C R Ô N I C A Quem mói no asp’ro não fantaseia O amigo convidou a visitar a fazenda que comprara em Minas. Seu irmão, médico no Rio, ofereceu carona – iria conhecer a nova propriedade e levar de volta o empregado que, em macambúzia apatia, viera fazer consultas médicas. Éramos quatro, com o motorista; e durante a viagem só o médico e eu falamos. Os dois, sempre calados – um porque guiava; o outro... Bem, justo esse silêncio o levara às consultas; pelo visto, inúteis. E falamos de tudo – eu curioso, ele tagarela – sobretudo de amor e mulheres: destaques em pauta masculina. Chegamos a um lugar entre Curvelo e Montes Claros, no sertão, enfim. E, para mim, sertão há dois: o sertão real, de terra, mato, bicho e gente; e o sertão metafísico, do Guimarães Rosa, que o definiu: “O sertão é dentro da gente”. Dia seguinte, acordei cedo, aspirei o ar úmido de sereno que gela narinas, senti o cheiro do mato, vi a ordenha sem tomar o 44 DEMOCRACIA VIVA Nº 32 leite, levei gado ao pasto, vaguei num mundo que mal conheço e me fascina. Eis que o macambúzio parceiro de viagem me surpreende: sem que pedisse, traz o cavalo selado para montar – entrega a rédea, cabisbaixo e mudo. Gestos miúdos de gente rústica, grávidos dessa tímida delicadeza, me falam ao coração. Agradeço-lhe efusivo, lembrando das consultas. Indago se alguém o mandou trazer. Ele deduz que fez algo errado e quer retomar a rédea, não deixo. Pergunto pelo seu cavalo, ele silencia. Quer se afastar, trago-o de volta. Peço que vá comigo, não sei montar nem conheço as terras. Ele insinua ir a pé. Recuso: quero-o a cavalo. Ele monta, mais obediente que convidado. Passeamos horas a fio – eu tagarela, ele curioso. Até que desmontados, sentamos à beira do riacho – ele atrás, silencioso; os animais bebendo. Pressenti que me olhava. Deixei o silêncio instalar a cumplicidade. Logo, ele disse: “O doutor fala bonito. No carro, fiquei besta”. Desconversei. Inquieto, tirou o chapéu, desamassou, limpou, repôs: “O doutor dá um aconselhamento?”. Aflito, tentei sair do aperto. Não sei nem para mim; palavra bonita é enganosa; a vida, como o sertão, é dentro da gente etc. Não o convenci. Lembrei das consultas... Resolvi ouvi-lo. Casado há três anos, a mulher o traiu com o amigo, todos sabem. Sofre feito cão danado. Cogitou matá-la: ela jurou lhe querer bem; pecou, mas sem intenção de magoar; arrependida, pede perdão. Pensou em matá-lo: ele disse que não reagiria, pediu perdão e jura que é o melhor amigo. Pensou em matar-se, mas não viu por que se punir. Avaliou expulsá-la de casa ou ir embora, mas não conseguiu se imaginar sem ela. Em meio à tormenta constatou: é impossível viver sem ela. Quer que eu diga se ela ainda lhe quer bem. Mais: depois de desonrado e humilhado, deveria voltar a viver com ela? Meu Deus! Eu, que não sei nada de nada, e vim visitar vaca, curral e capim! Fosse comigo, não saberia o que fazer! Mais que o sertão, o coração é dentro da gente. Aceitei ser confidente, e ele me fez cúmplice – só quis ser solidário, havia as consultas... Sugeri: se é impossível viver sem ela, então... Honra é outra coisa etc... Não o convenci. Disse que eu não podia falar antes de conhecê-la, olhá-la nos olhos e saber se ainda lhe queria bem. De cúmplice, passei a refém. A contragosto, assenti em vê-la. Trabalhava duro, descascando e ralando mandioca. Lembrei o Rosa – “Quem mói no asp’ro não fantaseia” – tentando avisar, quem sabe, que no sertão o instinto pode mais que a imaginação. Morena brejeira, olhos negros astutos, usava maria-chiquinha – faz a mulher menina; e a menina, moça. Se batom faz os lábios sensuais, sem batom, tinha a sensualidade à boca. Indaga se sou o médico e como está o marido. Conversamos. Deixo o tempo instalar a confiança e solto a pergunta-bomba. O sorriso melífluo cria duas feições num mesmo rosto: a ingênua genuína ou o véu de ingenuidade sobre a genuína cínica? – eterna ambigüidade de quem nasceu fêmea e morrerá esfinge. Ela confirma o amor e o arrependimento, e explica: “Não teve maldade. Foi com um amigo de pequenininha. Ali, em cima do saco de farinha. E, sabe?... Eu nem gostei”. Quando ele me procurou, arfando expectativas, disse-lhe: “A vida é sua” – ele me olhou arrasado –, e concluí: “Ela prefere você”. Seus olhos se iluminaram e, pela primeira vez, sorriu. Quem mói no asp’ro não fantaseia, mas deseja. Mais que sertão real ou sertão metafísico, dentro da gente há seres que amam. Alcione Araújo [email protected] JUL / SET 2006 45