ESTADOS UNIDOS O sucateamento da educação pública VOZ DOS TRABALHADORES (EUA) D esde sua posse, a administração Obama tem optado por continuar e até expandir o plano de sucateamento da educação pública posto em prática durante os anos de Bush. Está aplicando reformas de longo alcance baseadas no mercado, como o pagamento de professores por mérito, a promoção de escolas charter (ver a seguir) como alternativa às escolas públicas e a distribuição de recursos federais através de bolsas competitivas ligadas à pontuação em testes padronizados pelo Estado, políticas que significam um ataque aberto ao sindicalismo organizado, um projeto de privatização de escolas de baixo desempenho e um aprofundamento do modelo falido de “ensinar para o teste“. Este projeto de reestruturação da educação pública vem após décadas de negligência e “desfinanciamento” do sistema nacional de ensino. E os distritos escolares mais duramente atingidos são sempre os que atendem comunidades proletárias, negras ou latinas. As desigualdades crônicas no sistema público de ensino são claras: salas superlotadas, instalações deterioradas, muitas vezes perigosas, completa falta de tecnologia essencial e de materiais didáticos. Agora, a submissão crescente de todo o currículo educacional a exames padronizados de “alto-risco”1 proporcionou outro golpe para a qualidade de ensino, pois as escolas tentam desesperadamente melhorar os resultados dos testes e deixam de lado tudo o que não contribui diretamente para isso. Como os professores são forçados a se concentrar quase exclusivamente na preparação para os testes padronizados, os estudantes raramente têm um processo de aprendizagem que os ligue ao mundo real. Os professores também são 16 desmoralizados por ensinarem sob essas circunstâncias. Além disso, essas condições desumanas levam a uma alta taxa de evasão escolar: cerca de 30% a nível nacional e mais de 50% em muitas grandes cidades. Escolas Charter De acordo com a Associação Nacional de Educação (NEA), as escolas charter são “escolas do ensino fundamental e médio financiadas publicamente, que foram liberadas de algumas das regras, regulamentos e estatutos que se aplicam a outras escolas públicas, em troca de algum tipo de prestação de contas para a produção de certos resultados, que estão previstos nas metas de cada escola charter”. Devido, em parte porque elas não estão cobertas por acordos sindicais e em parte por necessitarem atender regulamentações mínimas do distrito escolar, escolas charter financiadas com verbas públicas têm atraído muito investimento de igrejas, ONGs e, o mais alarmante, de proprietários e dirigentes das mais ricas corporações e indústrias dos EUA. Esta lista inclui a família Walton da Walmart, Bill Gates, Eli Broad (proprietário da financeira SunAmerica) e Bloomberg, prefeito de Nova York, amplamente conhecidos por suas práticas antisindicais. Isto significa que as escolas charter são basicamente operadas de forma privada e servem interesses privados com financiamento público. Elas representam a privatização do ensino, permitindo que corporações financiem escolas administradas pelas leis do mercado. Ou, em outro exemplo desse conflito de interesses, há grupos religiosos abrindo e administrando escolas charter com financiamento público. A maioria alega que seu propósito é melhorar os resultados educacionais, porém estudos mais abrangentes mostram pouca ou nenhuma melhoria em relação às escolas públicas tradicionais e, em alguns casos, mostram uma queda no desempenho educacional. Estes incluem pesquisas da Federação Americana de Professores (AFT) que, em 2003, constatou que “alunos de escolas charter não mostram diferenças estatísticas significativas de resultados em leitura e matemática em relação aos estudantes de escolas públicas”. As seguintes pesquisas mostram resultados semelhantes: um estudo feito pelo Departamento de Educação dos EUA, em 2003; um estudo divulgado em agosto de 2006 pelo Centro Nacional para a Estatística da Educação (NCES) e um feito pelo Centro de Pesquisas sobre Resultados em Educação (CREDO) da Universidade de Stanford em 2009. Além disso, estudos recentes, como o Projeto sobre Direitos Civis da Universidade da Califórnia, em 2010, revelam um desequilíbrio racial preocupante na proliferação de escolas charter: “Enquanto o país continua se movendo firmemente na direção de maior segregação e desigualdade de educação para estudantes negros e latinos nas escolas com desempenho e taxas de graduação mais baixos [...] O rápido crescimento das escolas charter está expandindo um setor que é ainda mais segregado do que as escolas públicas”. Mesmo com os estudos mencionados, o ex-presidente Bill Clinton, George W. Bush e o presidente Barack Obama ainda são grandes patrocinadores das escolas charter. As charter não são apenas uma ameaça para as escolas públicas, elas também CORREIO INTERNACIONAL ESTADOS UNIDOS são um esforço consciente de ataque sindical destinado a destruir o poderoso sindicato dos professores da AFT e a Associação Nacional de Educação (NEA), com 1,4 milhão e 3,2 milhões de membros, respectivamente, os maiores sindicatos do setor público dos EUA. Em primeiro lugar, quando as escolas públicas são fechadas para abrir caminho às charter, muitas dessas estão fora da ação sindical ou seus professores têm contratos separados do resto dos grandes sindicatos. Em segundo lugar, os contratos de escolas charter tendem a ter uma frágil proteção do emprego, salários mais baixos e menos benefícios de saúde e previdência. A Lei “Nenhuma Criança Deixada para Trás” O retorno da impopular lei federal Nenhuma Criança Deixada para Trás (NCLB em inglês), feita por Obama e o ministro da Educação Arne Duncan, em março de 2010, para Lei do Ensino Fundamental e Médio (ESEA em inglês) é outro impulso explícito para as escolas charter. A NCLB foi originalmente proposta pelo governo de George W. Bush logo após assumir o cargo sendo transformada em lei em 2002, com o apoio dos partidos Republicano e Democrata. Ela exige que os estados desenvolvam avaliações em habilidades básicas para todos os estudantes como uma pré-condição para que estes recebam verbas federais para as escolas. Na realidade, a NLCB tem os seguintes efeitos: 1) transfere os fundos estaduais reservados às escolas públicas para as charter; 2) força as escolas a concentrarse estritamente em duas disciplinas (matemática e leitura), o que as leva a não priorizar disciplinas e tipos de aprendizagem que não podem ser demonstrados através dos testes; 3) incentiva o “ensino para o teste“ - estratégias para adivinhar a resposta certa em testes de múltipla escolha, ao invés de incentivar o aprendizado e pensamento verdadeiros e estimula roteiros de ensino, e 4) facilita o recrutamento militar, pois exige das escolas secundárias públicas que permitam o acesso às instalações pelos recrutadores da mesma forma que nas instituições de ensino superior. A ESEA (ou como Obama a chama “um anteprojeto para a reforma”) mantém o mesmo projeto da NLCB, exigindo um aumento da intervenção em “escolas de baixo desempenho”. Estabelece “verbas para escolas reformadas“ que os estados só podem receber se escolherem um dos NOVEMBRO DE 2010 quatro modelos para as suas escolas mais problemáticas: transformação (substituição do diretor, extensão do horário escolar e aplicação de nova governança e “flexibilidade”); reforma (substituição do diretor e substituição de até 50% dos funcionários); recomeço (fechar a escola e reabri-la sob a gestão de um operador charter) ou fechamento. cluindo escolas charter que operam com o dinheiro do sistema de escolas públicas; 3) a adoção de padrões comuns e avaliações de alta qualidade e 4) dito por Arne Duncan em junho de 2009: “estados que não tiverem leis charter ou puserem limites artificiais para o crescimento de escolas charter irão comprometer suas aplicações no âmbito do orçamento do RTTT”. Corrida para o Topo Outra iniciativa de uma nova “reforma” da educação pública utilizada pela administração Obama é o programa Corrida para o Topo (Race to the Top – RTTT em inglês), um esforço consciente para a “charterização“ que força todos os distritos escolares a competir por um fundo federal de US$ 4,35 bilhões para financiamento da educação. O RTTT tem quatro áreas centrais de reforma educacional, segundo o governo: 1) adoção de padrões e avaliações que preparam os alunos para o sucesso na faculdade e no trabalho e para competir na economia mundial; 2) construção de sistemas de dados para mensurar o crescimento e sucesso do estudante, e informar os professores e diretores sobre como eles podem melhorar o ensino; 3) recrutar, desenvolver, recompensar e reter professores efetivos e diretores, especialmente onde são mais necessários, e 4) reformar as escolas de baixo desempenho. Na realidade, impõe as seguintes políticas: 1) pagamento por mérito (o desempenho dos alunos em testes para determinar o salário dos professores); 2) exigência de uso pelos distritos de pelo menos 50% da concessão para subsídio a Agências Locais de Ensino (AEL), in- Alocação do Orçamento Federal para a Educação Em janeiro de 2010, o governo Obama anunciou um congelamento parcial dos gastos domésticos por três anos a partir do orçamento federal de 2011. Ficam de fora os gastos militares, os orçamentos das guerras de Afeganistão e Iraque, a “ajuda” externa, a seguridade social e os gastos com saúde para os pobres e aposentados. Consequentemente, isso levou ao corte de verbas para a educação pública em todos os níveis. Mais de 43 estados reduziram a assistência às faculdades e universidades públicas, resultando em reduções de professores e funcionários, além de aumento das taxas de matrícula. Além disso, 36 estados reduziram o orçamento para o ensino superior e mais de 27 estados cortaram gastos com os ensinos fundamental e médio (K12), que levaram a um aumento nas mensalidades, demissões e licenças não renumeradas, cortes em programas e aumento do número de alunos por classe. Além disso, no início de maio de 2010, a Associação Americana de Administradores de Escolas anunciou que 2010 e 2011 trariam quase 250 mil demissões em todo o país apenas para os professores, com milhares de demissões adicionais relacionadas aos demais funcionários da educação. O caso do sistema de ensino público de Chicago é emblemático: o déficit orçamentário educacional de mais de US$ 700 milhões está sendo equilibrado por meio de demissões de professores e funcionários e, até o final de março de 2010, cerca de 9.800 anúncios de demissões foram entregues aos professores. Isso, juntamente com um congelamento nas contratações, deixou 1.600 postos vacantes. Além disso, eles aumentaram o tamanho das classes no ensino para 37 alunos e o total de demissões de professores e funcionários no estado foi projetado para ultrapassar 20 mil. Arnold Schwarzenegger, governador do estado da Califôrnia, laboratório de teste das políticas neo-liberais no ensino público. 17 ESTADOS UNIDOS Califórnia: o laboratório de testes Estudantes e trabalhadores reagem A fase mais recente de anemia dos orçamentos dos estados bateu duramente na Califórnia, com um déficit de US$ 6,9 bilhões. Mais importante, os cortes orçamentais são apenas o mais novo pretexto para o que a Califórnia se tornou - um laboratório de testes de políticas repressivas neoliberais que são posteriormente ampliadas ao resto do país – o banimento da “ação afirmativa”, os ataques contra os imigrantes, as escolas charter, reforma fiscal, e a guerra contra as drogas. Tais políticas de privatização estão sendo aplicadas de forma desigual em todo o país por parte dos governos estaduais e municipais. Mais recentemente, a Califórnia tem servido como um laboratório para as políticas que as grandes empresas e bancos aspiram a espalhar por toda parte. No entanto, a Califórnia tem sido o centro da resistência e é por isso que sua resistência tem importância nacional. No contexto da crise orçamentária, as administrações locais aplicaram reduções salariais e demissões na Universidade Estadual da Califórnia (CSU). A fim de reduzir os déficits orçamentários, o Conselho de Reitores da Universidade da Califórnia (UC) decidiu aprovar um aumento da taxa de matrícula para todas as 10 universidades do sistema, assim como os curadores da CSU em todas as 23 universidades de seu sistema. O aumento das taxas, demissões e licenças com redução salarial levaram os estudantes e trabalhadores dos campi da UC a realizar grandes protestos e greves em 24 de setembro e nos dias 18, 19 e 20 de novembro de 2009, após os reitores da UC aprovarem um aumento de 32% nas taxas. Além das greves, os estudantes bloquearam a entrada de carros e ocuparam diversos prédios das universidades. Os protestos continuaram em 4 de março do ano seguinte, com um Dia Nacional de Ação, quando estudantes e trabalhadores de todos os setores da educação da Califórnia e em outros 33estados organizaram protestos de massas em unidade de ação. O Dia Nacional da Ação de 7 de outubro foi um dia nacional com pelo menos 76 manifestações em 25 estados. As ações incluíram passeatas, protestos, marchas e foram centradas no ensino superior. Apesar da ausência dos setores secundaristas, os protestos ocorreram em algumas das mesmas universidades que organizaram o 4 de março e alguns novos campi também realizaram manifestações. O 7 de outubro expressa a realidade de que estudantes e trabalhadores da educação superior ainda estão empenhados em construir um movimento democrático e de massas para lutar contra o plano de privatização do governo Obama e seus aliados neoliberais. Dois exemplos da luta contra o sucateamento da educação em Berkeley e São Francisco, respectivamente. A luta continua Na manhã do Dia de Ação de 7 de outubro e 100 dias após seu prazo original, o governo do estado da Califórnia finalmente aprovou um orçamento de estado com cortes de US$ 4,3 bilhões para a educação pública e suspende a Proposição 98, que os eleitores aprovaram a fim de garantir o financiamento para o K-12 e faculdades comunitárias. Estes cortes somam-se aos US$ 17 bilhões nos últimos dois anos e vai deixar um déficit de US$ 2 bilhões para as escolas, K-12 e faculdades comunitárias até o próximo ano fiscal. Embora o orçamento tivesse um pequeno aumento no financiamento para a UC e CSU, ele é apenas uma fração dos cortes dos últimos anos. Para piorar, há cortes nos serviços sociais e no pagamento e benefícios de funcionários públicos. Além disso, o orçamento prevê receitas eventuais – algumas delas podem nunca se concretizar – e o próximo governador da Califórnia deverá enfrentar um déficit de vários bilhões de dólares a partir do momento em que ele ou ela tomar posse no próximo ano. Os deputados estaduais também concordaram em aumentar a idade de aposentadoria e o valor da contribuição previdenciária dos funcionários públicos. O déficit orçamentário deixa os setores da educação pública, funcionários públicos e os dependentes dos serviços sociais - que são maioria na classe trabalhadora e nas comunidades negra e latina - em uma posição vulnerável. Há uma necessidade urgente de continuar a mobilização, devido a outro aumento da taxa de matrícula previsto para o próximo encontro de reitores da UC em novembro de 2010. Por outro lado, o sindicato United Auto Workers (UAW) Local 2865 (um sindicato que representa mais de 12 mil instrutores de graduação e monitores em todo o sistema UC) está mobilizando por um acordo com aumentos salariais e creches. Haverá uma Conferência Estadual de Mobilização contra a Privatização da Educação Pública em 30 e 31 de outubro e, da mesma forma que as duas conferências estaduais anteriores, ocorridas após os protestos de 2009/2010, esta conferência será uma oportunidade para fazer avançar a luta em âmbitos estadual e nacional. Educação acessível e diversificada para todos! Educação de qualidade e gratuita para todos! Educação democrática e justa para todos! A luta continua! 1 Testes “de alto-risco” (high-stake tests): são os exames que definem a vida escolar de um estudante, como sua aprovação no ano ou graduação, independentemente de seu desempenho escolar. CORREIO INTERNACIONAL