O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DOS HERÓIS NACIONAIS NA
HISTORIOGRAFIA DE GUSTAVO BARROSO
Erika Morais Cerqueira/UFOP *
RESUMO: Este artigo tem por objetivo compreender o processo de construção de biografias
por parte de Gustavo Barroso. Vale ressaltar que esta foi uma das formas utilizadas pelo autor
para a elaboração de sua escrita histórica, firmando-se como um gênero que lhe possibilitava
narrar a vida de um personagem acentuando sua singularidade e garantindo sua continuidade
mediante os incentivos para sua imitação. Tais biografias permitiam uma reconstituição do
passado ao assumirem como função difundir vidas exemplares num caráter pedagógico. Elas
narravam a vida dos grandes homens da nação ao mesmo tempo em que serviam como guia
moral ou cívico. A eficácia persuasiva das biografias barroseanas pode ser compreendida ao
se considerar este como um gênero de escrita que atendia aos imperativos da Historia
Magistra Vitae ao fixar nomes e exemplos do passado, oferecendo-os à imitação dos leitores
no presente. Com suas narrativas sobre heróis e grandes feitos, Barroso incitava os brasileiros
a seguirem os exemplos dos militares por ele biografados identificados em sua obra com os
grandes heróis do mundo antigo, servindo como modelos para a constituição da identidade
nacional.
PALAVRAS-CHAVE: Gustavo Barroso; historiografia; biografia; heroísmo; nacionalismo.
A convicção de que o passado deveria ser perpetuado por meio da escrita histórica
traduziu-se na obra de Gustavo Barroso sob a forma de biografias. Estas surgiram como um
gênero que permitia ao autor narrar a vida de um personagem acentuando sua singularidade e
garantindo sua continuidade mediante os incentivos para sua imitação. Permitiam uma
reconstituição do passado ao assumirem como função difundir vidas exemplares. As
biografias barroseanas possuíam um caráter pedagógico, elas narravam a vida dos grandes
homens da nação ao mesmo tempo em que serviam como guia moral ou cívico. A esse
*
Mestranda do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Ouro Preto, sob orientação
da Profª. Dra. Helena Miranda Mollo. Bolsista REUNI/CAPES.
respeito, Armelle Enders explica que: “Com suas notícias, os biógrafos quitam assim uma
espécie de dívida que a sociedade brasileira contraiu com os grandes homens para em seguida
fazer um trabalho pedagógico, tornando a história acessível ao grande público”. (ENDERS,
2000, p. 08).
Neste contexto, compreende-se que a tarefa da história era fixar a memória das vidas e
feitos dos grandes homens servindo como ensinamento a partir da apropriação educativa que
a atualizaria no presente. Maria da Glória Oliveira (2009) esclarece que a biografia era
exaltada tanto por tornar vivos os grandes homens quanto pela eficácia persuasiva de suas
lições morais:
Nesse caso, o que se vê é o encadeamento de cenas memoráveis que a
narrativa do historiador restitui à vida e ao presente. Ao narrar o que
fizeram e como viveram as gerações pretéritas, ele deve transformar os
leitores em expectadores ou “testemunhas”, oferecendo-lhes uma
experiência do passado. (OLIVEIRA, 2009, p.46)
As biografias tornaram-se assim um gênero eficaz para oferecer lições e paradigmas
de conduta aos cidadãos, ao fazer ver as virtudes morais no relato de seus ancestrais, elas
incitariam à imitação. Desta forma, a biografia apresentava-se como “apelo pelo dever de
memória e luta contra o esquecimento”. Assim, essa tarefa de honrar a memória dos grandes
homens, empreendida como antídoto à voragem do tempo, não era evocada sem que nela
estivesse implícito certo dever de justiça: “A escrita biográfica confundir-se-ia com a
prestação de um tributo devido às vidas dos grandes homens, com a qual se perpetuariam as
suas ações e se consignariam os seus verdadeiros ‘lugares’ na história”. (OLIVEIRA, 2009, p.
157).
Peter Burke considera que esse objetivo didático das biografias aponta para “[...] a
idéia de que a biografia oferece a seus leitores um rumo na estrada de suas próprias vidas”.
(BURKE, 2000, p. 10). Desta forma, torna-se importante questionar: quem eram essas
pessoas cujas vidas foram consideradas por Barroso tema apropriado para a composição de
biografias?
As biografias barroseanas narram façanhas dos ilustres guerreiros da pátria. As
personagens são as personalidades militares do período monárquico. Figuras exemplares que
souberam amar e respeitar a pátria. Constituem símbolos de sacrifício e honra, surgem como
2
entidades revestidas em aura divina. Esses heróis barrosenos foram os grandes responsáveis
pela demarcação e alargamento das fronteiras nacionais, souberam defender com suas vidas o
território nacional e por essa razão figuram entre as entidades dignas de culto que se oferecem
como exemplos a serem seguidos pelas futuras gerações.
Esse projeto de escrita das biografias dos guerreiros da pátria atendia à proposta de
buscar no passado e arrancar do esquecimento os nomes daqueles que prestaram serviços à
nação. Enders (2000) destaca que os personagens destas narrativas têm como interesse
principal simbolizar e resumir uma época, identificada por Gustavo Barroso como “Época de
heroísmo e força, própria para temperar a alma de heróis”. (BARROSO, 1932, p. 18).
As biografias escritas por Gustavo Barroso têm como função ressaltar as virtudes dos
líderes militares brasileiros, construindo uma imagem de verdadeiros heróis nacionais. Enders
(2000) afirma que o exemplo do grande homem deve ser contagioso para fazer surgir novos
exemplos ou, ao menos, servir de guia moral ou cívico. Desta forma, o herói barroseano surge
como um ser que se distingue, sua vida é marcada pelo extraordinário, suas façanhas são
exaltadas ao mesmo tempo em que são valorizadas a obediência e a lealdade. Miguel
Abensour (1992) explica que esse tipo de heroísmo corresponde a uma tradição vinda da
Antiguidade que tem no povo a principal fonte de energia para a atuação desses heróis.
Abensour afirma que Michelet compreendia que o heroísmo “não é a qualidade subjetiva de
tal ou qual, mas é em primeiro lugar um clima, o tom da época que afeta todos os atores e,
prioritamente, o ator principal, o povo, que passa do nada ao ser na própria experiência desse
afeto.” (ABENSOUR, 1992, p. 217). Abensour acrecenta ainda que “Michelet oferece uma
visão da impessoalidade desse estado, desse movimento. O povo no estado heróico é
comparado, em sua imensidão, seja ao oceano, seja a um vulcão em erupção”. (ABENSOUR,
1992, p. 217).
Os heróis militares distinguem-se na escrita barroseana como figuras sobre-humanas
que marcaram a história nacional com uma aura de divindade: “[...] aparecendo na nossa
história, então, nomes que seriam os de dinastias de centauros e de heróis: Marques de Souza,
Tomás Osório, Corrêa da Câmara”. (BARROSO, 1938, p. 129). Essa qualidade de
transcendência atribuída aos heróis é percebida por Abensour como uma das características
centrais do heroísmo, este autor aponta que “Tocqueville chega mesmo a perceber no
heroísmo como que o cadinho de uma nova religião, pelo menos quanto aos seus efeitos.”
(ABENSOUR, 1992, p. 216).
3
Para enaltecer os grandes feitos destes heróis, Barroso recorre à memória dos
brasileiros: “Todos nós conhecemos essas epopéias assombrosas dos nossos antepassados”
(BARROSO, 1938, p. 125). O contexto em que essas figuras militares agem é apresentado de
forma vibrante: “Época de heroísmo e força, própria para temperar a alma de heróis”.
(BARROSO, 1932, p. 18). Referindo-se à idade com que Caxias, Osório e Tamandaré usaram
as insígnias de primeiro posto na carreira militar, o autor reflete: “Tempos heróicos esses do
amanhecer da nossa vida nacional em que as grandes glórias militares da pátria
desabrochavam na adolescência! Talvez por terem brotado com tanta força se mantiveram
puras até a velhice.” (BARROSO, 1933, p. 27).
No livro Osório, o centauro dos pampas a vida do general é narrada desde seu
nascimento até sua morte. A cronologia utilizada evidencia a idéia de que a personagem deve
exibir constância ao longo de sua vida, como se sua personalidade se mantivesse inalterável
com o passar dos acontecimentos. Burke assinala que essa concepção reflete “o pressuposto
de que a personalidade é estática, o produto fixo de um equilíbrio de humores e, para alguns
autores, o resultado inevitável de uma constelação de fatores ligados ao nascimento”.
(BURKE, 2000, p. 11).
Nas páginas do livro Osório, o Centauro dos pampas, Barroso destaca: “A criança que
recebera o batismo naquele dia de maio que o destino lhe reservava para a sagração definitiva
da glória do campo de batalha, cresceu livremente, sadia e vivaz na simplicidade da estância
paterna” (BARROSO, 1932, p.08). Sobre as primeiras lições aprendidas pelo menino Osório,
o autor acentua: “Era um verdadeiro centauro que se formava” (BARROSO, 1932, p.13).
Osório participou de batalhas com apenas 14 anos de idade. Neste período, o futuro general
estava em companhia do pai que pretendia apresentar-lhe os primeiros ensinamentos da
carreira militar. Sobre esta fase, Barroso afirma: “O menino tudo suportava com uma alegria
estóica e uma serenidade de veterano” (BARROSO, 1932, p.17). Anos mais tarde, durante a
Guerra do Paraguai, as façanhas de Osório são descritas da seguinte forma: “Osório bateu-se
como um leão”. (BARROSO, s/d, p. 191)
O vocabulário utilizado pelo autor evidencia a tentativa de elaborar uma história épica,
na qual as personalidades militares são semelhantes aos grandes heróis do mundo antigo. As
figuras mitológicas aparecem na escrita barroseana com o objetivo de consolidar a reputação
guerreira1. Maria Helena Machado (2000) explica que essa visão mítico nostálgica é
4
geralmente utilizada como uma fonte de identidade, como uma possibilidade ou território de
construção do ser brasileiro.
A narrativa em forma de epopéia marcada pelo privilégio dos temas heróicos aparece
na obra barroseana também pela tentativa do autor em atribuir grandiosidade aos feitos
militares brasileiros: “Os nossos soldados escreviam o maior poema épico do continente: A
Retirada da Laguna”. (BARROSO, 1938, p. 314). O uso do vocabulário do mundo antigo é
recorrente na obra de Gustavo Barroso, o que pode ser notado quando este qualifica a ação
brasileira de “homérica resistência” (BARROSO, 1938, p. 313). O estilo utilizado pelo autor
aponta para a tentativa de conferir ares de grandiosidade à história militar do Brasil:
“Começou a marcha de retorno à fronteira, prelúdio duma epopéia de coragem silenciosa e de
sacrifício”. (BARROSO, 1938, p. 317).
Gustavo Barroso deixa transparecer a tentativa de produzir uma história capaz de
sensibilizar, de despertar sentimentos, de enaltecer o patriotismo: “A religião de Osório era a
pátria” (BARROSO, 1932, p.185). Neste sentido, o herói militar é a figura quase divina, da
qual o povo espera a certeza da vitória: “A figura assombrosa do centauro domina o panorama
da batalha. Ele comanda tudo, ele está em toda parte. Ele salva tudo!” (BARROSO, 1932,
p.160). As virtudes do herói o colocam acima dos homens comuns: “Osório estava acima das
ninharias e mais acima ainda se elevaria em pouco tempo a sua glória de batalhador”
(BARROSO, 1932, p.128). Sobre esta questão, Abensour esclarece que “o heroísmo aspiraria
a uma similitude com o divino”. (ABENSOUR, 1992, p. 222).
A idéia de predestinação é recorrente na obra barroseana. O destino assume uma
função distintiva entre as pessoas comuns e as personagens heróicas. É como se estas figuras
militares surgissem à semelhança de deuses, capazes de salvar a nação, entidades ímpares que
não surgiriam em outros contextos. Neste sentido, Burke ressalta que essas “profecias sobre a
grandeza futura do herói são um elemento recorrente nas biografias renascentistas” (BURKE,
2000, p. 15), aparecendo como uma história da descoberta de uma vocação. O herói
barroseano é apresentado como aquele que possui um destino meteórico. Em “Tamandaré, o
Nelson Brasileiro”, Barroso antecipa os grandes feitos a serem realizados por Joaquim
Marques Lisboa, o futuro almirante Tamandaré: “A este homem que nascera predestinado às
lutas guerreiras, o destino reservava miraculosas salvações de pessoas e de navios”
(BARROSO, 1933, p. 68). Sobre a carreira de Osório, Barroso novamente recorre à idéia de
predestinação, exposta na fala do pai do futuro general que parece predizer seu futuro: “Há
5
muito tempo, meu filho, disse, observo tua vida e teus gestos, e tudo me indica que nasceste
predestinado à carreira das armas” (BARROSO, 1932, p. 16).
Na tentativa de compor a grande narrativa da nação, Gustavo Barroso ocupava-se de
relatar as façanhas dos seus ilustres protagonistas, os militares. Na narrativa barroseana estas
personagens surgem como grandes figuras, enviadas pelos céus para conduzir e proteger a
nação num período tumultuado de sua história. Em “Tamandaré, o Nelson Brasileiro”, há um
comentário do autor que permite identificar esta postura: “Ia por obra e graça do destino,
tomar parte ativa na Cabanada, como tomara na Setembrizada e na Abrilada”. (BARROSO,
1933, p. 54). Nesta fala de Barroso, compreende-se que a atividade desenvolvida pelos
militares não é uma escolha fortuita, mas uma obra divina para a qual foram escolhidos e
destinados a desempenhar: “O óculo que Espora lhe oferecera fôra como que o símbolo
profético de que nascera para comandar”. (BARROSO, 1933, p. 47). O destino, portanto
escolhe aqueles a quem quer dignificar, envolvendo os militares na grande gênese da nação:
“A Joaquim Marques de Souza reservava o destino na campanha naval que se abria, algumas
coroas de louro”. (BARROSO, 1933, p. 27). Desta forma, pode-se perceber que na obra
barroseana as ações não ocorrem como um mero acaso ou habilidade das personagens, mas
como um escolha feita pelo destino que já premeditara o futuro da nação e escolhia os homens
dignos de realizar as proezas já assinaladas por uma entidade que tudo vê:
[Na Balaiada] “Pela primeira vez, o destino reunia numa mesma ação
conjunta esses dois homens destinados a serem grandes figuras militares do
Império, cariatides de sua grandeza no mar e em terra durante o longo
período em que se processou a estratificação da nacionaldiade”.
(BARROSO, 1933, p. 81).
A obra barroseana é marcada por descrições detalhadas sobre a aparência, a atuação e
a postura dos líderes militares. Pode-se observar na narrativa que o autor procura compor a
imagem de um herói militar, como exemplo de amor à pátria, oferecendo-o à imitação do
leitor como exemplo de patriotismo, deixando claro que ele se serve da história como uma
coleção de exemplos para instruir. Em “A Guerra do Lopez: Contos e episódios da Campanha
do Paraguai” o autor narra com entusiasmo o primeiro contato das tropas com o general
Osório:
6
No ardor da luta, de repente, um homem passava a cavalo, rodeado de
oficiais e lanceiros. Dava-lhe o vento no cobre-nuca do quépi branco e no
poncho listado, agitando-os como duas bandeiras. Na gola baixa de sua
túnica singela e negra, havia bordados de general, mas ele trazia na mão
uma lança, como se fosse um simples gaúcho. Os soldados velhos
conheciam de sobra suas feições varonis, qualquer coisa de leonino no
queixo forte, no cabelo basto. Os novos sabiam de sua fama, porém quase
lhe não podiam distinguir a fisionomia entre o esvoaçar do poncho, a poeira
e a fumaceira da peleja. Atirava ao som das cornetas os batalhões para a
frente, épico, ardendo pelas lutas corpo a corpo. (BARROSO, 1928, p.67)
No livro Osório, o centauro dos pampas, a figura de Osório surge novamente no
campo de batalha envolvida pela mesma atmosfera fantástica: “O centauro surgiu de lança
apeirada de prata em punho, o poncho flutuando como uma bandeira. Os soldados erguem
vivas frenéticos e avançam eletrizados” (BARROSO, 1932, p. 160). Este modelo de narrativa
patriótica que consagra os militares como heróis e exalta seus feitos deixa claro seu objetivo
de reputar como heróis somente aqueles a quem as proezas das armas e dos campos de batalha
deram celebridade. 2
Os militares Caxias, Osório e Tamandaré são denominados pelo autor de “a espada do
Império”, “o centauro do império” e a “âncora do império”, em referência às atividades das
quais se ocupavam. O contexto em que essas figuras militares emergem é definido por
Barroso como o “período em que se processou a estratificação da nacionalidade”
(BARROSO, 1933, p. 81). Barroso propõe ao longo de sua obra que este momento da história
nacional foi marcado por disputas internas e externas que colocaram em risco a unidade
nacional. Neste aspecto, era fundamental que os militares fossem exemplos autênticos da
obediência, disciplina e lealdade necessárias à manutenção da ordem. Sobre esta questão,
Barroso afirma em “Tamandaré, o Nelson Brasileiro”:
No fim de sua longa vida gloriosa, o marquês de Tamandaré poderia afirmar
com orgulho, como um exemplo aos militares do futuro, que subira ao mais
elevado posto e recebera todas as honras e tivera todas as glórias sem
precisar de ter o espírito revolucionário, sem o qual muita gente pensa que é
absolutamente impossível ser alguma coisa. O velho almirante, tipo de
honra militar e símbolo de bravura e lealdade, subira do primeiro ao último
degrau da hierarquia sem nunca ter participado duma rebelião. Entretanto, a
7
disciplina e a ordem não o impediam de ter personalidade e hombridade,
como uma vez deixou provado. (BARROSO, 1933, p. 69).
O herói barroseano seria um indivíduo com a alma plena de um sentimento infinito
pela Pátria e pela liberdade, e que age e está pronto a sacrificar-se por elas. As virtudes
heróicas são apresentadas ao longo da obra como exemplos da perfectibilidade das figuras
militares brasileiras identificadas pela piedade, prudência, moderação, fortaleza e
magnanimidade. Sobre Osório, Barroso afirma: “Moralização e disciplina. Foi este o seu
programa”. (BARROSO, 1933, p. 131).
Gustavo Barroso procura aproximar suas personagens de um ideal sublime de bondade
e desprendimento. Sobre a conduta de Duque de Caxias, Barroso ressalta a “habilidade com
que pacificou o Império com a espada na mão para reprimir o excesso, com o perdão nos
lábios para atrair almas” (BARROSO, 1933, p. 88). Estes sentimentos superiores são
enfatizados na obra “Tamandaré, o Nelson brasileiro”, na qual Barroso destaca o sacrifício da
própria vida do almirante em benefício das demais: “Salvando vidas em risco manifesto da
sua. Não merecia uma espada de ouro, porém uma âncora de ouro, porque a espada mata e a
âncora é a esperança e a salvação” (BARROSO, 1933, p. 110).
Estes sentimentos e estas paixões que os heróis são capazes de despertar são
explicados por Michelle Schreiner como característicos de uma cultura heróica, na qual: “Os
homens faziam derivar sua própria nobreza de Deus e a fantasia prevalecia ainda sobre a
reflexão. O universo da cultura heróica seria de violência e espanto, de euforia e de êxtase,
não existindo fronteiras entre imaginação e realidade”. (SCHREINER, 2005, p. 229). Desta
forma, pode-se compreender que a proposta barroseana era a um só tempo difundir a vida e os
feitos desses heróis nacionais e guiar os leitores procurando desenvolver certas virtudes
morais e sociais. Barroso procurava sensibilizar seus leitores atribuindo um papel crucial para
os grandes homens na história da nação. Neste sentido Osório seria: “a alma da batalha”
(BARROSO, 1938, p. 281) sem este soldado o futuro da nação poderia ser ameaçado, pois
“Seu nome era a bandeira que acendia a coragem dos nossos soldados”. (BARROSO, 1938, p.
300). Para enfatizar o poder desses heróis e a lealdade que eram capazes de despertar, Barroso
relata pequenos fatos que demonstram o apreço das tropas pelos seus generais. Em “História
Militar do Brasil”, o autor narra a ocasião em que um soldado tomou a bandeira do inimigo.
8
Nesta oportunidade: “Osório estendeu-lhe a mão leal, que o soldado aperta, os olhos rasos de
água”. (BARROSO, 1929, p. 172).
Na escrita barroseana, a imagem de Caxias é representada como a figura do grande
homem que sustenta a nação. Este seria o herói maior da nação brasileira, caracterizado pelo
conhecimento em áreas diversas como a política e a diplomacia, e principalmente pelo seu
total desprendimento em defesa da pátria:
Caxias foi a espada que sustentou longos anos o Império, combatendo e,
mais do que combatendo, pacificando. Ninguém, no nosso país, em quatro
séculos de história, foi maior do que ele. Guerreiro e político. Diplomata e
estadista. Ninguém teve maior fé nos destinos da pátria e ninguém a serviu
com maior brasilidade. (BARROSO, 1929, p. 99-100).
Pode-se perceber na obra barroseana que estas figuras constituem exemplos da própria
nacionalidade. Segundo Barroso, Tamandaré seria a: “A história viva da Armada Nacional, a
história viva da própria nacionalidade”. (BARROSO, 1933, p. 205). Os militares seriam,
portanto, o retrato autêntico do ideal de brasilidade barroseano, pela capacidade que tinham de
colocar suas vidas a serviço da pátria. Sobre Osório, Gustavo Barroso esclarece: “Fez com
estas palavras o resumo de sua grande vida: coragem tranqüila, independência sem orgulho, a
pátria acima de tudo e a constância no sacrifício”. (BARROSO, 1932, p. 198). Sobre Caxias,
Barroso narra um fato em que este teria conseguido a vitória numa batalha exatamente por ter
conseguido despertar o sentimento de brasilidade nos combatentes, que a partir deste
momento foram capazes de colocar suas vidas em perigo pela defesa da nação:
Caxias desembainha a espada invicta, esporêa o cavalo e conduz à luta a
brigada de infantaria que tem de reserva, gritando em voz estentórea:
‘Sigam-me os que forem brasileiros!’ [...] Um delírio toma os soldados ante
aquele ancião que nunca fora vencido. (BARROSO, 1938, p. 328).
Sobre esse sentimento de brasilidade, Barroso o identifica com as personagens
militares da história do Brasil. Sobre Tamandaré, Barroso afirma: “o grande almirante foi,
como Caxias e Porto Alegre, a encarnação palpitante do espírito de brasilidade”. (BARROSO,
9
1933, p. 126). Barroso insiste na superioridade de Tamandaré ao enfatizar que: “Para ele, o
Brasil estava acima dos homens e das instituições”. (BARROSO, 1933, p. 201). Entendia que
esse sentimento estava vinculado à necessidade de proteção da Pátria e que o espírito de
sacrifício e de doação da vida acompanhavam tal sentimento: “Osório bateu-se
demoradamente pela integridade da Pátria. A sua brasilidade não lhe permitia comungar com
os ideais da República do Piratinin”. (BARROSO, 1932, p. 76).
As biografias barroseanas relatam os feitos dos grandes homens da nação. A forma
como é composta a narrativa parece demonstrar que estes heróis já possuíam consciência do
papel que desempenhavam na história, como se já soubessem que suas vidas seriam
imortalizadas pela posteridade. Algo que pode ser verificado na fala de Tamandaré quando
autoridades da época ofereceram um pagamento pelo salvamento de um navio inglês e pelo
tratamento ofertado a seus tripulantes. Nesta ocasião o almirante teria se mostrado ofendido:
“declarando que mais que aquela soma valia para êle a dignidade do pôsto a da nação a que
pertencia” (BARROSO, s/d. p. 166). Esta mesma postura pode ser identificada também na
fala de Osório quando este desrespeitou ordens de seus superiores para honrar compromissos
demonstrando uma preocupação com a dignidade por parte do futuro general: “Entre o
sacrifício momentâneo de minha reputação e o dever de salvar a vida dum amigo, não
vacilei”. (BARROSO, 1932, p.60). No livro “Nos bastidores da história do Brasil”, Barroso
reflete sobre a capacidade do general Osório justificando suas vitórias, pois para o autor: “a
grandeza moral do general Osório foi saber ser no primeiro período da guerra maior do que o
comando estrangeiro, foi saber dominar seus padecimentos físicos” (BARROSO, s/d, p. 192).
Os heróis barroseanos parecem antever suas funções na história da nação, procurando
conformar suas atitudes a esse ideal de heroísmo. Sobre Osório, Barroso afirmou: “o grande
guerreiro dava a seus comandados o exemplo do heroísmo” (BARROSO, s/d, p. 190). Sobre
esta questão, Machado (2000) observa que o ato heróico carrega em si um desejo de
imortalidade, uma busca por garantir um certo lugar na história apontando para a necessidade
de uma referência de sentido e de destino. Na mesma linha de pensamento, Abensour explica
que:
[...] certos atores políticos parecem ter escolhido intervir na cena
revolucionária como heróis, como se erguessem diante de si uma imagem
ideal, uma construção imaginária, um modelo de homem ilustre ao qual
10
decidem, a partir desse momento, conformar sistematicamente sua conduta.
(ABENSOUR, 1992, p. 218).
A honra e o espírito de sacrifício parecem estar acima das ambições materiais e
pessoais dos heróis barroseanos. O diálogo entre Osório e D. Pedro II é esclarecedor neste
sentido
3
e é apresentado no livro “Osório, o centauro dos pampas”, no qual o Imperador
interroga o general sobre uma gratificação a qual ele teria direito: “- Por que não requer a
Comenda de Avis?” [a resposta de Osório é enfática] “- Para não parecer que sirvo à pátria
disputando recompensas” (BARROSO, 1932, p.118).
A morte é outro tema frequentemente discutido por Barroso, tendo em vista que suas
biografias obedecem a uma cronologia que comporta desde o nascimento até as homenagens
fúnebres. A morte não é narrada como um momento de pesar ou dor, mas sim como o último
acontecimento na vida do herói que lhe conferirá a glória imortal: “Morreram defendendo
heroicamente sua bandeira”. (BARROSO, 1938, p. 243). Dessa forma, a morte heróica
garantirá a perpetuação das ações em vida:
Assim, o povo perpetuou no bronze o seu vulto heróico, de espada em
punho, o olhar fito nos inimigos ameaçadores, como um grande símbolo de
nossa história militar. Na memória da Pátria Brasileira, a sua glória será
eterna. (BARROSO, 1932, p. 198)
Miguel Abensour considera que a morte não constitui um problema para o herói, pois
ao mesmo tempo em que ele morre, nasce, tornando-se glorioso. Com a morte o herói tem
acesso à presença, pois se estabelece na memória, estabelece uma sobrevivência secular.
Neste sentido, a morte consolida uma relação entre o passado, o presente e o futuro:
O heroísmo da glória, ao contrário, constitui-se fora do presente, em uma
relação com os mortos – a frequentação dos heróis do passado – e em apelo
aos homens do futuro, ‘inocentes dos males do tempo presente’. Tal é a
dupla orientação temporal da glória, duplo exílio segundo os dois êxtases do
tempo. (ABENSOUR, 1992, p. 233).
11
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABENSOUR, Miguel. “O heroísmo e o enigma do revolucionário”. In; NOVAIS, Adauto.
(org.) Tempo e História. São Paulo: Cia das Letras; Secretaria Municipal da Cultura, 1992.
ABREU, Regina. A fabricação do imortal: memória, história e estratégias de consagração no
Brasil. Rio de Janeiro: Rocco: Lapa, 1996.
BARROSO, Gustavo. “A cidade sagrada”. In: Anais do Museu Histórico Nacional, vol. V,
1944, p. 12.
________. “A defesa do nosso passado”. Anais do Museu Histórico Nacional, Vol. 3. Rio de
Janeiro: Imprensa Nacional, 1942.
________. “A exposição história do Brasil em Portugal e seu catálogo”. In: Anais do Museu
Histórico Nacional, Vol. 1. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1940.
________. “A Guerra do Lopez: contos e episódios da campanha do Paraguai”. Rio de
Janeiro: Getúlio M. Costa, 1928.
________. “A Guerra do Rosas: contos e episódios relativos à campanha do Uruguai e da
Argentina – (1851-1852)” – 1ª ed. São Paulo: Cia Editora Nacional. 1929.
________. “Biografia do Marechal de Campo José Luiz Menna Barreto”. Anais do Museu
Histórico Nacional, Vol. 2. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1941.
________. “Esquematização da história militar do Brasil.” Anais do Museu Histórico
Nacional, Vol. 3. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1942.
________. “História do Palácio do Itamarati”. Rio de Janeiro: IBGE, 1956.
________. “História e Tradição.” Anais do Museu Histórico Nacional, Vol. 2. Rio de Janeiro:
Imprensa Nacional, 1941.
________. “História Militar do Brasil”. 2ª ed. Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional,
1938.
12
________. “História Secreta do Brasil”. Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 193638.
________. “Mobiliário Luso Brasileiro”. In: Anais do Museu Histórico Nacional, Vol. 1. Rio
de Janeiro: Imprensa Nacional, 1940.
________. “Nos Bastidores da História do Brasil”. São Paulo: Melhoramentos, s/d.
________. “O álbum das lágrimas de ouro”. In: Anais do Museu Histórico Nacional, Vol. 10.
Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1949.
________. “Os museus e a guerra”. Anais do Museu Histórico Nacional, Vol. 3. Rio de
Janeiro: Imprensa Nacional, 1942.
________. “Osório, o centauro dos pampas”. Rio de Janeiro: G. M. Costa, 1932.
________. “Tamandaré: O Nelson Brasileiro”. Rio de Janeiro: Getúlio M. Costa, 1933.
________. “Um valioso presente para o Museu Histórico”. In: Anais do Museu Histórico
Nacional, Vol. 3. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1942.
BURKE, Peter. A invenção da biografia e o individualismo renascentista. Estudos Históricos,
Rio de Janeiro, n 19, 1997.
EL FAR, Alessandra. “A presença dos ausentes”: A tarefa acadêmica de criar e perpetuar
vultos literários. Estudos Históricos, Rio de janeiro, 2000.
ENDERS, Armelle. O Plutarco Brazileiro. A produção de vultos nacionais no segundo
reinado. Estudos Históricos, Rio de janeiro, 2000.
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado. Contribuição à semântica dos tempos históricos.
Trad. De W. P. Maas e Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Editora PUCRio:
Contratempo, 2006.
LOPES, Marcos Antônio. “Saint Simon, Montesquieu, Voltaire: sobre a história dos homens
ilustres”. In: LOPES, Marcos Antônio. (org.). Grandes nomes da História Intelectual. São
Paulo: Contexto, 2003.
MACHADO, Maria Helena P. T. Um mitógrafo no Império: a construção dos mitos da
história nacionalista do século XIX. Estudos Históricos, Rio de janeiro, 2000.
13
SCHREINER, Michelle. Jules Michelet e a história que ressuscita e dá vida aos homens.
Campinas/SP: Unicamp, 2005. Tese de doutorado.
SILVA, Maria Aparecida de Oliveira. “História em biografias nas Vidas de Plutarco”. In:
LOPES, Marcos. Antônio. (org.). Grandes nomes da História Intelectual. São Paulo:
Contexto, 2003.
NOTAS
1
Esta temática é discutida por Marcos Antônio Lopes em: “Saint-Simon, Montesquieu, Voltaire: sobre a história
dos homens ilustres”. In: In: LOPES, Marcos Antônio. (org.). Grandes nomes da História Intelectual. São Paulo:
Contexto, 2003.
2
Estes seriam os critérios adotados pelos biógrafos antigos, principalmente por Plutarco, para a eleição dos
homens célebres. Portanto, este seria o modelo antigo para retratar almas exemplares.
3
Peter Burke analisa o lugar ocupado pelas falas dos personagens e pelo diálogo nas biografias. Para este autor,
“em alguns casos o diálogo é tão importante que se transforma no que podemos considerar um subgênero da
biografia”. A este respeito conferir: BURKE, Peter. A invenção da biografia e o individualismo renascentista.
Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n 19, 1997, p. 07.
14
Download

73 - Apresentação