© As joias do abismo, Floriano Martins, 2010, 2013
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AS JOIAS DO ABISMO
2010
I. EPÍLOGO
Selma abria um sorriso luminoso na foto. Desses que juramos guardar por toda a vida. Selma era a
mulher perfeita para durar a vida inteira. O infinito conhecia seus caprichos. Já não recordo onde
encontrei a foto, porém sei que o sorriso ali permanecia. As fotos habitam sítios por vezes
incompreensíveis, metem-se em lugarejos da casa que jamais habitamos. Selma era quem melhor
conhecia a casa. Ríamos das vezes em que eu não a encontrava em nossos jogos. Fincava a roupa
no sorriso. Bordava um labirinto no olhar. Soletrava o espinhaço do abismo em meu rosto. Selma
era um delírio incomum. A casa não ia a parte alguma sem ela.
II. TRÊS ANOS DEPOIS
Por um instante as cenas voltaram a se repetir. Pequenos rasgos na banheira delatavam o que
ainda havia na memória. Tua nudez em pedra branca já não era de todo visível, o corpo lido
apenas em fragmentos. Um último beijo reteve-se em meus lábios até poucos dias. Sem lugar para
ficar, aos poucos nossas lembranças vão se ausentando. O imprevisível refaz o mundo com que
sonhamos. E antes que aprendamos o nome de cada coisa, volta a refazê-lo. Não importa a
vontade de Deus ou que eu te ame um pouco mais. Nada se demora em seu lugar. Ainda que eu te
mate. Não permanecerás comigo sequer na memória. Não há nada mais sombrio que o tempo.
[Dentro dele a tua morte sussurra meu nome.] Os últimos recortes da banheira eram quase
indescritíveis. A dor não se reconhecia. Nenhum de nós sabia o que estava ali fazendo. Fui
refazendo aos poucos meu esquecimento. Já não sei quem és.
III. ANTES QUE FOSSE ESCRITO
O meu corpo inteiro me dizia que não ficasse em casa. Uma frase assim, apanhada como um
enigma retorcendo a manhã pode, quando menos, saturar o dia. Doía-me o corpo todo insistindo
no assombro. Onde iria afinal, sem motivo algum para sair de casa? Tropeçava em contas do
inexplicável ao sentir um risco na espinha. O gosto do sangue antecede o teatro de sua floração.
Quando ouvi meus gritos, Eduardo já me havia desfigurado parte do corpo. Meu desespero
duvidava que fosse eu mesma. Uma aflita palavra se repetia, sem mais nenhuma influência. De
uma maneira ou de outra, a morte sempre nos surpreende. Que a minha se chamasse Eduardo era
algo que eu simplesmente não podia entender. O que falta ao mundo nem sempre é aquilo que se
supõe uma necessidade. Amei Eduardo mesmo enquanto o via rasgando-me a carne. Mesmo
morta. Nem sei ao certo se o deixei de amar. Não houve tempo para isto. Desta vez, a morte é que
foi surpreendida.
IV. O ILUSIONISTA
Despeço-me da natureza humana. Confundem-se corpo e alma em seus últimos espasmos.
Mesclam-se as raízes do que fomos e de todo um mundo impossível. Quando me tocas já não
estou. Em um vislumbre, escapas de meu ser. Um jorro de abismos se expõe em minha nudez.
Tenho a pele supliciada. Uma ribanceira de êxtase ampliada em sítios ermos. Para que me cobices
onde nem mesmo a memória alcance. E para que argumentes que eu te moldei como uma vítima
secreta. Agora já sabes como pude mover-me de um extremo a outro de tua ilusão. A paisagem
pressentida sempre esteve ali, como uma visão despida de toda crença.
V. O ELEMENTO SURPRESA
O tempo tropeça em sua própria rotina. Eduardo refaz o percurso de suas sombras. Em vão, tenta
regressar ao que um dia imaginou ser. A cada nova página de seus anseios repete-se unicamente o
corpo sem vida de Selma. Pensa em roubá-lo de sua memória. Afundá-lo em um lago que em
seguida esconderia de si mesmo. Na medida em que busca uma solução para livrar-se daquele
cadáver, seus planos vão sendo escritos na pele feminina. O corpo se enche de frases que são
como um livro secreto de últimos recursos. Receituário de truques espantosos que ressoam como
um fosso de incriminações. Um rio suspenso que lhe atormenta os passos. A dor multiplicada e
amontoada como a ruína do que não soube evitar. Eduardo avança as páginas do tempo
implorando por um naco de instabilidade. Um elemento surpresa. Uma chuva que chegasse a
confundir as evidências. Contudo, não chove. Selma está irremediavelmente morta. E seu corpo
agora é o que Eduardo mais teme.
VI. DEVOÇÃO
Teu corpo é feito de lábios. Onde quer que eu te beije, renasço. Um secreto plantio de cores,
penugens, revoadas através das estações. Acalanto de senhas, dos pés à nuca. O que sei de ti é o
que encontro a cada caminhada por teu corpo. À noite admiro teus limites, como me preenchem.
Adormeço entre luzes flutuantes, renomeando os arcanos do fogo em tua pele. Assim te amo. O
dia aprende a ler as migrações de teu desejo. Estranhas formas que mudam de olhar enquanto as
alimentas. Eu sei como te fazes assim. Como pousas no horizonte de meu ser, com tudo o que vai
ficando pelo caminho. Sem que me chames. Tudo em mim sabe onde te encontrar. Meus lábios são
a fábula de teu corpo.
VII. NUNCA ESTIVE PRONTO
A dor não atende por seu nome. Procurei por tua sombra pela casa inteira. O corpo ali estático
envolto em um novo dilema. Pasto de horas movediças. Debato-me por entre cômodos, reviro
utensílios, arranco o assoalho. Não há traços de tua sombra. A tua morte foi um mau
pressentimento. Encaro meus erros todos reunidos à volta de teu corpo. Pressiona-me a
desconfiança de que a sombra permanecerá oculta. Desfaço-te de roupas, hábitos, lembranças.
Desprendo a mobília do olhar. Emudeço lâmpadas, torneiras, janelas. Ponho a casa toda a procurar
por ela. Assusta-me não saber onde encontrá-la. Desespero a mudar os nomes da aflição. Esqueço
o meu próprio nome e mesmo assim não te mostras. Não te vejo mais onde estás. Tento não
respirar para amenizar a dor, porém a respiração não se desprende de mim, latejante como um
castigo. Dói-me infinitamente o silêncio mortificante de tua sombra ausente. Não importa o que eu
tenha aprendido. A dor não me atende mais por nome algum.
VIII. ALGUNS MINUTOS ANTES
O que vamos subtraindo ao tempo é nosso pânico ante a confidência. O medo de estar certo.
Quando te insinuas e frequentas meu desejo, desmascaro a vigília e elimino suas pistas. Não me
escutes. Não devemos estar aqui. O simples roçar de teus mamilos em meus lábios e o sítio nos
parece outro. Lâminas atiradas de imagens que nos querem cada uma à sua maneira. O suor
soletrando quimeras. A saliva espreitando novos mistérios. Meu corpo se inscreve no teu, com
suas ranhuras, iscas, astúcias. Um pátio de enredos, desfrute de harmonias, tuas saliências
escandalosas. Memória desforrada por toda omissão. Não me toques outra vez este fio incontido.
Esvazia teu ser como uma ferida transitiva, o abismo interino de teu gozo. Não me retenhas. Se te
falta uma sílaba, o espírito desfalece. Transpira sem queixas. Já não sei qual de nós tem a última
palavra. Abre um novo erro em mim.
IX. AS SOBRAS DO VAZIO
A casa se agita entre o esgoto e a chaminé. Constrangida por dois enigmas a tarde se retorce,
quase em desmaio. Eduardo não encontra mais o nome de Selma e passa a chamá-la por uma
palavra que se esquece sempre que pronunciada. O relógio não perde as horas. A chuva não cai na
rua. A louça na cozinha não vai ao chão. Nenhum ruído fora de lugar. Não chama atenção alguma
o vulto sentado na poltrona da sala. Observa sem malícia a palidez de Eduardo. Sem que o
perceba, vaga pela casa transpirando inquietude, como se procurasse a própria imagem
consumida. Ao entrar na sala, confunde-a com o vulto imóvel. Imagina-se o outro sem saber mais
de si. Ilude-se ante o fantasma de sua perda. Em vão apela para alguma destreza oculta, um
artifício que lhe devolva os ossos do tempo, a máscara, um indulto que o faça suportar a memória.
A ausência de espelhos no cômodo o desperta de sua demência. E junta-se a ela um argumento
insepulto, o som legítimo e implacável que vem da cozinha, a faca com que mortificara Selma
mergulhando da mesa ao chão. Aturdido pelo estrondo daquele utensílio, Eduardo finalmente
compreende que jamais estará só.
X. ESBOÇOS DE CENA
Estivemos discutindo por alguns instantes, uma tensão injustificável se apoderava de nós. De um
momento para outro, sem que me contivesse, lhe arremessei uma caneca, ele abaixou-se, enquanto
gritava meu nome: Selma, Selma. Despertei como se de um transe, porém não ao ouvi-lo e sim
graças ao som da caneca se partindo. Era uma caneca pesada, de louça, que me havia sido dada
por uma amiga que a trouxera do Equador. O que me pareceu um absurdo é que no dia seguinte
eu a encontrei na cristaleira, intacta, como se nada lhe tivesse ocorrido. Como poderia ter se
quebrado e agora estar ali, novamente inteira? Naquela mesma noite, quando estávamos no
quarto, nos preparávamos para dormir, ouvimos um estranho ruído vindo da cozinha, um
estrondo que se repetia e nos dava a impressão de que toda a cozinha vinha abaixo, como se toda
a louça estivesse se partindo. Corremos para lá, juntos. Quando chegamos já não havia um único
som e toda a cozinha estava tomada por intrigante ordem. O que teria ocorrido ali? Quantos
somos, afinal, sem que o percebamos?
.
XI. VERSÃO EM SILÊNCIO
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O rosto de Selma como o de uma esfinge alheia ao próprio enigma. Na medida em que suprimo
sua vida, a mesma se esvoaça à minha frente de maneira violenta. O sangue golpeia sua escrita
delirante por toda a carne. Certas anotações são como truques, ilegíveis para mim. Quando a
ponho na banheira, as pernas como que se multiplicam em convulsão. Em meio à agitação de seus
verbos sanguíneos, eu a desembaraço do vestido aberto rasgado aflito como a pele cortada em
apelos instáveis. O metal da faca vibra sua melodia impassível. É o único som que se escuta. Selma
esbraveja silêncio a cada incisão. Seu corpo transborda espanto, porém o rosto preserva uma
pavorosa ausência. Busco acertá-lo com a lâmina. Não alcanço um rasgo sequer no olhar despido
de qualquer reação. Nem mesmo o sangue lhe atinge. O rosto de Selma impede que eu complete
meu testemunho de sua morte. Em sua loucura posta à prova, o rosto não morre. Como um
agravo, não morre. Eu não posso matá-la mais do que isto.
XII. NA SOLEIRA DO ABISMO
A memória do ocorrido parecia tão desfeita quanto o corpo de Selma. A casa ausentava-se do
bairro, imersa em um matagal fechado. A noite revirando o interior do lugar. Ninguém esperava
que Deus entrasse ali sozinho. Eduardo afagando os retalhos do corpo da amada. Alheio ao horror
que ele próprio lapidara, fita o vazio como se pousasse alguma recordação feliz. Parecia quase
sorrir em certo momento. E amparado em um semblante pueril tocava a intimidade dos restos de
Selma. Queria ouvi-la gemendo e pedindo que não parasse. Sua mão, no entanto, retornava
descontente daquele púbis marcado a sangue. Eduardo soluçava desamparado. A casa se abrindo a
seus olhos como uma transparência frondosa. O mundo visível de sua danação. Da banheira podia
distinguir o vulto que permanecia na poltrona, como se esperasse a hora de entrar em cena. Onde
estaria a voz de Selma? Quem a teria levado para longe dela? Eduardo voltou a fitar o vazio,
acariciando um mamilo quase de todo despregado do seio daquele corpo imóvel.
XIII. UMA EPÍGRAFE
Se eu vejo alguém matar outra pessoa, e matá-la de verdade, é um gesto terrível, dramático, mas
que está isolado em seu próprio horror. Ao contrário, sabemos muito bem que a arte deve ser
exemplar, como uma coisa que será a significação de outra.
Eugène Ionesco (Diálogos com Claude Bonnefoy, 1970)
XIV. NA SEMANA PASSADA
Colávamos apelidos um no riso do outro. Corríamos pela casa buscando nomes distintos, termos
engraçados, alguns de puro espalhafato. Eu o chamava de todas as tolices que pousavam em
minha mente. Ele imitava minha voz, repetindo-me com entusiasmo. Infinitos batismos depois o
meu cansaço me fazia sentar. Eduardo cheirava-me o regaço com um regozijo infantil. Punha-me
uma escala acima na desordem de sua língua. Eu não escolhia os gritos, em seu deleite agudo.
Tudo em nós era automático, com sua mina explosiva de mistérios. Mesmo quando me abria com
exagero, curioso como se diante de um espelho, buscando algo de si em meu íntimo. Eu lhe pedia
que evitasse a dor. Ele dizia conhecer o caminho. Desabotoava-me toda resistência. Por vezes
guardava seus dedos em mim e mudava de excessos. Doía-me em tais casos. Eduardo arranhava
meus gemidos. Em seu olhar incontido parecia não haver ninguém. Eu o queria de volta, antes que
a dor se alastrasse. Deixei escapar seu nome com algumas lágrimas e vi, em seguida, como
retornava ao olhar e às carícias insuspeitas. E voltava a improvisar apelidos em meu rosto. Nada
em Eduardo fazia sentido prolongadamente.
XV. CONVERSA COM O AUTOR
Os móveis perambulavam pela casa. Alguns utensílios vasculhavam a memória de quinas, gavetas,
esgotos. Cada movimento sugeria vínculos estreitos com a cena funesta. Como se a casa
disfarçasse alguma conivência com o crime. Algo que antecipara o desatino de Eduardo. Algo que
drenara a memória ao ponto de não haver resquício algum de motivos. Um bocado de gestos já
quase de todo desfigurados. Selma reagira àqueles ataques com algum desalento. Como se a morte
fosse parte de seu conflito. Morrer nas mãos de Eduardo, sem maior tumulto. Flutuar com ele em
direção ao núcleo de sua alienação. Porém algo destoava na mecânica daquele plano. A casa
parecia ocultar uma suspeita hesitação. A falsa opinião dos talheres, um desacerto na mobília, a
doutrina gasta do encanamento. A súbita aparição de um princípio fora de lugar. A casa a sangrar
como quem perde a noção de si mesmo. Selma e Eduardo como espectros assimilados por esse
itinerário de destroços. A casa empalidecida ante o roteiro extraviado. Uma nódoa no suprimento
de sinais. Em definitivo, algo dera errado.
XVI. SELMA ENTRE NUVENS
Despertei, a noite estendida por toda a cama. A meu lado, Eduardo no compasso sempre inquieto
de seu sono. Sempre dormimos nus. Porém sua nudez era um mar revolto. A minha assemelhavase a um banho de nuvens. Tão calma estive sempre em meu recolhimento que, por vezes, me
ausentava de mim sem que o percebesse. Uma noite me vi permanecida na cama ao regressar da
cozinha. Vi-me ali deitada capinando sonhos. E toquei-me, recostada à porta, a conferir qual das
duas eu era. Eduardo punha a mão a escorregar sobre minha barriga. Buscava uma umidade
perdida em meu sono. Com que doçura me encontrava onde eu já não lhe correspondia de todo.
Como se atiçasse um enxame de carinho, separava-me as pernas e se punha a penetrar-me.
Aproximei-me com tudo o que sentia dentro e perto de mim. O espelho no quarto não me refletia
sob o corpo de Eduardo. Quem éramos se tornou impossível saber. Quantas fui assim nas noites
em que não tive sede? Quantas de mim eu vejo agora que não me reconhecem? Onde estou, afinal?
Trato de acordar Eduardo, para que me diga o que sabe.
XVII. NENHUMA CARTA ENCONTRADA
Um vulto dedica-se a abordar os argumentos invisíveis da casa. Seu disfarce atrai sombras de
todos os cômodos. Espelhos que se comunicam entre si como sílabas do vento renomeando
janelas a noite inteira. O corpo de Selma viola a astúcia da beleza. Confunde labirintos ao
descrever seus fragmentos. Eduardo alimenta-se de uma dor disforme que não lhe permite escapar
de seus encargos. A chave está em círculos e curvas, os anéis que foi espalhando Selma por toda a
casa, ocultados como provas invisíveis de que por ali havia passado. Ela o desejava com toda sua
inocência nessas pistas sinuosas, com seu piano úmido assaltado pelo desejo. Ele a quis por outra
ilegítima morada. O vulto seguia retocando os detalhes da cena. A casa deseja refazer-se de tudo,
porém um corpo permanece impedindo seus truques. O corpo de Selma, com seu enigma
retalhado. Ou o corpo de Eduardo, tropeçando em sua própria maldição. Ambos já não se
superam.
XVIII. UM DIA A MAIS
A memória se encarrega de garantir que ainda estamos ali. Quando escurece procuro manter meu
nome, ao menos até descobrir qual destino dar aos restos de Selma. A escuridão é muito suja e
não sei bem como atravessá-la. Ocupo-me de suas pequenas vertigens, desastres ocasionais,
ruídos rasgando os tímpanos da cena. A noite não pode estar assim apenas por descuido. Toda
esta imundície que carregamos em nosso íntimo. Como arruinar tudo isto, fingindo alguma
normalidade em nossas vidas?
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