Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura CAROLINA DE JESUS: A VOZ DOS QUE NÃO TÊM A PALAVRA Augusto de Freita Machado1 A importância de Carolina Maria de Jesus decorre da atualidade de sua obra, ao mesmo tempo em que demonstra como a leitura literária pode ser um fator fundamental na constituição da autonomia do indivíduo, o que se percebe nas entrevistas concedidas por ela. Vale ressaltar que essa mulher negra que vive a catar lixos, é mãe de família, semi-analfabeta e começa a publicar, no mesmo momento histórico em que mulheres cultas, feministas, jovens de classe média buscam os meios de se afirmar seja na literatura, na poesia, no cinema, na arte, nas profissões liberais. Com algumas diferenças: a força de vida que brota da grandeza do seu texto e a beleza trágica que o reveste é experiência, é dor manifesta, é a condição humana expressa em toda sua pujança e, ao mesmo tempo, o espaço de desenvolvimento de sua autonomia. Santos (2009) adverte: “Qualquer juízo sobre Carolina e sua obra não deve esquecer que ela é três: a mulher, a escritora e a personagem criada pela escritora” (2009, p.21). No tocante à relação com a leitura e a motivação de escrever, ninguém melhor que a própria Carolina para nos revelar os caminhos percorridos. Quando eu não tinha nada o que comer, em vez de xingar eu escrevia. Tem pessoas que, quando estão nervosas, xingam ou pensam na morte como solução. Eu escrevia o meu diário. (JESUS, 2010, p.195). 1 Doutorando em Literatura Brasileira UNB. E-mail: [email protected] Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura As vozes em carolina Entende-se ser a constituição da autonomia do indivíduo, mais que uma exigência na sociedade contemporânea, é um diferencial. Por proporcionar o contato com diversas realidades, a leitura literária oferece novas maneiras de se apreender a realidade e compreender o mundo, oferecendo às pessoas a possibilidade de resgatar o seu próprio discurso e tornar-se um indivíduo autônomo, uma vez que permite ao leitor o diálogo não só com as palavras, mas também com as percepções e sentidos no mundo no qual se está imerso. A leitura literária possibilita a constituição da autonomia do indivíduo, porque o torna crítico das idéias que o constituem e também do mundo dado, deixando de reproduzi-las pura e simplesmente. Naturalmente, só se pode falar de pessoas autônomas quando se fala em sujeitos com liberdade e responsabilidade, com a capacidade de escolher os seus próprios caminhos e de manter uma visão crítica, ao mesmo tempo em que se promova uma ação dialógica ante os desafios propostos pela vida cotidiana, compreender-se como, entre todos os seres do mundo, ele é o que pode escolher tornar-se o que ele é. Para que efetivamente se possa afirmar a autonomia, fundamental é o rompimento das cadeias que favorecem a opressão a exploração do homem pelo homem, marcas da nossa sociedade contemporânea, cuja visão essencialmente monológica está evidente nas relações entre dominadores e dominados, sábios e ignorantes, ricos e pobres. Relações essas que contribuem cada vez mais para o aumento da exclusão dos vários grupos humanos. Desse modo, compreende-se que o lugar de desconstituição, de desconstrução e, ao mesmo tempo, de ressignificação e reconstrução é a leitura literária. É nesse sentido que vamos encontrar a autora e personagem Carolina de Jesus, na convivência com os grandes escritores ao seu alcance expressar o seu grito de dor e de revolta na forma de um diário, convertido mais tarde na obra Quarto de despejo. Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura Esse livro é a representação de como palavras de um texto literário estão cheias de sentido que ultrapassam o significado contido no léxico e vão buscar o seu real sentido em seu contexto, ou seja, “nas gotas de vida” que o permeiam. Eu prefiro empregar o meu dinheiro em livros do que no álcool. Se você achar que eu estou agindo acertadamente, peço-te para dizer: - Muito bem, Carolina! (JESUS, 2009, p.74) Carolina escreve com as tintas da própria experiência as dores das “vidas” que se esvaem no álcool, nas drogas, na violência, na falta de privacidade, na fome, dia a dia como uma terrível maldição por ousar sobreviver. Desse modo, a voz de Carolina passa a ser também a voz dos que não têm a palavra. Como nos trechos, abaixo, em que ela denuncia as mazelas sociais e se coloca de forma independente crítica na análise da realidade do Brasil dos anos 1960. Para não presenciar aquele quadro, saí pensando: faz de conta que eu não presenciei esta cena. Isso não pode ser real num paiz fértil igual ao meu. (...)No outro dia encontraram o pretinho morto. (idem, p. 41) (...) Daqui uns dias eu não vou precisar de mais nada deste mundo. Eu não pude viver nas fazendas. Os fazendeiros me explorava muito. Eu não posso trabalhar na cidade porque aqui tudo é a dinheiro e eu não encontro emprego porque já estou idoso. Eu sei que eu vou morrer porque a fome é a pior das enfermidades. (ibidem, p.55) (...) Pobre mulher! Quem sabe se de há muito ela vem pensando em eliminar-se, porque as mães têm muito dó dos filhos. Mas é uma vergonha para uma nação. Uma pessoa matar-se porque passa fome. (ibidem p.63). Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura Carolina escreverá que “o mundo das aves deve ser melhor do que dos favelados, que deitam e não dormem porque deitam-se sem comer” (idem, p.36) e manifesta a sua inveja dos peixes que comeram que não trabalham e passam bem” ao ver jogados no rio arroz, bacalhau, queijos e doces. (ibidem, p. 61). Decide, então, usar o único recurso que tem para se defender: a escrita. Sua indignação é expressa em imagens fortes: “Não tenho força física, mas as minhas palavras ferem mais do que espada. “E as feridas são incicatrizáveis” (ibidem, p.49). E, em um momento de raiva e de humilhação causada pelos seus pares afirma que irá escrever um livro “e vocês com essas cenas desagradáveis me fornecem os argumentos”. (ibidem, p.17). “deixa estar eu vou botar todos vocês no meu livro.” (ibidem, p.3). Até mesmo políticos de sua época são alvos de sua indignação justa: Juscelino Kubitscheck, Adhemar de Barros, Jânio e outros. ... O que o senhor Juscelino tem de aproveitável é a voz. Parece um sabiá e a sua voz é agradável aos ouvidos. E agora, o sabiá está residindo na gaiola de ouro que é o Catete. Cuidado sabiá, para não perder esta gaiola, porque os gatos quando estão com fome contempla as aves nas gaiolas. E os favelados são gatos. Tem fome.... (ibidem, p.36) O homem é capaz de expressar a sua diferença distinguindo-se dos outros por meio do discurso e da ação que é a essência da vida humana. Afinal, é a palavra que nos confere a inserção no mundo e é na convivência com os outros humanos que cada um revela a sua identidade, marcando a sua presença, tecendo os seus relacionamentos, abrindo-se para novas experiências, dentro de uma estrutura anterior à vontade do indivíduo, nessa perspectiva ele não é autor do seu próprio destino. Contudo, o homem carrega em si a faculdade de agir e, com ela, a força de romper o determinismo imposto pela natureza e ao descobrir-se como capaz de escrever a própria história, compreender-se como um ser capaz de falar e de silenciar, de ressignificar suas próprias experiências, tornando-se sujeito político e social. Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura E o meu filho João José disse-me: - Pois é. A senhora disse que não ia mais comer as coisas do lixo. Foi a primeira vez que vi a minha palavra falhar. Eu disse: - É que eu tinha fé no Kubstcheck. - A senhora tinha fé e agora não tem mais? - Não, meu filho. (JESUS, 2009, p.40) É essa a força que estrutura o texto de Carolina de Jesus e a leva a descrever a realidade em que vive tecida com elementos diferentes da cultura dominante, ainda que em determinados momentos ela queira enfeitar o seu texto com palavras “belas” na sua concepção: “Deixei o leito para escrever”. (idem, p.52). Ao mesmo tempo em que também se reconhece entre os seus pares: “Devo incluir-me, porque eu também sou favelada. Sou rebotalho. Estou no quarto de despejo ou queima-se ou joga-se no lixo”. (idem, p.33) Porém, mais que uma denúncia da miserabilidade em que vive, a leitura literária e a escrita em Carolina são os elementos de criação de um mundo impossível, de fantasias, são as asas que a levam para deixar aquele quarto de despejo. Enquanto escrevo vou pensando que resido num castelo cor de ouro que reluz na luz do sol. Que as janelas são de prata e as luzes de brilhantes. Que a minha vista e eu contemplo flores de todas as qualidades. (...) É preciso criar este ambiente de fantasia, para esquecer que estou na favela. (idem, p. 60) É assim que Carolina de Jesus passa do “Quarto de Despejo” às salas de aula, aos salões literários, ao reconhecimento, à condição de escritora. A primeira escritora negra do Brasil. Essa mulher extraordinária que se vê como uma mulher que não pode passar sem ler, que homem há de gostar disso? “e que levanta para escrever. E que deita com lápis e papel debaixo do travesseiro. Por isso é que prefiro vier só para o meu ideal.” (JESUS, 2009, p.50) Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura Carolina a pessoa e a personagem Uma questão fundamental que se apresenta é a qualidade literária do texto escrito por uma mulher que cursou apenas dois anos escolares. Segundo Audálio Dantas, o jornalista que buscava elementos para uma reportagem sobre a história da favela e encontrou nos vinte cadernos encardidos que Carolina guardava o material desejado, é Manoel Bandeira quem afirma: “ninguém poderia inventar aquela linguagem, aquele dizer as coisas com extraordinára força criativa, mais típica de quem ficou a meio caminho da instrução primária.” (idem, p. 8) Santos, considerando que a obra de Carolina, na maior parte inédita, são diários, peças de teatro, provérbios, contos, romances, cartas e bilhetes, afirma: “O admirável é alguém ter escrito uma obra, cerca de cinco mil manuscritos, da anotação breve ao romance, com domínio tão pequeno da norma culta.” (SANTOS, 2009, p.24) Além do mais, impressiona-o as manifestações do talento literário em Carolina, cuja obra era marcada por ritmo, concisão, ainda “criava imagens poéticas mesmo quando errava na concordância nominal”(SANTOS, 2009, p.26). Buscam-se as influências literárias sobre Carolina, identificam-se as antologias escolares, os escritores mais populares, entre os poetas a própria Carolina responde a Casimiro de Abreu: “A Vera ia sorrindo. E eu pensei no Casemiro de Abreu, que disse: ‘Ri criança. A vida é bela’. Só se a vida era boa naquele tempo. Porque agora a época está apropriada para dizer: ‘Chora criança. A vida é amarga’.” (JESUS, 2009, p.36) e também acha que a sua grande paixão, o cigano, é parecido com Castro Alves. Santos (2009) compara a personagem que Carolina criou em seus textos à Isaura de Bernardo Guimarães, o livro que ele entende ter moldado à sensibilidade da pessoa Carolina. Vale destacar que, à época em que Carolina escreve, surgem outros modos de percepção da leitura, considerando o quanto a literatura e poesia foram influenciadas pelo cinema e pelas inovações estéticas com ele trazidas. A modernidade muitas vezes engloba uma série de conceitos que buscam definir aspectos da sociedade em seu âmbito cultural, social, econômico e psicológico. Na Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura esteira da inserção de novas mídias na poesia, a idéia de moderno parte de uma ruptura com o antigo, traçando novos parâmetros de análise da vida, refletindo no comportamento, na sociedade e na arte. Essa estética diferenciada coloca frente a frente o leitor e a modernidade em uma troca que possibilitar a construção de imagens, a alteração no ritmo de leitura, as relações mais centrais entre o homem e o sonho. A estética de Carolina é-lhe fornecida por sua própria experiência. O ritmo de sua escrita é dado pelas próprias batidas do seu coração materno angustiado ante as palavras dos filhos. “Como é horrível ver um filho comer e perguntar: Tem mais? Esta palavra ‘tem mais’ fica oscilando dentro do cérebro de uma mãe que olha as panela e não tem mais.” (JESUS, 2009, p. 39) Considerações finais Na leitura literária o texto se completa com a participação do leitor, participação tal que proporciona a sua transformação, diferentemente da leitura monológica, cuja característica principal é a redução do comentário à confirmação das ideias do autor. No texto literário a compreensão ultrapassa o nível da significação das palavras em seu sentido literal e vai encontrar seu sentido no contexto histórico, social e cultural onde a palavra foi proferida. A leitura feita deste texto levará essas influências a um diálogo com as experiências de vida do leitor, de forma que esse diálogo de significações possa proporcionar ao indivíduo um encontro com a cultura do autor com a própria representação do leitor dentro do texto. Uma obra de Carolina traz à tona as percepções de mundo do autor do texto que, influenciado por sua base social, insere-se no texto de forma que suas influências se estabelecerão nele de maneira muda, mas permanente. “Os favelados aos poucos estão convencendo-me que para viver precisam imitar os corvos.” (JESUS, 2009, p.42) Quarto de Despejo – Diário de uma favelada apresenta essas características, revelando-se na força das imagens que explora, o olhar de Carolina se revela um olhar cinematográfico no qual ao mesmo tempo ela é personagem, autora, vive situações reais e surrealistas ao mesmo tempo uma vez que os seus mundos real e imaginário confundem-se. As palavras Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura do repórter Audálio Dantas o confirmam: “li, (os cadernos) e logo vi, repórter nenhum, escritor nenhum poderia escrever melhor aquela história – a visão de dentro da favela.” (idem, p.7) Prosa e poesia se confundem no diário de Carolina reproduzindo literariamente as imagens da vida cotidiana, seu texto é visual, é fotográfico, é cinematográfico e nos arrasta de um lado para outro com uma intensidade terrível, como se tivesse por objetivo transformar-nos em personagem desse drama. ...Fiz a comida. Achei bonito a gordura fringindo na panela. Que espetáculo deslumbrante! As crianças sorrindo vendo a comida ferver nas panelas. Ainda mais quando é arroz e feijão, é um dia de festa para eles. (idem, p.44). A linguagem só vive na comunicação dialógica daqueles que a usam. É precisamente essa comunicação dialógica que constitui o verdadeiro campo da vida da linguagem. São os diferentes estímulos de cooperação ou de conflito o que leva o indivíduo a estabelecer relações entre si. No caso de Carolina, a fome, a miséria são as suas motivações. Ao ser indagada sobre o sucesso de sua obra ela responde: Eu não sei o que eles acham no meu diário. Escrevo a miséria e a vida infausta dos favelados. Fico pensado o que será Quarto de despejo?, uma coisas que eu escrevia há tanto tempo para desafogar as misérias que enlaçavam- me igual o cipó quando enlaça as árvores, unindo todas. (JESUS, 2009, p. 198) Cabe ressaltar que Carolina de Jesus, como a filha sobrevivente da “Mãe do Cativo” de Castro Alves, luta pela liberdade e representa a voz de milhões de brasileiros que ainda não conseguiram libertar-se da pobreza e da fome. “E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual – a fome!”. (p.27) Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura Assim também outras carolinas consomem suas vidas nesse Quarto de Despejo. “Não se vê mais os corvos as margens do rio, perto dos lixos. Homens desempregados substituíram os corvos” (p.55). Eufemicamente, a sociedade vai nomeando-lhes de “profissionais da reciclagem”, louvandolhes as qualidades, exaltando a sua capacidade de resistência, esquecida, propositadamente, talvez, de que a voz de Carolina de Jesus não é feita para deleite de intelectuais ou para espanto dos mais alienados, mas é a prova da expressão da autonomia de um indivíduo para o qual a leitura literária contribuiu, dando-lhe voz e sendo a voz dos que não têm a palavra. Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura Bibliografia DANTAS, Audálio. O drama da favela escrito por uma favelada: Carolina Maria de Jesus faz um retrato sem retoque do mundo sórdido em que vive. Folha da Noite. São Paulo, ano XXXVII, n. 10.885, 9 mai. 1958. FORTUNA, Felipe. Carolina só. Jornal do Brasil, 10 novo 1986. JESUS, CAROLINA MARIA DE. Quarto de despejo. Diário de uma favelada. Número da edição. Local de Publicação: Editor, ano de publicação. LAJOLO, Marisa. A leitora no quarto dos fundos. Leitura: teoria. 14 (25): 1018, jun. 1995. LEVINE, Robert M. The cautionary tale of Carolina Maria de Jesus. Latin American Research Review. 29(10): 55-83, 1994. MACHADO, AUGUSTO DE FREITA. A leitura literária como autonomia do indivíduo 2007. 130 páginas. Dissertação de Mestrado - UNB, Brasília. MEIHY, José Carlos S. B. Carolina Maria de Jesus: emblema do silêncio. In: Biblioteca Virtual de Direitos Humanos da Universidade de São Paulo. Comissão de Direitos Humanos. http://www.direitoshumanos.usp.br/bibliografia/meihy. htm, consultado em 10/4/2011. MEIHY, José Carlos S. B; LEVINE, Robert M. Cinderela negra: a saga de Carolina Maria de Jesus. Rio de Janeiro: UFRJ, 1994. SANTOS, Joel Rufino dos. Carolina Maria de Jesus : uma escritora improvável . - Rio de Janeiro : Garamond, 2009. 1. Jesus, Carolina Maria de, 1914-1977. 2. Escritoras brasileiras - Biografia.3. Negros - Brasil - Condições sociais. I. Título. II. Título: umaescritora improvável. Disponível em: http://www.garamond.com.br/arquivo/395. pdf Acesso em: 04.09.2011.