APRENDER Caderno de Filosofia e Psicologia da Educação Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia REITOR Prof. Abel Rebouças São José VICE-REITORA Profª Jussara Maria Camilo dos Santos PRÓ-REITOR – PROEX Prof. Paulo Sérgio Cavalcante Costa DIRETORA DO DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA (DFCH) Profª Cláudia Albuquerque de Lima DIRETOR – EDIÇÕES UESB Jacinto Braz David Filho COMITÊ EDITORIAL Profª Ms. Andréa Braz da Costa Prof. Dr. Antonio Jorge Del Rei Moura Prof. Ms. Júlio César Castilho Razera Prof. Dr. Marcello Moreira Prof. Ms. Marco Antônio Araújo Longuinhos Prof. Ms. Nelson dos Santos Cardoso Júnior Prof. Ms. Paulo Sérgio Cavalcante Costa Prof. Ms. Rosalve Lucas Marcelino Profª Drª Zenilda Nogueira Sales Catalogação na publicação: Biblioteca Central da Uesb Aprender – Caderno de Filosofia e Psicologia da Educação. Ano 3, n. 4, jan./ 100 jun. 2005. Vitória da Conquista: Edições Uesb, 2005 A661a Semestral. ISSN 1678-7846 1. Filosofia – Periódicos. 2. Psicologia. I. Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. II. Título. Indicações de permuta Aceitamos permutas por periódicos de áreas afins, em especial de Educação, Filosofia e Psicologia. Os contatos para essa finalidade podem ser feitos através dos endereços eletrônicos: [email protected] ou [email protected] Campus Universitário – Caixa Postal 95 Estrada do Bem Querer, Km 4 – 45083-900 – Vitória da Conquista – BA Fone: 77 3424-8716 - E-mail: [email protected] Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia APRENDER Caderno de Filosofia e Psicologia da Educação ISSN 1678-7846 APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano III n. 4 p. 3-206 2005 Copyright ©2005 by Edições Uesb APRENDER Caderno de Filosofia e Psicologia da Educação Caderno do Departamento de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia Ano III – n. 4, jan/jun. 2005 Editores Responsáveis Prof. Ms. Leonardo Maia Bastos Machado – Uesb Prof. Ms. Ruben de Oliveira Nascimento – Uesb Editoria Científica Profª Ms. Ana Lucia Castilhano de Araújo – Uesb Profª Ms. Caroline Vasconcellos Ribeiro – Uesb Prof. Ms. José Luís Caetano – Uesb Prof. Dr. Marcelo Martins Barreira – Uesb Profª Ms. Zamara Araújo dos Santos – Uesb/Uesc Conselho Editorial Profª Dr.ª Ana Elisabeth Santos Alves – Uesb Prof. Dr. Carlos Henrique de Souza Gerken – UFSJ Prof. Dr. Dante Galeffi – Ufba Prof. Dr. Delba Teixeira Rodrigues Barros – UFMG Prof. Dr. Diógenes Cândido de Lima – Uesb Prof. Dr. Filipe Ceppas – UGF/PUC-Rio Prof. Dr. Francisco Moura – Ufop Prof. Dr. João Carlos Salles – Ufba Prof. Dr. José Carlos Araújo – Unitri Profª Drª Maria Iza Pinto Amorim Leite – Uesb Profª Drª Maria Luiza Camargos Torres – Univale Profª Drª Milenna Brun – Uefs Profª Drª Marilena Ristum – Ufba Profª Ms. Rosane Lopes Araújo Magalhães – Uesc Prof. Dr. Silvio Gallo – Unicamp APRENDER – Caderno de Filosofia e Psicologia da Educação UNIVERSIDADE ESTADUAL DO SUDOESTE DA BAHIA (UESB) Departamento de Filosofia e Ciências Humanas (DFCH) Estrada do Bem Querer, km 4, Cx. Postal 95 45083-900 – Vitória da Conquista – BA Fone: 77 3424-8652 E-mail: [email protected] e [email protected] SUMÁRIO DOSSIÊ TEMÁTICO: Infância e Educação Introdução ............................................................................................. 9-10 A infância no processo civilizador Anilde Tombolato Tavares da Silva ........................................................ 11-27 Lipman e o ensino de uma filosofia ideal Liliane Barreira Sanchez ....................................................................... 29-48 Música e cultura infantil: uma breve revisão bibliográfica para a educação infantil Ana Lúcia Castilhano de Araújo ........................................................... 49-65 Teatro infantil: um olhar para o desenvolvimento da criança Sandra Márcia Campos Pereira ............................................................. 67-88 Relação pais e filhos e o processo de aprendizagem escolar: um estudo de caso Maria Aparecida C. Bonfim Silva e Rubem de O. Nascimento .... 89-110 ARTIGOS Adolescência e arte: estética e práticas culturais Celso Vitelli ........................................................................................ 113-140 O governo da razão: escolarização, subjetivação e psicologia genética Paulo Gurgel ...................................................................................... 141-160 Heidegger educador: acerca do aprender e do ensinar Roberto Saraiva Kahlmeyer-Mertens ................................................... 161-171 Sartre, 100 anos Leonardo Maia Bastos Machado ........................................................ 173-174 Existencialismo e educação – a filosofia sartriana da liberdade como fundamento pedagógico? Luciano Donizetti da Silva ................................................................. 175-200 Normas para apresentação de trabalhos ................................... 201-203 DOSSIÊ TEMÁTICO Infância e Educação DOSSIÊ TEMÁTICO Infância e Educação INTRODUÇÃO É com satisfação que apresentamos, nesse número do Caderno Aprender, um dossiê temático abordando Infância e Educação. Apesar da complexidade e amplitude de estudos que esse campo temático evoca, apresentamos reflexões sobre quatro importantes aspectos, que merecem ser mais discutidos, estudados e aplicados: a infância como um dos centros do processo civilizador; o ensino de filosofia para crianças; a arte na Educação Infantil; as práticas educativas familiares e sua relação com o processo de aprendizagem escolar. São trabalhos que envolvem aspectos como: mecanismos reguladores do pensamento e da formação de estruturas sociais de civilização; a filosofia como base de uma Educação Infantil calcada no desenvolvimento do pensamento e do questionamento do cotidiano; a música e o teatro infantil e sua importância para o processo educacional e de desenvolvimento da criança; o envolvimento da criança com o processo de aprendizagem escolar e sua inter-relação com práticas educativas familiares. Infância e Educação, como alicerces do desenvolvimento humano, tanto em termos individuais quanto sociais, preocupam por seu impacto na formação do individuo. O Caderno Aprender procura, com esse dossiê, contribuir com o estudo e a discussão dessa relação, enfocando aspectos que podem ser mais explorados pela escola, envolvendo não apenas a capacidade cognitiva da criança, mas também suas emoções, sua formação familiar e sua sensibilizada artística. Os Editores. DOSSIÊ TEMÁTICO Infância e Educação A INFÂNCIA NO PROCESSO CIVILIZADOR Anilde Tombolato Tavares da Silva * Resumo: O presente trabalho busca trazer alguns apontamentos em relação ao processo civilizador do sociólogo alemão Norbert Elias, principalmente no que se refere às relações de correspondência ocorridas entre as transformações sociais com as alterações na estrutura psicológica dos indivíduos, que incidem nos padrões de comportamento, para que possamos refletir sobre as contribuições da infância neste processo. Tomamos como base para este trabalho a obra O Processo Civilizador, na qual o autor faz uma análise histórica das mudanças que localizou no desenvolvimento da personalidade e das normas sociais no processo formador da civilização moderna para o presente. Entendendo a civilização como um processo contínuo e inacabado, apontamos a infância como um ponto crucial para a moldagem dos padrões de comportamento do indivíduo, visando o desenvolvimento da sociedade moderna. Palavras-chave: Infância. Processo civilizador. Padrão de comportamento. O presente trabalho busca trazer alguns apontamentos em relação ao processo civilizador do sociólogo alemão Norbert Elias e refletir sobre as contribuições da infância neste processo. Consideramos Doutoranda em Educação pela Unesp de Marília – SP. Docente do Departamento de Educação da Universidade Estadual de Londrina. E-mail: [email protected] * APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano III n. 4 p. 11-27 2005 12 Anilde Tombolato Tavares da Silva esta uma empreitada ousada, já que o autor não teve o tema da infância como foco principal de suas obras, mas buscamos através da análise histórica do processo civilizador e das mudanças que Elias localizou no desenvolvimento da personalidade e das normas sociais no processo formador da civilização moderna para o presente, a fonte para a análise a que nos propomos. Tomamos como base para este ensaio a obra O Processo Civilizador, principalmente, o primeiro volume: Uma História dos Costumes, que parte da origem do conceito de civilité, o qual, segundo Elias nasce com a sociedade cavaleiresca medieval e com a unidade da Igreja Católica, uma vez que os valores, atitudes, comportamentos e costumes são inter-relacionados nos ideais de uma nobreza armada e de uma igreja culta, pelo menos racionalmente, em sua forma de orientar o pensamento naquilo que era designado como o ideal de civilização. Os costumes ocidentais construídos e vivenciados até ali são os comportamentos construídos, entre outras coisas, do que se convencionou chamar de “civilização”. A civilização, que no sentido eliasiano, nasce na formação social da sociedade de corte e do seu ideal de conduta e vivência, na interdependência específica de um momento histórico em que se está formando o absolutismo europeu. Nas suas obras, Elias busca explicitar a sua teoria dos processos de civilização, baseando-se nas relações sociais existentes na sociedade guerreira, feudal, de corte e absolutista, terminando no advento da sociedade burguesa, sempre mostrando as relações de correspondência ocorridas entre as transformações sociais e as alterações na estrutura psicológica dos indivíduos dessas sociedades. Para o autor, “a lembrança de que a cavalaria e a fé romano-latina representa uma fase peculiar da sociedade ocidental, um estágio pelo qual passaram todos os grandes povos do Ocidente, certamente não desapareceu” (ELIAS, 1994, p. 67). Sua preocupação volta-se, principalmente, à produção do conhecimento sobre o passado, articulando a processos sociais mais amplos, como parte da construção de uma experiência histórica e social, que nada mais é do que a própria civilização. E como afirma Elias: A infância no processo civilizador 13 A moderação das emoções espontâneas, o controle dos sentimentos, a ampliação do espaço mental além do momento presente, levando em conta o passado e o futuro, o hábito de ligar os fatos em cadeias de causa e efeito – todos estes distintos aspectos da mesma transformação de conduta que necessariamente ocorre com a monopolização da violência física e a extensão das cadeias da ação e interdependência social. Ocorre uma mudança “civilizadora” do comportamento (E LIAS, 1993, p. 198). O que o autor busca teorizar é um processo civilizador que comporta uma dimensão que é necessariamente coletiva e social, mas também uma dimensão particular e individualizada, que remete para a compreensão dos processos de introjeção das demandas e pressões sociais e coletivas. Elias nos sugere dois enfoques para a análise do processo civilizador, capazes de entender a construção social da civilização como uma forma específica e particular de configuração social, historicamente marcada, e que, conjuntamente, formam a teoria dos processos de civilização do autor: do ponto de vista da Psicogênese (plano psicológico individual) e da Sociogênese (plano onde ocorrem as relações sociais) . Sendo assim, a civilização inscreve-se no campo das ações e decisões humanas, comportando um olhar sobre os indivíduos como construtores e construídos pela sociedade; ou seja, é possível afirmar que a civilização comporta um projeto de ordenação do mundo, quer para o presente, quer para o futuro, em que, no nosso entendimento, a infância tem um papel fundamental de construção da sociedade cada vez mais civilizada, à medida que “a vida delas tem que ser rapidamente submetida ao controle rigoroso e à modelagem específica que dão a nossa sociedade seu caráter e que se formou na lentidão dos séculos” (ELIAS, 1994, p. 145). São essas demandas do processo civilizador que foca o olhar de Elias em direção a dois pontos centrais, capazes de aumentar o espaço de experiência das sociedades humanas: em direção ao passado e ao futuro. Um olhar que organiza o passado segundo os princípios 14 Anilde Tombolato Tavares da Silva de uma narrativa que não deixa espaços vazios entre o passado e o presente, articulando eventos numa cadeia de causas e efeitos, que tendem a naturalizar aquilo que resultou de uma decisão, de uma escolha, dentre as possíveis aos homens enquanto seres históricos. Nesse sentido, o passado transforma-se num vir a ser do presente, uma afirmação da necessidade deste mesmo presente, apagando as lutas e tensões que resultaram nele. Nesse projeto de civilização de que nos fala Elias, aprender o passado apreendendo-o é, para nós, parte do esforço de entender as alterações sofridas na estrutura psicológica dos indivíduos no decorrer do processo civilizatório e em suas relações com a “moderação das emoções espontâneas” e “controle dos sentimentos”, poderoso antídoto contra um risco sempre iminente de aproximar a experiência humana daquilo que seria seu contrário – a natureza associada à barbárie. Buscando a compreensão da experiência humana na sociedade industrial, encontramos Krieken (1996), que ao argumentar sobre a autodisciplina na história da sociedade, cita Louis Mumford que ressalta a “mudança da mente”, a “reorientação dos desejos, hábitos e objetivos” que acompanharam a rendição das sociedades européias “à máquina”. Segundo este autor, os teóricos da escola de Frankfurt desenvolveram este ponto extensamente com o argumento de que o capitalismo moderno racionalizado produz um tipo disciplinado particular de constituição psíquica – baseados em seu interesse em desenvolver uma dimensão psicológica para a teoria social através da integração da psicanálise e do marxismo (KRIEKEN, 1996, p. 154). Ainda nos coloca que a história das sociedades ocidentais tem sido caracterizada pela crescente objetivação e disciplinarização da subjetividade, um ordenamento da alma sempre intensificado, que conjugado com uma crescente individualização tornou o indivíduo moderno completamente “autocontrolado”, “autista neutro” e “deprimido”. Busca em Marx a observação dos efeitos disciplinares A infância no processo civilizador 15 do trabalho fabril, a “compulsão cega” da utilização do trabalho e a emergência de uma classe trabalhadora que “por educação, tradição, hábito, vê as condições do modo (capitalista) de produção como leis naturais auto evidentes” (KRIEKEN, 1996, p. 154). Foucault contribui nesta argumentação, à medida que aponta para uma das características definitivas da formação do estado europeu, desde o princípio do período moderno que foi a transição de um poder de estado soberano, que operava negativamente pela colocação de limites e coerções, para um poder disciplinar descentralizado que penetra nossas almas, corpos e mentes, transformado-os ativamente e produzindo efeitos positivos que nos tornam a todos cidadãos autodominados (KRIEKEN, 1996, p. 155). Assim como Foucault, Norbert Elias também vê a história social européia em termos de transformação gradual da estrutura da personalidade, de uma intensiva dinâmica da “coerção para a autocoerção”, na qual a regulação do corpo humano, tanto quanto nossos impulsos, paixões e desejos são submetidos a um “processo civilizatório”. Para Krieken (1996, p. 156): Elias explica tal processo em temos de uma crescente monopolização da violência que acompanhou o processo de formação do estado, dos efeitos de uma competição intensificada entre e intra grupos sociais característicos da economia de mercado, bem como de uma concomitante tendência histórica em direção à interdependência social crescente. O ponto comum destes dois autores está na noção de que houve uma “socialização do eu”, uma transição da história européia, de uma ordem social baseada na coerção externa (poder soberano, poder tradicional), para uma dependente da internalização da coerção (poder disciplinar, dominação racional) (KRIEKEN, 1996, p. 157). Estudando a história dos costumes e a formação dos Estados nacionais como aspectos interdependentes do processo civilizatório, 16 Anilde Tombolato Tavares da Silva Elias defendia que a civilização deve ser entendida como um processo contínuo e inacabado. Por isso, um dos objetivos de sua teoria é analisar a formação e as alterações sofridas na estrutura psicológica dos indivíduos, e, dessa forma, podemos apontar a infância como um ponto crucial para a moldagem dos padrões de comportamento, visando ao desenvolvimento da sociedade civilizada que, como o próprio autor nos afirma, [...] nada mais é do que o processo civilizador individual a que todos os jovens, como resultado de um processo civilizador social operante durante muitos séculos, são automaticamente submetidos desde a mais tenra infância, em maior ou menor grau e com maior ou menor sucesso (ELIAS, 1994, p. 15). O que propriamente quer nos dizer é explicado numa nota de rodapé, onde argumenta que o que cabe ser frisado é o fato de que, mesmo na sociedade civilizada, “nenhum ser humano chega civilizado ao mundo e que o processo civilizador individual que ele obrigatoriamente sofre é uma função do processo civilizador social” (ELIAS, 1994, p. 15). E é nesse sentido que aponta a semelhança entre a estrutura dos sentimentos e consciência da criança com a das pessoas “incivis”, e, portanto, pressionada a se modelar conforme os padrões de comportamento exigidos pela sociedade civilizada. Atualmente, o círculo de preceitos e normas é traçado com tanta nitidez em volta das pessoas, a censura e pressão da vida social que lhes modela os hábitos são tão fortes, que os jovens têm apenas uma alternativa: submeter-se ao padrão de comportamento exigido pela sociedade, ou ser excluído da vida num “ambiente decente”. A criança que não atinge o nível de controle das emoções exigido pela sociedade é considerada como “doente”, “anormal”, “criminosa”, ou simplesmente “insuportável” do ponto de vista de uma determinada casta ou classe e, em conseqüência, excluída da vida (ELIAS, 1994 ,p. 146, grifo nosso). A infância no processo civilizador 17 É possível, então, entender que a especificidade da teoria de Elias está na indissociabilidade entre o desenvolvimento das estruturas de personalidade e das estruturas sociais; ou seja, não se pode entender as transformações sofridas pelas sociedades separadamente das alterações ocorridas nas estruturas de personalidade dos indivíduos que as formam. Os conceitos de indivíduo e de sociedade não são antagônicos. O controle social altera a conduta ou o padrão de comportamento das pessoas, sendo lentamente transformado, de forma que passe a policiar o próprio comportamento. É o que Elias chama de “controle das emoções”, ou dos impulsos e paixões dos indivíduos que se constitui num dos resultados dos processos de civilização. Para Elias o autocontrole e o superego são precisamente o produto final dos efeitos das coerções externas sobre a psique humana, de uma rede de interdependência ou das coerções exercidas pelos adultos sobre as crianças. A maioria das crianças é moldada dentro de uma conformidade, com um certo padrão, pela coerção externa ou compulsão (KRIEKEN, 1996, p. 159). O controle das emoções e o próprio autocontrole são faces do policiamento do comportamento quando já está internalizado no indivíduo. À medida que a criança vai sendo condicionada desde a mais tenra idade a controlar suas emoções, contribui no processo de civilização da sociedade e vai delineando os padrões de comportamento, ou um conjunto de regras presentes na nossa estrutura psicológica e de práticas cotidianas de convívio social. O padrão de comportamento produz, por sua vez, patamares para as emoções humanas, acima dos quais, sentimentos como a vergonha, o embaraço e repugnância, por exemplo, se explicitam (BRANDÃO, 2000, p. 125). É neste conjunto de regras do padrão de comportamento que a infância se insere, criando um conjunto de regras na estrutura 18 Anilde Tombolato Tavares da Silva psicológica e das práticas cotidianas de convívio social. Lembrando que aquilo que consideramos inteiramente natural é porque “somos adaptados e condicionados a esse padrão social desde a mais tenra infância e teve no início que ser lenta e laboriosamente adquirido para a sociedade como um todo” (ELIAS, 1994, p. 82). A criança até os meados do século XIX era tratada como um “adulto em miniatura” e não se fazia qualquer distinção de tratamento, ou de comportamento entre o adulto e a criança. Os sentimentos de vergonha e nojo não tinham a mesma conotação que têm na sociedade atual. “O grau de comedimento e controle esperado pelos adultos entre si não era maior do que o imposto às crianças” (ELIAS, 1994, p. 146). Hoje percebemos que a criança tem de atingir, em curto espaço de tempo, o nível avançado de vergonha e nojo que demorou séculos para se desenvolver. O padrão que está emergindo em nossa fase de civilização caracteriza-se por uma profunda discrepância entre o comportamento dos chamados “adultos” e das “crianças” (ELIAS, 1994, p. 145). No século XIX, segundo Elias, novos modos são inculcados, do adulto para a criança, através de um discurso verbal, na repetição de comportamentos, na implantação de novos sentimentos. A socialização modifica-se pouco a pouco, passa por mudanças lentas e conscientes realizadas pelos adultos durante séculos, para uma doutrinação rápida e silenciosa e que passa a fazer parte da vida das crianças desde muito cedo. Nenhuma justificativa é oferecida à maioria delas; a cortesia tornou-se absoluta e objetivo a se alcançar. Nas sociedades modernas, a socialização da maioria das crianças automaticamente inculca e reprime um sentimento indispensável para o controle das emoções do indivíduo: a vergonha. A infância é um universo de várias emoções e sentimentos que vão se fundindo para contribuir na formação do adulto inserido no processo civilizador. A vergonha, um dos sentimentos discutidos por Elias, foi o instrumento que a família e a escola usaram para conduzir a repressão das emoções na civilização moderna. A infância no processo civilizador 19 Embora Elias tenha feito uma análise clara sobre a vergonha n’O Processo Civilizador, não foi este o elemento chave de sua argumentação e da sua teoria. Aproveitamos aqui, no entanto, seu reconhecimento da aplicabilidade da análise da vergonha para o problema do controle social inserindo nesta argumentação o papel central que este sentimento representa como ferramenta de disciplinamento da infância. A infância marca o início deste processo de inculcação do sentimento de vergonha e do controle, juntamente com a família e a escola, e se intensifica, na medida em que o padrão de conduta da sociedade é transferido do adulto para a criança, ou “imposto por elementos de alta categoria social aos seus inferiores, ou, no máximo, aos seus socialmente iguais” (ELIAS, 1994, p. 142) Na busca de explicitar o papel da família como retransmissora de padrões sociais e de controle dos instintos de sua prole, Elias se remete ao momento histórico em que a família ganha importância: Só relativamente mais tarde, quando a classe burguesa compreendendo um maior número de pares sociais, torna-se a classe superior, governante, é que a família vem a ser a única – ou, para ser mais exata, a principal e dominante – instituição com a função de instilar controle dos impulsos. Só então a dependência social da criança face aos pais torna-se particularmente importante como alavanca para a regulação e moldagem socialmente requeridas dos impulsos e das emoções (ELIAS, 1994, p. 142). É através desse processo regulador e modelador da família e do adulto sobre a criança que se determinam e criam-se as regras para os sentimentos. Elias vai documentando mudanças graduais, mas de caráter inexorável e usa de estudos dos manuais que contribuíram na imposição de padrões de comportamento e se instalaram de forma silenciosa sobre a confiança de costumes, de estilos; de identidade sobre o respeito, a honra, o orgulho e sobre os sentimentos de vergonha, repugnância e embaraço de cada sociedade. 20 Anilde Tombolato Tavares da Silva Exemplo deste processo é o estudo que faz da obra: Da civilidade em crianças (De civilitate morum puerilum) de Erasmo de Roterdam, um trabalho dedicado pelo holandês a um menino nobre, filho de príncipe e escrito para a educação de crianças. Este manual [...] assinala também, no tocante a essas áreas, um ponto na curva de civilização que representa, por um lado, uma notável elevação do patamar de vergonha, em comparação com a época precedente,e, por outro se confrontando com tempos mais recentes, uma liberdade na referência a funções naturais, uma “falta de vergonha”, que para a maioria das pessoas que adotam o padrão atual pode, a princípio, parecer incompreensível e não raro “embaraçosa” [...] é muito claro que esse tratado tem precisamente a função de cultivar sentimentos de vergonha (ELIAS, 1994, p. 140). Presenciamos isto, ainda hoje, na forte influência do cristianismo em nossos padrões de comportamento que repassamos a nossos filhos, a exemplo da referência à onipresença do “anjo da guarda”, usada até hoje como justificativa para o controle dos impulsos da criança e como instrumento para condicionar alguns padrões de comportamento e reprimir o prazer, de acordo com a conduta social. É comum ver os pais ou professores repreender a criança com frases: “O anjinho da guarda não gosta que você faça isto” ou “O anjo da guarda não vai mais te proteger se você agir deste jeito”. O manual escrito por Erasmo trata de um assunto muito simples: o comportamento de pessoas em sociedade – e acima de tudo, do decoro corporal externo. As razões higiênicas e de saúde receberam mais ênfase neste processo, para obter maior grau de controle dos impulsos e das emoções. Cabe ressaltar que essas razões passaram a “desempenhar um papel importante nas idéias dos adultos sobre o que é civilizado” (ELIAS, 1994, p. 140) sem a percepção da sua relação com o condicionamento das crianças que está em processo. O autor ainda analisa a obra como A infância no processo civilizador 21 [...] um mundo e um estilo de vida que, em muitos aspectos, [...], assemelha-se muito ao nosso, embora seja ainda bem remoto em outros. O tratado fala de atitudes que perdemos, que alguns de nós chamaríamos talvez de ‘bárbaras’ ou ‘incivilizadas’. Fala de muitas coisas que desde então se tornaram impublicáveis e de muitas outras que hoje são aceitas como naturais (ELIAS, 1994, p. 69). Elias nos mostra que o Tratado funciona como um indicador de um novo padrão de vergonha e repugnância que começa a se formar lentamente na alta classe secular, principalmente pela via da educação da criança e que este sentimento é uma função social modelada segundo a estrutura social em que grande parte do que chamamos de razões de “moralidade” ou “moral” preenche as mesmas funções que as razões de “higiene” ou “higiênicas”: condicionar as crianças a aceitar determinado padrão social (ELIAS, 1994, p. 153). É só pensar em como as crianças lidam com a sexualidade e com o corpo na sociedade atual e como lidavam no passado. Outro comportamento que exemplifica isto é o fato de que se comermos com as mãos, em determinada situação, é condenável, uma vez que incorporamos, enquanto segunda natureza, comer com a faca e com o garfo, de uma maneira natural. Jogar o que é considerado lixo, como restos de comida, no chão, da mesa de onde se come, como se fazia no século XIII, é interpretado hoje em dia como sinal de “barbarismo”, de “incivilização”, já que esta atitude de falta de higiene pode ser considerada responsável por atrair insetos portadores de doenças. Percebe-se o quanto o higienismo foi responsável por mudanças de algumas atitudes e que passam a se incorporar desde a infância para a garantia da “civilidade” de uma população. A sociedade está, aos poucos, começando a suprimir o componente de prazer positivo de certas funções mediante o engendramento da ansiedade ou, mais exatamente, está tomando 22 Anilde Tombolato Tavares da Silva esse prazer “privado” e “secreto” [isto é, reprimindo-o no indivíduo], enquanto fomenta emoções negativamente carregadas – desagrado, repugnância, nojo – como os únicos sentimentos aceitáveis em sociedade. Mas exatamente por causa desse aumento da proibição social de muitos impulsos, pela sua “repressão” na superfície da vida social e na consciência do indivíduo, necessariamente aumenta a distância entre a estrutura da personalidade e o comportamento de adultos e crianças (ELIAS, 1994, p. 147). A nós é ensinado desde a infância a nos comportar, a agir conforme um padrão socialmente estabelecido, o que gera uma estruturação de formação afetiva. Nossa estrutura mental, então, incorpora gestos e movimentos concretos, a ponto de esquecermos a nossa natureza animal e chegarmos mesmo a estranhá-la em outros momentos históricos e em nós mesmos e criamos o que Elias considera como segunda natureza. Condenamos atitudes de povos que viviam sobre a sujeira em suas ruas, como na Idade Média, quando as condições de higiene não atendiam ao ideal de padrão atual, entretanto, reproduzimos o mesmo padrão de sujeira, após uma grande festa pública, como comícios ou shows e não estranhamos estes comportamentos. Ao olharmos a história de nosso povo, encontramos atitudes nas quais nos reconhecemos e tantas outras que não seríamos capazes de nos reconhecer nelas. Em data tão recente como o século XVII, o garfo era ainda basicamente artigo de luxo da alta classe, geralmente feito de prata ou ouro. O que achamos inteiramente natural, porque fomos adaptados e condicionados a esse padrão social desde a mais tenra infância, teve, no início, que ser lenta e laboriosamente adquirido e desenvolvido pela sociedade como um todo. Isto não se aplica menos a uma coisa pequena e aparentemente insignificante como um garfo do que às formas de comportamento que nos parece mais importantes (ELIAS, 1994, p. 82). Hoje já não discutimos mais o comportamento à mesa, apenas reproduzimos o padrão de conduta para nossos filhos. Por volta dos A infância no processo civilizador 23 seis meses de vida, quando a criança começa a aprender a comer sozinha, sua primeira natureza faz levar à boca o alimento pelas mãos. Como no nosso padrão de atitudes já incorporadas isto é considerado um comportamento incivilizado, adiamos a autonomia da aprendizagem natural da criança em se alimentar e seguimos com o processo de iniciação ao mundo civilizado dos talheres até mais ou menos dezoito meses de vida; ou seja, a mãe leva o alimento à boca do seu filho até que ele tenha coordenação motora para segurar o talher e levar o alimento à boca sozinho. Os padrões e condutas mudam ao mesmo tempo em que muda a afetividade, diria, talvez, que isto acontece concomitantemente, sem podermos definir o que muda primeiro. E a iniciação aos padrões de comportamentos civilizados continua, ao ensinar a criança a tomar banho, a não andar nua, a diferenciar-se do sexo oposto pelas atitudes ou vestimentas masculinas ou femininas, a não poder tocar nos seus órgãos sexuais diante de outras pessoas. São mostras de que o que está acontecendo é uma mudança de grau de afetividade, que resulta em uma mudança de estrutura cognitiva de aprendizado das emoções, já na infância. O maior ou menor desconforto que sentimos com pessoas que discutem ou mencionam suas funções corporais mais abertamente, que ocultam ou restringem essas funções menos que nós, é um dos sentimentos dominantes no juízo de valor “bárbaro” ou “incivilizado”. Tal, então é a natureza do “malestar” que nos causa a “incivilização” ou, em termos mais precisos e menos valorativos, o mal-estar ante uma diferente estrutura de emoções, o diferente padrão de repugnância ainda hoje encontrado em numerosas sociedades que chamamos de “não-civilizadas”, o padrão de repugnância que precedeu o nosso e é sua precondição. Surge a questão de saber como e por que a sociedade ocidental moveu-se realmente de um padrão para outro, como foi “civilizada” (ELIAS, 1994, p. 72). “Civilização” e “incivil”, como nos afirma Elias (1994, p. 169), são estágios de um mesmo processo que não constituem antítese de 24 Anilde Tombolato Tavares da Silva juízos de valor entre o bem e o mal, certo ou errado. O nosso comportamento “civilizado” pode causar embaraços para as futuras gerações. Imaginemos daqui a trezentos anos, talvez nossos descendentes ao olharem para nós, nos vejam da mesma forma que hoje olhamos para os padrões de comportamentos da Idade Média, sem nos reconhecermos neles. “Dividir uma cama com pessoas estranhas ao círculo familiar fica cada vez mais embaraçoso.” Torna-se mais comum que na mesma família cada um tenha sua cama e hoje já percebemos uma tendência imposta pela privacidade, que cada um tenha seu próprio quarto. Desde cedo as crianças são treinadas nesse isolamento dos demais, com todos os hábitos e experiências que isto traz. Só se lembrarmos como parecia natural na Idade Média que estranhos, crianças e adultos compartilhassem a mesma cama é que poderemos compreender que mudanças nos relacionamentos interpessoais se manifestam em nossa maneira de viver. E reconhecer como está longe de axiomático que a cama e o corpo devam formar essas zonas de perigo psicológicas, como acontece na fase mais recente da civilização (ELIAS, 1994, p. 169). Entretanto, a simples constatação não resolve o padrão de um novo comportamento, o que é necessário é entender como se dá esta transformação em pequenas atitudes cotidianas e historicamente construídas, a fim de contextualizarmos os vários aspectos da infância no processo civilizatório. A “civilização” que estamos acostumados a considerar como uma posse que aparentemente nos chega pronta e acabada, sem que perguntemos como viemos a possuí-la, é um processo ou parte de um processo em que nós mesmos estamos envolvidos. Todas as características distintivas que lhe atribuímos – a existência de maquinaria, descobertas científicas, formas de Estado ou que quer que seja – atestam a existência de uma estrutura particular de relações humanas, de uma estrutura social peculiar, e de correspondentes formas de comportamento. Resta saber se a mudança em comportamento, no processo social da “civilização” A infância no processo civilizador 25 do homem, pode ser compreendida, pelo menos em fases isoladas e em seus aspectos elementares, com qualquer grau de precisão (ELIAS, 1994, p. 73). Os costumes estão enraizados nas sociedades de tal maneira que não nos cabe julgar se são “civilizados” ou não, o que interessa é saber como eles são importantes e necessários exatamente da maneira como aparecem. Há alguns anos, seria “normal” em nossa sociedade irmos até a praia e deixarmos um rastro de sujeira atrás de nós. Hoje, nos últimos vinte anos, talvez, o mesmo ato desperta em algumas pessoas um sentimento de repulsa e de “incivilização”. Durante o processo não percebemos totalmente todas as nuances, entretanto, elas se dão no cotidiano, em pequenas atitudes que podem revelar grandes compreensões de uma série de aspectos que elegemos como importantes. As relações humanas tomam formas, se moldam, a partir da estrutura social em que estão envolvidas, gerando o comportamento que passa a ser incorporado ou não. Nem sempre pode nossa consciência, sem hesitação, recordar essa outra fase de nossa própria história. Perdeu-se para nós a franqueza despreocupada com que Erasmo e seu tempo podiam discutir todas as áreas de conduta humana. Grande parte do que ele diz ultrapassa nosso patamar de delicadeza (ELIAS, 1994, p. 72). As crianças eram ensinadas, há trinta anos, que a água era um recurso inesgotável, pois o processo de evaporação das águas dos rios transformava-se em chuva e assim completava-se o ciclo inesgotável da água. Hoje as crianças estão sendo ensinadas a mudar este comportamento, já que a água é um recurso escasso e está acabando, podendo comprometer a vida do planeta. A infância contemporânea já adquiriu esse novo comportamento e as nossas crianças já demonstram atitudes simples que expressam nas atividades escolares, através de desenhos, cartazes, ao aprender a fechar a torneira depois de usar, a não desperdiçar água ao tomar banho, a se manifestar ao 26 Anilde Tombolato Tavares da Silva ver um rio próximo de sua casa poluído. Ainda não são comportamentos que se naturalizaram entre os indivíduos da nossa sociedade, mas já apontam para este fim. Enfim, podemos perceber que não há radicalização abrupta nas formas de mudanças comportamentais para as quais os tempos históricos exigem de determinadas relações humanas figurações em uma formação social cuja dimensão é variável. O equilíbrio de tensões será responsável por modelar as dependências recíprocas entre os indivíduos. Mas, percebe-se que as relações, no que se refere à infância, sofreram transformações e só agora, na era que tem sido chamada “o século da criança”, surge o entendimento de que, dado o aumento da distância entre uns e outros, crianças não podem se comportar como adultos que lentamente iriam penetrando no círculo familiar com os apropriados conselhos e instituições pedagógicas (ELIAS, 1994, p. 169). Tem início aí a preocupação da sociedade com a educação da criança – para modelá-la ao processo civilizador – de acordo com os padrões de comportamento aceitos no mundo dos adultos. A educação escolar tem seu papel fundamental, juntamente com a família, para a continuidade do processo civilizador, que vai se construindo, na medida em que o indivíduo, desde a infância, passa a ter um novo padrão de comportamento, ou uma estrutura psicológica com novas características, atuando de maneira diferente na sociedade, ajudando a modificar as relações sociais nela existentes. É uma relação de correspondência constante e histórica entre as estruturas psicológicas e sociais, que vão passando de geração a geração, e assim formando o processo civilizador de Norbert Elias. A infância no processo civilizador 27 INFANCY IN THE CIVILIZER PROCESS Abstract: The present work intends to discuss some issues concerning the civilizer process of the German sociologist, Norbert Elias. Specifically, the contributions of childhood as they relate to the corresponding relations which occurred between social changes and psychological structure alterations of individuals affecting patterns of behavior, so that we can think about the contributions of childhood for this process. We base this study on the work entitled The Civilizer Process, in which the author makes a historical analysis of the changes in the development of personality and social rules in the formation process of modern civilization for the present. Understanding civilization as an unfinished and ongoing process, we point out childhood as a crucial feature for the modeling of patterns of behavior of the individual for the development of modern society. Keywords: Childhood. Civilizer Process. Behavior Pattern. Referências bibliográficas BRANDÃO, Carlos Fonseca. A teoria dos processos de Civilização de Norbert Elias: o controle das emoções no contexto da psicogênese e da sociogênese. 2000. Tese (Doutorado em Educação) – Unesp de Marília, 2000. ELIAS, Norbert. O processo civilizador. A formação do Estado e civilização. Rio de Janeiro: Zahar, 1993. ______. O processo civilizador. Uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Zahar, 1994. FOUCAULT, M. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 1987. KRIEKEN, Robert van. A organização da alma: Elias e Foucault sobre a disciplina e o eu. Plural, São Paulo: USP (Sociologia), n. 3 p. 153180, 1. sem. 1996. DOSSIÊ TEMÁTICO Infância e Educação LIPMAN E O ENSINO DE UMA FILOSOFIA IDEAL Liliane Barreira Sanchez* Resumo: Este trabalho apresenta os princípios gerais do Programa de Filosofia para Crianças de Matthew Lipman, questiona alguns de seus pressupostos filosóficos e pedagógicos, criticando seu caráter normativo e contraditório. Questiona os objetivos deste programa, baseado no ensino da lógica e na formação de valores. Critica a proposta de neutralidade política e ideológica de um ensino de filosofia, que pretende formar bons cidadãos para conviver em uma sociedade democrática ideal, através do uso de metodologias específicas para esse fim. Palavras-chave: Filosofia. Educação. Infância. Na década de 60, o filósofo norte-americano Matthew Lipman sistematizou um programa de ensino de filosofia para crianças, com o qual pretendia reformar o sistema educacional americano, a seu ver até ali incapaz de promover o desenvolvimento adequado do raciocínio e Doutoranda em Filosofia da Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). E-mail: [email protected]. * APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano III n. 4 p. 29-48 2005 30 Liliane Barreira Sanchez da capacidade de julgar dos alunos. Para tanto, segundo Lipman, a prática da filosofia era indispensável. Além de buscar fundamentar teoricamente o papel da filosofia na educação das crianças, o autor desenvolveu uma metodologia e um currículo específicos, destinados às escolas. Dessa forma, institucionalizou uma nova área de interesse da educação (e por que não dizer, da própria filosofia?): o de fazer filosofia com crianças. A proposta, que chegou ao Brasil na década de 80, é atualmente aplicada em mais de 30 países do mundo, tendo inspirado críticas e alternativas. Da mesma forma, muitos dos estudos, dissertações e teses a que deu origem pretendem hoje questionar suas bases, sua metodologia e prática. Em que pesem todos os questionamentos a que vem sendo submetida, talvez um dos méritos que não se pode negar à iniciativa de Lipman é o de trazer para o campo da reflexão filosófica um objeto que pouco a freqüentou: a infância. Além disso, é preciso reconhecer que, ao menos pelas reações que suscitou, a proposta de Lipman reavivou o debate sobre a qualidade crítica do ensino de filosofia correntemente ministrado nas salas de aula. Muitos são os trabalhos que, principalmente entre as décadas de 70 e 90, debruçaramse sobre este assunto, motivados pelas discussões sobre a retirada do ensino de filosofia da grade curricular, na época da ditadura militar, e seu posterior retorno, num momento considerado de “abertura política”. A maioria destes trabalhos enfatizava o prejuízo ocasionado pelo caráter formal e artificioso que acompanhava a tradição didática da filosofia, que regularmente substituiu a busca de desenvolvimento do pensamento original dos alunos pela transmissão de uma história de autores e correntes. A filosofia acabava por tornar-se uma disciplina enfadonha, com datas e nomes a serem decorados, ao invés de uma disciplina estimuladora de questionamentos e raciocínios criativos. O que pretendemos com este trabalho, a despeito da grande e variada quantidade de críticas que a proposta lipmaniana vem recebendo, é concentrar nosso foco na abordagem que tal proposta apresenta sobre o ideal de um ensino de filosofia, ou, como dissemos Lipman e o ensino de uma filosofia ideal 31 no título, sobre “o ensino de uma filosofia ideal”. Com isso, acreditamos estar oferecendo uma contribuição, ainda que provisória, para aquilo que vem sendo o principal objeto de nossa preocupação: o caráter expansionista de tal proposta, sua disseminação mundial e sua assimilação pouco crítica em alguns contextos. Consideramos ser uma tarefa urgente analisar os pressupostos ideológicos que a embasam, tendo em vista as prováveis conseqüências que sua adoção poderá acarretar ao campo da educação e da filosofia, sobretudo em nosso país. Não podemos deixar de mencionar que tal proposta é igualmente merecedora de análises críticas no que diz respeito a muitos outros aspectos que lhe são próprios – sejam eles de natureza prática, tal como a sistemática preconizada pelo autor e sua equipe para a adoção e a comercialização do Programa, sejam eles de ordem teóricoconceitual, como é notadamente o caso, dentre outros, da visão do papel do professor, da concepção de democracia e cidadania e do tipo antropológico de aluno e de infância que estão nas bases do projeto. No que diz respeito ao nosso objetivo, identificamos uma fundamentação claramente normativa na proposta lipmaniana. O autor se preocupa em descrever como “deve ser” uma educação filosófica das crianças, partindo de quatro conceitos: filosofia, investigação, diálogo e educação democrática. Segundo o autor, faz-se filosofia quando se praticam regras que se definem pelos parâmetros lógicos e metacognitivos de um diálogo ou uma investigação. Lipman identifica como filosóficas as perguntas que questionam um tema comum (que tenha a ver com todos os seres humanos e não apenas com alguns poucos, que tenha a ver com a “humanidade” dos seres humanos), central (que despreze detalhes ou particularidades sem maior significado, e coloque questões de importância para a vida, tais como: liberdade, vida, morte, amizade) ou controverso (capaz de gerar uma polêmica nunca esgotada pela investigação). Lipman concebe como “investigação” toda prática autocrítica e autocorretiva. Ele propõe a criação da “comunidade de investigação” como “novo paradigma” em educação, pelo qual as aulas deveriam 32 Liliane Barreira Sanchez deixar de ser aquilo que são, para converter-se em círculos de investigação filosófica. O conceito de “comunidade de investigação” recebe influência significativa da tradição pragmatista, representada nos Estados Unidos por Charles S. Peirce e John Dewey, entre outros. Em particular, Lipman fundamenta sua teoria usando como base os conceitos de comunidade e de investigação presentes na filosofia de Charles S. Peirce, destacando sua importância no processo de produção do conhecimento. Para Peirce, a dúvida é o elemento inicial de uma investigação científica, que envolverá a comunidade num processo de busca de respostas (crenças). Porém, essas respostas (crenças) também devem ser continuamente confrontadas com as experiências vividas (empirismo), fazendo com que o processo de conhecimento seja uma infinita busca por argumentações e contra-argumentações, ou uma investigação sempre aberta a novas verdades e possibilidades. Desta forma, as respostas a serem produzidas (crenças), quando consolidadas depois de alguns confrontos, tornar-se-iam mais firmes, mais consistentes. Porém, como é no âmbito da própria comunidade que essas crenças se solidificam, nela encontrando seu solo e suas possibilidades de interpretação, a comunidade desempenha um papel crucial no processo do conhecimento, fixando antecipadamente, podese dizer, as metas e os limites de cada investigação. Percebe-se, assim, que a transposição operada por Lipman do ideal peirciano de “comunidade científica” para o campo da filosofia não se dá sem um custo ideológico bastante alto. Para Lipman, a comunidade é o lugar do diálogo filosófico, que é o caminho autêntico para se fazer filosofia. O autor entende que uma pessoa se constitui pelas normas e valores que adquire no convívio social, por isso, é de suma importância cultivar atitudes democráticas e filosóficas na sala de aula, na comunidade de investigação, para que se possam formar alunos com ideais democráticos e atitudes filosóficas. É de suma importância o estabelecimento de tal comunidade, já que, ao estimular o que ele chama de “diálogo filosófico”, ela forneceria desenvolvimento ao modelo ideal de sociedade, que, por sua vez, Lipman e o ensino de uma filosofia ideal 33 produziria o modelo ideal de indivíduos. Toda a proposta de Lipman é assim definida por “modelagens”, pela busca de um ideal de homem a ser alcançado através da educação filosófica das crianças. Quanto a Dewey, sua influência sobre Lipman se faz especialmente visível em sua definição de educação. Dewey vê a educação como uma forma de aprimorar a experiência do estudante, reorganizando-a, reconstruindo-a, enriquecendo-a. Esse enriquecimento se dá através das ferramentas que a educação propicia ao estudante para o aprimoramento de suas experiências futuras. Para isso, é preciso que a educação escolar forneça os instrumentos que propiciem ao aluno o estabelecimento de contínuas conexões entre a experiência do passado, do presente e do futuro, entre a experiência social e individual. Dewey vê na escola o espaço de construção do pensamento do aluno. Por isso, critica a concepção de ensino-aprendizagem baseada apenas na transmissão de conteúdos, que ele considera um processo passivo de aprendizado. Longe de desprezar o conhecimento, ele o considera como um meio para aprimorar o desenvolvimento do pensamento e julgamento do aluno, que seriam as atividades principais do processo educativo. Para Dewey, enfim, a educação é um processo de troca entre os interesses dos estudantes, suas inquietações e as demandas sociais que a escola representa. Nesses termos, estabelece-se a importância que Dewey atribui à filosofia, como disciplina que, por excelência, cultiva o pensar e problematiza a experiência. O autor rejeita a concepção especulativa da filosofia que não se compromete com a experiência social: para ele, esta disciplina está intimamente relacionada à concepção de educação, com a qual compartilha suas finalidades, promovendo o enriquecimento da experiência, e seu questionamento. Porém, são evidentes os limites que a filosofia recebe na formulação de Dewey, que a concebe como uma teoria geral da educação, não reservando à disciplina qualquer lugar especial na prática educativa – ao contrário do que é levado a fazer em relação às ciências, para as quais reserva um espaço mais do que central. Poder-se-ia dizer que Lipman toma em contrapelo as disposições de 34 Liliane Barreira Sanchez Dewey, não fossem, em sua obra, as fronteiras entre filosofia e ciência tão pouco nítidas. Lipman se fundamenta, ainda, na estreita relação que Dewey constrói entre educação e democracia. Para ambos os autores, a democracia é a forma de vida mais apropriada ao enriquecimento humano, pois apenas num contexto democrático é possível ao homem problematizar e recriar os diversos aspectos de sua experiência. Como as instituições educativas atuam na ordem social, os autores propõem uma educação “para” e “na” democracia, na medida que uma provê as ferramentas necessárias aos estudantes para o desenvolvimento da outra, e vice-versa. A educação deve cumprir uma função democratizante na vida social dos alunos, possibilitando a compreensão dos fundamentos da ordem social, suas causas e conseqüências. Somente o contexto democrático garante a liberdade e a possibilidade da investigação e do pensamento. Lipman pretende valorizar essa relação entre educação e democracia centralizando seu foco no ensino da filosofia. Ele considera que desde o início da formação escolar as crianças estão aptas à prática da filosofia. Assim, caberia à filosofia preparar as crianças para pensar nas outras disciplinas, isto é, tanto para pensar a partir quanto sobre cada disciplina; e lhe caberia, igualmente, outorgar unidade ao que aparece, no currículo, disseminado. Lipman considera a filosofia como uma prática que fornece à experiência educacional seu sentido e as ferramentas que lhe são indispensáveis. Para construir um diálogo entre as crianças e a tradição ocidental da filosofia, Lipman criou “novelas filosóficas”, que, segundo ele, apresentariam os problemas filosóficos em linguagem e contexto considerados adequados para os seus leitores. Por outro lado, Lipman postula o interesse das crianças como o ponto de partida de toda investigação nas salas de aula. Assim sendo, o programa “filosofia para crianças” seria o produto da interação entre os interesses, problemas e inquietudes das diferentes faixas etárias e aquilo que a metodologia lipmaniana preparou para desenvolvê-los “adequadamente”. Lipman e o ensino de uma filosofia ideal 35 Instrumentos centrais dessa metodologia, as “novelas filosóficas” escritas pelo próprio autor e seus colaboradores, apresentam diálogos entre crianças, pais, vizinhos, professores, tentando simular situações com as quais as crianças-leitoras possam se identificar. As criançaspersonagens representam modelos de “investigadores” que debatem questões significativas do seu cotidiano. Para que os professores sem formação filosófica possam lidar com a proposta em sala de aula, Lipman também elaborou manuais que propõem exercícios e planos de discussão a partir das idéias principais contidas nas novelas. Contamse, ao todo, oito novelas, adequadas para as diferentes séries escolares; no Brasil, somente cinco foram traduzidas e aplicadas. Elas se propõem a trabalhar principalmente temas lógicos (raciocínio analítico) e éticos. Um ponto ausente na proposta de Lipman é a consideração das implicações que o fechamento ideológico em que vivem as sociedades e grupos sociais poderia suscitar em seu programa. De fato, apesar dos seus pressupostos teóricos de sustentação, a proposta de Lipman pretende que as aulas de filosofia para crianças possam ser ideologicamente neutras – ou capazes de neutralizar a ideologia que as crianças trazem de seu meio. Seria possível formar cidadãos críticos por meio de aulas de filosofia ideologicamente neutras? Seriam possíveis aulas de filosofia ideologicamente neutras? Então, de que filosofia estamos falando? Vários filósofos e educadores, ao longo da história da educação, defenderam diferentes argumentos, métodos e objetivos sobre o sistema educacional; todos eles, divergentes ou não, apontam, porém, para uma direção que não deixa dúvidas: a grande importância social de um sistema educativo para a manutenção ou transformação de um regime político e econômico de governo. Sendo assim, e levando-se em conta a dimensão da aceitação de que a proposta lipmaniana tem sido objeto, cabe questionar: o que pretende claramente essa proposta e o que dela podemos esperar? Que ideologias políticas e pedagógicas sustentam os argumentos teóricos que pretendem fazer do ensino de filosofia uma ferramenta para a formação de cidadãos críticos, 36 Liliane Barreira Sanchez participativos e éticos? Que metodologias e conteúdos têm sido aplicados ou sugeridos em sala de aula e em que medida eles têm sustentado uma prática coerente com a proposta teórica? Lipman, seguindo Dewey, prioriza o desenvolvimento do pensamento e do julgamento no processo educacional. Por considerar a filosofia como a disciplina dedicada ao pensamento, reserva-lhe lugar de destaque de máxima importância no currículo escolar: ela seria capaz de problematizar a realidade, contribuindo inclusive para a problematização dos diferentes conteúdos das outras disciplinas e construindo uma ponte de “sentidos” capaz de unificar o currículo escolar. Segundo o autor, a filosofia seria, mais ainda, capaz de transformar o modo de vida das pessoas, por fazê-las capazes de pensar melhor, de investigarem com espírito crítico e criativo, de serem mais razoáveis e de serem mais cuidadosas em suas relações sociais e intelectuais. Enfim, a filosofia se revelaria a própria base da educação, na medida em que se apresenta como ferramenta para o desenvolvimento de todo o pensar – tanto aquele que denomina de “normal” (ou cotidiano) quanto o que define como “Pensar de Ordem Superior”. O primeiro seria o pensamento acrítico e mecânico, enquanto que o segundo combinaria as três características máximas da reflexão: criticidade, criatividade e cuidado. Por criticidade no Pensamento de Ordem Superior, Lipman entende a capacidade questionadora e deliberativa que problematiza, examina e avalia as razões, os fundamentos e as crenças. Um pensamento crítico é autocorretivo e sensível ao contexto no qual está inserido. Por criatividade, o autor entende a capacidade de inovar, de ser pluralista e independente, aplicando determinados critérios na busca de juízos que transcendem a si mesmos e enfatizando a variedade e a diferença. Por cuidado ele entende a aplicação de valores no próprio pensar, considerando a dimensão da emoção daquilo que se aprecia, que se considera importante, valoroso, tal como o exemplo de uma obra de arte ou a atenção dada às relações humanas. Lipman e o ensino de uma filosofia ideal 37 Estes elementos convergem para o primeiro ponto que gostaríamos de destacar no Programa de Lipman: trata-se da idéia de que crianças que aprendem a desenvolver um Pensar de Ordem Superior se tornariam, de forma quase que necessária, razoáveis, tolerantes, respeitosas e democráticas. É desta forma que Lipman fundamenta a função sociopolítica da “educação para o pensar”. Assim sendo, compreende-se que a filosofia para crianças apóia-se em uma normatividade pela qual se pretende que, através do uso e desenvolvimento de algumas ferramentas lógicas e cognitivas, se desenvolva um determinado tipo de ser humano capaz de um determinado tipo de convivência na sociedade. Eis porque e sobre que bases Lipman enfatiza a necessidade de se ensinar “filosofia” desde a mais tenra idade, registrando a tempo e a contratempo a necessidade de que esse ensino as acompanhe por toda a vida escolar, direcionando o currículo e a própria educação: disso depende, em sua avaliação, a certeza de formação de um bom cidadão democrático, que seria fruto necessário dessa proposta educativa. Envolvendo as crianças em diálogos filosóficos nas comunidades de investigação, já se estaria desde cedo fazendo com que elas vivenciem um “modelo” que vale pela própria democracia, com que elas se acostumem às regras democráticas da deliberação e do respeito ao próximo. Um segundo ponto a destacar é o do próprio terreno sobre o qual o autor edifica sua proposta filosófica de formação de cidadãos críticos, criativos e cuidadosos. Como dissemos, Lipman afirma, repetidamente, que a democracia precisa da filosofia como ferramenta de preparação para a deliberação democrática. Porém, para o autor, o fiel do diálogo filosófico em uma comunidade de investigação é a lógica – que garantiria a sua condução e direção. A lógica direcionaria o diálogo, não permitindo que ele se perdesse ou se tornasse confuso. Ela se apresenta, pois, no projeto lipmaniano como a metodologia implícita que conduz a investigação. Mais ainda, para Lipman, a lógica é fundamental no raciocínio, possibilitando a descoberta do critério da verdade. Um bom pensador, imagina o autor, precisa dominar alguns 38 Liliane Barreira Sanchez critérios, tais como: narração, descrição, análise de conceitos, tradução de significados, interpretações, inferências, capacidade para sínteses e para se pôr no lugar do outro… e seria a lógica a garantia de aquisição de, pelo menos, alguns desses, senão de todos. Em sua proposta de “educação para o pensar”, Lipman pretende trabalhar o tema específico da lógica com crianças de 10/11 anos de idade, o que equivale no Brasil à 5ª série do ensino fundamental. A novela destinada a essa função recebeu, na tradução brasileira, o título de A descoberta de Ari dos Telles (supostamente uma brincadeira com o nome de Aristóteles) e seu manual de instruções (dedicado ao uso dos professores) foi intitulado Investigação filosófica. Em ambos os volumes, trata-se de ensinar, através de situações de diálogos entre os personagens, os conteúdos básicos da lógica identitária e de relações, tal como se apresenta na experiência “informal”; mas, um espaço considerável é reservado à formalização aristotélica. Não se registra, entretanto, em qualquer passagem de tal novela, a preocupação em mostrar as possibilidades de contestação das verdades lógicas, assim como não há um propósito aparente para se questioná-la. Trata-se apenas da imposição de uma ferramenta que deve ser ensinada aos alunos, que deve ser internalizada por eles, da mesma forma como acontece com os personagens das novelas. Para garantir um bom resultado desse aprendizado, o manual oferece um grande número de exercícios que devem ser aplicados pelo professor. Ao atribuir tamanha importância à lógica, Lipman define o tipo de enfoque dado à filosofia e ao pensamento em sua proposta, que, longe de enfatizar o caráter provisório, aberto e plural da reflexão filosófica, privilegia o estabelecimento de determinadas regras e parâmetros que, segundo o autor, permitiriam a construção daquilo que é por ele denominado “pensamento”. Repare-se que é esse privilegiamento da lógica que determina o caráter aparentemente “neutro” do ensino filosófico, em nome do qual o caráter conflitual do campo político se esfumaça e a educação passa a servir a apenas uma abordagem da filosofia – ainda que o autor insista em proclamar Lipman e o ensino de uma filosofia ideal 39 que seus propósitos servem a um regime democrático de governo. É esse privilegiamento, ainda, que fornece ao autor as bases de definição apriorística das regras e das metas da democracia, da mesma forma como permite determinar de forma acabada e universal a “filosofia” que deve ser aplicada, seus objetivos, métodos e mesmo seus instrumentos – as novelas e manuais. Profundamente determinista, a concepção de ensino de filosofia proposta por Lipman deixa, é evidente, pouco ou nenhum espaço para um diálogo com outras possibilidades do vir a ser, não oferece qualquer abertura ao novo, ao outro, a algo que possa ser diferente dessas definições. Fecha por completo a discussão filosófica. Correlata à tentativa implícita de “neutralização” da reflexão filosófica, a pretensão à universalidade que atravessa o projeto de ensino de filosofia para crianças introduz problemas insolúveis para a proposta lipmaniana. Tanto a filosofia como a educação são práticas históricas e sociais. Os materiais de Lipman (novelas e manuais) foram produzidos nos Estados Unidos, nas quatro últimas décadas: apesar da especificidade dos temas e diálogos neles contidos, mantêm uma pretensão de universalidade. Mas, por um lado, se de fato os temas filosóficos dizem respeito à humanidade em geral (macrocosmo), em que condições poderiam eles fundamentar um pensar sobre a prática sempre particular de cada contexto? Por outro, sendo impossível negar que a recepção desses temas deve (ao menos teoricamente) variar segundo esses contextos e culturas que atravessam (microcosmo), que espaço é concedido pelo programa à originalidade das criações locais? É preciso, assim, pensar sobre as implicações do uso de materiais previamente formulados e sua intencionalidade. Em que sentido e até que ponto é possível conciliar a defesa de uma educação democrática à oferta de manuais acabados? Como conciliar a determinação contida nos pressupostos, métodos, procedimentos e instrumentos com a defesa de uma investigação filosófica? Nesse sentido, a normatividade presente em todos os aspectos, teóricos e práticos, da proposta de Lipman denunciam seu caráter profundamente contraditório. 40 Liliane Barreira Sanchez Repare-se, no entanto, que muito do sucesso amealhado pelo Programa de Filosofia para Crianças repousa no caráter acabado, operacional da proposta de Lipman – que se oferece como um conjunto programático até os mínimos detalhes. Não há dúvidas, ainda aqui, que é a lógica a ferramenta de conversão de seu sistema em um programa tão sedutor, por sua acessibilidade e sua convergência. Mas como poderiam a educação democrática, e a reflexão filosófica se acomodarem a materiais e metodologias que pressupõem uma concepção tão instrumental da filosofia? Assim, o milagre operado por Lipman parece depender inteiramente da redução das realidades humanas, inclusive das questões éticas apresentadas em suas novelas, ao que permite o emprego das ferramentas lógicas de seus manuais. Lipman pretende que lógica e ética estejam presentes em todas as novelas, porém define Ari como a novela que aborda principalmente o ensino de lógica e Luísa como a que aborda a discussão de temas éticos. Luísa é uma novela destinada a crianças de 12/13 anos – e, no Brasil, deveria ser adotada na 7ª e 8ªséries do ensino fundamental. Em outras palavras, o método prevê que o aprendizado das ferramentas lógicas seja anterior à discussão ética, por pressupor que o primeiro é condição da segunda. Além disto, não se preocupa o autor em fornecer argumentos que justifiquem a eleição dos temas propostos para a discussão, sua real importância, ou seus verdadeiros propósitos. Lipman limita-se a apresentá-los, pretendendo que sejam universais, em oferecer elementos que pudessem favorecer sua (re)contextualização. Essa imposição fornece um caráter artificial e uma superficialidade que dificilmente podem ser superados pelo professor, e que acabam por determinar o formalismo com que professores e alunos são conduzidos a se relacionar com a questão ética.1 Lipman fundamenta seu conceito de educação ética em três autores: Aristóteles, Kant e Mill. Do primeiro, afirma extrair a idéia de que a função que caracteriza os seres humanos é viver de acordo com a razão e que uma coisa pode ser considerada boa quando cumpre bem sua função: por isso, quanto mais racional for o homem, mais chances tem de ser bom. Do segundo, retira o conceito de “lei moral universal”, pela qual os seres humanos devem agir de acordo com aquilo que consideram ser a forma correta de todos agirem. Do terceiro, adota a abordagem utilitarista, o conceito de felicidade geral, a relação entre 1 Lipman e o ensino de uma filosofia ideal 41 Note-se, no entanto, que Lipman afirma que não se deve pretender prover as crianças com teorias éticas predeterminadas, que sirvam de guias de suas condutas, mas sim capacitá-las através da investigação com as ferramentas de raciocínio necessárias para um bom pensar (autocrítico e autocorretivo). Ressalta ainda que é a filosofia que pode cultivar todas as habilidades de pensamento que os assuntos sociais possam requerer, através do desenvolvimento de conceitos, da capacidade de definições, de inferências, de conexões, distinções, e raciocínio analógico. Porém, considera que o caráter das pessoas também tem importância significativa para a vida dos cidadãos. A afirmação seguinte evidencia a relação que o autor estabelece entre educação ética e o desenvolvimento de algumas habilidades atribuídas por ele ao ensino de lógica: Uma pessoa que tem o caráter de “bom cidadão” é aquela que internaliza – isto é, adota como seus – os mecanismos sociais de racionalidade na prática institucional. Assim, membros de um comitê de seleção, cujas crenças e atitudes pessoais são diversas, concordarão com a necessidade de imparcialidade de evidências, especificações de trabalho claras e precisas, metas, objetivos e critérios de avaliação para que os candidatos sejam escolhidos justamente (LIPMAN, 1990, p. 67). Contrariamente a sua proposta de um ensino de filosofia “neutro”, o autor afirma que, propositalmente ou não, quem ensina algo está sempre ensinando valores também e que o que deve ser feito é estar atento para um ensino “melhor” de valores, que sejam mais o bem de cada indivíduo e o bem de todos. Da junção desses elementos, Lipman formula seu ideal ético, baseado no uso adequado das habilidades cognitivas, na busca por um consenso razoável, apoiado em argumentos racionais e no diálogo filosófico e democrático. Para Lipman, as crianças devem ter a possibilidade de experimentar a vida num contexto de respeito mútuo, de diálogo disciplinado, de investigação cooperativa, livre de arbitrariedade e manipulação, contexto este que é o que ele idealiza como sendo uma classe de filosofia para crianças, uma “comunidade de investigação”. Ele afirma que nada aprimora mais as habilidades de raciocínio do que uma conversa disciplinada e que esta, por sua vez, deve seguir às regras dadas pela lógica (LIPMAN, 1990, p. 67). É como um trabalho circular, no qual as habilidades direcionam o diálogo, ao mesmo tempo em que são reforçadas por ele. Para o autor, o diálogo é a condição da civilidade. 42 Liliane Barreira Sanchez racionais e saudáveis. Para isso, ele sugere que se trabalhe com alguns critérios, tais como a abordagem da ambiguidade de valores, através da qual os valores considerados genuínos seriam aqueles oriundos da investigação de valores; o fortalecimento do caráter, entendendo por caráter o conjunto de hábitos que uma pessoa dispõe para comportar-se de modo recomendável em relação às obrigações cívicas (em se tratando de educação de valores, de formação ética), através do envolvimento das crianças em discussão de valores de maneira participativa e cooperativa, acatando as regras da discussão, ouvindo umas às outras, dando razões de seus pontos de vista e pedindo razões de seus colegas, aprendendo a apreciar a diversidade de perspectivas e a necessidade de contextualização; a aplicação das habilidades de raciocínio, representadas pelo uso de categorias lógicas (fazer inferências, trabalhar com coerências e contradições, lidar com ambiguidades, formular questões, compreender relações, dar razões, identificar suposições, fazer analogias, desenvolver conceitos, generalizar, reconhecer imprecisões, construir hipóteses, contextualizar, antecipar, prever e estimar conseqüências, classificar e categorizar); a avaliação como foco da investigação de valores, partindo da idéia de que o modo disperso pelo qual geralmente pensamos não é o modo como podemos e devemos pensar, mas sim podemos e devemos estar constantemente avaliando e reavaliando tudo o que envolve o nosso pensamento (inclusive ele próprio), através do emprego de critérios de aperfeiçoamento e conscientização; e o uso de uma pedagogia apropriada para a investigação de valores, que deve assumir a forma de investigação dialógica, numa atmosfera de cooperação intelectual e respeito mútuo, para que as crianças possam se familiarizar com os diferentes pontos de vista e perspectivas, possam se acostumar a desafiar e serem desafiadas, a dar razões, a refletir crítica e objetivamente sobre os seus e os pontos de vista alheios e, enfim, tornarem-se mais confiantes. A filosofia é, para Lipman, a disciplina ideal, capaz de prover o ambiente ideal para que as características necessárias a uma educação de valores aconteça, não só por considerar a ética um ramo da filosofia, Lipman e o ensino de uma filosofia ideal 43 mas também por considerar que os modelos de discussões e investigações filosóficas sempre levam a um aprendizado sobre relações humanas e sociais, sempre levam a uma tomada de consciência em relação ao outro, aos seus argumentos e a uma reavaliação de sua própria postura e de seus próprios argumentos. Diz o autor: “Quando se trata de raciocínio ético, a filosofia é um método indispensável, a subdisciplina da lógica é um aparato indispensável” (LIPMAN, 1990, p. 95). Mas, seria a filosofia um “método” para se ensinar alguma outra coisa (no caso, valores)? Ou seria a filosofia um conjunto de conteúdos a serem ensinados? Essas e outras perguntas acompanham os profissionais da área, desde o início de suas formações, principalmente se resolvem seguir carreira como professores, o que ocorre na maioria das vezes. Afinal, o que deve ser ensinado em uma aula de filosofia e por quê? Enquanto diversos profissionais da área tentam aprofundar essa questão em encontros, seminários e congressos, Lipman oferece sua resposta através de sua definição de filosofia: A filosofia tenta clarear e iluminar assuntos controversos e desordenados que são tão genéricos que nenhuma disciplina científica está equipada para lidar com eles. Os exemplos poderiam ser conceitos como verdade, justiça, beleza, individualidade e virtude. Ao mesmo tempo, a filosofia tenta perturbar nossas mentes em relação àqueles assuntos que tendemos a tomar por certos, insistindo que prestemos atenção aos aspectos que até agora achamos conveniente relevar. Qualquer que seja o assunto, entretanto, o objetivo da filosofia é o de cultivar a excelência no pensamento, e os filósofos fazem isso examinando o que é pensar historicamente, musicalmente, matematicamente – em uma única palavra, pensar excelentemente nas disciplinas. Todavia, há algo de mais significativo que a filosofia traz à procura da excelência no pensamento, e que é sua subdisciplina de lógica. A lógica é uma disciplina normativa em vez de descritiva. Isto é, ela não se esforça para descrever como as pessoas pensam, mas oferece, em vez disso, critérios por meios dos quais podemos distinguir um bom pensamento de um mau pensamento. Ainda que os lógicos possam divergir sobre uma ou outra questão, é em geral reconhecido que as considerações da lógica são de grande 44 Liliane Barreira Sanchez importância na determinação do que significa ser racional. Uma vez que a racionalidade é o objetivo primordial da educação refletiva, a lógica tem muito com o que contribuir ao cultivo do pensamento. [...]. [...] Se filosofia é o que fazemos quando nossas conversas tomam a forma de investigação disciplinada por considerações lógicas e metacognitivas, não temos o direito de negar o termo ‘filosofia’ àquelas conversas entre crianças que empregam essa mesmíssima forma.. Antes de considerarmos em mais detalhes a contribuição que a filosofia pode dar ao fortalecimento das habilidades de pensamento, deveríamos levar em consideração os modos pelos quais as áreas distintas da filosofia podem contribuir para o fortalecimento da educação. As principais áreas a serem mencionadas aqui são epistemologia, lógica, metafísica, ética e estética. Muito da fragilidade da educação moderna pode ser observado a partir do momento em que são eliminados do currículo assuntos normalmente tratados por essas subdisciplinas (LIPMAN, 1990, p. 112). Lipman estrutura suas aulas de filosofia para crianças da seguinte forma: • Leitura de uma parte do texto (um episódio de uma novela filosófica), em voz alta, pelos alunos. • Indicação de passagens interessantes deste texto, o que permite a escolha de itens para a discussão. (Nada impede a participação do professor nesta etapa). • Discussão a respeito de um tema escolhido pelos alunos (pode ser por votação). • Para fortalecer tal discussão, o professor pode, se considerar necessário, aplicar os exercícios sugeridos no manual. (Notese que há uma quantidade de temas sugeridos nos planos de discussão dos manuais para cada episódio). • Não é necessário que a turma chegue a uma conclusão ou uma resposta única sobre a discussão, mas sim que faça uma avaliação sobre ela ao final de cada aula. Lipman e o ensino de uma filosofia ideal 45 O autor recomenda ainda que os cursos preparatórios de professores de filosofia sigam a mesma metodologia, para que tais professores possam vivenciar o mesmo processo de seus alunos. Para ele, os tópicos filosóficos exercem atração natural nas crianças, por estas serem naturalmente curiosas, questionadoras e por eles serem vagos e permitirem uma certa flexibilidade em suas definições. Tais conceitos prestam-se prontamente ao diálogo, com os alunos encontrando-se rapidamente engajados num cabo-de-guerra sobre as várias interpretações dos conceitos sob observação. Essas capacidades de os conceitos filosóficos gerarem linhas competitivas de discussão e um senso de investigação cognitiva e cooperativa é o que faz com que pareçam tão significativos e dinâmicos às crianças (LIPMAN, 1990, p. 110). O fato de a metodologia de Lipman permitir e até preferir que a escolha dos temas filosóficos a serem discutidos se dê por intermédio das próprias crianças é justificado por ele pela necessidade de concentrar o foco no interesse delas, naquilo que as deixa perplexas, que a seu ver costumam ser os temas que mais se identificariam com aqueles já denominados por ele de “filosóficos” (comuns, centrais e controversos). Ele acredita que se possa, através dos assuntos de interesses das crianças, aprofundar o desenvolvimento racional e moral delas, baseando-se nas regras da comunidade de investigação e do diálogo filosófico. E, assim, evitar que elas sejam vítimas de doutrinações autoritárias ou de um relativismo insensato, pois teriam sido estimuladas pela filosofia a pensarem por si mesmas, de maneira crítica e a ouvirem cuidadosa e respeitosamente os outros, perseguindo, porém, um ideal de compreensão objetiva do universo que as cerca. Conclusão Parece-nos bastante contraditória a proposta lipmaniana de ensino de filosofia. Se por um lado ele pretende que a filosofia reforce o ambiente democrático, por permitir que se formem cidadãos plenos 46 Liliane Barreira Sanchez de raciocínios críticos e criativos, capazes de deliberarem, questionarem, tomarem decisões, por outro, ele define que tal ensino de filosofia esteja fundamentado na transmissão de ferramentas lógicas. Para o autor, apenas o desenvolvimento de determinadas habilidades do pensamento pode garantir que seres humanos tenham condutas mais racionais e cuidadosas, necessárias para o convívio democrático. Em sua proposta não está mencionada claramente uma vertente de filosofia política que pudesse estabelecer mais claramente uma relação com um sistema de governo qualquer. Ele diz como deve ser o ensino de filosofia, elabora novelas para esse fim e manuais de instruções para sua aplicação, não reservando nenhum espaço para o questionamento crítico ou a criação de novas possibilidades de se ensinar filosofia, seja pelos próprios professores ou pelos alunos. Ao nosso ver, tal metodologia é pouco filosófica e pouco democrática, pois já traz pronto um receituário a ser aplicado de determinada maneira e com determinados fins em vista. Não há um espaço para um debate filosófico de sua proposta de ensino. Há a tentativa de imposição de um método, um texto pronto que pretende apresentar determinados temas que Lipman acredita merecerem discussão e interesse por parte das crianças e manuais que ditam as regras, propõem formas de guiar as discussões em sala e oferecem determinados exercícios, cabendo aos professores aplicá-los. O ensino de filosofia para Lipman tem um propósito, um objetivo definido, que passa pelo ensino da lógica, pretendendo formar cidadãos que raciocinem de uma forma superior aos outros que não desenvolveram determinadas habilidades cognitivas e passa por uma preocupação com o ensino de valores, ao mesmo tempo que pretende possuir neutralidade ideológica. Além de tentar limitar as possibilidades de pensar o ensino de filosofia, Lipman propõe uma “transmissão de neutralidade”, que por si só já não pode ser considerada neutra, isenta de ideologias. O autor busca estabelecer definições para a filosofia e a educação e não abre espaço para transpô-las. Lipman e o ensino de uma filosofia ideal 47 O que ele define como raciocínio crítico se limita a aplicação de regras da lógica, o que ele define como raciocínio criativo não leva em conta a dimensão desconhecida das possibilidades do humano e o que ele define como cuidadoso limita-se ao cumprimento de determinadas regras de convívio social. O que ele define como filosófico nos parece estar definido por demais para merecer tal denominação. O que ele pretende como educativo se assemelha a uma imposição normativa de formação de caráter. O autor define sua proposta como uma inovação pedagógica, porém intenciona impô-la como uma tábua de salvação para aquilo que considera ser um modelo educativo naufragado. Traz uma receita de bolo já pronta e acabada que serviria para estimular o interesse cognitivo dos alunos, tão acomodado pelo gosto insosso das metodologias das aulas tradicionais, porém, não intenciona discutir a aplicação de seus “ingredientes”, empurrando-os goela a baixo dos alunos e professores pelo uso das novelas e manuais. Esvazia o questionamento filosófico da subjetividade necessária para a sua realização, substituindo-a por um “diálogo filosófico” artificial e fabricado, por uma metodologia de solving problems. Subtrai a possibilidade de criação, de transformação e de verdadeira inovação. LIPMAN ET L’ENSEIGNEMENT D’UNE PHILOSOPHIE IDÉALE Résumé: Dans ce travail, on présente les principes généraux du Programme de Philosophie pour Enfants de Matthew Lipman. On s’interroge sur certains de ces présupposés philosophiques et pédagogiques en critiquant leurs caractères normatifs et contradictoires. On s’interroge aussi sur les objectifs de ce programme basé sur l’enseignement de la logique et la formation de valeurs. On critique la proposition de neutralité politique et idéologique d’un enseignement de philosophie qui vise à former de bons citoyens pour vivre ensemble dans une société démocratique idéale en faisant usage de méthodologies spécifiques à cette fin. Mots-Clés: Philosophie. Éducation. Enfance. 48 Liliane Barreira Sanchez Referências bibliográficas CANIVEZ, Patrice. Educar o cidadão. Campinas: Papirus, 1991. KOHAN, Walter Omar. O que você precisa saber sobre filosofia para crianças. Rio de Janeiro: DP&A, 2000. LIPMAN, Matthew. A filosofia vai a escola. São Paulo: Summus, 1990. SIMON, Maria Célia Moraes Neiva. O ensino da filosofia no 2º grau: crítica ou alienação? Debates Filosóficos, Rio de Janeiro, n. 2, 1980. DOSSIÊ TEMÁTICO Infância e Educação MÚSICA E CULTURA INFANTIL: UMA BREVE REVISÃO BIBLIOGRÁFICA PARA A EDUCAÇÃO INFANTIL Ana Lúcia Castilhano de Araújo* Resumo: Este trabalho procura relacionar questões relativas ao ensino de artes e música na Educação Infantil, e à compreensão de uma cultura da Educação Infantil a partir de algumas reflexões sobre a prática do ensino de artes para crianças pequenas. O objetivo foi organizar argumentos que reforcem a questão da necessidade de se investir na formação geral da criança pequena, partindo da contribuição que as artes têm para a criança, até chegar à possibilidade de se regularizar o seu ensino nas escolas e pré-escolas. Palavras-chave: Educação infantil. Prática pedagógica. Artes. Educação musical. Cultura infantil. Doutoranda em Educação pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Docente da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb). E-mail: [email protected] * APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano III n. 4 p. 49-65 2005 50 Ana Lúcia Castilhano de Araújo Este texto tem como objetivo levantar algumas questões a respeito da educação da criança de 0 a 6 anos nos aspectos culturais envolvidos neste processo, a partir de uma breve revisão bibliográfica na área de música e artes. O objetivo é organizar argumentos que reforcem a questão da necessidade de se investir na formação geral da criança pequena, partindo da contribuição que as artes têm para a criança, até chegar à possibilidade de se regularizar o seu ensino nas escolas e pré-escolas. A fim de falar sobre as artes na Educação Infantil, vou me utilizar, ora de textos e comentários específicos sobre música, ora sobre trabalhos e considerações sobre arte em geral. No entanto, há um veio comum entre ambos que é a formação cultural da criança. A proposta dos Parâmetros Curriculares Nacionais para o ensino fundamental organiza as Artes nos Documentos de Área, sendo colocados aí os conteúdos específicos de cada uma delas. A LDB1 determina que “o ensino da arte constituirá componente curricular obrigatório, nos diversos níveis da educação básica, de forma a promover o desenvolvimento cultural dos alunos” (BRASIL, 1996). O Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (RCNEI) recomenda o trabalho com a criança em uma perspectiva ampla. O documento considera a música como uma linguagem expressiva, juntamente com o movimento, a expressão cênica e as artes visuais. Esta linguagem é compreendida como um meio para o desenvolvimento infantil nos aspectos da expressão, do equilíbrio, autoestima e auto-conhecimento, sendo importante, inclusive, para o trabalho com as crianças portadoras de necessidades especiais. Monique Audries Nogueira (2000) realizou uma análise da discografia recomendada pelo RCNEI, elogiando a listagem publicada no documento. A autora indica algumas obras que foram deixadas de fora, e se detém nas obras que se aproximam do tema brincadeira. A partir daí, analisa detidamente as obras selecionadas, dando indicações sobre origem e contexto cultural no qual foi criada. Em suas conclusões, 1 Lei de Diretrizes e Bases para a Educação, 9394/96, Art. 26, parágrafo 2º. Música e cultura infantil: uma breve revisão bibliográfica para a educação infantil 51 a autora chama a atenção para a necessidade de se investir na formação musical dos professores, nos cursos de pedagogia, uma vez que a simples aquisição de alguns títulos (no caso do uso do RCNEI como “receituário”) não resolve todas as questões do trabalho com música na Educação Infantil. São importantes: o investimento na formação dos profissionais assim como a compreensão do desenvolvimento musical da criança, momento em que a Educação Infantil poderia contribuir para a formação do ouvinte. A autora propõe um trabalho de formação musical dos professores nos cursos de pedagogia. Considerando a diferença entre a instrução musical que forma músicos e a educação musical, que forma pessoas apreciadoras de arte, antes de tudo, o sentido do trabalho com a música é o importante nesta situação, não sendo necessário que o professor tenha uma formação musical sólida como instrumentista, por exemplo. A questão da valorização da cultura infantil como objetivo da educação tem sido ampliada nos últimos 20 anos, na medida em que cresce o número de trabalhos publicados com esta temática. Para Sônia Kramer, as crianças são seres históricos marcados pela sociedade onde vivem, com suas contradições. Defendo uma concepção de criança que reconhece o que é específico da infância – a seu poder de imaginação, fantasia, criação – e entende as crianças como cidadãs, pessoas que produzem cultura e são nela produzidas, que possuem um olhar crítico que vira pelo avesso a ordem das coisas, subvertendo essa ordem (KRAMER,2003). A Educação Infantil tem a função de proporcionar à criança educação a partir do contato com um mundo de aprendizado de sua cultura, incluindo as letras e a arte. Neste sentido, vale a pena procurar compreender o universo infantil em uma ótica diferente da do adulto e da escola. Podemos considerar que um movimento interessante nessa direção foi o valor dado à brincadeira infantil nas produções acadêmicas em todo o mundo, em trabalhos de diversas correntes como a 52 Ana Lúcia Castilhano de Araújo culturalista francesa, antropológica, freinetiana, histórico-cultural, e assim por diante. Além disso, o incremento de propostas de pesquisa, com apoio na metodologia etnográfica, também aproxima o pesquisador das questões culturais envolvidas nas relações da criança com a educação, e alerta para a necessidade de a escola assumir uma posição que acate as diversas culturas da infância (QUINTEIRO, 2002). Hasse (2004), em um levantamento de textos da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped) sobre Educação Infantil, analisa o papel da infância expressa pelos autores do GT 7 (Educação da Criança de 0 a 6 anos). Para a autora, a infância é vista como heterogênea em seus vários aspectos, assim como a criança é entendida como um sujeito de direitos. Reconhecer a criança como sujeito de direitos implica percebê-la em sua história, como produtora de cultura, marcada pelo meio social no qual vive. Segundo a autora, as famílias são heterogêneas, e “as especificidades da faixa etária das crianças que freqüentam as instituições de educação infantil requerem que as mesmas sejam observadas, respeitadas e que tenham voz”. Neste sentido, concebe-se a criança como aquela que é marcada pela cultura na qual está inserida, mas que também produz cultura sob a forma de discursos, e entendimento da realidade. Seguindo uma tendência de alguns autores para expor questões a respeito da cultura e da educação não formal de crianças, há trabalhos publicados tanto em educação, quanto em temas específicos como a educação musical. Estão se tornando comuns publicações que abordam as questões culturais de um ponto de vista que não privilegia o olhar hegemônico da cultura dominante, mas que tenta abrir espaços para outras linguagens, outras realidades, novas possibilidades. Estes trabalhos têm ajudado a compor um quadro em que se detecta a necessidade de ampliar os olhares, inclusive sobre as crianças e os diversos tipos de infância possíveis de serem relatados.2 2 A respeito da historiografia da infância e da discussão sobre os conceitos de infância, ver Kuhlmann Jr. e Fernandes, 2004. Música e cultura infantil: uma breve revisão bibliográfica para a educação infantil 53 Nesta perspectiva, poderíamos citar o exemplo do multiculturalismo3 na educação, assunto trabalhado no texto de Vera Maria Candau (2002), no qual a autora, a partir das relações entre cultura, educação e sociedade brasileira, analisa os movimentos oficiais e cotidianos de inclusão e trabalho com as diferenças, tanto as culturais como aquelas relativas às necessidades especiais. Os movimentos sociais em sua luta pela garantia de direitos, o embate teórico e cotidiano entre a cultura do aluno e a cultura da escola, são alguns processos sociais desencadeantes do estudo do multiculturalismo. O estabelecimento de processos culturais que articulem igualdade e diferença, o reconhecimento do outro, são desafios tanto para acadêmicos como para professores em suas escolas. Dentre os trabalhos mais específicos sobre cultura e educação musical, podemos citar o de Leda Mafiolletti (2001). O texto em questão trata dos fatores e aspectos da musicalidade no ser humano, chamando a atenção para a cultura, partindo de conteúdos específicos da espécie humana que fazem com que a música seja reconhecida ou compreendida. A autora mostra a discussão de diversos autores a respeito de linhas de pensamento sobre o conceito e papel da música nas diversas culturas. Ressalta a necessidade de se investir na educação musical das crianças, ao mesmo tempo em que mostra a importância que o conhecimento a respeito da produção e valoração da música tem para os estudiosos do assunto. Beatriz Ilari (2002) publicou um texto cujo conteúdo é uma entrevista com o professor Francis Corpataux, educador que pesquisa a música infantil em diversas culturas. Seu interesse é a respeito do desenvolvimento musical das crianças em todo o mundo, ressaltando o que há de cultural e geral na música infantil. Faz parte de sua pesquisa a música espontânea ou tradicional pertencente à determinada cultura. Neste caso, fica em evidência a postura do pesquisador em ouvir outros Campo de estudos que partiu de movimentos de afirmação das particularidades culturais e das diferenças. Vera Candau (2002) discute as diversas idéias alusivas ao termo, bem como as perspectivas de pesquisa que podem ser direcionadas na sociedade e nas escolas. 3 54 Ana Lúcia Castilhano de Araújo sons, investigar outras perspectivas, outros olhares, sem interferir ou estabelecer juízos a respeito do que acontecia em seus contatos com estas outras culturas. Esta é uma postura e uma metodologia bastante interessante para o trabalho com a criança pequena, não só na área de música, uma vez que todo o processo de aquisições culturais está por trás daquilo que todo o ser humano é. Na área de música, a produção acadêmica traz avanços importantes para se compreender os processos culturais nas relações estabelecidas entre adulto e criança, mostrando um discurso que, além de procurar relacionar o aprendizado da música com o desenvolvimento do pensamento criativo, como exposto em Diaz (2001), apresenta um conjunto de justificativas para a sistematização do ensino de música nas escolas regulares por profissionais capacitados (NASCIMENTO , 2003). Na área da educação para a arte, há várias discussões a respeito de aulas de dança ou de música ministradas por profissionais ou por professores, levantando várias considerações sobre as particularidades do ensino da técnica e de formas de expressão corporais. Neste caso, considera-se a escola como formadora de um público de arte, mais do que como formadora de profissionais de arte (STRAZZACAPPA, 2001). Então, a idéia seria trabalhar em um sentido mais amplo, para além da técnica musical ou cênica, no âmbito da cultura e da estética. A discussão a respeito dessa questão nos coloca frente a um problema vivido por qualquer educador que não faça parte das disciplinas tradicionalmente reconhecidas como fundamentais para a formação do aluno: português, matemática, ciências. No caso da Educação Infantil, estes conteúdos são privilegiados, inclusive, sob a forma de jogos, os conteúdos da matemática, e de língua materna, ficando as demais áreas do conhecimento em segundo plano (ALMEIDA, 2001). A arte, então, passaria a ter um caráter instrumental utilitário, reduzindo uma função que seria muito mais ampla. Esta situação, no entanto, não é vivenciada em todas as instituições de Educação Infantil. Gilvânia Pontes e Marta Pernambuco (2000) Música e cultura infantil: uma breve revisão bibliográfica para a educação infantil 55 realizaram um histórico da creche da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) em Natal, de 1979 a 1998, incluindo a passagem pelas orientações do RCNEI. As autoras relatam experiências da creche na área de arte e mostram como a questão da dualidade entre a arte como expressão e como recurso de apoio a outros temas pode ser equacionada sem prejuízos do conceito e objetivo da arte. O projeto foi realizado com crianças de 2 a 4 anos, incluindo atividades de pintura, desenho livre, artes plásticas, dramatizações e artes cênicas. Neste caso, o papel da arte foi equacionado ao lado das demais áreas, em um processo de composição do currículo daquela instituição. É um exemplo de como a visão do todo pode oferecer alternativas aos educadores na Educação Infantil. Casos em que o ensino de artes nas escolas é trabalhado de forma estreita, simplesmente amparando outras áreas, podem ser observados no uso da arte como instrumento didático para as demais áreas de conteúdo. O desenho pode servir para ilustrar os trabalhos de português, ciências, matemática. Isso mostra o caráter instrumental que as artes têm na opinião de muitos professores, conforme mostra o estudo de Célia Maria de Castro Almeida (2001). De acordo com a autora, “as artes são produções culturais que precisam ser conhecidas e compreendidas pelos alunos, já que é nas culturas que nos constituímos como sujeitos humanos”. Embora muitos autores mostrem a importância do aprendizado e contato da criança com a arte, há valorização da expressão da criança na educação, embora o discurso desminta isso sob a forma de leis, como a 9394/96. De acordo com análise de Maura Penna (2001, p. 32), os documentos para a área da Arte configuram claramente uma orientação oficial para a prática pedagógica nas escolas, no entanto, mais uma vez percebe-se um descompasso entre o proposto e a realidade das escolas. A autora detectou em sua pesquisa realizada em João Pessoa um número muito maior de profissionais de artes plásticas do que de música, nas escolas. Neste aspecto, a autora adverte que os documentos oficiais podem levantar discussões, mas não resolver por si sós o problema, neste 56 Ana Lúcia Castilhano de Araújo caso, a transformação da prática do ensino da arte. Assim, há dificuldade em se admitir na dinâmica dos currículos aquelas disciplinas ou matérias artísticas. Nesse processo de discussão e busca de adequação, há autores que concordam com as aulas de arte (seja arte em geral ou música ou teatro) ministradas por pedagogos ou profissionais com formação pedagógica. Outros pretendem um trabalho mais direcionado, com respeito às especificidades de cada arte. De qualquer modo, é bom frisar que o ensino de música para as crianças pequenas é percebido por autores como Carl Orff e Hans Koellreuter e Murray Shaeffer, como um processo não de ensino da técnica musical, mas de educação musical, ponte para o desenvolvimento humano amplo amparado na sensibilidade que a arte musical pode oferecer. Há propostas para a educação musical que se encaixam na idéia de Educação Infantil de qualidade, como a desenvolvida por Teca Alencar de Brito (2003). Nas palavras da autora, trata-se de: um trabalho pedagógico-musical que se pode realizar em contextos educativos nos quais a música é entendida como um processo contínuo de construção que envolve perceber, sentir, experimentar, imitar, criar e refletir. Assim como a música, os desenhos, a dança, as diversas formas de expressão corporal, são importantes para fazerem parte de um ambiente organizado em torno das possibilidades expressivas da criança. Um dos pontos fundamentais na aprendizagem da criança pequena diz respeito à sua definição sobre o que sente, se é dor, tristeza, alegria, saudade, compaixão. Formas de expressão que podem ajudar a criança a desenvolver possibilidades de conviver com diferenças e abrir suas possibilidades de comunicação são sempre interessantes e um ótimo meio para o educador interessado em perceber uma criança completa, sem as idealizações comuns na pedagogia ou psicologia. Maria Isabel Leite (1998, p. 134), referindo-se ao papel da arte e do desenho na Educação Infantil, afirma que: Música e cultura infantil: uma breve revisão bibliográfica para a educação infantil 57 Nas sociedades contemporâneas, no contexto de um mundo que se pretende homogêneo e linear, a função primordial da obra de arte é quebrar essa linearidade – criar o estado de choque, de espanto, de inquietação. É desmanchar a estrutura preconcebida para que ela possa se reestruturar de uma outra forma, gerar um processo de estranhamento na percepção – isto é, ir além da vida cotidiana [que leva à subutilização da percepção] e passar a desfamiliarizar o mundo – criar um problema para a percepção, fazendo-a dar conta de um objeto que sai de suas formas ou conteúdos habituais. A arte, portanto, possibilita à pessoa explorar o pensamento divergente, buscar novas soluções e propostas alternativas, criando um percurso no qual se pode investigar, criar e exprimir múltiplas formas de comunicação (LOPES,1998, p. 84). Neste sentido, até mesmo o trabalho com a diferença entre as pessoas em suas várias maneiras de ver o mundo pode ser contemplado a partir do trabalho com a arte. Na música, isso pode aparecer sob a forma de alternativas sonoras, de sons e canções que fogem à escuta usual da criança. E é importante chamar a atenção para a diferença entre o processo de contato do adulto com a diferença e o novo, neste caso, sempre revestido de ansiedade e receio, e o da criança, muito mais plástica, tanto em seu interesse, como em sua elaboração dos novos conteúdos. O choque, o espanto, e a inquietação na criança pequena são sempre notórios, efusivos, compartilhados com seu grupo. Ainda em relação à percepção da criança pequena no contato desta com a arte, Almeida (2001) aponta como fundamental “o desenvolvimento de uma forma especial de se relacionar com o mundo”, naquilo que ela chama de atitude estética, relativa a uma atenção da criança ao que a cerca: formas, cores, linhas e espaços, palavras e sons, gestos e movimentos, explorando esses elementos em suas atividades. A percepção da criança mostraria, então, não apenas as relações formais entre esses elementos, mas a expressão, o sentimento que eles podem transmitir. 58 Ana Lúcia Castilhano de Araújo Esta necessidade da educação tem relação direta com a possibilidade de se abrir espaço para ouvir a criança, deixá-la expressar o que sente, como pensa a sua pré-escola: se gosta do espaço da instituição, como lida com o seu cotidiano, ou como se ressente do contato maior com flores, plantas e animais (OLIVEIRA, 2001). Esta seria uma forma importante de se estender o olhar do pesquisador para além do brincar, colocando em evidência outras formas de expressão da criança, incluindo a oral. O ensino de música e artes na Educação Infantil ajuda a criança a expressar o que sente, a viver e lidar com suas questões individuais e em grupo, algo que vai muito além da técnica e do aprendizado instrumental. A abertura necessária da Educação Infantil para a cultura da criança nos mostra uma valorização da criança no próprio processo educativo, voltando o pesquisador (e o professor) para um trabalho que considera a criança como centro. Isso porque a prática atual da Educação Infantil mostra uma discrepância entre o “proposto” e “vivido” pela criança (B ATISTA , 2001), sendo comum encontrar pesquisadores que, ao se voltarem para investigar o cotidiano na Educação Infantil, se deparam com situações inesperadas, uma vez que há uma série de idéias pré-concebidas que ele leva ao seu campo de investigação. De acordo com Batista (2001), sua perplexidade se deu diante da possibilidade da criança pequena contribuir com a própria proposta pedagógica da pré-escola. Para ela, a rotina também educa, e é constituída também pela ação infantil em conjunto com o adulto. Seria interessante, para o educador, procurar unir as reflexões a respeito da Educação Infantil e infância e educação musical, de forma a estabelecer uma interface que propicie um desenvolvimento de uma compreensão maior na questão da formação infantil. Talvez assim pudéssemos nos aproximar de uma criança completa, sem os fracionamentos reproduzidos4 nas discussões acadêmicas e na mídia, 4 Reprodução que parte de um contexto muito maior, da própria concepção iluminista de criança e educação. A separação entre os mundos do adulto e da criança, e a percepção desta como “um outro distinto”. A respeito disso, ver Cynthia Greive Veiga, 2004. Música e cultura infantil: uma breve revisão bibliográfica para a educação infantil 59 nas quais geralmente algum aspecto vem tentar defini-la. Então temos, por vezes, uma criança corporal, uma criança que brinca, uma criança com dificuldades de aprendizagem, uma criança consumidora. Os rótulos são muitos, e em geral não contemplam aspectos que não estão ligados a uma certa concepção de infância. São poucos os textos que apontam para algo que vá além da visão alegre de criança, daquela pronta para a diversão, sem malícia, que vive a melhor parte de sua vida. A criança, na verdade, ultrapassa esta visão onírica do adulto (ROCHA, 1999). Ela também possui lembranças, medos, frustrações, assim como os adultos. O reconhecimento de aspectos da infância que ultrapassem esta visão construída, idealizada da infância, é um objetivo a ser perseguido por quem educa crianças. Na educação, a criança vista em sua diferença em relação ao adulto, como um contraponto importante no qual a sua “inabilidade, desorientação, falta de desenvoltura” podem mostrar aspectos que o mundo adulto já não percebe em sua visão econômica, ajustada na busca pela razão e pela soberania (GAGNEBIN, 1997). O mundo adulto visto como um valor que deve rebaixar a infância é algo que torna as crianças incapazes. Daí a surpresa freqüente dos adultos diante de algum comentário sagaz das crianças frente a um assunto que se imagina fora de seu campo de compreensão. Propostas pedagógicas que trazem como mote a escuta de culturas, falas, modos diferentes de se viver, pensar e falar,podem abrir espaço tanto para os adultos como para as crianças, no sentido de deixá-las mais abertas e sensíveis para o outro. Ainda que a produção acadêmica tente contemplar o universo infantil, com suas diversas características, falta muito a ser dito a respeito da criança que vive em nossa sociedade. Crianças indígenas no interior do Pará, trabalhadores de cana no interior de São Paulo, filhos de posseiros no Maranhão, ou colonos do Mato Grosso, cada qual com suas infâncias relatadas em estudos pioneiros como os publicados por José de Souza Martins (1991), procurando ultrapassar o padrão criançaescola, criança da classe média urbana. 60 Ana Lúcia Castilhano de Araújo Mesmo nos casos em que se trata de crianças como essas, existem alguns mitos conservados pela escola, como a despreocupação e o alheamento da criança diante dos problemas que cercam o seu mundo. Algumas delas expressam preocupações concretas com a fome dos mais pobres, o ambiente, o preço dos alimentos, ou a saúde de seus pais. Para a escola, parece que os sentimentos que a criança tem, o seu choro ou tristeza em determinados momentos, quer tenham ou não uma razão justificada (a mãe que se atrasou, o pai que não lhe dá atenção...) podem ser tomados como comportamento patológico. Então, da mesma forma que a aparência dos escolares parece ter que seguir um padrão (roupas, calçados, enfeites para os cabelos), seu comportamento também deve seguir uma rotina dentro da escola. Neste processo de cerceamento, pouco pode se ver de uma cultura infantil 5 que não se atenha apenas no modelo contemporâneo de infância. Isso faz parte de uma forma de pensar a criança, de uma concepção determinada sobre o que elas sentem, pensam, ou como se desenvolvem. De acordo com Cynthia Greive Veiga (2004, p. 74), “o entendimento das especificidades e características individuais das crianças que as fazem diferentes umas das outras” foi fundamental para a infância se tornar um período homogêneo e universal. Então, a partir desta organização, todas as crianças devem se integrar a um padrão: o padrão da infância feliz, período que antecede a fase da adolescência e fase adulta, estas sim, repletas de confrontos com a realidade, estas sim, reais. Em geral, pertence à filosofia e à sociologia o encargo de levantar a reflexão sobre o quanto a infância pode ser diferente daquilo que está escrito e aceito como normal. A Escola de Frankfurt, especialmente com Walter Benjamin, sempre nos alertam para a condição de entendimento da realidade por parte da criança. 5 Nos moldes que Steinberg e Kincheloe (2001) discutem em sua obra. Música e cultura infantil: uma breve revisão bibliográfica para a educação infantil 61 Considerações finais O objetivo deste texto foi apresentar algumas questões sobre a Educação Infantil a partir de alguns trabalhos sobre música e artes. Por trás da discussão dos autores, pode ser compreendida a concepção de criança que orienta os argumentos a favor do trabalho com a arte na educação da criança pequena. A questão da concepção de infância que orienta um trabalho (seja ele de natureza acadêmica ou pedagógica) é fundamental para traçar os caminhos tomados nas ações para com as crianças em qualquer lugar do mundo. Talvez este texto possa contribuir exatamente para aqueles profissionais ligados à Educação Infantil com alguma formação musical, ou artística em geral, no sentido de expor um pouco da reflexão em torno do assunto, e quem sabe, estimulá-los para um contato maior com a produção dos demais autores (daí a pretensão de fazer uma revisão da bibliografia na área de educação musical, artes e Educação Infantil). Nem sempre é fácil arriscar falar sobre o que seria a função da arte na educação da criança pequena. Aparentemente, corre-se o risco de reduzi-la a alguma prática específica. Em geral, os autores com formação em artes possuem opinião contrária à idéia do uso da arte como decoração, ilustração e apoio a outras disciplinas. Quanto aos professores com formação pedagógica sem aprofundamento em artes, tendem a encarar a música e as artes cênicas como peças de apresentação das crianças em festinhas, e as artes plásticas como recurso decorativo. Nesta situação, os objetivos se perdem e a valorização de conteúdos formais, tão combatida na Educação de 0 a 6 anos, ganha corpo e corre o risco de desvirtuar um trabalho de educação cultural para a criança. Neste caso, vale a pena concordar com a necessidade de investimento na formação do profissional que vai atuar na área. A escola, creche ou pré-escola, pode, tanto trazer para a criança experiências com um mundo cultural mais amplo, como pode trabalhar motivos regionais, folclóricos, mais específicos dos grupos que participam da instituição em questão. Ainda que o trabalho de conjugar 62 Ana Lúcia Castilhano de Araújo a passagem de uma cultura geral para uma cultura particular, específica de cada criança ou grupo, seja difícil, é algo necessário. Justifica-se pela possibilidade de se oferecer contato à criança pequena com o mundo da cultura musical e artística nacional ou mundial, sem esquecer a cultura popular, o folclore. A instituição pode mediar este contato, deixando à criança a opção de escolha sobre o que a agrada mais ouvir, ver ou usar. Do ponto de vista da expressão, com o trabalho de arte na Educação Infantil, a criança pode escolher formas de “falar de si”, de exprimir sentimentos, esperanças, contrariedades. De mostrar como ela, criança , compreende o mundo. Sobretudo, a criança pode perceber que há outras formas de se mostrar ao mundo, utilizando outros recursos além da fala (esta sim, aprimorada nos adultos e crianças mais velhas, e dependente da experiência e da escolarização). Se as artes são formas de expressão humanas, é necessário que as instituições educacionais se encarreguem de promover o contato da criança com estas formas de expressão, que, como a fala, podem ser aprendidas e aprimoradas a cargo da escola. Um passo importante para isso é considerar a criança como um sujeito cultural. MUSIC AND INFANTILE CULTURE: A BRIEF BIBLIOGRAPHY REVIEW FOR CHILD EDUCATION Abstract: This paper tries to discuss questions related to the teaching of arts, music and Child Education, as well as the understanding of Child Education, based on some reflections about the practice of teaching arts for small children. The objective of the paper was to organize arguments that enforce the necessity to invest on the general formation of small children, considering the contribution of the arts for pre-school children. Keywords: Child Education. Pedagogical Practices. Arts. Music Education. Infantile Culture Referências bibliográficas ALMEIDA, Célia Maria de Castro. 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Este trabalho tem por objetivo analisar a importância do teatro infantil para o desenvolvimento da criança, abordando tanto o teatro encenado por adultos para ela, como aquele realizado pelo público infantil, que geralmente é encenado nas escolas. A metodologia utilizada é de cunho qualitativo com base na análise bibliográfica. A conclusão a que se chegou é que o teatro é indispensável para a criança, seja ela uma espectadora ou participante direta. Palavras-chave: Educação. Teatro infantil. Criança O prazer é a mais nobre função da atividade humana. (Bertold Brecht). Doutoranda em Educação pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), Campus de Araraquara, SP. Docente da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb). E-mail: [email protected]. * APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano III n. 4 p. 67-88 2005 68 Sandra Márcia Campos Pereira Falar da importância da arte para o desenvolvimento infantil não é novidade, pois essa é uma temática que está sendo discutida há algum tempo. A conquista do seu espaço no cenário educacional é fortalecida com a Reforma Curricular nos anos 90, que, ao elaborar os Parâmetros Curriculares Nacionais, explicita a importância desse componente no currículo. Entretanto, apesar da vitória já alcançada no plano teórico e na legislação, no cotidiano escolar ainda há muito o que avançar. Seja no sentido de romper com uma proposta pedagogizante e padronizada que impõe limites à criatividade, seja no sentido contrário em que prevalece o espontaneísmo, isto é, a idéia que, para criar, é necessário liberdade, portanto, não se deve interferir no processo de criação da criança. É na arte que encontramos instrumentos que são capazes de trabalhar a mente no que diz respeito à imaginação, refinando a sensibilidade, aguçando nossa percepção, desenvolvendo um tipo de habilidade que nos permite ver, perceber e sentir melhor o mundo. É na utilização das diferentes linguagens artísticas como a dança, a pintura, o desenho, a música, o teatro, etc. que o educador pode explorar e estimular as habilidades e promover o conhecimento de forma ampla e enriquecedora (FERREIRA, 2003, p. 1). O teatro é uma das linguagens que compõe os conteúdos da disciplina Arte na escola e, como outras linguagens artísticas, a dança, a música e as artes visuais, deve ser tratado com a responsabilidade de garantir que os alunos vivenciem aspectos técnicos, inventivos, representacionais e expressivos de forma consistente e planejada. Seja nas artes cênicas ou nas outras áreas de expressão, é necessário que o educador e a escola pensem em um projeto pedagógico em que a Arte deva ser acessível a todos em uma concepção de escola democrática que deva garantir ao aluno a posse de conhecimentos artísticos e estéticos. Teatro infantil: um olhar para o desenvolvimento da criança 69 Grupos preocupados com a educação por meio da arte têm tentado recuperar seu valor no desenvolvimento do conhecimento como parte importante da cultura humana, com compromisso de um planejamento com conteúdos, métodos e procedimentos que sejam desenvolvidos nas aulas de arte. Seja no teatro, na música, na dança e nas artes visuais o aluno, quando lhe é oferecida a oportunidade, apresenta traços essenciais de indivíduos criativos. É de grande importância o reconhecimento da Arte como ação educativa, para que o aluno possa atuar no teatro, observando, analisando e produzindo, pois a arte não é mais um instrumento de domínio de poucos, algo supremo, inatingível, ela está além disso tudo, ela pertence a todos indistintamente. A arte é fruto fecundo da resistência à dominação e de afirmação da identidade. Este trabalho tem o objetivo de discutir a importância do teatro infantil para o desenvolvimento da criança, abordando tanto o teatro encenado por adultos para ela, como aquele realizado pelo público infantil, que geralmente é encenado nas escolas. O interesse em estudar esta temática surgiu de uma grande paixão pela literatura infantil e de um posterior mergulho nas artes cênicas, além da observação das reações que as peças teatrais provocam nesse público, reações que variam de acordo com a faixa etária e qualidade dos espetáculos apresentados. Uma vez que é conhecida a difusão da literatura infantil nas últimas décadas, esse gênero literário, que em alguns casos é considerado inferior à produção destinada aos adultos, uma vez que nem sempre possui qualidade estética, alcança o reconhecimento e o estatuto de arte literária, devido a grandes autores e suas belíssimas obras, como, por exemplo, Ruth Rocha, Ziraldo, Maria Clara Machado e Monteiro Lobato, sendo este último o ícone desse gênero no Brasil. A literatura infantil caminhou e ainda caminha por trilhas tortuosas. O teatro infantil surge com preocupações didáticas, sendo marginal em relação ao gênero destinado ao adulto, porém, apesar das adversidades, consegue alcançar seu reconhecimento artístico e, ao 70 Sandra Márcia Campos Pereira ocupar espaço em instituições escolares, também descaracteriza-se e, muitas vezes, passa a ter o sentido que lhe era atribuído pelos jesuítas com o Ratio Studiorum (método de ensino sistematizado utilizado pelos jesuítas). Teatro infantil: gênero literário ou produção artística menor? A literatura infantil surge no final do século XVII e durante o XVIII, simultaneamente com o conceito de infância que até então não “existia”. A criança era considerada um adulto pequeno e não se respeitavam as suas fases de desenvolvimento, seus interesses e suas vontades. Adultos e crianças compartilhavam o mesmo espaço e não existia afeto entre ambos. Com a ascensão da burguesia, muda-se o conceito de família, o afeto entre seus membros torna-se importante e a criança começa a ser vista como dependente do adulto por ser considerada frágil e indefesa. Essa ideologia de dependência da criança em relação ao adulto é que passa a definir a infância. Esta classe social que se encontra no poder valoriza a escola – considerada o lugar de aquisição do saber. Nesse ambiente, a literatura infantil tem grande espaço ao ser utilizada com intuito pedagógico, uma vez que “os primeiros textos para crianças foram escritos por pedagogos e professoras com marcante intuito educativo” (ZILBERMAN, 1981, p. 19). Segundo Zilberman, é por meio dos clássicos e dos contos de fadas que ocorre a constituição de um acervo de textos infantis. Na sua forma original, os contos de fadas, que surgem do folclore, não eram destinados à criança, pois eram contados pelos adultos a outros adultos. Neste contexto, os narradores faziam parte das classes menos favorecidas economicamente. A literatura tem como parâmetros contos consagrados pelo público mirim de diferentes épocas que, por terem vencido tantos testes de recepção, fornecem aos pósteros referências a respeito da Teatro infantil: um olhar para o desenvolvimento da criança 71 constituição da tônica literária do texto destinado à criança. No século XVII, o francês Charles Perrault (Cinderela, Chapeuzinho Vermelho) coleta contos e lendas da Idade Média e adapta-os, constituindo os chamados contos de fadas, por tanto tempo paradigma do gênero infantil (CADEMARTORI, 1986, p. 33). Quase dois séculos depois, temos uma grande produção de contos, que são uma coleta popular [...] realizada, na Alemanha, pelos irmãos Grimm (João e Maria, Rapunzel), ampliando a antologia dos contos de fadas. Através de soluções narrativas diversas, o dinamarquês Christian Andersen (O patinho feio, Os trajes do imperador), o italiano Collodi (Pinóquio), o inglês Carrol (Alice no país das maravilhas), o americano Frank Baum (O mágico de OZ), o escocês James Barrie (Peter Pan) constituem-se em padrões de literatura infantil (CADEMARTORI, 1986, p. 33-34). Segundo Lajolo e Zilberman (1986), a literatura infantil nasce no Brasil, com tentativas de traduções nacionais como as de Carlos Jansen (Contos seletos das mil e uma noites), de 1882, entre outras, pois antes tínhamos acesso à literatura infantil por meio das traduções portuguesas que eram, muitas vezes, distantes da língua materna brasileira. Além das traduções, começam a surgir também algumas obras nacionais e, nesse contexto, nasce a indústria dos livros infantil e didático. A literatura infantil desta época possui um caráter pedagógico, nacionalista e patriótico refletido, muitas vezes, no próprio título das obras como, por exemplo, o livro Por que me ufano do meu país (1901) de Afonso Celso. [...] a escola é fundamental enquanto destinatária prevista para estes livros, que nela circulam como leitura subsidiária ou como prêmios para os melhores. Daí ela emigra para o interior dos textos, tornando-se com freqüência tema privilegiado, que reforça sua função pedagógica na polaridade das figuras antípodas do bom e do mau aluno (LAJOLO; ZILBERMAN, 1986, p. 19). 72 Sandra Márcia Campos Pereira Para essas autoras, o que forneceu condições para a gênese da literatura infantil foi o fortalecimento da escola juntamente com as campanhas cívicas que pretendiam mostrar uma imagem de modernização do país. A literatura infantil no Brasil [...] não teve origem popular, nem aparecimento espontâneo: seu surgimento foi induzido, patrocinado pelos autores que escreviam livros para crianças no período de transição entre os séculos XIX e XX. Desde então, no entanto, e em particular após o sucesso de Tales Andrade e Monteiro Lobato, as editoras começaram a prestigiar o gênero, motivando seu aumento vegetativo ao longo dos anos 20 e 30, bem como a adesão progressiva de alguns escritores da nova e atuante geração modernista (CADEMARTORI; ZILBERMAN, 1986, p. 61) Vimos que a escola foi fundamental para o desenvolvimento da literatura infantil. Atualmente, ela continua sendo indispensável para a difusão deste gênero literário, que conquistou prestígio, tanto nas escolas, entre as crianças, quanto nas editoras, que faturam muito com suas publicações para o público infantil. Infelizmente, com a ascensão desse gênero literário, aparecem obras que, apesar de serem destinadas às crianças, não podem ser consideradas literatura infantil, uma vez que tudo o que podemos extrair delas é seu caráter pedagógico, conser vador e até mesmo preconceituoso. Apesar da produção em série de literatura infantil estar deixando de lado seu caráter literário, temos obras de ótima qualidade e autores que se destacam. Poderíamos citar nomes como Monteiro Lobato, Ziraldo, Ruth Rocha, Maria Clara Machado, entre outros. [...] a literatura infantil atinge o estatuto de arte literária e se distancia de sua origem comprometida com a pedagogia quando apresenta textos de valor artístico a seus pequenos leitores, e não é porque estes ainda não alcançaram o status de adulto que merecem uma produção literária menor (ZILBERMAN, 1981, p. 23). Teatro infantil: um olhar para o desenvolvimento da criança 73 De acordo com Lomardo (1994), existem duas modalidades de teatro infantil: uma que é feita por adultos para as crianças e a que é encenada pelas crianças que, geralmente, possuem caráter pedagógico. As duas modalidades apresentam, muitas vezes, perspectiva didática. A partir de meados do século XX, esse gênero teatral passa a ser visto como atividade artística, atingindo, na década de 70, uma intensa produção. O teatro tem sua base no jogo dramático, que tanto pode ser uma atitude espontânea, como efetivamente é nas brincadeiras infantis, quanto assumir características direcionadas (jogo dramático dirigido), visando atingir um objetivo específico – educacional, por exemplo (LOMARDO, 1994, p. 10). Os registros mais antigos de teatro para crianças referem-se à China, no século III a.C., onde bonequeiros mambembes apresentavam espetáculos, em domicílios, para crianças e para mulheres pertencentes à camada social privilegiada. Os bonecos, marionetes, fantoches e mamulengos [mamulengo = mão molenga], hoje tão identificados com o teatro infantil, constituem uma das mais antigas manifestações de caráter teatral, seu surgimento remontando a mais de 2.000 a C., mas só muito depois disso é que passaram a ser utilizados como forma de entretenimento para a criança, mesmo porque uma arte dirigida à criança não fazia parte do modus vivendi dessas antigas sociedades (LOMARDO, 1994, p. 11). Após o teatro de bonecos, datado entre os séculos XV e XVII d. C., a próxima manifestação do teatro para crianças é a commedia dell’arte, traduzido como “a comédia do artesão” ou “o teatro do profissional”. Essa modalidade teatral surgiu na Itália, expandindo-se, posteriormente, para outros países. [...] Era formada por grupo de atores viajantes, profissionais que se ocupavam exclusivamente do teatro, apresentando-se sobre 74 Sandra Márcia Campos Pereira palcos móveis em todas as cidades, vilas e aldeias por onde passassem [...]. Os espetáculos não tinham texto redigido, apenas roteiros simples que os atores desenvolviam em cena (LOMARDO, 1994, p. 11-12). O teatro de bonecos que surge a partir do século XVII, passa a ter atividade mais intensa nos séculos XVIII e XIX. Outro movimento importante de teatro de formas animadas é o teatro de sombras de Dominique Séraphin, que surge na França no século XVIII. O teatro de sombras, como de bonecos, é uma invenção antiqüíssima, surgida na China, muitos séculos antes de Cristo, razão pela qual este tipo de teatro é também conhecido como “sombras chinesas” (LOMARDO, 1994, p. 15). Uma experiência interessante acontece na Bélgica, na cidade de Mons, onde o teatro de bonecos é dedicado quase exclusivamente às crianças, apesar dos textos não se dirigirem exclusivamente ao público infantil, como as peças de Molière. Até o século XX, as escassas atividades teatrais dirigidas às crianças são restritas às formas animadas (bonecos e sombras). A primeira companhia moderna profissional de teatro para crianças, com atores e atrizes adultos representando sem a intermediação de bonecos, é o Teatro da Criança, inaugurado em 1918, na União Soviética. Após a Segunda Guerra, surgem várias experiências teatrais voltadas para a criança, mas ainda não existe a preocupação com a mesma, com seus interesses, desenvolvimento, etc. Tais experiências possuem finalidades moral e pedagógica, ou até mesmo a preocupação em formar o “espectador do futuro”. O primeiro congresso internacional de teatro infantil é realizado em Paris, em 1952. De acordo com Moses Goldberg, “teatro infantil é um teatro com pequeno prestígio, poucos artistas e não há muita literatura dramática” (GOLDBERG apud CAMPOS, 1998, p. 47). Apesar deste gênero literário ganhar o mundo, a partir da década de 50, ainda não possui um “reconhecimento como realização artística de Teatro infantil: um olhar para o desenvolvimento da criança 75 conformação específica [...] o pouco prestígio do teatro infantil é causa e conseqüência de sua indefinição” (CAMPOS, 1998, p. 47). A mudança no olhar sobre o teatro infantil ocorre de modo mais visível nos anos 70, quando aparecem trabalhos sobre a modalidade, advindos do meio acadêmico ou não. Esta transformação se completa com a mudança na inserção social da criança. Campos (1998, p. 48) define teatro infantil como “teatro para crianças, ou seja, aquele que supõe a realização de espetáculos, por artistas profissionais ou não, para o público especificamente infantil”. Para esta autora, a história do teatro infantil tem início no século XX. Alguns vêem na tradição inglesa da pantomima de natal um antecedente do gênero. Foi “como pantomima de natal que surgiu, em 1904, a obra que viria a ser um dos clássicos das produções para crianças, Peter Pan, o menino que não queria crescer, de James Barrie” (CAMPOS, 1998, p. 48). O teatro infantil estoura, ao mesmo tempo, no começo do século, em vários países europeus e nos Estados Unidos. Campos (1998) classifica como “uma primeira onda” um período que vai até a Segunda Guerra Mundial, quando as ações eram isoladas e/ou intermitentes. Na Inglaterra, em 1927, é criada a primeira companhia britânica de teatro infantil estabelecida em bases regulares. No começo do teatro para criança na Europa, destaca-se o caso ocorrido na Espanha, onde [...] os primeiros espetáculos acontecem em bases rigorosamente profissionais, pelas mãos de um dramaturgo consagrado, Jacinto Benavente. Enquanto na maioria dos países se lança mão da adaptação de contos infantis, Benanvente oferece uma peça original, O príncipe que aprendeu tudo nos livros (El príncipe que todo lo aprendió en los libros), e concebe-a não como produto isolado, mas dentro de um projeto, o da criação de um Teatro das Crianças (CAMPOS, 1998, p. 49). Nos Estados Unidos, o teatro infantil tem sua origem ligada às atividades de cunho educativo e social com a montagem de A 76 Sandra Márcia Campos Pereira tempestade, encenada por um elenco de crianças, em New York. Até a década de 20, importantes espetáculos para crianças são apresentados na Broadway, como Peter Pan, O pássaro azul, Alice no país das maravilhas, A ilha do tesouro. No entanto, não há registro de outro período como este, talvez porque o teatro infantil não seja interessante para as grandes companhias norte-americanas. No Leste Europeu, destacam-se os programas soviéticos de resgate da infância, com a criação do Teatro da Criança, inaugurado por volta de 1920, em Moscou. O contexto da região neste período é marcado pela reconstrução, após várias guerras devido à Revolução. No período pós-Segunda Guerra, o teatro para crianças e jovens passa por nova fase, várias experiências são articuladas devido à multiplicação de encontros e congressos nacionais, regionais e internacionais. O teatro infantil é institucionalizado na década de 50 e, a partir de 1965, sua internacionalização é intensificada com a criação, em Paris, da Associação Internacional de Teatro para a Infância e Juventude. A preocupação educativa é um ponto de aproximação do teatro produzido na América e no Leste e Oeste Europeu. Maria Clara Machado, ao participar do Terceiro Congresso Internacional para a criança e juventude, representando o Brasil em 1965, afirma: O que me pareceu foi que na Europa o teatro infantil é domínio exclusivo da pedagogia e da educação. A maioria quase total dos congressistas era de professores de escolas primárias. Havia raras exceções entre os marionetistas, único ramo do teatro para crianças onde a preocupação artística vem em primeiro plano [...] os espetáculos apresentados pelos grupos principais desses países foram absolutamente despidos de qualquer interesse artístico. Havia completa falta de imaginação nos textos e nas produções (MACHADO apud CAMPOS, 1998, p. 52). Segundo Campos (1998), dos problemas vividos pelo teatro infantil destacam-se: - Falta de amparo oficial; Teatro infantil: um olhar para o desenvolvimento da criança 77 - Falta de peças originais (recorre sempre a adaptações de histórias infantis); - Presença limitada da crítica. Apesar desses problemas, o teatro infantil se expande beneficiando-se da explosão de espaço que o teatro alcança na década de 60. Campos (1998, p. 53) afirma que “uma das características do teatro nos anos 60-70 é a redução, e até negação, do valor do texto. A tônica incide sobre o espetáculo, e a arte da encenação beneficia-se”. Apesar do curto período de existência do teatro infantil, Campos diz que As aproximações entre teatro infantil e teatro popular são antigas. Este, muito provavelmente, tem sido o maior fornecedor de formas dramáticas para aquele. Ambos se caracterizam, antes de tudo, como um teatro não psicológico, cuja ação é sustentada por situações e movimentos externos, envolvendo personagens planos e genéricos, no sentido de não tenderem à individualização. Aproxima-os ainda o humor e, de modo geral, o caráter lúdico que se encontra, tanto nos espetáculos populares quanto em boa parte do melhor teatro para crianças (CAMPOS, 1998, p. 56). As principais contribuições que o teatro infantil pode trazer para a criança são: entretenimento, crescimento psicológico, influências educativas, apreciação estética, desenvolvimento de futuras platéias [...]. A avaliação do teatro infantil implica a concorrência de três áreas básicas: a estética, a pedagogia e a psicologia (GOLDBERG apud CAMPOS, 1998, p. 57). Como escrever para crianças é algo muito complexo, pois elas passam por mudanças que hoje são aceleradas, fazer um recorte no universo infantil, por idade, significa distinguir seu interesse por faixa etária, levando-se em conta as considerações de Piaget, que descreve os interesses infantis de acordo com seu estágio de desenvolvimento. Sandra Márcia Campos Pereira 78 Juan Cervera também classifica o interesse da criança de acordo com sua faixa etária. Para ele crianças de quatro a sete anos, vivendo a etapa animista, têm preferência, por exemplo, pelas encarnações animais; dos sete aos nove, na chamada etapa sociocêntrica, a criança estará mais predisposta ao jogo teatral, musicais e títeres. Dos nove aos onze anos, já se aceitam comédias breves. Até essa idade a fantasia seria importante. A partir daí, declina e perde-se o interesse pelos contos de fadas. A criança ingressa em uma etapa fantástico-realista que dura aproximadamente até os catorze anos (CERVERA apud CAMPOS, 1998, p. 58). O teatro infantil no Brasil No Brasil, também, a origem do teatro infantil está centrada no teatro de bonecos, mesmo sem visar ao público infantil, ou seja, não era feito para as crianças. No século XX, assim como em outros países, o teatro infantil, no Brasil, é trabalhado em uma perspectiva pedagógica em detrimento da estética. Nesse período, é inaugurado o teatro escolar com função pedagógica, sendo a primeira publicação datada de 1905, com o título de teatrinho, escrita por Coelho Netto e Olavo Bilac. Em 1915 Carlos Góis lança sua publicação dedicada ao público infantil. Segundo Lomardo (1994, p. 34), “com força progressiva, os autores começam a impor à criança normas de comportamento que por um lado correspondem a um modelo adulto e, por outro, a modelo de passividade e ausência de iniciativa”. Na década de 30, temos duas iniciativas interessantes: o teatro escolar de Joracy Camargo e Henrique Pougetti e a companhia teatral de Olavo de Barros. Em 1948, ocorre a montagem de “O Casaco Encantado”, de Lúcia Benedetti, obra de grande importância para o teatro infantil no Brasil, pois “marca ao mesmo tempo a passagem do amadorismo para o profissionalismo e o início do teatro em que adultos representavam para crianças” (LOMARDO, 1994, p. 37). Teatro infantil: um olhar para o desenvolvimento da criança 79 Em 1951, acontece o primeiro congresso brasileiro de teatro, em que a fala de Júlio Gouveia, um dos fundadores do Teatro-Escola de São Paulo, mostra que esse gênero deve preocupar-se em formar o público adulto para o teatro e seu caráter pedagógico, não sendo feita nenhuma menção ao prazer e ao divertimento. Nesse mesmo ano, é fundado o Tablado (uma companhia escola), por Maria Clara Machado, Aníbal Machado e Martin Gonçalves, rompendo com a visão que se tinha deste gênero. A dramaturgia de Maria Clara Machado se caracteriza pelo estilo definido e por determinadas opções que se revelam desde os primeiros textos. A principal delas é a colocação clara do conflito, geralmente vinculado [...] a algum bem, pessoal ou familiar, ameaçado ou subtraído (LOMARDO, 1994, p. 53). Segundo Campos (1998), o teatro infantil brasileiro começa a acontecer no final dos anos 40 e início dos 50, considerando a produção de uma dramaturgia própria e a realização regular de espetáculos. Mais precisamente em 1948, com a montagem de “O casaco encantado”, de Lúcia Benedetti. O que não quer dizer que, antes desse período, não tenha existido algum tipo de modalidade de teatro para crianças. Desde o começo do século XX, autores têm editado peças, apesar de as mesmas serem em número pouco significativo com relação ao de outros gêneros. Supostos textos do século XIX, um deles de Machado de Assis, Beijinhos da vovó, desapareceram, o que vem comprovar o descaso com este gênero literário. No início do século XX, a dupla Coelho Neto/Olavo Bilac lança o Theatro Infantil, em 1905, constituindo-se num exemplo de produção desse gênero. Neste período, os textos estão mais centrados na defesa de idéias que preocupam os autores do que na criança. É interessante destacar que até final dos anos 40 os textos de teatro infantil são feitos para serem representados por crianças. Com relação às publicações de peças, Carlos Góis publica, na década de 20, o Theatro das crianças, em que se destacam a Dona de casa e uma opereta, Branca de neve. Nos anos 40, uma revista de Belo 80 Sandra Márcia Campos Pereira Horizonte, Era uma vez, publica regularmente histórias curtas, entre elas as de Vicente Guimarães. As peças desse autor continuam sendo publicadas, posteriormente, na revista Sesinho, que ele passa a dirigir junto ao Serviço Social da Indústria (Sesi), no Rio de Janeiro. Entre suas peças destacam-se: “O Pacificador”, “Tiradentes”, “Uma visita ilustre”, “O dia da Bandeira” e “Dia do professor”, todas destinadas aos espetáculos integrantes das festividades escolares. É comum que as pessoas ligadas à educação escrevam peças para representações escolares. “Desde que se organizam as primeiras instituições escolares, e até antes disso, o teatro é visto como meio eficiente de educação” (CAMPOS, 1998, p. 63). Segundo Campos (1998, p. 65), “de modo geral, na primeira metade do século, o que se tem é absoluta escassez de publicações ou de realizações no teatro para crianças. Os meninos de boa família, quando interessados em teatro, comparecem diretamente às sessões para adultos”. Até final dos anos 40, talvez o que mais se aproximou do teatro infantil moderno foi o teatro de bonecas na Sociedade Pestalozzi, no Rio de Janeiro. O Estado também se interessou pela modalidade, tanto que, em 1937, O Boletim do Ministério da Educação e da Saúde, registra o estabelecimento da Comissão de Teatro Nacional, composta por nomes ilustres como: Sérgio Buarque de Holanda, Múcio Leão, entre outros. Estudar o tema para crianças e adolescentes era um dos objetivos da comissão, estabelecendo que a) O teatro para crianças e adolescentes pode ser representado por menores ou por adultos; b) A representação feita por menores proporciona o descobrimento de vocações autênticas para a arte do teatro; c) O teatro infantil é um valioso instrumento educacional, cujos resultados não se fazem sentir apenas na formação artística, mas na formação geral da personalidade; d) Deve ser fomentada a literatura teatral infantil; e) Devem ser organizadas representações infantis em todas as escolas; Teatro infantil: um olhar para o desenvolvimento da criança 81 f) Deve merecer cuidado a organização de representações infantis fora da escola, como diversão pública para menores (CAMPOS, 1998, p. 66). Na realidade, a atuação dessa Comissão se resume a iniciar a organização de um grande espetáculo infantil, que não se realiza, e a financiar a apresentação de várias peças de alunos do colégio Pedro II, que não têm nada de adolescente ou infantil. É a partir de 1948, com a peça “O casaco encantado”, de Lúcia Benedetti, que o teatro infantil brasileiro se expande. Campos (1998, p. 67) diz que o teatro infantil brasileiro nasce junto com o moderno teatro brasileiro e nesses tempos iniciais o olho posto na ampliação e formação de platéias é sinal da saúde com que, bem cedo, esse teatro busca expandir-se e afirmar-se. O teatro infantil, em boa parte, ocupa uma posição secundária no plano do teatro nacional. Cabe destacar que “O casaco encantado” teve como responsável por sua montagem Os Artistas Unidos, representantes do que havia de melhor no teatro brasileiro neste período, sendo esta peça premiada como a revelação do ano pela Academia Brasileira de Letras (CAMPOS, 1998). Rapidamente os elencos dispostos a apresentar os espetáculos para crianças multiplicam-se. [...] já no primeiro semestre de 1949 três grupos, no Rio de Janeiro, se empenham na nova modalidade: o Teatro da Carochinha leva a peça O Sítio do Picapau Amarelo, inspirada na obra de Monteiro Lobato, e A Revolta dos Brinquedos, de Pedro Veiga e Pernambuco de Oliveira; o teatro dos Novos leva O Príncipe e o lenhador; [...]. Em São Paulo, o ano de 1949 assiste à criação do TESP, que, tendo à frente Júlio Gouveia e Tatiana Belinky, estréia no Teatro Municipal (CAMPOS, 1998, p. 69). Do mesmo modo, os textos também são multiplicados e os escritores de prestígio, como Odilo Costa Filho e Silvana Sampaio, 82 Sandra Márcia Campos Pereira passam a escrever para esta modalidade. Também são criadas premiações, como o da prefeitura do Distrito Federal, que, em 1952, contempla Lúcia Benedetti e, em 1953, Maria Clara Machado. Na primeira Conferência Nacional sobre o Teatro e a Juventude participaram Luísa Barreto Leite, Cecília Meireles e Paschoal Carlos Magno. Até a década de 50, o teatro infantil chegou a ser sinônimo de atividade educativa, mesmo depois dos primeiros sucessos. Nos anos 60, o teatro infantil volta a ser considerado gênero menor. Já na década de 70 ocorre nova ascensão do gênero em qualidade e quantidade. Um dos fatores que pode justificar é a modernização que domina o país nesse período. Como causas da queda do teatro infantil, Cleber Ribeiro Fernandes atribui o fator econômico e a impossibilidade de experimentação. Entretanto, Campos (1998) diz que o fator econômico não é capaz de, por si só, explicar a minoridade do teatro infantil, assim, este poderia ser uma conseqüência e não uma causa. Com relação à experimentação ela diz que o problema é a especificidade do público que exige um outro preparo dos realizadores. Com relação à qualidade ruim das peças, Maria Lúcia Pupo afirma que isto ocorre devido à “uma visão de mundo fragmentada e conformista, veiculada através da mídia, precariedade de domínio dos pressupostos básicos do gênero dramático” (PUPO apud CAMPOS, 1998, p. 79). Contribuições do teatro infantil para o desenvolvimento da criança Em seu clássico livro A Psicanálise dos contos de fadas, Bruno Betthelheim, ao referir-se às crianças com necessidades especiais, afirma que “se as crianças fossem criadas de um modo que a vida fosse significativa para elas, não necessitariam ajuda especial” (BETTHELHEIM, 1980, p. 12). Este autor faz referência aos contos de fadas, gênero que não tem sua origem vinculada ao público infantil, mas que ao serem Teatro infantil: um olhar para o desenvolvimento da criança 83 recuperados por vários autores tornam-se leitura obrigatória ao longo de gerações, apesar de tantas transformações sofridas pela sociedade. Para que uma estória realmente prenda a atenção da criança deve entretê-la e despertar sua curiosidade. Mas para enriquecer sua vida deve estimular-lhe a imaginação: ajudá-la a desenvolver seu intelecto e a tornar claras suas emoções; estar harmonizada com suas ansiedades e aspirações; reconhecer plenamente suas dificuldades e, ao mesmo tempo, sugerir soluções para os problemas que a perturbam (BETTHELHEIM, 1980, p. 13). Duras críticas já foram feitas aos contos de fadas, entre alguns argumentos destacam-se aqueles que afirmam que algumas estórias expõem as crianças a conflitos e problemas que pertencem ao universo adulto, podendo causar frustrações, ansiedades, etc. Para Betthelheim é necessário colocar a criança em conflito com os problemas que irá enfrentar na vida, mesmo que as sugestões sejam simbólicas. Assim como a literatura infantil (poesia e prosa) está presente na escola de modo marginalizado, sendo utilizada, geralmente, como complemento à aprendizagem dos conteúdos escolares, portanto com caráter pedagógico em detrimento de aspectos proporcionados pela arte como prazer, imaginário, lúdico, simbólico, sensibilidade, etc, o teatro infantil caminha na mesma direção, quando rompe com os muros das instituições escolares para ser absorvido pelas escolas com intenções pedagógicas, perdendo, muitas vezes, seu estatuto de arte. Koudela (2002) afirma que, na medida em que o trabalho educacional abre espaço para o teatro, corre-se o risco do pedagógico prevalecer. Na incorporação do teatro-educação pela educação, segundo essa autora, a Escola-Nova teve papel importante ao mudar a concepção de ensino/aprendizagem. Em lugar de enfatizar o produto final, os professores modernos dão maior importância ao processo. Se a peça construída em torno de Robin Hood é boa, tanto melhor. Isto no entanto não é tão importante quanto o crescimento que resulta da experiência de criar uma peça. Esta mudança de ênfase do aspecto exibicionista 84 Sandra Márcia Campos Pereira para o aspecto educacional fez com que o teatro se transformasse em uma disciplina do currículo escolar que tem uma contribuição valiosa para a educação (WARD apud KOUDELA, 2002, p. 20) Koudela (2002), ao diferenciar teatro de jogo dramático, define o primeiro como arte adulta e este último como manifestação espontânea da criança. Assim, a diferença entre os dois reflete-se na preocupação em resguardar a espontaneidade na representação. A autora afirma, ainda, que a atividade artística é periférica na escola, cuja prioridade ainda é ensinar a ler e escrever. Defendendo a importância do significado da experiência para o desenvolvimento infantil, Koudela (2002, p. 31) diz que aprender por meio da experiência significa o estabelecimento de um relacionamento entre antes e depois, entre aquilo que fizemos com as coisas e aquilo que sofremos como conseqüência. Nessas condições, fazer torna-se experimentar. Apesar de Betthelheim (1980) analisar apenas os contos de fadas, pode-se ampliar algumas de suas discussões para o teatro infantil. Se o primeiro proporciona o desenvolvimento e a resolução de conflitos, o segundo gênero também tem contribuições significativas. Nesse ponto entra-se em duas discussões. Primeiramente, aborda-se a questão do teatro para crianças encenado por adultos ou por elas mesmas. Apesar desse gênero ainda ser considerado, em alguns casos, menos importante – como já foi discutido no capítulo anterior – o encantamento e envolvimento que proporciona à criança, se for realizado com qualidade, é inquestionável. Basta olhar a expressão dos pequenos e verificar que eles se transportam para outro universo, entram em êxtase e, em muitas situações, dão a impressão de que estão fazendo uma viagem interior. A partir dessas idéias pode-se reforçar a necessidade de peças teatrais de qualidade para esse público. Essa preocupação é manifestada por vários autores, dentre eles Pupo (1991), em seu excelente livro No reino da desigualdade, em que examina peças teatrais encenadas na Teatro infantil: um olhar para o desenvolvimento da criança 85 cidade de São Paulo, no período de 1970 a 1976, uma vez que os anos 70 foram profícuos para o teatro infantil no Brasil. A segunda questão está atrelada ao teatro realizado pelas crianças sem a preocupação com a técnica, mas com o processo, com a construção realizada por elas. Nesse sentido, Koudela (2002) trabalha com jogos dramáticos. O objetivo do jogo dramático é equacionado pelas experiências pessoais e emocionais dos jogadores. O valor máximo da atividade é a espontaneidade, a ser atingida através da absorção e sinceridade durante a realização do jogo. Dentre os muitos valores do drama está o valor emocional, e Slade propõe que o jogo dramático forneça à criança “uma válvula de escape, uma catarse emocional” (KOUDELA, 2002, p. 22). Piaget (1975, p. 18) destaca a importância da representação para o desenvolvimento infantil. Para ele o problema da imitação leva ao da representação “na medida em que esta constitui uma imagem do objeto [...] deveria então ser concebida como uma espécie de imitação interiorizada, quer dizer, um prolongamento da acomodação”. Para esse autor a representação começa a partir dos 18 meses, período que ele classifica como fase VI, em que a criança ainda encontrase no estágio sensório-motor. Mas, é a partir do estágio seguinte, o pré-operacional, que vai dos dois aos sete anos, que a representação manifesta-se de modo efetivo, ou seja, a criança já consegue criar um modelo interno ou recordação. Assim sendo, provavelmente a partir desta fase é mais significativo para a criança o trabalho com o teatro infantil, o que não significa que antes dos dois anos a representação não deva fazer parte do universo infantil. Durante o período 6, uma criança passa de um nível de inteligência sensório-motora para a inteligência representacional. Isto significa que a criança torna-se apta a representar internamente (mentalmente) objetos e eventos e subseqüentemente torna-se capaz de (cognitivamente) resolver problemas através da representação (WADSWORTH, 1993, p. 43). 86 Sandra Márcia Campos Pereira Considerando que a preocupação desse trabalho é discutir a importância do teatro infantil para a faixa etária de 0 a 6 anos (Educação Infantil), é irrefutável que a presença desse gênero nas instituições educacionais seja primordial, se realmente a preocupação é a criança. Adentrando nesse ponto, esbarramos em um empecilho que é a falta de pessoas qualificadas para desenvolver esse trabalho, pois, apesar do percurso exposto com relação à idéia sobre a arte que se construiu no ambiente escolar, os resquícios conservadores e distorcidos dos trabalhos realizados em toda manifestação artística, ainda está presente no ambiente escolar. Portanto, quando se quer trabalhar com teatro é preciso conhecêlo, ter claro o que se pretende com ele, o que se espera das crianças, as dificuldades, etc. É preciso romper com o princípio de que Tradicionalmente, sob o aspecto educacional, o teatro é considerado um braço da educação formal. A preocupação “pedagogizante” não inclui entre seus objetivos a fruição de arte pela criança, reduzindo a platéia infantil à categoria de alunos aos quais devem ser ministrados ensinamentos (KOUDELA, 2002, p. 92). O teatro realizado na escola não deve ser pensado com o intuito de prevalecer o resultado, ou seja, a apresentação de alguma peça, para que os pais vejam que a escola trabalha com teatro, o que os leva a se orgulhar do desempenho de seus filhos, que, em alguns casos, ficam tão decepcionados que podem passar a odiar o teatro. A ênfase deve ser dada ao processo, em como a criança sente, nas transformações internas sofridas por ela durante o trabalho com a encenação. Ao trabalhar esse tipo de teatro, o centro deve ser a criança, nunca a encenação de peças para os adultos. Do mesmo modo, ao incentivar a ida dos infantes a espetáculos teatrais, ou mesmo ao proporcionar tal atividade, a escola deve ter um plano de trabalho que contemple o teatro infantil ao estatuto de arte, por isso é preciso ter muito cuidado com o tipo de encaminhamento adotado. Teatro infantil: um olhar para o desenvolvimento da criança 87 Essa discussão sobre o teatro infantil deve ser ampliada para se pensar o papel da arte no ambiente escolar e sua função no processo de desenvolvimento da criança. Nesse sentido, Martins et al., afirma que se a arte é por si mesma a experiência sensível em que nosso corpo perceptivo reflete, propor situações de aprendizagem em arte implica vibrar nesse corpo o assombro pelo mundo e o estranhamento diante daquilo que, amortecidos, com os sentidos embotados, já não vemos mais. Percepção de corpo inteiro desperto para o mundo e seus reflexos dentro de si (MARTINS, 1998, p. 118). Nessa perspectiva, o trabalho do teatro deve estar integrado a um projeto mais amplo, ou seja, deve proporcionar o envolvimento da criança no mundo das artes, visando seu desenvolvimento global por meio do lúdico, da imaginação, da criatividade, etc. Para que essa proposta se realize é necessário ter clareza sobre o projeto pedagógico e uma formação dos professores coerente com os objetivos traçados, pois, deve-se tomar cuidado para não limitar o potencial criador dos alunos e não perder de vista o trabalho com arte. INFANTILE THEATER: A LOOK AT CHILD DEVELOPMENT Abstract: Children’s theater comes with didactic worries, being marginal in regard to the adult-oriented genre but, in spite of the odds, it can attain its artistic acknowledgement and, while taking part in school institutions, it loses its frame and is often viewed in the sense attributed by the Jesuits under the Ratio Studiorum. This work aims at analyzing the importance of children’s theater in child development by approaching both the theater staged by adults toward kids and the one made by kids themselves, which is usually staged in schools. The methodology used was qualitative based on bibliographic analysis. The conclusion to which one has come is that theater is essential to children regardless of being spectators or direct participants. In the first case, they can take an inner trip by means of the story, the characters, the scenery, etc, so they can solve conflicts. Through staging they can assimilate the real and a lot of changes may be provided. Now, when a child takes part in the show, it is necessary to be aware of it by valuing the process of construction and creation and by trying to understand the change which it is going through. The final 88 Sandra Márcia Campos Pereira product must be a consequence of the process, not the aim of the work which is being performed. Keywords: Education. Children’s theater. Child development. Referências bibliográficas BETTHELHEIM, B. Psicanálise dos contos de fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. BRASIL. Ministério da Educação. Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional. Lei n. 9394/96. Brasília: MEC, 1996. BRASIL. Ministério da Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil. Brasília: MEC, 1999. CADERMARTORI, L. O que é literatura infantil. São Paulo: Brasiliense, 1986. CAMPOS, C. de A. Maria Clara Machado. São Paulo: Edusp, 1998. FERREIRA, E. A. A arte no desenvolvimento infantil. Texto elaborado para o curso de especialização da Unesp: Docência da Educação Infantil, 2003. LAJOLO, M.; ZILBERMAN, R. Literatura infantil brasileira: história e histórias. 5. ed. São Paulo: Ática, 1991. ______. Um Brasil para crianças. São Paulo: Global, 1986. LOMARDO, F. O que é teatro infantil. São Paulo: Brasiliense, 1994. MARTINS, M. C. et al. Didática do ensino de arte: a linguagem do mundo. São Paulo: FTD, 1998. PIAGET, J. A formação do símbolo na criança. Rio de Janeiro: Zahar, 1975. PUPO, M. L. de S. B. No reino da desigualdade. São Paulo: Perspectiva, 1991. KOUDELA, I. D. Jogos teatrais. São Paulo: Perspectiva, 2002. WADSWORTH, B. J. Inteligência e afetividade da criança: teoria de Piaget. São Paulo: Pioneira, 1993. ZILBERMAN, R. (Org.). A literatura infantil na escola. São Paulo: Global, 1981. DOSSIÊ TEMÁTICO Infância e Educação RELAÇÃO PAIS E FILHOS E O PROCESSO DE APRENDIZAGEM ESCOLAR: UM ESTUDO DE CASO1 Maria Aparecida Carmem Bonfim Silva* Ruben de Oliveira Nascimento* * Resumo: Este trabalho é um resumo revisto e ampliado de um estudo de caso de um aluno do ensino fundamental, que apresentava baixa motivação para aprendizagem e pouco envolvimento com as tarefas propostas. Na análise do caso, observou-se uma relação entre essa baixa motivação para a aprendizagem com o contexto familiar, principalmente no tocante à relação pais-filho. O trabalho traz reflexões sobre a relação pais e filhos, e suas possíveis repercussões no processo de aprendizagem escolar. Palavras-chave: Relação pais e filhos. Motivação para a aprendizagem. Cognição e afeto. Família e escola. Este trabalho é um resumo revisto e ampliado, sobre um caso atendido pela Professora Maria Aparecida Carmem Bonfim Silva, atuando como psicóloga escolar, relatado no trabalho monográfico elaborado pela professora, sob orientação do Prof. Ms. Ruben de Oliveira Nascimento, para conclusão do curso de pós-graduação lato sensu em Psicologia da Educação, promovido pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb). * Pós-graduada lato sensu em Psicologia da Educação pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb). Docente de Psicologia da Faculdade de Tecnologia e Ciências (FTC). Email: [email protected]. ** Mestre em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Docente de Psicologia da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb) e da Faculdade Juvêncio Terra. E-mail: [email protected]. 1 APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano III n. 4 p.89-110 2005 90 Maria Aparecida Carmem Bonfim Silva e Ruben de Oliveira Nascimento Apresentação A busca pelo conhecimento, no contexto escolar, é uma ação que envolve o ser total, em suas dimensões cognitiva, emocional e física. Ela também envolve a consecução de etapas e de passos propostos pela interação educativa. Por parte do aluno, essa busca implicaria cumprir ou superar passos ou etapas solicitadas pela interação educativa, a fim de que resultados sejam alcançados. Para isso, envolvimento ativo com as tarefas escolares e motivação para aprender têm uma participação importante no processo. Contudo, entendemos que as dimensões acima citadas, somadas ao interesse pelas tarefas escolares e à motivação para aprender – vistos como necessários a uma aprendizagem escolar satisfatória –, não são formados ou constituídos exclusivamente no contexto escolar e suas atividades cotidianas. Nossa posição é de que são também formados ou constituídos no interior da relação familiar, a partir da dinâmica psicológica que estabelecem seus membros; e que o envolvimento emocional e cognitivo da criança com os passos necessários para a aprendizagem escolar, expressados na demonstração de seu nível de interesse e motivação para aprender, podem refletir a dinâmica familiar a que está submetido. Este trabalho apresenta aspectos de um caso observado, numa escola privada de ensino fundamental. O artigo visa examinar os seguintes fatores envolvidos nesse caso: baixa motivação para a aprendizagem, a conduta familiar na educação dos filhos e os possíveis efeitos dessa conduta no rendimento escolar, considerando-se o modo como a dinâmica psicológica familiar, principalmente na relação paisfilhos, pode repercutir no nível de desempenho, interesse e esforço demonstrado pelo aluno para cumprir as atividades ou passar pelas tarefas escolares propostas. Nossa intenção com a apresentação desse estudo de caso é contribuir com a discussão e a reflexão acerca da aprendizagem escolar e dos possíveis efeitos que a dinâmica familiar na formação da Relação pais e filhos e o processo de aprendizagem escolar: um estudo de caso 91 personalidade da criança possa ter no processo de aprendizagem escolar, incentivando mais pesquisas nessa direção. O problema e o objetivo de pesquisa Na escola, alguns alunos podem não se mostrar motivados a dedicar tempo, atenção e esforço suficientes para uma boa aprendizagem, envolvendo-se pouco com as atividades escolares, seja em sala de aula ou em ambientes extra-classe, comprometendo resultados esperados ou possíveis. Muitas podem ser as causas para essa situação, mas, sabemos que mesmo com todo o preparo e esforço do professor, se o aluno não estiver interessado em aprender, muito do processo de aprendizagem se perde ou mesmo não se completa. Queremos frisar também que, em muitos casos, o fato de um determinado conteúdo interessar ao professor, não implica necessariamente que o mesmo será de interesse do aluno. Esses aspectos tocam na importante questão da motivação para aprendizagem e de aspectos afetivos como componentes impulsionadores do processo de construção de conhecimento. Autores como Mouly (1993), Coll (1996), Norman A. Sprinthall e Richard C. Sprinthall (1997), Tápia e Fita (1999), Arantes (2002) e Wadsworth (2003) assinalam que aspectos afetivos e motivacionais são imprescindíveis à aprendizagem no contexto escolar, como também para o esforço cognitivo que ela demanda. Assim como envolvimento afetivo e motivação são fundamentais para a aprendizagem bem sucedida, baixos níveis de motivação e de interesse também podem estar igualmente ligados a um processo mal sucedido ou insatisfatório de aprendizagem. Norman A. Sprinthall e Richard C. Sprinthall (1997, p. 304), comentam a correlação que apontamos acima, dizendo que está implícito em toda a literatura sobre o rendimento baixo ou elevado o pressuposto de que as variáveis motivacionais e emocionais desempenham um papel crucial, se não o mais crucial, no sucesso acadêmico (grifo nosso). 92 Maria Aparecida Carmem Bonfim Silva e Ruben de Oliveira Nascimento Partindo-se da observação do desempenho do aluno, entre outros fatores possíveis, levantou-se o questionamento de que a baixa motivação demonstrada por essa criança para a aprendizagem escolar poderia estar relacionada à conduta familiar na educação dos filhos. A hipótese proposta foi de que existiria relação entre baixa motivação para a aprendizagem escolar e conduta familiar na educação dos filhos, como um fator dentre outros, capaz de interferir acentuadamente no processo de aprendizagem. Com esse estudo de caso objetivou-se examinar a relação entre baixo nível de motivação e interesse no cumprimento das atividades e ações pedagógicas, solicitadas na interação educativa promovida no contexto escolar, e a conduta familiar na educação dos filhos. Metodologia de pesquisa e objetivo O caso diz respeito a uma criança de dez anos de idade, do sexo masculino, aluno da quarta série do ensino fundamental, com queixa de baixa motivação para as atividades escolares. Segundo Gil (1999), Estudo de Caso é um processo de estudo empírico de um ou poucos objetos, caracterizado pela investigação profunda de um fenômeno dentro de um contexto, no qual se pode utilizar várias fontes de evidência, descrevendo as situações do contexto e suas variáveis. Para o levantamento e análise dos dados, utilizou-se entrevistas com pais e professores, observação do comportamento da criança em atendimentos e atividades realizadas na própria escola ao longo do ano letivo, e instrumentos projetivos de avaliação psicológica (teste das fábulas de Duss) e teste de nível intelectual (WISC). Fundamentação teórica A seguir, apontaremos as referências teóricas em que nos baseamos para fundamentar a análise dos dados e a conclusão a que chegamos. Relação pais e filhos e o processo de aprendizagem escolar: um estudo de caso 93 Para uma apresentação organizada dessas referências, as apresentaremos por temas inerentes à pesquisa e ao seu objetivo, que são: motivação e aprendizagem; aspectos dinâmicos da motivação para aprendizagem; família e escola. Queremos frisar que esses temas devem ser vistos como combinados e formando um quadro geral de referências interligadas. Motivação e aprendizagem A abordagem interacionista piagetiana baseia-se no princípio de que o desenvolvimento da inteligência é determinado pelas ações mútuas entre o indivíduo e o meio. A noção central é de que o homem nasce potencialmente inteligente, mas precisa da interação com os objetos externos para o desenvolvimento e desdobramento desse potencial. Assim sendo, o homem reage aos estímulos externos, agindo física e mentalmente sobre eles para constituir e organizar o seu próprio conhecimento a respeito desses objetos, de forma cada vez mais elaborada cognitivamente. A necessidade de conhecimento é intrínseca ao indivíduo desde o início do seu desenvolvimento. Nesse sentido, a teoria de Piaget valoriza os impulsos de exploração, as necessidades de atividades, cujo conhecimento é uma construção dependente da atividade do sujeito na relação com o objeto. Assim, a necessidade de conhecer está contida na atividade intelectual, dela não se separando. Não existe um fator separado de motivação, pois o mesmo está contido nos processos complementares de assimilação e acomodação (PIAGET, 1999; WADSWORTH, 2003). Levando os aspectos acima apontados para o contexto escolar, podemos observar que a ação mental sobre os objetos de conhecimento tem na motivação e na curiosidade importantes forças impulsionadoras do processo cognitivo, sendo assim alguns dos componentes básicos para a realização dos passos necessários para a aprendizagem, considerando-se que o sujeito precisa interagir com pessoas e tarefas propostas no cenário educacional. 94 Maria Aparecida Carmem Bonfim Silva e Ruben de Oliveira Nascimento Nesse sentido, o processo de aprendizagem tem, entre outros fatores, na motivação, na vontade de aprender e na disposição afetiva, componentes ou impulsos necessários para sua realização. Diversos autores sustentam a importância da motivação e do envolvimento emocional com as tarefas escolares, vendo motivação e aprendizagem como recíprocos (COLL, 1996; SPRINTHALL, N. A.; SPRINTHAL, R. C., 1997; TÁPIA; FITA, 1999; ARANTES, 2002; NETTO, 2002; WADSWORTH, 2003). Considerando cognição e motivação como fatores interligados no processo de aprendizagem, Norman A. Sprinthall e Richard C. Sprinthall (1997, p. 505), comentam que “não só a motivação afeta a aprendizagem, como também a aprendizagem afeta a motivação”. Essa característica de afetação mútua caracterizaria a reciprocidade desses fatores. Essa relação tem componentes dinâmicos importantes que precisam ser considerados no processo educacional. Aspectos dinâmicos da motivação para aprendizagem A reciprocidade entre motivação e aprendizagem tem componentes psicológicos e variáveis contextuais. Segundo Tapia e Garcia-Celay (1996), os alunos possuem metas, que influenciam o seu comportamento e, de acordo com certas variáveis contextuais, a consecução de algumas são mais viáveis do que de outras. De acordo com este autor, as metas podem ser agrupadas em quatro categorias: metas relacionadas com a tarefa (experimentar que se aprendeu algo, incrementando a própria competência e produzindo-se assim uma resposta emocional gratificante); metas relacionadas com o EU (aquelas cujo fim é alcançar um nível de qualidade preestabelecido socialmente, geralmente já alcançado pelos colegas. O aluno busca experimentar que é melhor do que os demais ou que não é pior, evitando o sentimento de vergonha ou humilhação trazido pelo fracasso); metas relacionadas com a valorização social (dizem respeito muito mais à experiência emocional advinda da valorização social conseqüente à própria atuação, do que com a aprendizagem ou a conquista acadêmica Relação pais e filhos e o processo de aprendizagem escolar: um estudo de caso 95 propriamente dita); metas relacionadas com a consecução de recompensas externas (são metas cujo fim é a obtenção de prêmios, presentes, etc, e também não estão relacionadas com a aprendizagem ou com a conquista acadêmica propriamente dita). É importante ressaltar que as metas apresentadas não são excludentes. Segundo esses autores, na maioria das vezes, os alunos buscam mais de uma delas no processo educacional. Tápia e Garcia-Celay assinalam que os alunos também diferem nas justificativas que tendem a dar às conquistas escolares e nas expectativas que precisam poder controlar para a consecução das metas acadêmicas. Alguns atribuem os êxitos a causas internas (competência e esforço), ao passo que outros os atribuem a causas externas e não se consideram capazes de controlar a consecução das metas, ao contrário dos primeiros. Como conseqüência destas diferenças, a aprendizagem difere, sendo mais efetiva no primeiro caso. Comentam ainda que a forma de pensar difere de acordo com a meta do indivíduo, especialmente diante do fracasso. Quem busca aprender, pergunta-se como pode resolver o problema, repassa o que foi feito e busca novas informações, enquanto que aqueles que apenas buscam ficar bem pensam que não vão conseguir resolver o problema, que ele é muito difícil e está além da sua capacidade; estes últimos tendem a abandonar a tarefa antes de seu fim. Esses autores argumentam que a motivação depende, em grande parte, de que a consecução das metas perseguidas seja vista: como dependente exclusivamente daquilo que alguém faça (de seu esforço e capacidade), como dependente de que aquilo que alguém faça supere ou não o que façam os outros, e por fim, como dependente do esforço coordenado de vários. Ou seja, a motivação pela tarefa depende do grau e tipo de interdependência de metas. Esses aspectos dinâmicos demonstram que muitas variáveis interferem na aprendizagem, e que não é apenas a disposição intelectual do aluno que pesa na aprendizagem, mas também sua disposição emocional, sua motivação e sua percepção das tarefas escolares, de 96 Maria Aparecida Carmem Bonfim Silva e Ruben de Oliveira Nascimento acordo com metas que estabelece para si conforme o contexto que experimenta. Nesse sentido, Norman A. Sprinthall e Richard C. Sprinthall (1997, p. 505), comentam que [...] tem de se compreender que a motivação nunca atua separada nem da aprendizagem nem da percepção. Os três grandes da Psicologia – a aprendizagem, a percepção e a motivação – estão em constante interação, cada um afetando e sendo afetado pelos outros dois (grifo do autor). Família e escola César Coll (1999) define a família como um contexto primordial de desenvolvimento das pessoas. Entretanto, a mesma definição do que é uma família, suas funções e as oportunidades que oferecem aos seus membros para a aprendizagem e desenvolvimento está condicionada aos valores culturais da comunidade da qual faz parte. Oliveira (2001, p. 163) comenta que com [...] forte influência na formação do indivíduo, a família é o primeiro grupo social a que pertencemos. Embora as normas sociais institucionalizadas determinem as regras de funcionamento da instituição familial, cada família tem ainda suas próprias regras de comportamento e controle. Quando se define uma família, geralmente são incluídos os membros do grupo familiar, e a sua estrutura, os vínculos que mantém e as funções que possui. Em relação à estrutura, pode ser definida como família nuclear ou família extensa (COLL, 1996, 1999; OLIVEIRA, 2001). A família nuclear é formada pelo casal e pelos filhos não-adultos. A família extensa diz respeito àquelas nas quais convivem mais de um núcleo conjugal. Pode ser tanto em relação ao eixo vertical, que corresponde a diferentes gerações que a constituem em um dado momento, como em relação ao eixo horizontal, quando se incluem os membros de uma mesma geração. Relação pais e filhos e o processo de aprendizagem escolar: um estudo de caso 97 Atualmente nas sociedades desenvolvidas, a família nuclear é uma das estruturas mais encontradas, desde que as famílias extensas, devido às mudanças na organização da vida e da fixação em núcleos urbanos, perderam muitos vínculos que antes possuíam e preservavam (COLL, 1999). De acordo com o enfoque de nosso trabalho, e analisando a família como um quadro de interações, mencionamos Shaffer apud Coll (1999), que considera que a natureza das relações interpessoais é o fator determinante para o desenvolvimento da criança na família, mesmo que a estrutura familiar não seja a tradicional. Ao se destacar as relações que ocorrem na família para explicar o seu impacto no desenvolvimento das crianças, é necessário considerála como um sistema. Assim definida, a família ressalta um contexto no qual as ações e atitudes de cada membro afetam os outros e vice-versa (GOMES, 1987, COLL, 1999). Como todo sistema, a família tem uma estrutura e algumas pautas reguladoras de seu funcionamento que tendem a manterem-se estáveis. As famílias são compostas por vários subsistemas, tais como, o subsistema casal, o dos filhos, etc., entre os quais existem limites mais ou menos flexíveis. Numa família saudável, a existência e percepção do sistema familiar como um todo não é incompatível com a autonomia de seus subsistemas. Tanto as famílias muito desligadas como as excessivamente aglutinadas podem gerar conflitos e problemas emocionais (COLL, 1999). São funções da família a proteção aos seus membros e o favorecimento a sua adaptação à cultura da qual faz parte. Deve oferecer proteção às crianças, garantindo-lhes a subsistência e contribuir para a socialização das mesmas, sendo por isso considerada pela Sociologia (FERREIRA, 1993; COSTA, 1998; TOSCANO, 1999; OLIVEIRA, 2001;) uma instituição conservadora e reprodutora da estrutura social dominante. Deve dar suporte a sua evolução, ajudando-lhes no processo de escolarização e de instrução progressiva em outros aspectos da vida social. Finalmente, deve contribuir para que as crianças se tornem 98 Maria Aparecida Carmem Bonfim Silva e Ruben de Oliveira Nascimento pessoas emocionalmente equilibradas, capazes de formar vínculos afetivos com os outros, por terem uma boa auto-estima e uma identidade bem estabelecida (COLL, 1996, 1999). Enfim, a vivência familiar dá ao indivíduo a oportunidade de estabelecer relações baseadas no respeito mútuo e no afeto. Vemos assim o quanto a estrutura familiar pode ser um contexto de desenvolvimento para as pessoas. As aprendizagens feitas neste contexto acontecem em meio a relações e sentimentos de afeto e de vinculação. Nesse sentido, Gallart (1999) assinala que Embora em diferentes graus, no contexto da família combinamse as exigências com a estima, as diretrizes e os ajustes e o alento para enfrentá-los, as dificuldades com o reconhecimento por têlos superados, a orientação direcionada à tarefa bem feita com a possibilidade de errar, o estímulo até a autonomia progressiva com a segurança que proporciona saber que existem outras pessoas que a estimam e que estão dispostas a ajudar quando necessário. Aqui, nota-se que as experiências educativas oferecidas na família e aquilo que se aprende não pode ser examinado à margem de todos esses aspectos, à margem das relações em que tomam corpo, já que são esses os responsáveis pelo impacto que têm no desenvolvimento (GALLART, 1999, p. 160). Essa autora frisa ainda que as crianças aprendem a conduta habitual com adultos próximos e durante longos períodos. As mudanças observadas durante a infância não podem ser entendidas desvinculadas das aprendizagens e das relações que acontecem no contexto familiar, como também na escola e em outros meios sociais. Elas podem experimentar com os objetos e com as pessoas; vivem situações conhecidas e novas; os seus comportamentos são repreendidos ou estimulados e aplaudidos; observam o comportamento dos outros, os imitam e deles recebem ajuda, podendo assim progredir em várias áreas de atuação. Examinando essas questões Gallart aponta que as práticas educativas divergem no que se refere ao grau de controle exercido pelos pais em relação ao comportamento dos filhos. Para ela, essa Relação pais e filhos e o processo de aprendizagem escolar: um estudo de caso 99 dimensão tem uma grande importância no desenvolvimento do indivíduo, já que, pela orientação e pelo controle que os pais exercem, a criança aprende a controlar e a regular a sua conduta de maneira autônoma. O controle por meio de uma combinação de firmeza e razão ajuda muito mais a criança a adquirir autocontrole do que quando a intervenção dos pais é por meio de uma atitude autoritária ou excessivamente permissiva. Gallart comenta que outra diferença encontrada nas famílias em relação às práticas educativas é a capacidade de estabelecer um ambiento comunicativo. Seriam famílias nas quais é possível explicar as normas e as decisões que são tomadas, sempre se levando em consideração as idéias e os pensamentos dos outros. Nessa dinâmica, tudo é compartilhado, desde os problemas, conflitos, dúvidas e ansiedades, até as expectativas e satisfações. É um ambiente que favorece a manifestação dos sentimentos e emoções. Gallart assinala que tem importância também o grau de maturidade que as famílias exigem dos filhos. Algumas possuem expectativas demasiado elevadas que causam ansiedade nos mesmos. Já outras são otimistas e confiam no seu potencial, o que contribui para o desenvolvimento e a autonomia. Coll (1996, 1999) e Papália e Olds (2000) destacam que de todas as dimensões, a afetiva tem uma importância crucial nas relações. O controle exercido com firmeza num ambiente distante e frio, não tem o mesmo efeito que outro exercido num ambiente afetuoso. As referências teóricas acima apresentadas mostram que o contexto familiar, sua dinâmica psicológica, o estabelecimento de seus vínculos e as práticas educativas adotadas, combinam fatores que podem repercutir no comportamento da criança em outros ambientes e contextos, interferindo em suas atitudes frente aos desafios e às tarefas propostas nesses contextos. Nessa direção, é fácil observar que as crianças podem mostrar grandes diferenças quanto à curiosidade, quanto à disposição para experimentar e indagar, principalmente no contexto escolar. Tomando 100 Maria Aparecida Carmem Bonfim Silva e Ruben de Oliveira Nascimento como base as premissas acima, entendemos que essas diferenças podem estar relacionadas com as experiências vividas na família. Gallart (1999) considera o desenvolvimento das crianças como um processo social e culturalmente mediatizado, dentro de contextos. A autora comenta que família e escola formam contextos que compartilham entre si muitas funções educativas em comum, como por exemplo, promoção das capacidades cognitivas, motoras, de relação interpessoal, de inserção social, etc. A autora frisa que, ao invés de serem acentuados os aspectos que distinguem os dois contextos, melhor seria acentuar os aspectos que são complementares. Nesse sentido de interconexão de contextos, lembramos a perspectiva ecológica de desenvolvimento elaborada por Bronfenbrenner (1996). Bronfenbrenner elaborou uma perspectiva teórica sobre o desenvolvimento humano em estreita relação com o ambiente ecológico. Segundo esse autor, desenvolvimento é definido “como uma mudança duradoura na maneira pela qual uma pessoa percebe e lida com o seu ambiente” (BRONFENBRENNER, 1996, p. 5). Esse ambiente é ecológico na medida em que compreende diversos contextos interconectados. A estrutura do ambiente ecológico é também um importante fator. Portanto, Bronfenbrenner concebe ambiente ecológico como muito além da situação imediata, envolvendo a conexão com outras pessoas e contextos, formando um complexo de inter-relações marcadas pelo modo como o indivíduo percebe o ambiente ecológico. Desse modo, podemos pensar família e escola como sistemas e contextos interatuantes e interrelacionados, que compartilham funções educativas semelhantes e que, por conseguinte, exigirão respostas cognitivas e afetivas às tarefas, desafios, situações e atividades propostas; respostas estas que terão relação com a aprendizagem social e estruturação psicológica desenvolvidas e aprendidas nas relações em ambos os sistemas. Relação pais e filhos e o processo de aprendizagem escolar: um estudo de caso 101 Histórico do caso A criança em estudo tinha dez anos de idade e cursava a 4ª série do ensino fundamental. Iniciou na escola em 1996, para cursar o 1º período e desde então vinha apresentando problemas ligados ao desempenho nas atividades diversas. Segundo relato da professora na época, era uma criança que necessitava de ajuda e muito estímulo, devido à falta de atenção e ritmo lento. Desde a alfabetização apresentava bom relacionamento com o grupo, sempre tranqüilo e sociável, e sua linguagem oral correspondia à idade cronológica. Já neste período evidenciou uma tendência à inibição e contenção das emoções. À medida que as dificuldades normais do processo de alfabetização surgiam, passou a demonstrar baixo interesse pelas atividades. Concluiu a alfabetização ainda com algumas dificuldades na leitura e na escrita. Ao ingressar na primeira série, na primeira unidade obteve resultados dentro da média, com exceção de uma disciplina: Integração Social. Seu melhor desempenho era em Matemática, em todas as unidades. As suas dificuldades na leitura e escrita se evidenciaram durante todo o ano letivo, pelo baixo desempenho em português, tendo ficado abaixo da média na terceira unidade. Concluiu a primeira série dentro da média em português e um pouco acima nas demais disciplinas. Na segunda série, as dificuldades se acentuaram, ficando abaixo da média em português nas três primeiras unidades e em matemática nas duas primeiras, com boa recuperação nas duas últimas, chegando ao final do ano letivo com recuperação em português. Segundo o relato das professoras, mostrava um comportamento apático e desinteressado em relação à execução das atividades em classe, necessitando de muito estímulo e ajuda. Sua participação nas aulas sempre foi muito aquém da esperada, raramente perguntando e expondo dúvidas. Em relação ao comportamento social, nunca apresentou problemas, relacionando-se bem com os colegas, em parte devido a sua passividade e baixa agressividade. 102 Maria Aparecida Carmem Bonfim Silva e Ruben de Oliveira Nascimento No inicio da segunda série, foi encaminhado ao Serviço de Orientação Educacional pela coordenadora do ensino fundamental. A mãe solicitou atendimento, preocupada com o baixo rendimento do filho na primeira unidade. Foi realizada uma avaliação psicológica com os seguintes resultados: os dados anamnésicos revelaram que a gravidez não foi planejada, tendo sido recebida com tensão e ansiedade, sendo, inicialmente, escondida pelo fato dos pais ainda não serem casados. Foi feito o pré-natal durante todo o período gestacional, tendo todos os exames resultados normais. O parto foi normal e a termo e a criança chorou logo ao nascer. Foi alimentado ao seio durante três meses e o desmame aconteceu quando o leite secou. A partir de então, usou mamadeira até os quatro anos. Sempre teve problemas para se alimentar, somente comendo o que queria. Usou chupeta até os três anos. O desenvolvimento neuropsicomotor transcorreu sem problemas. A criança dorme bem, em seu próprio quarto, mas até recentemente dormia no quarto dos pais e ainda sai de sua cama para dormir na cama deles, com o que ambos concordam. É sociável e tem amigos dentro e fora da escola, embora não tenha muita iniciativa para procurar as pessoas. Os pais dizem ter bom relacionamento um com o outro, e com relação ao filho, o pai mostra-se “desligado” ou desinteressado, e a mãe muito protetora. A criança é muito apegada à mãe e ciumenta. Na área escolar, sempre recebeu ajuda de professores particulares,pois a mãe nunca conseguiu que ele assumisse a responsabilidade pelas tarefas, as quais exigiam dele um esforço que não precisava fazer em nenhuma outra atividade da vida diária, já que em tudo era atendido prontamente. Após a avaliação, os pais foram atendidos e aconselhados a buscar avaliação psicológica conjunta, para eles e para o filho, e a pensarem a respeito da conduta familiar que vinham promovendo. Quanto ao aluno, houve um atendimento no Setor de Orientação Educacional, voltado a fazê-lo sentir a necessidade de submeter-se a uma orientação psicológica para vencer as suas dificuldades. Relação pais e filhos e o processo de aprendizagem escolar: um estudo de caso 103 Reconhecemos que num estudo de caso muitos aspectos podem ficar à margem das análises produzidas, por isso, colocamos esses detalhes do histórico do caso para que o leitor possa também levantar outras possibilidades de análise e investigação de acordo com sua própria leitura. Análise dos dados e algumas reflexões Os dados levantados no teste de nível intelectual (WISC) mostraram que a criança possuía nível intelectual acima da média, com bom raciocínio lógico-matemático, boa capacidade de aquisição de conhecimentos e boa memória. Esses dados sinalizaram para uma compreensão de que não havia evidências que a baixa motivação estivesse relacionada com o desenvolvimento ou capacidade intelectual da criança, fazendo crer que, cognitivamente, tivesse condições satisfatórias para aprender. Os testes psicológicos projetivos, as observações diretas e as entrevistas com os professores e com os pais, mostraram os aspectos a seguir. Filho de pais jovens, com pai distante e pouco envolvido, e mãe imatura e superprotetora, que lhe tratava com zelo exagerado, poupando-lhe esforços, ajudando e facilitando excessivamente em tudo que oferecia qualquer dificuldade, inclusive fazendo as tarefas escolares pela criança. A criança mostrava-se muito dependente da mãe. Em sala de aula, a criança apresentava-se insegura e reagia de forma negativa em situações que apresentavam algum grau de dificuldade, mostrando-se inibida e dependente de ajuda ou estímulo. Adrados (1988) destaca o lado negativo que a superproteção pode originar, determinando uma atitude que desprepare a criança para as exigências da vida. A superproteção cria obstáculos ao desenvolvimento da independência da criança e implica numa diminuição ou excesso de controle por parte dos pais. O excesso de cuidados e atenção, vividos pela criança, pode levá-la a desenvolver pouca confiança em suas capacidades. 104 Maria Aparecida Carmem Bonfim Silva e Ruben de Oliveira Nascimento A escola coloca essas crianças numa situação muito difícil, pois, tais crianças podem não aceitar com facilidade o dever, a responsabilidade e a separação do lar e dos pais que a vida escolar apresenta. Como crianças assim podem apresentar baixa autoconfiança, o esforço torna-se muito penoso, pois não crê que possa superar as dificuldades. No contexto escolar, o resultado disso pode ser baixa motivação para a aprendizagem e, conseqüentemente, dificuldades de aprendizagem e até mesmo fracasso escolar. Lembramos também, nessa altura da análise, a colocação que Tápia e Garcia-Celay (1996) fazem sobre a importância que tem o modo como o aluno vê a tarefa escolar (em termos de dificuldades e desafios), como se vê diante dessa tarefa (sentindo-se capaz ou não) e as expectativas que constrói dessa tarefa e das dificuldades ou facilidades que apresenta, formando um quadro de variáveis psicológicas e contextuais interatuantes. Portanto, maior ou menor confiança em si pode afetar a interação da criança com a tarefa a ser executada, refletindo em alta ou baixa motivação. Portanto, nosso entendimento é que a criança do estudo em questão enquadrava-se num perfil de filho superprotegido, com dificuldades de enfrentar sozinha os desafios escolares e de superar os passos necessários à aprendizagem, temendo fracassos e frustrações. Entendemos que o resultado dessa disposição psicológica aparecia na inibição e na apatia frente às tarefas escolares propostas. Também observamos que a criança em questão apresentava inteligência e condição intelectual para um desempenho escolar normal, mas não mostrava motivação para as atividades escolares, com dificuldade para enfrentar ou mesmo realizar os passos necessários para a aprendizagem de um assunto. Compreendemos que isso assinalava para a possibilidade de interferência de aspectos afetivos no processo, uma vez que intelectualmente a criança mostrava-se apta para aprender normalmente. Assim, o baixo rendimento escolar não se devia à capacidade intelectual da criança, mas, a sua falta de envolvimento efetivo com as tarefas escolares, resultando no não Relação pais e filhos e o processo de aprendizagem escolar: um estudo de caso 105 cumprimento das tarefas preparadas para a concretização da aprendizagem, como esperado. Portanto, a questão afetiva, nesse caso, mostrou-se tão relevante quanto a capacidade intelectual, inibindo a participação total da criança nas tarefas escolares, e conseqüentemente prejudicando sua produção escolar. Nesse sentido, Martinelli (2002, p. 99-100), apresentando uma revisão da literatura sobre dificuldades de aprendizagem, comenta que as relações entre os domínios cognitivo e afetivo têm sido discutidas em diferentes perspectivas teóricas. Embora estas nem sempre sejam concordantes entre si, em muitos aspectos não há como negar que existe uma relação entre os fatores afetivos e os atos inteligentes, e que as pesquisas apontam fatores como autoconceito, auto-estima, percepção de habilidades, expectativa de fracasso e sucesso, etc., como variáveis das dificuldades de aprendizagem. Arantes (2002, p. 160), fazendo uma análise da afetividade no cenário educacional a partir de reflexões conceituais e revisão da literatura a respeito, comenta que no trabalho educativo cotidiano não existe uma aprendizagem meramente cognitiva ou racional, pois os alunos e as alunas não deixam os aspectos afetivos que compõem sua personalidade do lado de fora da sala de aula, quando estão interagindo com os objetos do conhecimento, ou não deixam latentes seus sentimentos, afetos e relações interpessoais enquanto pensam (grifo do autor). Nossa análise geral foi de que a maneira como a educação familiar se processava para esta criança, baseada numa relação pais-filho, com pai ausente e distante e mãe superprotetora, desenvolveu na criança posturas afetivas defensivas e atitudes evasivas frente aos desafios escolares que normalmente se apresentam no cotidiano do processo educacional, mostrando baixa motivação para aprender e produzir. 106 Maria Aparecida Carmem Bonfim Silva e Ruben de Oliveira Nascimento A capacidade cognitiva, nesse caso, pareceu-nos ficar obstruída ou potencialmente inibida frente aos aspectos afetivos mais prementes, considerando os apelos e desafios que o processo educacional normalmente fazia à criança, durante a promoção do processo ensinoaprendizagem. Tápia e Fita (1999, p. 9) comentam que a motivação escolar é um assunto complexo, processual e contextual. Esses autores assinalam que [...] o ser humano, o aluno, é alguém que se move por diversos motivos e emprega uma energia diferencial nas tarefas que realiza. Esse caráter pluridimensional evita a tentação de interpretar a conduta humana como devida a um só fator e convida à reflexão pessoal e ao exame das razões por que as pessoas fazem o que fazem (grifos do autor). Nossa compreensão desse caso é que, antes de classificar o aluno como cognitivamente ou intelectualmente incapaz de efetuar tarefas escolares, apenas baseando-se em avaliações normativas, importante se faz considerar contextos, variáveis e fatores interatuantes diversos de outros ambientes interferindo no processo; incluindo-se, também, a consideração de que as dimensões cognitivas e afetivas têm uma relação dinâmica entre si, e que, conforme o caso, podem afetar a motivação, com repercussão no desempenho escolar em geral. Concluímos que as bases das dificuldades da criança do estudo em questão em realizar devidamente ou cumprir, como esperado, as tarefas escolares solicitadas, tinham raízes na dinâmica psicológica da relação pais-filho, estabelecida no contexto familiar, e não, precisamente, em sua capacidade cognitiva ou em sua vida escolar. No caso da dimensão cognitiva, esta nos pareceu como que somente “bloqueada” pelas questões afetivas, mostrando-nos como são fatores interatuantes e de igual importância. Apoiados nos dados, nossa compreensão foi que a baixa motivação para aprender apresentada pela criança era resultado de dificuldades emocionais para Relação pais e filhos e o processo de aprendizagem escolar: um estudo de caso 107 lidar, sozinha, com os desafios e com os obstáculos que a interação educativa e as tarefas escolares acabavam impondo à essa criança; e que essas dificuldades emocionais faziam com que ela evitasse um envolvimento maior com as atividades escolares, temendo o fracasso e a frustração, fazendo com que não investisse energia suficiente, nem cognitiva e nem afetiva, nas atividades propostas. Considerações finais O estudo desse caso sugeriu que o excesso de zelo e a permissividade expressada na conduta familiar podem ter impedido que a criança em questão desenvolvesse condições emocionais necessárias para lidar com as dificuldades escolares; e que a superproteção por parte da mãe interferiu na formação da personalidade da criança, causando sentimentos de insegurança, baixa auto-estima e atitudes de acomodação e falta de persistência no esforço, com repercussões escolares em termos de baixa motivação para a aprendizagem, mesmo a criança tendo boas condições intelectuais para as tarefas escolares. Apesar de ter sido um estudo de caso, cujos resultados são de difícil generalização (GIL, 1999), entendemos que ele indica a existência de um fenômeno que precisa ser mais investigado e mais discutido. Além desse caso, outros semelhantes a este aconteceram na escola, com os sujeitos também vivendo contextos familiares parecidos, mostrando a relevância do tema. Entendemos que essa repetição de casos parecidos mostra a necessidade das instituições escolares considerarem mais de perto alguns aspectos da interseção entre o contexto familiar e o contexto educacional, conforme o caso, a fim de que sejam desenvolvidas intervenções cuidadosamente planejadas, tanto em nível psicológico quanto pedagógico, para fornecer o apoio institucional mais adequado a alunos com esse perfil. As escolas estão habituadas a se concentrarem mais no desempenho cognitivo ou racional de seus alunos. No entanto, é preciso também considerar que cognição e afeto são fatores interatuantes, e 108 Maria Aparecida Carmem Bonfim Silva e Ruben de Oliveira Nascimento que devem ser valorizados igualmente, investigando-se melhor suas fontes de formação e interrelação. O estudo desse caso nos sugeriu que alguns aspectos motivacionais e afetivos da criança, e seu envolvimento com o processo de aprendizagem escolar, não são formados ou desenvolvidos exclusivamente no contexto escolar, mas são também provenientes da dinâmica familiar; e que os contextos familiares e escolares estão interligados no desenvolvimento da personalidade da criança (BRONFENBRENNER, 1996). Como aponta Gallart (1999), a família e a escola, apesar de terem identidades diferentes, possuem funções semelhantes, exigindo disposições cognitivas e afetivas para o cumprimento das tarefas, obrigações, responsabilidades, interações, etc; e ambas devem educar a criança de modo que ela aprenda a lidar com dificuldades e frustrações, pelo menos de maneira mais ou menos bem sucedida. De um modo geral, as crianças vivem em diferentes contextos sociais, contudo, passam boa parte do seu dia transitando entre o contexto familiar e escolar. Por isso, necessário se faz examinar e investigar as possíveis interseções e conexões que possam apresentar esses dois contextos, como por exemplo, a relação entre pais e filhos e suas repercussões no processo de aprendizagem escolar da criança. PARENT-CHILD RELATIONS AND THE SCHOOL LEARNING PROCESS: A CASE STUDY Abstract: The present article is a broadened and revised summary of a case study of an elementary school student who showed low learning motivation and little involvement with proposed school activities. It was noted in the case study that there is a relation between low learning motivation and the family context, mainly concerning parent-child relationships. The work reflects on parent-child relationships and the possible repercussions that may evolve during the school learning process. Keywords: Parent-child relationships. Learning and motivation. Cognition and affection. Family and school. Relação pais e filhos e o processo de aprendizagem escolar: um estudo de caso 109 Referências bibliográficas ADRADOS, I. Orientação infantil. Petrópolis: Vozes, 1988. ARANTES, V. A. A afetividade no cenário da educação. In: OLIVEIRA, M. K. de; SOUZA, D. T. R.; REGO, T. C. Psicologia, educação e as temáticas da vida contemporânea. São Paulo: Moderna, 2002. p. 159-174. BRONFENBRENNER, U. A ecologia do desenvolvimento humano: experimentos naturais e planejados. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996. COLL, C.; PALÁCIOS, J.; MARCHESI, Á. (Org). Desenvolvimento psicológico e educação: psicologia da educação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996. v. 1 e 2. COLL, C. (Org). Psicologia da educação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999. COSTA, M. C. C. Sociologia: introdução à ciência da sociedade. 2 ed. São Paulo: Moderna, 1998. FERREIRA, R. M. Sociologia da educação. São Paulo: Moderna, 1993. GALLART, I. S. As práticas educativas como contextos de desenvolvimento. In: COLL, C. (Org). 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Revela-se um cotidiano social no qual a adolescência é celebrada em nossa cultura e interpelada por uma sociedade fortemente voltada para o consumo, interferindo na concepção de valores sociais e culturais, produzidos e reproduzidos constantemente. Palavras-chave: Estética. Cultura e adolescência Neste texto1 procuramos trabalhar com os conceitos de estética existentes tanto no campo das Artes Plásticas que circulam dentro das Doutorando em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Docente da Universidade Luterana do Brasil (Ulbra), de Canoas, RS. E-mail: [email protected] 1 Texto produzido a partir da Dissertação de Mestrado: Estação adolescência: identidades na estética do consumo, defendida em agosto de 2002, no Programa de Pós Graduação da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, 2002. * APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano III n. 4 p. 113-140 2005 114 Celso Vitelli escolas, quanto com os conceitos que circulam para além das mesmas: em casa, nos grupos dos adolescentes, na mídia; enfim, discursos que permeiam o nosso cotidiano e vêm construindo diferentes conceitos de estética no senso comum e diferentes visões que alguns autores têm sobre este conceito. Para trabalhar com esses conceitos e relacioná-los com o ensino nas escolas, realizamos entrevistas com adolescentes de 14 a 18 anos, por meio das quais, procuramos “compreender mais sobre o tempo presente, sobre a cultura que vivemos, sobre os modos de vida que produzimos e que nos produzem” (FISCHER, 2001, p. 11), principalmente no campo da educação em arte e sobre o universo adolescente. Ao costurar algumas das respostas obtidas através dos questionários que realizamos e das análises produzidas sobre tudo o que foi dito por estes adolescentes também nas entrevistas gravadas,2 dialogando com a literatura referida sobre o assunto, tivemos como eixo principal desta discussão o pensamento baudrillardiano, além de outros autores. Em um de seus textos publicados no jornal francês Libération,3 Baudrillard (1999), em suas reflexões, parte desde o destino do nascimento artificial da criança, até o entendimento de uma adolescência sem fim que, como nos diz o autor, referindo-se à geração contemporânea, escapa ao olhar adulto, não se preocupa mais em tornar-se adulta – adolescência sem fim e sem finalidade que se autonomiza sem consideração pelo Outro, por si mesma e volta-se por vezes violentamente contra o Outro, contra o adulto do qual não se sente mais nem descendente nem solidária (B AUDRILLARD, 1999, p. 67). Refiro-me aos seis adolescentes de escolas particulares de Porto Alegre - RS que foram entrevistados, lembrando que todos pertencem às classes A e B. Previamente, estes adolescentes já haviam sido entrevistados por mim através de um questionário escrito com 27 perguntas. Este questionário escrito serviu de roteiro para algumas das questões formuladas durante as entrevistas gravadas. 3 BAUDRILLARD, Jean. O continente negro da infância. In: ______. Tela total: mitoironias da era do virtual e da imagem. Porto Alegre: Sulina, 1999. 2 Adolescência e arte: estética e práticas culturais 115 Seria importante salientar, no texto de Baudrillard (1999, p. 67), a caracterização da criança, desde a artificialidade de seu nascimento até a “criança-clone”, cuja realidade, conforme o autor nos alerta, não pertence a um amanhã, a um futuro remoto, mas “já está presente no imaginário científico coletivo”. Seguindo seu raciocínio, o autor nos explica a afinidade da geração jovem com as novas tecnologias do virtual, referindo-se ao privilégio obtido através da instantaneidade. Ainda sobre a criança, acrescenta que “no que diz respeito ao tempo real, está definitivamente adiantada em relação ao adulto, que só pode parecer-lhe retardado, assim como, no terreno dos valores morais, só pode parecer-lhe um fóssil”. É partindo deste cenário que, apresentado talvez de uma forma um pouco apocalíptica por Baudrillard, acompanhamos a atuação da criança/adolescente no espaço escolar e, por que não dizer também, no espaço social (não perdendo o senso observador sobre as falas/ ações das crianças e adolescentes diariamente). Arriscamos dizer que a palavra “fóssil”, utilizada pelo autor para referir-se ao adulto, não seria um exagero diante de certas práticas cotidianas, tanto sociais quanto escolares. Desta forma, acreditamos nas cenas baudrillardianas diárias, como crianças de 8 ou 9 anos ensinando suas professoras a usarem certos programas de computador ou discutindo cenas sobre filmes ou novelas, opinando sobre problemas ou situações que há bem pouco tempo não faziam parte do seu universo infantil. Além disso, também somos questionados por estas crianças/adolescentes sobre os mais diversos assuntos. Desse modo, foi na velocidade e na linguagem da comunicação contemporânea utilizada pela criança/adolescente, que responderam, alguns dos adolescentes entrevistados, sobre os mais diversos assuntos, sejam eles do seu [nosso] dia-a-dia ou mais distantes. Cena 1: as entrevistas Das entrevistas gravadas, destacamos a de Roberto, a quem perguntei sobre as suas aulas de artes e sobre como ele se sentia em 116 Celso Vitelli relação a esta disciplina. Sua resposta foi: “Eu achava que era legal [...]. Mas eu acho, que tem coisa mais importante do que as artes”. Dentro desta mesma resposta ele foi mais adiante, apresentando todo um quadro sobre a sua professora de artes (2001),4 demonstrando, desta forma, alguma coisa que teria legitimado a sua falta de interesse pela arte. Certamente, não posso fixar em Roberto uma indignação pela falta de interesse em relação à arte ou à prática do ateliê na escola. Este discurso que desenha um certo “desprezo” para com o ensino de arte já está posto, não é um discurso de Roberto. E este discurso está tão “bem” colocado e sustentado no campo escolar, que o próprio Roberto se utiliza dele para explicar o porquê da existência de outras disciplinas mais importantes do que a das artes. Ele diz: “[...] eu acho que sempre tem umas disciplinas mais importantes e outras não. Tanto é que, pela carga horária, né, tem mais períodos de tal coisa e outras não”. Quando perguntado sobre quais seriam as disciplinas mais importantes, Roberto afirmou: “Eu acho que [...] Matemática, Português, Física, Química e Biologia, não fugindo muito destas”. Diríamos (baseados em algumas das respostas5 obtidas dos adolescentes) que o estudo sobre o assunto arte, para alguns adolescentes, poderia ser classificado como “fóssil”, usando uma palavra empregada anteriormente por Baudrillard. Marc Jimenez (1999, p. 9) nos responderia que “os professores das disciplinas artísticas sabem muito bem que se beneficiam de um status particular, incapaz de rivalizar com o de seus colegas da Matemática, das Letras ou da Lingüística”. Pareceme que, na história do ensino, o “Partido das Artes” tem tido menos tempo de exposição nas diferentes mídias [para dizer ao que veio] do que os seus outros “concorrentes”. A consciência deste status particular pode ser lida em um depoimento que roubamos neste momento (entre O quadro apresentado por Roberto, é de que sua professora era desorganizada na preparação das aulas, não tinha paciência. Enfim, seus argumentos demonstraram que a relação dele com a professora, poderia ter afetado a relação aluno/professor. 5 Surgiram mais de sessenta códigos de respostas dos questionários dos adolescentes sobre como eles viam a arte nos dias de hoje, o maior número de respostas semelhantes, encontram-se na frase: “Meio apagada. Desvalorizada infelizmente. A arte é esquecida e não tem seu valor real. As pessoas não se interessam por ela”. 4 Adolescência e arte: estética e práticas culturais 117 tantos outros), da professora (Bárbara), entrevistada por Luciana Loponte (1998) em sua dissertação de mestrado. Ela nos diz o seguinte: [...] Às vezes tu te deparas com tantos problemas, em relação a tua disciplina de artes, que dá vontade assim: “Que bom seria...”. Eu já me peguei dizendo isso: “Que bom seria se eu desse Matemática, pelo menos ninguém iria me contestar no que eu estou dizendo, no que eu estou falando” (LOPONTE, 1998, p. 118). Outro exemplo que ilustra bem esta posição é a resposta de Fátima (outra adolescente entrevistada), quando lhe foi perguntado sobre a existência de uma hierarquia entre as disciplinas do colégio, se ela achava que existia ou não. A menina respondeu: “Eu não coloco em primeiro, segundo, a importância. O colégio coloca, naturalmente. Os meus professores colocam, aquela coisa toda”. Nos perguntamos, dessa forma, sobre este “tratamento” que vem sendo dado à disciplina de arte. Qual o lugar/o tempo que ocupa a arte na educação? Estará ainda sendo vista como “um campo à parte?” Não se trata de querer privilegiar a posição do ensino de arte na escola ou, muito menos, de inverter o status (segundo o pensamento de Jimenez exposto no parágrafo anterior) que foi dado a esta disciplina. Talvez, em relação à primeira pergunta, poderíamos encontrar nas palavras de Baudrillard (1997, p. 84), uma das possíveis respostas, ou pelo menos parte delas: “Num mundo voltado à indiferença, a arte só pode acrescentar a essa indiferença”. Também nos interessou levantar quais seriam os valores estéticos eleitos pelo público adolescente hoje em dia diante da diversidade de imagens e conceitos e, quais seriam os conceitos que envolvem beleza e onde eles a vêem. Estas questões podem vir a alimentar a prática cotidiana do trabalho de um profissional que atua na educação em arte. Acreditamos que, através deste tipo de pesquisa, poderemos conhecer mais (para melhor interferir) sobre o que pensa o adolescente acerca destes assuntos. 118 Celso Vitelli Na nossa condição contemporânea, talvez a formulação destas questões (mesmo no campo cultural ou especificamente da educação) possa parecer estar um pouco fora de uma agenda oficial, a qual geralmente prioriza outros pontos em sua pauta, que, provavelmente, não seriam estes que marcam a relação entre valores estéticos e os adolescentes hoje, por exemplo. Marc Jimenez (1999), no prefácio do seu livro O que é estética?, nos questiona sobre qual seria a contribuição da arte no campo do conhecimento, associando-a à estética como herdeira da mesma ambigüidade nela verificada: [...]a ambigüidade da arte, atividade ao mesmo tempo racional, que supõe materiais, instrumentos, um projeto, e irracional, na medida em que permanece afastada das tarefas cotidianas que ocupam a maior parte de nossa experiência. Da ciência esperamse descobertas que influam diretamente sobre nosso ambiente; da técnica prevêem-se progressos que facilitem nossa ação sobre o mundo; da ética esperam-se regras de conduta que guiem nossos pensamentos e nosso comportamento; porém, poderemos extrair da arte um ensinamento tão útil, sério, rentável quanto aquele dispensado por essas outras disciplinas sensatas? (JIMENEZ,1999, p. 11). A questão posta pelo autor nos leva a pensar e questionar a existência dessa ambigüidade, uma vez que estaria, já na realização dos projetos dos artistas, no exercício da criação, o papel de seriedade da arte. Em contrapartida, concordamos que a rentabilidade e a utilidade não seriam incumbências pertinentes ao mundo artístico. Logicamente a extensão deste assunto exigiria um aprofundamento maior, que neste texto não poderia ser desenvolvido com o devido cuidado. Por outro lado, podemos considerar pertinente a relação que o autor estabelece entre o belo e o sublime; na sua visão, “o belo é harmonia, o sublime pode ser disforme, informe, caótico. Prazer para um, dor e prazer para outro” (JIMENEZ, 1999, p. 144). 6 Ver VITELLI, Celso. Estação adolescência: identidades na estética do consumo. Dissertação de Mestrado defendida no programa de Pós-Graduação em Educação, da Faculdade de Educação da UFRGS, Porto Alegre, 2002. Adolescência e arte: estética e práticas culturais 119 Perguntamos diante desta afirmativa, se estaria aí a explicação para a beleza vista por um certo número de adolescentes6 nas cenas da destruição das torres gêmeas do World Trade Center ocorridas no dia 11 de setembro de 2001. Perguntados sobre aquilo que considerariam belo (ou teriam visto de belo nas últimas semanas), recortamos aqui as frases de dois meninos que responderam o questionário: “A queda do W.T.C. em Nova Iorque, pois isso me fez perceber que não sou só eu que não gosto das injustiças socais”. “O Afeganistão bombardeando os EUA, porque eu não gosto deles”.7 Por outro lado, a solidariedade com os mortos e feridos do acontecimento também foi vista como algo belo. Talvez a demonstração de alguma falta de harmonia em geral, nas áreas da arquitetura, da música, das Artes Plásticas, da cultura em geral, esteja colaborando para a construção de uma apreciação estética diferente da que tínhamos até então. São certas suposições que levantamos, para entender um pouco mais sobre aquilo que talvez não tenha nenhuma explicação definitiva dada pela história, mas que nos surpreende e muitas vezes nos estremece (como no citado caso das torres do W.T.C.), diante de tantas visões diferentes daquilo que possa ser belo para uns e para outros não. Como sustenta a frase escrita acima por Jimenez – o “disforme”, o “caótico”, assim apresentados por esta destruição, podem ser também, sim, sinônimo de “prazer” para algumas pessoas. É difícil escrever sobre a existência de “uma estética contemporânea”, ou “uma estética específica do adolescente de classe média/alta”, até mesmo porque o próprio conceito da palavra estética aponta para diferentes discursos acerca da mesma. Em seu livro, Jimenez cita as idéias de Hegel8 sobre estética, chamando a atenção para o fato que já em 1805, o filósofo alemão questionava a existência de uma disciplina sobre estética na universidade e, em substituição a 7 As duas frases foram escritas por dois adolescentes de 14 anos, e fazem parte da Dissertação de Mestrado Estação adolescência: identidades na estética do consumo, de Celso Vitelli, 2002. 8 Ver: JIMENEZ, Marc. O que é estética. São Leopoldo: Unisinos, 1999. p. 166. 120 Celso Vitelli este termo, pareceu-lhe mais adequado o uso da filosofia da arte para tratar deste assunto. Quando vemos certos grupos de jovens adolescentes de diferentes escolas de Porto Alegre (aí incluímos as escolas públicas e privadas) visitando exposições de arte contemporânea em galerias, museus, bienais, levantamos a possibilidade9 de uma identificação maior por parte deles com a vertente da arte na qual muitos artistas abordam o tema do cotidiano em seus trabalhos. Desta forma, em certos momentos, presenciamos que a distância ora existente entre a obra e o público parece diminuir diante da exposição de propostas interativas, bem como através dos ícones do cotidiano que ora aparecem super valorizados nestas obras (personagens de história em quadrinhos, atrizes/atores – nacionais ou internacionais; enfim, toda uma diversidade de imagens que desfilam em torno deste tema). Para alguns adolescentes, a relação com a arte passou a ser vivida como um divertimento, uma recreação. Esta identificação ligada ao divertimento se processa até pelos próprios meios e temas com os quais os artistas vêm utilizando a mediatização. Repetimos a pergunta de Jimenez: Se as práticas artísticas se baseiam na quantidade de banalidades cotidianizadas – dou uma volta ao museu antes de ir para o escritório – a relação entre a arte e a realidade não correrá o risco, por conseqüência, de ser vivida como um divertimento, uma distração pura e simples, uma “recreação dominical” como já o lamentava Ionesco? (JIMENEZ, 1999, p. 16). Talvez a relação do olhar que o adolescente esteja dedicando à arte seja muito parecida com a relação que ele estabelece com a televisão, onde o seu olhar é guiado pelo recurso do zapping, passando por filmes, desenhos, noticiários, clips musicais – tudo isto acontecendo 9 Conversando com alguns adolescentes de classe média/alta é que retive estes pensamentos sobre a sua relação com o campo das Artes Plásticas. Importante marcar que me refiro sempre à mesma classe de adolescentes, com a qual trabalhei com entrevistas e questionários. Adolescência e arte: estética e práticas culturais 121 numa fração de segundos. Os videoclipes, tão assistidos pela gerações desde os anos 80, trazem a linguagem de um ritmo frenético de combinações de imagens. No videoclipe, “nenhum plano dura mais que cinco segundos. Muitas vezes não há enredo; tudo se move pela estimulação de efeitos visuais” (CARMO, 2001, p. 156). O autor traz o exemplo do videoclipe, relacionando a linguagem às mensagens fragmentadas, associando, desta forma, uma visão de realidade que valoriza o “transitório e o fugidio”. Complementando este pensamento, Sarlo (2000, p. 53), nos chama a atenção para as imagens que, através das suas sucessões, estão ali “só por um momento, ocupando o tempo, enquanto não for sucedida por outra imagem”. Estamos vivendo em um tempo no qual predomina a experiência imediata, a rapidez. “Aciona o controle remoto. Fecha os olhos e tenta lembrar da primeira imagem: eram umas pessoas dançando, mulheres brancas e homens negros?” (CARMO, 2000, p. 53). Os nossos contatos parecem que “exigem” que esta relação aconteça desta forma. E esta rapidez vem se materializando também na produção plástica das crianças/adolescentes. Como educadores, temos acompanhado alunos nas suas aulas práticas de ateliê, nas quais o envolvimento dedicado por eles às propostas de trabalho em arte tem sido cada vez mais veloz. As propostas de trabalho em arte necessitam de um tempo maior de envolvimento, e exigem também continuidade, para que o aluno possa desenvolver um processo de trabalho seu. As experiências neste campo têm apontado visões de uma continuidade construída através de constantes descontinuidades, ou seja, a grosso modo, eles estão fazendo um trabalho velozmente, envolvendo-se o mínimo possível, perguntando qual será a próxima proposta, quanto tempo vão ter para finalizá-la e, mesmo sabendo que têm um tempo próprio para cada uma das diferentes propostas apresentadas (um tempo de semanas ou meses, dependendo do trabalho), eles começam a trabalhar rapidamente perguntando ainda “quantos pontos vai valer esta atividade?”. É o cálculo sobre o ato inventivo? É a economia sobre o 122 Celso Vitelli tempo da reflexão dedicada à arte? Enfim, continuamos trabalhando descontinuamente, ou seja, faltaria equacionar melhor a relação diversificada que os adolescentes têm com os estímulos sonoros e visuais (sons e imagens oriundos dos vídeos, televisão, Internet, etc.). Existe uma gramática nova para a atenção/concentração, que deve ser pesquisada. Para Caiafa (2000, p. 23), “o imediatismo ditado pelo mercado e a exigência do aspecto ‘aplicado’ para o saber vão contra o processo de criação na arte e no pensamento”. Parece-nos que estes adolescentes (e não só eles, as crianças também vêm encarando o processo de trabalho em arte desta forma) já entram em aula com o olhar contemporâneo de quem não tem muito tempo “a perder”. Eles muitas vezes parecem estar nos dizendo com seus comportamentos e ações que “já fizeram tudo” (esboçado em um gesto que se resume apenas a um risco no meio da folha de desenho). “É arte contemporânea sor!”, afirmam alguns em um tom irônico. É em atitudes como estas que vemos o quanto eles não conseguem mais tolerar aquilo que dura muito tempo, que tenha que ser planejado, rascunhado; que exija um pensamento mais elaborado diante do tema com o qual estejam trabalhando. Mais uma vez, questionamos como trabalhar com um tempo em que a relação produção/apreciação da arte “tem que ser rápida”. Ficamos diante de um paradoxo, uma vez que a condição principal para que a contemplação aconteça, tanto na apreciação das obras de arte quanto na produção das mesmas, é o tempo. E trabalhar com a velocidade acelerada em relação à arte, tanto na sua produção como na sua apreciação, vem dissolvendo muitas propostas de ensino em arte, fazendo com que elas percam sua consistência como experiência, conhecimento; deixando a desejar tanto a produção destes alunos, quanto a sua relação de contemplação com as artes em geral (música, pintura, poesia, cinema). Talvez uma das supostas explicações para estes acontecimentos esteja nas palavras de Gianni Vattimo (1996, p. 51), quando ele menciona que “o que acontece na época da reprodutibilidade técnica é que a experiência estética se aproxima cada Adolescência e arte: estética e práticas culturais 123 vez mais daquilo que Benjamin chamou de ‘percepção distraída’”. Entendemos que esta “percepção distraída” regula, nos dias de hoje, o pensamento com o qual a maioria dos jovens vê as obras de arte contemporânea – no sentido de que estas, geralmente não têm em suas mensagens conteúdos tão explícitos. Talvez esteja aí um dos pontos que desencadeiam uma percepção sem grandes envolvimentos [de tempo] por parte dos adolescentes. Esta relação de rapidez destinada à produção/contemplação do adolescente com a arte/produção não se construiu somente por parte deles, obviamente. O papel das escolas, que vêm reduzindo o tempo destinado aos períodos de arte, colaborou, e muito, para que o entendimento que o adolescente tem sobre esta disciplina seja a experiência de um contato rápido, fugidio. A discussão desta cena escolar seria longa, mas nos permite pensar que algo sempre escapa ao presente, parecendo muitas vezes que realizamos um trabalho em educação onde as frestas aparecem mais do que a construção como um todo. Hoje fala-se muito nas “competências” que as crianças e adolescentes devam ter dentro de cada área na educação. Sendo assim, quais seriam as competências necessárias que formariam este sujeito no campo de conhecimento da arte, e para quê? Perguntamos então se, desta forma, conseguiremos algum dia pôr em prática a frase proferida por Albert Camus (1971, p. 226-2277), que diz que “todo mundo tenta fazer de sua vida uma obra de arte”.10 Em nome de uma fastculture, um contêiner se abre para que se deposite nele relacionamentos rápidos, leituras rápidas, contatos rápidos... Enfim, fala-se numa geração super informada, mas não se questiona o que tem sido feito com estas informações. 10 Ver, a propósito, o debate sobre fazer da própria existência uma obra de arte, em FOUCAULT, Michel. A cultura de si. In: ______. História da sexualidade, 3: o cuidado de si. Rio de Janeiro: Graal, 1985. p. 43-73 e DELEUZE, Gilles. As dobras ou o lado de dentro do pensamento (subjetivação). In: ______. Foucault. Rio de Janeiro: Graal, 1991. p. 101-130. 124 Celso Vitelli Existem os museus, as visitas aos mesmos acontecem, as imagens de arte são vistas através da Internet, de vídeos, quadros, mas são contatos de apreciação diferentes de 20 ou 30 anos atrás. A relação existente entre o público e as obras de arte na atualidade, deixa um pouco cambaleante a antiga experiência de estética tradicional (na qual o público jamais poderia encostar um dedo sequer numa obra de arte), mesmo que esta relação mais “tradicional” de contato ainda exista. Esta comparação entre as diferentes apreciações do público não tem um caráter saudosista ou sugere que o correto seria a existência de somente uma delas. Ambas são importantes, mesmo porque as telas a óleo ainda existem, continuam sendo feitas e não devem ser tocadas por nossas mãos. O que tentamos chamar a atenção aqui diz respeito ao tempo dedicado à apreciação, que pode alterar toda a sua concepção da obra de arte. Um outro ponto a ser considerado neste contato do adolescente com a arte tem a ver com a escassez da produção de material escolar (ou em outros meios também: televisão, revistas) sobre este assunto, dirigido especificamente11 ao público adolescente. Este material é, na verdade, quase inexistente. O que temos no mercado seria voltado muito mais para as crianças (e ainda assim não em grande quantidade). É lógico que sobre cultura, no seu conceito mais amplo, circulam algumas reportagens (muito raras) nos encartes de jornais e revistas destinadas ao público de adolescentes, que tentam realizar um papel pedagógico em relação ao conhecimento sobre o campo da arte. Acreditamos ser importante salientar que, tanto a informação sobre o campo da arte quanto à informação sobre a cultura em geral (música, teatro, literatura) vem sendo obtida pelos adolescentes principalmente através da mídia (impressa, televisiva, etc.). Um levantamento mais Quando me refiro à palavra “especificamente”, estou querendo dizer que não existe um material com uma linguagem que seja atrativa para o adolescente. São poucos os vídeos, por exemplo, que abordam o conceito de arte no seu sentido mais amplo – tratando [exemplificando novamente] de desenhos de tatuagens, grafite; enfim, onde exista o cruzamento das diferentes artes. Mesmo os vídeos que existem sobre os movimentos artísticos, na sua maioria, têm uma apresentação [tanto de narração, quanto de imagens] pouco atrativa para o público adolescente. 11 Adolescência e arte: estética e práticas culturais 125 amplo sobre a proveniência das informações obtidas pelos adolescentes fornecidas pela mídia, pode ser medida pelo conhecimento que eles têm sobre assuntos como sexo, drogas, doenças... Enfim, a lista ficaria muito extensa para registrar aqui. Cena 2: adolescentes de classe média/alta – suas estéticas e suas críticas sobre a mídia e o cotidiano escolar No texto de Fischer (1996), podemos visualizar com muita clareza o papel que a mídia desempenha no campo das informações, partindo de um leque no qual o adolescente apreende conceitos das mais diversas fontes. Como nos escreve a autora, imagine-se então no discurso da mídia, que não se fundamenta em apenas uma disciplina, mas em várias [ligadas ao jornalismo, à publicidade, às artes plásticas, ao cinema, às tecnologias de informação, à teoria da comunicação e assim por diante] (FISCHER, 1996, p. 114). E mais, “a mídia, suponho, constrói, reforça e multiplica enunciados seus, em sintonia ou não com outras instâncias de poder” (FISCHER, 1996, p. 123). Nos questionários escritos realizados durante a pesquisa de Mestrado com os adolescentes de classe média/alta, verificamos o quanto são diversificadas as respostas sobre aquilo que seria considerado bonito para eles. A relatividade atribuída ao conceito de beleza à visão de mundo que temos e devido ao período histórico no qual estamos vivendo, tornou-se difícil para estes jovens, principalmente no que diz respeito à construção sobre tudo aquilo que possa ser belo para eles. Muitos deles não conseguiram responder a esta questão. Exemplificando, talvez para alguns meninos não teria sido “politicamente correto” [mesmo que o quisessem] responder que “a beleza” questionada estaria somente no corpo das mulheres e viceversa, para as meninas. Talvez, por isso, tenha sido a “solidariedade” um dos sentimentos que mais aparece nas respostas de alguns deles sobre aquilo que considerariam belo e, principalmente, a solidariedade 126 Celso Vitelli mostrada na mídia, nas campanhas do agasalho, de doação de brinquedos. Atores e atrizes famosos dando depoimentos e participando das mais diversas campanhas. Nos rostos destes atores e atrizes vemos a solidariedade estampada na afetuosidade das suas expressões, nas suas falas, na seriedade e compromisso que passam através das suas imagens. Literalmente, eles, na maioria das vezes, “vestem as camisetas” das campanhas das quais participam. Passam a representar o papel de quem tem compromisso com a sociedade em geral, e assim chamam as pessoas à participação. Além dos conhecidos atores e atrizes, a mídia traz à tona o herói anônimo, que estará presente nas imagens mais plurais, como a da freira que toma conta das crianças pobres, do grupo de adolescentes que vai à vila para fazer oficinas de arte com as crianças, ou na figura do bombeiro socorrendo as vítimas do World Trade Center. Enfim, não faltam espelhos plurais daquilo que pode ser entendido como ações solidárias. Isso está ilustrado na fala de Priscila (uma das adolescentes entrevistadas), quando ela diz: Eu acho legal tu ajudar uma pessoa assim, na campanha do agasalho, tu dar alguma coisa, dá um brinquedo, tu ir visitar. Mas de solidariedade, o que eu achei muito legal do World Trade Center, que se juntaram pra abrigar aquele monte de pessoas assim, isso eu achei legal. Outra situação, que envolve exposição de sentimento e é apontada como bonita, está presente na fala de Carla: Quando eu vejo assim um tipo de relação mãe e filha... elas estão andando juntas e conversando, se divertindo. Eu não sou muito de me abrir assim pra minha mãe né, de conversar aquela coisa amiga, mas de vez em quando bate aquela coisa assim: – Ah mãe, te amo! Eu acho isso legal assim, de expor alguns sentimentos que os outros possam ver também: – Bah, aqueles lá são felizes, não sei o quê.12 12 A referida citação trata-se da tentativa de transcrição de trecho de uma entrevista com a adolescente Carla e, portanto, traz marcas da oralidade. Adolescência e arte: estética e práticas culturais 127 Torna-se visível neste depoimento de Carla a beleza que ela apreende da exposição de certos sentimentos como o amor, a solidariedade, a amizade, entre outros – valorizados publicamente. Como lembra Fischer: de acordo com as conveniências destes nossos tempos, de pessoas que se voltam para si mesmas e, em relação à vida privada, aprendem um comportamento e um modo de dirigir-se que, mesmo pasteurizado e multiplicado na mídia, apareça como uma opção pessoal e como um modo de atingir um tipo especial de felicidade (FISCHER, 1996, p. 202). Depoimentos como o da adolescente Carla podem justificar a multiplicação por exemplo, dos reality shows que, provavelmente, estejam atendendo à necessidade de certas pessoas de assistirem à exposição desses e outros sentimentos humanos no espaço público. “Numa sociedade em que ninguém consegue ser reconhecido pelos outros, cada indivíduo torna-se incapaz de reconhecer sua própria realidade”, disse Debord (1997, p. 140). Se levarmos em conta um exemplo de Baudrillard, o surgimento dos reality shows não é tão recente como se pensa. O autor nos traz como um exemplo vivo o caso da princesa Diana. Segundo Baudrillard, nós não somos mais espectadores passivos, “mas atores principais, segundo uma interatividade assassina da qual a mídia é a interface” (BAUDRILLARD, 2002, p. 141). Para o autor, Diana não seria inocente, e num roteiro coletivo, as massas desempenham um papel imediato, via mídia e paparazzi, em um verdadeiro reality show da sua vida pública e privada, da qual desviam o curso e fazem a transmissão em tempo real, na imprensa, nas ondas e nas telas (BAUDRILLARD, 2002, p. 142). Complementando o que compõe o quadro dos reality shows e o que tem garantido a sua permanência, está o seu espaço, no qual tudo é confessado ao vivo. E são exatamente estas cenas confessadas ao vivo que seduzem determinados públicos. Fischer escreve que 128 Celso Vitelli a compulsão aprendida de tudo falar, de tudo confessar, não significa univocamente que o dito libera, o falado em si produza verdade; é como se estivéssemos de fato num jogo de verdade e falsidade, e a confissão – com todas as técnicas de exposição ilimitada de si mesmo – para permanecer como prática desejável e permanente, também produzisse “desconhecimentos, subterfúgios, esquivas”, como escreveu Foucault em Scientia sexualis, de A vontade de saber (FISCHER, 1996, p. 84). Mais do que a exacerbada exposição de sentimentos de amor, amizade, solidariedade, importa é que estes sejam “verdadeiros”, entre pessoas comuns, como eu ou você. Os reality shows nutrem-se de cenas mais comuns, maximizando-as na tela televisiva, em cenas cruas de beijos, abraços, choros [de alegria e de tristeza], risos – tudo isto dentro de um mundo que “aparenta existir”, fatias de vidas do mundo dos que amam, choram, gritam, brigam “de verdade”. No espaço televisivo, o tempo é caro, e se é extremamente caro, poderíamos questionar o porquê deste uso em coisas tão fúteis. Mas nos lembra Pierre Bourdieu que o tempo é algo extremamente raro na televisão. E “se minutos tão preciosos são empregados para dizer coisas tão fúteis, é que essas coisas tão fúteis são de fato muito importantes na medida em que ocultam coisas preciosas” (BORDIEU, 1997, p. 23). Resta-nos, talvez, investigar quais seriam as preciosidades ocultas que vêm atender a determinados públicos. Como nos disse Carla no seu depoimento anterior, parece que as pessoas precisam dizer, comprovadamente, através destas situações reais, frases como: “Bah,13 aquelas lá são felizes”. Para o indivíduo, nos diz Bauman, o espaço público não é mais que uma tela gigante em que as aflições privadas são projetadas sem cessar, sem deixarem de ser privadas ou adquirirem novas qualidades coletivas no processo da ampliação: o espaço público é onde se faz a confissão dos segredos e intimidades privadas (BAUMAN, 2001, p. 49). 13 Termo regionalista equivalente a uma interjeição. Adolescência e arte: estética e práticas culturais 129 É nesta “tela gigante” de Bauman que Carla também quer ser vista. Sua afetividade, se validada no cotidiano (espaço público), pode ser mais satisfatória, mais verdadeira. Os reality shows proporcionam uma fusão dos papéis de atores e espectadores, como escreve Baudrillard (2002, p. 142): não há mais atores nem espectadores, “estamos todos imersos na mesma realidade, na realidade transmissora, em um mesmo destino impessoal que é somente a realização de um desejo coletivo”. Desta forma, acreditamos que os valores que estão sendo construídos (e em construção) sobre as diferentes culturas, as diferentes concepções de mundo, de gostos, de beleza, certamente não se desvinculam do processo histórico-social da humanidade. Seguindo este pensamento, vemos no cotidiano uma fonte de construção destes conceitos (sociais e culturais) que não deve ser desprezada e, sim, estudada exaustivamente. É o mesmo cotidiano que nos faz retornar ao conceito de estética no seu “largo sentido” (usando um termo de Jimenez 14 ) e, complementando, o autor escreve que a “história da estética revela-se através das rupturas sucessivas que a sensibilidade não cessa de opor à ordem dominante da razão” (JIMENEZ, 1999, p. 25). Um outro questionamento se dá também sobre o espaço de construção que tem sido dado à sensibilidade no seu termo mais amplo. No que a escola, a mídia, a família, têm ajudado na construção de um ser sensível, apreciador dos diferentes tipos de beleza existente no mundo? E mais, quais são hoje as “belezas” endereçadas, mostradas à Ele nos descreve a estética como sendo por conseqüência, não a história das teorias e das doutrinas sobre a arte, sobre o belo ou sobre as obras, mas a história da sensibilidade, do imaginário e dos discursos que procuram valorizar o conhecimento sensível, dito inferior, como contraponto ao privilégio concedido, na civilização ocidental, ao conhecimento racional (JIMENEZ, 1999, p. 25). 15 O termo foi o primeiro usado nesse sentido no século XVIII e estética tem sido uma parte proeminente da filosofia germânica, mais influentemente na obra de Kant. A tendência nesta discussão tem sido tentar identificar aspectos transcendentes e eternos de beleza e discriminá-los em oposição ao que é contingente e, por conseqüência, não é arte (BROOKER, 1999, p. 2-3). 14 130 Celso Vitelli apreciação do público (criança/adolescente/adulto)? Segundo Peter Brooker, o termo estética tem tanto um uso restrito quanto amplo. A estética, assim sendo, abrange o estudo de qualquer ou de todas essas coisas. Tradicionalmente, para Brooker,15 ela se relaciona com a natureza, percepção ou julgamento de beleza. O que o adolescente tem nos mostrado através da sua aparência, gestos, falas, dependendo do grupo ao qual ele pertence, pode ser um desafio aos cânones estéticos construídos e apreciados pelo mundo adulto. Muitas vezes, estes jovens se enfeiam, contradizendo, desta forma, o conceito estético tão arraigado no mundo adulto. Segundo Calligaris (2000, p. 50), assim como o adolescente pode parecer contestar a idolatria do valor financeiro, econômico [por exemplo, recusando-se a ostentar os apetrechos desse valor nas vestimentas e em outros símbolos tradicionais de riqueza], tornando-se feio ele poderia criticar um sistema que valoriza a desejabilidade dos corpos como razão do reconhecimento social. Se existe uma transgressão, uma ruptura de uma estética anteriormente construída por parte do público adulto, então assistimos também a uma apresentação de uma estética do adolescente, seja ela uma tribo clubber, punk, mauricinho, patricinha, etc. Os conceitos que se tem sobre o termo estética construídos na história (em geral), passam obviamente pela construção do pensamento do adolescente em relação ao que apreciar, ao que possa ser belo. Talvez, os conceitos aprendidos sobre estética na escola, na família, nos grupos, se incorporam, se engendram, espelhando o leque de possibilidades de interpretação deste termo. Se o olhar do adolescente deixou de ser atento em relação à alta cultura, certamente também são reflexos do espelho de interesses ideológicos de uma época. Ou seja, ensina-se também na família, nas escolas, nos grupos (tribos), na mídia, que se dá uma “certa” importância para a arte, sim, mas que seja algo rápido, só para não passarmos desapercebidamente sobre este assunto. Adolescência e arte: estética e práticas culturais 131 Afinal de contas, cabe perguntar se em tempos de globalização toda informação é realmente válida, mesmo que venha sem grandes aprofundamentos. Acreditamos que a cultura implica em conhecer um repertório de bens simbólicos e interferir na construção/produção dos mesmos. Ao conversarmos com vários adolescentes, muitos deles relataram que foram visitar o espaço do Santander Cultural,16 por exemplo, falaram muito da sua arquitetura, da beleza do espaço, mas pouco sabiam ou comentaram sobre as obras de arte então expostas naquele espaço. Lembrando Canclini (2000, p. 65), talvez isto possa estar acontecendo porque se os museus procuram seduzir o público através da renovação arquitetônica e dos artifícios cenográficos, é – também – porque as artes contemporâneas já não geram tendências, grandes figuras, nem surpresas estilísticas como na primeira metade do século. Logicamente, toda esta prática amplamente explicitada, na qual se faz a ligação do termo estética muito mais à moda, ao comportamento, aos cuidados com o corpo do jovem adolescente, dificulta para os mesmos a indagação de qual seria a real importância de uma relação mais próxima com artistas/obras de arte/a criação (do próprio adolescente também) em si. Arriscamos dizer que evidenciase a falta de um trabalho mais diversificado no Rio Grande do Sul, o qual atinja as diferentes manifestações artísticas. As ações culturais do Estado não são tão fortes em termos de interpelação do público jovem, em comparação com a mídia. Os “atrativos” da mídia se engendram numa teia que atende, pelo menos, grande parte do público adolescente. Seria até mesmo inócua a comparação entre os recursos de atração provenientes da mídia, que promovem novos ou repetidos conceitos O Santander Cultural é um prédio tombado pelo patrimônio histórico, que localiza-se na Praça da Alfândega em Porto Alegre. Antiga sede dos bancos Nacional do Comércio e Sul Brasileiro, foi construído em estilo neoclássico entre os anos de 1927 e 1932, fazendo parte de um conjunto arquitetônico da região central. São cerca de 5.600 m² de área construída. 16 132 Celso Vitelli de estética, e os pouquíssimos recursos destinados à veiculação da arte em nosso país. Para Joffre Dumazedier (1999, p. 166), a iniciação às artes e à literatura, que os professores efetuam pacientemente, precisa ser prolongada por toda uma rede de atividades cinematográficas, teatrais, plásticas, literárias, que não poderiam ser estimuladas unicamente pelo conteúdo dos jornais e das revistas vendidos nos quiosques. Seria preciso aumentar o número de edições, instituições, agrupamentos que ensinam como escolher e que, eles mesmos, difundem, em todos os meios, obras ao mesmo tempo belas e sedutoras. A rede de atividades apresentadas hoje aos adolescentes pelas revistas, pelos programas de televisão, de rádios, os livros, os shows, estariam desempenhando plenamente o papel de “prolongadores” da iniciação às artes [em geral] e à literatura (como bem expõe Dumazedier acima)? Por não acreditar numa experiência estética que limite a criança, o adolescente ou o adulto somente ao contato direto com as obras de arte que estão em museus ou galerias, pensamos em como tem acontecido a extensão do encontro com a estética (no seu sentido mais amplo) hoje. Sabemos que este encontro pode se dar tanto com a natureza quanto no próprio corpo humano, ou ainda, nos fogos de artifícios, na ornamentação doméstica e corporal, de tatuagens primitivas e pinturas rupestres a cosméticos contemporâneos e decoração de interiores e, com certeza, nas inumeráveis cenas cheias de cor que povoam nossas cidades e embelezam nossa vida cotidiana (SHUSTERMAN, 1998, p. 38). Acreditamos no papel da arte através de seus textos e da exibição de suas obras ao público, como mais uma via necessária no processo de construção do conceito de estética. Para que este processo aconteça, vemos como tão necessários o ver/apreciar/discutir tanto o quadro de um artista plástico, por exemplo, quanto os cenários de um filme como O Show de Truman (1998), certas propagandas de televisão e de outdoors, os videoclipes da MTV; enfim, o povoamento destas imagens Adolescência e arte: estética e práticas culturais 133 tendem (ao serem analisadas) a construir possíveis conceitos no campo da estética. Perguntamos hoje, também, sobre a arte e o diálogo estabelecido com a utilização de novos meios, de uma acessibilidade maior (através da televisão, Internet)? Quais os temas que estão gerando discussões neste campo? Em muitas respostas dos adolescentes nos questionários aplicados, aparece um certo desencantamento de alguns com as artes visuais,17 muitas vezes descritas nas palavras dos adolescentes como “chatas”, “desinteressantes”, “difícil de entender”, “muito abstratas”, como “algo que pertence ao passado”... Por parte de outros, existe um respeito, uma admiração ainda pela palavra “arte”, mas muito ligada a algo que ficou somente no passado. Já com a música a identificação se dá de uma maneira mais próxima, talvez porque o meio de difusão seja mais acessível. A música certamente é vista, além da facilidade do acesso e da sua difusão, como um aspecto do lazer quase cotidiano. Basta ver a quantidade de pessoas que carregam seus walkmans, ligam o rádio do carro ao entrar – em muitas escolas particulares, o recreio é sempre com música [na maioria das vezes, é uma iniciativa do grêmio estudantil]. Com uma presença diversificada dos mais variados grupos musicais ou cantores e cantoras (Adriana Calcanhoto, Bob Marley, Tribo de Jah, Pearl Jam, Iron Maiden, entre tantos outros), a relação do adolescente com a música talvez tenha uma penetração maior no seu universo devido, também, ao caráter fugidio/ efêmero que existe tanto no surgimento e permanência destes grupos/ cantores quanto nas temáticas musicais expostas pelos mesmos. Para Fischer (1996, p. 53), “a música talvez seja a forma de expressão que mais una e identifique os jovens. Sua vida cotidiana é pontuada pelos sons, ritmos e letras que ouvem nas rádios e nos discos”. A autora, Refiro-me às artes visuais porque, dentro deste mesmo instrumento, a relação do jovem com a música é outra, pautada pela aproximação, pelo interesse, pelo envolvimento. Deve ficar claro que as artes visuais às quais refiro-me neste momento, dizem respeito ao conjunto das obras expostas em museus, galerias de arte, bienais ou até mesmo às reproduções de obras de arte que chegam ao adolescente através de livros, de aulas expositivas, etc. 17 134 Celso Vitelli mais adiante no seu texto, levanta a importância do surgimento de novos grupos musicais, cantores; enfim, todo o aparato que envolve o mundo das rádios FM e sua variedade de ofertas musicais. É visível também, principalmente sobre aquilo que seria belo para o adolescente, a presença de frases e poesias que circulam há muito e são universais. Exemplo: “Nunca cruze os braços para as dificuldades da vida, porque o homem mais poderoso morreu de braços abertos!”; ou ainda a frase de Bob Marley, “Amo a liberdade, por isso deixo livre as coisas que amo, se elas voltarem é porque as conquistei, se elas forem é porque nunca as possuí.”18 Exatamente por manterem um caráter universal (e isso pode acontecer com a música também), as frases de Bob Marley ou de pensadores anônimos circulam pelo mundo com a vantagem de permanecerem durante um tempo maior (principalmente os ditos “pensamentos”) do que as músicas, que, navegando no mar midiático, tendem a uma duração de vida mais curta. Lembremos [segundo Jimenez] o princípio do sistema das artes: arquitetura = matéria inerte, opaca; escultura = matéria e forma, aparência da vida orgânica; pintura = aparência visual em duas dimensões; música = interioridade subjetiva, ligada ao tempo, efêmera; poesia = subjetividade exteriorizada nas palavras (JIMENEZ, 1999, p. 176). Mais uma vez,19 a revista Veja (set. 2001, p. 70) realiza outra grande edição especial dedicada ao público jovem, tendo em letras garrafais o título “JOVENS – Um retrato da geração mais bem informada de todos os tempos”. “A cultura jovem (como pauta de um dos assuntos investigados na pesquisa) é uma cultura planetária desde os anos 50”, assim afirma Tatiana Chiari no subtítulo “A globalização espalha a cultura jovem com mais velocidade”. Sobre a estética do corpo, a autora Letícia Castro afirma: “Nunca se cuidou Ver VITELLI, op cit. Muitos pesquisadores apontaram, em suas teses e dissertações, reportagens da mesma revista em diferentes épocas. 18 19 Adolescência e arte: estética e práticas culturais 135 tanto do corpo nessa faixa etária como hoje”. Um dono de academia (na mesma reportagem) diz que “a academia é para os jovens de hoje o que foi a discoteca para a geração dos anos 70”. A Veja, com moldes de estrutura de reportagem muito parecidos com a revista Capricho, apresenta o mesmo leque de informações sobre sexo, chats, diário, drogas, tribos, violência, política, livros, ídolos, globalização, vestibular, mesada, moda; com todos os depoimentos “de direito”: de especialistas das mais diversas áreas. Relendo as entrevistas transcritas, observamos que alguns adolescentes “acham legal desenhar, fazer isto ou aquilo”. Este fazer ao qual eles se referem, e que aparece na maioria das respostas, está sempre ligado ao aprendizado de uma técnica, que, geralmente, é o desenho. Encaramos com um certo desconforto aquelas aulas de arte que têm em seu programa de curso somente o fazer, a prática de ateliê. Que tipo de educação estética está sendo construída neste fazer? Acreditamos que não seja só o fazer que dá ao aluno uma concepção daquilo que possa ser arte, da estética do cotidiano. De como podem ser questionados “certos tipos de arte” e também a própria estética do cotidiano? Apoiado no texto de Vincent Lanier (1999), encontramos nas palavras do autor boas justificativas para a ampliação da experiência estética, através de outras fontes que não sejam somente os museus ou as reproduções de artistas [europeus]. Explicando que a experiência estética do aluno é anterior à sua entrada na escola, ele nos diz que “não a introduzimos para nossos alunos mas incrementamos a partir de algo que já está lá” (LANIER, 1999, p. 46). E mais, que as Artes Plásticas devem oferecer também como experiência estética muito mais que “o óleo em moldura dourada e o mármore sobre pedestal dos museus. Devem incluir artesanato e arte popular, em particular, e a mídia eletrônica como o cinema e televisão”. Outros adolescentes que também responderam às questões sobre as aulas de arte sinalizaram, em suas respostas, seu gosto pelas mesmas, mas geralmente se referindo ao conhecimento que obtiveram na prática 136 Celso Vitelli de ateliê. Foram poucos (na entrevista gravada apenas um menino) os que mencionaram, por exemplo, a importância que teria uma discussão a respeito de um filme, ou de uma campanha publicitária, e quando mencionado, não foi visto como algo diretamente ligado às aulas de arte na escola. Um exemplo disto estaria na fala de Hermes, quando foi questionado se seria interessante que as aulas de arte não ficassem só no desenho, mas que também abordassem temas de filmes ou videoclipes. A resposta foi: seria bem legal se a gente saísse pra ver um estúdio de desenho, por exemplo. Não sei se existe estúdio de desenho. Mas acho que deve existir. Ou então como é que se faz um filme, assistir a uma gravação? Seria bem legal mas, não seria bem Artes Plásticas. A fala de Hermes parece ser o fruto de uma educação em Artes Plásticas que procurou manter uma distinção entre certas práticas (desenho, pintura, escultura, etc.) das imagens de filmes, desenhos animados. Com seus quinze anos, ele já carrega uma visão fechada sobre o universo das artes visuais. Em uma resposta de outra adolescente entrevistada, quando foi questionada sobre qual seria a disciplina que ela mais gostava, citou sete, entre as que mais gostava e as que mais “detestava, tinha pavor, odiava” (usando os termos utilizados pela adolescente). A disciplina que ela elegeu entre as quais mais gostava foi a Matemática. Observamos entre os comentários bons e ruins, que várias disciplinas foram citadas, tanto da área humana quanto da área das ciências exatas, exceto artes. Como nos lembra Shusterman (1998, p. 114), de uma maneira geral “gostamos daquilo que somos treinados e condicionados a gostar e daquilo que as ocasiões e as circunstâncias nos permitem achar bom”. Sobre a afirmação do autor, nos assusta um pouco utilizar palavras como “treinar” e “condicionar” em relação ao gosto, mas, ao mesmo tempo, vemos nelas um alerta sobre a formação que as crianças e adolescentes têm recebido para construírem suas noções sobre arte, gosto e estética. Por exemplo, começa-se a construir o raciocínio de que se alguém tem um Adolescência e arte: estética e práticas culturais 137 bom conhecimento matemático/físico/químico certamente se sentirá “bem treinado” para enfrentar um concurso como o vestibular e, certamente também, esta pessoa dedicará a maior parte do seu tempo escolar/ou de estudo a determinadas disciplinas que ofereçam uma possibilidade maior de sucesso. O condicionamento pode se dar positivamente/negativamente em relação a estas; ou melhor, levar o adolescente a gostar mais de determinadas disciplinas ou, ao contrário, a até mesmo odiá-las. Em relação às visitas aos museus, que poucos adolescentes mencionaram em suas respostas, aqueles que os freqüentaram afirmavam ter gostado de tudo: da visita, das obras em geral; mesmo que muitos não tenham entendido nada sobre o que estava exposto diante deles. Não se espantaram diante de uma ou outra obra que não tem nada a lhes dizer; a indiferença lhes pareceu a melhor resposta. Afastam-se, porque não sabem, nem tem importância saber. Para quê? Cai no vestibular? Em se tratando da cultura visual em geral, talvez fosse importante informar aos nossos alunos, através das palavras de Fernando Hernández, a importância das mais diversas imagens presentes no cotidiano. Ele nos diz que as imagens são mediadoras de valores culturais e contêm metáforas nascidas da necessidade social de construir significados. Reconhecer essas metáforas e seu valor em diferentes culturas, assim como estabelecer as possibilidades de produzir outras, é uma das finalidades da educação para a compreensão visual (HERNÁNDEZ, 2000, p. 133). Finalizando, percebemos que a visão que temos sobre o panorama endereçado ao adolescente no campo da arte/estética em geral, e o que esta geração está construindo com todas estas informações, vêm transformando e reelaborando conceitos fundamentais e que permeiam o cotidiano de nossas salas de aula e, certamente, influenciam a reelaboração de planejamentos, interesses que constroem a disciplina de arte. Para tanto, acreditamos neste estudo sobre a estética contemporânea como algo permanente. Assim, 138 Celso Vitelli conhecendo cada vez mais um pouco sobre o tempo presente, poderemos mudar a premissa de Rosa Fischer, no que se refere ao endereçamento de nossas aulas e de nossos currículos. Como afirma a autora, “talvez não tenhamos ainda conseguido uma sintonia com estes novos alunos” (FISCHER, 2001, p. 32). E foi exatamente a busca de uma sintonia maior entre professores/alunos que motivou a realização desta pesquisa. ADOLESCENCE AND ART: AESTHETICS AND CULTURAL PRACTICES Abstract: The objective of this paper is to bring the adolescent to the center of the scene, taking into consideration the speed of the changes that mark the present time. The study points out the presence of different identities, related to these adolescents, which have been changed and formed according to the emergence of new “gangs”. The paper unveils a social quotidian in which adolescence is celebrated in our culture and influenced by a society strongly directed towards consumption. This interferes with the conception of social and cultural values, which are constantly produced and reproduced. Keywords: Esthetics. Culture and adolescence. Referências bibliográficas BAUDRILLARD, Jean. 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Para tanto, procedemos uma análise da psicologia genética de Jean Piaget em suas relações com práticas pedagógicas centradas no sujeito-aluno. Enquanto tecnologias de produção de cidadãos em tempos de liberalismo e de bem-estar social, estas práticas ditaram os ideais do governo da razão e se encontram na raiz do sujeito piagetiano, tanto em sua dimensão diacrônica como sincrônica. Palavra-chave: Governamentalidade. Subjetivação e epistemologia. A idade da inocência é o tempo do governo dos outros. Nisso, pasmem, concordam Jean Piaget e Michel Foucault. Aqui, todavia, cessam as similitudes; pois, se para o primeiro a autonomia é um corolário da lógica evolutiva, para o segundo não há razão, seja ela pura ou prática, para além da história, que possa justificar ser a Doutor em Educação pela PUC-SP. Docente de Psicologia da Educação da Faculdade de Educação da Ufba. E-mail: [email protected]. 1 APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano III n. 4 p. 141-160 2005 142 Paulo Gurgel heteronomia necessariamente sintoma de desrazão. Tempo houve em que o autogoverno dizia respeito, exclusivamente, aos que governavam. E se há algum sentido em fazer a história do presente, ele é exatamente a compreensão, ainda que tardia, de que o autogoverno é apenas um dos vários micro-exercícios possíveis de poder. Necessitamos aqui, para melhor abordarmos o autogoverno como uma forma específica de exercício do poder, fazer referência ao que, em aula ministrada no Collège de France, em 01 de fevereiro de 1978, Michel Foucault denominou de “governamentalização do estado na modernidade”: Desde o século XVIII, vivemos na era da governamentalidade. Governamentalização do Estado, que é um fenômeno particularmente astucioso, pois se efetivamente os problemas da governamentalidade, as técnicas de governo se tornaram a questão política fundamental e o espaço real da luta política, a governamentalização do estado foi o fenômeno que permitiu o estado sobreviver. Se o estado é hoje o que é, é graças a esta governamentalidade, ao mesmo tempo exterior e interior ao estado. São as táticas de governo que permitem definir a cada instante o que deve e o que não deve competir ao estado, o que é público ou privado, o que é ou não estatal, etc.; portanto o Estado, em sua sobrevivência e em seus limites, deve ser compreendido a partir de práticas de governamentalidade (FOUCAULT, 1979, p. 292). Denominamos de “liberalismo” uma das práticas possíveis de governabilidade dos estados modernos. Seus objetivos principais são maximizar a liberdade individual e minimizar a intervenção do Estado na sociedade dos indivíduos. Dentre suas formas de intervenção, interessa-nos aquelas destinadas à produção do sujeito do si – o self: Se há um valor que parece se situar para além de qualquer crítica, em nosso atual e confuso clima ético, é o do self e dos termos que a ele se agregam – autonomia, identidade, liberdade, escolha, realização. É em termos de nosso autônomo self que entendemos nossas paixões e desejos, definimos nosso estilo de vida, escolhemos nossos parceiros, casamento, e, até mesmo, O governo da razão: escolarização, subjetivação e psicologia genética 143 paternidade/maternidade. É em nome do tipo que realmente somos que consumimos mercadorias, expressamos nossos gostos, desenhamos nossos corpos, marcamos nossas diferenças. [...]. Nesta ética da liberdade, o self autônomo parece desempenhar um papel fundamental nas diferentes formas que homens e mulheres entendem, experienciam e avaliam a si próprios, a suas ações e as suas vidas (ROSE, 1996, p. 1, tradução nossa). Certamente que a produção de nós mesmos, do self de cada um de nós, é de importância capital para o liberalismo, aqui abordado como tecnologia de governo. É sobre as populações, e não somente sobre o território, que se exerce o poder nos estados nacionais da modernidade. Poder que não mais se define por sua negatividade, ou seja, pela pura e simples repressão, mas, e principalmente, pela sua positividade. Positividade construída na intricada rede de relações entre saber e poder que se materializa, também, nas instituições fundadas pelo estado com o objetivo de formatar sua população. A escola, tal como a conhecemos hoje, gerida por experts, é uma destas instituições. É mister que pensemos historicamente o nascimento da escola em suas relações com tecnologias de governo dos estados nacionais que se multiplicaram por todo o ocidente ao longo da idade moderna. A gerência destes territórios e de suas populações só se fez possível com uma crescente multiplicação de domínios discretos de poder exercidos por experts ao nível de uma microfísica de relações de força – governo da economia, segurança interna e externa, bem estar social, disciplina moral, etc. Neste quadro, identificamos o nascimento da escola como um dos meios encontrados pelo estado para o treinamento moral de sua população. Certamente que a esse treinamento moral, à medida que se multiplicaram as tecnologias de produção e o mercado passou a exigir mais do que corpos dóceis como requisito de empregabilidade, foi agregado um conjunto de saberes necessários à profissionalização dos cidadãos. Não nos adiantemos, contudo. Por enquanto, procedamos a uma narrativa sobre o nascimento da escola moderna, tomando como referência um seminal texto produzido por Jones e Williamson (1979) a propósito do nascimento da escolaridade obrigatória na Inglaterra. 144 Paulo Gurgel Jones e Williamson (1979) defendem a tese de que o nascimento da escola pública não pode ser compreendido senão em suas relações com a crescente onda de urbanização das populações para atender à demanda de mão-de-obra gerada pelo desenvolvimento das novas tecnologias de produção de mercadorias. É preciso, pois, pensar a instrução pública como instrumento de produção e gerência das populações destes centros que, já então, enfrentavam problemas de criminalidade, pauperismo e turbulência política. As primeiras máquinas inglesas de instrução coletiva, as escolas lancasterianas, tinham como característica distintiva o uso da instrução mútua – um aluno mais velho e de confiança do mestre, tendo aprendido com ele, ensinava as lições aos mais novos. Esta inovação organizacional e pedagógica tinha como um dos seus principais atrativos o baixo custo de sua estrutura e funcionamento. Um mesmo professor, pago pelo estado, podia ensinar a centenas de crianças ao mesmo tempo com o auxílio de seus monitores e consumia minimamente material didático visto que, predominantemente, a instrução era uma prática verbal. Não obstante a popularidade destas escolas nas primeiras décadas do século XIX na Inglaterra, elas entraram em declínio por volta de 1830 e progressivamente deram lugar a uma nova pedagogia. As razões para tais transformações foram determinadas por uma nova configuração das formações discursivas referentes ao domínio do saber administrativo sobre as relações entre criminalidade, pauperismo, saúde pública e a população dos grandes centros urbanos: O problema não era mais como educar o ignorante, mas como mudar a maneira pela qual a criança já tinha sido educada pela família, isto é, como alterar a forma na qual as crianças tinham sido treinadas. Era necessária uma abordagem mais geral, pensar em termos de todo o curso da educação da criança até a idade adulta [educação em seu verdadeiro sentido] que era definida por uma determinada topografia moral (JONES; WILLIAMSON, 1979, p. 86, tradução nossa). O governo da razão: escolarização, subjetivação e psicologia genética 145 Esta redefinição dos objetivos da educação popular em função do treinamento moral foi diretamente responsável pelo aparecimento de um conjunto de novos problemas concernentes ao espaço interior da escola. Não mais definida como máquina de instrução, mas como máquina de treinamento moral, esta nova concepção dos objetivos da pedagogia determinou, entre outras mudanças, a redefinição do lugar do professor, a partir de uma nova concepção metodológica de ensino que colocava este profissional da educação no centro do processo ensino-aprendizagem. Concluindo esta interessante empresa genealógica da escolarização na Inglaterra, os autores não se limitam a apresentar, a título de considerações finais, uma simples síntese de suas análises. Apresentam a necessidade de se prolongar o estudo por eles realizado, a fim de englobar a universalização e obrigatoriedade do ensino, que passam a constituir parte integrante do cenário das políticas educacionais inglesas ao final do século XIX: Claramente, do ponto de vista das análises que realizamos acima, a radicalidade da transformação do discurso em defesa da educação na última parte do século dezenove apresenta algo de paradoxal. O seu alcance se torna incomensuravelmente maior, transformando a educação pública em uma forma compulsória, mas o modo no qual ele representa os efeitos táticos da educação pública se desvincula do que havia, até então, sido um padrão essencial; isto significa que um componente essencial das justificações práticas da existência da educação pública é deletado – sua capacidade de moralizar. Uma pergunta, então, deve ser colocada: o que tornou tal mudança possível? O que permitiu a paradoxal reestruturação deste discurso? (JONES; WILLIAMSON, 1979, p. 98, tradução nossa). A hipótese explicativa apresentada pelos autores deriva de um novo sistema de relações que se estabelece entre a instituição escolar e um conjunto de instituições políticas e sociais, as quais o cidadão comum passa a integrar a partir da segunda metade do século XIX. A participação dos cidadãos nestas novas instituições pressupunha, 146 Paulo Gurgel necessariamente, a aquisição das habilidades básicas de leitura, da escrita e da matemática. Assim, o papel da escola foi reescrito em uma lógica secular com o objetivo de instrumentalizar o cidadão para sua inserção nesta rede de instituições democráticas: Uma justificação da escola pública devido ao seu papel desempenhado na gerência de grandes problemas sociais [como na primeira metade do século XIX] é, então, transformada em uma justificação baseada na sua representação como condição de existência de certas instituições. A proposição da necessidade de uma educação pública, que agora repousa no efeito de sua amplificação, foi possível de ser enunciada a partir dos discursos das instituições; isto significa que a amplificação da escola repousa em proposições de sua necessidade para a formação de uma boa democracia representativa e da necessidade difundida do envolvimento dos cidadãos em institutos mecânicos. E este discurso sobre as instituições torna possível este efeito através da redefinição da função tática da educação pública: não uma função de inculcação de princípios de conduta e nem como estratégia de gerenciamento de topografias morais, mas como um instrumento de criação de um campo de implantação de outras instituições formando os indivíduos como seus membros possíveis (JONES; WILLIAMSON, 1979, p. 99-100, tradução nossa). Este processo de redefinição do papel da escola em sua nova função secular, segundo os autores, não se faz acompanhar por grandes mudanças na prática pedagógica, ainda que os objetivos da educação pública tenham sido redefinidos em três eixos principais, a saber: (1) um eixo concernente à educação como um benefício social para o indivíduo, dando a ele maiores chances de uma melhoria nas suas condições de vida; (2) um eixo concernente à educação e o seu papel na constituição dos indivíduos como sujeitos membros de instituições democráticas; e (3) um eixo concernente à educação como meio de promoção e crescimento econômico das nações: Discordamos, contudo, destes autores quando defendem a tese de que estas novas funções da educação pública não implicaram em grandes mudanças no que diz respeito às práticas pedagógicas. Para O governo da razão: escolarização, subjetivação e psicologia genética 147 nós, a secularização da escola, iniciada ao final do século dezenove e desenvolvida na primeira metade do século vinte, implicou não apenas em profundas mudanças no que diz respeito às práticas pedagógicas como também em uma inflação de sua função moralizadora. É o que tentaremos demonstrar em seguida. Já nos últimos anos do século XIX, podemos encontrar na literatura educacional das sociedades ocidentais claros sinais indicativos de mudanças nas práticas pedagógicas. Trata-se de projetos pioneiros que propõem uma profunda alteração de foco na agenda da pedagogia que, antes centrada no professor, passava a se centrar no aluno. Vejamos como Jean Piaget narra a história do nascimento destes novos métodos: É que a transformação geral das idéias sobre a personalidade humana obrigou os espíritos abertos a considerarem a infância de outra maneira: não mais [era o caso de Rousseau] por causa de opiniões preconcebidas sobre a bondade do homem e a inocência da natureza – mas por causa do fato, novo na história, de que a ciência e, mais geralmente, as pessoas honestas, estavam de posse de um método e de um sistema de noções aptos a dar conta do desenvolvimento da consciência e, particularmente, do desenvolvimento da alma infantil. Somente então esta atividade verdadeira, que todos os grandes inovadores da pedagogia tinham sonhado introduzir na escola e deixar desenvolver-se os alunos segundo o processo interno de crescimento físico, tornou-se um conceito inteligível e uma realidade suscetível de ser analisada objetivamente: os novos métodos se constituíram assim ao mesmo tempo em que a psicologia infantil e em estreita solidariedade com seus progressos (PIAGET, 1976, p. 150, grifo nosso). Esta solidariedade muito significa para a nossa empresa genealógica aqui desenvolvida. Primeiramente, ela aponta para uma mudança de pólo de onde a verdade sobre a educação passaria a ser enunciada. Até então, os tratados de pedagogia eram escritos, em sua maioria, por filósofos e por pessoas diretamente ligadas à pastoral cristã. A partir de então, a educação passou a ser um assunto científico. 148 Paulo Gurgel Esta mudança de pólo de enunciação nos remete à questão da governamentalidade em sociedades liberais onde, como corretamente sublinha Rose (1998), a produção do sujeito se tornou progressivamente, ao longo da história, assunto concernente exclusivamente ao domínio dos experts. Se, pois, consideramos a escolarização como uma tecnologia de governo, claro se torna, a partir da citação de Piaget (1976), que o final do século dezenove se constitui no momento em que a psicologia se torna o centro de produção de verdade sobre o sujeito-aluno. A autoridade pedagógica se tornou, então, laica. Doravante, repousaria ela sobre a razão. Analisando o movimento globalizado de construção dos métodos ativos em sua estreita relação com o desenvolvimento da psicologia infantil na Europa e além mares, Piaget reserva ao seu país de origem, a Suíça, o grande mérito desta genuína revolução pedagógica: No entanto, foi na Suíça que a famosa teoria de Karl Groos – o jogo é um exercício preparatório; logo apresenta significação funcional – encontrou sua primeira aplicação pedagógica. É na verdade a Claparède, que desde seus primeiros trabalhos havia reagido contra o associacionismo e defendido o ponto de vista dinâmico e funcional, que se deve à compreensão da importância da doutrina de Groos para a educação. Daí os métodos de ensino e os jogos educativos desenvolvidos na Maison des Petits de Genebra, como também o movimento dirigido por ele – antes e depois da criação do Instituto Jean-Jacques Rousseau – em favor do ensino simultâneo da infância e das técnicas educativas: discat a puero magister, esta era a divisa da instituição que ele fundou com P. Bovet (PIAGET, 1976, p. 152-153). O jogo, usurpado pela ciência e transformado em instrumento da educação, marca, pois, o fim da inocência da brincadeira infantil. Foram as bolas de gude que a Piaget permitiram construir toda uma lógica do desenvolvimento do julgamento moral da criança, no início dos anos trinta do século vinte. Crianças a brincar na Maison des Petits se tornaram, então, objeto de observação, registro e análise dos progressos da inteligência. A atividade da criança, fundamento dos métodos ativos, O governo da razão: escolarização, subjetivação e psicologia genética 149 para além de revolucionar a prática pedagógica, se constituiu em um poderoso instrumento de desenvolvimento da psicologia da criança. A escola se tornou, então, tal como já havia acontecido aos hospitais e prisões ao longo do século XIX, lugar privilegiado de produção de saber sobre o homem. Produzindo sujeitos, ela também, e ao mesmo tempo, produzia verdades sobre eles. É, pois, da ordem do discurso da psicologia que Piaget se faz ouvir no métier psicopedagógico do século vinte. Não esqueçamos, contudo, que a escola constituiu a superfície de emergência desse métier e que, portanto, sem os problemas por ela enfrentados na formatação dos sujeitos do breve século vinte, o sujeito epistêmico, muito provavelmente, jamais teria emergido como objeto da psicologia. Mais do que lugar de aplicação dos conhecimentos sobre este sujeito, a escola foi o lugar de produção mesma deste objeto de pesquisa que ocupou grande parte da empresa epistemológica de Jean Piaget. Certo é que a teoria piagetiana da gênese e desenvolvimento da inteligência e suas relações com o métier psicopedagógico constituem um dos temas nevrálgicos da literatura educacional do século XX. Possivelmente, nenhum outro teórico tenha desencadeado tantas reações de amor e ódio ao seu sujeito epistêmico como Jean Piaget. Muitas razões podem ser aventadas para tanto. Dentre elas, destacamos duas, a saber: o fato mesmo da psicologia genética ser derivada de pesquisas com sujeitos escolares, pois que tinha como função, dentre outras, buscar soluções para os problemas educacionais de seu tempo e o fato de Piaget ser um cientista com participação ativa em organismos internacionais de gestão da educação, o que certamente em muito contribuiu para a difusão de suas idéias. Escolhemos, para abordar o governo da razão pura pela escola, um texto de Jean Piaget publicado no ano de 1962 e intitulado Comentários sobre as observações críticas de Vygotsky acerca de: A linguagem e o pensamento da criança. Neste texto, Piaget sublinha ter sido para ele uma alegria descobrir que também o psicólogo russo, para propósitos de estudo, distinguia os conceitos espontâneos, 150 Paulo Gurgel “construídos pela criança em sua interação com o mundo”, dos conceitos científicos, “adquiridos pela criança por intermédio da aprendizagem escolar”. Ambos admitem existir uma interação entre estas duas categorias de conceitos. Vygotsky, contudo, segundo Jean Piaget, o interpreta incorretamente, ao lhe imputar a idéia de que os educadores deveriam considerar o pensamento espontâneo da criança como um inimigo a ser vencido: Em todos os meus escritos pedagógicos, antigos ou recentes, tenho ao contrário, insistido em que a educação formal poderia ganhar uma grande dimensão, muito maior do que aquela proporcionada pelos atuais métodos, através de uma utilização sistemática do desenvolvimento mental espontâneo da criança (PIAGET, 1991, p. 166). E para provar que assim o é, Piaget faz uma referência a uma série de estudos por ele realizados, com a colaboração de A Szemiska e B. Inhelder, sobre o desenvolvimento dos conceitos de número, de quantidades físicas, de ação, de velocidade e do tempo, de espaço, de causalidade, da indução de leis físicas e da estrutura lógica das classes. Estudos que, segundo Piaget, deveriam servir de guia de apoio na determinação do programa das disciplinas escolares, mas que, como era o caso específico do ensino da geometria na Suíça e na França, não o foram. E o resultado desse desconhecimento da lógica evolutiva do desenvolvimento muitas vezes se traduz em fracasso escolar: Através desses exemplos [desenvolvimento das operações geométricas nas crianças em oposição à lógica dos programas de geometria em escolas suíças e francesas], que podem ser multiplicados, torna-se fácil responder às críticas de Vygotsky. Em primeiro lugar, ele reprova-me por eu não ver que o aprendizado escolar é totalmente relacionado com o desenvolvimento espontâneo da criança. Contudo, deve ficar claro que, em minha opinião, não é a criança que deve ser responsabilizada por eventuais conflitos de aprendizagem, mas sim a escola, que usualmente não tem consciência do que poderia O governo da razão: escolarização, subjetivação e psicologia genética 151 deduzir do desenvolvimento espontâneo da criança, o qual ela deveria reforçar por métodos adequados em lugar de inibi-lo, como freqüentemente o faz. Em segundo lugar – e este é o principal erro de Vygotsky em sua interpretação sobre o meu trabalho – ele acredita que, de acordo com a minha teoria, o pensamento adulto, depois de várias acomodações “substitui” o pensamento infantil através de uma espécie de abolição mecânica deste último (PIAGET, 1991, p. 167-168). Sublinhemos que nosso objetivo aqui não é tomar partido quanto aos pontos de discordância entre Piaget e Vygotsky, no que diz respeito aos conceitos espontâneos, a aprendizagem escolar e os conceitos científicos. Claramente, nosso objetivo primeiro é destacar a maneira pela qual Jean Piaget pensa como a escola deve governar o processo de construção da razão pura pelo aluno. Os educadores devem subordinar seus objetivos educativos à lógica evolutiva do pensamento do escolar. E para tanto, devem necessariamente conhecer os progressos da psicologia do desenvolvimento se não desejam incorrer nos mesmos erros daqueles que desenharam os programas de geometria das escolas suíças e francesas. Retomemos, neste ponto, a tese de Rose (1998) para quem, a partir da modernidade, a história do self não poderia ser contada sem recorrermos ao domínio, cada vez maior, dos experts. Agreguemos a ela a nossa tese de que a secularização da escola, iniciada ao final do século XIX e desenvolvida na primeira metade do século XX, pode ser contada em termos de uma progressiva usurpação da educação pelo saber científico, sobremaneira o saber produzido pelas ciências humanas. Decalquemos destes saberes o saber produzido especificamente pela psicologia genética de Jean Piaget em relação à gênese e desenvolvimento da razão pura. Projetemos este saber em períodos evolutivos da lógica da criança à lógica do adolescente. Confrontemos as características de cada um dos períodos com o conteúdo das disciplinas escolares e teremos uma clara idéia da razão pela qual Piaget teve tanta penetração no métier psicopedagógico da modernidade. 152 Paulo Gurgel Interessante sublinhar aqui a escolha, certamente não aleatória, dos conceitos pesquisados por Jean Piaget e seus colaboradores a propósito da gênese e do desenvolvimento de cada um deles ao nível da razão pura. São todos eles conceitos concernentes às ciências físicas e matemáticas, certamente as denominadas “ciências duras” do século XX. Imaginar a maquinaria industrial do século passado sem eles não nos parece possível. Impossível também imaginar uma escola que não os tenha incluído em seus objetivos de ensino no que diz respeito à aprendizagem dos conceitos científicos. Extrapolando a simples experiência física, estes conceitos nos remetem ao que Piaget denomina de experiência lógico-matemática: A experiência física responde à concepção clássica da experiência: ela consiste em agir sobre os objetos, para extrair um conhecimento por abstração, a partir dos próprios objetos. Por exemplo, a criança, ao erguer sólidos, perceberá por experiência física, a diversidade dos pesos, de sua relação com o volume em densidade igual, da variedade de densidades, etc. A experiência lógico-matemática, em compensação, consiste em agir sobre os objetos, mas com abstração dos conhecimentos, a partir da ação e não mais dos próprios objetos. Neste caso, a ação começa por conferir aos objetos caracteres que não possuíam por si mesmos [e que conservam, aliás, suas propriedades anteriores] e a experiência incide sobre a ligação entre os caracteres introduzidos pela ação no objeto [e não sobre as propriedades anteriores deste]: neste caso, o conhecimento é abstraído da ação como tal e não da propriedade física dos objetos (PIAGET, 1973, p. 76-77). “Agir sobre os objetos para deles extrair conhecimentos”, eis o paradigma dos métodos ativos e a razão pela qual já em 1935 Piaget iria escrever um artigo defendendo-os: Os novos métodos, suas bases psicológicas. A aquisição dos conceitos científicos, através da aprendizagem escolar, deveria não apenas obedecer à lógica da gênese e desenvolvimento dos conceitos espontâneos, mas exigia da pedagogia um novo método de ensino que muito se diferenciava da simples preleção ou da pura experiência física dos próprios objetos. A “escola nova” necessariamente pressupunha um “método novo” de ensino. O governo da razão: escolarização, subjetivação e psicologia genética 153 Escolhemos, para abordar os novos métodos pedagógicos, um texto apresentado por Piaget no V Congresso Internacional de Educação Moral, realizado em Paris, no ano de 1930 e intitulado Os procedimentos da educação moral. Sua análise não somente nos permitirá discutir estes novos métodos, mas também abordar o governo da razão prática pela escola. Piaget (1996) inicia sua exposição sobre o tema afirmando que os procedimentos da educação moral podem ser classificados sob diferentes pontos de vista: Primeiramente, do ponto de vista dos fins perseguidos: é evidente que os métodos serão muito diferentes se desejarmos formar uma personalidade livre ou um indivíduo submetido ao conformismo do grupo social a que ele pertence. Verdade é que aqui não temos de tratar dos fins da educação moral, mas somos forçados para classificar os procedimentos a distinguir aqueles que favorecem a autonomia da consciência e aqueles que conduzem ao resultado inverso. Em segundo lugar, podemos considerar o ponto de vista das próprias técnicas: se queremos alcançar a autonomia da consciência, podemos perguntar se um ensinamento oral da moral – uma “lição de moral” – é tão eficaz como supõe Durkheim, por exemplo, ou se uma pedagogia inteiramente “ativa” é necessária a este fim. Para um mesmo fim podem ser concebíveis diferentes técnicas. Em terceiro lugar podemos classificar os procedimentos da educação em função do domínio da moral a ser considerado: um procedimento excelente para desenvolver a veracidade, a sinceridade e as virtudes que podemos chamar intelectuais, é bom, também, para educação da responsabilidade ou do caráter? (PIAGET, 1996, p. 1-2, grifos nossos). Esta matriz de três entradas para a abordagem da educação moral pode, segundo Piaget, facilmente precipitar a discussão sobre o tema em um caos se não comporta um princípio ordenador que permita uma orientação simultânea para os fins, as técnicas e os domínios. E que princípio seria este? 154 Paulo Gurgel Não existe alguma divisão mais simples, algum princípio que nos permita uma orientação simultânea para os fins, as técnicas e os domínios? Nós acreditamos que sim, mas sob a condição de partirmos primeiramente da própria criança e de aclarar a pedagogia moral através da psicologia moral infantil. Quaisquer que sejam os fins que se proponha a alcançar, quaisquer que sejam as técnicas que se decida adotar e quaisquer que sejam os domínios sob os quais se aplique estas técnicas, a questão primordial é a de saber quais são as disponibilidades da criança. Sem uma psicologia precisa das relações das crianças entre si e delas com os adultos, toda discussão sobre os procedimentos da educação moral resulta estéril (PIAGET, 1996, p. 2, grifo nosso). Revisando, contudo, a história da educação e também da filosofia, identificamos outros tempos nos quais a moral se punha como uma questão que dizia respeito à pastoral cristã e/ou à reflexão filosófica dos iluminados espíritos livres. Não obstante, estes tempos se perderam no tempo como um rosto desenhado na areia à beira mar. A razão prática não é mais uma questão metafísica, sequer transcendental. Usurpada pela ciência, ela se desenvolve de acordo com um conjunto de leis que regem o desenvolvimento da inteligência da criança. O governo da razão prática pela pedagogia, pois, se torna, doravante, prisioneiro da psicologia. As leis regentes do desenvolvimento da moral da criança, identificadas pela psicologia genética de Jean Piaget, têm pretensões universais, pois que são científicas. Rezam elas, contudo, que a educação moral do homem pode ou não atingir sua forma mais desenvolvida, o “sujeito autogovernado”, a depender do grau de evolução da sociedade a qual pertence este sujeito: A moral da heteronomia e do respeito unilateral parece corresponder à moral das prescrições e das interdições rituais [tabus], próprias das sociedades ditas “primitivas”, nas quais o respeito aos costumes encarnados nos anciões prima sobre a manifestação da personalidade. A moral de cooperação, ao contrário, é um produto relativamente recente da diferenciação social e do individualismo que resulta do tipo “civilizado” de O governo da razão: escolarização, subjetivação e psicologia genética 155 solidariedade. Em nossas sociedades, conseqüentemente, o próprio conteúdo moral é, em síntese, o da cooperação. Dito de outro modo, as regras prescritas, mesmo que na forma de deveres categóricos e imperativos de motivos religiosos, não contém, a título de matéria, mais que o ideal de justiça e de reciprocidade próprios à moral do respeito mútuo. Somente cada um, tendo em vista a educação que recebeu, pode, no que concerne à forma, diferenciar o sentimento do dever do livre consentimento próprio do sentimento do bem (PIAGET, 1996, p. 9). Iniciamos nosso trabalho sublinhando que Foucault e Piaget concordam que o tempo da inocência é do governo dos outros. O tempo da inocência é o tempo da infância, seja ela do sujeito epistêmico em sua dimensão sincrônica ou diacrônica. Perder a inocência, contudo, é para Piaget condição necessária para que se evolua de um modo primitivo a um modo civilizado de solidariedade. Para ele, o individualismo de nosso tempo é sintoma de evolução de um estágio de moral heterônoma para um estágio de moral autônoma. É mister, pois que assim determina as leis da psicologia genética, que o fim da educação moral seja a produção de sujeitos autogovernados. E para que a pedagogia possa reger esta produção, necessário se faz que ela recorra aos métodos ativos: Para os participantes da escola ativa, a educação moral não constitui uma matéria especial de ensino, mas um aspecto particular da totalidade do sistema. Dito de outro modo, a educação forma um todo, e a atividade que a criança executa com relação a uma das disciplinas escolares supõe o esforço de caráter e um conjunto de condutas morais, assim como supõe uma certa tensão da inteligência e mobilização de interesses. Esteja ocupada em analisar regras da gramática, a resolver um problema de matemática ou a comentar um ponto da história, a criança que trabalha “ativamente” é obrigada, não só diante de si, mas diante do grupo social que é a classe ou a equipe da qual faz parte, a comportar-se de modo muito diferente do aluno tradicional que escuta uma lição ou realiza um “dever” escolar. Enquanto neste tudo reconduz à obediência e às virtudes a ela ligadas, isto é, a moral do respeito unilateral, naquele, ao contrário, a investigação 156 Paulo Gurgel escolar implica as mesmas qualidades pessoais e as mesmas condutas coletivas de ajuda recíproca, de respeito na discussão, de desinteresse e de objetividade que a pesquisa científica dos intelectuais adultos. A classe constitui assim uma organização de trabalho e evidencia-se que a vida moral está intimamente ligada a toda atividade escolar. A educação do caráter é, em particular, singularmente intensificada e, para canalizar as atitudes e para construir o controle pessoal, não é necessário recorrer a meios exteriores artificiais: o próprio princípio da atividade conduz a estes resultados (PIAGET, 1996, p. 20-21, grifo nosso). Razão prática que a tudo ativamente atravessa porque é inerente ao próprio princípio da atividade. E assim, estando a educação moral inerentemente ligada a toda e qualquer atividade de governo da razão pura, não podemos, portanto, concordar com Jones & Williamson (1979) que identificaram na secularização da escola um retraimento das questões morais ao nível dos discursos pedagógicos do final do século XIX e início do século XX. Em verdade, o que vemos, tomando como base a citação de Jean Piaget, é uma inflação do governo da razão prática, agora inserida em todo o processo de aprendizagem. Ainda que possa nos parecer paradoxal, a inflação do governo da razão prática pela escola não significa que a escola do século XX se aproxime das instituições disciplinares abordadas por Michel Foucault (1979) em Vigiar e Punir e que, segundo ele, caracterizaram as sociedades ocidentais do século XVIII e XIX. Na “escola nova” o ideal panóptico de Benthan (cf. FOUCAULT, 1979) se torna uma questão de fórum íntimo – fagocitado pelo self, torna-se um problema não de governo, mas de autogoverno: O self deve se tornar um ser subjetivo, ele deve aspirar por autonomia, deve lutar por sua realização pessoal em sua vida terrena, ele deve interpretar sua realidade e seu destino como problema de sua responsabilidade individual para encontrar o sentido de sua existência formatando sua vida através de atos de escolha. Estas formas de pensar os seres humanos como selves, e estas formas de julgá-los, estão ligadas a certas formas de atuar sobre estes selves. A orientação dos selves não mais depende da O governo da razão: escolarização, subjetivação e psicologia genética 157 autoridade religiosa ou da moralidade tradicional; ela é agora responsabilidade dos “experts em subjetividade” que transfiguram questões existenciais sobre o sentido da vida e do significado do sofrimento em questões teóricas sobre as formas mais efetivas de gerir disfunções e de melhorar a qualidade de vida (ROSE, 1998, p. 151, tradução nossa). A escola, pois, não deve ser pensada como simples estacionamento de crianças para pais trabalhadores. Ela é, sobretudo, o lugar em que subjetividades são produzidas e o são de acordo com o credo que rege o métier psicopedagógico em determinado instante da história. É isto que permite a Piaget enunciar que o governo da razão prática na “escola nova” não se configura como um exercício particular, mas transversal da razão. Os novos métodos, portanto, surgem para atender esta demanda de um longo governo da razão pela escola em sua função de produzir sujeitos autogovernados. Produção esta estritamente controlada por experts em subjetividade que, pautados nos científicos conhecimentos da psicologia do desenvolvimento, estão autorizados a produzir uma série de tecnologias pedagógicas capazes de garantir o sucesso da empresa educativa. Vejamos um exemplo deste arsenal tecnológico que foi apresentado pelo próprio Jean Piaget em sua conferência sobre a educação moral. O nome do instrumento é Liga da Bondade e foi, segundo ele, apresentada pela primeira vez em 1912 no Congresso de Educação Moral de La Haya: Para fazer parte da liga da bondade a criança se compromete, simplesmente, a perguntar-se, todas as manhãs, o que poderá fazer de bom durante o dia. À noite deve dar-se conta do resultado de seus esforços e lembrar-se do bem que tenha desejado fazer ao seu redor. Os resultados, quaisquer que sejam, tratem-se de vitórias ou fracassos, são escritos numa folha não assinada que a criança deposita numa caixa colocada na classe para este fim. Essas anotações anônimas são lidas na classe durante a aula de moral. O sucesso desse método tão simples tem sido surpreendente e contrasta com a carência de benefícios dos métodos puramente 158 Paulo Gurgel verbais. De onde vem este sucesso? Em primeiro lugar evidenciase que toda a atenção está colocada sobre a própria atividade da criança e não sobre o seu discurso. Os assuntos que servem de matéria para a reflexão moral não são episódios históricos ou fictícios, que o professor propõe arbitrariamente e que se mantém exteriores aos interesses espontâneos do aluno: são os próprios atos das crianças. Em segundo lugar, pelo fato de haver uma liga, uma mutualidade é criada entre as crianças e um forte empenho conjunto é assim desencadeado. [...]. É assim que, em muitos casos, são as próprias crianças que designam o titular do prêmio anual das ligas. Esta flexibilidade permite, então, um livre progredir do autogoverno e da atividade da criança (PIAGET, 1996, p. 25). Qualquer semelhança com as práticas confessionais da pastoral cristã não é pura coincidência. Meticulosamente o aluno é incitado, pelo seu sucesso, a confessar seus pecados e submetê-los ao julgamento de sua comunidade. Não obstante, não é mais o padre aquele que julga as ações de suas ovelhas e lhes confere penitências ou bênçãos. É o professor, que por sua autoridade inteligente, apenas guia o processo de confissão e de julgamento. São as próprias crianças, por meio de sua atividade, que constroem um autogoverno dos atos morais dos membros do grupo. A confissão se seculariza e a ordem religiosa se laiciza. Nem padres e nem fiéis, mas professores e alunos. “E tudo isto abençoado pelo poder do evangelho segundo a psicologia genética”. Resta-nos, enfim, brevemente sublinhar a razão pela qual o autogoverno se tornou o fim último da educação em democracias liberais do século XX. Em tempos de neoliberalismo que agora vivemos, é no mínimo redundante recordar que o liberalismo é uma doutrina de governo que se caracteriza pela arte de minimamente governar uma comunidade de cidadãos livres. A liberdade não é, contudo, uma categoria transcendental: “é a resultante de um conjunto de tecnologias de produção de sujeitos a partir de regimes de verdades instituídos por especialistas em subjetividade”. Dentre estes, certamente, destacam-se os especialistas em educação que compuseram o métier psicopedagógico do século passado. O governo da razão: escolarização, subjetivação e psicologia genética 159 THE GOVERNMENT OF REASON: EDUCATION, SUBJECTIVENESS AND GENETIC PSYCHOLOGY Abstract: This paper deals with the epistemic subject formatted by an institution called school, a privileged space for the history of education throughout the 20th century. An analysis of Jean Piaget´s genetic psychology in its relation with pedagogical practices centered on the student will be conducted. Like technologies designed to produce citizens in liberal and welfare times, these practices dictated the ideals for governing reason and they are in the roots of the piagetian subject in his synchronic and diachronic dimensions as well. Keywords: Governmental. Subjectiveness and epistemology. Referências bibliográficas FOUCAULT, M. Vigiar e punir. Tradução de Lígia Vassalo. Petrópolis: Vozes, 1978. ______. A governamentalidade. Tradução de Roberto Machado. In: MACHADO, R. (Ed.). Microfísica do poder. 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Não, se entendermos por educador um “teórico da educação”. Heidegger1 é um pensador da filosofia; estando, pois, envolvido com questões específicas e Doutorando em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Docente do Centro Universitário Plínio Leite (Unipli). Autor de Filosofia primeira: estudos sobre Heidegger e outros autores. Rio de Janeiro: Papel & Virtual, 2004. E-mail: [email protected]. 1 Martin Heidegger: Nascido em Messkirch/Alemanha em 1889. Foi docente da Universidade de Freiburg de 1924-1945, na qual também foi Reitor em 1933. Aluno e assistente de E. Husserl, teve seu nome ligado a escolas como a Fenomenologia e o Existencialismo, foi professor de nomes como H. Marcuse, H. Arendt, H-G. Gadamer, E. Lévinas e H. Jonas. Morreu em 1976. * APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano III n. 4 p. 161-171 2005 162 Roberto Saraiva Kahlmeyer-Mertens concernentes a um fenômeno histórico chamado “metafísica”. A metafísica, entre suas muitas conceituações, é a chamada “ciência objetiva da verdade”, procedimento especulativo que visa determinar a verdade das coisas em seu ser. Assim como a maioria dos pensadores, Heidegger esteve envolvido com a atividade docente. Lecionou filosofia: era professor. Ocupou-se com o ensino de filosofia durante toda a vida, ministrando cursos e conferências, inclusive em outros países. O melhor testemunho de sua aplicação à prática educativa encontramos em textos escritos especialmente para a cátedra (visando o apoio à leitura de seus alunos) ou na forma de preleções.2 Nesses textos, presenciamos demonstrações da preocupação do autor em adequar seus métodos ao perfil de seus alunos, utilizando uma linguagem didática e imagens acuradamente escolhidas para ilustrar e esclarecer idéias mais abstratas.3 Embora considerando isso, é forçosa a pretensão de incluir Heidegger no rol dos pensadores da educação, pois, em sua obra, o autor apenas sinaliza, de maneira esparsa, suas concepções pedagógicas; este material ainda seria insuficiente para constituir o corpus de uma teoria educacional. Entretanto, tendo sido um pensador da filosofia, e não pedagogo, Heidegger trouxe profundas contribuições para as ditas Ciências Humanas (KNELLER, 1971), inclusive à educação, na medida em que empreendeu toda uma investigação acerca do sentido do ser e da existência do Homem. Seu trabalho possibilitou que certos conceitos fundamentais ao pensamento ocidental pudessem ser pensados a partir de novos paradigmas, permitindo que noções tradicionais como as de razão, sujeito, indivíduo, existência etc, ganhassem nova compreensão e abordagem. Na educação dita “tradicional”, (centrada em concepções como as de subjetividade, intelecto e conhecimento, pressupondo o indivíduo como algo dado essencialmente) as idéias de Heidegger provocaram 2 As chamadas Vorlesungen, modalidade de curso ainda muito usada na Alemanha que consiste basicamente na leitura de um texto do mestre diante da turma. Textos que são usualmente reunidos e publicados após a apresentação do curso. 3 Características nem sempre observadas em seus tratados e conferências. Heidegger educador: acerca do aprender e do ensinar 163 transformações capazes de serem observadas naquela que Demerval Saviani (1995) chama de “concepção humanista moderna de Filosofia da Educação”. Esta, por oposição à primeira, pauta-se na vida, na existência, nos afetos e nas atitudes, caracterizando-se como uma postura de leitura da vida e do mundo sem que o indivíduo estivesse afastado como mero espectador. Para essa postura humanista, que se apóia em escolas como o Vitalismo, a Fenomenologia e o Existencialismo,4 o indivíduo é sempre ator, sendo na medida em que existe, experimentando a si próprio na existência, estando envolvido com o pensamento e sentimentos; já compreendendo o mundo a partir destes sentimentos. Saviani enfatiza estes traços enquanto comenta a apropriação que alguns educadores fizeram a partir dessas idéias. O autor aponta também o conceito que podemos fazer de indivíduo desde esta perspectiva: Atualmente alguns educadores buscam rever suas posições pedagógicas à luz da fenomenologia e do existencialismo [Husserl, Merleau-Ponty, Heidegger]. [...] registrei de modo explícito essa diferença matriz ao afirmar que a referida concepção admite a existência de formas descontínuas da educação [...] na medida em que, em vez de considerar a educação como um processo continuado, obedecendo a esquemas predefinidos, seguindo uma ordem lógica, considera-se que a educação segue o ritmo vital que é variado, determinado pelas diferenças existenciais ao nível dos indivíduos; admite idas e vindas com predominância do psicológico sobre o lógico; num segundo sentido [mais restrito e especificamente existencialista], na medida em que os momentos verdadeiramente educativos são considerados raros, passageiros, instantâneos [...]. Acontecem independentemente da vontade ou de preparação. Tudo ao que se pode fazer é estar predisposto e atento a esta possibilidade (SAVIANI, 1995, p. 72). Correntes filosóficas de grande vulto no início do século XX junto à filosofia européia, tendo influenciado o restante da produção filosófica deste século. Um exemplo da importância dessas escolas pode ser observado na obra de autores como Paulo Freire, quando, em seu livro Pedagogia do oprimido, encontramos notas de rodapé referentes a estes nomes; declarando a influência que o autor brasileiro sofreu do chamado “Existencialismo Cristão”, corrente derivada destas escolas filosóficas (FREIRE , 1983). 4 164 Roberto Saraiva Kahlmeyer-Mertens Após esta introdução, que teve por intuito apresentar a figura de Heidegger, a importância e ambiência de suas idéias, temos o propósito de pensar, com base em diversas passagens seletas da obra do autor, algumas reflexões sobre a compreensão que o autor faz do aprender/ensinar, buscando pontuar, através de um “enfoque filosófico”, possíveis contribuições de Heidegger para a História da Filosofia da Educação. Este exercício justifica-se por tratar de “conceitos considerados fundamentais” à educação e recorrentes à pauta dos autores da Filosofia da Educação, justamente por constituir seus “princípios”,sendo, pois, “condição de possibilidade” a todo processo, “prática e discurso educacional”. O texto ocupa-se dos conceitos de aprendizado e ensino a partir da análise que o autor faz do conceito grego de mathemata, presente principalmente no livro O que é uma coisa? (1962). Reunimo-nos em torno da “pergunta pela possibilidade do ensino”, questão persistente que um dia se afirma a todo professor comprometido com seu ofício. Buscaremos interpretar esta pergunta como um vocativo e uma boa ocasião para pensar naquilo que fazemos quando estamos em sala de aula diante de nossos alunos. É neste momento singular que devemos deixar se afirmar a pergunta: “É possível ensinar algo a alguém?” Entretanto, esta pergunta não espera uma resposta cabal para si; isto é, um sim ou um não e depois um conjunto de proposições capazes de justificar argumentativamente a opção por sua afirmativa ou negativa, mas um exercício de reflexão que, dando um “passo para trás”, questiona sua possibilidade e o fazer de quem se ocupa dela. Observa-se que a colocação da pergunta “é possível ensinar algo a alguém?” parece não durar muito, pois, ao invés de a experimentarmos serenamente, logo desconsideramos sua gravidade na busca de uma intelecção lógica seguida de resposta. Daí, passamos a ter novas perguntas derivadas da primeira por decomposição: o que é ensinar? (sua variante, o que é aprender?) Ensinar o quê? Ensinar a quem? E assim, mesmo antes de experimentarmos radicalmente esses novos questionamentos, novamente nos arvoramos a dar respostas. Heidegger educador: acerca do aprender e do ensinar 165 É possível, então, que a pergunta pela possibilidade do ensinar seja respondida simploriamente. Afinal, deduz-se que ensinar o que quer que seja é possível, pois, denotativamente, não seria mais que ministrar, de maneira unilateral, conteúdos que o professor previamente possui, ao aluno que ainda não os tem e supostamente necessita. Ou, usando uma linguagem muito celebrada neste início de século XXI: aparelhar os indivíduos com os instrumentos necessários para a assimilação das muitas informações produzidas por esta nova Era, possibilitando aos indivíduos a orientação para a plena realização de seus projetos e desenvolvimento individual. Isto faz com que a atividade docente se reduza a uma instrução, ou seja, uma transferência de informações e procedimentos. Este modo de conceber o problema é o mesmo que reputa supérflua a pergunta pela natureza do aprender/ensinar. Questão que, uma vez colocada, transgrediria as normas do bom senso acadêmico e da metodologia pragmática, tão prezada pelas atuais correntes da educação. Afinal, parece ser mais que claro que o ensinar é possível. Contudo, esta pressuposição (a qual não deixamos de ter, caso contrário não seríamos professores) adquiriu com o tempo uma rigidez que, por vezes, impossibilita o professor de rever o fazer que lhe é próprio, questionando seu modo de ser. O exercício que propomos, do modo com que questionamos, vem perguntar pela autêntica possibilidade da educação, pensando este problema a partir do aprender/ensinar. Presumimos que a condução desta idéia deverá descortinar adiante o sentido da educação, cuja possibilidade de aprendizado e ensino parte da requisição colocada por Heidegger, segundo a qual, o que quer que possa ser ensinado, deve ser necessariamente matemática. Entendemos matemática não como a ciência que investiga as relações abstratas entre entidades numéricas, capazes de ser observadas a partir de suas operações lógicas, mas como Heidegger nos descreve, segundo sua compreensão primeira junto aos gregos antigos: 166 Roberto Saraiva Kahlmeyer-Mertens O “matemático”, segundo a origem etimológica, resulta do grego tá mathemata, o que se pode aprender e, ao mesmo tempo; em conseqüência, o que se pode ensinar. Manthanoein significa aprender. Mathesis significa lição e, na verdade, num duplo sentido: lição no sentido de “ir a uma lição e aprender” e lição como “aquilo que é ensinado”. Ensinar e aprender são aqui tomados num sentido lato e, ao mesmo tempo, essencial, não no sentido estrito tardio, utilizado na escola pelos doutos (HEIDEGGER, 1987, p. 76). É segundo esta compreensão de matemático que deve ser entendido o conhecido lema do Liceu de Platão, que traz inscrito em seu pórtico o seguinte: “Afaste-se daqui quem não sabe matemática” (sic). De acordo com essa nova acepção apresentada no comentário acima, a epígrafe platônica poderia ser interpretada como: “Afaste-se daqui quem não sabe aprender”. A afirmativa de Heidegger remonta a isto, mais que a uma restrição aos não hábeis em efetuar cálculos, apresentando a matemática como um pré-requisito para quem deseja, efetivamente, aprender o que quer que seja. Ao conceito de mathemata são atribuídas muitas determinações, algumas bem específicas, as quais enumeramos apenas as principais: a) coisas físicas, na medida em que se dão por si mesmas; b) coisas produzidas, que chegam a nós através do trabalho do homem; c) coisas no uso, sendo, pois, os instrumentos, ferramentas, aparelhos utilizados para auxiliar a execução de ocupações e tarefas. Este último enfatiza o aspecto de prática (práxis), no sentido de ação, exercício ou uso situacional, servindo mesmo como suporte para as demais compreensões de mathemata (HEIDEGGER, 1987). Notemos que todas as determinações da mathemata possuem algo em comum, dizem respeito ao modo de ser das coisas em uma determinada perspectiva; ou seja, já desde uma orientação das coisas, desde um modo de aprender. Neste momento, é preciso que confirmemos nossos termos, à guisa de uma compreensão segura do problema: Heidegger educador: acerca do aprender e do ensinar 167 Mathesis significa aprender; mathemata, o que se pode aprender. De acordo com o que foi dito, as coisas são visadas com esta designação, na medida em que se podem aprender. Aprender é um modo de aprender e do apropriar-se (HEIDEGGER, 1987). O que Heidegger pretende apontar com essa passagem é que aprender, em sentido rigoroso, não é tomar as coisas como suas, prontamente (isto é, em um momento não se conhece um objeto, e no momento seguinte, após ter sido experimentado este objeto, passa-se a tê-lo como empiricamente conhecido). Para nosso autor, a relação com o objeto do aprendizado dá-se a partir de um exercício; nisso fica marcado enfaticamente o caráter prático do aprender como um dos sentidos do mathemata, exercício que conduz quem aprende a aprender a apreender (sic).5 Com esta consideração, Heidegger marca posição frente a autores da educação que teorizam sobre o modo com o qual ocorre o processo do aprendizado. Autores cujo breve contraponto nos parece oportuno para comparações eventuais. Comenius talvez seja a primeira figura da História da Educação a afirmar algo sobre a natureza do aprendizado. Para este autor [um monge luterano formado à luz dos dogmas do texto bíblico], o indivíduo tem sua natureza inicialmente perfeita; criado à imagem e semelhança divina. Pela desobediência a Deus [pecado original] o homem decai deste estado, assumindo para si a instabilidade e a desarmonia, passando a ter, doravante, a tarefa de “conquistar a cada instante” o estado perfeito do momento da criação. Para Comenius, o aprender é o veículo que viabiliza esta recondução à natureza perfeita criada por Deus, posto que “Um dos primeiros ensinamentos que a Sagrada Escritura nos dá é este: sob o sol não há outro caminho mais eficaz para corrigir as corrupções humanas que a reta educação da juventude” (COMENIUS, 2002). Outra figura importante a esta temática é Lev Vygotsky. Para este autor, o aprendizado é produto de uma relação constante e ininterrupta com o mundo, o que colabora para endossar sua convicção de que o modo com que cada indivíduo apreende o mundo é singular. Jean Piaget enxerga o aprender através da relação do indivíduo com o mundo, edificando uma subjetividade composta por faculdades cognitivas em constante desenvolvimento construído na experiência (ARAÚJO apud P ELLEGRINI, 2001). A mesma pressuposição aparece em Gardner, quando este autor “cartografa” o indivíduo que aprende, propondo diversos tipos de inteligências capazes de comandar habilidades diferenciadas em cada indivíduo, investigação que atualmente se expande, apontando novas múltiplas inteligências e enfocando a educação para o século XXI. A concepção que Heidegger tem do aprender tem pontos de semelhança com a visão construtivista da educação piagetiana, posto que o autor acredita que “O autêntico pensar não pode ser apreendido nos livros. Também não pode ser ensinado, se o mestre não continuar sendo um discípulo até a velhice” (HEIDEGGER , 2001, p. 251). Esta proposição parece tanger aquelas que reconhecemos como as quatro principais teses do modelo construtivista, que seriam: 1. Aprendemos a partir da experiência dada na situação de aprendizagem, mas também do sentido dos conhecimentos prévios; 2. Apreendemos organizadamente fazendo a distinção entre conhecimento declarativo (aprender “o quê”) e conhecimento processual ou procedimental (aprender “como”); 3. O indivíduo que aprende tem a responsabilidade em ocupar-se de sua própria aprendizagem; 4. quem aprende constrói seu aprendizado de maneira ativa, reconduzindo-se a suas referências prévias, à identidade do que é apreendido (SEQUEIROS, 2000). 5 168 Roberto Saraiva Kahlmeyer-Mertens Assim, quando aprendemos o que quer que seja, já o fazemos desde a recondução do aprendido a um sentido que lhe é próprio, e que de antemão possuíamos, ou como Heidegger nos assegura: Na verdade, este “tomar conhecimento” é a essência autêntica do conhecer, a mathesis. As mathematas são as coisas, na medida em que as tomamos no conhecimento, enquanto tomamos conhecimento delas, como aquilo que verdadeiramente já sabemos de modo antecipado: o corpo como corporeidade; na planta, a vegetalidade; no animal, a animalidade; na coisa a coisidade etc. Este verdadeiro aprender é, por conseqüência, um tomar muito peculiar, um tomar no qual aquele que toma, toma, fundamentalmente, aquilo que já tem. A este aprender corresponde, também, o ensinar. Ensinar é um dar, um oferecer; no ensinar, não é oferecido o ensinável, mas é dada somente ao aluno a indicação de ele tomar aquilo que já tem (HEIDEGGER, 1987, p. 79). Aqui, Heidegger aponta que o aprender/ensinar dá-se em um tipo de relação com as mathematas, capaz de estabelecer uma identidade entre “quem aprende e o que é apreendido”. É isso que Heidegger quer dizer quando afirma que ensinar é indicar a quem deseja aprender aquilo que já se tem. Daí, a tarefa premente de quem ensina (do professor) é “oferecer a oportunidade de o aluno reconhecer em si esta identidade fundamental e como a mesma se dá”. Pois, o ensinar, segundo Heidegger, nada mais é do que provocar o aluno a descobrir um sentido próprio a si e à própria necessidade do seu aprender. O conceito de sentido é caro ao pensamento de Heidegger, pois, para este autor esta experiência diz respeito ao contexto no qual se mantém a possibilidade das coisas se darem em seu ser. Do mesmo modo, sentido é o que orienta o horizonte de realização de um indivíduo, na medida em que este revela uma perspectiva própria a seu projeto existencial através da qual construirá seu acesso ao aprendizado. O ensinar, então, torna-se a tarefa heurística que revela sentido, que faz com que o aprender tenha sentido, daí: “dizer que o ente tem sentido significa que ele se tornou acessível em seu ser, que só então, projetado em sua perspectiva, ele propriamente tem sentido” (HEIDEGGER, 1996, grifos do autor). Heidegger educador: acerca do aprender e do ensinar 169 Estamos convencidos de que nisso reside a compreensão mais própria do aprender/ensinar, tal qual nos expressa o termo latino educare, que em sua etimologia indica um “trazer para fora”, um “tirar de...”; depois, acumulando também o sentido de criar. Constatação que, por si só, ratifica a improcedência do modelo de professor enquanto aquele que possuiria a mera tarefa de ministrar conteúdos, tal como mencionamos anteriormente. Pois, para Heidegger: Quando o aluno recebe apenas qualquer coisa oferecida, não aprende. Aprende pela primeira vez, quando experimenta aquilo que toma como sendo o que, verdadeiramente, já tem. O verdadeiro aprender está, pela primeira vez, onde o tomar aquilo que já se tem é um dar a si mesmo e é experimentado enquanto tal [sentido]. Por isso, ensinar não significa senão deixar os outros aprender, quer dizer, um conduzir mútuo até a aprendizagem. Aprender é mais difícil do que ensinar; assim, somente quem pode aprender verdadeiramente – e somente na medida em que tal consegue – pode verdadeiramente ensinar (HEIDEGGER, 1987, p. 79-80). Segundo o autor, o aluno não aprende verdadeiramente o que lhe é transferido, pois isto não lhe diz respeito, pois isto não faz sentido. É preciso, portanto, que o aluno esteja ocupado na tarefa de descobrir um sentido próprio a si. Cuidando, portanto, por aprender a colocarse numa perspectiva através da qual lhe seja possível aprender verdadeiramente desde sua existência individual. Pois, somente assim o aprendizado é autêntico. Nesses termos, ainda segundo a citação de Heidegger, o professor diferencia-se do aluno somente por ter diante de si, de maneira mais clara, o aprender em sua forma mais autêntica; daí outra afirmação do mesmo autor: “Em todo ensinar, professor é quem mais aprende” (HEIDEGGER, 1987).6 Esta proposição de Heidegger se assemelha a certas assertivas que Paulo Freire (1983) faz em muitos momentos de sua obra. Freire certamente concordaria com esta proposição heideggeriana, contanto que permanecesse resguardada a ambivalência deste professor que aprende enquanto educador-educando, na medida em que o professor é que mais aprende por também está aberto a aprender com seus alunos, processo que o autor alemão chamou de “um conduzir mútuo até a aprendizagem”. 6 170 Roberto Saraiva Kahlmeyer-Mertens Aprender/ensinar é, segundo Heidegger, reconduzir-se a um lugar no qual se pode descobrir um sentido próprio ao indivíduo que aprende, ao que é aprendido de maneira temática (e até mesmo curricular) sem, contudo, perder de vista seu sentido originário; possibilitar um sentido orientador da perspectiva de sua existência do indivíduo. Em vista disso, ensinar é ensinar uma “postura”, é ensinar o aluno a se reportar ao ethos de todo aprender, é dar através de um relato a indicação que conduzirá o aluno ao seu aprender. Por isso, só faz sentido ensinar quem está pré-disposto a aprender, ou seja, a ouvir o tal relato. Pois tal relatar atinge apenas aquele que um dia experimentou a possibilidade fundamental de apreender um sentido próprio a si. Todas estas proposições sobre a natureza do aprender/ensinar talvez se resumissem ao que Heidegger, parafraseando Nietzsche, chama de: Saber-se de si fora do vulgar: tornar-se sabedor de si mesmo, não só como indivíduo, mas como humanidade. Reflitamos, recordemos: percorramos os pequenos e os grandes caminhos (NIETZSCHE apud HEIDEGGER, 1987, p. 48). À guisa de conclusão, é preciso considerar que muitas das idéias contidas neste texto possuem relação com diversos conceitos do pensamento de Heidegger (não abordados aqui de maneira rigorosa), principalmente no período em que o autor está envolvido com a “analítica existencial”, investigação empreendida na obra Ser e tempo (1927). No referido, presenciamos as noções de existência, “ser-nomundo”, “ser-com-o-outro”, “ser-junto”, “ocupação”, “preocupação”, “sentido” e, ainda, a noção de “cuidado”. Esta última explorada por diversos autores que tentam pensar as implicações éticas deste conceito (H ODGE , 1995). A reflexão sobre “Filosofia da Educação” empreendida aqui aponta para um desdobramento futuro, ainda em fase de pesquisa, que busca pensar o conceito de cuidado neste mesmo âmbito. Heidegger educador: acerca do aprender e do ensinar 171 HEIDEGGER, THE EDUCATOR: ON LEARNING AND TEACHING Abstract: The aim of this essay is to question the possibility of learning/ teaching. For that purpose, we will investigate if education can be considered mathematas. We will present Heidegger’s contributions to the Philosophy of Education, when he states that all teaching process reconducts the one who learns to the “place” of learning. Thus, the learning/teaching process would be the remembrance of instances in which the whole group of meanings enable the existence of the one who learns. Keywords: Learning. Teaching. Mathematas. Philosophy of education. Referências bibliográficas COMENIUS, Jan Amos. Didática magna. 2. ed. Tradução de Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2002. HEIDEGGER, Martin. Que é uma coisa? Tradução de Carlos Morujão. Lisboa: 70, 1987. ______. Being and Time. Tradução de Joan Stambaugh. New York: State University of New York Press, Albany, 1996. ______. Seminários de Zollikon. Tradução de Gabriella Arnhold e Maria de Fátima de Almeida Prado. São Paulo: Educ; Petrópolis: Vozes, 2001. HODGE, Joanna. Heidegger e a ética. Tradução de Gonçalo Couceiro Feio. Lisboa: Instituto Piaget,1995. FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 12. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. KNELLER, George F. Introdução à filosofia da educação. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar, 1971. 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Último, possivelmente, a encarnar o ideal iluminista do Intelectual pleno, do filósofo-ativista, cuja militância é a efetiva militância do Pensamento em sua realização material, vivida, algo hoje já quase incompreensível, talvez devêssemos encontrar aí o modo de explicação do verdadeiro alcance e sentido da obra sartriana para nós, nesse ponto, precisamente, já dele tão distantes: a coincidência intransigente entre vida e pensamento, entre ação e avaliação. Ninguém pôde entender e expressar melhor sua condição central do que de Gaulle quando, no auge da Guerra da Argélia, aconselhado a decretar a prisão de Sartre por seu incisivo ativismo anti-colonialista, respondeu com a frase: “Não APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano III n. 4 p. 173-174 2005 174 Leonardo Maia Bastos Machado se pode prender Voltaire”. E desde Sartre, de fato, ninguém mais pôde exercer tamanha força de barragem sobre o poder. Herói do pensamento, herói da literatura, herói da militância política, Sartre o foi antes, porém, por renúncia, por sucessivos e inesperados deslocamentos. Recusa em lecionar, renúncia ao Prêmio Nobel ofertado em 1964, recusa, de todos os modos, como ele não cessava de dizer, em “institucionalizar-se”. Mas a comemoração do centenário é ocasião, ainda, para uma reavaliação de sua filosofia. A partir de um certo período, Sartre tornarase o alvo preferencial de todo crítico, filósofo ou não-filósofo, à direita ou à esquerda. Na Filosofia, o mote principal foi sempre o de que seu pensamento, na verdade, era uma reprodução simplificada da fenomenologia de Husserl e Heidegger. A distância no tempo já é suficiente ao menos para nos mostrar que não é nada disso. Muitos dos novos caminhos tomados na Filosofia, nesse último século, que vieram acentuar seu distanciamento do período moderno, tiveram em Sartre um agente fundamental, senão um precursor: uma acepção impessoal ou a-subjetiva da transcendentalidade, retomada por Deleuze, a “metodologização” do marxismo com vistas à instauração de um (novo) pensamento material, levada adiante por nomes como Althusser ou já Negri e Hardt, bem como as insistentes e preciosas relações estabelecidas entre filosofia e literatura, hoje desenvolvidas por Derrida, enfim, boa parte das principais formulações das filosofias que lhe sucederam acabam por contar com a presença onipresente, mesmo que até certo ponto inesperada de Sartre: deus in machina. Assim, nesse atual tempo errático, de absolutas indefinições, sua vida, sua filosofia, seus olhos tortos indicam-nos, mais que outros, a direção conflitante e paradoxal que temos a seguir. Em seu número 4, através de artigo do Professor Luciano Donizetti, o APRENDER quer prestar homenagem a esse grande pensador. Leonardo Maia Bastos Machado Professor da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb). Editor Responsável. EXISTENCIALISMO E EDUCAÇÃO – A FILOSOFIA SARTRIANA DA LIBERDADE COMO FUNDAMENTO PEDAGÓGICO?1 Luciano Donizetti da Silva* Resumo: Este artigo tem como objetivo principal responder à seguinte questão: a filosofia sartriana da liberdade pode fundamentar uma pedagogia? Para respondê-la é preciso, antes de tudo, entender a noção de liberdade na filosofia de Sartre, seu fundamento ontológico e sua explicitação fenomênica. A seguir, é preciso haver-nos com as dificuldades decorrentes de tal liberdade, e assim buscar uma pedagogia progressista que se paute pelo respeito à liberdade individual que é, para Sartre, a razão de ser de todos os homens. Palavras-chave: Sartre. Educação. Liberdade. A Filosofia Sartriana da liberdade como fundamento pedagógico? Não se trata de saber por que nós somos livres, mas quais são os caminhos da liberdade. Sobre isso estamos em pleno acordo com Hegel que afirmava: “Ninguém, nenhum homem pode ser livre, se todos os homens não o são”. Sartre(Écrits, As Moscas). Esse trabalho foi financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). * Mestre em Filosofia Contemporânea pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Doutorando em História da Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). E-mail: [email protected]. 1 APRENDER - Cad. de Filosofia e Psic. da Educação Vitória da Conquista Ano III n. 4 p. 175-200 2005 176 Luciano Donizetti da Silva No dia quinze de abril de 1980 morria em Paris um dos maiores pensadores de nosso tempo, Jean-Paul Sartre, escritor, dramaturgo, novelista, político, ideólogo, anarquista, rebelde, ativista de esquerda e, sobretudo, filósofo. Longe do frisson que causou no Brasil na década de 60, a filosofia de Sartre começa lentamente a retomar seu lugar como uma das mais importantes do século passado e, sem qualquer dúvida, o filósofo é merecedor de atenção nesse novo século. Sua obra, por demais vasta, comporta muitas mudanças e dificuldades doutrinais; isso faz com que qualquer escrito sobre ele necessite de uma clara delimitação, pois, do contrário, além de prejudicar a compreensão de suas questões, pode-se retomar os velhos chavões que mascaram o caráter eminentemente filosófico de seu pensamento. Assim sendo, esse texto tem como objetivo preciso responder à seguinte questão: a filosofia de Sartre pode fundamentar uma teoria pedagógica? Entenda-se que essa questão se desdobra numa diversidade de outros problemas, tais como a relação entre uma filosofia da liberdade e a instituição educacional, ou a relação entre currículo e a liberdade individual, ou ainda, sobre como avaliar um aluno se o princípio é a liberdade. E nossa questão se complica sobremaneira porque não há nenhuma obra de Sartre que tematize especificamente a educação, além de a bibliografia secundária sobre o tema ser escassa e, não raro, equivocada com respeito a aspectos importantes da teoria sartriana. Assim, faremos um exercício teórico, e deixaremos para os especialistas em educação a tarefa de decidir sobre sua valia e aplicabilidade; aos educadores fica a responsabilidade de, ainda que inseridos numa determinada instituição de ensino, procurar espaços que possam ser preenchidos pelas idéias que serão aqui discutidas. Para tanto, esse ensaio será dividido em dois momentos: primeiro, apresentaremos alguns aspectos técnicos da filosofia de Sartre, em especial o conceito de existência e a conseqüente liberdade essencial. Feito isso, será o momento de discutirmos as objeções a uma proposta educacional que se fundamente no pensamento do filósofo; sobre esse Existencialismo e educação 177 aspecto faremos uso de um artigo de Khemais Benhamida, que cumpre justamente o papel de mostrar a inviabilidade dessa empreitada;2 é com esse intuito que faremos, inicialmente, um estudo indicativo que busque ser o mais fiel possível ao desenrolar da obra de Sartre. Antecipo que uma enormidade de problemas secundários, e mesmo questões de primeira importância, de interesse unicamente filosófico, serão desconsiderados em vista da economia do texto; ainda assim, os elementos fundamentais para uma introdução ao pensamento do filósofo serão explicados. Esperamos que o leitor, ao final, possa estar em condições de formular sua resposta sobre se o existencialismo pode ou não contribuir para fundamentar uma pedagogia; será suficiente se os pré-conceitos sobre a filosofia de Sartre forem dissipados e se, independente da resposta, positiva ou negativa, para essa indagação, que ela seja construída com base naquilo que o filósofo escreveu e não naquilo que se acredita que ele tenha escrito. Existencialismo e liberdade A consciência se purificou, ela é clara como um grande vento, nada mais há nela, salvo um movimento para se escapar, um resvalamento para fora de si; se, ainda que impossível, vocês entrassem “em” uma consciência, seriam tomados por um turbilhão e lançados para fora, próximos a árvore, em plena poeira, pois a consciência não tem “dentro”; ela não é senão o fora de si mesma e é essa fuga absoluta, essa recusa de ser substância que a constituem como uma consciência. Sartre (Uma idéia fundamental da fenomenologia de Husserl). Falar em existencialismo requer que nos voltemos para a história da Europa, que viveu muito de perto os efeitos das duas grandes guerras, em especial a segunda. Terminado o conflito, em 1945, em meio aos destroços e perdas, surge o que se convencionou chamar a “moda existencialista”. Era natural que após a experiência da guerra as BENHAMIDA, K. O Existencialismo de Sartre e a Educação: a falta de fundamentação para as relações humanas. Educational Theory, Illinois (EUA), n. 23, p. 230-239, citado por BURSTOW, B. The Sartre’s philosophy as foundation of the education. Tradução Newton Ramos-de-Oliveira. Educação e Sociedade, Campinas: ano 21, n. 70, abr. 2000. Original: Journal of Philosophy of Education, n. 2, v. 17, 1983, p. 171-185. 2 178 Luciano Donizetti da Silva pessoas estivessem inconformadas e pessimistas com relação ao futuro; e é nesse panorama que Sartre escreve O Existencialismo é um humanismo, objetivando defendê-lo das críticas rasteiras das quais a teoria era vítima (pessimista, quietista, não solidária, etc.). Não é de espantar que, logo no início do texto, Sartre afirme que “A maior parte das pessoas que utilizam este termo ficaria bem embaraçada se o quisesse justificar”.3 Segundo Sartre, pode-se falar que um pintor ou um músico é existencialista e, segundo a “moda”, isso apenas significaria uma “postura” ante a vida – postura invariavelmente pessimista. Mas, nos lembra ele, o Existencialismo é uma filosofia e, como tal, merece um pouco mais de atenção. Não é novidade, uma das expressões mais utilizadas (nem sempre com propriedade) para explicar o existencialismo é a seguinte: “A existência precede a essência”. Sartre pergunta se aqueles que fazem uso dessa expressão compreendem “exatamente” qual seja seu sentido. E responde que, não raro, a incompreensão é tamanha que faz com que sejam cometidas as injustiças com respeito ao pensamento existencialista. Assim, “Que significa aqui dizer que a existência precede a essência? Significa que o homem primeiramente existe, se descobre, surge no mundo; e que só depois se define”.4 Explicando melhor, poderíamos perguntar qual é a essência de um objeto qualquer – e determinaríamos, com base na técnica para fazê-lo e no objetivo para o qual ele é feito, sua essência. Porém, o que responder sobre a essência do homem? Que ele é um “animal racional”? Que ele é “um animal político”? Que ele é uma “alma à imagem e semelhança de Deus que, todavia, está presa num corpo”? Qual dessas respostas daria conta da singularidade de cada um dos homens? Nenhuma delas é claro! Porém, como Sartre exemplifica, se perguntarmos sobre a essência de um livro, há uma receita para fazê-lo (escrever, editar, imprimir, publicar, ler). Esse é, em resumo, o que significa dizer que, no homem, a existência precede a essência; é também 3 SARTRE, J-P. O Existencialismo é um humanismo. Tradução de Vergílio Ferreira. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 4. (Coleção Os Pensadores, v. Sartre). 4 Idem, ibidem, p. 6. Existencialismo e educação 179 a origem do termo existencialismo. Mas há ainda uma possibilidade: e se Deus for considerado o artífice que “faz” o homem, comportando assim a essência humana? Sartre se adianta em afirmar-se ateu, e uma vez que a noção de Deus seja excluída, estamos de posse do sentido mais geral do existencialismo sartriano: Deus não faz o homem à sua imagem e semelhança, do que decorre que o homem simplesmente existe, tendo como sua essência aquilo que ele fizer dele mesmo. Chegamos assim ao núcleo do problema, afinal, uma vez que o homem não tem uma essência pré-determinada, mas “se escolhe” ao longo de sua vida, ele é livre. Noutros termos, o homem é “essencialmente livre”. Há ainda uma outra expressão, também bastante popular, utilizada para explicar a essência libertária da filosofia de Sartre: “O homem está condenado a ser livre”. Parafraseando o filósofo, estou certo que a maioria das pessoas que utilizam tal expressão se sentiriam bastante desconcertadas se tentassem explicar seu sentido.O mesmo pode ser dito da expressão utilizada por Garcin na peça Huis Clos, também bastante popular: “O inferno são os outros”; essa, por sua vez, é largamente utilizada para se referir à impossibilidade de solidarização entre os homens, uma das conclusões mais difundidas e equivocadas da obra de Sartre. Isso se deve, em parte, à popularidade que o filósofo angariou com suas obras literárias e suas peças de teatro; mas, infelizmente, é também devido à pouca seriedade com que a academia trata seu pensamento. O uso fácil e simplório do pensamento de Sartre tem sua origem dentre os filósofos, se espalha para as demais áreas do conhecimento e chega, inclusive, ao senso comum, onde tais equívocos seriam aceitáveis. As razões para tal fenômeno, além da notória popularidade que o filósofo alcançou com sua arte, têm uma origem comum: a dificuldade, profundidade e extensão de sua teoria. Em suma, Sartre iniciou seu pensamento em 1933, quando foi para Berlim estudar a fenomenologia de Husserl e, pode-se dizer, apenas parou em 1980, com sua morte. São, portanto, quarenta e sete anos de intenso trabalho 180 Luciano Donizetti da Silva intelectual que tem, além de textos técnicos, peças de teatro, romances, entrevistas, ensaios, cartas, roteiros para filmes, entre outros. Há ainda as intervenções políticas que, por si só, justificariam um estudo. Assim sendo, espero apresentar de forma sucinta, mas fiel, sua teoria da liberdade e as possíveis implicações para que ela fundamente uma pedagogia. O primeiro texto filosófico de Sartre é de 1934, ano que o filósofo passou em Berlim estudando a Fenomenologia de Husserl. Segundo ele, era preciso um pensamento que fizesse frente à filosofia idealista (de cunho hegeliano e neo-kantiano) que era então disseminada na França. E foi na Alemanha que Sartre conheceu a noção de “intencionalidade da consciência”, segundo a qual toda consciência é consciência de alguma coisa; noutros termos, a consciência “intenciona” objetos diferentes dela. Mas, quais as conseqüências de tal descoberta? Sartre utiliza o conceito de intencionalidade da consciência para fazer frente ao psicologismo francês, em especial àquilo que esse considerava os “conteúdos da consciência”. Ao afirmar que toda consciência é consciência de algo que não é ela, Sartre está dizendo que a consciência é “vazia”, que não pode ser determinada por nenhum objeto e, nem por ela mesma.5 A consciência não é determinada por nada, uma vez que ela “se dirige” livremente para onde quer que ela queira. É por essa razão que o primeiro texto filosófico de Sartre é uma crítica à noção de conteúdos de consciência, principalmente à crença de que pelas sensações pode-se constituir a imagem de um objeto na consciência.6 Expliquemo-nos: a concepção tradicional de sensação, tal qual o senso comum, afirma que um determinado objeto com o qual entramos em contato pode ser “revivido” na consciência, ainda que tal objeto esteja ausente. Trata-se da “sensação remanescente” e, desse modo (já que não se está em face do objeto mesmo) ele se formaria na consciência. Ora, para Sartre, a intencionalidade mostra o erro de tal concepção, e a urgência de libertar a consciência de tais 5 SARTRE, J-P. Une Idée Fondamentale de la Phénoménologie de Husserl: L’ Intentionnalite. Situations I. Paris: Gallimard, 1947 6 SARTE, J-P. La transcendance de l’ego: esquisse d’ une description phénoménologique. Paris: Recherches Philosophiques, 1937. Existencialismo e educação 181 conteúdos. Trata-se de mostrar o erro comum aos psicólogos de afirmar que existe um aparato psíquico e que tal aparato determina o indivíduo em suas escolhas cotidianas (tais como o Ego, Superego, Id, etc.). Desse modo, a consciência poderia ser comparada a uma “caixa” que processa sensações, colocando em risco sua espontaneidade e, pior, sua liberdade. O resultado da noção de intencionalidade da consciência é que todo objeto, por princípio, está fora da consciência, está no mundo. O mesmo se aplica às qualidades secundárias de cada objeto, tais como cor, forma: todas elas pertencem ao objeto e, como tal, são transcendentes. Entretanto, para aqueles que possam pensar que essa é a razão da filosofia de Sartre ser identificada à liberdade, é bom dizer que esse é apenas o primeiro passo. Uma vez que Sartre purificou o campo transcendental de modo absoluto (a consciência é “intenção” do transcendente), é preciso agora explicar como essa consciência, purificada, se relaciona com o mundo. E note-se que se trata de uma tarefa ingrata, afinal existe uma gama de pontos intermediários entre a consciência intencional e o objeto físico; seria simples mostrar que um cinzeiro, por exemplo, não faz parte da consciência (ele está no mundo), mas como explicar que a lembrança que posso ter, nesse exato momento, de minha mãe, não está em minha consciência, mas é transcendente? Pior, como explicar que eu possa imaginar um centauro sem fazer referência ao cavalo e ao homem, objetos do mundo que eu conheço, sem concluir que eu fiz a “soma” dos dois em minha consciência? Esses problemas ocuparam um breve período do pensamento de Sartre, e foram tratados em duas obras que antecedem O Ser e o Nada. Em A Imaginação Sartre mostra as falhas da concepção clássica da imagem; em O Imaginário o filósofo apresenta sua resposta para as questões que ele mesmo colocou.7 Trata-se de um trabalho de fôlego acompanhar todos os meandros da teoria desenvolvida por Sartre, mas em resumo, o que ele faz é mostrar que existem diferentes 7 A Imaginação e O Imaginário, cf. referências bibliográficas. 182 Luciano Donizetti da Silva níveis de relação com o mundo, desde a intenção de um objeto físico (que é visto) até as imagens que são formadas a partir, por exemplo, de uma mancha num muro. Assim, trata-se da ação da consciência que é diametralmente oposta à proximidade do analogon do objeto mesmo, ou seja, quando intenciona um objeto físico, a consciência contribui o menos possível; porém, quando se trata de uma mancha num muro, a partir da qual é possível intencionar o rosto de Jesus, por exemplo, a consciência colabora muito. Seja como for, o filósofo mostra que é um erro considerar que a consciência possa ser entendida como uma caixa que faz a adição de imagens que, previamente, estariam armazenadas dentro dela. Tanto a translucidez da consciência quanto a liberdade são mantidas. Manter a consciência em sua absoluta espontaneidade e pureza, que por certo, são a base para considerá-la livre, não é suficiente. A filosofia de Sartre, após esse percurso, poderia facilmente ser identificada ao idealismo, uma vez que passa a impressão de que o mundo pode ser reduzido à imagem que dele é feita. Mesmo que Sartre tenha mostrado que a consciência é livre em relação ao objeto, como explicar que eu possa nesse exato momento intencionar essa folha em minha frente e, no momento seguinte, de olhos fechados, intencionar a mesma folha? Não parece que na mesma medida em que a consciência ganhou em translucidez, o mundo perdeu em realidade? Que diferença há entre a árvore, “na beira da estrada, empoeirada, rugosa”, e a árvore que imagino? Apenas a intencionalidade da consciência não pode ser suficiente, uma vez que seu destino certo é o idealismo. Sartre precisará resolver essa questão. E é justamente com esse intuito que o filósofo, já no final de O Imaginário, se aproxima da filosofia de Heidegger, em especial do conceito de situação. A esse respeito é preciso lembrar que o que levou Sartre a aproximar-se da fenomenologia foi que ela apresentava a possibilidade de superar a antinomia do realismo e do idealismo.8 A 8 BEAUVOIR, S. A força da Idade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 138 e 188. Existencialismo e educação 183 intencionalidade permite libertar a consciência de quaisquer conteúdos, sejam provenientes da sensibilidade ou do senso íntimo. Está assim esboçado o primeiro momento da filosofia de Sartre que, a partir da fenomenologia de Husserl, forja um argumento que “coloca a consciência em relação direta com o objeto”.9 O Imaginário (1940) distingue a matéria da percepção e da imaginação, passo fundamental para diferenciar o “real” e o “irreal”, primeira alternativa de superar o idealismo ao qual a “redução” levava. Para isso, Sartre recusa a primazia do conhecimento – o juízo é posterior à existência. Assim ele “reintegra” o homem ao mundo, já que “ser é”, e não “é pensado”. O problema da relação com o mundo regride até sua gênese, tem seu horizonte levado ao âmbito pré-reflexivo – trata-se do “homem-nomundo”, ou seja, a experiência filosófica passa a ter seu domínio naquilo que a “antecede”, na “situação” (mundo e consciência sinteticamente unidos) anterior à cisão entre sujeito e objeto. A “união sintética do homem com o mundo” é, para Sartre, o campo fenomenológico por excelência; a relação da consciência com o transcendente é, portanto, o “concreto”.10 Com o trabalho de depuração do campo transcendental, Sartre mostra a consciência como “nada de ser” (néant) e, por isso, em relação sintética com o mundo. Ora, isso requer por sua vez explicar a relação ontológica entre consciência e mundo. O problema de teoria do conhecimento, que parecia estar na origem da antinomia do realismo e O conhecimento ou pura “representação” é apenas uma das formas possíveis de minha consciência “desta” árvore. Posso amá-la, temê-la, odiá-la, e esse ultrapassamento da consciência por si mesma, que se chama “intencionalidade”, se encontra no temor, no ódio e no amor. [...] É uma “propriedade” da máscara japonesa ser terrível, uma inesgotável, irredutível propriedade que constitui sua natureza mesma – e não a soma de nossas reações subjetivas a um pedaço de madeira esculpida. In: SARTRE, op. cit., p. 34. 10 Em O Ser e o Nada (Capítulo I) Sartre passa sem prévio aviso de temas “ontológicos”, propriamente ditos, para a análise de condutas humanas e vice-versa. Em alguns casos, a conduta é apenas a demonstração, no mundo, de teses ontológicas; noutros, a conclusão ontológica é retirada da análise das condutas. “A própria investigação nos oferece a conduta desejada: o homem que eu sou”; “se meu carro sofre uma pane, interrogarei o carburador, as velas, etc; [...]”; “Sem dúvida, o bar, por si mesmo, com seus clientes, suas mesas, bancos, copos, sua luz, a atmosfera esfumaçada e ruídos de vozes, bandejas entrechocando-se e passos, constitui uma plenitude de ser”. In: SARTRE, J-P. L’ Être et le Néant – Essai d’ ontologie phénoménologique. Paris: Gallimard, 1943, p. 38-44. 9 184 Luciano Donizetti da Silva do idealismo, mostra-se apenas o escopo da questão: na verdade tratase de uma “relação de ser”. No âmbito fenomênico não vai além de uma obviedade mostrar que só existe mundo porque há consciência e que a consciência existe em relação ao mundo; pior, obviedade idealista.11 Cabe levar esse problema para seu terreno originário e, ali, apresentar a solução cabível. Passamos assim de vez a um problema muito mais sério e mais amplo, qual seja, mostrar que a consciência depurada se relaciona com o mundo concreto, e não com imagens (ou com um espectro de mundo); trata-se da ontologia fenomenológica, trata-se de O Ser e o Nada. A resposta para equacionar a liberdade humana e a noção de situação está em A Liberdade Cartesiana (1945): o homem é absolutamente livre, mesmo que sua potência seja limitada e variável – ser homem é ser “liberdade”.12 Sendo o homem tão livre quanto Deus, a liberdade humana retoma seu caráter produtivo, não só para o erro, mas também para a verdade, as essências e seu encadeamento. A liberdade é “o fundamento do real, e a necessidade rigorosa que aparece na ordem das verdades é, ela mesma, sustentada pela contingência absoluta de um ato criador”.13 Assim sendo, trata-se apenas de identificar vontade e entendimento humanos (assim como Sartre entende que ocorre com o Deus cartesiano) e, uma vez que Deus é tirado de jogo, dizer, pura e simplesmente, que é o homem quem cria o mundo? Não. O que Sartre está buscando é a possibilidade de explicar a “finitude” sem fazer referência ao “infinito”, ou seja, explicar o mundo sem que para isso seja necessária a noção de Deus.14 Quando considerada no âmbito especificamente humano, percebe-se que é pela liberdade que há mundo. É pela negação “livre” BORNHEIM, G. A. Sartre – Metafísica e Existencialismo. São Paulo: Perspectiva, 1971, p. 170. 12 SARTRE, J-P. La Liberté Cartésienne in Situations I. Paris: Gallimard, 1947, p. 296. 13 Idem, ibidem, p. 306. 14 Sartre está procurando na liberdade divina, hipostasiada por Descartes em Deus, os “desdobramentos lógicos” da liberdade humana, ou, da “liberdade” pura e simples. Diretamente, Sartre pretende mostrar que é pelo homem que o mundo (com todo o encadeamento de essências) vem ao ser, ou seja, é pela negação que se estabelece uma ordem de fenômenos denominada “mundo”. 11 Existencialismo e educação 185 do homem que é engendrado o sistema de verdades, que em geral é relegada a Deus. A noção sartriana da liberdade humana é, então, aquela pela qual o homem é fundador das essências e de seu encadeamento, constituindo assim o “real” (sem a noção de Deus, obviamente). É pela liberdade irrestrita e absoluta que o real se constitui, liberdade essa que é negativa (o homem pode dizer “não” ao ser) e ao mesmo tempo produtora, afinal, é por essa livre “negação” que o mundo surge. A liberdade, enquanto “ato metafísico absoluto” é o fundamento do ser, e o homem enquanto ser que “é liberdade”, torna-se o principal agente constituidor do mundo. A diferença é que se o Deus cartesiano pode livre e positivamente criar do nada, o homem cria pela “negação do ser”. Dessa feita, sendo a “produção” do mundo resultante da negação, a contradição entre liberdade absoluta e situação não é mais que aparente. Estar em situação, ao invés de um limite da liberdade torna-se um pressuposto para que a liberdade seja exercida; mais, estar em situação é “exercer o ser livre”. Uma vez que não existe uma ordem de verdades pré-estabelecida, e é pela negação do ser que tal ordem vem ao mundo, o homem pode estar em situação e, ainda assim, ser absolutamente livre. A consciência não encontra na situação um limitativo de sua liberdade, mas, ao contrário, “condições” para exercêla. É por um ato humano absolutamente livre que o mundo vem ao ser, o que não apenas supera a aparente contradição como, e principalmente, faz com que o mundo perca seu caráter de dado a priori. Ao mostrar o aspecto produtivo da negação (que além de permitir que o homem se refugie no nada, faz com que o mundo exista), Sartre pode perfeitamente manter sob uma mesma rubrica a noção de situação sem que isso signifique uma limitação da espontaneidade da consciência. Em O Ser e o Nada, a liberdade é identificada à negação, ou seja, ser homem é “negar o ser”; é também pela negação que Sartre constitui sua ontologia ou, melhor dizendo, uma vez tendo encontrado dois reinos do ser incapazes de se comunicarem (ser-para-si e ser-emsi), é pela negação que Sartre mostrará que essa ruptura do ser é devida 186 Luciano Donizetti da Silva a uma má colocação do problema. Em resumo, a análise provisória do fenômeno de ser empreendida na introdução de O Ser e o Nada redunda numa dualidade entre “em-si” e “para-si”; o “ser-em-si” é absoluto, no sentido que não pode senão ser ou, numa palavra, o emsi é; o “ser-para-si” é o que não é e não é o que é, ou seja, não há coincidência em seu ser. Com isso, o que Sartre conseguiu foi mostrar “dois seres separados”, uma vez que da maneira como foram descritos, esses estão determinados exteriormente e só poderiam ser reunidos por um ato consciente e externo. Porém, Sartre não entende a negação no caso da “consciência que somos” como uma negação externa ao ser: o para-si é, nalguma medida, em-si; a consciência é o ser que nadifica o nada em seu ser: ela é “não”. Originariamente, a consciência “nega” o ser, e não o faz estando “fora” do ser (o espaço é uma categoria que só pode advir dessa negação originária), mas a partir do ser mesmo que ela “é”. Essa negação fundante é a origem do não-ser, do nada, da falta que “infesta” o ser a partir do ser mesmo e faz com que haja a ruptura original, ruptura que não é dualidade (a consciência é ausência de dimensão): Todavia, minhas reflexões me levaram principalmente a encarar o caso que a consciência não era o que ela era, isto é, quando a negação se manifesta na homogeneidade de uma única e mesma existência e onde o negado retorna por si mesmo àquilo que é negado, uma vez que é um e o mesmo ser (SARTRE, 1992, p. 217). Nesse sentido, “em fusão com o mundo, enquanto é, a consciência escapa ao mundo e se separa dele na medida em que ela ‘não é’”.15 Esse caráter duplo da consciência, que não se identifica com o ser nem pode superá-lo, é resultado do surgimento da consciência, que “nasce” do ser negando-o e não é mais que essa negação; se, por um lado, a negação fosse causa de separação “efetiva” entre consciência e ser, não haveria mais o que ser dito, afinal a consciência seria “nada absoluto”; por outro lado, se a consciência coincidisse com o ser, SARTRE, J-P. Diário de uma guerra estranha. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992, p. 223. 15 Existencialismo e educação 187 também nada poderia ser dito, uma vez que esse seria o domínio de uma totalidade absoluta e indizível. Assim, mundo para Sartre não é esse “resultado”, tanto que não há mundo sem para-si, assim como não poderia haver para-si sem em-si. Essa relação “é” o mundo, que engloba ambos pela negação, no sentido de que o para-si nega o emsi sem possibilidade de superá-lo, nem de dele se desgarrar. Dizer que o para-si cria o mundo é dizer que ele nega o ser. A “situação” é para Sartre a “livre necessidade”, que o para-si encara em seu ser, de negar o em-si livremente e não poder, ainda que o negue “eternamente”, superá-lo; por isso o homem está condenado a ser livre. Ser-para-si é negar-se e negar o em-si, e as duas únicas possibilidades de superação interrompem o projeto de ser do para-si, levando-o à inexistência (nada absoluto) ou a ser engolido pela totalidade (tornar-se em-si).16 A situação é, desse modo, essencial para que haja liberdade – sem ela o para-si estaria descolado do ser, caso não se aclare o papel produtor da negatividade, o homem livre é apenas um “não”, “sem corpo”, “sem lembrança”, “sem saber”, “sem ninguém”. Além de restituir a concretude do mundo, a noção de situação devolve ao homem a sua co-pertença ao ser. Assim, após esse resumo de uma parte da filosofia de Sartre, podemos entender mais claramente porque ser homem é ser liberdade. Mas, já falamos bastante sobre isso – cumpre agora tentar responder se tal filosofia pode fundamentar a educação ou, ao menos, contribuir para a constituição de um projeto educacional que prime pela liberdade humana. Educação e liberdade No sistema de pensamento de Sartre, a educação é entendida apenas como meio de doutrinação da pior modalidade. O indivíduo, por imposição legal, é obrigado a freqüentar a escola; é submetido a um currículo e a uma disciplina; é forçado a fazer exames, etc. Do ponto de vista sartriano, tais práticas significam uma violência sobre a verdadeira liberdade e existência do indivíduo. Benhamida (O existencialismo de Sartre e a educação). 16 SARTRE, op. cit., p. 259. 188 Luciano Donizetti da Silva Conforme vimos, o existencialismo leva sim à conclusão de que o homem é livre – mas há que se mediar essa liberdade, afinal a continuidade da obra do filósofo não autoriza a simplificação grosseira de que ser livre é fazer o que se quer. Por isso, alguns teóricos buscaram em Sartre a possibilidade de fundamentar uma educação “progressista”; é o caso de Geoge Kneller e Van Cleve Morris, ambos norteamericanos, e suas pesquisas que datam do final da década de sessenta e início dos anos setenta.17 Também é esse o tema do artigo de Bonnie Burstow, professora do Instituto para Estudos em Educação, da Universidade de Toronto (Canadá), além de trabalhos desenvolvidos no Brasil. 18 Mas seja como for, não faremos uma discussão pormenorizada de cada uma dessas teorias, afinal o teor “positivo” apresentado pelos autores é muito parecido entre si e, também, parecido com a tese que vou apresentar; assim, todos estão de algum modo presentes nesse ensaio. O que há de maior interesse é justamente a crítica à pretensão de utilizar a filosofia de Sartre para fundamentar a educação; nesse sentido, nosso trabalho será em muito facilitado pelo artigo da Drª Bonnie Burstow, haja vista que ela discute as objeções de Khemais Benhamida a esse respeito. Benhamida afirma que educação e existencialismo são antagônicos, e tem razão, a julgar por aquilo que Sartre escreve na segunda metade de O Ser e o Nada. Na introdução de sua ontologia, o filósofo define o ser como “em-si”, “si-mesmo”, “fechado em si”; nos dois capítulos seguintes ele mostra o erro de se considerar que a consciência, por ser livre, não se relaciona com esse ser, e mostra que há sim relação negativa entre o para-si e o em-si. Já exploramos bastante esse tema, mas não nos referimos ao capítulo seguinte, “O Ser-paraoutro”, no qual o filósofo explica as relações humanas.19 Até o momento trata-se da relação de uma consciência com o mundo, ou seja, trata-se de apenas um indivíduo. Mas como se dá tal relação quando surge um Existentialism and education e Existentialism in education, cf. referências bibliográficas. BURSTOW, B. The Sartre’s philosophy as foundation of the education, p. 171-185. 19 SARTRE, op. cit., p. 272. 17 18 Existencialismo e educação 189 Outro no horizonte do para-si? Até agora a relação entre a consciência e o objeto foi explicada a partir da negação; mas há que se notar que o homem nega o objeto (minha negação faz com que um cinzeiro tome sua forma “cinzeiro” pela exclusão da mesa, do ar que o rodeia, etc.) sem que o objeto o negue. A relação negativa entre o homem e o mundo tem uma única via; mas como seria o encontro entre dois “para-sis”, já que ambos se relacionam com o transcendente de modo negativo? Está aí o sentido da frase já citada de Huis-Clos, afinal, uma relação em que o outro me negue e que eu o negue só pode se caracterizar como infernal. O resultado dessa estrutura relacional é que a solidariedade entre os homens se torna nula, na medida em que sua base é o conflito. Mais do que simplesmente ser um limite para minha liberdade, o Outro tem como objetivo primordial tornar-me coisa, objeto entre os demais (caneta, cinzeiro, etc.). Essa questão gerou críticas de âmbito filosófico muito mais sérias do que essas de Benhamida;20 mas, por hora, concordemos com ele, e aceitemos que seria impensável buscar fundamentar uma pedagogia com base numa filosofia que redunda num mundo de “almas penadas”, onde todos os homens são medusas que buscam transformar seu próximo em uma estátua de pedra. O panorama se torna ainda mais aterrador se levarmos em conta a maneira pela qual Benhamida entende o processo educativo: o professor deve colaborar com o aluno para que ele se desenvolva. Como haver colaboração se o professor é um limite para a liberdade do aluno ao mesmo tempo em que o aluno busca apossarse da liberdade que é o professor? Isso nos leva imediatamente a uma pergunta: podemos concordar com Benhamida no que concerne ao conceito de educação? É certo que, conforme ele define em Educational Theory, a educação tem por base o relacionamento entre o professor e o aluno; mas não é possível perceber nessa compreensão de educação um certo ranço conservador, na medida em que o professor “auxilia” o aluno? Seria 20 É o caso das críticas de Merleau-ponty, Gerd Bornheim, Marilena Chauí, dentre outros. 190 Luciano Donizetti da Silva algum exagero substituir o termo auxiliar por ensinar, no sentido de que o professor traz a verdade e o aluno a acata? Ainda assim, concedemos que ele está certo que partindo da relação entre os “parasis”, tal qual O Ser e o Nada, não é possível ir muito longe, afinal, para que haja tal relação é preciso a concordância entre os sujeitos do processo educacional; mas como pensar tal situação se a filosofia de Sartre se pauta pela impossibilidade de relação harmoniosa entre os seres humanos? Se para Sartre o homem “é liberdade” e o Outro busca aprisionar seu ser, ou seja, a presença do Outro coloca em perigo a liberdade de cada um, não há nem mesmo possibilidade de falar em educação. Mas se concordamos com Benhamida que nesse panorama seria forçoso pensar um processo educativo, nos sentimos na obrigação de esclarecer que o pensamento de Sartre não acaba em 1943, com O Ser e o Nada. É preciso lembrar que a situação extremamente difícil na qual se encontra o “para-si”, no final da ontologia é retomada na Crítica da Razão Dialética, e que ali Sartre mostra, não só que é possível a cooperação entre os homens, mas também como ela se fundamenta justamente na liberdade individual.21 A impressão passada por Benhamida é a de que ele não travou conhecimento com esse texto; ou que ele não leva em conta a necessidade de distinguir planos específicos do conhecimento, sendo que a ontologia, à qual ele se refere, se resume exclusivamente ao primeiro deles. Sartre parte do Ser, uno, indiviso – o mais simples que a capacidade humana pode pensar; do ser chega ao “para-si”, mais complexo e fundamento do modo de existir do homem; desse, a situação se complica mais um pouco, com as análises do “para-outro”, que fundamenta as relações sociais. Agora, partindo do “para-si” saltar para a sociedade constituída e perguntar sobre a relação desses fundamentos com a educação “atual” é, sem sombra de dúvida, desconsiderar toda metodologia de pesquisa ou, o que dá no mesmo, ignorar a obra de Sartre. SARTRE, J-P. Crítica da razão dialética. Tradução de Guilherme João de Fritas Teixeira. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. p. 259. 21 Existencialismo e educação 191 Se fosse tomado o devido cuidado, Benhamida veria que a obra de Sartre não ficou estagnada no “para-outro”, que ele explora e tira suas conclusões. Na Crítica da razão dialética, Sartre mostra que os fundamentos de sua ontologia estão presentes na sociedade constituída; porém, houve um processo que exigiu que os homens cedessem sua liberdade e que, fazendo uso dessas liberdades, constituiram-se macroestruturas, e que se formos falar de fundamentar a educação, será preciso levar em conta tal processo. Em resumo, Sartre afirma que o homem é essencialmente livre, mas que em sociedade tal liberdade foi alienada, criando a bizarra situação na qual o indivíduo sozinho, não pode mais fazer uso de sua liberdade, uma vez que ela está esmagada pelas estruturas sociais que foram criadas. Se essencialmente a relação entre os “para-sis” se dá enviesada, no sentido de que o objetivo é apossarse da liberdade alheia, em sociedade, nem mesmo dessa liberdade essencial os homens usufruem, haja vista que ela foi cooptada por uma estrutura mais ampla que ele. No entanto, a revolução, momento em que um grupo de homens recupera suas liberdades e se engajam livremente em um projeto comum de mudança é sempre possível.22 Enfim, se Benhamida tivesse levado sua questão até o fim (ou mesmo lido O Ser e o Nada com mais cuidado) veria que há sim na filosofia de Sartre possibilidade de agremiação humana. Mais do que isso, veria que na ontologia tal possibilidade já estava presente no conceito de reciprocidade – e o problema seria de outra ordem. A crítica que ele faz, qual seja, que não pode haver colaboração humana e por isso não pode haver processo educativo, cai por terra; o problema passaria a ser a maneira pela qual o professor reconheceria o aluno como um “ser livre” e, assim, de que modo seria possível haver educação sem que o professor limite tal liberdade. Noutras palavras, o que Benhamida oblitera é que, em se tratando da ontologia de Sartre, é possível sim que o professor “colabore” com o aluno, desde que essa colaboração tenha como objetivo essencial reconhecer o aluno como “uma liberdade”, e não como um ser ignorante que deve ser “auxiliado”. 22 Crítica da Razão Dialética, livro II, nº 1: o Grupo em Fusão, p. 450 ss. 192 Luciano Donizetti da Silva Mesmo que a crítica de Benhamida possa ser colocada em xeque justo em seu fundamento, vejamos sua continuidade: ainda segundo ele a filosofia de Sartre mostra que cada indivíduo se escolhe a partir de seu projeto. Ora, em O Ser e o Nada, o projeto do “para-si” é coincidir com seu ser, ao mesmo tempo em que continua consciente de si. Em vista disso, na medida em que dois projetos jamais coincidem, a “única relação possível entre dois indivíduos é o conflito”.23 A primeira tentação que temos, e por isso já nos referimos às incompreensões e simplificações do pensamento de Sartre, é de concordar com isso. Mas, de novo é preciso lembrar que ele está confundindo o plano ontológico e o plano existencial. Há sim concordância de projetos existenciais, pois, de outro modo, como poderia ter ocorrido a Revolução Francesa? Se milhares de liberdades não tivessem concordado que aquela situação era inaceitável e não tivessem se engajado nessa causa, livremente e sob pena de perder a vida, não teríamos jamais a “queda da Bastilha”. Além disso, no plano existencial, é perfeitamente possível que, uma vez que a liberdade de todos seja respeitada, haja um projeto educacional que sirva tanto ao aluno quanto ao professor. E se isso envolver mais liberdades (pais, instituição, MEC, etc.) tanto melhor! Porém, se o processo for pensado de cima para baixo, de modo centralizador e autoritário, não há mesmo qualquer possibilidade de equacionar a liberdade e a educação. Isso reforça nossa suspeita de conservadorismo de Benhamida, principalmente quando se nota as conclusões que ele tira desse engodo: uma vez que não há comunhão entre os homens, não pode haver compreensão e assim, é impossível haver critérios, sejam objetivos, sejam subjetivos, para o processo de aprendizagem. Noutras palavras, o professor não teria qualquer meio para se comunicar com o aluno e “auxiliá-lo”; e ele ainda vai mais longe, afinal, ainda que houvesse possibilidade de comunicação entre o professor e o aluno, Sartre afirma que não há como determinar o que é o Bem e o que é Mal e, desse modo, não haveria parâmetros 23 BENHAMIDA apud. BURSTOW, p. 179. Existencialismo e educação 193 para ensinar. Cada indivíduo, livremente, escolheria seus valores – não há Moral comum, não há, enfim, sociedade. Com respeito a haver ou não sociedade, já mostramos que a continuidade da obra de Sartre contradiz a interpretação de Benhamida. E mais uma vez podemos concordar com ele que a filosofia de Sartre não permite que haja uma moral que tenha sua base transcendente e que seja válida para todos e em todas as situações. Porém, isso não se deve à diferença dos projetos que cada homem estabelece para si, mas sim à inexistência, para Sartre, de uma entidade superior ao homem que possa estabelecer previamente os valores aos quais todos devam se aderir. Já vimos isso com respeito ao texto A liberdade Cartesiana (não há Deus); mas vamos explorar um pouco mais essa idéia. Para isso recorramos a um texto de 1952, publicado entre O Ser e o Nada, que Benhamida critica, e Crítica da Razão Dialética que, parece, ele desconhece. Em Saint Genet, ator e mártir, Sartre analisa a situação real de um indivíduo, Genet, que é livre e ainda assim se vê coagido pela moral maniqueísta da burguesia do início do século XX.24 Essa obra é muito mais rica do que o único aspecto que iremos aqui abordar, mas nela Sartre se refere à moral criada pelos proprietários de terra, que definem o ser pelo ter; Genet é adotado por uma dessas famílias e, porque não tem para ser, deliberadamente rouba. Um dado momento, quando é pego roubando, ele é imediatamente condenado por todos – aqueles mesmos que definiram o ser pelo ter e que lhe negaram propriedades, afinal, Genet era órfão e foi adotado por proprietários. Ele viveria como um agregado, mas jamais receberia qualquer propriedade por herança. O que podemos tirar desse breve e esquemático exemplo? Que uma ética humana comum é impossível, como diz Benhamida, ou que qualquer ética que não considere todos os homens como “liberdades que merecem ser respeitadas” é condenável? Sartre não nega que possa haver valores sociais – esse é apenas um dos exemplos que mostra isso. Mas ele faz ver que não há, 24 SARTRE, J-P. Saint Genet, comedien et martyr. Paris: Gallimard, 1952 194 Luciano Donizetti da Silva isso sim, uma moral que esteja inscrita na natureza ou que seja diretamente ditada por um ser superior que regeria a vida dos homens. Ao contrário, Sartre mostra que toda moral tem sua origem no homem, nos valores que determinada sociedade cria para sua manutenção – Sartre mostra que esses valores são hipostasiados em Deus (ou na “lei”) justamente como meio de forçar todos os homens, os que se beneficiam e os que sofrem com isso, a aceitá-la. De outro modo, como explicar o “direito divino dos reis” na Idade Média, e o “direito divino da propriedade e do capital” nos dias de hoje? Será que todos os homens concordam com isso, ou uma minoria cria tais valores e os impõe aos demais? A tomarmos pelas manifestações contrárias aos encontros do G-8 ou pela revolta generalizada contra o processo de globalização presente em todos os países do mundo, podemos identificar claramente essa crítica: a liberdade da maioria está alienada aos interesses de alguns, ainda que a todos sejam pregadas as verdades do neoliberalismo. Mas Benhamida encontra nessa crítica apenas uma razão para fundamentar sua tese de que o pensamento sartriano não condiz com nenhuma pedagogia. Assim, vamos adiante e tentemos um contra argumento: se para ele o processo se resume ao auxílio que o professor deve propiciar ao aluno, poderíamos dizer com ele (conforme Kneller e Morris) que desse modo o professor poderia ajudar o aluno “a ser livre”. A tarefa do professor seria, portanto, auxiliar o aluno a entender que ele é essencialmente livre, e que sua situação se deve à força das macro-estruturas criadas pelo homem (elas não são o Bem, nem são eternas), e que cabe a ele modificá-la ou aceitá-la. Mas segundo Benhamida, o indivíduo deve escolher seu ser e a “ajuda” seria uma imposição que minimizaria a liberdade; o aluno agiria de má-fé, afinal ele estaria aceitando encenar um papel que, a princípio, contraria seu ser. Nesse caso hipotético, seria mesmo assim? Não nos parece. Primeiro, e por isso se trata de uma situação hipotética, haveria reciprocidade pela qual o professor reconheceria o aluno como liberdade. Não se trata de encenar nenhum papel se o Existencialismo e educação 195 indivíduo, oprimido por sua situação, tiver acesso aos meios para descobrir-se essencialmente livre e vítima daquilo que lhe é imposto; e como o caso é hipotético, poderíamos aventar a possibilidade de que, uma vez feita essa descoberta, o aluno conclua que o processo que o fez conhecer sua liberdade é impositivo. Ainda assim ele estaria livre para abandonar a escola, porém certo da outra face da moeda: na mesma medida em que o homem é livre ele é responsável. As conseqüências dessa decisão seriam imputadas unicamente a ele, não cabendo ao professor nenhuma responsabilidade; de outro lado, o professor que age segundo a “lei” é responsável por jamais trabalhar pela emancipação do aluno e, assim, não pode reclamar de ser considerado por aquele “um objeto que ensina”. Um último ponto da crítica de Benhamida nos chama atenção. Tudo o que cogitamos até agora foi pensado para a educação de homens – de pessoas adultas que de algum modo estão em plena posse de sua consciência e aptos a fazer suas próprias escolhas. Mas o que dizer da educação infantil? Nesse caso, em que a situação é hipotética, podemos argumentar que em geral o adulto escolhe se quer ou não estudar;25 mais do que isso, ele escolhe seu curso, o que garante uma margem maior de liberdade. Mas e com respeito às crianças? Benhamida não está alheio a esse pormenor e é categórico: no universo de Sartre não há crianças. Sendo assim, não haveria qualquer possibilidade, a partir de tal teoria, para falar em educação infantil. Mais uma vez o autor ficou preso apenas a O Ser e o Nada; é verdade que Sartre não tematiza especificamente a educação em nenhum de seus textos; também é verdade que a criança é escassa na ontologia e nem mesmo aparece na Crítica da razão dialética. Mas isso é razão suficiente para tal afirmação? Trata-se de uma situação hipotética que visa discutir a possibilidade ou não de utilizar a liberdade como fundamento epistemológico da educação. É claro que existem situações, especialmente financeiras, que não permitem ao aluno fazer tal escolha. Não entraremos nessa questão, mas a indicação para equacionar tal problema já foi apontada: nenhuma estruturação social ou econômica é eterna, e pode ser mudada a qualquer momento. Basta que haja o engajamento livre e consciente de um número suficiente de liberdade (grupo em fusão) para, por exemplo, no caso do Brasil, que ostenta uma das maiores desigualdades sociais do mundo, colocar por terra tal estrutura e, sob seus escombros, erigir uma outra, na qual de fato o aluno possa escolher entre estudar ou não. 25 196 Luciano Donizetti da Silva Não. Em O Ser e o Nada, Sartre afirma que cada indivíduo, antes de sua história, vive sua “proto-história”; nesse período cada um apenas lida com aquilo que encontra ao seu redor.26 Posteriormente, tem-se início sua história individual em virtude da dialética (conflito) que se dá entre a liberdade e a resistência das coisas. Apenas nesse momento o indivíduo faz sua escolha fundamental (escolha de si) e assim dá vazão a seu projeto; mas muito cedo, há que se notar, essa história começará a se ampliar, até o momento em que ela se confundirá com a história da humanidade. Como exemplo, podemos lembrar o caso de Genet que, sem bens num mundo de proprietários, decidiu roubar para ter; ao ser pego, ele assume seu “ser ladrão”. Trata-se de um desvio, não há dúvidas, mas a escolha fundamental que marca a malfadada história de Genet tem sua origem num episódio ocorrido na vida do poeta quando ele era criança. Mas Saint Genet não é o único exemplo que poderíamos utilizar para refutar essa afirmação de Benhamida.27 Há, ainda, As Palavras, livro no qual Sartre narra desde os primeiros momentos seu contato com o universo da literatura; ele era uma criança e, de modo autobiográfico, ele nos mostra como sua escolha fundamental pelas palavras se constituiu. O Idiota de Família é um outro exemplo claro de que há crianças no universo de Sartre, afinal ali ele examina a infância de Flaubert, e mostra que sua genialidade literária se deve à escolha que ele fez de si mesmo. Por fim, poderíamos citar ainda Baudelaire que, em seu primeiro capítulo, trata da infância do escritor. Assim, é uma irresponsabilidade afirmar que “no universo de Sartre não há espaço para a infância”. De modo mais comedido, poderíamos dizer que a criança não é o objeto específico de sua indagação filosófica e que a educação infantil jamais o preocupou. Porém, excluir a infância de seu pensamento já é um pouco demais. Enfim, as objeções de Benhamida a Sartre têm como fundamento a liberdade, justamente aquela que, a nosso ver, poderia contribuir no processo educativo. Essa objeção, por sua vez, se desdobra em três, 26 27 SARTRE, op. cit., p. 714. Pela ordem: As palavras, L’Idiot de la famille e Baudelaire, cf. bibliografia. Existencialismo e educação 197 quais sejam, a impossibilidade de relações humanas, o conflito presente em toda relação humana e a inexistência da infância em seu universo de pensamento. Porém ser homem é ser liberdade em situação; a facticidade do para-si não permite, de modo algum, entender a liberdade essencial como possibilidade de se fazer o que se quer, mas ao contrário, responsabiliza cada indivíduo por aquilo que ele faz “com o que fizeram dele”. Se “o fizeram” despossado numa sociedade de proprietários, ele pode superar tal situação; se “o fizeram” deficiente físico, ele deve se fazer respeitado e útil, e assim por diante. Pode-se dizer que “não é fácil” – concordo; pode-se dizer “é impossível”; discordo plenamente. Os mecanismos para uma mudança estrutural Sartre já os mostrou, e a possibilidade para qualquer mudança pessoal está na mão de cada um, fundamentada na sua irrestrita e absoluta liberdade. Ser homem é ser negação do ser; a ruptura que encontramos no mais essencial de nossa existência mostra que não há causalidade, não há determinismo psíquico ou social, não há limites físicos que possam tolher a liberdade do homem. É verdade que essa afirmação exige bom senso de quem ouve e mediação de quem diz: não é mesmo possível que alguém com as duas pernas amputadas ande “com suas pernas”; mas ela é livre para aceitar o que “fazem dela” (inútil, deficiente, dispensável) ou nadar e ganhar várias medalhas de ouro nas Paraolimpíadas. De modo ainda mais direto e realista, ela pode lutar para que os demais tornem adequadas as cidades para que ela se locomova com sua cadeira, ou ficar em casa resmungando. Tudo passa pela decisão individual – e o mais importante, também essa decisão é corroída pelo nada que o homem é, podendo mudar a cada instante. Sartre não é insano, como possa parecer quando ele fala que estamos condenados à liberdade. Existem limites fáticos para todos os homens; se por isso quisemos entender que os obstáculos que encontramos são “determinantes”, estamos de acordo com a filosofia de Sartre. É um fato que a parede não pode ser atravessada. Mas a filosofia de Sartre é ainda mais rica, afinal garante para cada indivíduo a liberdade fundamental para formular seu projeto e, desse modo, 198 Luciano Donizetti da Silva “escolher-se”. A confusão se faz porque para Sartre, a situação é condição para que sejamos livres; sem qualquer resistência jamais saberíamos se estamos vivendo ou sonhando. O problema é que do mesmo modo pelo qual se entende uma determinação (não ter pernas) como intransponível, entende-se que a sobre-determinação (inválido) também o é. Contra esse conformismo e quietismo o Existencialismo afirma que ser homem é ser liberdade, o que significa dizer que as “possibilidades”, seja de cada um, seja da humanidade, estão sempre abertas. Nossa conclusão não é novidade para ninguém: a filosofia de Sartre pode sim fundamentar epistemologicamente um projeto educacional. E o caminho para tal projeto se encontra na estrutura do “ser homem” (para-si), apresentada por Sartre. Sua filosofia nos fala de liberdade, de autenticidade e de responsabilidade. E para ser autêntico e responsável por seus atos, torna-se indispensável a incômoda presença (e ação) do Outro, muito longe da postura, essa sim pessimista, de Benhamida. Assim, deixo para o leitor e para os especialistas da área a tarefa, se isso valer a pena, de buscar as devidas respostas faltantes. Gostaria ainda de dizer que o artigo de Benhamida foi utilizado como contraponto para essa fala; quero registrar aqui que as críticas a ele dirigidas devem-se unicamente às conclusões que ele tira do pensamento de Sartre. O mais importante no que se refere ao processo educativo, ao menos se levarmos em conta o que dissemos aqui (e por isso faço essa ressalva), é buscar entender e jamais trair um pensamento, qualquer que seja ele. As conclusões a que chego se devem ao que Benhamida escreveu sobre Sartre e àquilo que Sartre efetivamente escreveu, que contraria o artigo em questão. E se for o caso de dar minha opinião, sou favorável em gênero e grau à tese de Bonnie Burstow: “defendo o uso que educadores, como Morris e Kneller, têm feito da filosofia sartriana. Convido outros a continuar esse trabalho. E sugiro que as apreensões de críticos como Benhamida podem ser deixadas de lado com toda segurança”.28 28 BURSTOW, op. cit., p. 183. Existencialismo e educação 199 EXISTENTIALISME ET ÉDUCATION – LA PHILOSOPHIE SARTRIENNE DE LA LIBERTÉ COMME FONDEMENT PÉDAGOGIQUE? Résumé: Dans cet article, on a le but principal de répondre à la question suivante: la philosophie sartrienne de la liberté peut-elle être à la base d’une pédagogie? Pour y répondre, on a avant tout besoin de comprendre la notion de liberté dans la philosophie de Sartre, son fondement ontologique et son explicitation phénoménologique. Ensuite, il faudra traiter des difficultés courantes d’une telle liberté, et ainsi chercher à construire une pédagogie progressiste fondée sur le respect de la liberté individuelle, qui est, d’après Sartre, la raison d’être de tous les hommes. Mots-clés: Sartre. Éducation. Liberté. Referências bibliográficas BEAUVOIR, S. A força da idade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. BENHAMIDA, K. O existencialismo de Sartre e a educação: a falta de fundamentação para as relações humanas. Educational Theory, Illinois (EUA), n. 23, p. 230-239, 2000. BORNHEIM, G. A. Sartre – metafísica e existencialismo. São Paulo: Perspectiva, 1971. BURSTOW, B. The Sartre’s philosophy as foundation of the education. Tradução Newton Ramos-de-Oliveira. Educação e Sociedade, Campinas: ano 21, n. 70, abr. 2000. Original: Journal of Philosophy of Education, n. 2, v. 17, 1983, p. 171-185. KNELLER, G. Existentialism and education. New York: The Philosophical Library, 1958. MORRIS, V. C. Existentialism in education. New York: Harper and Row, 1966. SARTRE, J-P. A imaginação. Tradução de Luis Roberto Salinas Fortes. São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Coleção Os Pensadores). ______. As palavras. Tradução de J. Guinsburg. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1964. 200 Luciano Donizetti da Silva SARTRE, J-P. Baudelaire. Paris: Gallimard, 1975. ______. Crítica da razão dialética. Tradução de Guilherme João de Fritas Teixeira. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. ______. Diário de uma guerra estranha. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992. ______. Huis clos. Paris: Gallimard, 1947. ______. La Liberté Cartésienne in Situations I. Paris: Gallimard, 1947. ______. La transcendance de l’ego: esquisse d’une description phénoménologique. Paris: Recherches Philosophiques, 1937. ______. O ser e o nada – ensaio de ontologia fenomenológica. Tradução e notas de Paulo Perdigão. Petrópolis: Vozes, 1997. ______. L’Idiot de la famille. Paris: Gallimard, 1988. 3 v. ______. O existencialismo é um humanismo. 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Dada a abrangência do processo educacional, o Aprender define enfoques temáticos para melhor orientar o conteúdo dos trabalhos candidatos à publicação: Filosofia da Educação: • A aprendizagem como problema filosófico: como e em que condições se dão a transmissão, construção ou apropriação do conhecimento. • A filosofia e a instituição escolar. • A abordagem teórica das diferentes escolas pedagógicas. • Diferentes conceitos e concepções de educação. • Educação e Filosofia: as correntes filosóficas e sua relação com processos educacionais. • Ética e Educação: a ética como fundamento para a formação e a aprendizagem, a ética profissional do educador, entre outros. • O papel da filosofia nas transformações da educação contemporânea. • Novas tendências e tecnologias de ensino: aspectos filosóficos. Psicologia da Educação: • Aprendizagem como problema psicológico: como e em que condições se dão a transmissão, construção ou apropriação do conhecimento. • Aspectos psicológicos voltados para o estudo do campo das necessidades educativas especiais: dificuldades de aprendizagem, educação especial, preparo e formação de professores, entre outros. • Escolas psicológicas e sua relação com processos educacionais. • Novas tendências e tecnologias de ensino: aspectos psicopedagógicos. • Psicanálise e Educação. • Psicologia Escolar/Educacional: trabalho docente, processo ensino-aprendizagem, aquisição da leitura e da escrita, interação professor-aluno, cultura escolar, atuação do psicólogo na escola, entre outros. • Psicologia do Desenvolvimento e Educação. • Relações humanas na escola. • Trabalho e Educação. Obs.: Somente serão aceitos trabalhos que se enquadrem em um ou mais enfoques temáticos citados acima. Envio dos trabalhos: Os trabalhos candidatos à publicação deverão ser enviados por e-mail, com o texto anexo, digitado em Word for Windows, para os seguintes endereços eletrônicos: [email protected] e [email protected] Ou ainda, por correio, contendo uma cópia impressa em papel tamanho A4, e uma cópia em disquete, para o endereço abaixo: Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb) Departamento de Filosofia e Ciências Humanas (DFCH) APRENDER – Caderno de Filosofia e Psicologia da Educação Estrada do Bem Querer, Km 4 45083-900 – Vitória da Conquista – Bahia Tanto no envio por endereço eletrônico ou pelo correio, os trabalhos deverão vir acompanhados por uma página ou folha à parte, contendo os seguintes dados de identificação: • Título do trabalho acompanhado pelo resumo e palavraschave em português; • Nome completo do(s) autor(es); • Instituição de origem e função que está exercendo; • Endereço eletrônico e telefone para contatos. Formatação dos trabalhos: Os trabalhos candidatos à publicação deverão ser digitados da seguinte forma: 1. Título do trabalho em fonte Arial, tamanho 12, em negrito e caixa alta, centralizado no alto da página inicial. 2. Dois espaços abaixo do título do trabalho, deverá vir o nome do(s) autor(es) em fonte Times New Roman, tamanho 12, em itálico, alinhado à direita da página, e somente com as primeiras letras em maiúsculo. 3. Dois espaços abaixo da indicação do(s) autor(es) do trabalho, deverá vir o Resumo e as Palavras-Chave em português e outra em inglês ou francês. 4. Os Resumos deverão ter no mínimo 50 (cinqüenta) palavras e as palavras-chave deverão ser no máximo 5 (cinco). 5. Títulos secundários em fonte Times New Roman, tamanho 12, em negrito, somente com as primeiras letras em maiúsculo, e alinhadas à esquerda da página (não devem ser numeradas). 6. A fonte do corpo do texto deverá ser Times New Roman, tamanho 12, com espaçamento de 1,5 entre linhas. 7. A configuração da página onde será digitado o trabalho deverá ser de 2 (dois) centímetros nas bordas superior, inferior, direita e esquerda, com papel tamanho A4 e orientação tipo retrato. 8. Os trabalhos deverão ser digitados em Word for Windows. 9. Figuras e fotos deverão vir no corpo do texto, em local desejado pelo autor, somente em preto e branco. 10. Gráficos deverão vir no final do trabalho, somente em preto e branco, de maneira legível e com legendas por extenso. 11. Os trabalhos deverão conter no máximo 20 (vinte) páginas, excluindo-se a referência bibliográfica e o resumo em língua estrangeira. 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