ID: 35602110 22-05-2011 Tiragem: 48379 Pág: 20 País: Portugal Cores: Cor Period.: Diária Área: 29,47 x 35,60 cm² Âmbito: Informação Geral Corte: 1 de 3 Sara Ocidental O conflito visto do lado marroquino Aqui “vive-se melhor do que em qualquer país vizinho”, diz o governador A região de que Dakhla é capital tem 667 quilómetros de litoral A vida dos que trocaram Tindouf por Marrocos Argel “usa” os refugiados nos campos e a Polisário abusa deles, dizem os sarauís “regressados à pátria”. Os que fugiram não trocam “as províncias do Sul” por nada Sofia Lorena (texto) e Nelson Garrido (fotos), em Dakhla a Nas ruas de Dakhla, pequena cidade que é capital de uma das regiões do Sara Ocidental marroquino (Sara ocupado, para os independentistas; províncias do Sul, chama-lhes Rabat), é fácil esquecer as dezenas de milhares de sarauís que vivem nos campos de refugiados de Tinduf e até os milhares que regularmente se manifestam contra a governação marroquina em El Aiún, a grande cidade da região, 550 quilómetros a norte. Um único jipe da ONU, estacionado junto a um hotel, é o sinal visível que de esté é um território disputado, onde uma missão internacional (Minurso) chegou há 20 anos para organizar um referendo que nunca aconteceu e dificilmente verá chegar o seu dia. Dakhla fica mais perto da Mauritânia do que de Marrocos, numa península estreita ao longo da costa, onde a tranquilidade do deserto imenso se encontra com a do Atlântico sem fim. Os espanhóis (que ocuparam o Sara até 1975) chamaram-lhe Villa Cisneros, os marroquinos declararam-na capital de Oued Edahab-Lagouira, região que junta duas províncias e tem 170 mil habitantes e 667 quilómetros de litoral. Para além da pesca e da agricultura, Rabat tem apostado no turismo. Dakhla tem praias a perder de vista e integra o roteiro dos desportos náuticos, principalmente kitesurf. Ainda em Rabat, num encontro com jornalistas portugueses, o director-geral da Agência para a Promoção e o Desenvolvimento Económico e Social das Províncias do Sul, Ahmed Hajji, afirmara que Marrocos investe anualmente no Sara Ocidental perto de 100 milhões de euros. Quanto a Oued EdDahab-Lagouira, diz-nos já em Dakhla o responsável pelo Centro de Investimento local, Mohammed Abdellah Bouhjar, é hoje uma orgulhosa “região livre de bairros de lata”. Um passeio pelas ruas da cidade, quase desertas numa sexta-feira de calor, confirma-o. Há uma praça larga. Bandeiras marroquinas nos edifícios administrativos. A bonita igreja deixada pelos espanhóis. Vários quartéis do Exército marroquino, que tem 130 mil militares no Sara Ocidental. A brisa do final do dia permite às lojas e aos restaurantes reabrirem e até a uma pequena feira de utilidades surgir no chão da última rua antes da marginal, onde famílias e amigos passeiam ou conversam sentados a olhar o mar. Ahmed Hajji, o director da Agência para as Províncias do Sul, avisara que falar de política “não faz parte do [seu] mandato”, contornando as respostas às questões sobre o referendo de autodeterminação, o acordo de pescas entre Marrocos e a UE que, segundo um parecer jurídico do Parlamento Europeu, não respeita o direito internacional (os lucros da exploração dos recursos de um Território Não Autó- nomo têm de ser usados em benefício da sua população) ou o acampamento de protesto erguido em Outubro do ano passado em Gdeim Izik (perto de El Aíun) e desmantelado à força. “El Aiún e Dakhla estão no topo da lista de investimento do reino. Há exigências sociais, como em todo o lado, e exprimem-se. Foi isso que esteve na origem do que aconteceu em Outubro”, afirmou apenas. “O Sara é ocidental pela geografia e marroquino pela história. O reino está empenhado na regionalização e está em cima da mesa uma autonomia”, acrescentou, referindo-se ao plano de Mohammed VI que a Polisário já rejeitou. O dinheiro gerido por Rabat é investido na modernização de infraestruturas (o porto de Dakhla está em obras de expansão), no turismo ou em programas de apoio a desempregados, ao mesmo tempo que são integrados na administração pública os “regressados” de Tindouf. Aliás, Rabat parece esforçar-se para cativar os sarauís que vivem nos campos geridos pela Frente Polisário. Uma região disputada OCEANO ATLÂNTICO Madeira MARROCOS Canárias Tindouf El Aaiún Mahbés SARA OCIDENTAL ARGÉLIA Guelta Zemmur Dakhla MAURITÂNIA MALI Tichla 200km Área: 266 000 km2 População: 507.160 (estimativa 2011) Estrutura etária Mais de 65 anos 3,6% 38,9% Condições degradantes Dlimi Siatou, que dirige a Associação para a Protecção da Infância, é uma “regressada”. Não se lembra da idade que tinha quando chegou aos campos, mas sabe quando saiu. “Em 1996, depois do discurso do [rei] Hassan II apelando ao regresso”, afirma, numa conversa que juntou jornalistas e um Rabat PIB per capita (PPC): 2500 dól. (estimativa 2007) 57,5% 15 aos 65 anos Fonte: The World Factbook , CIA Marrocos reclamou o direito ao Sara Ocidental em 1957 na ONU. Em 1975, o Tribunal Internacional de Justiça (Haia) rejeitou as pretensões de Marrocos e da Mauritânia e decidiu que os sarauís têm direito à autodeterminação. Em 1976, ano em que Espanha se retirou e Hassan II mobilizou 350 mil marroquinos para o Sara (“Marcha Verde”), chegaram a Tindouf os primeiros refugiados. Em 1991, com o fim da guerra entre Marrocos e a Polisário, chegou ao Sara a Minurso, uma missão da ONU com mandato para organizar o nunca realizado referendo. 0 aos 14 anos Recursos naturais: Pesca, Jazidas de fosfatos, cobre, urânio, ferro ID: 35602110 22-05-2011 Tiragem: 48379 Pág: 21 País: Portugal Cores: Cor Period.: Diária Área: 17,76 x 37,72 cm² Âmbito: Informação Geral Corte: 2 de 3 Público • Domingo 22 Maio 2011 • 21 Depois do 20 de Fevereiro, o primeiro protesto, que deu nome ao Movimento, os marroquinos que pedem uma democratização do país saíram à rua a 20 de Março e a 24 de Abril. Vão voltar hoje a fazê-lo. o problema é o conflito entre Marrocos e a Argélia”, afirma, assumindo a defesa da estratégia de Rabat. Para Bekkar, a autonomia não só é o único caminho como “a maioria dos sarauís, talvez 90 por cento, já escolheu integrar-se em Marrocos”. Parte da guerra pelo Sara Ocidental faz-se de números. Sem recenseamento, todos os números são objecto de disputa. Argelinos e Polisário falam em mais de 160 mil pessoas a viver na zona de Tindouf, mas parte destes refugiados vive hoje na Mauritânia (onde a ONU contabiliza 20 mil sarauís com estatuto de refugiados). Rabat diz que nunca foram mais de 50 mil. O bem de Marrocos grupo de dirigentes associativos, incluindo vários “regressados”, na presença de um responsável do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Da vida nos campos, Siatou fala em “condições precárias e degradantes” e acusa a Polisário de “privilegiar os seus próximos e de “desviar o dinheiro da ajuda internacional que deveria servir para o desenvolvimento e para beneficiar as populações”. Não há números oficiais de “regressados à pátria mãe”, como as autoridades locais marroquinas se referem aos sarauís que deixaram Tindouf. Sidi Slom Joummaiui, presidente da câmara de Dakhla, garante que só em 2010 voltaram a Marrocos 4 mil sarauís. L’Ammar Sid Brahim, um “regressado”, funcionário público e presidente de uma associação que trabalha para integrar outros “regressados”, prefere sublinhar que há dois anos fugiram cinco ex-fundadores da Polisário. “As pessoas que saem fazem-no por perceberem que o poder ali é o argelino”, afirma, numa conversa traduzida pelo responsável do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Brahim não fala francês e espanhol só “poquito”. Os campos começaram a surgir em 1976 no Sul da Argélia, continuaram durante a guerra que opôs Marrocos à Polisário e lá continuam. Com nomes de cidades ou regiões do Sara ocupado, erguem-se no meio do deserto e neles vivem milhares de pessoas. Brahim lembra-se das primeiras manifestações “da população contra os que têm o poder nos campos”. Aconteceram em 1988 e ele, então com 20 anos, foi um dos manifestantes. “O que me fez envolver-se nesse movimento foi a violência que era dirigida contra as mulheres e que a minha mãe sofreu. Nessa época houve mulheres feitas prisioneiras e depois dos protestos a repressão cresceu”, descreve. Brahim foi ficando e até trabalhou no 20 de Maio, mensário que era “o órgão oficial da Polisário”. Para explicar como passou de manifestante a funcionário lembra que no Sara os clãs são um factor determinante: “A Polisário recruta com base nos clãs. Até o actual primeiro-ministro estava entre os que se manifestaram em 1988”. Morrer de calor Da vida nos campos, Brahim recorda “uma terra verdadeiramente deserta onde no Verão muitas pessoas morrem de calor”. Apesar de tudo, só em 2001 decidiu sair, na altura já casado 4 mil sarauís regressaram ao Sara governado por Marrocos só ao longo de 2010, diz o presidente da câmara de Dakhla e com dois filhos. “Para ser franco, havia rumores de que quem fugia era preso e morto assim que chegava a Marrocos. Aos poucos, os que regressavam faziam chegar notícias que desmentiam esses rumores.” A fuga, conta, fez-se como todas as outras. No Verão, quando “a Polisário faz menos patrulhas”, e pela Mauritânia. “Vim com o meu filho de três anos e um bebé de seis meses. Para o proteger do calor, tivemos de o embrulhar numa manta encharcada.” Quem chegou a trabalhar para o colonizador espanhol e fala castelhano sem ajuda é o governador de Dakhla, Sidi Ahmed Bekkar. “Aqui vive-se melhor do que em qualquer país vizinho, Bekkar não sabe quantos sarauís vivem nos campos, mas não tem dúvidas de que “a maioria dos sarauís vive aqui, nas províncias”. Nem de que “aqui a vida é tranquila, segura e boa”. “As nossas províncias conheceram um desenvolvimento exemplar num tempo recorde. Nestes 30 anos, desde que voltámos à pátria, pudemos fazer o que não fizemos em centenas de anos. Na educação, nos serviços básicos, na política.” Para provar o que diz, pergunta “quantos se foram daqui para a Argélia desde a recuperação destas províncias e quantos vieram para cá, quantos regressaram?”. E responde: “vieram centenas e os que se foram daqui são três ou quatro”. “Todas as pessoas que pensam no bem comum, no bem de Marrocos e no bem das províncias do Sul pensam como eu”, afirma ainda. Para Bekkar, “o referendo é impossível”, pois nunca haverá acordo sobre quem tem direito a votar. Os sarauís que vivem em Marrocos, os sarauís que vivem no Sara Ocidental, os que ali chegaram na “Marcha Verde” de 1976, os sarauís dos campos... Questionado sobre todos os que discordam das suas certezas, muitos a viver em El Aiún, e sobre os protestos regulares que os activistas ali realizam, Bekkar, assegura que se tratam de “uma minoria”. “Sim, em El Aiún há gente que não pensa como eu, mas em Casablanca também. Pode haver gente em El Aiún que queira a independência, mas quantos? São infiltrados da Argélia”, afirma.As denúncias de abusos fazem-se de parte a parte. Há activistas pró-independência presos em El Aiún e em Marrocos, outros vigiados, e os seus protestos são reprimidos. Rabat, e os “regressados”, incluindo ex-membros da Polisário, acusam o grupo de abusos dos direitos humanos contra as populações dos campos. A Polisário admite que os houve nos anos 1970 e 80, mas nega que continuem. Sid Brahim ainda tem toda a sua família no Sara. Mãe, irmãos, irmãs. Por que é que ficaram? “A Polisário tem políticas para agarrar as pessoas aos campos”, diz. “Como a dispersão familiar, com jovens que são enviados para estudar em Cuba ou na Argélia. As pessoas vão ficando.” As negociações entre Marrocos e a Polisário, mediadas pela ONU, continuam como uma dança sem fim. Uma nova ronda está marcada para Junho sem que se esperem resultados. O PÚBLICO viajou a convite da embaixada de Marrocos ID: 35602110 22-05-2011 Tiragem: 48379 Pág: 36 País: Portugal Cores: Cor Period.: Diária Área: 17,45 x 7,86 cm² Âmbito: Informação Geral Corte: 3 de 3 Reportagem Os sarauis que fugiram da Frente Polisário Sofia Lorena e Nelson Garrido, em Dakhla Págs. 20 e 21