que representa, por um lado, uma notável
elevação do patamar de vergonha, em comparação com a época
precedente,e, por outro se confrontando com tempos mais
recentes, uma liberdade na referência a funções naturais, uma
“falta de vergonha”, que para a maioria das pessoas que adotam
o padrão atual pode, a princípio, parecer incompreensível e não
raro “embaraçosa” [...] é muito claro que esse tratado tem
precisamente a função de cultivar sentimentos de vergonha (ELIAS,
1994, p. 140).
Presenciamos isto, ainda hoje, na forte influência do cristianismo
em nossos padrões de comportamento que repassamos a nossos filhos,
a exemplo da referência à onipresença do “anjo da guarda”, usada até
hoje como justificativa para o controle dos impulsos da criança e como
instrumento para condicionar alguns padrões de comportamento e
reprimir o prazer, de acordo com a conduta social. É comum ver os
pais ou professores repreender a criança com frases: “O anjinho da
guarda não gosta que você faça isto” ou “O anjo da guarda não vai
mais te proteger se você agir deste jeito”.
O manual escrito por Erasmo trata de um assunto muito simples:
o comportamento de pessoas em sociedade – e acima de tudo, do
decoro corporal externo. As razões higiênicas e de saúde receberam
mais ênfase neste processo, para obter maior grau de controle dos
impulsos e das emoções. Cabe ressaltar que essas razões passaram a
“desempenhar um papel importante nas idéias dos adultos sobre o
que é civilizado” (ELIAS, 1994, p. 140) sem a percepção da sua relação
com o condicionamento das crianças que está em processo.
O autor ainda analisa a obra como
A infância no processo civilizador
21
[...] um mundo e um estilo de vida que, em muitos aspectos,
[...], assemelha-se muito ao nosso, embora seja ainda bem
remoto em outros. O tratado fala de atitudes que perdemos,
que alguns de nós chamaríamos talvez de ‘bárbaras’ ou
‘incivilizadas’. Fala de muitas coisas que desde então se tornaram
impublicáveis e de muitas outras que hoje são aceitas como
naturais (ELIAS, 1994, p. 69).
Elias nos mostra que o Tratado funciona como um indicador
de um novo padrão de vergonha e repugnância que começa a se formar
lentamente na alta classe secular, principalmente pela via da educação
da criança e que este sentimento é uma função social modelada segundo
a estrutura social em que
grande parte do que chamamos de razões de “moralidade” ou
“moral” preenche as mesmas funções que as razões de “higiene”
ou “higiênicas”: condicionar as crianças a aceitar determinado
padrão social (ELIAS, 1994, p. 153).
É só pensar em como as crianças lidam com a sexualidade e
com o corpo na sociedade atual e como lidavam no passado.
Outro comportamento que exemplifica isto é o fato de que se
comermos com as mãos, em determinada situação, é condenável, uma
vez que incorporamos, enquanto segunda natureza, comer com a faca
e com o garfo, de uma maneira natural. Jogar o que é considerado
lixo, como restos de comida, no chão, da mesa de onde se come,
como se fazia no século XIII, é interpretado hoje em dia como sinal
de “barbarismo”, de “incivilização”, já que esta atitude de falta de
higiene pode ser considerada responsável por atrair insetos portadores
de doenças. Percebe-se o quanto o higienismo foi responsável por
mudanças de algumas atitudes e que passam a se incorporar desde a
infância para a garantia da “civilidade” de uma população.
A sociedade está, aos poucos, começando a suprimir o
componente de prazer positivo de certas funções mediante o
engendramento da ansiedade ou, mais exatamente, está tomando
22
Anilde Tombolato Tavares da Silva
esse prazer “privado” e “secreto” [isto é, reprimindo-o no
indivíduo], enquanto fomenta emoções negativamente carregadas
– desagrado, repugnância, nojo – como os únicos sentimentos
aceitáveis em sociedade. Mas exatamente por causa desse aumento
da proibição social de muitos impulsos, pela sua “repressão” na
superfície da vida social e na consciência do indivíduo,
necessariamente aumenta a distância entre a estrutura da
personalidade e o comportamento de adultos e crianças (ELIAS,
1994, p. 147).
A nós é ensinado desde a infância a nos comportar, a agir
conforme um padrão socialmente estabelecido, o que gera uma
estruturação de formação afetiva. Nossa estrutura mental, então,
incorpora gestos e movimentos concretos, a ponto de esquecermos a
nossa natureza animal e chegarmos mesmo a estranhá-la em outros
momentos históricos e em nós mesmos e criamos o que Elias considera
como segunda natureza. Condenamos atitudes de povos que viviam
sobre a sujeira em suas ruas, como na Idade Média, quando as condições
de higiene não atendiam ao ideal de padrão atual, entretanto,
reproduzimos o mesmo padrão de sujeira, após uma grande festa
pública, como comícios ou shows e não estranhamos estes
comportamentos. Ao olharmos a história de nosso povo, encontramos
atitudes nas quais nos reconhecemos e tantas outras que não seríamos
capazes de nos reconhecer nelas.
Em data tão recente como o século XVII, o garfo era ainda
basicamente artigo de luxo da alta classe, geralmente feito de prata
ou ouro. O que achamos inteiramente natural, porque fomos
adaptados e condicionados a esse padrão social desde a mais tenra
infância, teve, no início, que ser lenta e laboriosamente adquirido e
desenvolvido pela sociedade como um todo. Isto não se aplica
menos a uma coisa pequena e aparentemente insignificante como
um garfo do que às formas de comportamento que nos parece
mais importantes (ELIAS, 1994, p. 82).
Hoje já não discutimos mais o comportamento à mesa, apenas
reproduzimos o padrão de conduta para nossos filhos. Por volta dos
A infância no processo civilizador
23
seis meses de vida, quando a criança começa a aprender a comer sozinha,
sua primeira natureza faz levar à boca o alimento pelas mãos. Como
no nosso padrão de atitudes já incorporadas isto é considerado um
comportamento incivilizado, adiamos a autonomia da aprendizagem
natural da criança em se alimentar e seguimos com o processo de
iniciação ao mundo civilizado dos talheres até mais ou menos dezoito
meses de vida; ou seja, a mãe leva o alimento à boca do seu filho até
que ele tenha coordenação motora para segurar o talher e levar o
alimento à boca sozinho.
Os padrões e condutas mudam ao mesmo tempo em que muda
a afetividade, diria, talvez, que isto acontece concomitantemente, sem
podermos definir o que muda primeiro. E a iniciação aos padrões de
comportamentos civilizados continua, ao ensinar a criança a tomar
banho, a não andar nua, a diferenciar-se do sexo oposto pelas atitudes
ou vestimentas masculinas ou femininas, a não poder tocar nos seus
órgãos sexuais diante de outras pessoas. São mostras de que o que está
acontecendo é uma mudança de grau de afetividade, que resulta em
uma mudança de estrutura cognitiva de aprendizado das emoções, já
na infância.
O maior ou menor desconforto que sentimos com pessoas que
discutem ou mencionam suas funções corporais mais
abertamente, que ocultam ou restringem essas funções menos
que nós, é um dos sentimentos dominantes no juízo de valor
“bárbaro” ou “incivilizado”. Tal, então é a natureza do “malestar” que nos causa a “incivilização” ou, em termos mais precisos
e menos valorativos, o mal-estar ante uma diferente estrutura de
emoções, o diferente padrão de repugnância ainda hoje encontrado
em numerosas sociedades que chamamos de “não-civilizadas”,
o padrão de repugnância que precedeu o nosso e é sua precondição.
Surge a questão de saber como e por que a sociedade ocidental
moveu-se realmente de um padrão para outro, como foi
“civilizada” (ELIAS, 1994, p. 72).
“Civilização” e “incivil”, como nos afirma Elias (1994, p. 169),
são estágios de um mesmo processo que não constituem antítese de
24
Anilde Tombolato Tavares da Silva
juízos de valor entre o bem e o mal, certo ou errado. O nosso
comportamento “civilizado” pode causar embaraços para as futuras
gerações. Imaginemos daqui a trezentos anos, talvez nossos descendentes
ao olharem para nós, nos vejam da mesma forma que hoje olhamos
para os padrões de comportamentos da Idade Média, sem nos
reconhecermos neles. “Dividir uma cama com pessoas estranhas ao
círculo familiar fica cada vez mais embaraçoso.” Torna-se mais comum
que na mesma família cada um tenha sua cama e hoje já percebemos
uma tendência imposta pela privacidade, que cada um tenha seu próprio
quarto.
Desde cedo as crianças são treinadas nesse isolamento dos demais,
com todos os hábitos e experiências que isto traz. Só se
lembrarmos como parecia natural na Idade Média que estranhos,
crianças e adultos compartilhassem a mesma cama é que
poderemos compreender que mudanças nos relacionamentos
interpessoais se manifestam em nossa maneira de viver. E
reconhecer como está longe de axiomático que a cama e o corpo
devam formar essas zonas de perigo psicológicas, como acontece
na fase mais recente da civilização (ELIAS, 1994, p. 169).
Entretanto, a simples constatação não resolve o padrão de um
novo comportamento, o que é necessário é entender como se dá esta
transformação em pequenas atitudes cotidianas e historicamente
construídas, a fim de contextualizarmos os vários aspectos da infância
no processo civilizatório.
A “civilização” que estamos acostumados a considerar como uma
posse que aparentemente nos chega pronta e acabada, sem que
perguntemos como viemos a possuí-la, é um processo ou parte
de um processo em que nós mesmos estamos envolvidos. Todas
as características distintivas que lhe atribuímos – a existência de
maquinaria, descobertas científicas, formas de Estado ou que
quer que seja – atestam a existência de uma estrutura particular de
relações humanas, de uma estrutura social peculiar, e de
correspondentes formas de comportamento. Resta saber se a
mudança em comportamento, no processo social da “civilização”
A infância no processo civilizador
25
do homem, pode ser compreendida, pelo menos em fases
isoladas e em seus aspectos elementares, com qualquer grau de
precisão (ELIAS, 1994, p. 73).
Os costumes estão enraizados nas sociedades de tal maneira
que não nos cabe julgar se são “civilizados” ou não, o que interessa é
saber como eles são importantes e necessários exatamente da maneira
como aparecem. Há alguns anos, seria “normal” em nossa sociedade
irmos até a praia e deixarmos um rastro de sujeira atrás de nós. Hoje,
nos últimos vinte anos, talvez, o mesmo ato desperta em algumas
pessoas um sentimento de repulsa e de “incivilização”. Durante o
processo não percebemos totalmente todas as nuances, entretanto, elas
se dão no cotidiano, em pequenas atitudes que podem revelar grandes
compreensões de uma série de aspectos que elegemos como
importantes. As relações humanas tomam formas, se moldam, a partir
da estrutura social em que estão envolvidas, gerando o comportamento
que passa a ser incorporado ou não.
Nem sempre pode nossa consciência, sem hesitação, recordar
essa outra fase de nossa própria história. Perdeu-se para nós a
franqueza despreocupada com que Erasmo e seu tempo podiam discutir todas as áreas de conduta humana. Grande parte
do que ele diz ultrapassa nosso patamar de delicadeza (ELIAS,
1994, p. 72).
As crianças eram ensinadas, há trinta anos, que a água era um
recurso inesgotável, pois o processo de evaporação das águas dos rios
transformava-se em chuva e assim completava-se o ciclo inesgotável
da água. Hoje as crianças estão sendo ensinadas a mudar este
comportamento, já que a água é um recurso escasso e está acabando,
podendo comprometer a vida do planeta. A infância contemporânea
já adquiriu esse novo comportamento e as nossas crianças já
demonstram atitudes simples que expressam nas atividades escolares,
através de desenhos, cartazes, ao aprender a fechar a torneira depois
de usar, a não desperdiçar água ao tomar banho, a se manifestar ao
26
Anilde Tombolato Tavares da Silva
ver um rio próximo de sua casa poluído. Ainda não são
comportamentos que se naturalizaram entre os indivíduos da nossa
sociedade, mas já apontam para este fim.
Enfim, podemos perceber que não há radicalização abrupta nas
formas de mudanças comportamentais para as quais os tempos
históricos exigem de determinadas relações humanas figurações em
uma formação social cuja dimensão é variável. O equilíbrio de tensões
será responsável por modelar as dependências recíprocas entre os
indivíduos. Mas, percebe-se que as relações, no que se refere à infância,
sofreram transformações
e só agora, na era que tem sido chamada “o século da criança”,
surge o entendimento de que, dado o aumento da distância
entre uns e outros, crianças não podem se comportar como
adultos que lentamente iriam penetrando no círculo familiar
com os apropriados conselhos e instituições pedagógicas (ELIAS,
1994, p. 169).
Tem início aí a preocupação da sociedade com a educação da
criança – para modelá-la ao processo civilizador – de acordo com os
padrões de comportamento aceitos no mundo dos adultos. A educação
escolar tem seu papel fundamental, juntamente com a família, para a
continuidade do processo civilizador, que vai se construindo, na medida
em que o indivíduo, desde a infância, passa a ter um novo padrão de
comportamento, ou uma estrutura psicológica com novas
características, atuando de maneira diferente na sociedade, ajudando a
modificar as relações sociais nela existentes. É uma relação de
correspondência constante e histórica entre as estruturas psicológicas e
sociais, que vão passando de geração a geração, e assim formando o
processo civilizador de Norbert Elias.
A infância no processo civilizador
27
INFANCY IN THE CIVILIZER PROCESS
Abstract: The present work intends to discuss some issues concerning the
civilizer process of the German sociologist, Norbert Elias. Specifically, the
contributions of childhood as they relate to the corresponding relations which
occurred between social changes and psychological structure alterations of
individuals affecting patterns of behavior, so that we can think about the
contributions of childhood for this process. We base this study on the work
entitled The Civilizer Process, in which the author makes a historical analysis
of the changes in the development of personality and social rules in the formation
process of modern civilization for the present. Understanding civilization as an
unfinished and ongoing process, we point out childhood as a crucial feature for
the modeling of patterns of behavior of the individual for the development of
modern society.
Keywords: Childhood. Civilizer Process. Behavior Pattern.
Referências bibliográficas
BRANDÃO, Carlos Fonseca. A teoria dos processos de Civilização
de Norbert Elias: o controle das emoções no contexto da psicogênese
e da sociogênese. 2000. Tese (Doutorado em Educação) – Unesp de
Marília, 2000.
ELIAS, Norbert. O processo civilizador. A formação do Estado e
civilização. Rio de Janeiro: Zahar, 1993.
______. O processo civilizador. Uma história dos costumes. Rio de
Janeiro: Zahar, 1994.
FOUCAULT, M. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 1987.
KRIEKEN, Robert van. A organização da alma: Elias e Foucault sobre
a disciplina e o eu. Plural, São Paulo: USP (Sociologia), n. 3 p. 153180, 1. sem. 1996.
DOSSIÊ TEMÁTICO
Infância e Educação
LIPMAN E O ENSINO DE
UMA FILOSOFIA IDEAL
Liliane Barreira Sanchez*
Resumo: Este trabalho apresenta os princípios gerais do Programa de Filosofia
para Crianças de Matthew Lipman, questiona alguns de seus pressupostos
filosóficos e pedagógicos, criticando seu caráter normativo e contraditório.
Questiona os objetivos deste programa, baseado no ensino da lógica e na
formação de valores. Critica a proposta de neutralidade política e ideológica de
um ensino de filosofia, que pretende formar bons cidadãos para conviver em
uma sociedade democrática ideal, através do uso de metodologias específicas
para esse fim.
Palavras-chave: Filosofia. Educação. Infância.
Na década de 60, o filósofo norte-americano Matthew Lipman
sistematizou um programa de ensino de filosofia para crianças, com o
qual pretendia reformar o sistema educacional americano, a seu ver até
ali incapaz de promover o desenvolvimento adequado do raciocínio e
Doutoranda em Filosofia da Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(Uerj). E-mail: [email protected].
*
APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano III
n. 4
p. 29-48
2005
30
Liliane Barreira Sanchez
da capacidade de julgar dos alunos. Para tanto, segundo Lipman, a
prática da filosofia era indispensável. Além de buscar fundamentar
teoricamente o papel da filosofia na educação das crianças, o autor
desenvolveu uma metodologia e um currículo específicos, destinados
às escolas. Dessa forma, institucionalizou uma nova área de interesse
da educação (e por que não dizer, da própria filosofia?): o de fazer
filosofia com crianças. A proposta, que chegou ao Brasil na década de
80, é atualmente aplicada em mais de 30 países do mundo, tendo
inspirado críticas e alternativas. Da mesma forma, muitos dos estudos,
dissertações e teses a que deu origem pretendem hoje questionar suas
bases, sua metodologia e prática.
Em que pesem todos os questionamentos a que vem sendo
submetida, talvez um dos méritos que não se pode negar à iniciativa
de Lipman é o de trazer para o campo da reflexão filosófica um
objeto que pouco a freqüentou: a infância. Além disso, é preciso
reconhecer que, ao menos pelas reações que suscitou, a proposta de
Lipman reavivou o debate sobre a qualidade crítica do ensino de
filosofia correntemente ministrado nas salas de aula. Muitos são os
trabalhos que, principalmente entre as décadas de 70 e 90, debruçaramse sobre este assunto, motivados pelas discussões sobre a retirada do
ensino de filosofia da grade curricular, na época da ditadura militar, e
seu posterior retorno, num momento considerado de “abertura
política”. A maioria destes trabalhos enfatizava o prejuízo ocasionado
pelo caráter formal e artificioso que acompanhava a tradição didática
da filosofia, que regularmente substituiu a busca de desenvolvimento
do pensamento original dos alunos pela transmissão de uma história
de autores e correntes. A filosofia acabava por tornar-se uma disciplina
enfadonha, com datas e nomes a serem decorados, ao invés de uma
disciplina estimuladora de questionamentos e raciocínios criativos.
O que pretendemos com este trabalho, a despeito da grande e
variada quantidade de críticas que a proposta lipmaniana vem
recebendo, é concentrar nosso foco na abordagem que tal proposta
apresenta sobre o ideal de um ensino de filosofia, ou, como dissemos
Lipman e o ensino de uma filosofia ideal
31
no título, sobre “o ensino de uma filosofia ideal”. Com isso, acreditamos
estar oferecendo uma contribuição, ainda que provisória, para aquilo
que vem sendo o principal objeto de nossa preocupação: o caráter
expansionista de tal proposta, sua disseminação mundial e sua
assimilação pouco crítica em alguns contextos. Consideramos ser uma
tarefa urgente analisar os pressupostos ideológicos que a embasam,
tendo em vista as prováveis conseqüências que sua adoção poderá
acarretar ao campo da educação e da filosofia, sobretudo em nosso
país. Não podemos deixar de mencionar que tal proposta é igualmente
merecedora de análises críticas no que diz respeito a muitos outros
aspectos que lhe são próprios – sejam eles de natureza prática, tal
como a sistemática preconizada pelo autor e sua equipe para a adoção
e a comercialização do Programa, sejam eles de ordem teóricoconceitual, como é notadamente o caso, dentre outros, da visão do
papel do professor, da concepção de democracia e cidadania e do
tipo antropológico de aluno e de infância que estão nas bases do projeto.
No que diz respeito ao nosso objetivo, identificamos uma
fundamentação claramente normativa na proposta lipmaniana. O autor
se preocupa em descrever como “deve ser” uma educação filosófica
das crianças, partindo de quatro conceitos: filosofia, investigação, diálogo e
educação democrática. Segundo o autor, faz-se filosofia quando se praticam
regras que se definem pelos parâmetros lógicos e metacognitivos de
um diálogo ou uma investigação. Lipman identifica como filosóficas
as perguntas que questionam um tema comum (que tenha a ver com
todos os seres humanos e não apenas com alguns poucos, que tenha a
ver com a “humanidade” dos seres humanos), central (que despreze
detalhes ou particularidades sem maior significado, e coloque questões
de importância para a vida, tais como: liberdade, vida, morte, amizade)
ou controverso (capaz de gerar uma polêmica nunca esgotada pela
investigação).
Lipman concebe como “investigação” toda prática autocrítica
e autocorretiva. Ele propõe a criação da “comunidade de investigação”
como “novo paradigma” em educação, pelo qual as aulas deveriam
32
Liliane Barreira Sanchez
deixar de ser aquilo que são, para converter-se em círculos de
investigação filosófica. O conceito de “comunidade de investigação”
recebe influência significativa da tradição pragmatista, representada nos
Estados Unidos por Charles S. Peirce e John Dewey, entre outros.
Em particular, Lipman fundamenta sua teoria usando como
base os conceitos de comunidade e de investigação presentes na filosofia de
Charles S. Peirce, destacando sua importância no processo de produção
do conhecimento. Para Peirce, a dúvida é o elemento inicial de uma
investigação científica, que envolverá a comunidade num processo de
busca de respostas (crenças). Porém, essas respostas (crenças) também
devem ser continuamente confrontadas com as experiências vividas
(empirismo), fazendo com que o processo de conhecimento seja uma
infinita busca por argumentações e contra-argumentações, ou uma
investigação sempre aberta a novas verdades e possibilidades. Desta
forma, as respostas a serem produzidas (crenças), quando consolidadas
depois de alguns confrontos, tornar-se-iam mais firmes, mais
consistentes. Porém, como é no âmbito da própria comunidade que
essas crenças se solidificam, nela encontrando seu solo e suas
possibilidades de interpretação, a comunidade desempenha um papel
crucial no processo do conhecimento, fixando antecipadamente, podese dizer, as metas e os limites de cada investigação. Percebe-se, assim,
que a transposição operada por Lipman do ideal peirciano de
“comunidade científica” para o campo da filosofia não se dá sem um
custo ideológico bastante alto.
Para Lipman, a comunidade é o lugar do diálogo filosófico,
que é o caminho autêntico para se fazer filosofia. O autor entende que
uma pessoa se constitui pelas normas e valores que adquire no convívio
social, por isso, é de suma importância cultivar atitudes democráticas e
filosóficas na sala de aula, na comunidade de investigação, para que se possam
formar alunos com ideais democráticos e atitudes filosóficas. É de
suma importância o estabelecimento de tal comunidade, já que, ao
estimular o que ele chama de “diálogo filosófico”, ela forneceria
desenvolvimento ao modelo ideal de sociedade, que, por sua vez,
Lipman e o ensino de uma filosofia ideal
33
produziria o modelo ideal de indivíduos. Toda a proposta de Lipman é
assim definida por “modelagens”, pela busca de um ideal de homem
a ser alcançado através da educação filosófica das crianças.
Quanto a Dewey, sua influência sobre Lipman se faz
especialmente visível em sua definição de educação. Dewey vê a
educação como uma forma de aprimorar a experiência do estudante,
reorganizando-a, reconstruindo-a, enriquecendo-a. Esse enriquecimento
se dá através das ferramentas que a educação propicia ao estudante
para o aprimoramento de suas experiências futuras. Para isso, é preciso
que a educação escolar forneça os instrumentos que propiciem ao
aluno o estabelecimento de contínuas conexões entre a experiência do
passado, do presente e do futuro, entre a experiência social e individual.
Dewey vê na escola o espaço de construção do pensamento do aluno.
Por isso, critica a concepção de ensino-aprendizagem baseada apenas
na transmissão de conteúdos, que ele considera um processo passivo
de aprendizado. Longe de desprezar o conhecimento, ele o considera
como um meio para aprimorar o desenvolvimento do pensamento e
julgamento do aluno, que seriam as atividades principais do processo
educativo. Para Dewey, enfim, a educação é um processo de troca
entre os interesses dos estudantes, suas inquietações e as demandas
sociais que a escola representa.
Nesses termos, estabelece-se a importância que Dewey atribui à
filosofia, como disciplina que, por excelência, cultiva o pensar e
problematiza a experiência. O autor rejeita a concepção especulativa
da filosofia que não se compromete com a experiência social: para ele,
esta disciplina está intimamente relacionada à concepção de educação,
com a qual compartilha suas finalidades, promovendo o enriquecimento
da experiência, e seu questionamento. Porém, são evidentes os limites
que a filosofia recebe na formulação de Dewey, que a concebe como
uma teoria geral da educação, não reservando à disciplina qualquer lugar
especial na prática educativa – ao contrário do que é levado a fazer em
relação às ciências, para as quais reserva um espaço mais do que central.
Poder-se-ia dizer que Lipman toma em contrapelo as disposições de
34
Liliane Barreira Sanchez
Dewey, não fossem, em sua obra, as fronteiras entre filosofia e ciência
tão pouco nítidas.
Lipman se fundamenta, ainda, na estreita relação que Dewey
constrói entre educação e democracia. Para ambos os autores, a
democracia é a forma de vida mais apropriada ao enriquecimento
humano, pois apenas num contexto democrático é possível ao homem
problematizar e recriar os diversos aspectos de sua experiência. Como
as instituições educativas atuam na ordem social, os autores propõem
uma educação “para” e “na” democracia, na medida que uma provê
as ferramentas necessárias aos estudantes para o desenvolvimento da
outra, e vice-versa. A educação deve cumprir uma função
democratizante na vida social dos alunos, possibilitando a compreensão
dos fundamentos da ordem social, suas causas e conseqüências. Somente
o contexto democrático garante a liberdade e a possibilidade da
investigação e do pensamento.
Lipman pretende valorizar essa relação entre educação e
democracia centralizando seu foco no ensino da filosofia. Ele considera
que desde o início da formação escolar as crianças estão aptas à prática
da filosofia. Assim, caberia à filosofia preparar as crianças para pensar
nas outras disciplinas, isto é, tanto para pensar a partir quanto sobre cada
disciplina; e lhe caberia, igualmente, outorgar unidade ao que aparece,
no currículo, disseminado. Lipman considera a filosofia como uma
prática que fornece à experiência educacional seu sentido e as
ferramentas que lhe são indispensáveis.
Para construir um diálogo entre as crianças e a tradição ocidental
da filosofia, Lipman criou “novelas filosóficas”, que, segundo ele,
apresentariam os problemas filosóficos em linguagem e contexto
considerados adequados para os seus leitores. Por outro lado, Lipman
postula o interesse das crianças como o ponto de partida de toda
investigação nas salas de aula. Assim sendo, o programa “filosofia para
crianças” seria o produto da interação entre os interesses, problemas e
inquietudes das diferentes faixas etárias e aquilo que a metodologia
lipmaniana preparou para desenvolvê-los “adequadamente”.
Lipman e o ensino de uma filosofia ideal
35
Instrumentos centrais dessa metodologia, as “novelas filosóficas”
escritas pelo próprio autor e seus colaboradores, apresentam diálogos
entre crianças, pais, vizinhos, professores, tentando simular situações
com as quais as crianças-leitoras possam se identificar. As criançaspersonagens representam modelos de “investigadores” que debatem
questões significativas do seu cotidiano. Para que os professores sem
formação filosófica possam lidar com a proposta em sala de aula,
Lipman também elaborou manuais que propõem exercícios e planos
de discussão a partir das idéias principais contidas nas novelas. Contamse, ao todo, oito novelas, adequadas para as diferentes séries escolares;
no Brasil, somente cinco foram traduzidas e aplicadas. Elas se propõem
a trabalhar principalmente temas lógicos (raciocínio analítico) e éticos.
Um ponto ausente na proposta de Lipman é a consideração
das implicações que o fechamento ideológico em que vivem as
sociedades e grupos sociais poderia suscitar em seu programa. De
fato, apesar dos seus pressupostos teóricos de sustentação, a proposta
de Lipman pretende que as aulas de filosofia para crianças possam ser
ideologicamente neutras – ou capazes de neutralizar a ideologia que as
crianças trazem de seu meio. Seria possível formar cidadãos críticos
por meio de aulas de filosofia ideologicamente neutras? Seriam possíveis
aulas de filosofia ideologicamente neutras? Então, de que filosofia
estamos falando?
Vários filósofos e educadores, ao longo da história da educação,
defenderam diferentes argumentos, métodos e objetivos sobre o sistema
educacional; todos eles, divergentes ou não, apontam, porém, para
uma direção que não deixa dúvidas: a grande importância social de
um sistema educativo para a manutenção ou transformação de um
regime político e econômico de governo. Sendo assim, e levando-se
em conta a dimensão da aceitação de que a proposta lipmaniana tem
sido objeto, cabe questionar: o que pretende claramente essa proposta
e o que dela podemos esperar? Que ideologias políticas e pedagógicas
sustentam os argumentos teóricos que pretendem fazer do ensino de
filosofia uma ferramenta para a formação de cidadãos críticos,
36
Liliane Barreira Sanchez
participativos e éticos? Que metodologias e conteúdos têm sido
aplicados ou sugeridos em sala de aula e em que medida eles têm
sustentado uma prática coerente com a proposta teórica?
Lipman, seguindo Dewey, prioriza o desenvolvimento do
pensamento e do julgamento no processo educacional. Por considerar
a filosofia como a disciplina dedicada ao pensamento, reserva-lhe lugar
de destaque de máxima importância no currículo escolar: ela seria capaz
de problematizar a realidade, contribuindo inclusive para a
problematização dos diferentes conteúdos das outras disciplinas e
construindo uma ponte de “sentidos” capaz de unificar o currículo
escolar. Segundo o autor, a filosofia seria, mais ainda, capaz de
transformar o modo de vida das pessoas, por fazê-las capazes de
pensar melhor, de investigarem com espírito crítico e criativo, de serem
mais razoáveis e de serem mais cuidadosas em suas relações sociais e
intelectuais.
Enfim, a filosofia se revelaria a própria base da educação, na
medida em que se apresenta como ferramenta para o desenvolvimento
de todo o pensar – tanto aquele que denomina de “normal” (ou
cotidiano) quanto o que define como “Pensar de Ordem Superior”.
O primeiro seria o pensamento acrítico e mecânico, enquanto que o
segundo combinaria as três características máximas da reflexão:
criticidade, criatividade e cuidado.
Por criticidade no Pensamento de Ordem Superior, Lipman
entende a capacidade questionadora e deliberativa que problematiza,
examina e avalia as razões, os fundamentos e as crenças. Um
pensamento crítico é autocorretivo e sensível ao contexto no qual está
inserido. Por criatividade, o autor entende a capacidade de inovar, de
ser pluralista e independente, aplicando determinados critérios na busca
de juízos que transcendem a si mesmos e enfatizando a variedade e a
diferença. Por cuidado ele entende a aplicação de valores no próprio
pensar, considerando a dimensão da emoção daquilo que se aprecia,
que se considera importante, valoroso, tal como o exemplo de uma
obra de arte ou a atenção dada às relações humanas.
Lipman e o ensino de uma filosofia ideal
37
Estes elementos convergem para o primeiro ponto que
gostaríamos de destacar no Programa de Lipman: trata-se da idéia de
que crianças que aprendem a desenvolver um Pensar de Ordem
Superior se tornariam, de forma quase que necessária, razoáveis,
tolerantes, respeitosas e democráticas. É desta forma que Lipman
fundamenta a função sociopolítica da “educação para o pensar”. Assim
sendo, compreende-se que a filosofia para crianças apóia-se em uma
normatividade pela qual se pretende que, através do uso e
desenvolvimento de algumas ferramentas lógicas e cognitivas, se
desenvolva um determinado tipo de ser humano capaz de um
determinado tipo de convivência na sociedade. Eis porque e sobre
que bases Lipman enfatiza a necessidade de se ensinar “filosofia” desde
a mais tenra idade, registrando a tempo e a contratempo a necessidade
de que esse ensino as acompanhe por toda a vida escolar, direcionando
o currículo e a própria educação: disso depende, em sua avaliação, a
certeza de formação de um bom cidadão democrático, que seria fruto
necessário dessa proposta educativa. Envolvendo as crianças em
diálogos filosóficos nas comunidades de investigação, já se estaria desde
cedo fazendo com que elas vivenciem um “modelo” que vale pela
própria democracia, com que elas se acostumem às regras democráticas
da deliberação e do respeito ao próximo.
Um segundo ponto a destacar é o do próprio terreno sobre o
qual o autor edifica sua proposta filosófica de formação de cidadãos
críticos, criativos e cuidadosos. Como dissemos, Lipman afirma,
repetidamente, que a democracia precisa da filosofia como ferramenta
de preparação para a deliberação democrática. Porém, para o autor, o
fiel do diálogo filosófico em uma comunidade de investigação é a
lógica – que garantiria a sua condução e direção. A lógica direcionaria
o diálogo, não permitindo que ele se perdesse ou se tornasse confuso.
Ela se apresenta, pois, no projeto lipmaniano como a metodologia
implícita que conduz a investigação. Mais ainda, para Lipman, a lógica
é fundamental no raciocínio, possibilitando a descoberta do critério da
verdade. Um bom pensador, imagina o autor, precisa dominar alguns
38
Liliane Barreira Sanchez
critérios, tais como: narração, descrição, análise de conceitos, tradução
de significados, interpretações, inferências, capacidade para sínteses e
para se pôr no lugar do outro… e seria a lógica a garantia de aquisição
de, pelo menos, alguns desses, senão de todos.
Em sua proposta de “educação para o pensar”, Lipman pretende
trabalhar o tema específico da lógica com crianças de 10/11 anos de
idade, o que equivale no Brasil à 5ª série do ensino fundamental. A
novela destinada a essa função recebeu, na tradução brasileira, o título
de A descoberta de Ari dos Telles (supostamente uma brincadeira
com o nome de Aristóteles) e seu manual de instruções (dedicado ao
uso dos professores) foi intitulado Investigação filosófica. Em ambos
os volumes, trata-se de ensinar, através de situações de diálogos entre
os personagens, os conteúdos básicos da lógica identitária e de relações,
tal como se apresenta na experiência “informal”; mas, um espaço
considerável é reservado à formalização aristotélica. Não se registra,
entretanto, em qualquer passagem de tal novela, a preocupação em
mostrar as possibilidades de contestação das verdades lógicas, assim
como não há um propósito aparente para se questioná-la. Trata-se
apenas da imposição de uma ferramenta que deve ser ensinada aos
alunos, que deve ser internalizada por eles, da mesma forma como
acontece com os personagens das novelas. Para garantir um bom
resultado desse aprendizado, o manual oferece um grande número de
exercícios que devem ser aplicados pelo professor.
Ao atribuir tamanha importância à lógica, Lipman define o tipo
de enfoque dado à filosofia e ao pensamento em sua proposta, que,
longe de enfatizar o caráter provisório, aberto e plural da reflexão
filosófica, privilegia o estabelecimento de determinadas regras e
parâmetros que, segundo o autor, permitiriam a construção daquilo
que é por ele denominado “pensamento”. Repare-se que é esse
privilegiamento da lógica que determina o caráter aparentemente
“neutro” do ensino filosófico, em nome do qual o caráter conflitual
do campo político se esfumaça e a educação passa a servir a apenas
uma abordagem da filosofia – ainda que o autor insista em proclamar
Lipman e o ensino de uma filosofia ideal
39
que seus propósitos servem a um regime democrático de governo. É
esse privilegiamento, ainda, que fornece ao autor as bases de definição
apriorística das regras e das metas da democracia, da mesma forma
como permite determinar de forma acabada e universal a “filosofia”
que deve ser aplicada, seus objetivos, métodos e mesmo seus
instrumentos – as novelas e manuais. Profundamente determinista, a
concepção de ensino de filosofia proposta por Lipman deixa, é
evidente, pouco ou nenhum espaço para um diálogo com outras
possibilidades do vir a ser, não oferece qualquer abertura ao novo, ao
outro, a algo que possa ser diferente dessas definições. Fecha por
completo a discussão filosófica.
Correlata à tentativa implícita de “neutralização” da reflexão
filosófica, a pretensão à universalidade que atravessa o projeto de ensino
de filosofia para crianças introduz problemas insolúveis para a proposta
lipmaniana. Tanto a filosofia como a educação são práticas históricas e
sociais. Os materiais de Lipman (novelas e manuais) foram produzidos
nos Estados Unidos, nas quatro últimas décadas: apesar da
especificidade dos temas e diálogos neles contidos, mantêm uma
pretensão de universalidade. Mas, por um lado, se de fato os temas
filosóficos dizem respeito à humanidade em geral (macrocosmo), em
que condições poderiam eles fundamentar um pensar sobre a prática
sempre particular de cada contexto? Por outro, sendo impossível negar
que a recepção desses temas deve (ao menos teoricamente) variar
segundo esses contextos e culturas que atravessam (microcosmo), que
espaço é concedido pelo programa à originalidade das criações locais?
É preciso, assim, pensar sobre as implicações do uso de materiais
previamente formulados e sua intencionalidade. Em que sentido e até
que ponto é possível conciliar a defesa de uma educação democrática
à oferta de manuais acabados? Como conciliar a determinação contida
nos pressupostos, métodos, procedimentos e instrumentos com a
defesa de uma investigação filosófica? Nesse sentido, a normatividade
presente em todos os aspectos, teóricos e práticos, da proposta de
Lipman denunciam seu caráter profundamente contraditório.
40
Liliane Barreira Sanchez
Repare-se, no entanto, que muito do sucesso amealhado pelo
Programa de Filosofia para Crianças repousa no caráter acabado,
operacional da proposta de Lipman – que se oferece como um conjunto
programático até os mínimos detalhes. Não há dúvidas, ainda aqui,
que é a lógica a ferramenta de conversão de seu sistema em um
programa tão sedutor, por sua acessibilidade e sua convergência. Mas
como poderiam a educação democrática, e a reflexão filosófica se
acomodarem a materiais e metodologias que pressupõem uma
concepção tão instrumental da filosofia? Assim, o milagre operado
por Lipman parece depender inteiramente da redução das realidades
humanas, inclusive das questões éticas apresentadas em suas novelas,
ao que permite o emprego das ferramentas lógicas de seus manuais.
Lipman pretende que lógica e ética estejam presentes em todas
as novelas, porém define Ari como a novela que aborda principalmente
o ensino de lógica e Luísa como a que aborda a discussão de temas
éticos. Luísa é uma novela destinada a crianças de 12/13 anos – e, no
Brasil, deveria ser adotada na 7ª e 8ªséries do ensino fundamental. Em
outras palavras, o método prevê que o aprendizado das ferramentas
lógicas seja anterior à discussão ética, por pressupor que o primeiro é
condição da segunda. Além disto, não se preocupa o autor em fornecer
argumentos que justifiquem a eleição dos temas propostos para a
discussão, sua real importância, ou seus verdadeiros propósitos. Lipman
limita-se a apresentá-los, pretendendo que sejam universais, em oferecer
elementos que pudessem favorecer sua (re)contextualização. Essa
imposição fornece um caráter artificial e uma superficialidade que
dificilmente podem ser superados pelo professor, e que acabam por
determinar o formalismo com que professores e alunos são conduzidos
a se relacionar com a questão ética.1
Lipman fundamenta seu conceito de educação ética em três autores: Aristóteles, Kant e
Mill. Do primeiro, afirma extrair a idéia de que a função que caracteriza os seres humanos
é viver de acordo com a razão e que uma coisa pode ser considerada boa quando cumpre
bem sua função: por isso, quanto mais racional for o homem, mais chances tem de ser
bom. Do segundo, retira o conceito de “lei moral universal”, pela qual os seres humanos
devem agir de acordo com aquilo que consideram ser a forma correta de todos agirem.
Do terceiro, adota a abordagem utilitarista, o conceito de felicidade geral, a relação entre
1
Lipman e o ensino de uma filosofia ideal
41
Note-se, no entanto, que Lipman afirma que não se deve
pretender prover as crianças com teorias éticas predeterminadas, que
sirvam de guias de suas condutas, mas sim capacitá-las através da
investigação com as ferramentas de raciocínio necessárias para um bom
pensar (autocrítico e autocorretivo). Ressalta ainda que é a filosofia que
pode cultivar todas as habilidades de pensamento que os assuntos sociais
possam requerer, através do desenvolvimento de conceitos, da
capacidade de definições, de inferências, de conexões, distinções, e
raciocínio analógico. Porém, considera que o caráter das pessoas
também tem importância significativa para a vida dos cidadãos. A
afirmação seguinte evidencia a relação que o autor estabelece entre
educação ética e o desenvolvimento de algumas habilidades atribuídas
por ele ao ensino de lógica:
Uma pessoa que tem o caráter de “bom cidadão” é aquela que
internaliza – isto é, adota como seus – os mecanismos sociais de
racionalidade na prática institucional. Assim, membros de um
comitê de seleção, cujas crenças e atitudes pessoais são diversas,
concordarão com a necessidade de imparcialidade de evidências,
especificações de trabalho claras e precisas, metas, objetivos e
critérios de avaliação para que os candidatos sejam escolhidos
justamente (LIPMAN, 1990, p. 67).
Contrariamente a sua proposta de um ensino de filosofia
“neutro”, o autor afirma que, propositalmente ou não, quem ensina
algo está sempre ensinando valores também e que o que deve ser feito
é estar atento para um ensino “melhor” de valores, que sejam mais
o bem de cada indivíduo e o bem de todos. Da junção desses elementos, Lipman
formula seu ideal ético, baseado no uso adequado das habilidades cognitivas, na busca
por um consenso razoável, apoiado em argumentos racionais e no diálogo filosófico e
democrático. Para Lipman, as crianças devem ter a possibilidade de experimentar a vida
num contexto de respeito mútuo, de diálogo disciplinado, de investigação cooperativa,
livre de arbitrariedade e manipulação, contexto este que é o que ele idealiza como sendo
uma classe de filosofia para crianças, uma “comunidade de investigação”. Ele afirma que
nada aprimora mais as habilidades de raciocínio do que uma conversa disciplinada e que
esta, por sua vez, deve seguir às regras dadas pela lógica (LIPMAN, 1990, p. 67). É como um
trabalho circular, no qual as habilidades direcionam o diálogo, ao mesmo tempo em que
são reforçadas por ele. Para o autor, o diálogo é a condição da civilidade.
42
Liliane Barreira Sanchez
racionais e saudáveis. Para isso, ele sugere que se trabalhe com alguns
critérios, tais como a abordagem da ambiguidade de valores, através da qual
os valores considerados genuínos seriam aqueles oriundos da
investigação de valores; o fortalecimento do caráter, entendendo por caráter
o conjunto de hábitos que uma pessoa dispõe para comportar-se de
modo recomendável em relação às obrigações cívicas (em se tratando
de educação de valores, de formação ética), através do envolvimento
das crianças em discussão de valores de maneira participativa e
cooperativa, acatando as regras da discussão, ouvindo umas às outras,
dando razões de seus pontos de vista e pedindo razões de seus colegas,
aprendendo a apreciar a diversidade de perspectivas e a necessidade
de contextualização; a aplicação das habilidades de raciocínio, representadas
pelo uso de categorias lógicas (fazer inferências, trabalhar com
coerências e contradições, lidar com ambiguidades, formular questões,
compreender relações, dar razões, identificar suposições, fazer analogias,
desenvolver conceitos, generalizar, reconhecer imprecisões, construir
hipóteses, contextualizar, antecipar, prever e estimar conseqüências,
classificar e categorizar); a avaliação como foco da investigação de valores,
partindo da idéia de que o modo disperso pelo qual geralmente
pensamos não é o modo como podemos e devemos pensar, mas sim
podemos e devemos estar constantemente avaliando e reavaliando
tudo o que envolve o nosso pensamento (inclusive ele próprio), através
do emprego de critérios de aperfeiçoamento e conscientização; e o uso
de uma pedagogia apropriada para a investigação de valores, que deve assumir
a forma de investigação dialógica, numa atmosfera de cooperação
intelectual e respeito mútuo, para que as crianças possam se familiarizar
com os diferentes pontos de vista e perspectivas, possam se acostumar
a desafiar e serem desafiadas, a dar razões, a refletir crítica e
objetivamente sobre os seus e os pontos de vista alheios e, enfim,
tornarem-se mais confiantes.
A filosofia é, para Lipman, a disciplina ideal, capaz de prover o
ambiente ideal para que as características necessárias a uma educação
de valores aconteça, não só por considerar a ética um ramo da filosofia,
Lipman e o ensino de uma filosofia ideal
43
mas também por considerar que os modelos de discussões e
investigações filosóficas sempre levam a um aprendizado sobre relações
humanas e sociais, sempre levam a uma tomada de consciência em
relação ao outro, aos seus argumentos e a uma reavaliação de sua própria
postura e de seus próprios argumentos. Diz o autor: “Quando se trata
de raciocínio ético, a filosofia é um método indispensável, a subdisciplina
da lógica é um aparato indispensável” (LIPMAN, 1990, p. 95).
Mas, seria a filosofia um “método” para se ensinar alguma outra
coisa (no caso, valores)? Ou seria a filosofia um conjunto de conteúdos
a serem ensinados? Essas e outras perguntas acompanham os
profissionais da área, desde o início de suas formações, principalmente
se resolvem seguir carreira como professores, o que ocorre na maioria
das vezes. Afinal, o que deve ser ensinado em uma aula de filosofia e
por quê? Enquanto diversos profissionais da área tentam aprofundar
essa questão em encontros, seminários e congressos, Lipman oferece
sua resposta através de sua definição de filosofia:
A filosofia tenta clarear e iluminar assuntos controversos e
desordenados que são tão genéricos que nenhuma disciplina
científica está equipada para lidar com eles. Os exemplos poderiam
ser conceitos como verdade, justiça, beleza, individualidade e
virtude. Ao mesmo tempo, a filosofia tenta perturbar nossas
mentes em relação àqueles assuntos que tendemos a tomar por
certos, insistindo que prestemos atenção aos aspectos que até
agora achamos conveniente relevar. Qualquer que seja o assunto,
entretanto, o objetivo da filosofia é o de cultivar a excelência no
pensamento, e os filósofos fazem isso examinando o que é pensar
historicamente, musicalmente, matematicamente – em uma única
palavra, pensar excelentemente nas disciplinas.
Todavia, há algo de mais significativo que a filosofia traz à procura
da excelência no pensamento, e que é sua subdisciplina de lógica.
A lógica é uma disciplina normativa em vez de descritiva. Isto é,
ela não se esforça para descrever como as pessoas pensam, mas
oferece, em vez disso, critérios por meios dos quais podemos
distinguir um bom pensamento de um mau pensamento. Ainda
que os lógicos possam divergir sobre uma ou outra questão, é
em geral reconhecido que as considerações da lógica são de grande
44
Liliane Barreira Sanchez
importância na determinação do que significa ser racional. Uma
vez que a racionalidade é o objetivo primordial da educação
refletiva, a lógica tem muito com o que contribuir ao cultivo do
pensamento. [...].
[...] Se filosofia é o que fazemos quando nossas conversas tomam
a forma de investigação disciplinada por considerações lógicas e
metacognitivas, não temos o direito de negar o termo ‘filosofia’
àquelas conversas entre crianças que empregam essa mesmíssima
forma..
Antes de considerarmos em mais detalhes a contribuição que a
filosofia pode dar ao fortalecimento das habilidades de
pensamento, deveríamos levar em consideração os modos pelos
quais as áreas distintas da filosofia podem contribuir para o
fortalecimento da educação. As principais áreas a serem
mencionadas aqui são epistemologia, lógica, metafísica, ética e
estética. Muito da fragilidade da educação moderna pode ser
observado a partir do momento em que são eliminados do
currículo assuntos normalmente tratados por essas subdisciplinas
(LIPMAN, 1990, p. 112).
Lipman estrutura suas aulas de filosofia para crianças da seguinte
forma:
• Leitura de uma parte do texto (um episódio de uma novela
filosófica), em voz alta, pelos alunos.
• Indicação de passagens interessantes deste texto, o que permite
a escolha de itens para a discussão. (Nada impede a participação
do professor nesta etapa).
• Discussão a respeito de um tema escolhido pelos alunos (pode
ser por votação).
• Para fortalecer tal discussão, o professor pode, se considerar
necessário, aplicar os exercícios sugeridos no manual. (Notese que há uma quantidade de temas sugeridos nos planos de
discussão dos manuais para cada episódio).
• Não é necessário que a turma chegue a uma conclusão ou
uma resposta única sobre a discussão, mas sim que faça uma
avaliação sobre ela ao final de cada aula.
Lipman e o ensino de uma filosofia ideal
45
O autor recomenda ainda que os cursos preparatórios de
professores de filosofia sigam a mesma metodologia, para que tais
professores possam vivenciar o mesmo processo de seus alunos. Para
ele, os tópicos filosóficos exercem atração natural nas crianças, por
estas serem naturalmente curiosas, questionadoras e por eles serem
vagos e permitirem uma certa flexibilidade em suas definições.
Tais conceitos prestam-se prontamente ao diálogo, com os alunos
encontrando-se rapidamente engajados num cabo-de-guerra
sobre as várias interpretações dos conceitos sob observação. Essas
capacidades de os conceitos filosóficos gerarem linhas competitivas
de discussão e um senso de investigação cognitiva e cooperativa
é o que faz com que pareçam tão significativos e dinâmicos às
crianças (LIPMAN, 1990, p. 110).
O fato de a metodologia de Lipman permitir e até preferir que
a escolha dos temas filosóficos a serem discutidos se dê por intermédio
das próprias crianças é justificado por ele pela necessidade de concentrar
o foco no interesse delas, naquilo que as deixa perplexas, que a seu ver
costumam ser os temas que mais se identificariam com aqueles já
denominados por ele de “filosóficos” (comuns, centrais e controversos).
Ele acredita que se possa, através dos assuntos de interesses das crianças,
aprofundar o desenvolvimento racional e moral delas, baseando-se
nas regras da comunidade de investigação e do diálogo filosófico. E,
assim, evitar que elas sejam vítimas de doutrinações autoritárias ou de
um relativismo insensato, pois teriam sido estimuladas pela filosofia a
pensarem por si mesmas, de maneira crítica e a ouvirem cuidadosa e
respeitosamente os outros, perseguindo, porém, um ideal de
compreensão objetiva do universo que as cerca.
Conclusão
Parece-nos bastante contraditória a proposta lipmaniana de ensino
de filosofia. Se por um lado ele pretende que a filosofia reforce o
ambiente democrático, por permitir que se formem cidadãos plenos
46
Liliane Barreira Sanchez
de raciocínios críticos e criativos, capazes de deliberarem, questionarem,
tomarem decisões, por outro, ele define que tal ensino de filosofia
esteja fundamentado na transmissão de ferramentas lógicas. Para o
autor, apenas o desenvolvimento de determinadas habilidades do
pensamento pode garantir que seres humanos tenham condutas mais
racionais e cuidadosas, necessárias para o convívio democrático. Em
sua proposta não está mencionada claramente uma vertente de filosofia
política que pudesse estabelecer mais claramente uma relação com um
sistema de governo qualquer.
Ele diz como deve ser o ensino de filosofia, elabora novelas
para esse fim e manuais de instruções para sua aplicação, não reservando
nenhum espaço para o questionamento crítico ou a criação de novas
possibilidades de se ensinar filosofia, seja pelos próprios professores
ou pelos alunos. Ao nosso ver, tal metodologia é pouco filosófica e
pouco democrática, pois já traz pronto um receituário a ser aplicado
de determinada maneira e com determinados fins em vista. Não há
um espaço para um debate filosófico de sua proposta de ensino. Há a
tentativa de imposição de um método, um texto pronto que pretende
apresentar determinados temas que Lipman acredita merecerem
discussão e interesse por parte das crianças e manuais que ditam as
regras, propõem formas de guiar as discussões em sala e oferecem
determinados exercícios, cabendo aos professores aplicá-los.
O ensino de filosofia para Lipman tem um propósito, um
objetivo definido, que passa pelo ensino da lógica, pretendendo formar
cidadãos que raciocinem de uma forma superior aos outros que não
desenvolveram determinadas habilidades cognitivas e passa por uma
preocupação com o ensino de valores, ao mesmo tempo que pretende
possuir neutralidade ideológica. Além de tentar limitar as possibilidades
de pensar o ensino de filosofia, Lipman propõe uma “transmissão de
neutralidade”, que por si só já não pode ser considerada neutra, isenta
de ideologias. O autor busca estabelecer definições para a filosofia e a
educação e não abre espaço para transpô-las.
Lipman e o ensino de uma filosofia ideal
47
O que ele define como raciocínio crítico se limita a aplicação de
regras da lógica, o que ele define como raciocínio criativo não leva em
conta a dimensão desconhecida das possibilidades do humano e o que
ele define como cuidadoso limita-se ao cumprimento de determinadas
regras de convívio social. O que ele define como filosófico nos parece
estar definido por demais para merecer tal denominação. O que ele
pretende como educativo se assemelha a uma imposição normativa
de formação de caráter.
O autor define sua proposta como uma inovação pedagógica,
porém intenciona impô-la como uma tábua de salvação para aquilo
que considera ser um modelo educativo naufragado. Traz uma receita
de bolo já pronta e acabada que serviria para estimular o interesse
cognitivo dos alunos, tão acomodado pelo gosto insosso das
metodologias das aulas tradicionais, porém, não intenciona discutir a
aplicação de seus “ingredientes”, empurrando-os goela a baixo dos
alunos e professores pelo uso das novelas e manuais. Esvazia o
questionamento filosófico da subjetividade necessária para a sua
realização, substituindo-a por um “diálogo filosófico” artificial e
fabricado, por uma metodologia de solving problems. Subtrai a
possibilidade de criação, de transformação e de verdadeira inovação.
LIPMAN ET L’ENSEIGNEMENT D’UNE PHILOSOPHIE IDÉALE
Résumé: Dans ce travail, on présente les principes généraux du Programme de
Philosophie pour Enfants de Matthew Lipman. On s’interroge sur certains de
ces présupposés philosophiques et pédagogiques en critiquant leurs caractères
normatifs et contradictoires. On s’interroge aussi sur les objectifs de ce
programme basé sur l’enseignement de la logique et la formation de valeurs.
On critique la proposition de neutralité politique et idéologique d’un
enseignement de philosophie qui vise à former de bons citoyens pour vivre
ensemble dans une société démocratique idéale en faisant usage de
méthodologies spécifiques à cette fin.
Mots-Clés: Philosophie. Éducation. Enfance.
48
Liliane Barreira Sanchez
Referências bibliográficas
CANIVEZ, Patrice. Educar o cidadão. Campinas: Papirus, 1991.
KOHAN, Walter Omar. O que você precisa saber sobre filosofia
para crianças. Rio de Janeiro: DP&A, 2000.
LIPMAN, Matthew. A filosofia vai a escola. São Paulo: Summus,
1990.
SIMON, Maria Célia Moraes Neiva. O ensino da filosofia no 2º grau:
crítica ou alienação? Debates Filosóficos, Rio de Janeiro, n. 2, 1980.
DOSSIÊ TEMÁTICO
Infância e Educação
MÚSICA E CULTURA INFANTIL: UMA BREVE
REVISÃO BIBLIOGRÁFICA PARA
A EDUCAÇÃO INFANTIL
Ana Lúcia Castilhano de Araújo*
Resumo: Este trabalho procura relacionar questões relativas ao ensino
de artes e música na Educação Infantil, e à compreensão de uma cultura
da Educação Infantil a partir de algumas reflexões sobre a prática do
ensino de artes para crianças pequenas. O objetivo foi organizar
argumentos que reforcem a questão da necessidade de se investir na
formação geral da criança pequena, partindo da contribuição que as
artes têm para a criança, até chegar à possibilidade de se regularizar o
seu ensino nas escolas e pré-escolas.
Palavras-chave: Educação infantil. Prática pedagógica. Artes. Educação
musical. Cultura infantil.
Doutoranda em Educação pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Docente
da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb). E-mail: [email protected]
*
APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano III
n. 4
p. 49-65
2005
50
Ana Lúcia Castilhano de Araújo
Este texto tem como objetivo levantar algumas questões a
respeito da educação da criança de 0 a 6 anos nos aspectos culturais
envolvidos neste processo, a partir de uma breve revisão bibliográfica
na área de música e artes. O objetivo é organizar argumentos que
reforcem a questão da necessidade de se investir na formação geral da
criança pequena, partindo da contribuição que as artes têm para a criança,
até chegar à possibilidade de se regularizar o seu ensino nas escolas e
pré-escolas. A fim de falar sobre as artes na Educação Infantil, vou me
utilizar, ora de textos e comentários específicos sobre música, ora sobre
trabalhos e considerações sobre arte em geral. No entanto, há um veio
comum entre ambos que é a formação cultural da criança.
A proposta dos Parâmetros Curriculares Nacionais para o ensino
fundamental organiza as Artes nos Documentos de Área, sendo
colocados aí os conteúdos específicos de cada uma delas. A
LDB1 determina que “o ensino da arte constituirá componente curricular
obrigatório, nos diversos níveis da educação básica, de forma a
promover o desenvolvimento cultural dos alunos” (BRASIL, 1996).
O Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil
(RCNEI) recomenda o trabalho com a criança em uma perspectiva
ampla. O documento considera a música como uma linguagem
expressiva, juntamente com o movimento, a expressão cênica e as artes
visuais. Esta linguagem é compreendida como um meio para o
desenvolvimento infantil nos aspectos da expressão, do equilíbrio, autoestima e auto-conhecimento, sendo importante, inclusive, para o trabalho
com as crianças portadoras de necessidades especiais.
Monique Audries Nogueira (2000) realizou uma análise da
discografia recomendada pelo RCNEI, elogiando a listagem publicada
no documento. A autora indica algumas obras que foram deixadas de
fora, e se detém nas obras que se aproximam do tema brincadeira. A
partir daí, analisa detidamente as obras selecionadas, dando indicações
sobre origem e contexto cultural no qual foi criada. Em suas conclusões,
1
Lei de Diretrizes e Bases para a Educação, 9394/96, Art. 26, parágrafo 2º.
Música e cultura infantil: uma breve revisão bibliográfica para a educação infantil
51
a autora chama a atenção para a necessidade de se investir na formação
musical dos professores, nos cursos de pedagogia, uma vez que a
simples aquisição de alguns títulos (no caso do uso do RCNEI como
“receituário”) não resolve todas as questões do trabalho com música
na Educação Infantil. São importantes: o investimento na formação
dos profissionais assim como a compreensão do desenvolvimento
musical da criança, momento em que a Educação Infantil poderia
contribuir para a formação do ouvinte. A autora propõe um trabalho
de formação musical dos professores nos cursos de pedagogia.
Considerando a diferença entre a instrução musical que forma músicos
e a educação musical, que forma pessoas apreciadoras de arte, antes
de tudo, o sentido do trabalho com a música é o importante nesta
situação, não sendo necessário que o professor tenha uma formação
musical sólida como instrumentista, por exemplo.
A questão da valorização da cultura infantil como objetivo da
educação tem sido ampliada nos últimos 20 anos, na medida em que
cresce o número de trabalhos publicados com esta temática. Para Sônia
Kramer, as crianças são seres históricos marcados pela sociedade onde
vivem, com suas contradições.
Defendo uma concepção de criança que reconhece o que é específico
da infância – a seu poder de imaginação, fantasia, criação – e
entende as crianças como cidadãs, pessoas que produzem cultura
e são nela produzidas, que possuem um olhar crítico que vira
pelo avesso a ordem das coisas, subvertendo essa ordem
(KRAMER,2003).
A Educação Infantil tem a função de proporcionar à criança
educação a partir do contato com um mundo de aprendizado de sua
cultura, incluindo as letras e a arte. Neste sentido, vale a pena procurar
compreender o universo infantil em uma ótica diferente da do adulto
e da escola. Podemos considerar que um movimento interessante nessa
direção foi o valor dado à brincadeira infantil nas produções acadêmicas
em todo o mundo, em trabalhos de diversas correntes como a
52
Ana Lúcia Castilhano de Araújo
culturalista francesa, antropológica, freinetiana, histórico-cultural, e assim
por diante. Além disso, o incremento de propostas de pesquisa, com
apoio na metodologia etnográfica, também aproxima o pesquisador
das questões culturais envolvidas nas relações da criança com a educação,
e alerta para a necessidade de a escola assumir uma posição que acate
as diversas culturas da infância (QUINTEIRO, 2002).
Hasse (2004), em um levantamento de textos da Associação
Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped) sobre
Educação Infantil, analisa o papel da infância expressa pelos autores
do GT 7 (Educação da Criança de 0 a 6 anos). Para a autora, a infância
é vista como heterogênea em seus vários aspectos, assim como a criança
é entendida como um sujeito de direitos. Reconhecer a criança como
sujeito de direitos implica percebê-la em sua história, como produtora
de cultura, marcada pelo meio social no qual vive. Segundo a autora,
as famílias são heterogêneas, e “as especificidades da faixa etária das
crianças que freqüentam as instituições de educação infantil requerem
que as mesmas sejam observadas, respeitadas e que tenham voz”. Neste
sentido, concebe-se a criança como aquela que é marcada pela cultura
na qual está inserida, mas que também produz cultura sob a forma de
discursos, e entendimento da realidade.
Seguindo uma tendência de alguns autores para expor questões
a respeito da cultura e da educação não formal de crianças, há trabalhos
publicados tanto em educação, quanto em temas específicos como a
educação musical. Estão se tornando comuns publicações que abordam
as questões culturais de um ponto de vista que não privilegia o olhar
hegemônico da cultura dominante, mas que tenta abrir espaços para
outras linguagens, outras realidades, novas possibilidades. Estes trabalhos
têm ajudado a compor um quadro em que se detecta a necessidade de
ampliar os olhares, inclusive sobre as crianças e os diversos tipos de
infância possíveis de serem relatados.2
2
A respeito da historiografia da infância e da discussão sobre os conceitos de infância,
ver Kuhlmann Jr. e Fernandes, 2004.
Música e cultura infantil: uma breve revisão bibliográfica para a educação infantil
53
Nesta perspectiva, poderíamos citar o exemplo do multiculturalismo3 na educação, assunto trabalhado no texto de Vera Maria
Candau (2002), no qual a autora, a partir das relações entre cultura,
educação e sociedade brasileira, analisa os movimentos oficiais e
cotidianos de inclusão e trabalho com as diferenças, tanto as culturais
como aquelas relativas às necessidades especiais. Os movimentos sociais
em sua luta pela garantia de direitos, o embate teórico e cotidiano
entre a cultura do aluno e a cultura da escola, são alguns processos
sociais desencadeantes do estudo do multiculturalismo. O
estabelecimento de processos culturais que articulem igualdade e
diferença, o reconhecimento do outro, são desafios tanto para
acadêmicos como para professores em suas escolas.
Dentre os trabalhos mais específicos sobre cultura e educação
musical, podemos citar o de Leda Mafiolletti (2001). O texto em
questão trata dos fatores e aspectos da musicalidade no ser humano,
chamando a atenção para a cultura, partindo de conteúdos específicos
da espécie humana que fazem com que a música seja reconhecida ou
compreendida. A autora mostra a discussão de diversos autores a
respeito de linhas de pensamento sobre o conceito e papel da música
nas diversas culturas. Ressalta a necessidade de se investir na educação
musical das crianças, ao mesmo tempo em que mostra a importância
que o conhecimento a respeito da produção e valoração da música
tem para os estudiosos do assunto.
Beatriz Ilari (2002) publicou um texto cujo conteúdo é uma
entrevista com o professor Francis Corpataux, educador que pesquisa
a música infantil em diversas culturas. Seu interesse é a respeito do
desenvolvimento musical das crianças em todo o mundo, ressaltando
o que há de cultural e geral na música infantil. Faz parte de sua pesquisa
a música espontânea ou tradicional pertencente à determinada cultura.
Neste caso, fica em evidência a postura do pesquisador em ouvir outros
Campo de estudos que partiu de movimentos de afirmação das particularidades culturais
e das diferenças. Vera Candau (2002) discute as diversas idéias alusivas ao termo, bem
como as perspectivas de pesquisa que podem ser direcionadas na sociedade e nas escolas.
3
54
Ana Lúcia Castilhano de Araújo
sons, investigar outras perspectivas, outros olhares, sem interferir ou
estabelecer juízos a respeito do que acontecia em seus contatos com
estas outras culturas. Esta é uma postura e uma metodologia bastante
interessante para o trabalho com a criança pequena, não só na área de
música, uma vez que todo o processo de aquisições culturais está por
trás daquilo que todo o ser humano é.
Na área de música, a produção acadêmica traz avanços
importantes para se compreender os processos culturais nas relações
estabelecidas entre adulto e criança, mostrando um discurso que, além
de procurar relacionar o aprendizado da música com o
desenvolvimento do pensamento criativo, como exposto em Diaz
(2001), apresenta um conjunto de justificativas para a sistematização
do ensino de música nas escolas regulares por profissionais capacitados
(NASCIMENTO , 2003). Na área da educação para a arte, há várias
discussões a respeito de aulas de dança ou de música ministradas por
profissionais ou por professores, levantando várias considerações sobre
as particularidades do ensino da técnica e de formas de expressão
corporais. Neste caso, considera-se a escola como formadora de um
público de arte, mais do que como formadora de profissionais de
arte (STRAZZACAPPA, 2001). Então, a idéia seria trabalhar em um sentido
mais amplo, para além da técnica musical ou cênica, no âmbito da
cultura e da estética.
A discussão a respeito dessa questão nos coloca frente a um
problema vivido por qualquer educador que não faça parte das
disciplinas tradicionalmente reconhecidas como fundamentais para a
formação do aluno: português, matemática, ciências. No caso da
Educação Infantil, estes conteúdos são privilegiados, inclusive, sob a
forma de jogos, os conteúdos da matemática, e de língua materna,
ficando as demais áreas do conhecimento em segundo plano (ALMEIDA,
2001). A arte, então, passaria a ter um caráter instrumental utilitário,
reduzindo uma função que seria muito mais ampla.
Esta situação, no entanto, não é vivenciada em todas as instituições
de Educação Infantil. Gilvânia Pontes e Marta Pernambuco (2000)
Música e cultura infantil: uma breve revisão bibliográfica para a educação infantil
55
realizaram um histórico da creche da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte (UFRN) em Natal, de 1979 a 1998, incluindo a
passagem pelas orientações do RCNEI. As autoras relatam experiências
da creche na área de arte e mostram como a questão da dualidade
entre a arte como expressão e como recurso de apoio a outros temas
pode ser equacionada sem prejuízos do conceito e objetivo da arte. O
projeto foi realizado com crianças de 2 a 4 anos, incluindo atividades
de pintura, desenho livre, artes plásticas, dramatizações e artes cênicas.
Neste caso, o papel da arte foi equacionado ao lado das demais áreas,
em um processo de composição do currículo daquela instituição. É
um exemplo de como a visão do todo pode oferecer alternativas aos
educadores na Educação Infantil.
Casos em que o ensino de artes nas escolas é trabalhado de
forma estreita, simplesmente amparando outras áreas, podem ser
observados no uso da arte como instrumento didático para as demais
áreas de conteúdo. O desenho pode servir para ilustrar os trabalhos
de português, ciências, matemática. Isso mostra o caráter instrumental
que as artes têm na opinião de muitos professores, conforme mostra
o estudo de Célia Maria de Castro Almeida (2001). De acordo com a
autora, “as artes são produções culturais que precisam ser conhecidas
e compreendidas pelos alunos, já que é nas culturas que nos constituímos
como sujeitos humanos”. Embora muitos autores mostrem a
importância do aprendizado e contato da criança com a arte, há
valorização da expressão da criança na educação, embora o discurso
desminta isso sob a forma de leis, como a 9394/96. De acordo com
análise de Maura Penna (2001, p. 32), os documentos para a área da
Arte configuram claramente uma orientação oficial para a prática
pedagógica nas escolas, no entanto, mais uma vez percebe-se um
descompasso entre o proposto e a realidade das escolas. A autora
detectou em sua pesquisa realizada em João Pessoa um número muito
maior de profissionais de artes plásticas do que de música, nas escolas.
Neste aspecto, a autora adverte que os documentos oficiais podem
levantar discussões, mas não resolver por si sós o problema, neste
56
Ana Lúcia Castilhano de Araújo
caso, a transformação da prática do ensino da arte. Assim, há dificuldade
em se admitir na dinâmica dos currículos aquelas disciplinas ou matérias
artísticas. Nesse processo de discussão e busca de adequação, há autores
que concordam com as aulas de arte (seja arte em geral ou música ou
teatro) ministradas por pedagogos ou profissionais com formação
pedagógica. Outros pretendem um trabalho mais direcionado, com
respeito às especificidades de cada arte.
De qualquer modo, é bom frisar que o ensino de música para as
crianças pequenas é percebido por autores como Carl Orff e Hans
Koellreuter e Murray Shaeffer, como um processo não de ensino da
técnica musical, mas de educação musical, ponte para o desenvolvimento
humano amplo amparado na sensibilidade que a arte musical pode
oferecer. Há propostas para a educação musical que se encaixam na
idéia de Educação Infantil de qualidade, como a desenvolvida por Teca
Alencar de Brito (2003). Nas palavras da autora, trata-se de:
um trabalho pedagógico-musical que se pode realizar em contextos
educativos nos quais a música é entendida como um processo
contínuo de construção que envolve perceber, sentir, experimentar,
imitar, criar e refletir.
Assim como a música, os desenhos, a dança, as diversas formas
de expressão corporal, são importantes para fazerem parte de um
ambiente organizado em torno das possibilidades expressivas da
criança. Um dos pontos fundamentais na aprendizagem da criança
pequena diz respeito à sua definição sobre o que sente, se é dor, tristeza,
alegria, saudade, compaixão. Formas de expressão que podem ajudar
a criança a desenvolver possibilidades de conviver com diferenças e
abrir suas possibilidades de comunicação são sempre interessantes e
um ótimo meio para o educador interessado em perceber uma criança
completa, sem as idealizações comuns na pedagogia ou psicologia.
Maria Isabel Leite (1998, p. 134), referindo-se ao papel da arte e
do desenho na Educação Infantil, afirma que:
Música e cultura infantil: uma breve revisão bibliográfica para a educação infantil
57
Nas sociedades contemporâneas, no contexto de um mundo
que se pretende homogêneo e linear, a função primordial da obra
de arte é quebrar essa linearidade – criar o estado de choque, de
espanto, de inquietação. É desmanchar a estrutura preconcebida
para que ela possa se reestruturar de uma outra forma, gerar um
processo de estranhamento na percepção – isto é, ir além da vida
cotidiana [que leva à subutilização da percepção] e passar a
desfamiliarizar o mundo – criar um problema para a percepção,
fazendo-a dar conta de um objeto que sai de suas formas ou
conteúdos habituais.
A arte, portanto, possibilita à pessoa explorar o pensamento
divergente, buscar novas soluções e propostas alternativas, criando um
percurso no qual se pode investigar, criar e exprimir múltiplas formas
de comunicação (LOPES,1998, p. 84). Neste sentido, até mesmo o
trabalho com a diferença entre as pessoas em suas várias maneiras de
ver o mundo pode ser contemplado a partir do trabalho com a arte.
Na música, isso pode aparecer sob a forma de alternativas sonoras, de
sons e canções que fogem à escuta usual da criança. E é importante
chamar a atenção para a diferença entre o processo de contato do
adulto com a diferença e o novo, neste caso, sempre revestido de
ansiedade e receio, e o da criança, muito mais plástica, tanto em seu
interesse, como em sua elaboração dos novos conteúdos. O choque, o
espanto, e a inquietação na criança pequena são sempre notórios,
efusivos, compartilhados com seu grupo.
Ainda em relação à percepção da criança pequena no contato
desta com a arte, Almeida (2001) aponta como fundamental “o
desenvolvimento de uma forma especial de se relacionar com o
mundo”, naquilo que ela chama de atitude estética, relativa a uma atenção
da criança ao que a cerca: formas, cores, linhas e espaços, palavras e
sons, gestos e movimentos, explorando esses elementos em suas
atividades. A percepção da criança mostraria, então, não apenas as
relações formais entre esses elementos, mas a expressão, o sentimento
que eles podem transmitir.
58
Ana Lúcia Castilhano de Araújo
Esta necessidade da educação tem relação direta com a
possibilidade de se abrir espaço para ouvir a criança, deixá-la expressar
o que sente, como pensa a sua pré-escola: se gosta do espaço da
instituição, como lida com o seu cotidiano, ou como se ressente do
contato maior com flores, plantas e animais (OLIVEIRA, 2001). Esta
seria uma forma importante de se estender o olhar do pesquisador
para além do brincar, colocando em evidência outras formas de
expressão da criança, incluindo a oral.
O ensino de música e artes na Educação Infantil ajuda a criança
a expressar o que sente, a viver e lidar com suas questões individuais e
em grupo, algo que vai muito além da técnica e do aprendizado
instrumental. A abertura necessária da Educação Infantil para a cultura
da criança nos mostra uma valorização da criança no próprio processo
educativo, voltando o pesquisador (e o professor) para um trabalho
que considera a criança como centro. Isso porque a prática atual da
Educação Infantil mostra uma discrepância entre o “proposto” e
“vivido” pela criança (B ATISTA , 2001), sendo comum encontrar
pesquisadores que, ao se voltarem para investigar o cotidiano na
Educação Infantil, se deparam com situações inesperadas, uma vez
que há uma série de idéias pré-concebidas que ele leva ao seu campo
de investigação. De acordo com Batista (2001), sua perplexidade se
deu diante da possibilidade da criança pequena contribuir com a própria
proposta pedagógica da pré-escola. Para ela, a rotina também educa,
e é constituída também pela ação infantil em conjunto com o adulto.
Seria interessante, para o educador, procurar unir as reflexões a
respeito da Educação Infantil e infância e educação musical, de forma
a estabelecer uma interface que propicie um desenvolvimento de uma
compreensão maior na questão da formação infantil. Talvez assim
pudéssemos nos aproximar de uma criança completa, sem os
fracionamentos reproduzidos4 nas discussões acadêmicas e na mídia,
4
Reprodução que parte de um contexto muito maior, da própria concepção iluminista
de criança e educação. A separação entre os mundos do adulto e da criança, e a percepção
desta como “um outro distinto”. A respeito disso, ver Cynthia Greive Veiga, 2004.
Música e cultura infantil: uma breve revisão bibliográfica para a educação infantil
59
nas quais geralmente algum aspecto vem tentar defini-la. Então temos,
por vezes, uma criança corporal, uma criança que brinca, uma criança
com dificuldades de aprendizagem, uma criança consumidora. Os
rótulos são muitos, e em geral não contemplam aspectos que não
estão ligados a uma certa concepção de infância. São poucos os textos
que apontam para algo que vá além da visão alegre de criança, daquela
pronta para a diversão, sem malícia, que vive a melhor parte de sua
vida. A criança, na verdade, ultrapassa esta visão onírica do adulto
(ROCHA, 1999). Ela também possui lembranças, medos, frustrações,
assim como os adultos.
O reconhecimento de aspectos da infância que ultrapassem esta
visão construída, idealizada da infância, é um objetivo a ser perseguido
por quem educa crianças. Na educação, a criança vista em sua diferença
em relação ao adulto, como um contraponto importante no qual a sua
“inabilidade, desorientação, falta de desenvoltura” podem mostrar
aspectos que o mundo adulto já não percebe em sua visão econômica,
ajustada na busca pela razão e pela soberania (GAGNEBIN, 1997).
O mundo adulto visto como um valor que deve rebaixar a
infância é algo que torna as crianças incapazes. Daí a surpresa freqüente
dos adultos diante de algum comentário sagaz das crianças frente a
um assunto que se imagina fora de seu campo de compreensão.
Propostas pedagógicas que trazem como mote a escuta de culturas,
falas, modos diferentes de se viver, pensar e falar,podem abrir espaço
tanto para os adultos como para as crianças, no sentido de deixá-las
mais abertas e sensíveis para o outro.
Ainda que a produção acadêmica tente contemplar o universo
infantil, com suas diversas características, falta muito a ser dito a respeito
da criança que vive em nossa sociedade. Crianças indígenas no interior
do Pará, trabalhadores de cana no interior de São Paulo, filhos de
posseiros no Maranhão, ou colonos do Mato Grosso, cada qual com
suas infâncias relatadas em estudos pioneiros como os publicados por
José de Souza Martins (1991), procurando ultrapassar o padrão criançaescola, criança da classe média urbana.
60
Ana Lúcia Castilhano de Araújo
Mesmo nos casos em que se trata de crianças como essas, existem
alguns mitos conservados pela escola, como a despreocupação e o
alheamento da criança diante dos problemas que cercam o seu mundo.
Algumas delas expressam preocupações concretas com a fome dos
mais pobres, o ambiente, o preço dos alimentos, ou a saúde de seus
pais. Para a escola, parece que os sentimentos que a criança tem, o seu
choro ou tristeza em determinados momentos, quer tenham ou não
uma razão justificada (a mãe que se atrasou, o pai que não lhe dá
atenção...) podem ser tomados como comportamento patológico.
Então, da mesma forma que a aparência dos escolares parece ter que
seguir um padrão (roupas, calçados, enfeites para os cabelos), seu
comportamento também deve seguir uma rotina dentro da escola.
Neste processo de cerceamento, pouco pode se ver de uma cultura
infantil 5 que não se atenha apenas no modelo contemporâneo de
infância.
Isso faz parte de uma forma de pensar a criança, de uma
concepção determinada sobre o que elas sentem, pensam, ou como se
desenvolvem. De acordo com Cynthia Greive Veiga (2004, p. 74), “o
entendimento das especificidades e características individuais das
crianças que as fazem diferentes umas das outras” foi fundamental
para a infância se tornar um período homogêneo e universal. Então, a
partir desta organização, todas as crianças devem se integrar a um
padrão: o padrão da infância feliz, período que antecede a fase da
adolescência e fase adulta, estas sim, repletas de confrontos com a
realidade, estas sim, reais. Em geral, pertence à filosofia e à sociologia
o encargo de levantar a reflexão sobre o quanto a infância pode ser
diferente daquilo que está escrito e aceito como normal. A Escola de
Frankfurt, especialmente com Walter Benjamin, sempre nos alertam
para a condição de entendimento da realidade por parte da criança.
5
Nos moldes que Steinberg e Kincheloe (2001) discutem em sua obra.
Música e cultura infantil: uma breve revisão bibliográfica para a educação infantil
61
Considerações finais
O objetivo deste texto foi apresentar algumas questões sobre a
Educação Infantil a partir de alguns trabalhos sobre música e artes. Por
trás da discussão dos autores, pode ser compreendida a concepção de
criança que orienta os argumentos a favor do trabalho com a arte na
educação da criança pequena. A questão da concepção de infância que
orienta um trabalho (seja ele de natureza acadêmica ou pedagógica) é
fundamental para traçar os caminhos tomados nas ações para com as
crianças em qualquer lugar do mundo.
Talvez este texto possa contribuir exatamente para aqueles
profissionais ligados à Educação Infantil com alguma formação musical,
ou artística em geral, no sentido de expor um pouco da reflexão em
torno do assunto, e quem sabe, estimulá-los para um contato maior
com a produção dos demais autores (daí a pretensão de fazer uma
revisão da bibliografia na área de educação musical, artes e Educação
Infantil).
Nem sempre é fácil arriscar falar sobre o que seria a função da
arte na educação da criança pequena. Aparentemente, corre-se o risco
de reduzi-la a alguma prática específica. Em geral, os autores com
formação em artes possuem opinião contrária à idéia do uso da arte
como decoração, ilustração e apoio a outras disciplinas. Quanto aos
professores com formação pedagógica sem aprofundamento em artes,
tendem a encarar a música e as artes cênicas como peças de apresentação
das crianças em festinhas, e as artes plásticas como recurso decorativo.
Nesta situação, os objetivos se perdem e a valorização de conteúdos
formais, tão combatida na Educação de 0 a 6 anos, ganha corpo e
corre o risco de desvirtuar um trabalho de educação cultural para a
criança. Neste caso, vale a pena concordar com a necessidade de
investimento na formação do profissional que vai atuar na área.
A escola, creche ou pré-escola, pode, tanto trazer para a criança
experiências com um mundo cultural mais amplo, como pode trabalhar
motivos regionais, folclóricos, mais específicos dos grupos que
participam da instituição em questão. Ainda que o trabalho de conjugar
62
Ana Lúcia Castilhano de Araújo
a passagem de uma cultura geral para uma cultura particular, específica
de cada criança ou grupo, seja difícil, é algo necessário. Justifica-se pela
possibilidade de se oferecer contato à criança pequena com o mundo
da cultura musical e artística nacional ou mundial, sem esquecer a cultura
popular, o folclore. A instituição pode mediar este contato, deixando à
criança a opção de escolha sobre o que a agrada mais ouvir, ver ou usar.
Do ponto de vista da expressão, com o trabalho de arte na
Educação Infantil, a criança pode escolher formas de “falar de si”, de
exprimir sentimentos, esperanças, contrariedades. De mostrar como
ela, criança , compreende o mundo. Sobretudo, a criança pode perceber
que há outras formas de se mostrar ao mundo, utilizando outros
recursos além da fala (esta sim, aprimorada nos adultos e crianças mais
velhas, e dependente da experiência e da escolarização).
Se as artes são formas de expressão humanas, é necessário que
as instituições educacionais se encarreguem de promover o contato da
criança com estas formas de expressão, que, como a fala, podem ser
aprendidas e aprimoradas a cargo da escola. Um passo importante
para isso é considerar a criança como um sujeito cultural.
MUSIC AND INFANTILE CULTURE: A BRIEF BIBLIOGRAPHY
REVIEW FOR CHILD EDUCATION
Abstract: This paper tries to discuss questions related to the teaching of arts,
music and Child Education, as well as the understanding of Child Education,
based on some reflections about the practice of teaching arts for small children.
The objective of the paper was to organize arguments that enforce the necessity
to invest on the general formation of small children, considering the contribution
of the arts for pre-school children.
Keywords: Child Education. Pedagogical Practices. Arts. Music Education.
Infantile Culture
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DOSSIÊ TEMÁTICO
Infância e Educação
TEATRO INFANTIL: UM OLHAR PARA O
DESENVOLVIMENTO DA CRIANÇA
Sandra Márcia Campos Pereira *
Resumo: O teatro infantil surge com preocupações didáticas, sendo marginal
em relação ao gênero destinado ao adulto, porém, apesar das adversidades,
consegue alcançar seu reconhecimento artístico e, ao ocupar espaço em instituições
escolares, descaracteriza-se e muitas vezes passa a ter o sentido que lhe era atribuído
pelos jesuítas com o Ratio Studiorum. Este trabalho tem por objetivo analisar a
importância do teatro infantil para o desenvolvimento da criança, abordando
tanto o teatro encenado por adultos para ela, como aquele realizado pelo público
infantil, que geralmente é encenado nas escolas. A metodologia utilizada é de
cunho qualitativo com base na análise bibliográfica. A conclusão a que se chegou
é que o teatro é indispensável para a criança, seja ela uma espectadora ou
participante direta.
Palavras-chave: Educação. Teatro infantil. Criança
O prazer é a mais nobre função da atividade humana.
(Bertold Brecht).
Doutoranda em Educação pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), Campus de
Araraquara, SP. Docente da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb). E-mail:
[email protected].
*
APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano III
n. 4
p. 67-88
2005
68
Sandra Márcia Campos Pereira
Falar da importância da arte para o desenvolvimento infantil
não é novidade, pois essa é uma temática que está sendo discutida há
algum tempo. A conquista do seu espaço no cenário educacional é
fortalecida com a Reforma Curricular nos anos 90, que, ao elaborar
os Parâmetros Curriculares Nacionais, explicita a importância desse
componente no currículo.
Entretanto, apesar da vitória já alcançada no plano teórico e na
legislação, no cotidiano escolar ainda há muito o que avançar. Seja no
sentido de romper com uma proposta pedagogizante e padronizada
que impõe limites à criatividade, seja no sentido contrário em que
prevalece o espontaneísmo, isto é, a idéia que, para criar, é necessário
liberdade, portanto, não se deve interferir no processo de criação da
criança.
É na arte que encontramos instrumentos que são capazes de
trabalhar a mente no que diz respeito à imaginação, refinando a
sensibilidade, aguçando nossa percepção, desenvolvendo um
tipo de habilidade que nos permite ver, perceber e sentir melhor
o mundo. É na utilização das diferentes linguagens artísticas
como a dança, a pintura, o desenho, a música, o teatro, etc. que
o educador pode explorar e estimular as habilidades e promover
o conhecimento de forma ampla e enriquecedora (FERREIRA,
2003, p. 1).
O teatro é uma das linguagens que compõe os conteúdos da
disciplina Arte na escola e, como outras linguagens artísticas, a dança, a
música e as artes visuais, deve ser tratado com a responsabilidade de
garantir que os alunos vivenciem aspectos técnicos, inventivos,
representacionais e expressivos de forma consistente e planejada.
Seja nas artes cênicas ou nas outras áreas de expressão, é necessário
que o educador e a escola pensem em um projeto pedagógico em que
a Arte deva ser acessível a todos em uma concepção de escola
democrática que deva garantir ao aluno a posse de conhecimentos
artísticos e estéticos.
Teatro infantil: um olhar para o desenvolvimento da criança
69
Grupos preocupados com a educação por meio da arte têm
tentado recuperar seu valor no desenvolvimento do conhecimento
como parte importante da cultura humana, com compromisso de um
planejamento com conteúdos, métodos e procedimentos que sejam
desenvolvidos nas aulas de arte.
Seja no teatro, na música, na dança e nas artes visuais o aluno,
quando lhe é oferecida a oportunidade, apresenta traços essenciais de
indivíduos criativos. É de grande importância o reconhecimento da
Arte como ação educativa, para que o aluno possa atuar no teatro,
observando, analisando e produzindo, pois a arte não é mais um
instrumento de domínio de poucos, algo supremo, inatingível, ela está
além disso tudo, ela pertence a todos indistintamente. A arte é fruto
fecundo da resistência à dominação e de afirmação da identidade.
Este trabalho tem o objetivo de discutir a importância do teatro
infantil para o desenvolvimento da criança, abordando tanto o teatro
encenado por adultos para ela, como aquele realizado pelo público
infantil, que geralmente é encenado nas escolas.
O interesse em estudar esta temática surgiu de uma grande paixão
pela literatura infantil e de um posterior mergulho nas artes cênicas,
além da observação das reações que as peças teatrais provocam nesse
público, reações que variam de acordo com a faixa etária e qualidade
dos espetáculos apresentados.
Uma vez que é conhecida a difusão da literatura infantil nas
últimas décadas, esse gênero literário, que em alguns casos é considerado
inferior à produção destinada aos adultos, uma vez que nem sempre
possui qualidade estética, alcança o reconhecimento e o estatuto de
arte literária, devido a grandes autores e suas belíssimas obras, como,
por exemplo, Ruth Rocha, Ziraldo, Maria Clara Machado e Monteiro
Lobato, sendo este último o ícone desse gênero no Brasil.
A literatura infantil caminhou e ainda caminha por trilhas
tortuosas. O teatro infantil surge com preocupações didáticas, sendo
marginal em relação ao gênero destinado ao adulto, porém, apesar
das adversidades, consegue alcançar seu reconhecimento artístico e, ao
70
Sandra Márcia Campos Pereira
ocupar espaço em instituições escolares, também descaracteriza-se e,
muitas vezes, passa a ter o sentido que lhe era atribuído pelos jesuítas
com o Ratio Studiorum (método de ensino sistematizado utilizado pelos
jesuítas).
Teatro infantil: gênero literário ou produção artística menor?
A literatura infantil surge no final do século XVII e durante o
XVIII, simultaneamente com o conceito de infância que até então não
“existia”. A criança era considerada um adulto pequeno e não se
respeitavam as suas fases de desenvolvimento, seus interesses e suas
vontades. Adultos e crianças compartilhavam o mesmo espaço e não
existia afeto entre ambos.
Com a ascensão da burguesia, muda-se o conceito de família, o
afeto entre seus membros torna-se importante e a criança começa a
ser vista como dependente do adulto por ser considerada frágil e
indefesa. Essa ideologia de dependência da criança em relação ao adulto
é que passa a definir a infância.
Esta classe social que se encontra no poder valoriza a escola –
considerada o lugar de aquisição do saber. Nesse ambiente, a literatura
infantil tem grande espaço ao ser utilizada com intuito pedagógico,
uma vez que “os primeiros textos para crianças foram escritos por
pedagogos e professoras com marcante intuito educativo” (ZILBERMAN,
1981, p. 19).
Segundo Zilberman, é por meio dos clássicos e dos contos de
fadas que ocorre a constituição de um acervo de textos infantis. Na
sua forma original, os contos de fadas, que surgem do folclore, não
eram destinados à criança, pois eram contados pelos adultos a outros
adultos. Neste contexto, os narradores faziam parte das classes menos
favorecidas economicamente.
A literatura tem como parâmetros contos consagrados pelo
público mirim de diferentes épocas que, por terem vencido tantos
testes de recepção, fornecem aos pósteros referências a respeito da
Teatro infantil: um olhar para o desenvolvimento da criança
71
constituição da tônica literária do texto destinado à criança. No
século XVII, o francês Charles Perrault (Cinderela, Chapeuzinho
Vermelho) coleta contos e lendas da Idade Média e adapta-os,
constituindo os chamados contos de fadas, por tanto tempo
paradigma do gênero infantil (CADEMARTORI, 1986, p. 33).
Quase dois séculos depois, temos uma grande produção de
contos, que são uma coleta popular
[...] realizada, na Alemanha, pelos irmãos Grimm (João e Maria,
Rapunzel), ampliando a antologia dos contos de fadas. Através
de soluções narrativas diversas, o dinamarquês Christian
Andersen (O patinho feio, Os trajes do imperador), o italiano Collodi
(Pinóquio), o inglês Carrol (Alice no país das maravilhas), o americano Frank Baum (O mágico de OZ), o escocês James Barrie (Peter
Pan) constituem-se em padrões de literatura infantil
(CADEMARTORI, 1986, p. 33-34).
Segundo Lajolo e Zilberman (1986), a literatura infantil nasce
no Brasil, com tentativas de traduções nacionais como as de Carlos
Jansen (Contos seletos das mil e uma noites), de 1882, entre outras,
pois antes tínhamos acesso à literatura infantil por meio das traduções
portuguesas que eram, muitas vezes, distantes da língua materna brasileira.
Além das traduções, começam a surgir também algumas obras
nacionais e, nesse contexto, nasce a indústria dos livros infantil e didático.
A literatura infantil desta época possui um caráter pedagógico,
nacionalista e patriótico refletido, muitas vezes, no próprio título das
obras como, por exemplo, o livro Por que me ufano do meu país
(1901) de Afonso Celso.
[...] a escola é fundamental enquanto destinatária prevista para
estes livros, que nela circulam como leitura subsidiária ou como
prêmios para os melhores. Daí ela emigra para o interior dos
textos, tornando-se com freqüência tema privilegiado, que reforça
sua função pedagógica na polaridade das figuras antípodas do
bom e do mau aluno (LAJOLO; ZILBERMAN, 1986, p. 19).
72
Sandra Márcia Campos Pereira
Para essas autoras, o que forneceu condições para a gênese da
literatura infantil foi o fortalecimento da escola juntamente com as
campanhas cívicas que pretendiam mostrar uma imagem de
modernização do país. A literatura infantil no Brasil
[...] não teve origem popular, nem aparecimento espontâneo:
seu surgimento foi induzido, patrocinado pelos autores que
escreviam livros para crianças no período de transição entre os
séculos XIX e XX. Desde então, no entanto, e em particular após
o sucesso de Tales Andrade e Monteiro Lobato, as editoras
começaram a prestigiar o gênero, motivando seu aumento
vegetativo ao longo dos anos 20 e 30, bem como a adesão
progressiva de alguns escritores da nova e atuante geração
modernista (CADEMARTORI; ZILBERMAN, 1986, p. 61)
Vimos que a escola foi fundamental para o desenvolvimento da
literatura infantil. Atualmente, ela continua sendo indispensável para a
difusão deste gênero literário, que conquistou prestígio, tanto nas escolas,
entre as crianças, quanto nas editoras, que faturam muito com suas
publicações para o público infantil.
Infelizmente, com a ascensão desse gênero literário, aparecem
obras que, apesar de serem destinadas às crianças, não podem ser
consideradas literatura infantil, uma vez que tudo o que podemos extrair
delas é seu caráter pedagógico, conser vador e até mesmo
preconceituoso.
Apesar da produção em série de literatura infantil estar deixando
de lado seu caráter literário, temos obras de ótima qualidade e autores
que se destacam. Poderíamos citar nomes como Monteiro Lobato,
Ziraldo, Ruth Rocha, Maria Clara Machado, entre outros.
[...] a literatura infantil atinge o estatuto de arte literária e se
distancia de sua origem comprometida com a pedagogia quando
apresenta textos de valor artístico a seus pequenos leitores, e não
é porque estes ainda não alcançaram o status de adulto que merecem
uma produção literária menor (ZILBERMAN, 1981, p. 23).
Teatro infantil: um olhar para o desenvolvimento da criança
73
De acordo com Lomardo (1994), existem duas modalidades
de teatro infantil: uma que é feita por adultos para as crianças e a que é
encenada pelas crianças que, geralmente, possuem caráter pedagógico.
As duas modalidades apresentam, muitas vezes, perspectiva didática.
A partir de meados do século XX, esse gênero teatral passa a ser visto
como atividade artística, atingindo, na década de 70, uma intensa
produção.
O teatro tem sua base no jogo dramático, que
tanto pode ser uma atitude espontânea, como efetivamente é nas
brincadeiras infantis, quanto assumir características direcionadas
(jogo dramático dirigido), visando atingir um objetivo específico
– educacional, por exemplo (LOMARDO, 1994, p. 10).
Os registros mais antigos de teatro para crianças referem-se à
China, no século III a.C., onde bonequeiros mambembes apresentavam
espetáculos, em domicílios, para crianças e para mulheres pertencentes
à camada social privilegiada.
Os bonecos, marionetes, fantoches e mamulengos [mamulengo
= mão molenga], hoje tão identificados com o teatro infantil,
constituem uma das mais antigas manifestações de caráter teatral,
seu surgimento remontando a mais de 2.000 a C., mas só muito
depois disso é que passaram a ser utilizados como forma de
entretenimento para a criança, mesmo porque uma arte dirigida à
criança não fazia parte do modus vivendi dessas antigas sociedades
(LOMARDO, 1994, p. 11).
Após o teatro de bonecos, datado entre os séculos XV e
XVII d. C., a próxima manifestação do teatro para crianças é a commedia
dell’arte, traduzido como “a comédia do artesão” ou “o teatro do
profissional”. Essa modalidade teatral surgiu na Itália, expandindo-se,
posteriormente, para outros países.
[...] Era formada por grupo de atores viajantes, profissionais que
se ocupavam exclusivamente do teatro, apresentando-se sobre
74
Sandra Márcia Campos Pereira
palcos móveis em todas as cidades, vilas e aldeias por onde
passassem [...]. Os espetáculos não tinham texto redigido, apenas
roteiros simples que os atores desenvolviam em cena (LOMARDO,
1994, p. 11-12).
O teatro de bonecos que surge a partir do século XVII, passa a
ter atividade mais intensa nos séculos XVIII e XIX. Outro movimento
importante de teatro de formas animadas é o teatro de sombras de
Dominique Séraphin, que surge na França no século XVIII.
O teatro de sombras, como de bonecos, é uma invenção
antiqüíssima, surgida na China, muitos séculos antes de Cristo,
razão pela qual este tipo de teatro é também conhecido como
“sombras chinesas” (LOMARDO, 1994, p. 15).
Uma experiência interessante acontece na Bélgica, na cidade de
Mons, onde o teatro de bonecos é dedicado quase exclusivamente às
crianças, apesar dos textos não se dirigirem exclusivamente ao público
infantil, como as peças de Molière.
Até o século XX, as escassas atividades teatrais dirigidas às crianças
são restritas às formas animadas (bonecos e sombras). A primeira
companhia moderna profissional de teatro para crianças, com atores e
atrizes adultos representando sem a intermediação de bonecos, é o
Teatro da Criança, inaugurado em 1918, na União Soviética.
Após a Segunda Guerra, surgem várias experiências teatrais
voltadas para a criança, mas ainda não existe a preocupação com a
mesma, com seus interesses, desenvolvimento, etc. Tais experiências
possuem finalidades moral e pedagógica, ou até mesmo a preocupação
em formar o “espectador do futuro”.
O primeiro congresso internacional de teatro infantil é realizado
em Paris, em 1952. De acordo com Moses Goldberg, “teatro infantil
é um teatro com pequeno prestígio, poucos artistas e não há muita
literatura dramática” (GOLDBERG apud CAMPOS, 1998, p. 47). Apesar
deste gênero literário ganhar o mundo, a partir da década de 50, ainda
não possui um “reconhecimento como realização artística de
Teatro infantil: um olhar para o desenvolvimento da criança
75
conformação específica [...] o pouco prestígio do teatro infantil é causa
e conseqüência de sua indefinição” (CAMPOS, 1998, p. 47).
A mudança no olhar sobre o teatro infantil ocorre de modo
mais visível nos anos 70, quando aparecem trabalhos sobre a
modalidade, advindos do meio acadêmico ou não. Esta transformação
se completa com a mudança na inserção social da criança.
Campos (1998, p. 48) define teatro infantil como “teatro para
crianças, ou seja, aquele que supõe a realização de espetáculos, por
artistas profissionais ou não, para o público especificamente infantil”.
Para esta autora, a história do teatro infantil tem início no século
XX. Alguns vêem na tradição inglesa da pantomima de natal um
antecedente do gênero. Foi “como pantomima de natal que surgiu, em
1904, a obra que viria a ser um dos clássicos das produções para
crianças, Peter Pan, o menino que não queria crescer, de James Barrie”
(CAMPOS, 1998, p. 48).
O teatro infantil estoura, ao mesmo tempo, no começo do
século, em vários países europeus e nos Estados Unidos. Campos
(1998) classifica como “uma primeira onda” um período que vai até a
Segunda Guerra Mundial, quando as ações eram isoladas e/ou
intermitentes. Na Inglaterra, em 1927, é criada a primeira companhia
britânica de teatro infantil estabelecida em bases regulares.
No começo do teatro para criança na Europa, destaca-se o
caso ocorrido na Espanha, onde
[...] os primeiros espetáculos acontecem em bases rigorosamente
profissionais, pelas mãos de um dramaturgo consagrado, Jacinto
Benavente. Enquanto na maioria dos países se lança mão da
adaptação de contos infantis, Benanvente oferece uma peça
original, O príncipe que aprendeu tudo nos livros (El príncipe que todo lo
aprendió en los libros), e concebe-a não como produto isolado, mas
dentro de um projeto, o da criação de um Teatro das Crianças
(CAMPOS, 1998, p. 49).
Nos Estados Unidos, o teatro infantil tem sua origem ligada às
atividades de cunho educativo e social com a montagem de A
76
Sandra Márcia Campos Pereira
tempestade, encenada por um elenco de crianças, em New York. Até
a década de 20, importantes espetáculos para crianças são apresentados
na Broadway, como Peter Pan, O pássaro azul, Alice no país das
maravilhas, A ilha do tesouro. No entanto, não há registro de outro
período como este, talvez porque o teatro infantil não seja interessante
para as grandes companhias norte-americanas.
No Leste Europeu, destacam-se os programas soviéticos de
resgate da infância, com a criação do Teatro da Criança, inaugurado
por volta de 1920, em Moscou. O contexto da região neste período é
marcado pela reconstrução, após várias guerras devido à Revolução.
No período pós-Segunda Guerra, o teatro para crianças e jovens
passa por nova fase, várias experiências são articuladas devido à
multiplicação de encontros e congressos nacionais, regionais e
internacionais. O teatro infantil é institucionalizado na década de 50 e,
a partir de 1965, sua internacionalização é intensificada com a criação,
em Paris, da Associação Internacional de Teatro para a Infância e
Juventude.
A preocupação educativa é um ponto de aproximação do teatro
produzido na América e no Leste e Oeste Europeu. Maria Clara
Machado, ao participar do Terceiro Congresso Internacional para a
criança e juventude, representando o Brasil em 1965, afirma:
O que me pareceu foi que na Europa o teatro infantil é domínio
exclusivo da pedagogia e da educação. A maioria quase total dos
congressistas era de professores de escolas primárias. Havia raras
exceções entre os marionetistas, único ramo do teatro para crianças
onde a preocupação artística vem em primeiro plano [...] os
espetáculos apresentados pelos grupos principais desses países
foram absolutamente despidos de qualquer interesse artístico.
Havia completa falta de imaginação nos textos e nas produções
(MACHADO apud CAMPOS, 1998, p. 52).
Segundo Campos (1998), dos problemas vividos pelo teatro
infantil destacam-se:
- Falta de amparo oficial;
Teatro infantil: um olhar para o desenvolvimento da criança
77
- Falta de peças originais (recorre sempre a adaptações de
histórias infantis);
- Presença limitada da crítica.
Apesar desses problemas, o teatro infantil se expande
beneficiando-se da explosão de espaço que o teatro alcança na década
de 60. Campos (1998, p. 53) afirma que “uma das características do
teatro nos anos 60-70 é a redução, e até negação, do valor do texto. A
tônica incide sobre o espetáculo, e a arte da encenação beneficia-se”.
Apesar do curto período de existência do teatro infantil, Campos
diz que
As aproximações entre teatro infantil e teatro popular são antigas.
Este, muito provavelmente, tem sido o maior fornecedor de
formas dramáticas para aquele. Ambos se caracterizam, antes de
tudo, como um teatro não psicológico, cuja ação é sustentada por
situações e movimentos externos, envolvendo personagens
planos e genéricos, no sentido de não tenderem à individualização.
Aproxima-os ainda o humor e, de modo geral, o caráter lúdico
que se encontra, tanto nos espetáculos populares quanto em boa
parte do melhor teatro para crianças (CAMPOS, 1998, p. 56).
As principais contribuições que o teatro infantil pode trazer para
a criança são:
entretenimento, crescimento psicológico, influências educativas,
apreciação estética, desenvolvimento de futuras platéias [...]. A
avaliação do teatro infantil implica a concorrência de três áreas
básicas: a estética, a pedagogia e a psicologia (GOLDBERG apud
CAMPOS, 1998, p. 57).
Como escrever para crianças é algo muito complexo, pois
elas passam por mudanças que hoje são aceleradas, fazer um recorte
no universo infantil, por idade, significa distinguir seu interesse por
faixa etária, levando-se em conta as considerações de Piaget, que
descreve os interesses infantis de acordo com seu estágio de
desenvolvimento.
Sandra Márcia Campos Pereira
78
Juan Cervera também classifica o interesse da criança de acordo
com sua faixa etária. Para ele
crianças de quatro a sete anos, vivendo a etapa animista, têm
preferência, por exemplo, pelas encarnações animais; dos sete aos
nove, na chamada etapa sociocêntrica, a criança estará mais
predisposta ao jogo teatral, musicais e títeres. Dos nove aos onze
anos, já se aceitam comédias breves. Até essa idade a fantasia seria
importante. A partir daí, declina e perde-se o interesse pelos contos
de fadas. A criança ingressa em uma etapa fantástico-realista que
dura aproximadamente até os catorze anos (CERVERA apud
CAMPOS, 1998, p. 58).
O teatro infantil no Brasil
No Brasil, também, a origem do teatro infantil está centrada no
teatro de bonecos, mesmo sem visar ao público infantil, ou seja, não
era feito para as crianças. No século XX, assim como em outros países,
o teatro infantil, no Brasil, é trabalhado em uma perspectiva pedagógica
em detrimento da estética. Nesse período, é inaugurado o teatro escolar
com função pedagógica, sendo a primeira publicação datada de 1905,
com o título de teatrinho, escrita por Coelho Netto e Olavo Bilac. Em
1915 Carlos Góis lança sua publicação dedicada ao público infantil.
Segundo Lomardo (1994, p. 34), “com força progressiva, os
autores começam a impor à criança normas de comportamento que
por um lado correspondem a um modelo adulto e, por outro, a modelo
de passividade e ausência de iniciativa”.
Na década de 30, temos duas iniciativas interessantes: o teatro
escolar de Joracy Camargo e Henrique Pougetti e a companhia teatral
de Olavo de Barros. Em 1948, ocorre a montagem de “O Casaco
Encantado”, de Lúcia Benedetti, obra de grande importância para o
teatro infantil no Brasil, pois “marca ao mesmo tempo a passagem do
amadorismo para o profissionalismo e o início do teatro em que adultos
representavam para crianças” (LOMARDO, 1994, p. 37).
Teatro infantil: um olhar para o desenvolvimento da criança
79
Em 1951, acontece o primeiro congresso brasileiro de teatro,
em que a fala de Júlio Gouveia, um dos fundadores do Teatro-Escola
de São Paulo, mostra que esse gênero deve preocupar-se em formar o
público adulto para o teatro e seu caráter pedagógico, não sendo feita
nenhuma menção ao prazer e ao divertimento. Nesse mesmo ano, é
fundado o Tablado (uma companhia escola), por Maria Clara
Machado, Aníbal Machado e Martin Gonçalves, rompendo com a
visão que se tinha deste gênero.
A dramaturgia de Maria Clara Machado se caracteriza pelo estilo
definido e por determinadas opções que se revelam desde os
primeiros textos. A principal delas é a colocação clara do conflito,
geralmente vinculado [...] a algum bem, pessoal ou familiar,
ameaçado ou subtraído (LOMARDO, 1994, p. 53).
Segundo Campos (1998), o teatro infantil brasileiro começa a
acontecer no final dos anos 40 e início dos 50, considerando a produção
de uma dramaturgia própria e a realização regular de espetáculos. Mais
precisamente em 1948, com a montagem de “O casaco encantado”,
de Lúcia Benedetti. O que não quer dizer que, antes desse período, não
tenha existido algum tipo de modalidade de teatro para crianças. Desde
o começo do século XX, autores têm editado peças, apesar de as
mesmas serem em número pouco significativo com relação ao de
outros gêneros.
Supostos textos do século XIX, um deles de Machado de Assis,
Beijinhos da vovó, desapareceram, o que vem comprovar o descaso
com este gênero literário. No início do século XX, a dupla Coelho
Neto/Olavo Bilac lança o Theatro Infantil, em 1905, constituindo-se
num exemplo de produção desse gênero. Neste período, os textos
estão mais centrados na defesa de idéias que preocupam os autores do
que na criança. É interessante destacar que até final dos anos 40 os
textos de teatro infantil são feitos para serem representados por crianças.
Com relação às publicações de peças, Carlos Góis publica, na
década de 20, o Theatro das crianças, em que se destacam a Dona de
casa e uma opereta, Branca de neve. Nos anos 40, uma revista de Belo
80
Sandra Márcia Campos Pereira
Horizonte, Era uma vez, publica regularmente histórias curtas, entre
elas as de Vicente Guimarães. As peças desse autor continuam sendo
publicadas, posteriormente, na revista Sesinho, que ele passa a dirigir
junto ao Serviço Social da Indústria (Sesi), no Rio de Janeiro. Entre
suas peças destacam-se: “O Pacificador”, “Tiradentes”, “Uma visita
ilustre”, “O dia da Bandeira” e “Dia do professor”, todas destinadas
aos espetáculos integrantes das festividades escolares.
É comum que as pessoas ligadas à educação escrevam peças
para representações escolares. “Desde que se organizam as primeiras
instituições escolares, e até antes disso, o teatro é visto como meio
eficiente de educação” (CAMPOS, 1998, p. 63).
Segundo Campos (1998, p. 65), “de modo geral, na primeira
metade do século, o que se tem é absoluta escassez de publicações ou
de realizações no teatro para crianças. Os meninos de boa família,
quando interessados em teatro, comparecem diretamente às sessões
para adultos”.
Até final dos anos 40, talvez o que mais se aproximou do teatro
infantil moderno foi o teatro de bonecas na Sociedade Pestalozzi, no
Rio de Janeiro. O Estado também se interessou pela modalidade, tanto
que, em 1937, O Boletim do Ministério da Educação e da Saúde,
registra o estabelecimento da Comissão de Teatro Nacional, composta
por nomes ilustres como: Sérgio Buarque de Holanda, Múcio Leão,
entre outros. Estudar o tema para crianças e adolescentes era um dos
objetivos da comissão, estabelecendo que
a) O teatro para crianças e adolescentes pode ser representado por
menores ou por adultos;
b) A representação feita por menores proporciona o
descobrimento de vocações autênticas para a arte do teatro;
c) O teatro infantil é um valioso instrumento educacional, cujos
resultados não se fazem sentir apenas na formação artística, mas
na formação geral da personalidade;
d) Deve ser fomentada a literatura teatral infantil;
e) Devem ser organizadas representações infantis em todas as
escolas;
Teatro infantil: um olhar para o desenvolvimento da criança
81
f) Deve merecer cuidado a organização de representações infantis
fora da escola, como diversão pública para menores (CAMPOS,
1998, p. 66).
Na realidade, a atuação dessa Comissão se resume a iniciar a
organização de um grande espetáculo infantil, que não se realiza, e a
financiar a apresentação de várias peças de alunos do colégio Pedro II,
que não têm nada de adolescente ou infantil.
É a partir de 1948, com a peça “O casaco encantado”, de Lúcia
Benedetti, que o teatro infantil brasileiro se expande. Campos (1998, p.
67) diz que
o teatro infantil brasileiro nasce junto com o moderno teatro
brasileiro e nesses tempos iniciais o olho posto na ampliação e
formação de platéias é sinal da saúde com que, bem cedo, esse
teatro busca expandir-se e afirmar-se.
O teatro infantil, em boa parte, ocupa uma posição secundária
no plano do teatro nacional. Cabe destacar que “O casaco encantado”
teve como responsável por sua montagem Os Artistas Unidos,
representantes do que havia de melhor no teatro brasileiro neste
período, sendo esta peça premiada como a revelação do ano pela
Academia Brasileira de Letras (CAMPOS, 1998).
Rapidamente os elencos dispostos a apresentar os espetáculos
para crianças multiplicam-se.
[...] já no primeiro semestre de 1949 três grupos, no Rio de
Janeiro, se empenham na nova modalidade: o Teatro da
Carochinha leva a peça O Sítio do Picapau Amarelo, inspirada na
obra de Monteiro Lobato, e A Revolta dos Brinquedos, de Pedro
Veiga e Pernambuco de Oliveira; o teatro dos Novos leva O
Príncipe e o lenhador; [...]. Em São Paulo, o ano de 1949 assiste à
criação do TESP, que, tendo à frente Júlio Gouveia e Tatiana
Belinky, estréia no Teatro Municipal (CAMPOS, 1998, p. 69).
Do mesmo modo, os textos também são multiplicados e os
escritores de prestígio, como Odilo Costa Filho e Silvana Sampaio,
82
Sandra Márcia Campos Pereira
passam a escrever para esta modalidade. Também são criadas
premiações, como o da prefeitura do Distrito Federal, que, em 1952,
contempla Lúcia Benedetti e, em 1953, Maria Clara Machado.
Na primeira Conferência Nacional sobre o Teatro e a Juventude
participaram Luísa Barreto Leite, Cecília Meireles e Paschoal Carlos
Magno. Até a década de 50, o teatro infantil chegou a ser sinônimo de
atividade educativa, mesmo depois dos primeiros sucessos.
Nos anos 60, o teatro infantil volta a ser considerado gênero
menor. Já na década de 70 ocorre nova ascensão do gênero em
qualidade e quantidade. Um dos fatores que pode justificar é a
modernização que domina o país nesse período.
Como causas da queda do teatro infantil, Cleber Ribeiro
Fernandes atribui o fator econômico e a impossibilidade de
experimentação. Entretanto, Campos (1998) diz que o fator econômico
não é capaz de, por si só, explicar a minoridade do teatro infantil,
assim, este poderia ser uma conseqüência e não uma causa. Com relação
à experimentação ela diz que o problema é a especificidade do público
que exige um outro preparo dos realizadores.
Com relação à qualidade ruim das peças, Maria Lúcia Pupo
afirma que isto ocorre devido à “uma visão de mundo fragmentada
e conformista, veiculada através da mídia, precariedade de domínio
dos pressupostos básicos do gênero dramático” (PUPO apud CAMPOS,
1998, p. 79).
Contribuições do teatro infantil para o desenvolvimento da
criança
Em seu clássico livro A Psicanálise dos contos de fadas,
Bruno Betthelheim, ao referir-se às crianças com necessidades especiais,
afirma que “se as crianças fossem criadas de um modo que a vida
fosse significativa para elas, não necessitariam ajuda especial”
(BETTHELHEIM, 1980, p. 12).
Este autor faz referência aos contos de fadas, gênero que não
tem sua origem vinculada ao público infantil, mas que ao serem
Teatro infantil: um olhar para o desenvolvimento da criança
83
recuperados por vários autores tornam-se leitura obrigatória ao longo
de gerações, apesar de tantas transformações sofridas pela sociedade.
Para que uma estória realmente prenda a atenção da criança deve
entretê-la e despertar sua curiosidade. Mas para enriquecer sua
vida deve estimular-lhe a imaginação: ajudá-la a desenvolver seu
intelecto e a tornar claras suas emoções; estar harmonizada com
suas ansiedades e aspirações; reconhecer plenamente suas
dificuldades e, ao mesmo tempo, sugerir soluções para os
problemas que a perturbam (BETTHELHEIM, 1980, p. 13).
Duras críticas já foram feitas aos contos de fadas, entre alguns
argumentos destacam-se aqueles que afirmam que algumas estórias
expõem as crianças a conflitos e problemas que pertencem ao universo
adulto, podendo causar frustrações, ansiedades, etc. Para Betthelheim
é necessário colocar a criança em conflito com os problemas que irá
enfrentar na vida, mesmo que as sugestões sejam simbólicas.
Assim como a literatura infantil (poesia e prosa) está presente na
escola de modo marginalizado, sendo utilizada, geralmente, como
complemento à aprendizagem dos conteúdos escolares, portanto com
caráter pedagógico em detrimento de aspectos proporcionados pela
arte como prazer, imaginário, lúdico, simbólico, sensibilidade, etc, o
teatro infantil caminha na mesma direção, quando rompe com os muros
das instituições escolares para ser absorvido pelas escolas com intenções
pedagógicas, perdendo, muitas vezes, seu estatuto de arte.
Koudela (2002) afirma que, na medida em que o trabalho
educacional abre espaço para o teatro, corre-se o risco do pedagógico
prevalecer. Na incorporação do teatro-educação pela educação,
segundo essa autora, a Escola-Nova teve papel importante ao mudar
a concepção de ensino/aprendizagem.
Em lugar de enfatizar o produto final, os professores modernos
dão maior importância ao processo. Se a peça construída em
torno de Robin Hood é boa, tanto melhor. Isto no entanto não
é tão importante quanto o crescimento que resulta da experiência
de criar uma peça. Esta mudança de ênfase do aspecto exibicionista
84
Sandra Márcia Campos Pereira
para o aspecto educacional fez com que o teatro se transformasse
em uma disciplina do currículo escolar que tem uma contribuição
valiosa para a educação (WARD apud KOUDELA, 2002, p. 20)
Koudela (2002), ao diferenciar teatro de jogo dramático, define
o primeiro como arte adulta e este último como manifestação
espontânea da criança. Assim, a diferença entre os dois reflete-se na
preocupação em resguardar a espontaneidade na representação. A
autora afirma, ainda, que a atividade artística é periférica na escola, cuja
prioridade ainda é ensinar a ler e escrever.
Defendendo a importância do significado da experiência para
o desenvolvimento infantil, Koudela (2002, p. 31) diz que
aprender por meio da experiência significa o estabelecimento de
um relacionamento entre antes e depois, entre aquilo que fizemos com as coisas e aquilo que sofremos como conseqüência.
Nessas condições, fazer torna-se experimentar.
Apesar de Betthelheim (1980) analisar apenas os contos de fadas,
pode-se ampliar algumas de suas discussões para o teatro infantil. Se o
primeiro proporciona o desenvolvimento e a resolução de conflitos,
o segundo gênero também tem contribuições significativas. Nesse ponto
entra-se em duas discussões.
Primeiramente, aborda-se a questão do teatro para crianças
encenado por adultos ou por elas mesmas. Apesar desse gênero ainda
ser considerado, em alguns casos, menos importante – como já foi
discutido no capítulo anterior – o encantamento e envolvimento que
proporciona à criança, se for realizado com qualidade, é inquestionável.
Basta olhar a expressão dos pequenos e verificar que eles se transportam
para outro universo, entram em êxtase e, em muitas situações, dão a
impressão de que estão fazendo uma viagem interior.
A partir dessas idéias pode-se reforçar a necessidade de peças
teatrais de qualidade para esse público. Essa preocupação é manifestada
por vários autores, dentre eles Pupo (1991), em seu excelente livro No
reino da desigualdade, em que examina peças teatrais encenadas na
Teatro infantil: um olhar para o desenvolvimento da criança
85
cidade de São Paulo, no período de 1970 a 1976, uma vez que os anos
70 foram profícuos para o teatro infantil no Brasil.
A segunda questão está atrelada ao teatro realizado pelas crianças
sem a preocupação com a técnica, mas com o processo, com a
construção realizada por elas. Nesse sentido, Koudela (2002) trabalha
com jogos dramáticos.
O objetivo do jogo dramático é equacionado pelas experiências
pessoais e emocionais dos jogadores. O valor máximo da atividade
é a espontaneidade, a ser atingida através da absorção e sinceridade
durante a realização do jogo. Dentre os muitos valores do drama
está o valor emocional, e Slade propõe que o jogo dramático
forneça à criança “uma válvula de escape, uma catarse emocional”
(KOUDELA, 2002, p. 22).
Piaget (1975, p. 18) destaca a importância da representação para
o desenvolvimento infantil. Para ele o problema da imitação leva ao
da representação “na medida em que esta constitui uma imagem do
objeto [...] deveria então ser concebida como uma espécie de imitação
interiorizada, quer dizer, um prolongamento da acomodação”.
Para esse autor a representação começa a partir dos 18 meses,
período que ele classifica como fase VI, em que a criança ainda encontrase no estágio sensório-motor. Mas, é a partir do estágio seguinte, o
pré-operacional, que vai dos dois aos sete anos, que a representação
manifesta-se de modo efetivo, ou seja, a criança já consegue criar um
modelo interno ou recordação. Assim sendo, provavelmente a partir
desta fase é mais significativo para a criança o trabalho com o teatro
infantil, o que não significa que antes dos dois anos a representação
não deva fazer parte do universo infantil.
Durante o período 6, uma criança passa de um nível de inteligência
sensório-motora para a inteligência representacional. Isto significa
que a criança torna-se apta a representar internamente
(mentalmente) objetos e eventos e subseqüentemente torna-se
capaz de (cognitivamente) resolver problemas através da
representação (WADSWORTH, 1993, p. 43).
86
Sandra Márcia Campos Pereira
Considerando que a preocupação desse trabalho é discutir a
importância do teatro infantil para a faixa etária de 0 a 6 anos (Educação
Infantil), é irrefutável que a presença desse gênero nas instituições
educacionais seja primordial, se realmente a preocupação é a criança.
Adentrando nesse ponto, esbarramos em um empecilho que é a
falta de pessoas qualificadas para desenvolver esse trabalho, pois, apesar
do percurso exposto com relação à idéia sobre a arte que se construiu
no ambiente escolar, os resquícios conservadores e distorcidos dos
trabalhos realizados em toda manifestação artística, ainda está presente
no ambiente escolar.
Portanto, quando se quer trabalhar com teatro é preciso conhecêlo, ter claro o que se pretende com ele, o que se espera das crianças, as
dificuldades, etc. É preciso romper com o princípio de que
Tradicionalmente, sob o aspecto educacional, o teatro é considerado
um braço da educação formal. A preocupação “pedagogizante”
não inclui entre seus objetivos a fruição de arte pela criança,
reduzindo a platéia infantil à categoria de alunos aos quais devem
ser ministrados ensinamentos (KOUDELA, 2002, p. 92).
O teatro realizado na escola não deve ser pensado com o intuito
de prevalecer o resultado, ou seja, a apresentação de alguma peça, para
que os pais vejam que a escola trabalha com teatro, o que os leva a se
orgulhar do desempenho de seus filhos, que, em alguns casos, ficam
tão decepcionados que podem passar a odiar o teatro.
A ênfase deve ser dada ao processo, em como a criança sente,
nas transformações internas sofridas por ela durante o trabalho com a
encenação. Ao trabalhar esse tipo de teatro, o centro deve ser a criança,
nunca a encenação de peças para os adultos. Do mesmo modo, ao
incentivar a ida dos infantes a espetáculos teatrais, ou mesmo ao
proporcionar tal atividade, a escola deve ter um plano de trabalho que
contemple o teatro infantil ao estatuto de arte, por isso é preciso ter
muito cuidado com o tipo de encaminhamento adotado.
Teatro infantil: um olhar para o desenvolvimento da criança
87
Essa discussão sobre o teatro infantil deve ser ampliada para se
pensar o papel da arte no ambiente escolar e sua função no processo
de desenvolvimento da criança. Nesse sentido, Martins et al., afirma
que se a arte é por si mesma
a experiência sensível em que nosso corpo perceptivo reflete,
propor situações de aprendizagem em arte implica vibrar nesse
corpo o assombro pelo mundo e o estranhamento diante daquilo
que, amortecidos, com os sentidos embotados, já não vemos
mais. Percepção de corpo inteiro desperto para o mundo e seus
reflexos dentro de si (MARTINS, 1998, p. 118).
Nessa perspectiva, o trabalho do teatro deve estar integrado a
um projeto mais amplo, ou seja, deve proporcionar o envolvimento
da criança no mundo das artes, visando seu desenvolvimento global
por meio do lúdico, da imaginação, da criatividade, etc. Para que essa
proposta se realize é necessário ter clareza sobre o projeto pedagógico
e uma formação dos professores coerente com os objetivos traçados,
pois, deve-se tomar cuidado para não limitar o potencial criador dos
alunos e não perder de vista o trabalho com arte.
INFANTILE THEATER: A LOOK AT CHILD
DEVELOPMENT
Abstract: Children’s theater comes with didactic worries, being marginal in
regard to the adult-oriented genre but, in spite of the odds, it can attain its
artistic acknowledgement and, while taking part in school institutions, it loses
its frame and is often viewed in the sense attributed by the Jesuits under the
Ratio Studiorum. This work aims at analyzing the importance of children’s
theater in child development by approaching both the theater staged by adults
toward kids and the one made by kids themselves, which is usually staged in
schools. The methodology used was qualitative based on bibliographic analysis.
The conclusion to which one has come is that theater is essential to children
regardless of being spectators or direct participants. In the first case, they can
take an inner trip by means of the story, the characters, the scenery, etc, so they
can solve conflicts. Through staging they can assimilate the real and a lot of
changes may be provided. Now, when a child takes part in the show, it is
necessary to be aware of it by valuing the process of construction and creation
and by trying to understand the change which it is going through. The final
88
Sandra Márcia Campos Pereira
product must be a consequence of the process, not the aim of the work which
is being performed.
Keywords: Education. Children’s theater. Child development.
Referências bibliográficas
BETTHELHEIM, B. Psicanálise dos contos de fadas. Rio de
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DOSSIÊ TEMÁTICO
Infância e Educação
RELAÇÃO PAIS E FILHOS E O PROCESSO DE
APRENDIZAGEM ESCOLAR: UM ESTUDO DE CASO1
Maria Aparecida Carmem Bonfim Silva*
Ruben de Oliveira Nascimento* *
Resumo: Este trabalho é um resumo revisto e ampliado de um estudo de caso
de um aluno do ensino fundamental, que apresentava baixa motivação para
aprendizagem e pouco envolvimento com as tarefas propostas. Na análise do
caso, observou-se uma relação entre essa baixa motivação para a aprendizagem
com o contexto familiar, principalmente no tocante à relação pais-filho. O trabalho
traz reflexões sobre a relação pais e filhos, e suas possíveis repercussões no
processo de aprendizagem escolar.
Palavras-chave: Relação pais e filhos. Motivação para a aprendizagem. Cognição
e afeto. Família e escola.
Este trabalho é um resumo revisto e ampliado, sobre um caso atendido pela Professora
Maria Aparecida Carmem Bonfim Silva, atuando como psicóloga escolar, relatado no
trabalho monográfico elaborado pela professora, sob orientação do Prof. Ms. Ruben de
Oliveira Nascimento, para conclusão do curso de pós-graduação lato sensu em Psicologia
da Educação, promovido pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb).
*
Pós-graduada lato sensu em Psicologia da Educação pela Universidade Estadual do Sudoeste
da Bahia (Uesb). Docente de Psicologia da Faculdade de Tecnologia e Ciências (FTC). Email: [email protected].
**
Mestre em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Docente de
Psicologia da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb) e da Faculdade Juvêncio
Terra. E-mail: [email protected].
1
APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano III
n. 4
p.89-110
2005
90
Maria Aparecida Carmem Bonfim Silva e Ruben de Oliveira Nascimento
Apresentação
A busca pelo conhecimento, no contexto escolar, é uma ação
que envolve o ser total, em suas dimensões cognitiva, emocional e
física. Ela também envolve a consecução de etapas e de passos
propostos pela interação educativa.
Por parte do aluno, essa busca implicaria cumprir ou superar
passos ou etapas solicitadas pela interação educativa, a fim de que
resultados sejam alcançados. Para isso, envolvimento ativo com as tarefas
escolares e motivação para aprender têm uma participação importante
no processo.
Contudo, entendemos que as dimensões acima citadas, somadas
ao interesse pelas tarefas escolares e à motivação para aprender – vistos
como necessários a uma aprendizagem escolar satisfatória –, não são
formados ou constituídos exclusivamente no contexto escolar e suas
atividades cotidianas. Nossa posição é de que são também formados
ou constituídos no interior da relação familiar, a partir da dinâmica
psicológica que estabelecem seus membros; e que o envolvimento
emocional e cognitivo da criança com os passos necessários para a
aprendizagem escolar, expressados na demonstração de seu nível de
interesse e motivação para aprender, podem refletir a dinâmica familiar
a que está submetido.
Este trabalho apresenta aspectos de um caso observado, numa
escola privada de ensino fundamental. O artigo visa examinar os
seguintes fatores envolvidos nesse caso: baixa motivação para a
aprendizagem, a conduta familiar na educação dos filhos e os possíveis
efeitos dessa conduta no rendimento escolar, considerando-se o modo
como a dinâmica psicológica familiar, principalmente na relação paisfilhos, pode repercutir no nível de desempenho, interesse e esforço
demonstrado pelo aluno para cumprir as atividades ou passar pelas
tarefas escolares propostas.
Nossa intenção com a apresentação desse estudo de caso é
contribuir com a discussão e a reflexão acerca da aprendizagem escolar
e dos possíveis efeitos que a dinâmica familiar na formação da
Relação pais e filhos e o processo de aprendizagem escolar: um estudo de caso
91
personalidade da criança possa ter no processo de aprendizagem
escolar, incentivando mais pesquisas nessa direção.
O problema e o objetivo de pesquisa
Na escola, alguns alunos podem não se mostrar motivados a
dedicar tempo, atenção e esforço suficientes para uma boa
aprendizagem, envolvendo-se pouco com as atividades escolares, seja
em sala de aula ou em ambientes extra-classe, comprometendo
resultados esperados ou possíveis. Muitas podem ser as causas para
essa situação, mas, sabemos que mesmo com todo o preparo e esforço
do professor, se o aluno não estiver interessado em aprender, muito
do processo de aprendizagem se perde ou mesmo não se completa.
Queremos frisar também que, em muitos casos, o fato de um
determinado conteúdo interessar ao professor, não implica
necessariamente que o mesmo será de interesse do aluno. Esses aspectos
tocam na importante questão da motivação para aprendizagem e de
aspectos afetivos como componentes impulsionadores do processo
de construção de conhecimento.
Autores como Mouly (1993), Coll (1996), Norman A. Sprinthall
e Richard C. Sprinthall (1997), Tápia e Fita (1999), Arantes (2002) e
Wadsworth (2003) assinalam que aspectos afetivos e motivacionais são
imprescindíveis à aprendizagem no contexto escolar, como também
para o esforço cognitivo que ela demanda. Assim como envolvimento
afetivo e motivação são fundamentais para a aprendizagem bem
sucedida, baixos níveis de motivação e de interesse também podem
estar igualmente ligados a um processo mal sucedido ou insatisfatório
de aprendizagem.
Norman A. Sprinthall e Richard C. Sprinthall (1997, p. 304),
comentam a correlação que apontamos acima, dizendo que
está implícito em toda a literatura sobre o rendimento baixo ou
elevado o pressuposto de que as variáveis motivacionais e
emocionais desempenham um papel crucial, se não o mais crucial,
no sucesso acadêmico (grifo nosso).
92
Maria Aparecida Carmem Bonfim Silva e Ruben de Oliveira Nascimento
Partindo-se da observação do desempenho do aluno, entre
outros fatores possíveis, levantou-se o questionamento de que a baixa
motivação demonstrada por essa criança para a aprendizagem escolar
poderia estar relacionada à conduta familiar na educação dos filhos. A
hipótese proposta foi de que existiria relação entre baixa motivação
para a aprendizagem escolar e conduta familiar na educação dos filhos,
como um fator dentre outros, capaz de interferir acentuadamente no
processo de aprendizagem.
Com esse estudo de caso objetivou-se examinar a relação entre
baixo nível de motivação e interesse no cumprimento das atividades e
ações pedagógicas, solicitadas na interação educativa promovida no
contexto escolar, e a conduta familiar na educação dos filhos.
Metodologia de pesquisa e objetivo
O caso diz respeito a uma criança de dez anos de idade, do
sexo masculino, aluno da quarta série do ensino fundamental, com
queixa de baixa motivação para as atividades escolares.
Segundo Gil (1999), Estudo de Caso é um processo de estudo
empírico de um ou poucos objetos, caracterizado pela investigação
profunda de um fenômeno dentro de um contexto, no qual se pode
utilizar várias fontes de evidência, descrevendo as situações do contexto
e suas variáveis.
Para o levantamento e análise dos dados, utilizou-se entrevistas
com pais e professores, observação do comportamento da criança
em atendimentos e atividades realizadas na própria escola ao longo do
ano letivo, e instrumentos projetivos de avaliação psicológica (teste das
fábulas de Duss) e teste de nível intelectual (WISC).
Fundamentação teórica
A seguir, apontaremos as referências teóricas em que nos
baseamos para fundamentar a análise dos dados e a conclusão a que
chegamos.
Relação pais e filhos e o processo de aprendizagem escolar: um estudo de caso
93
Para uma apresentação organizada dessas referências, as
apresentaremos por temas inerentes à pesquisa e ao seu objetivo, que
são: motivação e aprendizagem; aspectos dinâmicos da motivação
para aprendizagem; família e escola. Queremos frisar que esses
temas devem ser vistos como combinados e formando um quadro
geral de referências interligadas.
Motivação e aprendizagem
A abordagem interacionista piagetiana baseia-se no princípio de
que o desenvolvimento da inteligência é determinado pelas ações mútuas
entre o indivíduo e o meio. A noção central é de que o homem nasce
potencialmente inteligente, mas precisa da interação com os objetos
externos para o desenvolvimento e desdobramento desse potencial.
Assim sendo, o homem reage aos estímulos externos, agindo física e
mentalmente sobre eles para constituir e organizar o seu próprio
conhecimento a respeito desses objetos, de forma cada vez mais
elaborada cognitivamente. A necessidade de conhecimento é intrínseca
ao indivíduo desde o início do seu desenvolvimento. Nesse sentido, a
teoria de Piaget valoriza os impulsos de exploração, as necessidades de
atividades, cujo conhecimento é uma construção dependente da
atividade do sujeito na relação com o objeto. Assim, a necessidade de
conhecer está contida na atividade intelectual, dela não se separando.
Não existe um fator separado de motivação, pois o mesmo está contido
nos processos complementares de assimilação e acomodação (PIAGET,
1999; WADSWORTH, 2003).
Levando os aspectos acima apontados para o contexto escolar,
podemos observar que a ação mental sobre os objetos de
conhecimento tem na motivação e na curiosidade importantes forças
impulsionadoras do processo cognitivo, sendo assim alguns dos
componentes básicos para a realização dos passos necessários para a
aprendizagem, considerando-se que o sujeito precisa interagir com
pessoas e tarefas propostas no cenário educacional.
94
Maria Aparecida Carmem Bonfim Silva e Ruben de Oliveira Nascimento
Nesse sentido, o processo de aprendizagem tem, entre outros
fatores, na motivação, na vontade de aprender e na disposição afetiva,
componentes ou impulsos necessários para sua realização. Diversos
autores sustentam a importância da motivação e do envolvimento
emocional com as tarefas escolares, vendo motivação e aprendizagem
como recíprocos (COLL, 1996; SPRINTHALL, N. A.; SPRINTHAL, R. C., 1997;
TÁPIA; FITA, 1999; ARANTES, 2002; NETTO, 2002; WADSWORTH, 2003).
Considerando cognição e motivação como fatores interligados
no processo de aprendizagem, Norman A. Sprinthall e Richard C.
Sprinthall (1997, p. 505), comentam que “não só a motivação afeta a
aprendizagem, como também a aprendizagem afeta a motivação”.
Essa característica de afetação mútua caracterizaria a reciprocidade
desses fatores.
Essa relação tem componentes dinâmicos importantes que
precisam ser considerados no processo educacional.
Aspectos dinâmicos da motivação para aprendizagem
A reciprocidade entre motivação e aprendizagem tem
componentes psicológicos e variáveis contextuais. Segundo Tapia e
Garcia-Celay (1996), os alunos possuem metas, que influenciam o seu
comportamento e, de acordo com certas variáveis contextuais, a
consecução de algumas são mais viáveis do que de outras. De acordo
com este autor, as metas podem ser agrupadas em quatro categorias:
metas relacionadas com a tarefa (experimentar que se aprendeu algo,
incrementando a própria competência e produzindo-se assim uma
resposta emocional gratificante); metas relacionadas com o EU (aquelas
cujo fim é alcançar um nível de qualidade preestabelecido socialmente,
geralmente já alcançado pelos colegas. O aluno busca experimentar
que é melhor do que os demais ou que não é pior, evitando o
sentimento de vergonha ou humilhação trazido pelo fracasso); metas
relacionadas com a valorização social (dizem respeito muito mais à
experiência emocional advinda da valorização social conseqüente à
própria atuação, do que com a aprendizagem ou a conquista acadêmica
Relação pais e filhos e o processo de aprendizagem escolar: um estudo de caso
95
propriamente dita); metas relacionadas com a consecução de
recompensas externas (são metas cujo fim é a obtenção de prêmios,
presentes, etc, e também não estão relacionadas com a aprendizagem
ou com a conquista acadêmica propriamente dita).
É importante ressaltar que as metas apresentadas não são
excludentes. Segundo esses autores, na maioria das vezes, os alunos
buscam mais de uma delas no processo educacional.
Tápia e Garcia-Celay assinalam que os alunos também diferem
nas justificativas que tendem a dar às conquistas escolares e nas
expectativas que precisam poder controlar para a consecução das metas
acadêmicas. Alguns atribuem os êxitos a causas internas (competência
e esforço), ao passo que outros os atribuem a causas externas e não se
consideram capazes de controlar a consecução das metas, ao contrário
dos primeiros. Como conseqüência destas diferenças, a aprendizagem
difere, sendo mais efetiva no primeiro caso.
Comentam ainda que a forma de pensar difere de acordo com
a meta do indivíduo, especialmente diante do fracasso. Quem busca
aprender, pergunta-se como pode resolver o problema, repassa o que
foi feito e busca novas informações, enquanto que aqueles que apenas
buscam ficar bem pensam que não vão conseguir resolver o problema,
que ele é muito difícil e está além da sua capacidade; estes últimos
tendem a abandonar a tarefa antes de seu fim.
Esses autores argumentam que a motivação depende, em grande
parte, de que a consecução das metas perseguidas seja vista: como
dependente exclusivamente daquilo que alguém faça (de seu esforço e
capacidade), como dependente de que aquilo que alguém faça supere
ou não o que façam os outros, e por fim, como dependente do esforço
coordenado de vários. Ou seja, a motivação pela tarefa depende do
grau e tipo de interdependência de metas.
Esses aspectos dinâmicos demonstram que muitas variáveis
interferem na aprendizagem, e que não é apenas a disposição intelectual
do aluno que pesa na aprendizagem, mas também sua disposição
emocional, sua motivação e sua percepção das tarefas escolares, de
96
Maria Aparecida Carmem Bonfim Silva e Ruben de Oliveira Nascimento
acordo com metas que estabelece para si conforme o contexto que
experimenta. Nesse sentido, Norman A. Sprinthall e Richard C.
Sprinthall (1997, p. 505), comentam que
[...] tem de se compreender que a motivação nunca atua separada
nem da aprendizagem nem da percepção. Os três grandes da
Psicologia – a aprendizagem, a percepção e a motivação – estão
em constante interação, cada um afetando e sendo afetado pelos
outros dois (grifo do autor).
Família e escola
César Coll (1999) define a família como um contexto primordial
de desenvolvimento das pessoas. Entretanto, a mesma definição do
que é uma família, suas funções e as oportunidades que oferecem aos
seus membros para a aprendizagem e desenvolvimento está
condicionada aos valores culturais da comunidade da qual faz parte.
Oliveira (2001, p. 163) comenta que com
[...] forte influência na formação do indivíduo, a família é o
primeiro grupo social a que pertencemos. Embora as normas
sociais institucionalizadas determinem as regras de
funcionamento da instituição familial, cada família tem ainda
suas próprias regras de comportamento e controle.
Quando se define uma família, geralmente são incluídos os
membros do grupo familiar, e a sua estrutura, os vínculos que mantém
e as funções que possui. Em relação à estrutura, pode ser definida como
família nuclear ou família extensa (COLL, 1996, 1999; OLIVEIRA, 2001).
A família nuclear é formada pelo casal e pelos filhos não-adultos.
A família extensa diz respeito àquelas nas quais convivem mais de um
núcleo conjugal. Pode ser tanto em relação ao eixo vertical, que
corresponde a diferentes gerações que a constituem em um dado
momento, como em relação ao eixo horizontal, quando se incluem os
membros de uma mesma geração.
Relação pais e filhos e o processo de aprendizagem escolar: um estudo de caso
97
Atualmente nas sociedades desenvolvidas, a família nuclear é
uma das estruturas mais encontradas, desde que as famílias extensas,
devido às mudanças na organização da vida e da fixação em núcleos
urbanos, perderam muitos vínculos que antes possuíam e preservavam
(COLL, 1999).
De acordo com o enfoque de nosso trabalho, e analisando a
família como um quadro de interações, mencionamos Shaffer apud
Coll (1999), que considera que a natureza das relações interpessoais é o
fator determinante para o desenvolvimento da criança na família,
mesmo que a estrutura familiar não seja a tradicional.
Ao se destacar as relações que ocorrem na família para explicar
o seu impacto no desenvolvimento das crianças, é necessário considerála como um sistema. Assim definida, a família ressalta um contexto no
qual as ações e atitudes de cada membro afetam os outros e vice-versa
(GOMES, 1987, COLL, 1999).
Como todo sistema, a família tem uma estrutura e algumas pautas
reguladoras de seu funcionamento que tendem a manterem-se estáveis.
As famílias são compostas por vários subsistemas, tais como, o
subsistema casal, o dos filhos, etc., entre os quais existem limites mais
ou menos flexíveis. Numa família saudável, a existência e percepção
do sistema familiar como um todo não é incompatível com a
autonomia de seus subsistemas. Tanto as famílias muito desligadas como
as excessivamente aglutinadas podem gerar conflitos e problemas
emocionais (COLL, 1999).
São funções da família a proteção aos seus membros e o
favorecimento a sua adaptação à cultura da qual faz parte. Deve oferecer
proteção às crianças, garantindo-lhes a subsistência e contribuir para a
socialização das mesmas, sendo por isso considerada pela Sociologia
(FERREIRA, 1993; COSTA, 1998; TOSCANO, 1999; OLIVEIRA, 2001;) uma
instituição conservadora e reprodutora da estrutura social dominante.
Deve dar suporte a sua evolução, ajudando-lhes no processo de
escolarização e de instrução progressiva em outros aspectos da vida
social. Finalmente, deve contribuir para que as crianças se tornem
98
Maria Aparecida Carmem Bonfim Silva e Ruben de Oliveira Nascimento
pessoas emocionalmente equilibradas, capazes de formar vínculos
afetivos com os outros, por terem uma boa auto-estima e uma
identidade bem estabelecida (COLL, 1996, 1999).
Enfim, a vivência familiar dá ao indivíduo a oportunidade de
estabelecer relações baseadas no respeito mútuo e no afeto.
Vemos assim o quanto a estrutura familiar pode ser um contexto
de desenvolvimento para as pessoas. As aprendizagens feitas neste
contexto acontecem em meio a relações e sentimentos de afeto e de
vinculação. Nesse sentido, Gallart (1999) assinala que
Embora em diferentes graus, no contexto da família combinamse as exigências com a estima, as diretrizes e os ajustes e o alento
para enfrentá-los, as dificuldades com o reconhecimento por têlos superados, a orientação direcionada à tarefa bem feita com a
possibilidade de errar, o estímulo até a autonomia progressiva
com a segurança que proporciona saber que existem outras
pessoas que a estimam e que estão dispostas a ajudar quando
necessário. Aqui, nota-se que as experiências educativas oferecidas
na família e aquilo que se aprende não pode ser examinado à
margem de todos esses aspectos, à margem das relações em que
tomam corpo, já que são esses os responsáveis pelo impacto que
têm no desenvolvimento (GALLART, 1999, p. 160).
Essa autora frisa ainda que as crianças aprendem a conduta
habitual com adultos próximos e durante longos períodos. As mudanças
observadas durante a infância não podem ser entendidas desvinculadas
das aprendizagens e das relações que acontecem no contexto familiar,
como também na escola e em outros meios sociais. Elas podem
experimentar com os objetos e com as pessoas; vivem situações
conhecidas e novas; os seus comportamentos são repreendidos ou
estimulados e aplaudidos; observam o comportamento dos outros,
os imitam e deles recebem ajuda, podendo assim progredir em várias
áreas de atuação.
Examinando essas questões Gallart aponta que as práticas
educativas divergem no que se refere ao grau de controle exercido
pelos pais em relação ao comportamento dos filhos. Para ela, essa
Relação pais e filhos e o processo de aprendizagem escolar: um estudo de caso
99
dimensão tem uma grande importância no desenvolvimento do
indivíduo, já que, pela orientação e pelo controle que os pais exercem,
a criança aprende a controlar e a regular a sua conduta de maneira
autônoma. O controle por meio de uma combinação de firmeza e
razão ajuda muito mais a criança a adquirir autocontrole do que quando
a intervenção dos pais é por meio de uma atitude autoritária ou
excessivamente permissiva.
Gallart comenta que outra diferença encontrada nas famílias em
relação às práticas educativas é a capacidade de estabelecer um ambiento
comunicativo. Seriam famílias nas quais é possível explicar as normas e
as decisões que são tomadas, sempre se levando em consideração as
idéias e os pensamentos dos outros. Nessa dinâmica, tudo é
compartilhado, desde os problemas, conflitos, dúvidas e ansiedades,
até as expectativas e satisfações. É um ambiente que favorece a
manifestação dos sentimentos e emoções.
Gallart assinala que tem importância também o grau de
maturidade que as famílias exigem dos filhos. Algumas possuem
expectativas demasiado elevadas que causam ansiedade nos mesmos.
Já outras são otimistas e confiam no seu potencial, o que contribui
para o desenvolvimento e a autonomia. Coll (1996, 1999) e Papália e
Olds (2000) destacam que de todas as dimensões, a afetiva tem uma
importância crucial nas relações. O controle exercido com firmeza
num ambiente distante e frio, não tem o mesmo efeito que outro
exercido num ambiente afetuoso.
As referências teóricas acima apresentadas mostram que o
contexto familiar, sua dinâmica psicológica, o estabelecimento de seus
vínculos e as práticas educativas adotadas, combinam fatores que podem
repercutir no comportamento da criança em outros ambientes e
contextos, interferindo em suas atitudes frente aos desafios e às tarefas
propostas nesses contextos.
Nessa direção, é fácil observar que as crianças podem mostrar
grandes diferenças quanto à curiosidade, quanto à disposição para
experimentar e indagar, principalmente no contexto escolar. Tomando
100
Maria Aparecida Carmem Bonfim Silva e Ruben de Oliveira Nascimento
como base as premissas acima, entendemos que essas diferenças podem
estar relacionadas com as experiências vividas na família.
Gallart (1999) considera o desenvolvimento das crianças como
um processo social e culturalmente mediatizado, dentro de contextos.
A autora comenta que família e escola formam contextos que
compartilham entre si muitas funções educativas em comum, como
por exemplo, promoção das capacidades cognitivas, motoras, de
relação interpessoal, de inserção social, etc. A autora frisa que, ao invés
de serem acentuados os aspectos que distinguem os dois contextos,
melhor seria acentuar os aspectos que são complementares.
Nesse sentido de interconexão de contextos, lembramos a
perspectiva ecológica de desenvolvimento elaborada por
Bronfenbrenner (1996). Bronfenbrenner elaborou uma perspectiva
teórica sobre o desenvolvimento humano em estreita relação com o
ambiente ecológico. Segundo esse autor, desenvolvimento é definido
“como uma mudança duradoura na maneira pela qual uma pessoa
percebe e lida com o seu ambiente” (BRONFENBRENNER, 1996, p. 5).
Esse ambiente é ecológico na medida em que compreende diversos
contextos interconectados. A estrutura do ambiente ecológico é também
um importante fator. Portanto, Bronfenbrenner concebe ambiente
ecológico como muito além da situação imediata, envolvendo a
conexão com outras pessoas e contextos, formando um complexo
de inter-relações marcadas pelo modo como o indivíduo percebe o
ambiente ecológico.
Desse modo, podemos pensar família e escola como sistemas e
contextos interatuantes e interrelacionados, que compartilham funções
educativas semelhantes e que, por conseguinte, exigirão respostas
cognitivas e afetivas às tarefas, desafios, situações e atividades propostas;
respostas estas que terão relação com a aprendizagem social e
estruturação psicológica desenvolvidas e aprendidas nas relações em
ambos os sistemas.
Relação pais e filhos e o processo de aprendizagem escolar: um estudo de caso
101
Histórico do caso
A criança em estudo tinha dez anos de idade e cursava a 4ª série
do ensino fundamental. Iniciou na escola em 1996, para cursar o 1º
período e desde então vinha apresentando problemas ligados ao
desempenho nas atividades diversas. Segundo relato da professora na
época, era uma criança que necessitava de ajuda e muito estímulo, devido
à falta de atenção e ritmo lento.
Desde a alfabetização apresentava bom relacionamento com o
grupo, sempre tranqüilo e sociável, e sua linguagem oral correspondia
à idade cronológica. Já neste período evidenciou uma tendência à
inibição e contenção das emoções. À medida que as dificuldades
normais do processo de alfabetização surgiam, passou a demonstrar
baixo interesse pelas atividades. Concluiu a alfabetização ainda com
algumas dificuldades na leitura e na escrita.
Ao ingressar na primeira série, na primeira unidade obteve
resultados dentro da média, com exceção de uma disciplina: Integração
Social. Seu melhor desempenho era em Matemática, em todas as
unidades. As suas dificuldades na leitura e escrita se evidenciaram durante
todo o ano letivo, pelo baixo desempenho em português, tendo ficado
abaixo da média na terceira unidade. Concluiu a primeira série dentro
da média em português e um pouco acima nas demais disciplinas.
Na segunda série, as dificuldades se acentuaram, ficando abaixo
da média em português nas três primeiras unidades e em matemática
nas duas primeiras, com boa recuperação nas duas últimas, chegando
ao final do ano letivo com recuperação em português.
Segundo o relato das professoras, mostrava um comportamento
apático e desinteressado em relação à execução das atividades em classe,
necessitando de muito estímulo e ajuda. Sua participação nas aulas
sempre foi muito aquém da esperada, raramente perguntando e
expondo dúvidas. Em relação ao comportamento social, nunca
apresentou problemas, relacionando-se bem com os colegas, em parte
devido a sua passividade e baixa agressividade.
102
Maria Aparecida Carmem Bonfim Silva e Ruben de Oliveira Nascimento
No inicio da segunda série, foi encaminhado ao Serviço de
Orientação Educacional pela coordenadora do ensino fundamental.
A mãe solicitou atendimento, preocupada com o baixo rendimento
do filho na primeira unidade.
Foi realizada uma avaliação psicológica com os seguintes
resultados: os dados anamnésicos revelaram que a gravidez não foi
planejada, tendo sido recebida com tensão e ansiedade, sendo,
inicialmente, escondida pelo fato dos pais ainda não serem casados.
Foi feito o pré-natal durante todo o período gestacional, tendo todos
os exames resultados normais. O parto foi normal e a termo e a
criança chorou logo ao nascer. Foi alimentado ao seio durante três
meses e o desmame aconteceu quando o leite secou. A partir de então,
usou mamadeira até os quatro anos. Sempre teve problemas para se
alimentar, somente comendo o que queria. Usou chupeta até os três
anos. O desenvolvimento neuropsicomotor transcorreu sem problemas.
A criança dorme bem, em seu próprio quarto, mas até
recentemente dormia no quarto dos pais e ainda sai de sua cama para
dormir na cama deles, com o que ambos concordam. É sociável e
tem amigos dentro e fora da escola, embora não tenha muita iniciativa
para procurar as pessoas.
Os pais dizem ter bom relacionamento um com o outro, e com
relação ao filho, o pai mostra-se “desligado” ou desinteressado, e a
mãe muito protetora. A criança é muito apegada à mãe e ciumenta.
Na área escolar, sempre recebeu ajuda de professores
particulares,pois a mãe nunca conseguiu que ele assumisse a
responsabilidade pelas tarefas, as quais exigiam dele um esforço que
não precisava fazer em nenhuma outra atividade da vida diária, já que
em tudo era atendido prontamente.
Após a avaliação, os pais foram atendidos e aconselhados a
buscar avaliação psicológica conjunta, para eles e para o filho, e a
pensarem a respeito da conduta familiar que vinham promovendo.
Quanto ao aluno, houve um atendimento no Setor de Orientação
Educacional, voltado a fazê-lo sentir a necessidade de submeter-se a
uma orientação psicológica para vencer as suas dificuldades.
Relação pais e filhos e o processo de aprendizagem escolar: um estudo de caso
103
Reconhecemos que num estudo de caso muitos aspectos
podem ficar à margem das análises produzidas, por isso, colocamos
esses detalhes do histórico do caso para que o leitor possa também
levantar outras possibilidades de análise e investigação de acordo com
sua própria leitura.
Análise dos dados e algumas reflexões
Os dados levantados no teste de nível intelectual (WISC)
mostraram que a criança possuía nível intelectual acima da média, com
bom raciocínio lógico-matemático, boa capacidade de aquisição de
conhecimentos e boa memória.
Esses dados sinalizaram para uma compreensão de que não
havia evidências que a baixa motivação estivesse relacionada com o
desenvolvimento ou capacidade intelectual da criança, fazendo crer
que, cognitivamente, tivesse condições satisfatórias para aprender.
Os testes psicológicos projetivos, as observações diretas e as
entrevistas com os professores e com os pais, mostraram os aspectos
a seguir.
Filho de pais jovens, com pai distante e pouco envolvido, e mãe
imatura e superprotetora, que lhe tratava com zelo exagerado,
poupando-lhe esforços, ajudando e facilitando excessivamente em tudo
que oferecia qualquer dificuldade, inclusive fazendo as tarefas escolares
pela criança. A criança mostrava-se muito dependente da mãe.
Em sala de aula, a criança apresentava-se insegura e reagia de
forma negativa em situações que apresentavam algum grau de
dificuldade, mostrando-se inibida e dependente de ajuda ou estímulo.
Adrados (1988) destaca o lado negativo que a superproteção
pode originar, determinando uma atitude que desprepare a criança
para as exigências da vida. A superproteção cria obstáculos ao
desenvolvimento da independência da criança e implica numa
diminuição ou excesso de controle por parte dos pais. O excesso de
cuidados e atenção, vividos pela criança, pode levá-la a desenvolver
pouca confiança em suas capacidades.
104
Maria Aparecida Carmem Bonfim Silva e Ruben de Oliveira Nascimento
A escola coloca essas crianças numa situação muito difícil, pois,
tais crianças podem não aceitar com facilidade o dever, a
responsabilidade e a separação do lar e dos pais que a vida escolar
apresenta. Como crianças assim podem apresentar baixa autoconfiança,
o esforço torna-se muito penoso, pois não crê que possa superar as
dificuldades. No contexto escolar, o resultado disso pode ser baixa
motivação para a aprendizagem e, conseqüentemente, dificuldades de
aprendizagem e até mesmo fracasso escolar.
Lembramos também, nessa altura da análise, a colocação que
Tápia e Garcia-Celay (1996) fazem sobre a importância que tem o
modo como o aluno vê a tarefa escolar (em termos de dificuldades e
desafios), como se vê diante dessa tarefa (sentindo-se capaz ou não) e
as expectativas que constrói dessa tarefa e das dificuldades ou facilidades
que apresenta, formando um quadro de variáveis psicológicas e
contextuais interatuantes. Portanto, maior ou menor confiança em si
pode afetar a interação da criança com a tarefa a ser executada, refletindo
em alta ou baixa motivação.
Portanto, nosso entendimento é que a criança do estudo em
questão enquadrava-se num perfil de filho superprotegido, com
dificuldades de enfrentar sozinha os desafios escolares e de superar os
passos necessários à aprendizagem, temendo fracassos e frustrações.
Entendemos que o resultado dessa disposição psicológica aparecia na
inibição e na apatia frente às tarefas escolares propostas.
Também observamos que a criança em questão apresentava
inteligência e condição intelectual para um desempenho escolar normal,
mas não mostrava motivação para as atividades escolares, com
dificuldade para enfrentar ou mesmo realizar os passos necessários
para a aprendizagem de um assunto. Compreendemos que isso
assinalava para a possibilidade de interferência de aspectos afetivos no
processo, uma vez que intelectualmente a criança mostrava-se apta para
aprender normalmente. Assim, o baixo rendimento escolar não se
devia à capacidade intelectual da criança, mas, a sua falta de
envolvimento efetivo com as tarefas escolares, resultando no não
Relação pais e filhos e o processo de aprendizagem escolar: um estudo de caso
105
cumprimento das tarefas preparadas para a concretização da
aprendizagem, como esperado. Portanto, a questão afetiva, nesse caso,
mostrou-se tão relevante quanto a capacidade intelectual, inibindo a
participação total da criança nas tarefas escolares, e conseqüentemente
prejudicando sua produção escolar.
Nesse sentido, Martinelli (2002, p. 99-100), apresentando uma
revisão da literatura sobre dificuldades de aprendizagem, comenta que
as relações entre os domínios cognitivo e afetivo têm sido
discutidas em diferentes perspectivas teóricas. Embora estas nem
sempre sejam concordantes entre si, em muitos aspectos não há
como negar que existe uma relação entre os fatores afetivos e os
atos inteligentes,
e que as pesquisas apontam fatores como autoconceito, auto-estima,
percepção de habilidades, expectativa de fracasso e sucesso, etc., como
variáveis das dificuldades de aprendizagem.
Arantes (2002, p. 160), fazendo uma análise da afetividade no
cenário educacional a partir de reflexões conceituais e revisão da literatura
a respeito, comenta que
no trabalho educativo cotidiano não existe uma aprendizagem
meramente cognitiva ou racional, pois os alunos e as alunas não
deixam os aspectos afetivos que compõem sua personalidade do
lado de fora da sala de aula, quando estão interagindo com os
objetos do conhecimento, ou não deixam latentes seus
sentimentos, afetos e relações interpessoais enquanto pensam
(grifo do autor).
Nossa análise geral foi de que a maneira como a educação familiar
se processava para esta criança, baseada numa relação pais-filho, com
pai ausente e distante e mãe superprotetora, desenvolveu na criança
posturas afetivas defensivas e atitudes evasivas frente aos desafios
escolares que normalmente se apresentam no cotidiano do processo
educacional, mostrando baixa motivação para aprender e produzir.
106
Maria Aparecida Carmem Bonfim Silva e Ruben de Oliveira Nascimento
A capacidade cognitiva, nesse caso, pareceu-nos ficar obstruída
ou potencialmente inibida frente aos aspectos afetivos mais prementes,
considerando os apelos e desafios que o processo educacional
normalmente fazia à criança, durante a promoção do processo ensinoaprendizagem.
Tápia e Fita (1999, p. 9) comentam que a motivação escolar
é um assunto complexo, processual e contextual. Esses autores
assinalam que
[...] o ser humano, o aluno, é alguém que se move por diversos
motivos e emprega uma energia diferencial nas tarefas que realiza.
Esse caráter pluridimensional evita a tentação de interpretar a
conduta humana como devida a um só fator e convida à reflexão
pessoal e ao exame das razões por que as pessoas fazem o que
fazem (grifos do autor).
Nossa compreensão desse caso é que, antes de classificar o aluno
como cognitivamente ou intelectualmente incapaz de efetuar tarefas
escolares, apenas baseando-se em avaliações normativas, importante
se faz considerar contextos, variáveis e fatores interatuantes diversos
de outros ambientes interferindo no processo; incluindo-se, também,
a consideração de que as dimensões cognitivas e afetivas têm uma
relação dinâmica entre si, e que, conforme o caso, podem afetar a
motivação, com repercussão no desempenho escolar em geral.
Concluímos que as bases das dificuldades da criança do estudo
em questão em realizar devidamente ou cumprir, como esperado, as
tarefas escolares solicitadas, tinham raízes na dinâmica psicológica da
relação pais-filho, estabelecida no contexto familiar, e não, precisamente,
em sua capacidade cognitiva ou em sua vida escolar.
No caso da dimensão cognitiva, esta nos pareceu como que
somente “bloqueada” pelas questões afetivas, mostrando-nos como
são fatores interatuantes e de igual importância. Apoiados nos dados,
nossa compreensão foi que a baixa motivação para aprender
apresentada pela criança era resultado de dificuldades emocionais para
Relação pais e filhos e o processo de aprendizagem escolar: um estudo de caso
107
lidar, sozinha, com os desafios e com os obstáculos que a interação
educativa e as tarefas escolares acabavam impondo à essa criança; e
que essas dificuldades emocionais faziam com que ela evitasse um
envolvimento maior com as atividades escolares, temendo o fracasso
e a frustração, fazendo com que não investisse energia suficiente, nem
cognitiva e nem afetiva, nas atividades propostas.
Considerações finais
O estudo desse caso sugeriu que o excesso de zelo e a
permissividade expressada na conduta familiar podem ter impedido
que a criança em questão desenvolvesse condições emocionais necessárias
para lidar com as dificuldades escolares; e que a superproteção por
parte da mãe interferiu na formação da personalidade da criança,
causando sentimentos de insegurança, baixa auto-estima e atitudes de
acomodação e falta de persistência no esforço, com repercussões
escolares em termos de baixa motivação para a aprendizagem, mesmo
a criança tendo boas condições intelectuais para as tarefas escolares.
Apesar de ter sido um estudo de caso, cujos resultados são de
difícil generalização (GIL, 1999), entendemos que ele indica a existência
de um fenômeno que precisa ser mais investigado e mais discutido.
Além desse caso, outros semelhantes a este aconteceram na escola,
com os sujeitos também vivendo contextos familiares parecidos,
mostrando a relevância do tema.
Entendemos que essa repetição de casos parecidos mostra a
necessidade das instituições escolares considerarem mais de perto alguns
aspectos da interseção entre o contexto familiar e o contexto
educacional, conforme o caso, a fim de que sejam desenvolvidas
intervenções cuidadosamente planejadas, tanto em nível psicológico
quanto pedagógico, para fornecer o apoio institucional mais adequado
a alunos com esse perfil.
As escolas estão habituadas a se concentrarem mais no
desempenho cognitivo ou racional de seus alunos. No entanto, é preciso
também considerar que cognição e afeto são fatores interatuantes, e
108
Maria Aparecida Carmem Bonfim Silva e Ruben de Oliveira Nascimento
que devem ser valorizados igualmente, investigando-se melhor suas
fontes de formação e interrelação.
O estudo desse caso nos sugeriu que alguns aspectos
motivacionais e afetivos da criança, e seu envolvimento com o processo
de aprendizagem escolar, não são formados ou desenvolvidos
exclusivamente no contexto escolar, mas são também provenientes da
dinâmica familiar; e que os contextos familiares e escolares estão
interligados no desenvolvimento da personalidade da criança
(BRONFENBRENNER, 1996). Como aponta Gallart (1999), a família e a
escola, apesar de terem identidades diferentes, possuem funções
semelhantes, exigindo disposições cognitivas e afetivas para o
cumprimento das tarefas, obrigações, responsabilidades, interações,
etc; e ambas devem educar a criança de modo que ela aprenda a lidar
com dificuldades e frustrações, pelo menos de maneira mais ou menos
bem sucedida.
De um modo geral, as crianças vivem em diferentes contextos
sociais, contudo, passam boa parte do seu dia transitando entre o
contexto familiar e escolar. Por isso, necessário se faz examinar e
investigar as possíveis interseções e conexões que possam apresentar
esses dois contextos, como por exemplo, a relação entre pais e filhos e
suas repercussões no processo de aprendizagem escolar da criança.
PARENT-CHILD RELATIONS AND THE SCHOOL
LEARNING PROCESS: A CASE STUDY
Abstract: The present article is a broadened and revised summary of a case
study of an elementary school student who showed low learning motivation
and little involvement with proposed school activities. It was noted in the case
study that there is a relation between low learning motivation and the family
context, mainly concerning parent-child relationships. The work reflects on
parent-child relationships and the possible repercussions that may evolve during
the school learning process.
Keywords: Parent-child relationships. Learning and motivation. Cognition and
affection. Family and school.
Relação pais e filhos e o processo de aprendizagem escolar: um estudo de caso
109
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ARTIGOS
ADOLESCÊNCIA E ARTE: ESTÉTICA E PRÁTICAS
CULTURAIS
Celso Vitelli *
Resumo: Este trabalho traz o adolescente para o centro da cena, considerando
a velocidade das mudanças que marcam o tempo presente. A teoria aponta para
a presença das diferentes identidades constituídas em relação a estes adolescentes
que vêm se alterando conforme o surgimento de novas “tribos”. Revela-se um
cotidiano social no qual a adolescência é celebrada em nossa cultura e interpelada
por uma sociedade fortemente voltada para o consumo, interferindo na
concepção de valores sociais e culturais, produzidos e reproduzidos
constantemente.
Palavras-chave: Estética. Cultura e adolescência
Neste texto1 procuramos trabalhar com os conceitos de estética
existentes tanto no campo das Artes Plásticas que circulam dentro das
Doutorando em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Docente da
Universidade Luterana do Brasil (Ulbra), de Canoas, RS. E-mail: [email protected]
1
Texto produzido a partir da Dissertação de Mestrado: Estação adolescência: identidades
na estética do consumo, defendida em agosto de 2002, no Programa de Pós Graduação
da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS),
Porto Alegre, 2002.
*
APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano III n. 4 p. 113-140
2005
114
Celso Vitelli
escolas, quanto com os conceitos que circulam para além das mesmas:
em casa, nos grupos dos adolescentes, na mídia; enfim, discursos que
permeiam o nosso cotidiano e vêm construindo diferentes conceitos
de estética no senso comum e diferentes visões que alguns autores têm
sobre este conceito. Para trabalhar com esses conceitos e relacioná-los
com o ensino nas escolas, realizamos entrevistas com adolescentes de
14 a 18 anos, por meio das quais, procuramos “compreender mais
sobre o tempo presente, sobre a cultura que vivemos, sobre os modos
de vida que produzimos e que nos produzem” (FISCHER, 2001, p. 11),
principalmente no campo da educação em arte e sobre o universo
adolescente.
Ao costurar algumas das respostas obtidas através dos
questionários que realizamos e das análises produzidas sobre tudo o
que foi dito por estes adolescentes também nas entrevistas
gravadas,2 dialogando com a literatura referida sobre o assunto, tivemos
como eixo principal desta discussão o pensamento baudrillardiano,
além de outros autores. Em um de seus textos publicados no jornal
francês Libération,3 Baudrillard (1999), em suas reflexões, parte desde
o destino do nascimento artificial da criança, até o entendimento de
uma adolescência sem fim que, como nos diz o autor, referindo-se à
geração contemporânea,
escapa ao olhar adulto, não se preocupa mais em tornar-se
adulta – adolescência sem fim e sem finalidade que se
autonomiza sem consideração pelo Outro, por si mesma e
volta-se por vezes violentamente contra o Outro, contra o
adulto do qual não se sente mais nem descendente nem
solidária (B AUDRILLARD, 1999, p. 67).
Refiro-me aos seis adolescentes de escolas particulares de Porto Alegre - RS que foram
entrevistados, lembrando que todos pertencem às classes A e B. Previamente, estes
adolescentes já haviam sido entrevistados por mim através de um questionário escrito
com 27 perguntas. Este questionário escrito serviu de roteiro para algumas das questões
formuladas durante as entrevistas gravadas.
3
BAUDRILLARD, Jean. O continente negro da infância. In: ______. Tela total: mitoironias da era do virtual e da imagem. Porto Alegre: Sulina, 1999.
2
Adolescência e arte: estética e práticas culturais
115
Seria importante salientar, no texto de Baudrillard (1999, p. 67),
a caracterização da criança, desde a artificialidade de seu nascimento
até a “criança-clone”, cuja realidade, conforme o autor nos alerta, não
pertence a um amanhã, a um futuro remoto, mas “já está presente no
imaginário científico coletivo”. Seguindo seu raciocínio, o autor nos
explica a afinidade da geração jovem com as novas tecnologias do
virtual, referindo-se ao privilégio obtido através da instantaneidade.
Ainda sobre a criança, acrescenta que “no que diz respeito ao tempo
real, está definitivamente adiantada em relação ao adulto, que só pode
parecer-lhe retardado, assim como, no terreno dos valores morais, só
pode parecer-lhe um fóssil”.
É partindo deste cenário que, apresentado talvez de uma forma
um pouco apocalíptica por Baudrillard, acompanhamos a atuação da
criança/adolescente no espaço escolar e, por que não dizer também,
no espaço social (não perdendo o senso observador sobre as falas/
ações das crianças e adolescentes diariamente). Arriscamos dizer que a
palavra “fóssil”, utilizada pelo autor para referir-se ao adulto, não seria
um exagero diante de certas práticas cotidianas, tanto sociais quanto
escolares. Desta forma, acreditamos nas cenas baudrillardianas diárias,
como crianças de 8 ou 9 anos ensinando suas professoras a usarem
certos programas de computador ou discutindo cenas sobre filmes
ou novelas, opinando sobre problemas ou situações que há bem pouco
tempo não faziam parte do seu universo infantil. Além disso, também
somos questionados por estas crianças/adolescentes sobre os mais
diversos assuntos.
Desse modo, foi na velocidade e na linguagem da comunicação
contemporânea utilizada pela criança/adolescente, que responderam,
alguns dos adolescentes entrevistados, sobre os mais diversos assuntos,
sejam eles do seu [nosso] dia-a-dia ou mais distantes.
Cena 1: as entrevistas
Das entrevistas gravadas, destacamos a de Roberto, a quem
perguntei sobre as suas aulas de artes e sobre como ele se sentia em
116
Celso Vitelli
relação a esta disciplina. Sua resposta foi: “Eu achava que era legal [...].
Mas eu acho, que tem coisa mais importante do que as artes”.
Dentro desta mesma resposta ele foi mais adiante, apresentando
todo um quadro sobre a sua professora de artes (2001),4 demonstrando,
desta forma, alguma coisa que teria legitimado a sua falta de interesse
pela arte. Certamente, não posso fixar em Roberto uma indignação
pela falta de interesse em relação à arte ou à prática do ateliê na escola.
Este discurso que desenha um certo “desprezo” para com o ensino de
arte já está posto, não é um discurso de Roberto. E este discurso está
tão “bem” colocado e sustentado no campo escolar, que o próprio
Roberto se utiliza dele para explicar o porquê da existência de outras
disciplinas mais importantes do que a das artes. Ele diz: “[...] eu acho
que sempre tem umas disciplinas mais importantes e outras não. Tanto é
que, pela carga horária, né, tem mais períodos de tal coisa e outras não”.
Quando perguntado sobre quais seriam as disciplinas mais
importantes, Roberto afirmou: “Eu acho que [...] Matemática,
Português, Física, Química e Biologia, não fugindo muito destas”.
Diríamos (baseados em algumas das respostas5 obtidas dos
adolescentes) que o estudo sobre o assunto arte, para alguns
adolescentes, poderia ser classificado como “fóssil”, usando uma palavra
empregada anteriormente por Baudrillard. Marc Jimenez (1999, p. 9)
nos responderia que “os professores das disciplinas artísticas sabem muito
bem que se beneficiam de um status particular, incapaz de rivalizar com
o de seus colegas da Matemática, das Letras ou da Lingüística”. Pareceme que, na história do ensino, o “Partido das Artes” tem tido menos
tempo de exposição nas diferentes mídias [para dizer ao que veio] do
que os seus outros “concorrentes”. A consciência deste status particular
pode ser lida em um depoimento que roubamos neste momento (entre
O quadro apresentado por Roberto, é de que sua professora era desorganizada na
preparação das aulas, não tinha paciência. Enfim, seus argumentos demonstraram que a
relação dele com a professora, poderia ter afetado a relação aluno/professor.
5
Surgiram mais de sessenta códigos de respostas dos questionários dos adolescentes
sobre como eles viam a arte nos dias de hoje, o maior número de respostas semelhantes,
encontram-se na frase: “Meio apagada. Desvalorizada infelizmente. A arte é esquecida e
não tem seu valor real. As pessoas não se interessam por ela”.
4
Adolescência e arte: estética e práticas culturais
117
tantos outros), da professora (Bárbara), entrevistada por Luciana Loponte
(1998) em sua dissertação de mestrado. Ela nos diz o seguinte:
[...] Às vezes tu te deparas com tantos problemas, em relação a tua
disciplina de artes, que dá vontade assim: “Que bom seria...”. Eu
já me peguei dizendo isso: “Que bom seria se eu desse Matemática,
pelo menos ninguém iria me contestar no que eu estou dizendo,
no que eu estou falando” (LOPONTE, 1998, p. 118).
Outro exemplo que ilustra bem esta posição é a resposta de
Fátima (outra adolescente entrevistada), quando lhe foi perguntado
sobre a existência de uma hierarquia entre as disciplinas do colégio, se
ela achava que existia ou não. A menina respondeu: “Eu não coloco
em primeiro, segundo, a importância. O colégio coloca, naturalmente.
Os meus professores colocam, aquela coisa toda”.
Nos perguntamos, dessa forma, sobre este “tratamento” que
vem sendo dado à disciplina de arte. Qual o lugar/o tempo que ocupa
a arte na educação? Estará ainda sendo vista como “um campo à
parte?” Não se trata de querer privilegiar a posição do ensino de arte
na escola ou, muito menos, de inverter o status (segundo o pensamento
de Jimenez exposto no parágrafo anterior) que foi dado a esta disciplina.
Talvez, em relação à primeira pergunta, poderíamos encontrar nas
palavras de Baudrillard (1997, p. 84), uma das possíveis respostas, ou
pelo menos parte delas: “Num mundo voltado à indiferença, a arte só
pode acrescentar a essa indiferença”.
Também nos interessou levantar quais seriam os valores estéticos
eleitos pelo público adolescente hoje em dia diante da diversidade de
imagens e conceitos e, quais seriam os conceitos que envolvem beleza
e onde eles a vêem. Estas questões podem vir a alimentar a prática
cotidiana do trabalho de um profissional que atua na educação em
arte. Acreditamos que, através deste tipo de pesquisa, poderemos
conhecer mais (para melhor interferir) sobre o que pensa o adolescente
acerca destes assuntos.
118
Celso Vitelli
Na nossa condição contemporânea, talvez a formulação destas
questões (mesmo no campo cultural ou especificamente da educação)
possa parecer estar um pouco fora de uma agenda oficial, a qual
geralmente prioriza outros pontos em sua pauta, que, provavelmente,
não seriam estes que marcam a relação entre valores estéticos e os
adolescentes hoje, por exemplo. Marc Jimenez (1999), no prefácio do
seu livro O que é estética?, nos questiona sobre qual seria a
contribuição da arte no campo do conhecimento, associando-a à estética
como herdeira da mesma ambigüidade nela verificada:
[...]a ambigüidade da arte, atividade ao mesmo tempo racional,
que supõe materiais, instrumentos, um projeto, e irracional, na
medida em que permanece afastada das tarefas cotidianas que
ocupam a maior parte de nossa experiência. Da ciência esperamse descobertas que influam diretamente sobre nosso ambiente;
da técnica prevêem-se progressos que facilitem nossa ação sobre
o mundo; da ética esperam-se regras de conduta que guiem
nossos pensamentos e nosso comportamento; porém,
poderemos extrair da arte um ensinamento tão útil, sério, rentável
quanto aquele dispensado por essas outras disciplinas sensatas?
(JIMENEZ,1999, p. 11).
A questão posta pelo autor nos leva a pensar e questionar a
existência dessa ambigüidade, uma vez que estaria, já na realização dos
projetos dos artistas, no exercício da criação, o papel de seriedade da
arte. Em contrapartida, concordamos que a rentabilidade e a utilidade
não seriam incumbências pertinentes ao mundo artístico. Logicamente
a extensão deste assunto exigiria um aprofundamento maior, que neste
texto não poderia ser desenvolvido com o devido cuidado. Por outro
lado, podemos considerar pertinente a relação que o autor estabelece
entre o belo e o sublime; na sua visão, “o belo é harmonia, o sublime
pode ser disforme, informe, caótico. Prazer para um, dor e prazer
para outro” (JIMENEZ, 1999, p. 144).
6
Ver VITELLI, Celso. Estação adolescência: identidades na estética do consumo.
Dissertação de Mestrado defendida no programa de Pós-Graduação em Educação, da
Faculdade de Educação da UFRGS, Porto Alegre, 2002.
Adolescência e arte: estética e práticas culturais
119
Perguntamos diante desta afirmativa, se estaria aí a explicação
para a beleza vista por um certo número de adolescentes6 nas cenas da
destruição das torres gêmeas do World Trade Center ocorridas no dia
11 de setembro de 2001. Perguntados sobre aquilo que considerariam
belo (ou teriam visto de belo nas últimas semanas), recortamos aqui as
frases de dois meninos que responderam o questionário: “A queda do
W.T.C. em Nova Iorque, pois isso me fez perceber que não sou só eu
que não gosto das injustiças socais”. “O Afeganistão bombardeando
os EUA, porque eu não gosto deles”.7
Por outro lado, a solidariedade com os mortos e feridos do
acontecimento também foi vista como algo belo. Talvez a demonstração
de alguma falta de harmonia em geral, nas áreas da arquitetura, da
música, das Artes Plásticas, da cultura em geral, esteja colaborando
para a construção de uma apreciação estética diferente da que tínhamos
até então. São certas suposições que levantamos, para entender um
pouco mais sobre aquilo que talvez não tenha nenhuma explicação
definitiva dada pela história, mas que nos surpreende e muitas vezes
nos estremece (como no citado caso das torres do W.T.C.), diante de
tantas visões diferentes daquilo que possa ser belo para uns e para
outros não. Como sustenta a frase escrita acima por Jimenez – o
“disforme”, o “caótico”, assim apresentados por esta destruição,
podem ser também, sim, sinônimo de “prazer” para algumas pessoas.
É difícil escrever sobre a existência de “uma estética
contemporânea”, ou “uma estética específica do adolescente de classe
média/alta”, até mesmo porque o próprio conceito da palavra estética
aponta para diferentes discursos acerca da mesma. Em seu livro,
Jimenez cita as idéias de Hegel8 sobre estética, chamando a atenção
para o fato que já em 1805, o filósofo alemão questionava a existência
de uma disciplina sobre estética na universidade e, em substituição a
7
As duas frases foram escritas por dois adolescentes de 14 anos, e fazem parte da
Dissertação de Mestrado Estação adolescência: identidades na estética do consumo, de
Celso Vitelli, 2002.
8
Ver: JIMENEZ, Marc. O que é estética. São Leopoldo: Unisinos, 1999. p. 166.
120
Celso Vitelli
este termo, pareceu-lhe mais adequado o uso da filosofia da arte para
tratar deste assunto.
Quando vemos certos grupos de jovens adolescentes de
diferentes escolas de Porto Alegre (aí incluímos as escolas públicas e
privadas) visitando exposições de arte contemporânea em galerias,
museus, bienais, levantamos a possibilidade9 de uma identificação maior
por parte deles com a vertente da arte na qual muitos artistas abordam
o tema do cotidiano em seus trabalhos. Desta forma, em certos
momentos, presenciamos que a distância ora existente entre a obra e o
público parece diminuir diante da exposição de propostas interativas,
bem como através dos ícones do cotidiano que ora aparecem super
valorizados nestas obras (personagens de história em quadrinhos,
atrizes/atores – nacionais ou internacionais; enfim, toda uma diversidade
de imagens que desfilam em torno deste tema).
Para alguns adolescentes, a relação com a arte passou a ser vivida
como um divertimento, uma recreação. Esta identificação ligada ao
divertimento se processa até pelos próprios meios e temas com os
quais os artistas vêm utilizando a mediatização. Repetimos a pergunta
de Jimenez:
Se as práticas artísticas se baseiam na quantidade de banalidades
cotidianizadas – dou uma volta ao museu antes de ir para o
escritório – a relação entre a arte e a realidade não correrá o risco,
por conseqüência, de ser vivida como um divertimento, uma
distração pura e simples, uma “recreação dominical” como já o
lamentava Ionesco? (JIMENEZ, 1999, p. 16).
Talvez a relação do olhar que o adolescente esteja dedicando à
arte seja muito parecida com a relação que ele estabelece com a televisão,
onde o seu olhar é guiado pelo recurso do zapping, passando por
filmes, desenhos, noticiários, clips musicais – tudo isto acontecendo
9
Conversando com alguns adolescentes de classe média/alta é que retive estes
pensamentos sobre a sua relação com o campo das Artes Plásticas. Importante marcar que
me refiro sempre à mesma classe de adolescentes, com a qual trabalhei com entrevistas e
questionários.
Adolescência e arte: estética e práticas culturais
121
numa fração de segundos. Os videoclipes, tão assistidos pela gerações
desde os anos 80, trazem a linguagem de um ritmo frenético de
combinações de imagens. No videoclipe, “nenhum plano dura mais
que cinco segundos. Muitas vezes não há enredo; tudo se move pela
estimulação de efeitos visuais” (CARMO, 2001, p. 156). O autor traz o
exemplo do videoclipe, relacionando a linguagem às mensagens
fragmentadas, associando, desta forma, uma visão de realidade que
valoriza o “transitório e o fugidio”. Complementando este pensamento,
Sarlo (2000, p. 53), nos chama a atenção para as imagens que, através
das suas sucessões, estão ali “só por um momento, ocupando o tempo,
enquanto não for sucedida por outra imagem”.
Estamos vivendo em um tempo no qual predomina a
experiência imediata, a rapidez. “Aciona o controle remoto. Fecha os
olhos e tenta lembrar da primeira imagem: eram umas pessoas
dançando, mulheres brancas e homens negros?” (CARMO, 2000, p. 53).
Os nossos contatos parecem que “exigem” que esta relação aconteça
desta forma. E esta rapidez vem se materializando também na
produção plástica das crianças/adolescentes.
Como educadores, temos acompanhado alunos nas suas aulas
práticas de ateliê, nas quais o envolvimento dedicado por eles às
propostas de trabalho em arte tem sido cada vez mais veloz. As
propostas de trabalho em arte necessitam de um tempo maior de
envolvimento, e exigem também continuidade, para que o aluno possa
desenvolver um processo de trabalho seu. As experiências neste campo
têm apontado visões de uma continuidade construída através de
constantes descontinuidades, ou seja, a grosso modo, eles estão fazendo
um trabalho velozmente, envolvendo-se o mínimo possível,
perguntando qual será a próxima proposta, quanto tempo vão ter
para finalizá-la e, mesmo sabendo que têm um tempo próprio para
cada uma das diferentes propostas apresentadas (um tempo de semanas
ou meses, dependendo do trabalho), eles começam a trabalhar
rapidamente perguntando ainda “quantos pontos vai valer esta
atividade?”. É o cálculo sobre o ato inventivo? É a economia sobre o
122
Celso Vitelli
tempo da reflexão dedicada à arte? Enfim, continuamos trabalhando
descontinuamente, ou seja, faltaria equacionar melhor a relação
diversificada que os adolescentes têm com os estímulos sonoros e
visuais (sons e imagens oriundos dos vídeos, televisão, Internet, etc.).
Existe uma gramática nova para a atenção/concentração, que deve ser
pesquisada. Para Caiafa (2000, p. 23), “o imediatismo ditado pelo
mercado e a exigência do aspecto ‘aplicado’ para o saber vão contra o
processo de criação na arte e no pensamento”.
Parece-nos que estes adolescentes (e não só eles, as crianças
também vêm encarando o processo de trabalho em arte desta forma)
já entram em aula com o olhar contemporâneo de quem não tem muito
tempo “a perder”. Eles muitas vezes parecem estar nos dizendo com
seus comportamentos e ações que “já fizeram tudo” (esboçado em um
gesto que se resume apenas a um risco no meio da folha de desenho).
“É arte contemporânea sor!”, afirmam alguns em um tom irônico.
É em atitudes como estas que vemos o quanto eles não
conseguem mais tolerar aquilo que dura muito tempo, que tenha que
ser planejado, rascunhado; que exija um pensamento mais elaborado
diante do tema com o qual estejam trabalhando. Mais uma vez,
questionamos como trabalhar com um tempo em que a relação
produção/apreciação da arte “tem que ser rápida”. Ficamos diante de
um paradoxo, uma vez que a condição principal para que a
contemplação aconteça, tanto na apreciação das obras de arte quanto
na produção das mesmas, é o tempo. E trabalhar com a velocidade
acelerada em relação à arte, tanto na sua produção como na sua
apreciação, vem dissolvendo muitas propostas de ensino em arte,
fazendo com que elas percam sua consistência como experiência,
conhecimento; deixando a desejar tanto a produção destes alunos,
quanto a sua relação de contemplação com as artes em geral (música,
pintura, poesia, cinema). Talvez uma das supostas explicações para
estes acontecimentos esteja nas palavras de Gianni Vattimo (1996, p.
51), quando ele menciona que “o que acontece na época da
reprodutibilidade técnica é que a experiência estética se aproxima cada
Adolescência e arte: estética e práticas culturais
123
vez mais daquilo que Benjamin chamou de ‘percepção distraída’”.
Entendemos que esta “percepção distraída” regula, nos dias de hoje, o
pensamento com o qual a maioria dos jovens vê as obras de arte
contemporânea – no sentido de que estas, geralmente não têm em
suas mensagens conteúdos tão explícitos. Talvez esteja aí um dos pontos
que desencadeiam uma percepção sem grandes envolvimentos [de
tempo] por parte dos adolescentes.
Esta relação de rapidez destinada à produção/contemplação
do adolescente com a arte/produção não se construiu somente por
parte deles, obviamente. O papel das escolas, que vêm reduzindo o
tempo destinado aos períodos de arte, colaborou, e muito, para que o
entendimento que o adolescente tem sobre esta disciplina seja a
experiência de um contato rápido, fugidio. A discussão desta cena
escolar seria longa, mas nos permite pensar que algo sempre escapa ao
presente, parecendo muitas vezes que realizamos um trabalho em
educação onde as frestas aparecem mais do que a construção como
um todo.
Hoje fala-se muito nas “competências” que as crianças e
adolescentes devam ter dentro de cada área na educação. Sendo assim,
quais seriam as competências necessárias que formariam este sujeito
no campo de conhecimento da arte, e para quê? Perguntamos então
se, desta forma, conseguiremos algum dia pôr em prática a frase
proferida por Albert Camus (1971, p. 226-2277), que diz que “todo
mundo tenta fazer de sua vida uma obra de arte”.10 Em nome de uma
fastculture, um contêiner se abre para que se deposite nele
relacionamentos rápidos, leituras rápidas, contatos rápidos... Enfim,
fala-se numa geração super informada, mas não se questiona o que
tem sido feito com estas informações.
10
Ver, a propósito, o debate sobre fazer da própria existência uma obra de arte, em
FOUCAULT, Michel. A cultura de si. In: ______. História da sexualidade, 3: o cuidado
de si. Rio de Janeiro: Graal, 1985. p. 43-73 e DELEUZE, Gilles. As dobras ou o lado de
dentro do pensamento (subjetivação). In: ______. Foucault. Rio de Janeiro: Graal, 1991.
p. 101-130.
124
Celso Vitelli
Existem os museus, as visitas aos mesmos acontecem, as imagens
de arte são vistas através da Internet, de vídeos, quadros, mas são
contatos de apreciação diferentes de 20 ou 30 anos atrás. A relação
existente entre o público e as obras de arte na atualidade, deixa um
pouco cambaleante a antiga experiência de estética tradicional (na qual
o público jamais poderia encostar um dedo sequer numa obra de
arte), mesmo que esta relação mais “tradicional” de contato ainda exista.
Esta comparação entre as diferentes apreciações do público não tem
um caráter saudosista ou sugere que o correto seria a existência de
somente uma delas. Ambas são importantes, mesmo porque as telas a
óleo ainda existem, continuam sendo feitas e não devem ser tocadas
por nossas mãos. O que tentamos chamar a atenção aqui diz respeito
ao tempo dedicado à apreciação, que pode alterar toda a sua concepção
da obra de arte.
Um outro ponto a ser considerado neste contato do adolescente
com a arte tem a ver com a escassez da produção de material escolar
(ou em outros meios também: televisão, revistas) sobre este assunto,
dirigido especificamente11 ao público adolescente. Este material é, na
verdade, quase inexistente. O que temos no mercado seria voltado
muito mais para as crianças (e ainda assim não em grande quantidade).
É lógico que sobre cultura, no seu conceito mais amplo, circulam
algumas reportagens (muito raras) nos encartes de jornais e revistas
destinadas ao público de adolescentes, que tentam realizar um papel
pedagógico em relação ao conhecimento sobre o campo da arte.
Acreditamos ser importante salientar que, tanto a informação sobre o
campo da arte quanto à informação sobre a cultura em geral (música,
teatro, literatura) vem sendo obtida pelos adolescentes principalmente
através da mídia (impressa, televisiva, etc.). Um levantamento mais
Quando me refiro à palavra “especificamente”, estou querendo dizer que não existe
um material com uma linguagem que seja atrativa para o adolescente. São poucos os
vídeos, por exemplo, que abordam o conceito de arte no seu sentido mais amplo –
tratando [exemplificando novamente] de desenhos de tatuagens, grafite; enfim, onde
exista o cruzamento das diferentes artes. Mesmo os vídeos que existem sobre os
movimentos artísticos, na sua maioria, têm uma apresentação [tanto de narração, quanto
de imagens] pouco atrativa para o público adolescente.
11
Adolescência e arte: estética e práticas culturais
125
amplo sobre a proveniência das informações obtidas pelos adolescentes
fornecidas pela mídia, pode ser medida pelo conhecimento que eles
têm sobre assuntos como sexo, drogas, doenças... Enfim, a lista ficaria
muito extensa para registrar aqui.
Cena 2: adolescentes de classe média/alta – suas estéticas e
suas críticas sobre a mídia e o cotidiano escolar
No texto de Fischer (1996), podemos visualizar com muita
clareza o papel que a mídia desempenha no campo das informações,
partindo de um leque no qual o adolescente apreende conceitos das
mais diversas fontes. Como nos escreve a autora,
imagine-se então no discurso da mídia, que não se fundamenta
em apenas uma disciplina, mas em várias [ligadas ao jornalismo,
à publicidade, às artes plásticas, ao cinema, às tecnologias de
informação, à teoria da comunicação e assim por diante] (FISCHER,
1996, p. 114).
E mais, “a mídia, suponho, constrói, reforça e multiplica
enunciados seus, em sintonia ou não com outras instâncias de poder”
(FISCHER, 1996, p. 123). Nos questionários escritos realizados durante a
pesquisa de Mestrado com os adolescentes de classe média/alta,
verificamos o quanto são diversificadas as respostas sobre aquilo que
seria considerado bonito para eles. A relatividade atribuída ao conceito
de beleza à visão de mundo que temos e devido ao período histórico
no qual estamos vivendo, tornou-se difícil para estes jovens,
principalmente no que diz respeito à construção sobre tudo aquilo que
possa ser belo para eles. Muitos deles não conseguiram responder a
esta questão. Exemplificando, talvez para alguns meninos não teria sido
“politicamente correto” [mesmo que o quisessem] responder que “a
beleza” questionada estaria somente no corpo das mulheres e viceversa, para as meninas. Talvez, por isso, tenha sido a “solidariedade”
um dos sentimentos que mais aparece nas respostas de alguns deles
sobre aquilo que considerariam belo e, principalmente, a solidariedade
126
Celso Vitelli
mostrada na mídia, nas campanhas do agasalho, de doação de
brinquedos. Atores e atrizes famosos dando depoimentos e participando
das mais diversas campanhas. Nos rostos destes atores e atrizes vemos
a solidariedade estampada na afetuosidade das suas expressões, nas
suas falas, na seriedade e compromisso que passam através das suas
imagens. Literalmente, eles, na maioria das vezes, “vestem as camisetas”
das campanhas das quais participam. Passam a representar o papel de
quem tem compromisso com a sociedade em geral, e assim chamam
as pessoas à participação.
Além dos conhecidos atores e atrizes, a mídia traz à tona o
herói anônimo, que estará presente nas imagens mais plurais, como a
da freira que toma conta das crianças pobres, do grupo de adolescentes
que vai à vila para fazer oficinas de arte com as crianças, ou na figura
do bombeiro socorrendo as vítimas do World Trade Center. Enfim, não
faltam espelhos plurais daquilo que pode ser entendido como ações
solidárias. Isso está ilustrado na fala de Priscila (uma das adolescentes
entrevistadas), quando ela diz:
Eu acho legal tu ajudar uma pessoa assim, na campanha do
agasalho, tu dar alguma coisa, dá um brinquedo, tu ir visitar. Mas
de solidariedade, o que eu achei muito legal do World Trade
Center, que se juntaram pra abrigar aquele monte de pessoas
assim, isso eu achei legal.
Outra situação, que envolve exposição de sentimento e é
apontada como bonita, está presente na fala de Carla:
Quando eu vejo assim um tipo de relação mãe e filha... elas estão
andando juntas e conversando, se divertindo. Eu não sou muito
de me abrir assim pra minha mãe né, de conversar aquela coisa
amiga, mas de vez em quando bate aquela coisa assim: – Ah mãe,
te amo! Eu acho isso legal assim, de expor alguns sentimentos
que os outros possam ver também: – Bah, aqueles lá são felizes,
não sei o quê.12
12
A referida citação trata-se da tentativa de transcrição de trecho de uma entrevista com
a adolescente Carla e, portanto, traz marcas da oralidade.
Adolescência e arte: estética e práticas culturais
127
Torna-se visível neste depoimento de Carla a beleza que ela
apreende da exposição de certos sentimentos como o amor, a
solidariedade, a amizade, entre outros – valorizados publicamente.
Como lembra Fischer:
de acordo com as conveniências destes nossos tempos, de pessoas
que se voltam para si mesmas e, em relação à vida privada,
aprendem um comportamento e um modo de dirigir-se que,
mesmo pasteurizado e multiplicado na mídia, apareça como uma
opção pessoal e como um modo de atingir um tipo especial de
felicidade (FISCHER, 1996, p. 202).
Depoimentos como o da adolescente Carla podem justificar a
multiplicação por exemplo, dos reality shows que, provavelmente, estejam
atendendo à necessidade de certas pessoas de assistirem à exposição
desses e outros sentimentos humanos no espaço público. “Numa
sociedade em que ninguém consegue ser reconhecido pelos outros, cada
indivíduo torna-se incapaz de reconhecer sua própria realidade”, disse
Debord (1997, p. 140). Se levarmos em conta um exemplo de
Baudrillard, o surgimento dos reality shows não é tão recente como se
pensa. O autor nos traz como um exemplo vivo o caso da princesa
Diana. Segundo Baudrillard, nós não somos mais espectadores passivos,
“mas atores principais, segundo uma interatividade assassina da qual a
mídia é a interface” (BAUDRILLARD, 2002, p. 141). Para o autor, Diana
não seria inocente, e num roteiro coletivo,
as massas desempenham um papel imediato, via mídia e paparazzi,
em um verdadeiro reality show da sua vida pública e privada, da
qual desviam o curso e fazem a transmissão em tempo real, na
imprensa, nas ondas e nas telas (BAUDRILLARD, 2002, p. 142).
Complementando o que compõe o quadro dos reality shows e o
que tem garantido a sua permanência, está o seu espaço, no qual tudo
é confessado ao vivo. E são exatamente estas cenas confessadas ao vivo
que seduzem determinados públicos. Fischer escreve que
128
Celso Vitelli
a compulsão aprendida de tudo falar, de tudo confessar, não
significa univocamente que o dito libera, o falado em si produza
verdade; é como se estivéssemos de fato num jogo de verdade e
falsidade, e a confissão – com todas as técnicas de exposição
ilimitada de si mesmo – para permanecer como prática desejável
e permanente, também produzisse “desconhecimentos,
subterfúgios, esquivas”, como escreveu Foucault em Scientia
sexualis, de A vontade de saber (FISCHER, 1996, p. 84).
Mais do que a exacerbada exposição de sentimentos de amor,
amizade, solidariedade, importa é que estes sejam “verdadeiros”, entre
pessoas comuns, como eu ou você. Os reality shows nutrem-se de cenas
mais comuns, maximizando-as na tela televisiva, em cenas cruas de
beijos, abraços, choros [de alegria e de tristeza], risos – tudo isto dentro
de um mundo que “aparenta existir”, fatias de vidas do mundo dos
que amam, choram, gritam, brigam “de verdade”. No espaço televisivo,
o tempo é caro, e se é extremamente caro, poderíamos questionar o
porquê deste uso em coisas tão fúteis. Mas nos lembra Pierre Bourdieu
que o tempo é algo extremamente raro na televisão. E “se minutos tão
preciosos são empregados para dizer coisas tão fúteis, é que essas
coisas tão fúteis são de fato muito importantes na medida em que
ocultam coisas preciosas” (BORDIEU, 1997, p. 23). Resta-nos, talvez,
investigar quais seriam as preciosidades ocultas que vêm atender a
determinados públicos. Como nos disse Carla no seu depoimento
anterior, parece que as pessoas precisam dizer, comprovadamente,
através destas situações reais, frases como: “Bah,13 aquelas lá são felizes”.
Para o indivíduo, nos diz Bauman,
o espaço público não é mais que uma tela gigante em que as
aflições privadas são projetadas sem cessar, sem deixarem de ser
privadas ou adquirirem novas qualidades coletivas no processo
da ampliação: o espaço público é onde se faz a confissão dos
segredos e intimidades privadas (BAUMAN, 2001, p. 49).
13
Termo regionalista equivalente a uma interjeição.
Adolescência e arte: estética e práticas culturais
129
É nesta “tela gigante” de Bauman que Carla também quer ser
vista. Sua afetividade, se validada no cotidiano (espaço público), pode
ser mais satisfatória, mais verdadeira. Os reality shows proporcionam
uma fusão dos papéis de atores e espectadores, como escreve
Baudrillard (2002, p. 142): não há mais atores nem espectadores,
“estamos todos imersos na mesma realidade, na realidade transmissora,
em um mesmo destino impessoal que é somente a realização de um
desejo coletivo”. Desta forma, acreditamos que os valores que estão
sendo construídos (e em construção) sobre as diferentes culturas, as
diferentes concepções de mundo, de gostos, de beleza, certamente
não se desvinculam do processo histórico-social da humanidade.
Seguindo este pensamento, vemos no cotidiano uma fonte de construção
destes conceitos (sociais e culturais) que não deve ser desprezada e,
sim, estudada exaustivamente.
É o mesmo cotidiano que nos faz retornar ao conceito de estética
no seu “largo sentido” (usando um termo de Jimenez 14 ) e,
complementando, o autor escreve que a “história da estética revela-se
através das rupturas sucessivas que a sensibilidade não cessa de opor à
ordem dominante da razão” (JIMENEZ, 1999, p. 25).
Um outro questionamento se dá também sobre o espaço de
construção que tem sido dado à sensibilidade no seu termo mais amplo.
No que a escola, a mídia, a família, têm ajudado na construção de um
ser sensível, apreciador dos diferentes tipos de beleza existente no
mundo? E mais, quais são hoje as “belezas” endereçadas, mostradas à
Ele nos descreve a estética como sendo por conseqüência, não a história das teorias e
das doutrinas sobre a arte, sobre o belo ou sobre as obras, mas a história da sensibilidade,
do imaginário e dos discursos que procuram valorizar o conhecimento sensível, dito
inferior, como contraponto ao privilégio concedido, na civilização ocidental, ao
conhecimento racional (JIMENEZ, 1999, p. 25).
15
O termo foi o primeiro usado nesse sentido no século XVIII e estética tem sido uma
parte proeminente da filosofia germânica, mais influentemente na obra de Kant. A
tendência nesta discussão tem sido tentar identificar aspectos transcendentes e eternos
de beleza e discriminá-los em oposição ao que é contingente e, por conseqüência, não é
arte (BROOKER, 1999, p. 2-3).
14
130
Celso Vitelli
apreciação do público (criança/adolescente/adulto)? Segundo Peter
Brooker, o termo estética tem tanto um uso restrito quanto amplo. A
estética, assim sendo, abrange o estudo de qualquer ou de todas essas
coisas. Tradicionalmente, para Brooker,15 ela se relaciona com a natureza,
percepção ou julgamento de beleza.
O que o adolescente tem nos mostrado através da sua aparência,
gestos, falas, dependendo do grupo ao qual ele pertence, pode ser um
desafio aos cânones estéticos construídos e apreciados pelo mundo
adulto. Muitas vezes, estes jovens se enfeiam, contradizendo, desta
forma, o conceito estético tão arraigado no mundo adulto. Segundo
Calligaris (2000, p. 50),
assim como o adolescente pode parecer contestar a idolatria do
valor financeiro, econômico [por exemplo, recusando-se a ostentar
os apetrechos desse valor nas vestimentas e em outros símbolos
tradicionais de riqueza], tornando-se feio ele poderia criticar um
sistema que valoriza a desejabilidade dos corpos como razão do
reconhecimento social.
Se existe uma transgressão, uma ruptura de uma estética
anteriormente construída por parte do público adulto, então assistimos
também a uma apresentação de uma estética do adolescente, seja ela
uma tribo clubber, punk, mauricinho, patricinha, etc. Os conceitos que se
tem sobre o termo estética construídos na história (em geral), passam
obviamente pela construção do pensamento do adolescente em relação
ao que apreciar, ao que possa ser belo. Talvez, os conceitos aprendidos
sobre estética na escola, na família, nos grupos, se incorporam, se
engendram, espelhando o leque de possibilidades de interpretação deste
termo. Se o olhar do adolescente deixou de ser atento em relação à
alta cultura, certamente também são reflexos do espelho de interesses
ideológicos de uma época. Ou seja, ensina-se também na família, nas
escolas, nos grupos (tribos), na mídia, que se dá uma “certa” importância
para a arte, sim, mas que seja algo rápido, só para não passarmos
desapercebidamente sobre este assunto.
Adolescência e arte: estética e práticas culturais
131
Afinal de contas, cabe perguntar se em tempos de
globalização toda informação é realmente válida, mesmo que venha
sem grandes aprofundamentos. Acreditamos que a cultura implica
em conhecer um repertório de bens simbólicos e interferir na
construção/produção dos mesmos. Ao conversarmos com vários
adolescentes, muitos deles relataram que foram visitar o espaço do
Santander Cultural,16 por exemplo, falaram muito da sua arquitetura,
da beleza do espaço, mas pouco sabiam ou comentaram sobre as
obras de arte então expostas naquele espaço. Lembrando Canclini (2000,
p. 65), talvez isto possa estar acontecendo porque
se os museus procuram seduzir o público através da renovação
arquitetônica e dos artifícios cenográficos, é – também – porque
as artes contemporâneas já não geram tendências, grandes figuras,
nem surpresas estilísticas como na primeira metade do século.
Logicamente, toda esta prática amplamente explicitada, na qual
se faz a ligação do termo estética muito mais à moda, ao
comportamento, aos cuidados com o corpo do jovem adolescente,
dificulta para os mesmos a indagação de qual seria a real importância
de uma relação mais próxima com artistas/obras de arte/a criação
(do próprio adolescente também) em si. Arriscamos dizer que evidenciase a falta de um trabalho mais diversificado no Rio Grande do Sul, o
qual atinja as diferentes manifestações artísticas. As ações culturais do
Estado não são tão fortes em termos de interpelação do público jovem,
em comparação com a mídia. Os “atrativos” da mídia se engendram
numa teia que atende, pelo menos, grande parte do público adolescente.
Seria até mesmo inócua a comparação entre os recursos de atração
provenientes da mídia, que promovem novos ou repetidos conceitos
O Santander Cultural é um prédio tombado pelo patrimônio histórico, que localiza-se
na Praça da Alfândega em Porto Alegre. Antiga sede dos bancos Nacional do Comércio e
Sul Brasileiro, foi construído em estilo neoclássico entre os anos de 1927 e 1932, fazendo
parte de um conjunto arquitetônico da região central. São cerca de 5.600 m² de área
construída.
16
132
Celso Vitelli
de estética, e os pouquíssimos recursos destinados à veiculação da arte
em nosso país. Para Joffre Dumazedier (1999, p. 166),
a iniciação às artes e à literatura, que os professores efetuam
pacientemente, precisa ser prolongada por toda uma rede de
atividades cinematográficas, teatrais, plásticas, literárias, que não
poderiam ser estimuladas unicamente pelo conteúdo dos jornais
e das revistas vendidos nos quiosques. Seria preciso aumentar o
número de edições, instituições, agrupamentos que ensinam
como escolher e que, eles mesmos, difundem, em todos os meios,
obras ao mesmo tempo belas e sedutoras.
A rede de atividades apresentadas hoje aos adolescentes pelas
revistas, pelos programas de televisão, de rádios, os livros, os shows,
estariam desempenhando plenamente o papel de “prolongadores” da
iniciação às artes [em geral] e à literatura (como bem expõe Dumazedier
acima)? Por não acreditar numa experiência estética que limite a criança,
o adolescente ou o adulto somente ao contato direto com as obras de
arte que estão em museus ou galerias, pensamos em como tem
acontecido a extensão do encontro com a estética (no seu sentido mais
amplo) hoje. Sabemos que este encontro pode se dar tanto com a
natureza quanto no próprio corpo humano, ou ainda,
nos fogos de artifícios, na ornamentação doméstica e corporal,
de tatuagens primitivas e pinturas rupestres a cosméticos
contemporâneos e decoração de interiores e, com certeza, nas
inumeráveis cenas cheias de cor que povoam nossas cidades e
embelezam nossa vida cotidiana (SHUSTERMAN, 1998, p. 38).
Acreditamos no papel da arte através de seus textos e da exibição
de suas obras ao público, como mais uma via necessária no processo
de construção do conceito de estética. Para que este processo aconteça,
vemos como tão necessários o ver/apreciar/discutir tanto o quadro
de um artista plástico, por exemplo, quanto os cenários de um filme
como O Show de Truman (1998), certas propagandas de televisão e
de outdoors, os videoclipes da MTV; enfim, o povoamento destas imagens
Adolescência e arte: estética e práticas culturais
133
tendem (ao serem analisadas) a construir possíveis conceitos no campo
da estética.
Perguntamos hoje, também, sobre a arte e o diálogo estabelecido
com a utilização de novos meios, de uma acessibilidade maior (através
da televisão, Internet)? Quais os temas que estão gerando discussões
neste campo?
Em muitas respostas dos adolescentes nos questionários
aplicados, aparece um certo desencantamento de alguns com as artes
visuais,17 muitas vezes descritas nas palavras dos adolescentes como
“chatas”, “desinteressantes”, “difícil de entender”, “muito abstratas”,
como “algo que pertence ao passado”... Por parte de outros, existe
um respeito, uma admiração ainda pela palavra “arte”, mas muito
ligada a algo que ficou somente no passado. Já com a música a
identificação se dá de uma maneira mais próxima, talvez porque o
meio de difusão seja mais acessível. A música certamente é vista, além
da facilidade do acesso e da sua difusão, como um aspecto do lazer
quase cotidiano. Basta ver a quantidade de pessoas que carregam seus
walkmans, ligam o rádio do carro ao entrar – em muitas escolas
particulares, o recreio é sempre com música [na maioria das vezes, é
uma iniciativa do grêmio estudantil]. Com uma presença diversificada
dos mais variados grupos musicais ou cantores e cantoras (Adriana
Calcanhoto, Bob Marley, Tribo de Jah, Pearl Jam, Iron Maiden, entre tantos
outros), a relação do adolescente com a música talvez tenha uma
penetração maior no seu universo devido, também, ao caráter fugidio/
efêmero que existe tanto no surgimento e permanência destes grupos/
cantores quanto nas temáticas musicais expostas pelos mesmos. Para
Fischer (1996, p. 53), “a música talvez seja a forma de expressão que
mais una e identifique os jovens. Sua vida cotidiana é pontuada pelos
sons, ritmos e letras que ouvem nas rádios e nos discos”. A autora,
Refiro-me às artes visuais porque, dentro deste mesmo instrumento, a relação do jovem
com a música é outra, pautada pela aproximação, pelo interesse, pelo envolvimento. Deve
ficar claro que as artes visuais às quais refiro-me neste momento, dizem respeito ao
conjunto das obras expostas em museus, galerias de arte, bienais ou até mesmo às
reproduções de obras de arte que chegam ao adolescente através de livros, de aulas
expositivas, etc.
17
134
Celso Vitelli
mais adiante no seu texto, levanta a importância do surgimento de
novos grupos musicais, cantores; enfim, todo o aparato que envolve o
mundo das rádios FM e sua variedade de ofertas musicais.
É visível também, principalmente sobre aquilo que seria belo
para o adolescente, a presença de frases e poesias que circulam há
muito e são universais. Exemplo: “Nunca cruze os braços para as
dificuldades da vida, porque o homem mais poderoso morreu de
braços abertos!”; ou ainda a frase de Bob Marley, “Amo a liberdade,
por isso deixo livre as coisas que amo, se elas voltarem é porque as
conquistei, se elas forem é porque nunca as possuí.”18 Exatamente por
manterem um caráter universal (e isso pode acontecer com a música
também), as frases de Bob Marley ou de pensadores anônimos circulam
pelo mundo com a vantagem de permanecerem durante um tempo
maior (principalmente os ditos “pensamentos”) do que as músicas,
que, navegando no mar midiático, tendem a uma duração de vida
mais curta.
Lembremos [segundo Jimenez] o princípio do sistema das artes:
arquitetura = matéria inerte, opaca; escultura = matéria e forma,
aparência da vida orgânica; pintura = aparência visual em duas
dimensões; música = interioridade subjetiva, ligada ao tempo,
efêmera; poesia = subjetividade exteriorizada nas palavras
(JIMENEZ, 1999, p. 176).
Mais uma vez,19 a revista Veja (set. 2001, p. 70) realiza outra
grande edição especial dedicada ao público jovem, tendo em letras
garrafais o título “JOVENS – Um retrato da geração mais bem
informada de todos os tempos”. “A cultura jovem (como pauta de
um dos assuntos investigados na pesquisa) é uma cultura planetária
desde os anos 50”, assim afirma Tatiana Chiari no subtítulo “A
globalização espalha a cultura jovem com mais velocidade”. Sobre a
estética do corpo, a autora Letícia Castro afirma: “Nunca se cuidou
Ver VITELLI, op cit.
Muitos pesquisadores apontaram, em suas teses e dissertações, reportagens da mesma
revista em diferentes épocas.
18
19
Adolescência e arte: estética e práticas culturais
135
tanto do corpo nessa faixa etária como hoje”. Um dono de academia
(na mesma reportagem) diz que “a academia é para os jovens de hoje
o que foi a discoteca para a geração dos anos 70”. A Veja, com moldes
de estrutura de reportagem muito parecidos com a revista Capricho,
apresenta o mesmo leque de informações sobre sexo, chats, diário,
drogas, tribos, violência, política, livros, ídolos, globalização, vestibular,
mesada, moda; com todos os depoimentos “de direito”: de especialistas
das mais diversas áreas.
Relendo as entrevistas transcritas, observamos que alguns
adolescentes “acham legal desenhar, fazer isto ou aquilo”. Este fazer
ao qual eles se referem, e que aparece na maioria das respostas, está
sempre ligado ao aprendizado de uma técnica, que, geralmente, é o
desenho. Encaramos com um certo desconforto aquelas aulas de arte
que têm em seu programa de curso somente o fazer, a prática de
ateliê. Que tipo de educação estética está sendo construída neste fazer?
Acreditamos que não seja só o fazer que dá ao aluno uma concepção
daquilo que possa ser arte, da estética do cotidiano. De como podem
ser questionados “certos tipos de arte” e também a própria estética do
cotidiano?
Apoiado no texto de Vincent Lanier (1999), encontramos nas
palavras do autor boas justificativas para a ampliação da experiência
estética, através de outras fontes que não sejam somente os museus ou
as reproduções de artistas [europeus]. Explicando que a experiência
estética do aluno é anterior à sua entrada na escola, ele nos diz que
“não a introduzimos para nossos alunos mas incrementamos a partir
de algo que já está lá” (LANIER, 1999, p. 46). E mais, que as Artes
Plásticas devem oferecer também como experiência estética muito mais
que “o óleo em moldura dourada e o mármore sobre pedestal dos
museus. Devem incluir artesanato e arte popular, em particular, e a
mídia eletrônica como o cinema e televisão”.
Outros adolescentes que também responderam às questões sobre
as aulas de arte sinalizaram, em suas respostas, seu gosto pelas mesmas,
mas geralmente se referindo ao conhecimento que obtiveram na prática
136
Celso Vitelli
de ateliê. Foram poucos (na entrevista gravada apenas um menino) os
que mencionaram, por exemplo, a importância que teria uma discussão
a respeito de um filme, ou de uma campanha publicitária, e quando
mencionado, não foi visto como algo diretamente ligado às aulas de
arte na escola. Um exemplo disto estaria na fala de Hermes, quando
foi questionado se seria interessante que as aulas de arte não ficassem
só no desenho, mas que também abordassem temas de filmes ou
videoclipes. A resposta foi:
seria bem legal se a gente saísse pra ver um estúdio de desenho,
por exemplo. Não sei se existe estúdio de desenho. Mas acho que
deve existir. Ou então como é que se faz um filme, assistir a uma
gravação? Seria bem legal mas, não seria bem Artes Plásticas.
A fala de Hermes parece ser o fruto de uma educação em Artes
Plásticas que procurou manter uma distinção entre certas práticas
(desenho, pintura, escultura, etc.) das imagens de filmes, desenhos
animados. Com seus quinze anos, ele já carrega uma visão fechada
sobre o universo das artes visuais. Em uma resposta de outra
adolescente entrevistada, quando foi questionada sobre qual seria a
disciplina que ela mais gostava, citou sete, entre as que mais gostava e
as que mais “detestava, tinha pavor, odiava” (usando os termos
utilizados pela adolescente). A disciplina que ela elegeu entre as quais
mais gostava foi a Matemática. Observamos entre os comentários
bons e ruins, que várias disciplinas foram citadas, tanto da área humana
quanto da área das ciências exatas, exceto artes. Como nos lembra
Shusterman (1998, p. 114), de uma maneira geral “gostamos daquilo
que somos treinados e condicionados a gostar e daquilo que as ocasiões
e as circunstâncias nos permitem achar bom”. Sobre a afirmação do
autor, nos assusta um pouco utilizar palavras como “treinar” e
“condicionar” em relação ao gosto, mas, ao mesmo tempo, vemos
nelas um alerta sobre a formação que as crianças e adolescentes têm
recebido para construírem suas noções sobre arte, gosto e estética. Por
exemplo, começa-se a construir o raciocínio de que se alguém tem um
Adolescência e arte: estética e práticas culturais
137
bom conhecimento matemático/físico/químico certamente se sentirá
“bem treinado” para enfrentar um concurso como o vestibular e,
certamente também, esta pessoa dedicará a maior parte do seu tempo
escolar/ou de estudo a determinadas disciplinas que ofereçam uma
possibilidade maior de sucesso. O condicionamento pode se dar
positivamente/negativamente em relação a estas; ou melhor, levar o
adolescente a gostar mais de determinadas disciplinas ou, ao contrário,
a até mesmo odiá-las.
Em relação às visitas aos museus, que poucos adolescentes
mencionaram em suas respostas, aqueles que os freqüentaram
afirmavam ter gostado de tudo: da visita, das obras em geral; mesmo
que muitos não tenham entendido nada sobre o que estava exposto
diante deles. Não se espantaram diante de uma ou outra obra que não
tem nada a lhes dizer; a indiferença lhes pareceu a melhor resposta.
Afastam-se, porque não sabem, nem tem importância saber. Para quê?
Cai no vestibular? Em se tratando da cultura visual em geral, talvez
fosse importante informar aos nossos alunos, através das palavras de
Fernando Hernández, a importância das mais diversas imagens presentes
no cotidiano. Ele nos diz que
as imagens são mediadoras de valores culturais e contêm
metáforas nascidas da necessidade social de construir significados.
Reconhecer essas metáforas e seu valor em diferentes culturas,
assim como estabelecer as possibilidades de produzir outras, é
uma das finalidades da educação para a compreensão visual
(HERNÁNDEZ, 2000, p. 133).
Finalizando, percebemos que a visão que temos sobre o
panorama endereçado ao adolescente no campo da arte/estética em
geral, e o que esta geração está construindo com todas estas
informações, vêm transformando e reelaborando conceitos
fundamentais e que permeiam o cotidiano de nossas salas de aula e,
certamente, influenciam a reelaboração de planejamentos, interesses
que constroem a disciplina de arte. Para tanto, acreditamos neste estudo
sobre a estética contemporânea como algo permanente. Assim,
138
Celso Vitelli
conhecendo cada vez mais um pouco sobre o tempo presente,
poderemos mudar a premissa de Rosa Fischer, no que se refere ao
endereçamento de nossas aulas e de nossos currículos. Como afirma
a autora, “talvez não tenhamos ainda conseguido uma sintonia com
estes novos alunos” (FISCHER, 2001, p. 32). E foi exatamente a busca
de uma sintonia maior entre professores/alunos que motivou a
realização desta pesquisa.
ADOLESCENCE AND ART: AESTHETICS AND
CULTURAL PRACTICES
Abstract: The objective of this paper is to bring the adolescent to the center of
the scene, taking into consideration the speed of the changes that mark the
present time. The study points out the presence of different identities, related
to these adolescents, which have been changed and formed according to the
emergence of new “gangs”. The paper unveils a social quotidian in which
adolescence is celebrated in our culture and influenced by a society strongly
directed towards consumption. This interferes with the conception of social
and cultural values, which are constantly produced and reproduced.
Keywords: Esthetics. Culture and adolescence.
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O GOVERNO DA RAZÃO: ESCOLARIZAÇÃO,
SUBJETIVAÇÃO E PSICOLOGIA GENÉTICA
Paulo Gurgel
1
Resumo: Neste artigo abordamos o sujeito epistêmico formatado pela instituição
escola, espaço privilegiado da história da educação ao longo do século XX. Para
tanto, procedemos uma análise da psicologia genética de Jean Piaget em suas
relações com práticas pedagógicas centradas no sujeito-aluno. Enquanto
tecnologias de produção de cidadãos em tempos de liberalismo e de bem-estar
social, estas práticas ditaram os ideais do governo da razão e se encontram na
raiz do sujeito piagetiano, tanto em sua dimensão diacrônica como sincrônica.
Palavra-chave: Governamentalidade. Subjetivação e epistemologia.
A idade da inocência é o tempo do governo dos outros. Nisso,
pasmem, concordam Jean Piaget e Michel Foucault. Aqui, todavia,
cessam as similitudes; pois, se para o primeiro a autonomia é um
corolário da lógica evolutiva, para o segundo não há razão, seja ela
pura ou prática, para além da história, que possa justificar ser a
Doutor em Educação pela PUC-SP. Docente de Psicologia da Educação da Faculdade de
Educação da Ufba. E-mail: [email protected].
1
APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano III n. 4 p. 141-160
2005
142
Paulo Gurgel
heteronomia necessariamente sintoma de desrazão. Tempo houve em
que o autogoverno dizia respeito, exclusivamente, aos que governavam.
E se há algum sentido em fazer a história do presente, ele é exatamente
a compreensão, ainda que tardia, de que o autogoverno é apenas um
dos vários micro-exercícios possíveis de poder.
Necessitamos aqui, para melhor abordarmos o autogoverno
como uma forma específica de exercício do poder, fazer referência
ao que, em aula ministrada no Collège de France, em 01 de fevereiro de
1978, Michel Foucault denominou de “governamentalização do estado
na modernidade”:
Desde o século XVIII, vivemos na era da governamentalidade.
Governamentalização do Estado, que é um fenômeno
particularmente astucioso, pois se efetivamente os problemas da
governamentalidade, as técnicas de governo se tornaram a questão
política fundamental e o espaço real da luta política, a
governamentalização do estado foi o fenômeno que permitiu o
estado sobreviver. Se o estado é hoje o que é, é graças a esta
governamentalidade, ao mesmo tempo exterior e interior ao
estado. São as táticas de governo que permitem definir a cada
instante o que deve e o que não deve competir ao estado, o que é
público ou privado, o que é ou não estatal, etc.; portanto o Estado,
em sua sobrevivência e em seus limites, deve ser compreendido a
partir de práticas de governamentalidade (FOUCAULT, 1979, p. 292).
Denominamos de “liberalismo” uma das práticas possíveis de
governabilidade dos estados modernos. Seus objetivos principais são
maximizar a liberdade individual e minimizar a intervenção do Estado
na sociedade dos indivíduos. Dentre suas formas de intervenção,
interessa-nos aquelas destinadas à produção do sujeito do si – o self:
Se há um valor que parece se situar para além de qualquer crítica,
em nosso atual e confuso clima ético, é o do self e dos termos que
a ele se agregam – autonomia, identidade, liberdade, escolha,
realização. É em termos de nosso autônomo self que entendemos
nossas paixões e desejos, definimos nosso estilo de vida,
escolhemos nossos parceiros, casamento, e, até mesmo,
O governo da razão: escolarização, subjetivação e psicologia genética
143
paternidade/maternidade. É em nome do tipo que realmente
somos que consumimos mercadorias, expressamos nossos
gostos, desenhamos nossos corpos, marcamos nossas diferenças.
[...]. Nesta ética da liberdade, o self autônomo parece desempenhar
um papel fundamental nas diferentes formas que homens e
mulheres entendem, experienciam e avaliam a si próprios, a suas
ações e as suas vidas (ROSE, 1996, p. 1, tradução nossa).
Certamente que a produção de nós mesmos, do self de cada
um de nós, é de importância capital para o liberalismo, aqui abordado
como tecnologia de governo. É sobre as populações, e não somente
sobre o território, que se exerce o poder nos estados nacionais da
modernidade. Poder que não mais se define por sua negatividade, ou
seja, pela pura e simples repressão, mas, e principalmente, pela sua
positividade. Positividade construída na intricada rede de relações entre
saber e poder que se materializa, também, nas instituições fundadas
pelo estado com o objetivo de formatar sua população. A escola, tal
como a conhecemos hoje, gerida por experts, é uma destas instituições.
É mister que pensemos historicamente o nascimento da escola
em suas relações com tecnologias de governo dos estados nacionais que
se multiplicaram por todo o ocidente ao longo da idade moderna. A
gerência destes territórios e de suas populações só se fez possível com
uma crescente multiplicação de domínios discretos de poder exercidos
por experts ao nível de uma microfísica de relações de força – governo
da economia, segurança interna e externa, bem estar social, disciplina
moral, etc. Neste quadro, identificamos o nascimento da escola como
um dos meios encontrados pelo estado para o treinamento moral de
sua população. Certamente que a esse treinamento moral, à medida que
se multiplicaram as tecnologias de produção e o mercado passou a exigir
mais do que corpos dóceis como requisito de empregabilidade, foi
agregado um conjunto de saberes necessários à profissionalização dos
cidadãos. Não nos adiantemos, contudo. Por enquanto, procedamos a
uma narrativa sobre o nascimento da escola moderna, tomando como
referência um seminal texto produzido por Jones e Williamson (1979) a
propósito do nascimento da escolaridade obrigatória na Inglaterra.
144
Paulo Gurgel
Jones e Williamson (1979) defendem a tese de que o nascimento
da escola pública não pode ser compreendido senão em suas relações
com a crescente onda de urbanização das populações para atender à
demanda de mão-de-obra gerada pelo desenvolvimento das novas
tecnologias de produção de mercadorias. É preciso, pois, pensar a
instrução pública como instrumento de produção e gerência das
populações destes centros que, já então, enfrentavam problemas de
criminalidade, pauperismo e turbulência política.
As primeiras máquinas inglesas de instrução coletiva, as escolas
lancasterianas, tinham como característica distintiva o uso da instrução
mútua – um aluno mais velho e de confiança do mestre, tendo
aprendido com ele, ensinava as lições aos mais novos. Esta inovação
organizacional e pedagógica tinha como um dos seus principais atrativos
o baixo custo de sua estrutura e funcionamento. Um mesmo professor,
pago pelo estado, podia ensinar a centenas de crianças ao mesmo tempo
com o auxílio de seus monitores e consumia minimamente material
didático visto que, predominantemente, a instrução era uma prática
verbal.
Não obstante a popularidade destas escolas nas primeiras
décadas do século XIX na Inglaterra, elas entraram em declínio por
volta de 1830 e progressivamente deram lugar a uma nova pedagogia.
As razões para tais transformações foram determinadas por uma nova
configuração das formações discursivas referentes ao domínio do saber
administrativo sobre as relações entre criminalidade, pauperismo, saúde
pública e a população dos grandes centros urbanos:
O problema não era mais como educar o ignorante, mas como
mudar a maneira pela qual a criança já tinha sido educada pela
família, isto é, como alterar a forma na qual as crianças tinham
sido treinadas. Era necessária uma abordagem mais geral, pensar
em termos de todo o curso da educação da criança até a idade
adulta [educação em seu verdadeiro sentido] que era definida por
uma determinada topografia moral (JONES; WILLIAMSON, 1979, p.
86, tradução nossa).
O governo da razão: escolarização, subjetivação e psicologia genética
145
Esta redefinição dos objetivos da educação popular em função
do treinamento moral foi diretamente responsável pelo aparecimento
de um conjunto de novos problemas concernentes ao espaço interior
da escola. Não mais definida como máquina de instrução, mas como
máquina de treinamento moral, esta nova concepção dos objetivos da
pedagogia determinou, entre outras mudanças, a redefinição do lugar
do professor, a partir de uma nova concepção metodológica de ensino
que colocava este profissional da educação no centro do processo
ensino-aprendizagem.
Concluindo esta interessante empresa genealógica da escolarização
na Inglaterra, os autores não se limitam a apresentar, a título de
considerações finais, uma simples síntese de suas análises. Apresentam
a necessidade de se prolongar o estudo por eles realizado, a fim de
englobar a universalização e obrigatoriedade do ensino, que passam a
constituir parte integrante do cenário das políticas educacionais inglesas
ao final do século XIX:
Claramente, do ponto de vista das análises que realizamos acima,
a radicalidade da transformação do discurso em defesa da educação
na última parte do século dezenove apresenta algo de paradoxal.
O seu alcance se torna incomensuravelmente maior,
transformando a educação pública em uma forma compulsória,
mas o modo no qual ele representa os efeitos táticos da educação
pública se desvincula do que havia, até então, sido um padrão
essencial; isto significa que um componente essencial das
justificações práticas da existência da educação pública é deletado
– sua capacidade de moralizar. Uma pergunta, então, deve ser
colocada: o que tornou tal mudança possível? O que permitiu a
paradoxal reestruturação deste discurso? (JONES; WILLIAMSON,
1979, p. 98, tradução nossa).
A hipótese explicativa apresentada pelos autores deriva de um
novo sistema de relações que se estabelece entre a instituição escolar e
um conjunto de instituições políticas e sociais, as quais o cidadão
comum passa a integrar a partir da segunda metade do século XIX. A
participação dos cidadãos nestas novas instituições pressupunha,
146
Paulo Gurgel
necessariamente, a aquisição das habilidades básicas de leitura, da escrita
e da matemática. Assim, o papel da escola foi reescrito em uma lógica
secular com o objetivo de instrumentalizar o cidadão para sua inserção
nesta rede de instituições democráticas:
Uma justificação da escola pública devido ao seu papel
desempenhado na gerência de grandes problemas sociais [como
na primeira metade do século XIX] é, então, transformada em
uma justificação baseada na sua representação como condição de
existência de certas instituições. A proposição da necessidade de
uma educação pública, que agora repousa no efeito de sua
amplificação, foi possível de ser enunciada a partir dos discursos
das instituições; isto significa que a amplificação da escola repousa
em proposições de sua necessidade para a formação de uma boa
democracia representativa e da necessidade difundida do
envolvimento dos cidadãos em institutos mecânicos. E este
discurso sobre as instituições torna possível este efeito através da
redefinição da função tática da educação pública: não uma função
de inculcação de princípios de conduta e nem como estratégia de
gerenciamento de topografias morais, mas como um
instrumento de criação de um campo de implantação de outras
instituições formando os indivíduos como seus membros
possíveis (JONES; WILLIAMSON, 1979, p. 99-100, tradução nossa).
Este processo de redefinição do papel da escola em sua nova
função secular, segundo os autores, não se faz acompanhar por grandes
mudanças na prática pedagógica, ainda que os objetivos da educação
pública tenham sido redefinidos em três eixos principais, a saber: (1)
um eixo concernente à educação como um benefício social para o
indivíduo, dando a ele maiores chances de uma melhoria nas suas
condições de vida; (2) um eixo concernente à educação e o seu papel
na constituição dos indivíduos como sujeitos membros de instituições
democráticas; e (3) um eixo concernente à educação como meio de
promoção e crescimento econômico das nações:
Discordamos, contudo, destes autores quando defendem a tese
de que estas novas funções da educação pública não implicaram em
grandes mudanças no que diz respeito às práticas pedagógicas. Para
O governo da razão: escolarização, subjetivação e psicologia genética
147
nós, a secularização da escola, iniciada ao final do século dezenove e
desenvolvida na primeira metade do século vinte, implicou não apenas
em profundas mudanças no que diz respeito às práticas pedagógicas
como também em uma inflação de sua função moralizadora. É o que
tentaremos demonstrar em seguida.
Já nos últimos anos do século XIX, podemos encontrar na
literatura educacional das sociedades ocidentais claros sinais indicativos
de mudanças nas práticas pedagógicas. Trata-se de projetos pioneiros
que propõem uma profunda alteração de foco na agenda da pedagogia
que, antes centrada no professor, passava a se centrar no aluno. Vejamos
como Jean Piaget narra a história do nascimento destes novos métodos:
É que a transformação geral das idéias sobre a personalidade
humana obrigou os espíritos abertos a considerarem a infância
de outra maneira: não mais [era o caso de Rousseau] por causa de
opiniões preconcebidas sobre a bondade do homem e a inocência
da natureza – mas por causa do fato, novo na história, de que a
ciência e, mais geralmente, as pessoas honestas, estavam de posse
de um método e de um sistema de noções aptos a dar conta do
desenvolvimento da consciência e, particularmente, do
desenvolvimento da alma infantil. Somente então esta atividade
verdadeira, que todos os grandes inovadores da pedagogia tinham
sonhado introduzir na escola e deixar desenvolver-se os alunos
segundo o processo interno de crescimento físico, tornou-se um
conceito inteligível e uma realidade suscetível de ser analisada
objetivamente: os novos métodos se constituíram assim ao
mesmo tempo em que a psicologia infantil e em estreita
solidariedade com seus progressos (PIAGET, 1976, p. 150, grifo
nosso).
Esta solidariedade muito significa para a nossa empresa
genealógica aqui desenvolvida. Primeiramente, ela aponta para uma
mudança de pólo de onde a verdade sobre a educação passaria a ser
enunciada. Até então, os tratados de pedagogia eram escritos, em sua
maioria, por filósofos e por pessoas diretamente ligadas à pastoral
cristã. A partir de então, a educação passou a ser um assunto científico.
148
Paulo Gurgel
Esta mudança de pólo de enunciação nos remete à questão da
governamentalidade em sociedades liberais onde, como corretamente
sublinha Rose (1998), a produção do sujeito se tornou progressivamente,
ao longo da história, assunto concernente exclusivamente ao domínio
dos experts. Se, pois, consideramos a escolarização como uma tecnologia
de governo, claro se torna, a partir da citação de Piaget (1976), que o
final do século dezenove se constitui no momento em que a psicologia
se torna o centro de produção de verdade sobre o sujeito-aluno. A
autoridade pedagógica se tornou, então, laica. Doravante, repousaria
ela sobre a razão.
Analisando o movimento globalizado de construção dos métodos
ativos em sua estreita relação com o desenvolvimento da psicologia
infantil na Europa e além mares, Piaget reserva ao seu país de origem,
a Suíça, o grande mérito desta genuína revolução pedagógica:
No entanto, foi na Suíça que a famosa teoria de Karl Groos – o
jogo é um exercício preparatório; logo apresenta significação
funcional – encontrou sua primeira aplicação pedagógica. É na
verdade a Claparède, que desde seus primeiros trabalhos havia
reagido contra o associacionismo e defendido o ponto de vista
dinâmico e funcional, que se deve à compreensão da importância
da doutrina de Groos para a educação. Daí os métodos de ensino
e os jogos educativos desenvolvidos na Maison des Petits de
Genebra, como também o movimento dirigido por ele – antes e
depois da criação do Instituto Jean-Jacques Rousseau – em favor
do ensino simultâneo da infância e das técnicas educativas: discat
a puero magister, esta era a divisa da instituição que ele fundou
com P. Bovet (PIAGET, 1976, p. 152-153).
O jogo, usurpado pela ciência e transformado em instrumento
da educação, marca, pois, o fim da inocência da brincadeira infantil.
Foram as bolas de gude que a Piaget permitiram construir toda uma
lógica do desenvolvimento do julgamento moral da criança, no início
dos anos trinta do século vinte. Crianças a brincar na Maison des Petits se
tornaram, então, objeto de observação, registro e análise dos progressos
da inteligência. A atividade da criança, fundamento dos métodos ativos,
O governo da razão: escolarização, subjetivação e psicologia genética
149
para além de revolucionar a prática pedagógica, se constituiu em um
poderoso instrumento de desenvolvimento da psicologia da criança.
A escola se tornou, então, tal como já havia acontecido aos hospitais e
prisões ao longo do século XIX, lugar privilegiado de produção de
saber sobre o homem. Produzindo sujeitos, ela também, e ao mesmo
tempo, produzia verdades sobre eles.
É, pois, da ordem do discurso da psicologia que Piaget se faz
ouvir no métier psicopedagógico do século vinte. Não esqueçamos, contudo,
que a escola constituiu a superfície de emergência desse métier e que,
portanto, sem os problemas por ela enfrentados na formatação dos
sujeitos do breve século vinte, o sujeito epistêmico, muito provavelmente,
jamais teria emergido como objeto da psicologia. Mais do que lugar
de aplicação dos conhecimentos sobre este sujeito, a escola foi o lugar
de produção mesma deste objeto de pesquisa que ocupou grande
parte da empresa epistemológica de Jean Piaget.
Certo é que a teoria piagetiana da gênese e desenvolvimento da
inteligência e suas relações com o métier psicopedagógico constituem um
dos temas nevrálgicos da literatura educacional do século XX.
Possivelmente, nenhum outro teórico tenha desencadeado tantas reações
de amor e ódio ao seu sujeito epistêmico como Jean Piaget. Muitas
razões podem ser aventadas para tanto. Dentre elas, destacamos duas,
a saber: o fato mesmo da psicologia genética ser derivada de pesquisas
com sujeitos escolares, pois que tinha como função, dentre outras,
buscar soluções para os problemas educacionais de seu tempo e o
fato de Piaget ser um cientista com participação ativa em organismos
internacionais de gestão da educação, o que certamente em muito
contribuiu para a difusão de suas idéias.
Escolhemos, para abordar o governo da razão pura pela escola,
um texto de Jean Piaget publicado no ano de 1962 e intitulado
Comentários sobre as observações críticas de Vygotsky acerca
de: A linguagem e o pensamento da criança. Neste texto, Piaget
sublinha ter sido para ele uma alegria descobrir que também o psicólogo
russo, para propósitos de estudo, distinguia os conceitos espontâneos,
150
Paulo Gurgel
“construídos pela criança em sua interação com o mundo”, dos
conceitos científicos, “adquiridos pela criança por intermédio da
aprendizagem escolar”. Ambos admitem existir uma interação entre
estas duas categorias de conceitos. Vygotsky, contudo, segundo Jean
Piaget, o interpreta incorretamente, ao lhe imputar a idéia de que os
educadores deveriam considerar o pensamento espontâneo da criança
como um inimigo a ser vencido:
Em todos os meus escritos pedagógicos, antigos ou recentes,
tenho ao contrário, insistido em que a educação formal poderia
ganhar uma grande dimensão, muito maior do que aquela
proporcionada pelos atuais métodos, através de uma utilização
sistemática do desenvolvimento mental espontâneo da criança
(PIAGET, 1991, p. 166).
E para provar que assim o é, Piaget faz uma referência a uma
série de estudos por ele realizados, com a colaboração de A Szemiska
e B. Inhelder, sobre o desenvolvimento dos conceitos de número, de
quantidades físicas, de ação, de velocidade e do tempo, de espaço, de
causalidade, da indução de leis físicas e da estrutura lógica das classes.
Estudos que, segundo Piaget, deveriam servir de guia de apoio na
determinação do programa das disciplinas escolares, mas que, como
era o caso específico do ensino da geometria na Suíça e na França, não
o foram. E o resultado desse desconhecimento da lógica evolutiva do
desenvolvimento muitas vezes se traduz em fracasso escolar:
Através desses exemplos [desenvolvimento das operações
geométricas nas crianças em oposição à lógica dos programas de
geometria em escolas suíças e francesas], que podem ser
multiplicados, torna-se fácil responder às críticas de Vygotsky.
Em primeiro lugar, ele reprova-me por eu não ver que o
aprendizado escolar é totalmente relacionado com o
desenvolvimento espontâneo da criança. Contudo, deve ficar claro
que, em minha opinião, não é a criança que deve ser
responsabilizada por eventuais conflitos de aprendizagem, mas
sim a escola, que usualmente não tem consciência do que poderia
O governo da razão: escolarização, subjetivação e psicologia genética
151
deduzir do desenvolvimento espontâneo da criança, o qual ela
deveria reforçar por métodos adequados em lugar de inibi-lo,
como freqüentemente o faz. Em segundo lugar – e este é o
principal erro de Vygotsky em sua interpretação sobre o meu
trabalho – ele acredita que, de acordo com a minha teoria, o
pensamento adulto, depois de várias acomodações “substitui” o
pensamento infantil através de uma espécie de abolição mecânica
deste último (PIAGET, 1991, p. 167-168).
Sublinhemos que nosso objetivo aqui não é tomar partido quanto
aos pontos de discordância entre Piaget e Vygotsky, no que diz respeito
aos conceitos espontâneos, a aprendizagem escolar e os conceitos
científicos. Claramente, nosso objetivo primeiro é destacar a maneira
pela qual Jean Piaget pensa como a escola deve governar o processo
de construção da razão pura pelo aluno. Os educadores devem
subordinar seus objetivos educativos à lógica evolutiva do pensamento
do escolar. E para tanto, devem necessariamente conhecer os progressos
da psicologia do desenvolvimento se não desejam incorrer nos mesmos
erros daqueles que desenharam os programas de geometria das escolas
suíças e francesas.
Retomemos, neste ponto, a tese de Rose (1998) para quem, a
partir da modernidade, a história do self não poderia ser contada sem
recorrermos ao domínio, cada vez maior, dos experts. Agreguemos a
ela a nossa tese de que a secularização da escola, iniciada ao final do
século XIX e desenvolvida na primeira metade do século XX, pode
ser contada em termos de uma progressiva usurpação da educação
pelo saber científico, sobremaneira o saber produzido pelas ciências
humanas. Decalquemos destes saberes o saber produzido
especificamente pela psicologia genética de Jean Piaget em relação à
gênese e desenvolvimento da razão pura. Projetemos este saber em
períodos evolutivos da lógica da criança à lógica do adolescente.
Confrontemos as características de cada um dos períodos com o
conteúdo das disciplinas escolares e teremos uma clara idéia da razão
pela qual Piaget teve tanta penetração no métier psicopedagógico da
modernidade.
152
Paulo Gurgel
Interessante sublinhar aqui a escolha, certamente não aleatória,
dos conceitos pesquisados por Jean Piaget e seus colaboradores a
propósito da gênese e do desenvolvimento de cada um deles ao nível
da razão pura. São todos eles conceitos concernentes às ciências físicas
e matemáticas, certamente as denominadas “ciências duras” do século
XX. Imaginar a maquinaria industrial do século passado sem eles não
nos parece possível. Impossível também imaginar uma escola que não
os tenha incluído em seus objetivos de ensino no que diz respeito à
aprendizagem dos conceitos científicos. Extrapolando a simples
experiência física, estes conceitos nos remetem ao que Piaget denomina
de experiência lógico-matemática:
A experiência física responde à concepção clássica da experiência:
ela consiste em agir sobre os objetos, para extrair um
conhecimento por abstração, a partir dos próprios objetos. Por
exemplo, a criança, ao erguer sólidos, perceberá por experiência
física, a diversidade dos pesos, de sua relação com o volume em
densidade igual, da variedade de densidades, etc. A experiência
lógico-matemática, em compensação, consiste em agir sobre os
objetos, mas com abstração dos conhecimentos, a partir da ação
e não mais dos próprios objetos. Neste caso, a ação começa por
conferir aos objetos caracteres que não possuíam por si mesmos
[e que conservam, aliás, suas propriedades anteriores] e a
experiência incide sobre a ligação entre os caracteres introduzidos
pela ação no objeto [e não sobre as propriedades anteriores deste]:
neste caso, o conhecimento é abstraído da ação como tal e não da
propriedade física dos objetos (PIAGET, 1973, p. 76-77).
“Agir sobre os objetos para deles extrair conhecimentos”, eis o
paradigma dos métodos ativos e a razão pela qual já em 1935 Piaget
iria escrever um artigo defendendo-os: Os novos métodos, suas
bases psicológicas. A aquisição dos conceitos científicos, através da
aprendizagem escolar, deveria não apenas obedecer à lógica da gênese
e desenvolvimento dos conceitos espontâneos, mas exigia da pedagogia
um novo método de ensino que muito se diferenciava da simples
preleção ou da pura experiência física dos próprios objetos. A “escola
nova” necessariamente pressupunha um “método novo” de ensino.
O governo da razão: escolarização, subjetivação e psicologia genética
153
Escolhemos, para abordar os novos métodos pedagógicos, um
texto apresentado por Piaget no V Congresso Internacional de
Educação Moral, realizado em Paris, no ano de 1930 e intitulado Os
procedimentos da educação moral. Sua análise não somente nos
permitirá discutir estes novos métodos, mas também abordar o governo
da razão prática pela escola.
Piaget (1996) inicia sua exposição sobre o tema afirmando que
os procedimentos da educação moral podem ser classificados sob
diferentes pontos de vista:
Primeiramente, do ponto de vista dos fins perseguidos: é evidente
que os métodos serão muito diferentes se desejarmos formar
uma personalidade livre ou um indivíduo submetido ao
conformismo do grupo social a que ele pertence. Verdade é que
aqui não temos de tratar dos fins da educação moral, mas somos
forçados para classificar os procedimentos a distinguir aqueles
que favorecem a autonomia da consciência e aqueles que
conduzem ao resultado inverso. Em segundo lugar, podemos
considerar o ponto de vista das próprias técnicas: se queremos
alcançar a autonomia da consciência, podemos perguntar se um
ensinamento oral da moral – uma “lição de moral” – é tão eficaz
como supõe Durkheim, por exemplo, ou se uma pedagogia
inteiramente “ativa” é necessária a este fim. Para um mesmo fim
podem ser concebíveis diferentes técnicas. Em terceiro lugar
podemos classificar os procedimentos da educação em função
do domínio da moral a ser considerado: um procedimento
excelente para desenvolver a veracidade, a sinceridade e as
virtudes que podemos chamar intelectuais, é bom, também,
para educação da responsabilidade ou do caráter? (PIAGET, 1996,
p. 1-2, grifos nossos).
Esta matriz de três entradas para a abordagem da educação
moral pode, segundo Piaget, facilmente precipitar a discussão sobre o
tema em um caos se não comporta um princípio ordenador que
permita uma orientação simultânea para os fins, as técnicas e os
domínios. E que princípio seria este?
154
Paulo Gurgel
Não existe alguma divisão mais simples, algum princípio que
nos permita uma orientação simultânea para os fins, as técnicas e
os domínios? Nós acreditamos que sim, mas sob a condição de
partirmos primeiramente da própria criança e de aclarar a pedagogia
moral através da psicologia moral infantil. Quaisquer que sejam
os fins que se proponha a alcançar, quaisquer que sejam as técnicas
que se decida adotar e quaisquer que sejam os domínios sob os
quais se aplique estas técnicas, a questão primordial é a de saber
quais são as disponibilidades da criança. Sem uma psicologia
precisa das relações das crianças entre si e delas com os adultos,
toda discussão sobre os procedimentos da educação moral resulta
estéril (PIAGET, 1996, p. 2, grifo nosso).
Revisando, contudo, a história da educação e também da filosofia,
identificamos outros tempos nos quais a moral se punha como uma
questão que dizia respeito à pastoral cristã e/ou à reflexão filosófica
dos iluminados espíritos livres. Não obstante, estes tempos se perderam
no tempo como um rosto desenhado na areia à beira mar. A razão
prática não é mais uma questão metafísica, sequer transcendental.
Usurpada pela ciência, ela se desenvolve de acordo com um conjunto
de leis que regem o desenvolvimento da inteligência da criança. O
governo da razão prática pela pedagogia, pois, se torna, doravante,
prisioneiro da psicologia.
As leis regentes do desenvolvimento da moral da criança,
identificadas pela psicologia genética de Jean Piaget, têm pretensões
universais, pois que são científicas. Rezam elas, contudo, que a educação
moral do homem pode ou não atingir sua forma mais desenvolvida,
o “sujeito autogovernado”, a depender do grau de evolução da
sociedade a qual pertence este sujeito:
A moral da heteronomia e do respeito unilateral parece
corresponder à moral das prescrições e das interdições rituais
[tabus], próprias das sociedades ditas “primitivas”, nas quais o
respeito aos costumes encarnados nos anciões prima sobre a
manifestação da personalidade. A moral de cooperação, ao
contrário, é um produto relativamente recente da diferenciação
social e do individualismo que resulta do tipo “civilizado” de
O governo da razão: escolarização, subjetivação e psicologia genética
155
solidariedade. Em nossas sociedades, conseqüentemente, o
próprio conteúdo moral é, em síntese, o da cooperação. Dito de
outro modo, as regras prescritas, mesmo que na forma de deveres
categóricos e imperativos de motivos religiosos, não contém, a
título de matéria, mais que o ideal de justiça e de reciprocidade
próprios à moral do respeito mútuo. Somente cada um, tendo
em vista a educação que recebeu, pode, no que concerne à forma,
diferenciar o sentimento do dever do livre consentimento próprio
do sentimento do bem (PIAGET, 1996, p. 9).
Iniciamos nosso trabalho sublinhando que Foucault e Piaget
concordam que o tempo da inocência é do governo dos outros. O
tempo da inocência é o tempo da infância, seja ela do sujeito epistêmico
em sua dimensão sincrônica ou diacrônica. Perder a inocência, contudo,
é para Piaget condição necessária para que se evolua de um modo
primitivo a um modo civilizado de solidariedade. Para ele, o
individualismo de nosso tempo é sintoma de evolução de um estágio
de moral heterônoma para um estágio de moral autônoma. É mister,
pois que assim determina as leis da psicologia genética, que o fim da
educação moral seja a produção de sujeitos autogovernados. E para
que a pedagogia possa reger esta produção, necessário se faz que ela
recorra aos métodos ativos:
Para os participantes da escola ativa, a educação moral não constitui
uma matéria especial de ensino, mas um aspecto particular da
totalidade do sistema. Dito de outro modo, a educação forma
um todo, e a atividade que a criança executa com relação a uma das
disciplinas escolares supõe o esforço de caráter e um conjunto de
condutas morais, assim como supõe uma certa tensão da
inteligência e mobilização de interesses. Esteja ocupada em
analisar regras da gramática, a resolver um problema de
matemática ou a comentar um ponto da história, a criança que
trabalha “ativamente” é obrigada, não só diante de si, mas diante
do grupo social que é a classe ou a equipe da qual faz parte, a
comportar-se de modo muito diferente do aluno tradicional que
escuta uma lição ou realiza um “dever” escolar. Enquanto neste
tudo reconduz à obediência e às virtudes a ela ligadas, isto é, a
moral do respeito unilateral, naquele, ao contrário, a investigação
156
Paulo Gurgel
escolar implica as mesmas qualidades pessoais e as mesmas
condutas coletivas de ajuda recíproca, de respeito na discussão, de
desinteresse e de objetividade que a pesquisa científica dos
intelectuais adultos. A classe constitui assim uma organização de
trabalho e evidencia-se que a vida moral está intimamente ligada
a toda atividade escolar. A educação do caráter é, em particular,
singularmente intensificada e, para canalizar as atitudes e para
construir o controle pessoal, não é necessário recorrer a meios
exteriores artificiais: o próprio princípio da atividade conduz a
estes resultados (PIAGET, 1996, p. 20-21, grifo nosso).
Razão prática que a tudo ativamente atravessa porque é inerente
ao próprio princípio da atividade. E assim, estando a educação moral
inerentemente ligada a toda e qualquer atividade de governo da razão
pura, não podemos, portanto, concordar com Jones & Williamson
(1979) que identificaram na secularização da escola um retraimento
das questões morais ao nível dos discursos pedagógicos do final do
século XIX e início do século XX. Em verdade, o que vemos, tomando
como base a citação de Jean Piaget, é uma inflação do governo da
razão prática, agora inserida em todo o processo de aprendizagem.
Ainda que possa nos parecer paradoxal, a inflação do governo
da razão prática pela escola não significa que a escola do século XX se
aproxime das instituições disciplinares abordadas por Michel Foucault
(1979) em Vigiar e Punir e que, segundo ele, caracterizaram as
sociedades ocidentais do século XVIII e XIX. Na “escola nova” o
ideal panóptico de Benthan (cf. FOUCAULT, 1979) se torna uma questão
de fórum íntimo – fagocitado pelo self, torna-se um problema não de
governo, mas de autogoverno:
O self deve se tornar um ser subjetivo, ele deve aspirar por
autonomia, deve lutar por sua realização pessoal em sua vida
terrena, ele deve interpretar sua realidade e seu destino como
problema de sua responsabilidade individual para encontrar o
sentido de sua existência formatando sua vida através de atos de
escolha. Estas formas de pensar os seres humanos como selves,
e estas formas de julgá-los, estão ligadas a certas formas de atuar
sobre estes selves. A orientação dos selves não mais depende da
O governo da razão: escolarização, subjetivação e psicologia genética
157
autoridade religiosa ou da moralidade tradicional; ela é agora
responsabilidade dos “experts em subjetividade” que
transfiguram questões existenciais sobre o sentido da vida e do
significado do sofrimento em questões teóricas sobre as formas
mais efetivas de gerir disfunções e de melhorar a qualidade de
vida (ROSE, 1998, p. 151, tradução nossa).
A escola, pois, não deve ser pensada como simples
estacionamento de crianças para pais trabalhadores. Ela é, sobretudo,
o lugar em que subjetividades são produzidas e o são de acordo com
o credo que rege o métier psicopedagógico em determinado instante da
história. É isto que permite a Piaget enunciar que o governo da razão
prática na “escola nova” não se configura como um exercício particular,
mas transversal da razão.
Os novos métodos, portanto, surgem para atender esta
demanda de um longo governo da razão pela escola em sua função
de produzir sujeitos autogovernados. Produção esta estritamente
controlada por experts em subjetividade que, pautados nos científicos
conhecimentos da psicologia do desenvolvimento, estão autorizados a
produzir uma série de tecnologias pedagógicas capazes de garantir o
sucesso da empresa educativa. Vejamos um exemplo deste arsenal
tecnológico que foi apresentado pelo próprio Jean Piaget em sua
conferência sobre a educação moral. O nome do instrumento é Liga
da Bondade e foi, segundo ele, apresentada pela primeira vez em 1912
no Congresso de Educação Moral de La Haya:
Para fazer parte da liga da bondade a criança se compromete,
simplesmente, a perguntar-se, todas as manhãs, o que poderá
fazer de bom durante o dia. À noite deve dar-se conta do resultado
de seus esforços e lembrar-se do bem que tenha desejado fazer
ao seu redor. Os resultados, quaisquer que sejam, tratem-se de
vitórias ou fracassos, são escritos numa folha não assinada que a
criança deposita numa caixa colocada na classe para este fim. Essas
anotações anônimas são lidas na classe durante a aula de moral.
O sucesso desse método tão simples tem sido surpreendente e
contrasta com a carência de benefícios dos métodos puramente
158
Paulo Gurgel
verbais. De onde vem este sucesso? Em primeiro lugar evidenciase que toda a atenção está colocada sobre a própria atividade da
criança e não sobre o seu discurso. Os assuntos que servem de
matéria para a reflexão moral não são episódios históricos ou
fictícios, que o professor propõe arbitrariamente e que se mantém
exteriores aos interesses espontâneos do aluno: são os próprios
atos das crianças. Em segundo lugar, pelo fato de haver uma liga,
uma mutualidade é criada entre as crianças e um forte empenho
conjunto é assim desencadeado. [...]. É assim que, em muitos
casos, são as próprias crianças que designam o titular do prêmio
anual das ligas. Esta flexibilidade permite, então, um livre progredir
do autogoverno e da atividade da criança (PIAGET, 1996, p. 25).
Qualquer semelhança com as práticas confessionais da pastoral
cristã não é pura coincidência. Meticulosamente o aluno é incitado,
pelo seu sucesso, a confessar seus pecados e submetê-los ao julgamento
de sua comunidade. Não obstante, não é mais o padre aquele que
julga as ações de suas ovelhas e lhes confere penitências ou bênçãos. É
o professor, que por sua autoridade inteligente, apenas guia o processo
de confissão e de julgamento. São as próprias crianças, por meio de
sua atividade, que constroem um autogoverno dos atos morais dos
membros do grupo. A confissão se seculariza e a ordem religiosa se
laiciza. Nem padres e nem fiéis, mas professores e alunos. “E tudo isto
abençoado pelo poder do evangelho segundo a psicologia genética”.
Resta-nos, enfim, brevemente sublinhar a razão pela qual o
autogoverno se tornou o fim último da educação em democracias
liberais do século XX. Em tempos de neoliberalismo que agora
vivemos, é no mínimo redundante recordar que o liberalismo é uma
doutrina de governo que se caracteriza pela arte de minimamente
governar uma comunidade de cidadãos livres. A liberdade não é,
contudo, uma categoria transcendental: “é a resultante de um conjunto
de tecnologias de produção de sujeitos a partir de regimes de verdades
instituídos por especialistas em subjetividade”. Dentre estes, certamente,
destacam-se os especialistas em educação que compuseram o métier
psicopedagógico do século passado.
O governo da razão: escolarização, subjetivação e psicologia genética
159
THE GOVERNMENT OF REASON: EDUCATION,
SUBJECTIVENESS AND GENETIC PSYCHOLOGY
Abstract: This paper deals with the epistemic subject formatted by an institution
called school, a privileged space for the history of education throughout the 20th
century. An analysis of Jean Piaget´s genetic psychology in its relation with
pedagogical practices centered on the student will be conducted. Like technologies
designed to produce citizens in liberal and welfare times, these practices dictated
the ideals for governing reason and they are in the roots of the piagetian subject
in his synchronic and diachronic dimensions as well.
Keywords: Governmental. Subjectiveness and epistemology.
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160
Paulo Gurgel
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Cambridge: Cambridge University Press, 1998.
HEIDEGGER EDUCADOR: ACERCA DO
APRENDER E DO ENSINAR
Roberto Saraiva Kahlmeyer-Mertens*
Resumo: O texto questiona a possibilidade do aprender/ensinar. Investigaremos
se a educação e seus conteúdos podem ser considerados mathematas (para os
gregos: “aquilo que pode ser aprendido”). Apresentaremos as contribuições
que Heidegger traz à Filosofia da Educação ao afirmar que todo ensinar é
reconduzir quem aprende ao “lugar” de todo aprender. Assim, o aprender/
ensinar seria recordar desta instância na qual se constituem os significados capazes
de orientar a existência deste indivíduo que aprende.
Palavras-chave: Aprender. Ensinar. Mathematas. Filosofia da educação.
Heidegger não é um educador. Não, se entendermos por
educador um “teórico da educação”. Heidegger1 é um pensador da
filosofia; estando, pois, envolvido com questões específicas e
Doutorando em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Docente
do Centro Universitário Plínio Leite (Unipli). Autor de Filosofia primeira: estudos
sobre Heidegger e outros autores. Rio de Janeiro: Papel & Virtual, 2004. E-mail:
[email protected].
1
Martin Heidegger: Nascido em Messkirch/Alemanha em 1889. Foi docente da
Universidade de Freiburg de 1924-1945, na qual também foi Reitor em 1933. Aluno e
assistente de E. Husserl, teve seu nome ligado a escolas como a Fenomenologia e o
Existencialismo, foi professor de nomes como H. Marcuse, H. Arendt, H-G. Gadamer, E.
Lévinas e H. Jonas. Morreu em 1976.
*
APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano III n. 4 p. 161-171
2005
162
Roberto Saraiva Kahlmeyer-Mertens
concernentes a um fenômeno histórico chamado “metafísica”. A
metafísica, entre suas muitas conceituações, é a chamada “ciência objetiva
da verdade”, procedimento especulativo que visa determinar a verdade
das coisas em seu ser. Assim como a maioria dos pensadores, Heidegger
esteve envolvido com a atividade docente. Lecionou filosofia: era
professor. Ocupou-se com o ensino de filosofia durante toda a vida,
ministrando cursos e conferências, inclusive em outros países.
O melhor testemunho de sua aplicação à prática educativa
encontramos em textos escritos especialmente para a cátedra (visando
o apoio à leitura de seus alunos) ou na forma de preleções.2 Nesses
textos, presenciamos demonstrações da preocupação do autor em
adequar seus métodos ao perfil de seus alunos, utilizando uma linguagem
didática e imagens acuradamente escolhidas para ilustrar e esclarecer
idéias mais abstratas.3
Embora considerando isso, é forçosa a pretensão de incluir
Heidegger no rol dos pensadores da educação, pois, em sua obra, o
autor apenas sinaliza, de maneira esparsa, suas concepções pedagógicas;
este material ainda seria insuficiente para constituir o corpus de uma
teoria educacional. Entretanto, tendo sido um pensador da filosofia, e
não pedagogo, Heidegger trouxe profundas contribuições para as ditas
Ciências Humanas (KNELLER, 1971), inclusive à educação, na medida
em que empreendeu toda uma investigação acerca do sentido do ser e
da existência do Homem. Seu trabalho possibilitou que certos conceitos
fundamentais ao pensamento ocidental pudessem ser pensados a partir
de novos paradigmas, permitindo que noções tradicionais como as de
razão, sujeito, indivíduo, existência etc, ganhassem nova compreensão
e abordagem.
Na educação dita “tradicional”, (centrada em concepções como
as de subjetividade, intelecto e conhecimento, pressupondo o indivíduo
como algo dado essencialmente) as idéias de Heidegger provocaram
2
As chamadas Vorlesungen, modalidade de curso ainda muito usada na Alemanha que
consiste basicamente na leitura de um texto do mestre diante da turma. Textos que são
usualmente reunidos e publicados após a apresentação do curso.
3
Características nem sempre observadas em seus tratados e conferências.
Heidegger educador: acerca do aprender e do ensinar
163
transformações capazes de serem observadas naquela que Demerval
Saviani (1995) chama de “concepção humanista moderna de Filosofia
da Educação”. Esta, por oposição à primeira, pauta-se na vida, na
existência, nos afetos e nas atitudes, caracterizando-se como uma postura
de leitura da vida e do mundo sem que o indivíduo estivesse afastado
como mero espectador. Para essa postura humanista, que se apóia em
escolas como o Vitalismo, a Fenomenologia e o Existencialismo,4 o
indivíduo é sempre ator, sendo na medida em que existe,
experimentando a si próprio na existência, estando envolvido com o
pensamento e sentimentos; já compreendendo o mundo a partir destes
sentimentos. Saviani enfatiza estes traços enquanto comenta a
apropriação que alguns educadores fizeram a partir dessas idéias. O
autor aponta também o conceito que podemos fazer de indivíduo
desde esta perspectiva:
Atualmente alguns educadores buscam rever suas posições
pedagógicas à luz da fenomenologia e do existencialismo [Husserl,
Merleau-Ponty, Heidegger]. [...] registrei de modo explícito essa
diferença matriz ao afirmar que a referida concepção admite a
existência de formas descontínuas da educação [...] na medida
em que, em vez de considerar a educação como um processo
continuado, obedecendo a esquemas predefinidos, seguindo uma
ordem lógica, considera-se que a educação segue o ritmo vital que
é variado, determinado pelas diferenças existenciais ao nível dos
indivíduos; admite idas e vindas com predominância do
psicológico sobre o lógico; num segundo sentido [mais restrito
e especificamente existencialista], na medida em que os momentos
verdadeiramente educativos são considerados raros, passageiros,
instantâneos [...]. Acontecem independentemente da vontade
ou de preparação. Tudo ao que se pode fazer é estar predisposto
e atento a esta possibilidade (SAVIANI, 1995, p. 72).
Correntes filosóficas de grande vulto no início do século XX junto à filosofia européia,
tendo influenciado o restante da produção filosófica deste século. Um exemplo da
importância dessas escolas pode ser observado na obra de autores como Paulo Freire,
quando, em seu livro Pedagogia do oprimido, encontramos notas de rodapé referentes
a estes nomes; declarando a influência que o autor brasileiro sofreu do chamado
“Existencialismo Cristão”, corrente derivada destas escolas filosóficas (FREIRE , 1983).
4
164
Roberto Saraiva Kahlmeyer-Mertens
Após esta introdução, que teve por intuito apresentar a figura
de Heidegger, a importância e ambiência de suas idéias, temos o
propósito de pensar, com base em diversas passagens seletas da obra
do autor, algumas reflexões sobre a compreensão que o autor faz do
aprender/ensinar, buscando pontuar, através de um “enfoque
filosófico”, possíveis contribuições de Heidegger para a História da
Filosofia da Educação. Este exercício justifica-se por tratar de
“conceitos considerados fundamentais” à educação e recorrentes à
pauta dos autores da Filosofia da Educação, justamente por constituir
seus “princípios”,sendo, pois, “condição de possibilidade” a todo
processo, “prática e discurso educacional”.
O texto ocupa-se dos conceitos de aprendizado e ensino a partir
da análise que o autor faz do conceito grego de mathemata, presente
principalmente no livro O que é uma coisa? (1962).
Reunimo-nos em torno da “pergunta pela possibilidade do ensino”,
questão persistente que um dia se afirma a todo professor comprometido
com seu ofício. Buscaremos interpretar esta pergunta como um vocativo
e uma boa ocasião para pensar naquilo que fazemos quando estamos
em sala de aula diante de nossos alunos. É neste momento singular que
devemos deixar se afirmar a pergunta: “É possível ensinar algo a
alguém?” Entretanto, esta pergunta não espera uma resposta cabal para
si; isto é, um sim ou um não e depois um conjunto de proposições
capazes de justificar argumentativamente a opção por sua afirmativa ou
negativa, mas um exercício de reflexão que, dando um “passo para
trás”, questiona sua possibilidade e o fazer de quem se ocupa dela.
Observa-se que a colocação da pergunta “é possível ensinar
algo a alguém?” parece não durar muito, pois, ao invés de a
experimentarmos serenamente, logo desconsideramos sua gravidade
na busca de uma intelecção lógica seguida de resposta. Daí, passamos
a ter novas perguntas derivadas da primeira por decomposição: o que
é ensinar? (sua variante, o que é aprender?) Ensinar o quê? Ensinar a
quem? E assim, mesmo antes de experimentarmos radicalmente esses
novos questionamentos, novamente nos arvoramos a dar respostas.
Heidegger educador: acerca do aprender e do ensinar
165
É possível, então, que a pergunta pela possibilidade do ensinar
seja respondida simploriamente. Afinal, deduz-se que ensinar o que
quer que seja é possível, pois, denotativamente, não seria mais que
ministrar, de maneira unilateral, conteúdos que o professor previamente
possui, ao aluno que ainda não os tem e supostamente necessita. Ou,
usando uma linguagem muito celebrada neste início de século XXI:
aparelhar os indivíduos com os instrumentos necessários para a
assimilação das muitas informações produzidas por esta nova
Era, possibilitando aos indivíduos a orientação para a plena
realização de seus projetos e desenvolvimento individual.
Isto faz com que a atividade docente se reduza a uma instrução,
ou seja, uma transferência de informações e procedimentos.
Este modo de conceber o problema é o mesmo que reputa
supérflua a pergunta pela natureza do aprender/ensinar. Questão que,
uma vez colocada, transgrediria as normas do bom senso acadêmico
e da metodologia pragmática, tão prezada pelas atuais correntes da
educação. Afinal, parece ser mais que claro que o ensinar é possível.
Contudo, esta pressuposição (a qual não deixamos de ter, caso contrário
não seríamos professores) adquiriu com o tempo uma rigidez que,
por vezes, impossibilita o professor de rever o fazer que lhe é próprio,
questionando seu modo de ser.
O exercício que propomos, do modo com que questionamos,
vem perguntar pela autêntica possibilidade da educação, pensando este
problema a partir do aprender/ensinar. Presumimos que a condução
desta idéia deverá descortinar adiante o sentido da educação, cuja
possibilidade de aprendizado e ensino parte da requisição colocada
por Heidegger, segundo a qual, o que quer que possa ser ensinado,
deve ser necessariamente matemática.
Entendemos matemática não como a ciência que investiga as
relações abstratas entre entidades numéricas, capazes de ser observadas
a partir de suas operações lógicas, mas como Heidegger nos descreve,
segundo sua compreensão primeira junto aos gregos antigos:
166
Roberto Saraiva Kahlmeyer-Mertens
O “matemático”, segundo a origem etimológica, resulta do grego
tá mathemata, o que se pode aprender e, ao mesmo tempo; em
conseqüência, o que se pode ensinar. Manthanoein significa
aprender. Mathesis significa lição e, na verdade, num duplo
sentido: lição no sentido de “ir a uma lição e aprender” e lição
como “aquilo que é ensinado”. Ensinar e aprender são aqui
tomados num sentido lato e, ao mesmo tempo, essencial, não
no sentido estrito tardio, utilizado na escola pelos doutos
(HEIDEGGER, 1987, p. 76).
É segundo esta compreensão de matemático que deve ser
entendido o conhecido lema do Liceu de Platão, que traz inscrito em
seu pórtico o seguinte: “Afaste-se daqui quem não sabe matemática”
(sic). De acordo com essa nova acepção apresentada no comentário
acima, a epígrafe platônica poderia ser interpretada como: “Afaste-se
daqui quem não sabe aprender”. A afirmativa de Heidegger remonta
a isto, mais que a uma restrição aos não hábeis em efetuar cálculos,
apresentando a matemática como um pré-requisito para quem deseja,
efetivamente, aprender o que quer que seja.
Ao conceito de mathemata são atribuídas muitas determinações,
algumas bem específicas, as quais enumeramos apenas as principais: a)
coisas físicas, na medida em que se dão por si mesmas; b) coisas
produzidas, que chegam a nós através do trabalho do homem; c)
coisas no uso, sendo, pois, os instrumentos, ferramentas, aparelhos
utilizados para auxiliar a execução de ocupações e tarefas. Este último
enfatiza o aspecto de prática (práxis), no sentido de ação, exercício ou
uso situacional, servindo mesmo como suporte para as demais
compreensões de mathemata (HEIDEGGER, 1987).
Notemos que todas as determinações da mathemata possuem
algo em comum, dizem respeito ao modo de ser das coisas em uma
determinada perspectiva; ou seja, já desde uma orientação das coisas,
desde um modo de aprender. Neste momento, é preciso que
confirmemos nossos termos, à guisa de uma compreensão segura do
problema:
Heidegger educador: acerca do aprender e do ensinar
167
Mathesis significa aprender; mathemata, o que se pode aprender.
De acordo com o que foi dito, as coisas são visadas com esta
designação, na medida em que se podem aprender. Aprender é
um modo de aprender e do apropriar-se (HEIDEGGER, 1987).
O que Heidegger pretende apontar com essa passagem é que
aprender, em sentido rigoroso, não é tomar as coisas como suas,
prontamente (isto é, em um momento não se conhece um objeto, e no
momento seguinte, após ter sido experimentado este objeto, passa-se
a tê-lo como empiricamente conhecido). Para nosso autor, a relação
com o objeto do aprendizado dá-se a partir de um exercício; nisso
fica marcado enfaticamente o caráter prático do aprender como um
dos sentidos do mathemata, exercício que conduz quem aprende a
aprender a apreender (sic).5
Com esta consideração, Heidegger marca posição frente a autores da educação que
teorizam sobre o modo com o qual ocorre o processo do aprendizado. Autores cujo
breve contraponto nos parece oportuno para comparações eventuais. Comenius talvez
seja a primeira figura da História da Educação a afirmar algo sobre a natureza do aprendizado.
Para este autor [um monge luterano formado à luz dos dogmas do texto bíblico], o
indivíduo tem sua natureza inicialmente perfeita; criado à imagem e semelhança divina.
Pela desobediência a Deus [pecado original] o homem decai deste estado, assumindo
para si a instabilidade e a desarmonia, passando a ter, doravante, a tarefa de “conquistar a
cada instante” o estado perfeito do momento da criação. Para Comenius, o aprender é o
veículo que viabiliza esta recondução à natureza perfeita criada por Deus, posto que “Um
dos primeiros ensinamentos que a Sagrada Escritura nos dá é este: sob o sol não há outro
caminho mais eficaz para corrigir as corrupções humanas que a reta educação da juventude”
(COMENIUS, 2002). Outra figura importante a esta temática é Lev Vygotsky. Para este autor, o
aprendizado é produto de uma relação constante e ininterrupta com o mundo, o que
colabora para endossar sua convicção de que o modo com que cada indivíduo apreende
o mundo é singular. Jean Piaget enxerga o aprender através da relação do indivíduo com
o mundo, edificando uma subjetividade composta por faculdades cognitivas em constante
desenvolvimento construído na experiência (ARAÚJO apud P ELLEGRINI, 2001). A mesma
pressuposição aparece em Gardner, quando este autor “cartografa” o indivíduo que
aprende, propondo diversos tipos de inteligências capazes de comandar habilidades
diferenciadas em cada indivíduo, investigação que atualmente se expande, apontando
novas múltiplas inteligências e enfocando a educação para o século XXI. A concepção
que Heidegger tem do aprender tem pontos de semelhança com a visão construtivista da
educação piagetiana, posto que o autor acredita que “O autêntico pensar não pode ser
apreendido nos livros. Também não pode ser ensinado, se o mestre não continuar sendo
um discípulo até a velhice” (HEIDEGGER , 2001, p. 251). Esta proposição parece tanger
aquelas que reconhecemos como as quatro principais teses do modelo construtivista, que
seriam: 1. Aprendemos a partir da experiência dada na situação de aprendizagem, mas
também do sentido dos conhecimentos prévios; 2. Apreendemos organizadamente
fazendo a distinção entre conhecimento declarativo (aprender “o quê”) e conhecimento processual
ou procedimental (aprender “como”); 3. O indivíduo que aprende tem a responsabilidade
em ocupar-se de sua própria aprendizagem; 4. quem aprende constrói seu aprendizado
de maneira ativa, reconduzindo-se a suas referências prévias, à identidade do que é
apreendido (SEQUEIROS, 2000).
5
168
Roberto Saraiva Kahlmeyer-Mertens
Assim, quando aprendemos o que quer que seja, já o fazemos
desde a recondução do aprendido a um sentido que lhe é próprio, e
que de antemão possuíamos, ou como Heidegger nos assegura:
Na verdade, este “tomar conhecimento” é a essência autêntica do
conhecer, a mathesis. As mathematas são as coisas, na medida em
que as tomamos no conhecimento, enquanto tomamos
conhecimento delas, como aquilo que verdadeiramente já sabemos
de modo antecipado: o corpo como corporeidade; na planta, a
vegetalidade; no animal, a animalidade; na coisa a coisidade etc.
Este verdadeiro aprender é, por conseqüência, um tomar muito
peculiar, um tomar no qual aquele que toma, toma,
fundamentalmente, aquilo que já tem. A este aprender corresponde,
também, o ensinar. Ensinar é um dar, um oferecer; no ensinar,
não é oferecido o ensinável, mas é dada somente ao aluno a indicação
de ele tomar aquilo que já tem (HEIDEGGER, 1987, p. 79).
Aqui, Heidegger aponta que o aprender/ensinar dá-se em um
tipo de relação com as mathematas, capaz de estabelecer uma identidade
entre “quem aprende e o que é apreendido”. É isso que Heidegger
quer dizer quando afirma que ensinar é indicar a quem deseja aprender
aquilo que já se tem. Daí, a tarefa premente de quem ensina (do
professor) é “oferecer a oportunidade de o aluno reconhecer em si
esta identidade fundamental e como a mesma se dá”. Pois, o ensinar,
segundo Heidegger, nada mais é do que provocar o aluno a descobrir
um sentido próprio a si e à própria necessidade do seu aprender.
O conceito de sentido é caro ao pensamento de Heidegger,
pois, para este autor esta experiência diz respeito ao contexto no qual
se mantém a possibilidade das coisas se darem em seu ser. Do mesmo
modo, sentido é o que orienta o horizonte de realização de um indivíduo,
na medida em que este revela uma perspectiva própria a seu projeto
existencial através da qual construirá seu acesso ao aprendizado.
O ensinar, então, torna-se a tarefa heurística que revela sentido,
que faz com que o aprender tenha sentido, daí: “dizer que o ente tem
sentido significa que ele se tornou acessível em seu ser, que só então,
projetado em sua perspectiva, ele propriamente tem sentido”
(HEIDEGGER, 1996, grifos do autor).
Heidegger educador: acerca do aprender e do ensinar
169
Estamos convencidos de que nisso reside a compreensão mais
própria do aprender/ensinar, tal qual nos expressa o termo latino
educare, que em sua etimologia indica um “trazer para fora”, um “tirar
de...”; depois, acumulando também o sentido de criar. Constatação
que, por si só, ratifica a improcedência do modelo de professor enquanto
aquele que possuiria a mera tarefa de ministrar conteúdos, tal como
mencionamos anteriormente. Pois, para Heidegger:
Quando o aluno recebe apenas qualquer coisa oferecida, não
aprende. Aprende pela primeira vez, quando experimenta aquilo
que toma como sendo o que, verdadeiramente, já tem. O
verdadeiro aprender está, pela primeira vez, onde o tomar aquilo
que já se tem é um dar a si mesmo e é experimentado enquanto
tal [sentido]. Por isso, ensinar não significa senão deixar os
outros aprender, quer dizer, um conduzir mútuo até a
aprendizagem. Aprender é mais difícil do que ensinar; assim,
somente quem pode aprender verdadeiramente – e somente na
medida em que tal consegue – pode verdadeiramente ensinar
(HEIDEGGER, 1987, p. 79-80).
Segundo o autor, o aluno não aprende verdadeiramente o que
lhe é transferido, pois isto não lhe diz respeito, pois isto não faz sentido.
É preciso, portanto, que o aluno esteja ocupado na tarefa de descobrir
um sentido próprio a si. Cuidando, portanto, por aprender a colocarse numa perspectiva através da qual lhe seja possível aprender
verdadeiramente desde sua existência individual. Pois, somente assim
o aprendizado é autêntico.
Nesses termos, ainda segundo a citação de Heidegger, o
professor diferencia-se do aluno somente por ter diante de si, de maneira
mais clara, o aprender em sua forma mais autêntica; daí outra afirmação
do mesmo autor: “Em todo ensinar, professor é quem mais aprende”
(HEIDEGGER, 1987).6
Esta proposição de Heidegger se assemelha a certas assertivas que Paulo Freire (1983) faz
em muitos momentos de sua obra. Freire certamente concordaria com esta proposição
heideggeriana, contanto que permanecesse resguardada a ambivalência deste professor
que aprende enquanto educador-educando, na medida em que o professor é que mais
aprende por também está aberto a aprender com seus alunos, processo que o autor
alemão chamou de “um conduzir mútuo até a aprendizagem”.
6
170
Roberto Saraiva Kahlmeyer-Mertens
Aprender/ensinar é, segundo Heidegger, reconduzir-se a um
lugar no qual se pode descobrir um sentido próprio ao indivíduo que
aprende, ao que é aprendido de maneira temática (e até mesmo
curricular) sem, contudo, perder de vista seu sentido originário;
possibilitar um sentido orientador da perspectiva de sua existência do
indivíduo. Em vista disso, ensinar é ensinar uma “postura”, é ensinar o
aluno a se reportar ao ethos de todo aprender, é dar através de um
relato a indicação que conduzirá o aluno ao seu aprender. Por isso, só
faz sentido ensinar quem está pré-disposto a aprender, ou seja, a ouvir
o tal relato. Pois tal relatar atinge apenas aquele que um dia experimentou
a possibilidade fundamental de apreender um sentido próprio a si.
Todas estas proposições sobre a natureza do aprender/ensinar
talvez se resumissem ao que Heidegger, parafraseando Nietzsche,
chama de:
Saber-se de si fora do vulgar: tornar-se sabedor de si mesmo, não
só como indivíduo, mas como humanidade. Reflitamos,
recordemos: percorramos os pequenos e os grandes caminhos
(NIETZSCHE apud HEIDEGGER, 1987, p. 48).
À guisa de conclusão, é preciso considerar que muitas das idéias
contidas neste texto possuem relação com diversos conceitos do
pensamento de Heidegger (não abordados aqui de maneira rigorosa),
principalmente no período em que o autor está envolvido com a
“analítica existencial”, investigação empreendida na obra Ser e tempo
(1927). No referido, presenciamos as noções de existência, “ser-nomundo”, “ser-com-o-outro”, “ser-junto”, “ocupação”,
“preocupação”, “sentido” e, ainda, a noção de “cuidado”. Esta última
explorada por diversos autores que tentam pensar as implicações éticas
deste conceito (H ODGE , 1995). A reflexão sobre “Filosofia da
Educação” empreendida aqui aponta para um desdobramento futuro,
ainda em fase de pesquisa, que busca pensar o conceito de cuidado
neste mesmo âmbito.
Heidegger educador: acerca do aprender e do ensinar
171
HEIDEGGER, THE EDUCATOR: ON LEARNING AND TEACHING
Abstract: The aim of this essay is to question the possibility of learning/
teaching. For that purpose, we will investigate if education can be considered
mathematas. We will present Heidegger’s contributions to the Philosophy of
Education, when he states that all teaching process reconducts the one who
learns to the “place” of learning. Thus, the learning/teaching process would be
the remembrance of instances in which the whole group of meanings enable
the existence of the one who learns.
Keywords: Learning. Teaching. Mathematas. Philosophy of education.
Referências bibliográficas
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Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
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e Maria de Fátima de Almeida Prado. São Paulo: Educ; Petrópolis:
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HODGE, Joanna. Heidegger e a ética. Tradução de Gonçalo
Couceiro Feio. Lisboa: Instituto Piaget,1995.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 12. ed. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1983.
KNELLER, George F. Introdução à filosofia da educação.
Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar, 1971.
PELLEGRINI, Denise. Aprenda com eles e ensine melhor. Nova
Escola, São Paulo: Abril, n. 139, ano 16, p. 19-25, 2001.
SAVIANI, Demerval. Escola e democracia – polêmicas de nosso
tempo. Campinas: Autores Associados, 1995.
SEQUEIROS, Leandro. Educar para a solidariedade – projeto
didático para uma nova cultura de relações entre povos. São Paulo:
Artmed, 2000.
SARTRE, 100 ANOS
Se, vivo, Sartre estaria completando 100 anos. Mas é certo que,
mais que qualquer outro pensador do último século, sua vida ultrapassou
em muito os limites exíguos das marcações cronológicas. Mais que os
quase 75 anos vividos entre 1905 e 1980, mais que os cem anos que
agora se comemoram, a condição inigualável de pensador total deulhe, na verdade, e talvez para nunca mais, o caráter intemporal do
homem que compreende a integralidade de seu tempo, e que, portanto,
estando dentro dele mais do que qualquer outro, está também fora
dele, para além desse tempo que é o seu.
Último, possivelmente, a encarnar o ideal iluminista do Intelectual
pleno, do filósofo-ativista, cuja militância é a efetiva militância do
Pensamento em sua realização material, vivida, algo hoje já quase
incompreensível, talvez devêssemos encontrar aí o modo de explicação
do verdadeiro alcance e sentido da obra sartriana para nós, nesse ponto,
precisamente, já dele tão distantes: a coincidência intransigente entre
vida e pensamento, entre ação e avaliação. Ninguém pôde entender e
expressar melhor sua condição central do que de Gaulle quando, no
auge da Guerra da Argélia, aconselhado a decretar a prisão de Sartre
por seu incisivo ativismo anti-colonialista, respondeu com a frase: “Não
APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano III n. 4 p. 173-174
2005
174
Leonardo Maia Bastos Machado
se pode prender Voltaire”. E desde Sartre, de fato, ninguém mais pôde
exercer tamanha força de barragem sobre o poder.
Herói do pensamento, herói da literatura, herói da militância
política, Sartre o foi antes, porém, por renúncia, por sucessivos e
inesperados deslocamentos. Recusa em lecionar, renúncia ao Prêmio
Nobel ofertado em 1964, recusa, de todos os modos, como ele não
cessava de dizer, em “institucionalizar-se”.
Mas a comemoração do centenário é ocasião, ainda, para uma
reavaliação de sua filosofia. A partir de um certo período, Sartre tornarase o alvo preferencial de todo crítico, filósofo ou não-filósofo, à direita
ou à esquerda. Na Filosofia, o mote principal foi sempre o de que seu
pensamento, na verdade, era uma reprodução simplificada da
fenomenologia de Husserl e Heidegger. A distância no tempo já é
suficiente ao menos para nos mostrar que não é nada disso.
Muitos dos novos caminhos tomados na Filosofia, nesse último
século, que vieram acentuar seu distanciamento do período moderno,
tiveram em Sartre um agente fundamental, senão um precursor: uma
acepção impessoal ou a-subjetiva da transcendentalidade, retomada
por Deleuze, a “metodologização” do marxismo com vistas à
instauração de um (novo) pensamento material, levada adiante por nomes
como Althusser ou já Negri e Hardt, bem como as insistentes e preciosas
relações estabelecidas entre filosofia e literatura, hoje desenvolvidas
por Derrida, enfim, boa parte das principais formulações das filosofias
que lhe sucederam acabam por contar com a presença onipresente,
mesmo que até certo ponto inesperada de Sartre: deus in machina.
Assim, nesse atual tempo errático, de absolutas indefinições, sua
vida, sua filosofia, seus olhos tortos indicam-nos, mais que outros, a
direção conflitante e paradoxal que temos a seguir.
Em seu número 4, através de artigo do Professor Luciano
Donizetti, o APRENDER quer prestar homenagem a esse grande
pensador.
Leonardo Maia Bastos Machado
Professor da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb).
Editor Responsável.
EXISTENCIALISMO E EDUCAÇÃO – A FILOSOFIA
SARTRIANA DA LIBERDADE COMO
FUNDAMENTO PEDAGÓGICO?1
Luciano Donizetti da Silva*
Resumo: Este artigo tem como objetivo principal responder à seguinte questão:
a filosofia sartriana da liberdade pode fundamentar uma pedagogia? Para
respondê-la é preciso, antes de tudo, entender a noção de liberdade na filosofia
de Sartre, seu fundamento ontológico e sua explicitação fenomênica. A seguir, é
preciso haver-nos com as dificuldades decorrentes de tal liberdade, e assim buscar
uma pedagogia progressista que se paute pelo respeito à liberdade individual
que é, para Sartre, a razão de ser de todos os homens.
Palavras-chave: Sartre. Educação. Liberdade.
A Filosofia Sartriana da liberdade como fundamento pedagógico?
Não se trata de saber por que nós somos livres, mas quais são os
caminhos da liberdade. Sobre isso estamos em pleno acordo com
Hegel que afirmava: “Ninguém, nenhum homem pode ser livre, se
todos os homens não o são”.
Sartre(Écrits, As Moscas).
Esse trabalho foi financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São
Paulo (Fapesp).
*
Mestre em Filosofia Contemporânea pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Doutorando em História da Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
E-mail: [email protected].
1
APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano III n. 4 p. 175-200
2005
176
Luciano Donizetti da Silva
No dia quinze de abril de 1980 morria em Paris um dos maiores
pensadores de nosso tempo, Jean-Paul Sartre, escritor, dramaturgo,
novelista, político, ideólogo, anarquista, rebelde, ativista de esquerda e,
sobretudo, filósofo. Longe do frisson que causou no Brasil na década
de 60, a filosofia de Sartre começa lentamente a retomar seu lugar
como uma das mais importantes do século passado e, sem qualquer
dúvida, o filósofo é merecedor de atenção nesse novo século. Sua
obra, por demais vasta, comporta muitas mudanças e dificuldades
doutrinais; isso faz com que qualquer escrito sobre ele necessite de
uma clara delimitação, pois, do contrário, além de prejudicar a
compreensão de suas questões, pode-se retomar os velhos chavões
que mascaram o caráter eminentemente filosófico de seu pensamento.
Assim sendo, esse texto tem como objetivo preciso responder à
seguinte questão: a filosofia de Sartre pode fundamentar uma teoria
pedagógica?
Entenda-se que essa questão se desdobra numa diversidade de
outros problemas, tais como a relação entre uma filosofia da liberdade
e a instituição educacional, ou a relação entre currículo e a liberdade
individual, ou ainda, sobre como avaliar um aluno se o princípio é a
liberdade. E nossa questão se complica sobremaneira porque não há
nenhuma obra de Sartre que tematize especificamente a educação, além
de a bibliografia secundária sobre o tema ser escassa e, não raro,
equivocada com respeito a aspectos importantes da teoria sartriana.
Assim, faremos um exercício teórico, e deixaremos para os especialistas
em educação a tarefa de decidir sobre sua valia e aplicabilidade; aos
educadores fica a responsabilidade de, ainda que inseridos numa
determinada instituição de ensino, procurar espaços que possam ser
preenchidos pelas idéias que serão aqui discutidas.
Para tanto, esse ensaio será dividido em dois momentos: primeiro,
apresentaremos alguns aspectos técnicos da filosofia de Sartre, em
especial o conceito de existência e a conseqüente liberdade essencial.
Feito isso, será o momento de discutirmos as objeções a uma proposta
educacional que se fundamente no pensamento do filósofo; sobre esse
Existencialismo e educação
177
aspecto faremos uso de um artigo de Khemais Benhamida, que cumpre
justamente o papel de mostrar a inviabilidade dessa empreitada;2 é com
esse intuito que faremos, inicialmente, um estudo indicativo que busque
ser o mais fiel possível ao desenrolar da obra de Sartre. Antecipo que
uma enormidade de problemas secundários, e mesmo questões de
primeira importância, de interesse unicamente filosófico, serão
desconsiderados em vista da economia do texto; ainda assim, os
elementos fundamentais para uma introdução ao pensamento do
filósofo serão explicados. Esperamos que o leitor, ao final, possa estar
em condições de formular sua resposta sobre se o existencialismo pode
ou não contribuir para fundamentar uma pedagogia; será suficiente se
os pré-conceitos sobre a filosofia de Sartre forem dissipados e se,
independente da resposta, positiva ou negativa, para essa indagação,
que ela seja construída com base naquilo que o filósofo escreveu e não
naquilo que se acredita que ele tenha escrito.
Existencialismo e liberdade
A consciência se purificou, ela é clara como um grande vento, nada
mais há nela, salvo um movimento para se escapar, um resvalamento
para fora de si; se, ainda que impossível, vocês entrassem “em” uma
consciência, seriam tomados por um turbilhão e lançados para fora,
próximos a árvore, em plena poeira, pois a consciência não tem
“dentro”; ela não é senão o fora de si mesma e é essa fuga absoluta,
essa recusa de ser substância que a constituem como uma consciência.
Sartre (Uma idéia fundamental da fenomenologia de Husserl).
Falar em existencialismo requer que nos voltemos para a história
da Europa, que viveu muito de perto os efeitos das duas grandes
guerras, em especial a segunda. Terminado o conflito, em 1945, em
meio aos destroços e perdas, surge o que se convencionou chamar a
“moda existencialista”. Era natural que após a experiência da guerra as
BENHAMIDA, K. O Existencialismo de Sartre e a Educação: a falta de fundamentação
para as relações humanas. Educational Theory, Illinois (EUA), n. 23, p. 230-239, citado por
BURSTOW, B. The Sartre’s philosophy as foundation of the education. Tradução Newton
Ramos-de-Oliveira. Educação e Sociedade, Campinas: ano 21, n. 70, abr. 2000. Original:
Journal of Philosophy of Education, n. 2, v. 17, 1983, p. 171-185.
2
178
Luciano Donizetti da Silva
pessoas estivessem inconformadas e pessimistas com relação ao futuro;
e é nesse panorama que Sartre escreve O Existencialismo é um
humanismo, objetivando defendê-lo das críticas rasteiras das quais a
teoria era vítima (pessimista, quietista, não solidária, etc.). Não é de
espantar que, logo no início do texto, Sartre afirme que “A maior parte
das pessoas que utilizam este termo ficaria bem embaraçada se o quisesse
justificar”.3 Segundo Sartre, pode-se falar que um pintor ou um músico
é existencialista e, segundo a “moda”, isso apenas significaria uma
“postura” ante a vida – postura invariavelmente pessimista. Mas, nos
lembra ele, o Existencialismo é uma filosofia e, como tal, merece um
pouco mais de atenção.
Não é novidade, uma das expressões mais utilizadas (nem sempre
com propriedade) para explicar o existencialismo é a seguinte: “A
existência precede a essência”. Sartre pergunta se aqueles que fazem
uso dessa expressão compreendem “exatamente” qual seja seu sentido.
E responde que, não raro, a incompreensão é tamanha que faz com
que sejam cometidas as injustiças com respeito ao pensamento
existencialista. Assim, “Que significa aqui dizer que a existência precede
a essência? Significa que o homem primeiramente existe, se descobre,
surge no mundo; e que só depois se define”.4 Explicando melhor,
poderíamos perguntar qual é a essência de um objeto qualquer – e
determinaríamos, com base na técnica para fazê-lo e no objetivo para
o qual ele é feito, sua essência. Porém, o que responder sobre a essência
do homem? Que ele é um “animal racional”? Que ele é “um animal
político”? Que ele é uma “alma à imagem e semelhança de Deus que,
todavia, está presa num corpo”? Qual dessas respostas daria conta da
singularidade de cada um dos homens?
Nenhuma delas é claro! Porém, como Sartre exemplifica, se
perguntarmos sobre a essência de um livro, há uma receita para fazê-lo
(escrever, editar, imprimir, publicar, ler). Esse é, em resumo, o que
significa dizer que, no homem, a existência precede a essência; é também
3
SARTRE, J-P. O Existencialismo é um humanismo. Tradução de Vergílio Ferreira. São
Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 4. (Coleção Os Pensadores, v. Sartre).
4
Idem, ibidem, p. 6.
Existencialismo e educação
179
a origem do termo existencialismo. Mas há ainda uma possibilidade: e
se Deus for considerado o artífice que “faz” o homem, comportando
assim a essência humana? Sartre se adianta em afirmar-se ateu, e uma
vez que a noção de Deus seja excluída, estamos de posse do sentido
mais geral do existencialismo sartriano: Deus não faz o homem à sua
imagem e semelhança, do que decorre que o homem simplesmente
existe, tendo como sua essência aquilo que ele fizer dele mesmo.
Chegamos assim ao núcleo do problema, afinal, uma vez que o
homem não tem uma essência pré-determinada, mas “se escolhe”
ao longo de sua vida, ele é livre. Noutros termos, o homem é
“essencialmente livre”.
Há ainda uma outra expressão, também bastante popular,
utilizada para explicar a essência libertária da filosofia de Sartre: “O
homem está condenado a ser livre”. Parafraseando o filósofo, estou
certo que a maioria das pessoas que utilizam tal expressão se sentiriam
bastante desconcertadas se tentassem explicar seu sentido.O mesmo
pode ser dito da expressão utilizada por Garcin na peça Huis Clos,
também bastante popular: “O inferno são os outros”; essa, por sua
vez, é largamente utilizada para se referir à impossibilidade de
solidarização entre os homens, uma das conclusões mais difundidas e
equivocadas da obra de Sartre. Isso se deve, em parte, à popularidade
que o filósofo angariou com suas obras literárias e suas peças de teatro;
mas, infelizmente, é também devido à pouca seriedade com que a
academia trata seu pensamento.
O uso fácil e simplório do pensamento de Sartre tem sua origem
dentre os filósofos, se espalha para as demais áreas do conhecimento
e chega, inclusive, ao senso comum, onde tais equívocos seriam
aceitáveis. As razões para tal fenômeno, além da notória popularidade
que o filósofo alcançou com sua arte, têm uma origem comum: a
dificuldade, profundidade e extensão de sua teoria. Em suma, Sartre
iniciou seu pensamento em 1933, quando foi para Berlim estudar a
fenomenologia de Husserl e, pode-se dizer, apenas parou em 1980,
com sua morte. São, portanto, quarenta e sete anos de intenso trabalho
180
Luciano Donizetti da Silva
intelectual que tem, além de textos técnicos, peças de teatro, romances,
entrevistas, ensaios, cartas, roteiros para filmes, entre outros. Há ainda
as intervenções políticas que, por si só, justificariam um estudo. Assim
sendo, espero apresentar de forma sucinta, mas fiel, sua teoria da liberdade
e as possíveis implicações para que ela fundamente uma pedagogia.
O primeiro texto filosófico de Sartre é de 1934, ano que o
filósofo passou em Berlim estudando a Fenomenologia de Husserl.
Segundo ele, era preciso um pensamento que fizesse frente à filosofia
idealista (de cunho hegeliano e neo-kantiano) que era então disseminada
na França. E foi na Alemanha que Sartre conheceu a noção de
“intencionalidade da consciência”, segundo a qual toda consciência é
consciência de alguma coisa; noutros termos, a consciência “intenciona”
objetos diferentes dela. Mas, quais as conseqüências de tal descoberta?
Sartre utiliza o conceito de intencionalidade da consciência para fazer
frente ao psicologismo francês, em especial àquilo que esse considerava
os “conteúdos da consciência”. Ao afirmar que toda consciência é
consciência de algo que não é ela, Sartre está dizendo que a consciência
é “vazia”, que não pode ser determinada por nenhum objeto e, nem
por ela mesma.5 A consciência não é determinada por nada, uma vez
que ela “se dirige” livremente para onde quer que ela queira.
É por essa razão que o primeiro texto filosófico de Sartre é
uma crítica à noção de conteúdos de consciência, principalmente à
crença de que pelas sensações pode-se constituir a imagem de um
objeto na consciência.6 Expliquemo-nos: a concepção tradicional de
sensação, tal qual o senso comum, afirma que um determinado objeto
com o qual entramos em contato pode ser “revivido” na consciência,
ainda que tal objeto esteja ausente. Trata-se da “sensação remanescente”
e, desse modo (já que não se está em face do objeto mesmo) ele se
formaria na consciência. Ora, para Sartre, a intencionalidade mostra o
erro de tal concepção, e a urgência de libertar a consciência de tais
5
SARTRE, J-P. Une Idée Fondamentale de la Phénoménologie de Husserl: L’
Intentionnalite. Situations I. Paris: Gallimard, 1947
6
SARTE, J-P. La transcendance de l’ego: esquisse d’ une description phénoménologique.
Paris: Recherches Philosophiques, 1937.
Existencialismo e educação
181
conteúdos. Trata-se de mostrar o erro comum aos psicólogos de
afirmar que existe um aparato psíquico e que tal aparato determina o
indivíduo em suas escolhas cotidianas (tais como o Ego, Superego, Id,
etc.). Desse modo, a consciência poderia ser comparada a uma “caixa”
que processa sensações, colocando em risco sua espontaneidade e,
pior, sua liberdade.
O resultado da noção de intencionalidade da consciência é que
todo objeto, por princípio, está fora da consciência, está no mundo. O
mesmo se aplica às qualidades secundárias de cada objeto, tais como
cor, forma: todas elas pertencem ao objeto e, como tal, são
transcendentes. Entretanto, para aqueles que possam pensar que essa é
a razão da filosofia de Sartre ser identificada à liberdade, é bom dizer
que esse é apenas o primeiro passo. Uma vez que Sartre purificou o
campo transcendental de modo absoluto (a consciência é “intenção”
do transcendente), é preciso agora explicar como essa consciência,
purificada, se relaciona com o mundo. E note-se que se trata de uma
tarefa ingrata, afinal existe uma gama de pontos intermediários entre a
consciência intencional e o objeto físico; seria simples mostrar que um
cinzeiro, por exemplo, não faz parte da consciência (ele está no mundo),
mas como explicar que a lembrança que posso ter, nesse exato momento,
de minha mãe, não está em minha consciência, mas é transcendente?
Pior, como explicar que eu possa imaginar um centauro sem fazer
referência ao cavalo e ao homem, objetos do mundo que eu conheço,
sem concluir que eu fiz a “soma” dos dois em minha consciência?
Esses problemas ocuparam um breve período do pensamento
de Sartre, e foram tratados em duas obras que antecedem O Ser e o
Nada. Em A Imaginação Sartre mostra as falhas da concepção
clássica da imagem; em O Imaginário o filósofo apresenta sua resposta
para as questões que ele mesmo colocou.7 Trata-se de um trabalho de
fôlego acompanhar todos os meandros da teoria desenvolvida por
Sartre, mas em resumo, o que ele faz é mostrar que existem diferentes
7
A Imaginação e O Imaginário, cf. referências bibliográficas.
182
Luciano Donizetti da Silva
níveis de relação com o mundo, desde a intenção de um objeto físico
(que é visto) até as imagens que são formadas a partir, por exemplo,
de uma mancha num muro. Assim, trata-se da ação da consciência que
é diametralmente oposta à proximidade do analogon do objeto mesmo,
ou seja, quando intenciona um objeto físico, a consciência contribui o
menos possível; porém, quando se trata de uma mancha num muro, a
partir da qual é possível intencionar o rosto de Jesus, por exemplo, a
consciência colabora muito. Seja como for, o filósofo mostra que é
um erro considerar que a consciência possa ser entendida como uma
caixa que faz a adição de imagens que, previamente, estariam
armazenadas dentro dela. Tanto a translucidez da consciência quanto a
liberdade são mantidas.
Manter a consciência em sua absoluta espontaneidade e pureza,
que por certo, são a base para considerá-la livre, não é suficiente. A
filosofia de Sartre, após esse percurso, poderia facilmente ser identificada
ao idealismo, uma vez que passa a impressão de que o mundo pode
ser reduzido à imagem que dele é feita. Mesmo que Sartre tenha
mostrado que a consciência é livre em relação ao objeto, como explicar
que eu possa nesse exato momento intencionar essa folha em minha
frente e, no momento seguinte, de olhos fechados, intencionar a mesma
folha? Não parece que na mesma medida em que a consciência ganhou
em translucidez, o mundo perdeu em realidade? Que diferença há
entre a árvore, “na beira da estrada, empoeirada, rugosa”, e a árvore
que imagino? Apenas a intencionalidade da consciência não pode ser
suficiente, uma vez que seu destino certo é o idealismo. Sartre precisará
resolver essa questão.
E é justamente com esse intuito que o filósofo, já no final de O
Imaginário, se aproxima da filosofia de Heidegger, em especial do
conceito de situação. A esse respeito é preciso lembrar que o que levou
Sartre a aproximar-se da fenomenologia foi que ela apresentava a
possibilidade de superar a antinomia do realismo e do idealismo.8 A
8
BEAUVOIR, S. A força da Idade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 138 e 188.
Existencialismo e educação
183
intencionalidade permite libertar a consciência de quaisquer conteúdos,
sejam provenientes da sensibilidade ou do senso íntimo. Está assim
esboçado o primeiro momento da filosofia de Sartre que, a partir da
fenomenologia de Husserl, forja um argumento que “coloca a
consciência em relação direta com o objeto”.9 O Imaginário (1940)
distingue a matéria da percepção e da imaginação, passo fundamental
para diferenciar o “real” e o “irreal”, primeira alternativa de superar o
idealismo ao qual a “redução” levava. Para isso, Sartre recusa a primazia
do conhecimento – o juízo é posterior à existência. Assim ele
“reintegra” o homem ao mundo, já que “ser é”, e não “é pensado”. O
problema da relação com o mundo regride até sua gênese, tem seu
horizonte levado ao âmbito pré-reflexivo – trata-se do “homem-nomundo”, ou seja, a experiência filosófica passa a ter seu domínio naquilo
que a “antecede”, na “situação” (mundo e consciência sinteticamente
unidos) anterior à cisão entre sujeito e objeto.
A “união sintética do homem com o mundo” é, para Sartre, o
campo fenomenológico por excelência; a relação da consciência com
o transcendente é, portanto, o “concreto”.10
Com o trabalho de depuração do campo transcendental, Sartre
mostra a consciência como “nada de ser” (néant) e, por isso, em relação
sintética com o mundo. Ora, isso requer por sua vez explicar a relação
ontológica entre consciência e mundo. O problema de teoria do
conhecimento, que parecia estar na origem da antinomia do realismo e
O conhecimento ou pura “representação” é apenas uma das formas possíveis de minha
consciência “desta” árvore. Posso amá-la, temê-la, odiá-la, e esse ultrapassamento da
consciência por si mesma, que se chama “intencionalidade”, se encontra no temor, no
ódio e no amor. [...] É uma “propriedade” da máscara japonesa ser terrível, uma inesgotável,
irredutível propriedade que constitui sua natureza mesma – e não a soma de nossas
reações subjetivas a um pedaço de madeira esculpida. In: SARTRE, op. cit., p. 34.
10
Em O Ser e o Nada (Capítulo I) Sartre passa sem prévio aviso de temas “ontológicos”,
propriamente ditos, para a análise de condutas humanas e vice-versa. Em alguns casos, a
conduta é apenas a demonstração, no mundo, de teses ontológicas; noutros, a conclusão
ontológica é retirada da análise das condutas. “A própria investigação nos oferece a
conduta desejada: o homem que eu sou”; “se meu carro sofre uma pane, interrogarei o
carburador, as velas, etc; [...]”; “Sem dúvida, o bar, por si mesmo, com seus clientes, suas
mesas, bancos, copos, sua luz, a atmosfera esfumaçada e ruídos de vozes, bandejas
entrechocando-se e passos, constitui uma plenitude de ser”. In: SARTRE, J-P. L’ Être et
le Néant – Essai d’ ontologie phénoménologique. Paris: Gallimard, 1943, p. 38-44.
9
184
Luciano Donizetti da Silva
do idealismo, mostra-se apenas o escopo da questão: na verdade tratase de uma “relação de ser”. No âmbito fenomênico não vai além de
uma obviedade mostrar que só existe mundo porque há consciência e
que a consciência existe em relação ao mundo; pior, obviedade
idealista.11 Cabe levar esse problema para seu terreno originário e, ali,
apresentar a solução cabível. Passamos assim de vez a um problema
muito mais sério e mais amplo, qual seja, mostrar que a consciência
depurada se relaciona com o mundo concreto, e não com imagens
(ou com um espectro de mundo); trata-se da ontologia
fenomenológica, trata-se de O Ser e o Nada.
A resposta para equacionar a liberdade humana e a noção de
situação está em A Liberdade Cartesiana (1945): o homem é
absolutamente livre, mesmo que sua potência seja limitada e variável –
ser homem é ser “liberdade”.12 Sendo o homem tão livre quanto Deus,
a liberdade humana retoma seu caráter produtivo, não só para o erro,
mas também para a verdade, as essências e seu encadeamento. A
liberdade é “o fundamento do real, e a necessidade rigorosa que aparece
na ordem das verdades é, ela mesma, sustentada pela contingência
absoluta de um ato criador”.13 Assim sendo, trata-se apenas de identificar
vontade e entendimento humanos (assim como Sartre entende que
ocorre com o Deus cartesiano) e, uma vez que Deus é tirado de jogo,
dizer, pura e simplesmente, que é o homem quem cria o mundo? Não.
O que Sartre está buscando é a possibilidade de explicar a “finitude”
sem fazer referência ao “infinito”, ou seja, explicar o mundo sem que
para isso seja necessária a noção de Deus.14
Quando considerada no âmbito especificamente humano,
percebe-se que é pela liberdade que há mundo. É pela negação “livre”
BORNHEIM, G. A. Sartre – Metafísica e Existencialismo. São Paulo: Perspectiva, 1971,
p. 170.
12
SARTRE, J-P. La Liberté Cartésienne in Situations I. Paris: Gallimard, 1947, p. 296.
13
Idem, ibidem, p. 306.
14
Sartre está procurando na liberdade divina, hipostasiada por Descartes em Deus, os
“desdobramentos lógicos” da liberdade humana, ou, da “liberdade” pura e simples.
Diretamente, Sartre pretende mostrar que é pelo homem que o mundo (com todo o
encadeamento de essências) vem ao ser, ou seja, é pela negação que se estabelece uma
ordem de fenômenos denominada “mundo”.
11
Existencialismo e educação
185
do homem que é engendrado o sistema de verdades, que em geral é
relegada a Deus. A noção sartriana da liberdade humana é, então, aquela
pela qual o homem é fundador das essências e de seu encadeamento,
constituindo assim o “real” (sem a noção de Deus, obviamente). É
pela liberdade irrestrita e absoluta que o real se constitui, liberdade
essa que é negativa (o homem pode dizer “não” ao ser) e ao mesmo
tempo produtora, afinal, é por essa livre “negação” que o mundo
surge. A liberdade, enquanto “ato metafísico absoluto” é o fundamento
do ser, e o homem enquanto ser que “é liberdade”, torna-se o
principal agente constituidor do mundo. A diferença é que se o Deus
cartesiano pode livre e positivamente criar do nada, o homem cria
pela “negação do ser”.
Dessa feita, sendo a “produção” do mundo resultante da
negação, a contradição entre liberdade absoluta e situação não é mais
que aparente. Estar em situação, ao invés de um limite da liberdade
torna-se um pressuposto para que a liberdade seja exercida; mais, estar
em situação é “exercer o ser livre”. Uma vez que não existe uma ordem
de verdades pré-estabelecida, e é pela negação do ser que tal ordem
vem ao mundo, o homem pode estar em situação e, ainda assim, ser
absolutamente livre. A consciência não encontra na situação um
limitativo de sua liberdade, mas, ao contrário, “condições” para exercêla. É por um ato humano absolutamente livre que o mundo vem ao
ser, o que não apenas supera a aparente contradição como, e
principalmente, faz com que o mundo perca seu caráter de dado a
priori. Ao mostrar o aspecto produtivo da negação (que além de permitir
que o homem se refugie no nada, faz com que o mundo exista), Sartre
pode perfeitamente manter sob uma mesma rubrica a noção de situação
sem que isso signifique uma limitação da espontaneidade da consciência.
Em O Ser e o Nada, a liberdade é identificada à negação, ou
seja, ser homem é “negar o ser”; é também pela negação que Sartre
constitui sua ontologia ou, melhor dizendo, uma vez tendo encontrado
dois reinos do ser incapazes de se comunicarem (ser-para-si e ser-emsi), é pela negação que Sartre mostrará que essa ruptura do ser é devida
186
Luciano Donizetti da Silva
a uma má colocação do problema. Em resumo, a análise provisória
do fenômeno de ser empreendida na introdução de O Ser e o Nada
redunda numa dualidade entre “em-si” e “para-si”; o “ser-em-si” é
absoluto, no sentido que não pode senão ser ou, numa palavra, o emsi é; o “ser-para-si” é o que não é e não é o que é, ou seja, não há
coincidência em seu ser. Com isso, o que Sartre conseguiu foi mostrar
“dois seres separados”, uma vez que da maneira como foram descritos,
esses estão determinados exteriormente e só poderiam ser reunidos
por um ato consciente e externo.
Porém, Sartre não entende a negação no caso da “consciência
que somos” como uma negação externa ao ser: o para-si é, nalguma
medida, em-si; a consciência é o ser que nadifica o nada em seu ser: ela
é “não”. Originariamente, a consciência “nega” o ser, e não o faz estando
“fora” do ser (o espaço é uma categoria que só pode advir dessa
negação originária), mas a partir do ser mesmo que ela “é”. Essa negação
fundante é a origem do não-ser, do nada, da falta que “infesta” o ser
a partir do ser mesmo e faz com que haja a ruptura original, ruptura
que não é dualidade (a consciência é ausência de dimensão):
Todavia, minhas reflexões me levaram principalmente a encarar o
caso que a consciência não era o que ela era, isto é, quando a
negação se manifesta na homogeneidade de uma única e mesma
existência e onde o negado retorna por si mesmo àquilo que é
negado, uma vez que é um e o mesmo ser (SARTRE, 1992, p. 217).
Nesse sentido, “em fusão com o mundo, enquanto é, a
consciência escapa ao mundo e se separa dele na medida em que ela
‘não é’”.15 Esse caráter duplo da consciência, que não se identifica com
o ser nem pode superá-lo, é resultado do surgimento da consciência,
que “nasce” do ser negando-o e não é mais que essa negação; se, por
um lado, a negação fosse causa de separação “efetiva” entre consciência
e ser, não haveria mais o que ser dito, afinal a consciência seria “nada
absoluto”; por outro lado, se a consciência coincidisse com o ser,
SARTRE, J-P. Diário de uma guerra estranha. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992,
p. 223.
15
Existencialismo e educação
187
também nada poderia ser dito, uma vez que esse seria o domínio de
uma totalidade absoluta e indizível. Assim, mundo para Sartre não é
esse “resultado”, tanto que não há mundo sem para-si, assim como
não poderia haver para-si sem em-si. Essa relação “é” o mundo, que
engloba ambos pela negação, no sentido de que o para-si nega o emsi sem possibilidade de superá-lo, nem de dele se desgarrar.
Dizer que o para-si cria o mundo é dizer que ele nega o ser. A
“situação” é para Sartre a “livre necessidade”, que o para-si encara em
seu ser, de negar o em-si livremente e não poder, ainda que o negue
“eternamente”, superá-lo; por isso o homem está condenado a ser
livre. Ser-para-si é negar-se e negar o em-si, e as duas únicas
possibilidades de superação interrompem o projeto de ser do para-si,
levando-o à inexistência (nada absoluto) ou a ser engolido pela totalidade
(tornar-se em-si).16 A situação é, desse modo, essencial para que haja
liberdade – sem ela o para-si estaria descolado do ser, caso não se
aclare o papel produtor da negatividade, o homem livre é apenas um
“não”, “sem corpo”, “sem lembrança”, “sem saber”, “sem ninguém”.
Além de restituir a concretude do mundo, a noção de situação devolve
ao homem a sua co-pertença ao ser. Assim, após esse resumo de uma
parte da filosofia de Sartre, podemos entender mais claramente porque
ser homem é ser liberdade. Mas, já falamos bastante sobre isso –
cumpre agora tentar responder se tal filosofia pode fundamentar a
educação ou, ao menos, contribuir para a constituição de um projeto
educacional que prime pela liberdade humana.
Educação e liberdade
No sistema de pensamento de Sartre, a educação é entendida apenas
como meio de doutrinação da pior modalidade. O indivíduo, por
imposição legal, é obrigado a freqüentar a escola; é submetido a um
currículo e a uma disciplina; é forçado a fazer exames, etc. Do ponto
de vista sartriano, tais práticas significam uma violência sobre a
verdadeira liberdade e existência do indivíduo.
Benhamida (O existencialismo de Sartre e a educação).
16
SARTRE, op. cit., p. 259.
188
Luciano Donizetti da Silva
Conforme vimos, o existencialismo leva sim à conclusão de
que o homem é livre – mas há que se mediar essa liberdade, afinal a
continuidade da obra do filósofo não autoriza a simplificação grosseira
de que ser livre é fazer o que se quer. Por isso, alguns teóricos buscaram
em Sartre a possibilidade de fundamentar uma educação “progressista”;
é o caso de Geoge Kneller e Van Cleve Morris, ambos norteamericanos, e suas pesquisas que datam do final da década de sessenta
e início dos anos setenta.17 Também é esse o tema do artigo de Bonnie
Burstow, professora do Instituto para Estudos em Educação, da
Universidade de Toronto (Canadá), além de trabalhos desenvolvidos
no Brasil. 18 Mas seja como for, não faremos uma discussão
pormenorizada de cada uma dessas teorias, afinal o teor “positivo”
apresentado pelos autores é muito parecido entre si e, também,
parecido com a tese que vou apresentar; assim, todos estão de algum
modo presentes nesse ensaio. O que há de maior interesse é justamente
a crítica à pretensão de utilizar a filosofia de Sartre para fundamentar a
educação; nesse sentido, nosso trabalho será em muito facilitado pelo
artigo da Drª Bonnie Burstow, haja vista que ela discute as objeções de
Khemais Benhamida a esse respeito.
Benhamida afirma que educação e existencialismo são
antagônicos, e tem razão, a julgar por aquilo que Sartre escreve na
segunda metade de O Ser e o Nada. Na introdução de sua ontologia,
o filósofo define o ser como “em-si”, “si-mesmo”, “fechado em si”;
nos dois capítulos seguintes ele mostra o erro de se considerar que a
consciência, por ser livre, não se relaciona com esse ser, e mostra que
há sim relação negativa entre o para-si e o em-si. Já exploramos bastante
esse tema, mas não nos referimos ao capítulo seguinte, “O Ser-paraoutro”, no qual o filósofo explica as relações humanas.19 Até o momento
trata-se da relação de uma consciência com o mundo, ou seja, trata-se
de apenas um indivíduo. Mas como se dá tal relação quando surge um
Existentialism and education e Existentialism in education, cf. referências
bibliográficas.
BURSTOW, B. The Sartre’s philosophy as foundation of the education, p. 171-185.
19
SARTRE, op. cit., p. 272.
17
18
Existencialismo e educação
189
Outro no horizonte do para-si? Até agora a relação entre a consciência
e o objeto foi explicada a partir da negação; mas há que se notar que o
homem nega o objeto (minha negação faz com que um cinzeiro tome
sua forma “cinzeiro” pela exclusão da mesa, do ar que o rodeia, etc.)
sem que o objeto o negue. A relação negativa entre o homem e o mundo
tem uma única via; mas como seria o encontro entre dois “para-sis”, já
que ambos se relacionam com o transcendente de modo negativo?
Está aí o sentido da frase já citada de Huis-Clos, afinal, uma
relação em que o outro me negue e que eu o negue só pode se
caracterizar como infernal. O resultado dessa estrutura relacional é que
a solidariedade entre os homens se torna nula, na medida em que sua
base é o conflito. Mais do que simplesmente ser um limite para minha
liberdade, o Outro tem como objetivo primordial tornar-me coisa,
objeto entre os demais (caneta, cinzeiro, etc.). Essa questão gerou críticas
de âmbito filosófico muito mais sérias do que essas de
Benhamida;20 mas, por hora, concordemos com ele, e aceitemos que
seria impensável buscar fundamentar uma pedagogia com base numa
filosofia que redunda num mundo de “almas penadas”, onde todos
os homens são medusas que buscam transformar seu próximo em
uma estátua de pedra. O panorama se torna ainda mais aterrador se
levarmos em conta a maneira pela qual Benhamida entende o processo
educativo: o professor deve colaborar com o aluno para que ele se
desenvolva. Como haver colaboração se o professor é um limite para
a liberdade do aluno ao mesmo tempo em que o aluno busca apossarse da liberdade que é o professor?
Isso nos leva imediatamente a uma pergunta: podemos concordar
com Benhamida no que concerne ao conceito de educação? É certo
que, conforme ele define em Educational Theory, a educação tem
por base o relacionamento entre o professor e o aluno; mas não é
possível perceber nessa compreensão de educação um certo ranço
conservador, na medida em que o professor “auxilia” o aluno? Seria
20
É o caso das críticas de Merleau-ponty, Gerd Bornheim, Marilena Chauí, dentre outros.
190
Luciano Donizetti da Silva
algum exagero substituir o termo auxiliar por ensinar, no sentido de
que o professor traz a verdade e o aluno a acata? Ainda assim,
concedemos que ele está certo que partindo da relação entre os “parasis”, tal qual O Ser e o Nada, não é possível ir muito longe, afinal, para
que haja tal relação é preciso a concordância entre os sujeitos do
processo educacional; mas como pensar tal situação se a filosofia de
Sartre se pauta pela impossibilidade de relação harmoniosa entre os
seres humanos? Se para Sartre o homem “é liberdade” e o Outro
busca aprisionar seu ser, ou seja, a presença do Outro coloca em
perigo a liberdade de cada um, não há nem mesmo possibilidade de
falar em educação.
Mas se concordamos com Benhamida que nesse panorama seria
forçoso pensar um processo educativo, nos sentimos na obrigação de
esclarecer que o pensamento de Sartre não acaba em 1943, com O
Ser e o Nada. É preciso lembrar que a situação extremamente difícil
na qual se encontra o “para-si”, no final da ontologia é retomada na
Crítica da Razão Dialética, e que ali Sartre mostra, não só que é
possível a cooperação entre os homens, mas também como ela se
fundamenta justamente na liberdade individual.21 A impressão passada
por Benhamida é a de que ele não travou conhecimento com esse
texto; ou que ele não leva em conta a necessidade de distinguir planos
específicos do conhecimento, sendo que a ontologia, à qual ele se refere,
se resume exclusivamente ao primeiro deles. Sartre parte do Ser, uno,
indiviso – o mais simples que a capacidade humana pode pensar; do
ser chega ao “para-si”, mais complexo e fundamento do modo de
existir do homem; desse, a situação se complica mais um pouco, com
as análises do “para-outro”, que fundamenta as relações sociais. Agora,
partindo do “para-si” saltar para a sociedade constituída e perguntar
sobre a relação desses fundamentos com a educação “atual” é, sem
sombra de dúvida, desconsiderar toda metodologia de pesquisa ou, o
que dá no mesmo, ignorar a obra de Sartre.
SARTRE, J-P. Crítica da razão dialética. Tradução de Guilherme João de Fritas Teixeira.
Rio de Janeiro: DP&A, 2002. p. 259.
21
Existencialismo e educação
191
Se fosse tomado o devido cuidado, Benhamida veria que a obra
de Sartre não ficou estagnada no “para-outro”, que ele explora e tira
suas conclusões. Na Crítica da razão dialética, Sartre mostra que os
fundamentos de sua ontologia estão presentes na sociedade constituída;
porém, houve um processo que exigiu que os homens cedessem sua
liberdade e que, fazendo uso dessas liberdades, constituiram-se macroestruturas, e que se formos falar de fundamentar a educação, será preciso
levar em conta tal processo. Em resumo, Sartre afirma que o homem
é essencialmente livre, mas que em sociedade tal liberdade foi alienada,
criando a bizarra situação na qual o indivíduo sozinho, não pode mais
fazer uso de sua liberdade, uma vez que ela está esmagada pelas
estruturas sociais que foram criadas. Se essencialmente a relação entre
os “para-sis” se dá enviesada, no sentido de que o objetivo é apossarse da liberdade alheia, em sociedade, nem mesmo dessa liberdade
essencial os homens usufruem, haja vista que ela foi cooptada por uma
estrutura mais ampla que ele. No entanto, a revolução, momento em
que um grupo de homens recupera suas liberdades e se engajam
livremente em um projeto comum de mudança é sempre possível.22
Enfim, se Benhamida tivesse levado sua questão até o fim (ou
mesmo lido O Ser e o Nada com mais cuidado) veria que há sim na
filosofia de Sartre possibilidade de agremiação humana. Mais do que
isso, veria que na ontologia tal possibilidade já estava presente no conceito
de reciprocidade – e o problema seria de outra ordem. A crítica que
ele faz, qual seja, que não pode haver colaboração humana e por isso
não pode haver processo educativo, cai por terra; o problema passaria
a ser a maneira pela qual o professor reconheceria o aluno como um
“ser livre” e, assim, de que modo seria possível haver educação sem
que o professor limite tal liberdade. Noutras palavras, o que Benhamida
oblitera é que, em se tratando da ontologia de Sartre, é possível sim
que o professor “colabore” com o aluno, desde que essa colaboração
tenha como objetivo essencial reconhecer o aluno como “uma
liberdade”, e não como um ser ignorante que deve ser “auxiliado”.
22
Crítica da Razão Dialética, livro II, nº 1: o Grupo em Fusão, p. 450 ss.
192
Luciano Donizetti da Silva
Mesmo que a crítica de Benhamida possa ser colocada em xeque
justo em seu fundamento, vejamos sua continuidade: ainda segundo
ele a filosofia de Sartre mostra que cada indivíduo se escolhe a partir
de seu projeto. Ora, em O Ser e o Nada, o projeto do “para-si” é
coincidir com seu ser, ao mesmo tempo em que continua consciente
de si. Em vista disso, na medida em que dois projetos jamais coincidem,
a “única relação possível entre dois indivíduos é o conflito”.23 A primeira
tentação que temos, e por isso já nos referimos às incompreensões e
simplificações do pensamento de Sartre, é de concordar com isso.
Mas, de novo é preciso lembrar que ele está confundindo o plano
ontológico e o plano existencial. Há sim concordância de projetos
existenciais, pois, de outro modo, como poderia ter ocorrido a
Revolução Francesa? Se milhares de liberdades não tivessem
concordado que aquela situação era inaceitável e não tivessem se
engajado nessa causa, livremente e sob pena de perder a vida, não
teríamos jamais a “queda da Bastilha”. Além disso, no plano existencial,
é perfeitamente possível que, uma vez que a liberdade de todos seja
respeitada, haja um projeto educacional que sirva tanto ao aluno quanto
ao professor. E se isso envolver mais liberdades (pais, instituição, MEC,
etc.) tanto melhor!
Porém, se o processo for pensado de cima para baixo, de modo
centralizador e autoritário, não há mesmo qualquer possibilidade de
equacionar a liberdade e a educação. Isso reforça nossa suspeita de
conservadorismo de Benhamida, principalmente quando se nota as
conclusões que ele tira desse engodo: uma vez que não há comunhão
entre os homens, não pode haver compreensão e assim, é impossível
haver critérios, sejam objetivos, sejam subjetivos, para o processo de
aprendizagem. Noutras palavras, o professor não teria qualquer meio
para se comunicar com o aluno e “auxiliá-lo”; e ele ainda vai mais
longe, afinal, ainda que houvesse possibilidade de comunicação entre
o professor e o aluno, Sartre afirma que não há como determinar o
que é o Bem e o que é Mal e, desse modo, não haveria parâmetros
23
BENHAMIDA apud. BURSTOW, p. 179.
Existencialismo e educação
193
para ensinar. Cada indivíduo, livremente, escolheria seus valores – não
há Moral comum, não há, enfim, sociedade.
Com respeito a haver ou não sociedade, já mostramos que a
continuidade da obra de Sartre contradiz a interpretação de Benhamida.
E mais uma vez podemos concordar com ele que a filosofia de Sartre
não permite que haja uma moral que tenha sua base transcendente e
que seja válida para todos e em todas as situações. Porém, isso não se
deve à diferença dos projetos que cada homem estabelece para si, mas
sim à inexistência, para Sartre, de uma entidade superior ao homem
que possa estabelecer previamente os valores aos quais todos devam
se aderir. Já vimos isso com respeito ao texto A liberdade Cartesiana
(não há Deus); mas vamos explorar um pouco mais essa idéia. Para
isso recorramos a um texto de 1952, publicado entre O Ser e o
Nada, que Benhamida critica, e Crítica da Razão Dialética que,
parece, ele desconhece.
Em Saint Genet, ator e mártir, Sartre analisa a situação real de
um indivíduo, Genet, que é livre e ainda assim se vê coagido pela
moral maniqueísta da burguesia do início do século XX.24 Essa obra é
muito mais rica do que o único aspecto que iremos aqui abordar, mas
nela Sartre se refere à moral criada pelos proprietários de terra, que
definem o ser pelo ter; Genet é adotado por uma dessas famílias e,
porque não tem para ser, deliberadamente rouba. Um dado momento,
quando é pego roubando, ele é imediatamente condenado por todos
– aqueles mesmos que definiram o ser pelo ter e que lhe negaram
propriedades, afinal, Genet era órfão e foi adotado por proprietários.
Ele viveria como um agregado, mas jamais receberia qualquer
propriedade por herança. O que podemos tirar desse breve e
esquemático exemplo? Que uma ética humana comum é impossível,
como diz Benhamida, ou que qualquer ética que não considere todos
os homens como “liberdades que merecem ser respeitadas” é
condenável? Sartre não nega que possa haver valores sociais – esse é
apenas um dos exemplos que mostra isso. Mas ele faz ver que não há,
24
SARTRE, J-P. Saint Genet, comedien et martyr. Paris: Gallimard, 1952
194
Luciano Donizetti da Silva
isso sim, uma moral que esteja inscrita na natureza ou que seja diretamente
ditada por um ser superior que regeria a vida dos homens.
Ao contrário, Sartre mostra que toda moral tem sua origem no
homem, nos valores que determinada sociedade cria para sua
manutenção – Sartre mostra que esses valores são hipostasiados em
Deus (ou na “lei”) justamente como meio de forçar todos os homens,
os que se beneficiam e os que sofrem com isso, a aceitá-la. De outro
modo, como explicar o “direito divino dos reis” na Idade Média, e o
“direito divino da propriedade e do capital” nos dias de hoje? Será
que todos os homens concordam com isso, ou uma minoria cria tais
valores e os impõe aos demais? A tomarmos pelas manifestações
contrárias aos encontros do G-8 ou pela revolta generalizada contra o
processo de globalização presente em todos os países do mundo,
podemos identificar claramente essa crítica: a liberdade da maioria
está alienada aos interesses de alguns, ainda que a todos sejam pregadas
as verdades do neoliberalismo.
Mas Benhamida encontra nessa crítica apenas uma razão para
fundamentar sua tese de que o pensamento sartriano não condiz com
nenhuma pedagogia. Assim, vamos adiante e tentemos um contra
argumento: se para ele o processo se resume ao auxílio que o professor
deve propiciar ao aluno, poderíamos dizer com ele (conforme Kneller
e Morris) que desse modo o professor poderia ajudar o aluno “a ser
livre”. A tarefa do professor seria, portanto, auxiliar o aluno a entender
que ele é essencialmente livre, e que sua situação se deve à força das
macro-estruturas criadas pelo homem (elas não são o Bem, nem são
eternas), e que cabe a ele modificá-la ou aceitá-la. Mas segundo
Benhamida, o indivíduo deve escolher seu ser e a “ajuda” seria uma
imposição que minimizaria a liberdade; o aluno agiria de má-fé, afinal
ele estaria aceitando encenar um papel que, a princípio, contraria seu
ser. Nesse caso hipotético, seria mesmo assim?
Não nos parece. Primeiro, e por isso se trata de uma situação
hipotética, haveria reciprocidade pela qual o professor reconheceria o
aluno como liberdade. Não se trata de encenar nenhum papel se o
Existencialismo e educação
195
indivíduo, oprimido por sua situação, tiver acesso aos meios para
descobrir-se essencialmente livre e vítima daquilo que lhe é imposto; e
como o caso é hipotético, poderíamos aventar a possibilidade de que,
uma vez feita essa descoberta, o aluno conclua que o processo que o
fez conhecer sua liberdade é impositivo. Ainda assim ele estaria livre
para abandonar a escola, porém certo da outra face da moeda: na
mesma medida em que o homem é livre ele é responsável. As
conseqüências dessa decisão seriam imputadas unicamente a ele, não
cabendo ao professor nenhuma responsabilidade; de outro lado, o
professor que age segundo a “lei” é responsável por jamais trabalhar
pela emancipação do aluno e, assim, não pode reclamar de ser
considerado por aquele “um objeto que ensina”.
Um último ponto da crítica de Benhamida nos chama atenção.
Tudo o que cogitamos até agora foi pensado para a educação de
homens – de pessoas adultas que de algum modo estão em plena
posse de sua consciência e aptos a fazer suas próprias escolhas. Mas o
que dizer da educação infantil? Nesse caso, em que a situação é hipotética,
podemos argumentar que em geral o adulto escolhe se quer ou não
estudar;25 mais do que isso, ele escolhe seu curso, o que garante uma
margem maior de liberdade. Mas e com respeito às crianças? Benhamida
não está alheio a esse pormenor e é categórico: no universo de Sartre
não há crianças. Sendo assim, não haveria qualquer possibilidade, a
partir de tal teoria, para falar em educação infantil. Mais uma vez o
autor ficou preso apenas a O Ser e o Nada; é verdade que Sartre não
tematiza especificamente a educação em nenhum de seus textos; também
é verdade que a criança é escassa na ontologia e nem mesmo aparece na
Crítica da razão dialética. Mas isso é razão suficiente para tal afirmação?
Trata-se de uma situação hipotética que visa discutir a possibilidade ou não de utilizar
a liberdade como fundamento epistemológico da educação. É claro que existem situações,
especialmente financeiras, que não permitem ao aluno fazer tal escolha. Não entraremos
nessa questão, mas a indicação para equacionar tal problema já foi apontada: nenhuma
estruturação social ou econômica é eterna, e pode ser mudada a qualquer momento. Basta
que haja o engajamento livre e consciente de um número suficiente de liberdade (grupo
em fusão) para, por exemplo, no caso do Brasil, que ostenta uma das maiores desigualdades
sociais do mundo, colocar por terra tal estrutura e, sob seus escombros, erigir uma outra,
na qual de fato o aluno possa escolher entre estudar ou não.
25
196
Luciano Donizetti da Silva
Não. Em O Ser e o Nada, Sartre afirma que cada indivíduo,
antes de sua história, vive sua “proto-história”; nesse período cada um
apenas lida com aquilo que encontra ao seu redor.26 Posteriormente,
tem-se início sua história individual em virtude da dialética (conflito)
que se dá entre a liberdade e a resistência das coisas. Apenas nesse
momento o indivíduo faz sua escolha fundamental (escolha de si) e
assim dá vazão a seu projeto; mas muito cedo, há que se notar, essa
história começará a se ampliar, até o momento em que ela se confundirá
com a história da humanidade. Como exemplo, podemos lembrar o
caso de Genet que, sem bens num mundo de proprietários, decidiu
roubar para ter; ao ser pego, ele assume seu “ser ladrão”. Trata-se de
um desvio, não há dúvidas, mas a escolha fundamental que marca a
malfadada história de Genet tem sua origem num episódio ocorrido
na vida do poeta quando ele era criança.
Mas Saint Genet não é o único exemplo que poderíamos utilizar
para refutar essa afirmação de Benhamida.27 Há, ainda, As Palavras,
livro no qual Sartre narra desde os primeiros momentos seu contato
com o universo da literatura; ele era uma criança e, de modo
autobiográfico, ele nos mostra como sua escolha fundamental pelas
palavras se constituiu. O Idiota de Família é um outro exemplo claro
de que há crianças no universo de Sartre, afinal ali ele examina a infância
de Flaubert, e mostra que sua genialidade literária se deve à escolha que
ele fez de si mesmo. Por fim, poderíamos citar ainda Baudelaire que,
em seu primeiro capítulo, trata da infância do escritor. Assim, é uma
irresponsabilidade afirmar que “no universo de Sartre não há espaço
para a infância”. De modo mais comedido, poderíamos dizer que a
criança não é o objeto específico de sua indagação filosófica e que a
educação infantil jamais o preocupou. Porém, excluir a infância de seu
pensamento já é um pouco demais.
Enfim, as objeções de Benhamida a Sartre têm como fundamento
a liberdade, justamente aquela que, a nosso ver, poderia contribuir no
processo educativo. Essa objeção, por sua vez, se desdobra em três,
26
27
SARTRE, op. cit., p. 714.
Pela ordem: As palavras, L’Idiot de la famille e Baudelaire, cf. bibliografia.
Existencialismo e educação
197
quais sejam, a impossibilidade de relações humanas, o conflito presente
em toda relação humana e a inexistência da infância em seu universo
de pensamento. Porém ser homem é ser liberdade em situação; a
facticidade do para-si não permite, de modo algum, entender a
liberdade essencial como possibilidade de se fazer o que se quer, mas
ao contrário, responsabiliza cada indivíduo por aquilo que ele faz “com
o que fizeram dele”. Se “o fizeram” despossado numa sociedade de
proprietários, ele pode superar tal situação; se “o fizeram” deficiente
físico, ele deve se fazer respeitado e útil, e assim por diante. Pode-se
dizer que “não é fácil” – concordo; pode-se dizer “é impossível”;
discordo plenamente. Os mecanismos para uma mudança estrutural Sartre
já os mostrou, e a possibilidade para qualquer mudança pessoal está na
mão de cada um, fundamentada na sua irrestrita e absoluta liberdade.
Ser homem é ser negação do ser; a ruptura que encontramos no
mais essencial de nossa existência mostra que não há causalidade, não
há determinismo psíquico ou social, não há limites físicos que possam
tolher a liberdade do homem. É verdade que essa afirmação exige
bom senso de quem ouve e mediação de quem diz: não é mesmo
possível que alguém com as duas pernas amputadas ande “com suas
pernas”; mas ela é livre para aceitar o que “fazem dela” (inútil, deficiente,
dispensável) ou nadar e ganhar várias medalhas de ouro nas Paraolimpíadas. De modo ainda mais direto e realista, ela pode lutar para
que os demais tornem adequadas as cidades para que ela se locomova
com sua cadeira, ou ficar em casa resmungando. Tudo passa pela decisão
individual – e o mais importante, também essa decisão é corroída
pelo nada que o homem é, podendo mudar a cada instante.
Sartre não é insano, como possa parecer quando ele fala que
estamos condenados à liberdade. Existem limites fáticos para todos
os homens; se por isso quisemos entender que os obstáculos que
encontramos são “determinantes”, estamos de acordo com a filosofia
de Sartre. É um fato que a parede não pode ser atravessada. Mas a
filosofia de Sartre é ainda mais rica, afinal garante para cada indivíduo
a liberdade fundamental para formular seu projeto e, desse modo,
198
Luciano Donizetti da Silva
“escolher-se”. A confusão se faz porque para Sartre, a situação é
condição para que sejamos livres; sem qualquer resistência jamais
saberíamos se estamos vivendo ou sonhando. O problema é que
do mesmo modo pelo qual se entende uma determinação (não ter
pernas) como intransponível, entende-se que a sobre-determinação
(inválido) também o é. Contra esse conformismo e quietismo o
Existencialismo afirma que ser homem é ser liberdade, o que
significa dizer que as “possibilidades”, seja de cada um, seja da
humanidade, estão sempre abertas.
Nossa conclusão não é novidade para ninguém: a filosofia de
Sartre pode sim fundamentar epistemologicamente um projeto
educacional. E o caminho para tal projeto se encontra na estrutura do
“ser homem” (para-si), apresentada por Sartre. Sua filosofia nos fala
de liberdade, de autenticidade e de responsabilidade. E para ser autêntico
e responsável por seus atos, torna-se indispensável a incômoda presença
(e ação) do Outro, muito longe da postura, essa sim pessimista, de
Benhamida. Assim, deixo para o leitor e para os especialistas da área a
tarefa, se isso valer a pena, de buscar as devidas respostas faltantes.
Gostaria ainda de dizer que o artigo de Benhamida foi utilizado como
contraponto para essa fala; quero registrar aqui que as críticas a ele
dirigidas devem-se unicamente às conclusões que ele tira do pensamento
de Sartre. O mais importante no que se refere ao processo educativo,
ao menos se levarmos em conta o que dissemos aqui (e por isso faço
essa ressalva), é buscar entender e jamais trair um pensamento, qualquer
que seja ele. As conclusões a que chego se devem ao que Benhamida
escreveu sobre Sartre e àquilo que Sartre efetivamente escreveu, que
contraria o artigo em questão. E se for o caso de dar minha opinião,
sou favorável em gênero e grau à tese de Bonnie Burstow: “defendo o
uso que educadores, como Morris e Kneller, têm feito da filosofia
sartriana. Convido outros a continuar esse trabalho. E sugiro que as
apreensões de críticos como Benhamida podem ser deixadas de lado
com toda segurança”.28
28
BURSTOW, op. cit., p. 183.
Existencialismo e educação
199
EXISTENTIALISME ET ÉDUCATION – LA PHILOSOPHIE
SARTRIENNE DE LA LIBERTÉ COMME
FONDEMENT PÉDAGOGIQUE?
Résumé: Dans cet article, on a le but principal de répondre à la question suivante:
la philosophie sartrienne de la liberté peut-elle être à la base d’une pédagogie?
Pour y répondre, on a avant tout besoin de comprendre la notion de liberté
dans la philosophie de Sartre, son fondement ontologique et son explicitation
phénoménologique. Ensuite, il faudra traiter des difficultés courantes d’une
telle liberté, et ainsi chercher à construire une pédagogie progressiste fondée sur
le respect de la liberté individuelle, qui est, d’après Sartre, la raison d’être de tous
les hommes.
Mots-clés: Sartre. Éducation. Liberté.
Referências bibliográficas
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1984.
BENHAMIDA, K. O existencialismo de Sartre e a educação: a falta
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BORNHEIM, G. A. Sartre – metafísica e existencialismo. São Paulo:
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BURSTOW, B. The Sartre’s philosophy as foundation of the education.
Tradução Newton Ramos-de-Oliveira. Educação e Sociedade,
Campinas: ano 21, n. 70, abr. 2000. Original: Journal of Philosophy
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______. As palavras. Tradução de J. Guinsburg. Rio de Janeiro:
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200
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SARTRE, J-P. Baudelaire. Paris: Gallimard, 1975.
______. Crítica da razão dialética. Tradução de Guilherme João
de Fritas Teixeira. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
______. Diário de uma guerra estranha. Rio de Janeiro: Nova
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______. Huis clos. Paris: Gallimard, 1947.
______. La Liberté Cartésienne in Situations I. Paris: Gallimard,
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______. La transcendance de l’ego: esquisse d’une description
phénoménologique. Paris: Recherches Philosophiques, 1937.
______. O ser e o nada – ensaio de ontologia fenomenológica.
Tradução e notas de Paulo Perdigão. Petrópolis: Vozes, 1997.
______. L’Idiot de la famille. Paris: Gallimard, 1988. 3 v.
______. O existencialismo é um humanismo. Tradução de Vergílio
Ferreira. São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Coleção Os Pensadores, v.
Sartre).
______. O imaginário. Tradução de Duda Machado. São Paulo:
Ática, 1996.
______. Saint Genet – ator e mártir. Tradução de Lucy Guimarães.
Petrópolis: Vozes, 2002.
______. Une Idée Fondamentale de la Phénoménologie de
Husserl: L’Intentionnalite. Situations I. Paris: Gallimard, 1947.
NORMAS PARA APRESENTAÇÃO DE TRABALHOS
O Aprender é uma publicação que pretende divulgar trabalhos
sobre o processo educacional em suas variáveis filosóficas ou
psicológicas, ou contribuições de outras áreas de conhecimento, de
acordo com o enfoque da publicação.
Dada a abrangência do processo educacional, o Aprender define
enfoques temáticos para melhor orientar o conteúdo dos trabalhos
candidatos à publicação:
Filosofia da Educação:
• A aprendizagem como problema filosófico: como e em que
condições se dão a transmissão, construção ou apropriação do
conhecimento.
• A filosofia e a instituição escolar.
• A abordagem teórica das diferentes escolas pedagógicas.
• Diferentes conceitos e concepções de educação.
• Educação e Filosofia: as correntes filosóficas e sua relação
com processos educacionais.
• Ética e Educação: a ética como fundamento para a formação
e a aprendizagem, a ética profissional do educador, entre outros.
• O papel da filosofia nas transformações da educação
contemporânea.
• Novas tendências e tecnologias de ensino: aspectos filosóficos.
Psicologia da Educação:
• Aprendizagem como problema psicológico: como e em que
condições se dão a transmissão, construção ou apropriação do
conhecimento.
• Aspectos psicológicos voltados para o estudo do campo das
necessidades educativas especiais: dificuldades de aprendizagem,
educação especial, preparo e formação de professores, entre
outros.
• Escolas psicológicas e sua relação com processos educacionais.
• Novas tendências e tecnologias de ensino: aspectos
psicopedagógicos.
• Psicanálise e Educação.
• Psicologia Escolar/Educacional: trabalho docente, processo
ensino-aprendizagem, aquisição da leitura e da escrita, interação
professor-aluno, cultura escolar, atuação do psicólogo na escola,
entre outros.
• Psicologia do Desenvolvimento e Educação.
• Relações humanas na escola.
• Trabalho e Educação.
Obs.: Somente serão aceitos trabalhos que se enquadrem em um ou
mais enfoques temáticos citados acima.
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Os trabalhos candidatos à publicação deverão ser enviados por
e-mail, com o texto anexo, digitado em Word for Windows, para os
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Ou ainda, por correio, contendo uma cópia impressa em papel tamanho
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APRENDER – Caderno de Filosofia e Psicologia da Educação
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Tanto no envio por endereço eletrônico ou pelo correio, os
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