Uma análise antropológica dos elementos míticos da morte na obra de Edgar Allan Poe: o fictício e o imaginário na literatura de horror Rafael Botelho Universidade do Sagrado Coração, Bauru/SP e-mail: [email protected] Comunicação Oral Pesquisa concluída Resumo expandido Introdução: a Antropologia Literária é o ramo dos estudos antropológicos que, em sintonia com a Antropologia da Arte, se encarrega de acompanhar a produção criativa do homem. A cultura, como amplo, profundo e categórico elemento central da pesquisa antropológica, abrange diversas dimensões da existência humana, como o cotidiano social, a configuração psíquica, a constituição moral, emocional e biológica, e o repertório intelectual, estando presente em todas elas de maneiras distintas, porém, fixada no mesmo eixo: a produção humana, nas esferas individual e coletiva. Desse modo, a Antropologia Literária busca compreender o processo e os respectivos elementos que constituem a literatura como braço da cultura, desde a perspectiva intencional do autor, passando pela organização do texto até chegar à recepção do leitor, como sujeito que interpreta a obra (CASSIRER, 1992). Neste estudo, a fim de exemplificar as fundamentações e proposições teóricas, o foco fixou-se na análise do “encontro do homem com a morte” existente na obra do escritor norte-americano Edgar Allan Poe, um dos mais reconhecidos do gênero de mistério e horror em toda a história da literatura universal (POE, 2012). Metodologia: o presente trabalho se utilizou da pesquisa bibliográfica como metodologia, valendo-se da fundamentação teórica para aplicar suas análises, conceituais, comparativas e interpretativas do objeto estudado, concentrando os 1 conceitos na confirmação e/ou refutação das hipóteses. A Antropologia, a Literatura, a Mitologia (enquanto “ciência dos mitos”) e perspectivas de Teoria Literária estão presentes de modo harmônico nesta pesquisa, contribuindo cada qual com seus saberes, conforme a atualidade acadêmica propõe, para que a cooperação entre diferentes áreas possam gerar campos férteis de pesquisa e literatura científica. Resultados e discussão: em sua constituição como um ser que pensa, sente e cria, o homem possui dimensões diversas que, entre outras possíveis dicotomias, apresentam a oposição entre o mundo visível e o sobrenatural. Todas as culturas humanas possuem seus mitos, sendo que as primevas – ágrafas ou não – permitem, por meio de seus ritos, que suas narrativas sejam evidenciadas, ao passo que as sociedades urbanas e globalizadas incorrem no empobrecimento dessas nuances antropológicas em virtude da homogeneidade cultural, própria do século XXI. A despeito disso, porém, nada pode suprimir o fato de que todo homem viveu, vive ou viverá um ou mais mitos durante sua vida, pois, para Eliade (2013), o mito é um ingrediente vital da civilização humana; longe de ser uma fabulação vã, ele é ao contrário uma realidade viva, à qual se recorre incessantemente; não é absolutamente uma teoria abstrata ou uma fantasia artística, mas uma verdadeira codificação da religião primitiva e da sabedoria prática. Os arquétipos de personagens, personificações, cenários e demais itens são compartilhados pela mitologia e pela literatura, criando uma conexão mental lógica entre os interlocutores, na qual, para Bulfinch (2006), o emissor da narrativa evoca, na mente de alguém que já esteja familiarizado com o tema, ilustrações mais vívidas e impactantes do que as imagens que poderia qualquer lápis desenhar, enquanto, para aquele que ignora a Mitologia, todas essas possibilidades estariam simplesmente perdidas. Visto como matéria-prima criativa, o imaginário pode ser definido como faculdade da produção literária sob ininterrupto manuseio, tal qual um camaleão, que muda de cor conforme o ambiente em que se encontra (MAYNE, 1728 apud ISER, 2013). A partir dessa concepção, verificamos que o imaginário – ou imaginação – começa a ganhar, como atividade combinatória no âmbito do empirismo, uma significação mais ampla (ISER, 2013). Nota-se que, assim como o mito, a arte tem no imaginário seu fluido vital, mas como ocorre a lapidação dessa potência disforme? O que molda um impulso criativo para que se tenha um poema, um conto ou um romance com vários volumes? O fictício não é uma junção de 2 elementos “palpáveis”, antes, entretanto, deve ser compreendido como acontecimento. É a representação de um processo a que é sujeito um recorte da realidade, que desvinculado de sua origem, ganha novas conotações dentro do texto, sua nova dimensão, em um rearranjo dos elementos, gerido pelas forças que agem no próprio texto: os atos de fingir (MOTA, 2011). No processo de criação, o escritor encontra-se numa relação entre seu lastro intelectual, seu potencial imaginário e o contexto em que está inserido, isto é, todas as experiências de sua vida até aquele momento. Para Mota (2011), a realidade e a imaginação seriam os elementos que comportam o campo do ficcional, em que a segunda seria a responsável pelo alargamento do campo de ação do primeiro, ampliando suas possibilidades para um dado recorte do mundo. “Há, aí, uma mescla entre o mundo e as variantes deste, perpassadas pelo crivo do criador-imaginador” (MOTA, 2011, p. 2). Vemos em Edgar Allan Poe, entre outros muitos atributos, duas características amplamente presentes nos estudos antropológicos sobre o mito: a postura incessante pela defesa do imaginário enquanto faculdade que une dimensões imateriais (“desfalsificação mítica”), a despeito dos valores artisticamente homogêneos da sociedade de sua época, e o uso de elementos míticos que representam as ideias mais ricas e os sentimentos mais profundos do ser humano, cujas manifestações necessitam de algo mais do que a realidade trivial. Para Charles Baudelaire, grande admirador do objeto desta pesquisa, Edgar Allan Poe se jogou no sonho, do seio de um mundo esfomeado por materialidades, cuja atmosfera o sufocava. Num ambiente em que tudo o que não é palpável se encontra vazio de confiabilidade e credibilidade, Poe se destaca como expoente da literatura gótica, chegando, inclusive, a gozar da paternidade do movimento artístico áureo do horror, tendo como grande marco a publicação, em 1845, do poema O Corvo. Nele, encontram-se três aspectos evidentes do processo criativo: o imaginário puro, símbolos culturais e o conteúdo empírico. De igual modo, outra tríade mostra a construção de uma narrativa mítica presente em sua obra, sendo composta por uma Musa, atmosfera paranormal e fenômeno natural enigmático: a Morte. Considerações finais: algo que, como já dito, sempre intrigou os que pesquisaram e pesquisam a obra de Poe, é o grau de intencionalidade ou determinismo de suas criações. Para solucionar esse paradoxo, explica Baudelaire (2012 apud POE, 2012, p. 19): “Tudo pelo desenlace! Ele repete incansavelmente. Até o soneto tem 3 necessidade de um plano, e a construção, a armação, por assim dizer, é a garantia mais importante da vida misteriosa das obras do espírito”. Poe arquitetou os mais fantásticos cenários psicológicos para levar o leitor a um mergulho pelo mito da Morte, criando um conceito seguido por todo aquele que almejou e almeja ser, como ele, um gênio da literatura de horror: "A emoção mais antiga e mais forte da humanidade é o medo, e o mais antigo e mais forte de todos os medos é o medo do desconhecido" (LOVECRAFT, 1973, p. 9). Palavras-chave: antropologia; imaginário; mito; morte; Poe. Referências BAUDELAIRE, C. Prefácio. In: POE, E. A. (1809-1849). Contos de imaginação e mistério: Edgar Allan Poe; prefácio de Charles Baudelaire; tradução de Cássio Arantes Leite. São Paulo: Tordesilhas, 2012. BULFINCH, T. O livro da mitologia: histórias de deuses e heróis. São Paulo: Martin Claret, 2006. CASSIRER, Ernst. Linguagem e Mito. São Paulo: Perspectiva, 1992. ELIADE, M. Mito e realidade. 6 ed. São Paulo: Perspectiva, 2013. ISER, W. O Fictício e o Imaginário: Perspectivas de uma Antropologia Literária. Tradução de Johannes Kretschmer, 2 ed. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2013. LOVECRAFT, H. P. Supernatural Horror in Literature. New York: Dover Publications, 1973. MOTA, R. A. M. O conceito de ficção: o diálogo de Saer com Iser. Revista Virtual dos Estudantes de Letras, n. 2 – jan/2011. Disponível http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/revele/issue/view/242. em: Acesso em: 30 nov 2013. POE, E. A. (1809-1849). Contos de imaginação e mistério: Edgar Allan Poe; prefácio de Charles Baudelaire; tradução de Cássio Arantes Leite. São Paulo: Tordesilhas, 2012. 4