Solilóquio 1
Os homens! E sua vaidade. . .Ah, Sidonia. Ele queria me proteger, prover
minhas necessidades. Ah, sim, ele me levava a sério, admitia meu ponto de
vista; contudo pretendia me sustentar. Com esse subterfúgio é que a opressão
se instala. E aí, a coisa acontece assim: eu escuto o que você diz e eu te
compreendo, mas o dinheiro... quem ganha o dinheiro, quem se mata? E aí,
dois pesos e duas medidas! Ah, caríssima. No princípio era: filhinha, o que
você ganha vai ser colocado numa conta especial, uma reserva pra mais tarde,
uma casinha, quem sabe um carro esporte, qualquer coisa assim. Eu fazia sim
com a cabeça, eu estava de acordo, porque... ele era tão delicado, Sidônia, e
também porque o amor no qual ele me envolvia realmente me emocionava,
me... fazia perder o fôlego de tanta felicidade. E quando ele afundou no
marasmo, você sabe, no princípio era muito estranho ver como o seu ridículo
orgulho estava ferido e, pra ser honesta, eu sentia até certo prazer, tanto mais
porque achava até que ele sabia o quanto seu comportamento era ridículo. Ele
não sabia. E, mais tarde, quando tentei explicar, dizer a ele que pra mim isso
não mudava um homem, estar “por cima” ou por baixo, já era muito tarde.
Quando se tocava nesse assunto eu falava com um muro, Sidônia. Eu falava
com um muro. E aí, pouco a pouco, a honestidade morreu. Acho que me
decepcionei muito, por causa dele, por minha causa, e resolvi acabar. Acabar
com meu amor por ele. Os últimos seis meses foram horríveis, pode crer,
horríveis! Ainda bem que ele notou que estava tudo acabando e sentiu menos
assim. Mas não aceitou não. Mesmo aí não agiu bem. A mulher, ele ainda
procurou ficar com ela, não completamente, não de todo, mas pelo menos na
cama. Aí é que veio o nojo. Ele tentou a técnica, a violência. Eu deixei que ele
me dominasse. Tolerei isso, mas... como me pareceu sórdido, esse homem.
Solilóquio 2
Muito cedo na minha vida ficou tarde demais. Quando eu tinha dezoito anos já
era tarde demais. Entre dezoito e vinte e cinco meu rosto tomou uma direção
imprevista. Aos dezoito anos envelheci. Não sei se é assim com todos, nunca
perguntei. Creio que alguém já me falou dessa investida do tempo que nos
acomete às vezes na primeira juventude, nos anos mais festejados da vida.
Esse envelhecimento foi brutal.
[...]
Muitas vezes me disseram que foi o sol muito intenso durante toda a nossa
infância. Mas não acreditei. Disseram-me também que foi a reflexão na qual a
miséria mergulhava as crianças. Mas não, não foi isso. As crianças-velhas da
fome endêmica, sim, mas nós não, não passávamos fome, éramos crianças
brancas, tínhamos vergonha, vendíamos nossos móveis, mas não passávamos
fome, tínhamos um empregado e comíamos, às vezes, é verdade, porcarias,
galinholas, filhotes de caimão, mas essas porcarias eram preparadas por um
empregado, servidas por ele e às vezes recusadas por nós, podíamos dar-nos
ao luxo de não querer comer. Não, aconteceu alguma coisa quando fiz dezoito
anos que moldou este rosto que tenho agora. Devia acontecer durante a noite.
Eu tinha medo de mim, tinha medo de Deus. Quando chegava o dia, o medo
era menor e a morte parecia menos grave. Mas não me abandonava. Eu queria
matar meu irmão mais velho, queria matá-lo, derrotá-lo uma vez, uma única
vez, e vê-lo morrer. Para afastar dos olhos de minha mãe o objeto do seu
amor, aquele filho, para puni-la por amar com tanto ardor, tão mal, e sobretudo
para salvar meu irmãozinho, eu pensava, meu irmãozinho, meu menino, da
opressão da vida desse irmão mais velho que pesava sobre a sua, desse véu
negro encobrindo o dia, da lei que ele representava, promulgada por ele, um
ser humano, e que era uma lei animal, e que a cada instante de cada dia
lançava a sombra do medo sobre a vida de meu irmão mais moço, um medo
que atingiu afinal seu coração e provocou sua morte.
Solilóquio 3
O menino da vizinha dos fundos, trepado no muro como ele vive, deve ter
investigado bem o meu quintal, porque hoje me gritou: "do-o-na, do-o-na, a
mãe falou se a senhora quer vender umas panelas pra ela." Me desgostou
muito a forma de pedir, o pedido em si. Com tanto vizinho, porque Dona Alvina
foi enxergar logo as minhas panelas? A distância entre a casa dela e a minha é
a mesma entre a casa dela e a do Osmar Rico. É claro que percebeu minha
fraqueza. Não posso esconder, está na minha cara a atração que exercem
sobre mim. São como diamantes no cascalho. Pobres, eu os farejo, pressinto,
me ofereço a eles como manjar. As panelas, se estavam no barracão é porque
estavam mesmo sobrando. O que não me falta é panela. Por que então não fui
capaz de pegar a melhor delas e dar para Dona Alvina com o coração exultante
de poder ajudar? De jeito nenhum. Primeiro disse ao menino, contrariada: as
panelas não são de vender não. Fiquei com raiva dela falar em comprar, já
sabendo que eu não ia vender. Logo me arrependi, chamei o menino de volta e
peguei a melhor panela, mas não pense que mandei a tampa junto. Achei-a
boa demais, servia pra tampar o caldeirão onde gosto de cozinhar batatas. Dei
a panela pura. Foi uma bondade boba, pela metade, sem nenhum valor. Não
descansei enquanto não inventei um meio de visitar Dona Alvina. Com um mês
só na casa velha, toda escorada, que o dono do curtume deu para ela morar, já
fez horta, jardim, os cacarecos são limpíssimos. A menina pequetita, paninho
na cabeça, brinquinho de ouro na orelha desensebada. Fui com desculpa de
comprar cebolinha e fiquei sabendo: ela faz faxina nas casas, o marido trabalha
fora e só vem fim de semana, eles não são daqui não. Muito bem, pois saí sem
ter coragem de dizer a ela a única coisa que meu coração pedia que dissesse:
olha, Dona Alvina, somos vizinhas e a senhora pode contar comigo no que
precisar, estou à sua disposição.
Solilóquio 4
Esqueci-me de dizer que estava disposta a todos os despojamentos. Se
a culpa fosse de algum mau sentimento, de alguma ação malvada, eu me
castigaria energicamente. E até para me estimular recordava o exemplo
daquela senhora americana que arrancou um olho e cortou a mão, convencida
de que esses dois fragmentos do seu corpo estavam estragando a sua alma.
Foi nessa ocasião que me explicaram o valor cabalístico das letras, e a
razão por que muitas pessoas mudam de nome, trocando aquele que lhes foi
dado por outro em que haja uma combinação de valores mais favorável aos
seus destinos.
Todos
os
conhecimentos
têm
uma
profunda
sedução.
Quem
conseguisse saber tudo ficava igual a Deus. Por isso é que muitos são de
opinião que se saiba o menos possível, para não se ter a mesma sorte de Eva,
que logo no princípio do mundo estragou o Paraíso com o pecado do saber.
Digo isto porque um tratado de biologia me atrai com a mesma força que
um volume de ciências ocultas, e os números e as letras me parecem tão
organizados, tão sensíveis, tão vivos, tão poderosos, enfim, como um animal,
uma planta, um átomo.
Naturalmente, desmontei o meu nome, peça por peça, calculei, pesei,
refleti, devo ter chegado a alguma conclusão de que já não me lembro, e não
tenho a impressão de que os meus cálculos fossem assim desfavoráveis. Mas
pelo sim, pelo não, como havia uma letra disponível, achei melhor sacrificar
essa letra.
Há os que sacrificam os filhos, os carneiros, as aves, e há os que
sacrificam o seu coração. Sacrifiquei o meu. Porque eu gostava de todas as
minhas letras, fervorosamente. Ter de cortar uma, não foi assim coisa tão fácil
como as reformas ortográficas ordenam. Uma letra é um signo, é uma coisa
misteriosa que as gerações vêm carregando consigo, modificando de longe em
longe, por mão inexperiente, por súbito esquecimento, por ignorância de algum
escriba emprestado.
Solilóquio 5
Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta, tanta culpa? Se
o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio — pondo perpétuo.
Eu sofria já o começo de velhice — esta vida era só o demoramento. Eu
mesmo tinha achaques, ânsias, cá de baixo, cansaços, perrenguice de
reumatismo. E ele? Por quê? Devia de padecer demais. De tão idoso, não ia,
mais dia menos dia, fraquejar do vigor, deixar que a canoa emborcasse, ou que
bubuiasse sem pulso, na levada do rio, para se despenhar horas abaixo, em
tororoma e no tombo da cachoeira, brava, com o fervimento e morte. Apertava
o coração. Ele estava lá, sem a minha tranquilidade. Sou o culpado do que
nem sei, de dor em aberto, no meu foro. Soubesse — se as coisas fossem
outras.
E
fui
tomando
ideia.
Sem fazer véspera. Sou doido? Não. Na nossa casa, a palavra doida não se
falava, nunca mais se falou, os anos todos, não se condenava ninguém de
doido. Ninguém é doido. Ou, então, todos. Só fiz, que fui lá. Com um lenço,
para o aceno ser mais. Eu estava muito no meu sentido. Esperei. Ao por fim,
ele apareceu, aí e lá, o vulto. Estava ali, sentado à popa. Estava ali, de grito.
Chamei, umas quantas vezes. E falei, o que me urgia, jurado e declarado, tive
que reforçar a voz: — "Pai, o senhor está velho, já fez o seu tanto... Agora, o
senhor vem, não carece mais... O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando
que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!" E,
assim dizendo, meu coração bateu no compasso do mais certo.
Solilóquio 6
Na noite antes de eu sair de casa, meu irmão mais velho me ensinou tudo que
ele sabia do mundo lá fora. No mundo lá fora, ele disse, as mulheres têm o
poder de mudar a cor do cabelo. E dos olhos. E dos lábios.
A gente estava no terraço dos fundos, iluminados apenas pela luz da janela da
cozinha. O meu irmão, Adam, estava cortando meu cabelo da mesma forma
que cortava trigo, com uma navalha, juntando um chumaço e cortando mais ou
menos pela metade. Ele agarrava meu queixo com o dedão e o indicador e me
forçava a olhar para ele, seus olhos castanhos pulando de um lado para o outro
entre minhas costeletas. Para deixar minhas costeletas simétricas, ele cortava
uma, depois a outra, e de novo a primeira, várias vezes até as duas costeletas
sumirem.
Meus sete irmãos menores estavam sentados em fileira no terraço, fitando a
escuridão de todos os males que Adam descrevia. No mundo lá fora, ele dizia,
as pessoas prendiam pássaros dentro de suas casas. Ele já tinha visto. Adam
havia saído da colônia do distrito da igreja só uma vez, quando ele e a esposa
tiveram de registrar o casamento para torná-lo legal perante o governo.
No mundo lá fora, ele disse, as pessoas eram visitadas em suas casas por
espíritos que elas chamavam de televisão. Os espíritos falavam com as
pessoas através do que elas chamavam de rádio. As pessoas usavam um
negócio chamado telefone porque odiavam estar perto umas das outras, e
porque morriam de medo de ficar sozinhas.
Ele continuava cortando meu cabelo sem muito estilo, porque ia podando como
podava as árvores. Ao nosso redor, nas tábuas do terraço, o cabelo ia se
amontoando, mais ceifado que cortado.
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