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danilo arnaldo briskievicz
CONEXIDADE
danilo arnaldo briskievicz
CONEXIDADE
30 obras completas
1993 a 2012
TIPOGRAPHIA SERRANA
SERRO - MINAS GERAIS – BRASIL
2012
1
Apresentação
Era uma vez em 1993. Naquele ano resolvi: já era hora de tornar
público alguns versos. A poesia interior se revirava a procura de uma
Identidade. Poderia dizer que a alma do mundo me impelia, o tempo
todo, a me identificar com os símbolos interiores sejam eles de qual
matriz tenham se originado (a família, a sociedade, a história, o amor).
De 1993 até 2012 quando apareceu o trigésimo livro intitulado De
dentro pra fora as viagens pelo Brasil e pelo mundo, o conhecimento de
sentimentos novos, as mudanças de cidade, a leitura dos clássicos da
poesia mundial, brasileira e mineira foram somando novos versos.
Dos trinta livros publicados, alguns impressos, outros em formato
digital, em cada um deles me sinto singular. A memória poética do
momento ali se expressa de modo intenso, conturbado e necessitado de
ajustamento.
A poesia expressa nos trinta livros agora reunidos nessa Conexidade são
apenas tentativas de purificação, de catarse, de memória, de resolução
de conflitos internos, de saudades amorososas e dos amigos, de contar a
história interior das cidades visitadas em sua unicidade.
Os versos, tantos versos, são permeados da memória afetiva da
existência. Em cada canto da poesia que se expressou é possível ver e
sentir um pouco da linha do tempo da vida. E cada vida, assim como a
poesia, é única.
Isso não quer dizer que seja estanque e sem ajuntamentos. Toda a poesia
é uma conexidade. Uma profunda conexidade entre os diversos tempos
da vida em suas idades. Mas em cada verso, sei, fundo, que o
aprendizado se deu.
Acompanhe essa Conexidade e se torne mais um elo.
2
IDENTIDADE/1993
PRÓLOGO
Para borrifar o papel
com sentimentos e palavras
o poeta de alma cortada
declina o dia
declina a noite
percorrendo o mistério
que o faz contemplar
na vida no momento no tempo
uma profundidade intensa
que o leve a amar.
Para borrifar o papel
de risadas e realidade
o poeta de alma penada
purifica o dia
mistifica a noite
descrevendo os mistérios
de sua indignação
com a dor silêncio tormento
um sentimento irrisório
que o leve a calar.
Um poeta no dia
perscruta os atos idos
na certeza própria
convence-se da má sorte.
EU SOU
Coração sem identidade
quebra-cabeça montado
de dor e ardor e clamor
um grito de desespero.
3
IDENTIDADE
Identidade que se processo no ocaso
de encontros e despedidas
inversões e diversões
de espantos e acolhidas
contradições e paixões.
Fiz-me na hora certa
incerta manhã da existência
difusa luz da história
onde conto meus dias
sem receio de ser feliz
com anseio de ter aqui
um momento alegre e
contagiante
escrito na tábua da minha razão
contração de sonho e realidade.
Identidade portátil
fundada nas estruturas sólidas
do ser, humano que é,
a cada etapa
tateando no escuro dos diálogos frutuosos
calorosos.
Descobri a ideia estreita
de ser humano interessado
em si só.
BOCADO
Da boca fiz poesia
do sorriso hipocrisia
de quem sorri e beijei
só me resta melancolia.
4
LINHA DO HORIZONTE
Na linha do cotidiano
deslizo a caneta da vida.
Inocentemente desvendo
a solidão a cada ano.
Na foz do destino
corro em rios de lembranças.
Incessantemente me desiludo
com todo desatino.
CASULO
Envolvido em mim mesmo
sou epiderme.
Despido de mim mesmo
sou expressão.
INDEFINITO
Se queres me definir
mira a estrela mais distante
e percebe seu brilho.
Conta os olhares perdidos
que mirei a lua, a praia, o infinito.
ausculta meu peito em sol menor
e entenda sua sinfonia.
Se queres me definir
descolore o azul de meus olhos
e pinta um branco total.
junta contigo o conhecimento de tudo
Com o saber divino.
e ausculta meu peito de-cadente
perscruta minh’alma penitente.
5
CACOGRAFIA
No questionário da vida
achei poucas afirmações
e não fostes exclamação
decerto minhas reticências.
TEMPORAL
Doeu-me na pele de neve
a chuva pálida de tua voz
ecoando nas grutas de meu ser
frases prontas de despedida.
Onde tu estavas quando me traí?
Onde estava eu quando te perdi?
RE-AÇÃO
Ao passado que é limite
acrescento uma revisão
anotando os seus erros
no caderno da emoção.
Errei por descrever
quem era eu ao agir
e anotei consciente:
devo me redescobrir.
Acertei vivendo as etapas da vida
ano e meses e dias com intensidade.
Anotei um acerto:
a cada tempo uma realidade.
No erro da noite
nos acertos da tarde
6
descobri a ambiguidade:
sinto a vida de verdade.
ANÔNIMO
Sério, eu?!
Quero
tempo
tombo.
Tédio, eu?!
Tento
canto
minto.
FUTURÍSTICO
Para onde for acompanhar-me-ão
recordações passadas
e singelos amigos.
Comigo virão as emoções da vida
que insistem no atropelo
e as mais belas despedidas.
ESCALADA
Suado de alegria
subi a escadaria.
Melancolia à parte
noite vazia.
Deitado na saudade
desci ao abismo.
7
SONO
Veia desatada em mil nós
pulsão emocional vulcão
na noite de desembaraço
adormeço em meio ao verão.
Desacordei de um sono leve
pesado em seus contornos
suave em seu declínio
rude no seu reinício.
Fui noite, agora sou dia
paraíso, hoje sou profecia
tentei um acordo, desacordei insone.
procurei um atalho, caí na armadilha
destino castigo estilo solitário.
CÓSMICO
A nuvem pálida
o jato de luz
a estrela apagada:
tudo é madrugada.
Algo do nada
é tua lembrança.
NOTAS
Como quem toca uma guitarra
e suspira um saxofone
na noite de despedida
não sou o mesmo
já tenho
os pressupostos que me compunham.
8
DESPEDIDA
Ouvirei teus gemidos
sem censurar
mas na partida de teus passos
permite-me chorar?
Relerei tuas cartas
sem pestanejar
mas ao queimá-las
concede-me duvidar?
Sentirei tuas palavras
sem lamentar
mas ao pedir perdão
deixa-me negar?
Dispersei tuas lembranças
sem hesitar
mas quando te rever
posso te convidar?
REssINTO
Tu não aceitaste desculpas
na noite flagelada de dores
nem mesmo sentistes a flâmula
da minha incerteza que pairava.
Incerto que estava
acertei teu egoísmo
e de tudo que assumimos
me sobreveio ressentimento.
9
HORAS
Desperta
a noite já vem.
Acorda a
madrugada chegou.
Dorme
o dia caiu.
Doce vampiro.
AFTER DAY
O que restou da noite
foi a angústia
a insônia
e a solidão do açoite.
O que restou do beijo
foi o sabor
a forma
e a distração do ensejo.
O que restou de ti
foi o retrato
a carta
e a porção mais triste.
PASSANTE
Ondulei a curva já remota
de teus pés na sala
e não se encontram notícias
dos jornais passados
que tu lestes.
(estão arquivados).
10
Não se acha a mesma mesa
no canto da sala
e a televisão preto e branco
hoje é colorida.
(tudo evolui).
Desci as escadas da sorte
e me veio a saudade
da canção serena
que compusestes na primavera.
(mudam-se as estações).
Limpei a viseira
que meus olhos azuis possuem
e vi no quarto de hóspede
a sua marca arcaica.
(reformaram as paredes).
Peguei-me ultrapasado
ligando fatos idos ao presente
revivendo sentimentos
sem sentidos ao luar.
MEIAS PALAVRAS
Na distância fixa
tremenda desilusão
tu não estás
em comunhão com meu corpo.
Digo ao relento
ouves sem atenção
e expresso por carta
só entendes sofrimento.
Palavras são instintos
que distinguem
11
cada relação.
Para ti usei amor
ouvi amizade
utilizei paixão
ouvi estima.
Usei palavras demais,
castigo-me agora
pela hora não consumada.
FASCISTA
No fim da tarde
condeno o tudo ao meu nada
na mancha negra da lagoa dourada
desprendo um olhar de vertigem.
Nas caldas vulgares da sereia
atendo a insatisfação
nas lembranças do passado
doído e incerto
encrenco a máquina sentimental.
E concreto que sou
torno-me semblante pesado
escalando a tarde
comigo apenas.
Volte-se para o lado
e não verás minha face.
VISÃO
Um corpo sentado
recente visão
nos sonhos te tenho
12
não sem obstáculos reais.
O irrealismo
de teus lábios nos meus
impressiona e desfigura.
TOQUE
Entendi a caminhada da manhã
rompendo a tarde
aprofundando o sentido mágico
dos afagos no corpo
dos toques nostálgicos.
SAUDADE
Pensei em nada e tudo se vai
rebuscando o papel
chamuscado de saudade.
Pensei remorso e encontrei esperança
esverdeando o canal
pintando-o de felicidade.
ANGUSTÍADE
Solidão é algo brando
capricho de deuses
produz amargura, uma dor danada
resseca a garganta, impede a palavra.
Machuca no fundo
remói o passado.
Corrói o meu mundo
destrói o pecado.
13
Brisa que sopra na fronte da paixão
é tesão recolhido
de toque em noite de contração
de beber a taça da libido.
ESTÁTICO
Estacionados estão
os objetos ao meu redor
plantas em silêncio
jardim estático.
Parados estão os objetos próximos
mesa batida
rádio estático.
Calados estão
os objetos ao meu redor colocados
mesa em silêncio
rádio estático.
CERTEZA
Distâncias separam pessoas
ligadas por certas realidades:
habitam o planeta Terra
e pensam as mesmas verdades.
Distâncias unem certezas
de seres da mesma espécie
sentem-se solitárias
e choram de saudades.
14
Distâncias unem e separam
os amantes da vida,
com seus sentimentos e sentidos
sensações e conflitos.
NEGATIVO
Na sombra de mim
o sol se faz escuro
como pele negra
negativo obscuro.
Com a sombra em mim nascida
ando – negativo pela rua
e na noite a lâmpada assombra
se não, sou sombra da Lua.
ESSÊNCIA
Um desejo invade
complacência.
Um vento inspira
demência.
Uma música apavora
carência.
ALUSÃO
Caminhonete pisoteando o asfalto
marchando caminho adentro
afora
agora
desbravando algo mais
que uma ilusão passageira.
15
PORÃO
O mar me traz algo esterno
um sentimento eterno
pós-moderno.
Mar, corrente de emoções
canções eruditas
cristalizadas em seus cações.
FALÁCIA
Vendaval de esperança
me vem ao contemplar
na imensidade molhada desta terra
a frieza do mar.
Fala de calmaria
fronteiras quebradas e limites
instransponíveis sem utopia
possíveis para quem ama.
GELATINÍSTICO
Na nata do mar
escorre meu amor
pela vida
minhas crenças
e realizações.
Na dúvida de caracol
me enrolo em conflitos
nas curvas da sereia gorada
estou pensativo.
Cravo os dedos na areia
pálida e estranha
16
escorre sangue
espalhado em meu corpo.
Céu e mar
eu aqui
incrédulo protesto silencioso
de pensamento vaidoso
bípede racional
filósofo da solidão marginal.
MEDO
Na solidão do mar
cravado de escuridão
descobre-se que amar
é absoluta contradição.
No estar sobre as águas
agitadas pelo vento
percebe-se o nada que
agora é meu sentimento.
Na escuridão de meu céu
brilha a estrela da saudade
a lua de uma paixão
revelando-me por inteiro:
profundo
obscuro
exato
a-mundo.
BÚSSOLA
Agarrei-me ao mastro do barco
em meio a palavras de medo
17
descubro que bem cedo
perdera meu zelo.
Mastro que me aponta as estrelas
astro, me fez perceber
como é imensa a galáxia e
minha possibilidade de ser.
Mas o mastro
é um astro
sem lastro.
O mastro me apontou na noite
o Cruzeiro do Sul.
E
Cor és
dor és
Cor és dor
Cor és dor... és!
I
Cansaço, malas, parada
utopia, previsões, palavras.
Pela janela avisto a caatinga
já passando por Minas Gerais
pela mente alucino
Jiribatuba que não chega mais.
Ao lado o padre
ao lado os colegas
de lado as senhoras
18
à frente das relvas.
E passa rodovia
e rodoviária
chega Salvador
cidade imaginada.
Salvador, ferry-boat, mar
conversa, Bom Despacho, calar.
II
O vento passa o tempo
vento espanta o cansaço
vento calmo
“ainda é cedo”.
Chegamos à casa paroquial
descemos as malas
ocupamos os quartos
jantamos...
repouso.
Ondas calmas
calmaria mental.
RE COR DAÇÃO
Teu nome escrevi na areia
facilmente pensei em ti
lembrança remota
do que deixamos de fazer.
Deitei-me na praia
metade água )
(metade areia
19
meus braços abertos em contorno
retrataram um coração.
Coração de águas salgadas
borbulha em recordações
coração divino
perdido em meditações.
TONEL DA MEMÓRIA - 1994
PASSEIO POÉTICO
As escadas de Santa Rita pararam no tempo
os transeuntes diários são os mesmos.
O tom do céu permanece inalterado
o coqueiro intacto respira os anos.
A seca cavalga todo ano pelos pastos
mas a mão do lavrador esculpe o chão sob os olhos de Deus.
As orações permanecem católicas e sonoras
Apesar das seitas constituírem seus núcleos.
Tudo em Serro cheira séculos
e a vida é envelhecida em tonéis da memória.
A moça (só isso mudou) ficou mais esperta
de tantos alertas que a televisão vive a anunciar
- decotou o vestido, largou o marido
E quer se engravidar.
O moço deixou a velha bicicleta
andando de moutain bike pelo asfalto afora
-tem na mente na imagem da família que o padre
descreveu e não sabe se um dia a terá.
Nada em Serro muda da noite para o dia
e a vida é camuflada em selvas de cerveja.
20
IN LOCO
Vasculho as gavetas da memória
localizo a mão generosa deslizando
sobre facas amoladas com má sorte.
Se a pergunta – onde erramos? – encontra lugar
Perco-me no tempo a recordar.
21 -12 – 93
Pena que da morte
só sabemos o estado
se ela traça horizontes
só quem foi defunto sabe.
Quem penumbra espessa
invadiu a tarde
com surrealismo bestial
sombras e dúvidas?
Sorte que da morte
só sabemos o estado
se desvendar mistérios
só quem foi defunto sabe.
Oito horas da noite
encontro dos mortos cheios de medo e dor.
BEM OU MAL
Não me recordo de ver nas sombras
vestígio de arrependimento por serem
obscuras negras frias.
21
Não me recordo de ver na luz
agradecimento que não seja
iluminar clarear descobrir.
Nas ondas pintadas da tela na sala
surge a pergunta retratada:
sou filho de uma luz transcendental
ou de uma treva arrependida?
FEIÚRA
A bela vida consiste em antes mesmo
Possuí-la, admirá-la.
Ver no feio do dia-a-dia
os opostos se completando.
Não há plásticas para vidas tristes
nem bisturis para remodelar o passado.
GHETULIANA
É preciso que o ser se faça carência de ser.
Sartre
Suas palavras me ensinam
o que ter e fazer
como ser feliz.
Mas nessas palavras bem ditas
vem calor do Saara
angústia danada
desejo de ter acertado na vida.
De ter feito arruaça trapaça
22
tudo aquilo menos isso
que agora me orienta a não fazer.
De ter aproveitado a novidade
toda ela sem medo
medo desbotado magoado
que agora me passa em conselho.
Todo seu hálito recende
para orientar-me dos entraves
de errar na vida dos homens.
Sua vida me indica
a única saída – não ter entrada.
Fomos aqui jogados
feitos eu ele nós
num jogo imperfeito
que se fosse eu eleito não seria juiz.
Sua boca amplifica
vaidade tardia
da taquicardia diária
eternos gemidos emitidos.
Boca de noite sofrida
alegre
mas vazia
suave
mas evasiva.
Tons sobre tons
boca sobre boca
assim sou ouvinte de boca
calada pelo tempo que leva
palavras e corpos
para o cemitério da memória.
Faze o bem e serás perfeito.
23
SÁBADO há NOITE
Desarrumando antigas gavetas
perdia-me ainda mais
vasculhando verdes ocasos
sem nexo nem avais.
Procurando arquivos secretos
segredos banais
revelando negros descasos
encontrei-me sério demais.
O RELÓGIO
Ao Bonfim
Subia as escadas rabiscadas de saudades
das conversas a muito ocorridas
a idade penetrava-me poucos desejos
e o sino da Santa Rita não obrigava a partida.
A voz de Júlia anunciando morte de pai
assim velho assim gaúcho
encheu de lacunas o garoto
encheu o quarto de amigos.
A voz de Magda pestanejando o microfone
assim gasto assim antigo
encheu meus ouvidos de 14:40 h
encheu meus olhos de avisos.
Deitado na noite a Lua sorria
de madrugada ela me possuía
descobrindo ninhos de andorinhas
o futuro seria eternamente badaladas.
24
ROTINA
Quando fico em fúnebre silêncio
peito em feixes de rotina
o mesmo Sol no azul celeste
concluo o dia – semelhante ao de sempre.
RUAS
Passageiro de becos e sonhos
embarco nas arruaças
de pedras calçando a vida.
Paredões caídos alterando a trilha
perdões que reconstroem as noites
pedras buscando sapatos.
SALTO ALTO
Equívoco auditivo na noite
no ecoou no peito seu toque-toque na esquina
nem palavras de reconciliação.
Badalei-me – não sou o mesmo que há tempos
desnudou seu corpo
naturalizou seus atos
relativizou sua culpa.
Na noite de salto alto não dobro aos seus pés.
CALMANTE
De noite sou o que sou
rápido de gole em gole.
Perdendo a coerência entre uma frase e outra
entendendo a decadência da Lua minguante.
25
Abastecendo ouvidos de sons e ruídos
sugando da música bom lenitivo.
Desfazendo sonho inútil e infértil
achar-se em três notas musicais.
Na noite sou o que sou
goles luares pro
c
u
r
a
GARI
Teus restos joguei pela janela
inúteis para reciclagem
ocuparão a lata de lixo.
Tantas reconciliações mas nada valeu
tentativas frustradas – vai embora!
deixe apenas o telefone
da limpeza pública.
O POSTE E O BÊBADO
Ao Goleau
Tenho sido apenas poste.
Tentei ser calçada para o bêbado
talvez seu aguardente
fui apenas poste.
Olhei com fineza e embriaguez alheia
26
- curvas na calçada –
fui apenas braço de apoio na trajetória
- fui poste. –
Poderia ser pupila dilatada
beijo baforado
pernas trocadas
- fui poste –
Vão-se os sábados e nada muda
mas mudar pra quê?
O poste ilumina os passos do bêbado...
ESOTÉRICA
...para Irene B. Dinis Filha
...livre, leve e solto.
Se ao te beijar um significado rompia
era noite enluarada
era amor e fantasia.
Se ao te olhar uma ilusão aparecia
era o dia do reencontro
era paixão e alegria.
Foi beijando-te
num lapso de infinito
foi olhando-te
num eterno espelho fixo
que enchi o coração de desejo
e alma de certeza:
amei-te sem medo
sem dúvida nem receio.
27
REBORDOSA
Havia minha boca e um copo
uma estranha sensação
- não alcancei o ú l t i m o
co(r)pos distantes
gole
distantes palavras
ressaca
MICTÓRIO
Via-me ali, cheiro fétido
mictório.
A vida é um pouco glória e
Urina.
Via-me ali, água escoando
gotas etílicas.
O mictório da vida leva
eles eu.
Cheiro suburbano de sentimento noturno
mijo recorda-me lixo
paradoxo sem sombra feliz-infeliz em duas músicas ouvidas.
PERDAS & DANOS
Talvez estejas entre um cigarro e outro
e tuas lembranças denotem nostalgia
semblante triste sem consolo.
Perdeste a agenda
com ela um prefixo companhia.
28
PÓLO OESTE
O gelo se debatia no copo
em silêncio se desfaziam lágrimas
NOITE TÉRMICA
O copo de frio arrepiado
em meio a sorrisos da cerveja
fui assim degustando a noite
num indigestivo sábado.
TREVO
Caí do alto relevo
vertigem em forma de trevo
cinco dez quinze pétalas
sem porte cor nem sorte.
H2 Ó
Dói um amor que é plano
papel esboço teoria.
Não corrói um ácido que é neutro
insosso inodoro frio.
2004
Em algum lugar do futuro
meu caminho cortará o teu
se chegarmos até lá
saberemos quem sou eu.
Em algum lugar desse universo
meu sonho buscará o teu
se nos conhecermos
saberemos quem sou eu.
29
HEDON
Não sou real nem quero ser
sou um sonho eterno adeus
apenas bom momento.
Serei eterno ou não serei?
Quem comprovará?
Não sou real mas posso ser
hedonice em noite de Lua cheia.
DUAL
Reflexivo espelho
alma
corpo
depressivo receio
calma
porto.
Distendido dualismo
pensar
agir
partido sofrimento
calar
sorrir.
A ONDA ERA PRETA
As ondas não diziam nada
embalei o céu e joguei no lixo
as estrelas se foram de táxi
emudecendo canções e notas.
Há tédio – não me intrigam
cores da orquídea na manhã
balé de gaivotas – meu porto é solidão.
30
INTERCÂMBIO
A flácida curva da estrada
não me conduz a ti
a cálida luz do dia
não me eleva a ti.
SPIN
Há energia atômica nos poros rompidos
-rompiam-se passado e presente –
sonhar motiva a realidade?
O pensamento rouba o diálogo
se calo sonho
se falo destruo o sonhado.
WALL
Beijar quebra muros
unindAlemanhas.
Mundo de muros
silêncios e apuros.
VOLUME
Cavalguei em espantos saborosos
sobre ondas de néctar e ouro
tudo se fez aurora.
Balbuciei números de mundos infindos
com boca carimbada
tudo se fez silêncio.
31
ARRUMAÇÃO
Perda procura achados
desenhos atropelados
um nu um homem pelado
calças nos varais
sapatos no telhado.
EM POTÊNCIA
Ao Sérgio Vidal
Quem se vê assim
calmo frio pacífico
não entendeu ainda
o parêntese quase reticência
penetrando a jornada
da juventude quase vazia
de um grande amor.
ROSA
A rosa foge do amor presente
o passado é mais forte
prendo-me à sua cor
importa-me a distância que mantemos.
Como, rosa, flor escarlate
orientar-se para alcançares o que possuo
dar-te-me sem freios
doar-me sem te murchar?
32
ELEGIA DO TEMPO
Tempo-rei, ensinai-me o que eu
Ainda não sei. G. Gil
I
Éramos eu e Deus
partimos de ônibus.
A paisagem despia o céu da nova cidade
contudo não largava o sonho ao vento.
Estava decidido – era vocação
um padre serrano assim branco
assim jovem.
Em poucos anos perdi meus passos
no calabouço estruturado das palavras
gaguejei sorrisos suspirei lágrimas.
Como não contasse os tempo ele se foi
em três calendários lentos calmos profundos
-perdi-me em planos sucessivo desmaio cronológico.
Criou-se entre a criança e o homem
um hiato de três anos.
II
Quisera que as flores tão belas
vissem meus olhos alegres
no jardim gramado de esforço
de ver muda fazer-se flor.
Mas os olhos coloridos se foram
da janela onde avistava as palmas
- não houve regresso.
Só as almas renascerão.
33
Da kombi branca velocidade nos olhos
corria por entre casas mudas e tristes
alegria no retorno às aulas
em meio a solfejos de férias.
O corredor tão amplo em seu passado
esqueceu-se das palavras sábias
bem como das nuvens que o tempo choveu.
Em Serro a noite cai tão silenciosa
que o tempo se fez realidade
passei e sou passado.
III
O tempo tipografou na face
rugas exangues e um olhar de angústia
passou cada segundo das células jovens
envelheceu a noite fez-se dia.
Levou da boca as palavras
definiu os culpados sorriu a alegria
fez-se suspiro com anseio de infinito
pelas duras marcas que o peito contraria.
Tempo-perdido entre frios olhares
hoje traz sombra dor melancolia
de nada valem as fotos
debocham das mãos trêmulas
de nada valem remédios
o pó quer se incorporar aos meus ossos.
34
A LIÇÃO DA CHUVA
Não duvido que a sombra tenha medo da luz
nem que o Sol tema chocar-se coma a Lua
pois a luz contêm a treva
-sorrio disso.
Há noite em cada amanhecer – não interrompamos o ciclo
ele se repete em nós
hoje sou banho – amanhã chuveiro
ontem fui cano – depois rio.
Atenção à lição da chuva
que sobre a terra deposita suas esperanças
ver semente crescer árvores
ter árvore para refazer o ciclo.
Que eu chova água e amadureça árvore.
SOLIDÃO
É quando o peito desarrumado percebe
a tempo- o desencanto
é quando as noites perdem sua beleza
sem desculpas – acalanto
foi assim: peito partido
noite fria
que desatei os nós do sapato
de uma insólita caminhada.
Se sobraram pedras
rolantes desejosas de contato
se caíram lágrimas de mágoa
rolantes desejosas de atenção
a certeza do sorriso é que prevalece...
35
ORATÓRIO DE VERSOS/2002
TRADUÇÃO
Então fui acometido pela Náusea, me deixei cair no banco,
já nem sabia onde estava, via as cores girando,
lentamente em torno de mim, sentia vontade de vomitar;
e é isso: a partir daí a Náusea não me deixou,
se apossou de mim.
A náusea, Jean-Paul Sartre
Traduzir-me parece difícil
quanto mais me procuro, ousadia:
me perco. Basta a angústia:
sofrendo me reconheço vivo.
Acordo: vem a memória
nome, sobrenomes, objetos: onde estou?
Não me acho fora de mim
sou um espelho quebrado.
Estou rompido em dois polos
um que ama e é ousado, outro serei eu?
frio e melancólico mas ambos
cabem num só destino.
Há muralhas dentro de mim: pedras
no caminho da vida, vivo ou existo?
Estou dividido em fragmentos de ação
não há resposta, pairam dúvidas.
MEDO
É preciso não sentir medo.
A náusea, Jean Paul Sartre
Hoje é dia de suportar a luz
enquanto no fundo do meu túnel
é escuridão.
36
Hoje é dia de ver o sol, lua, brilho
dentro de mim não há sombras
há a maior sombra: medo.
De mim ao mundo há um precipício
de mim ao outro há mundos e fundos
(pena de mim: entre eu e mim há
um cosmo insuportável).
CONTINUAÇÃO
Embriagada manhã do silêncio
frio suor pelo peito desce
cores se foram para o branco
não adianta correr: o trem já se foi.
Parar nem pensar não se deve
continuar, continuar se consegue.
As pedras molhadas estagnadas
a chuva pálida trazendo o sono
entediada manhã da solidão amena
pela manhã se sofre pouco – venha a madrugada.
Parar nem pensar não se deve
continuar, continuar quem consegue?
MODIFICAÇÃO
Venho notado mudanças no meu passado espanto
cada dia me volto para trás e já modifico algo
novos dias novas versões como recompor a verdade
do real que havia quando me perdi pela primeira vez no amor?
Voltados relógios, dias, pessoas já falecidas
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nada senão a consciência sou passado
o primeiro amor por tanto ódio e querer
afastado dos dias se tornou névoa pálida.
De manhã rezo alto para ver se adormeço o desejo
ele me introduz na voz, na luz do dia renasço
passado reformado em busca de êxtase, mas quê...
sou um simples junco pensante sem realidade.
PERDIDOS
Perceba como voamos no pensamento
há ventos tufões e lamentos
mas também por que não afirmar numa fala quase terapia e divã
a vida é assim confusa e na confusão a gente se acha e se perde
mas pode se quiser se puder se der ser feliz.
Nascemos para nos perder e de vez em quando (outono a outono)
nos encontrar na cama das amarguras nas memórias nas mesas
de bar em bar é perigoso se encontrar: não encontrei-me ali
deixa o prazer da noite ser dissipação
procure-se um dia: no coração.
VIVENDO
Sentia que começava a viver: sofria
é assim mesmo: o primeiro sofrimento
cria em nós a altivez e o estatuto provisório
de seres criados para o amor.
O amor acontecia em meio à juventude
criança, não, jovem imaturo, já sofrido
nem sabia que de lembranças pode-se viver
e agora, homem maduro mesmo, quero voltar o tempo.
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A ingenuidade da primeira vez , a pureza
do primeiro toque, o calor, ânsia: primeiro desejo
não, não há como tirar da memória o resíduo
do primeiro momento: perdi a inocência.
GOLES
Olhos que se guiam pela praça
nem árvore nem busto nem flor
um bêbado cambaleante sem cor
não há vergonha em mais um gole
nem medo que o console
nessa bebedeira hermética ele perde
o para-outro que o compromete
e por entre ruas e becos confuso
esquece o olhar de alguém ao longe
parado na praça roubada em sua graça
pelo bêbado sem vergonha que passa.
FESTA
Os grilos solfejam seus cantos
o brejo em concerto detona a noite
partituras misturadas ao verde mato
gargantas afinadas em tom natural
no brejo das noites ouvinte feito
a lua reforça os olhos dos sapos
parecem expirar a vida dos homens
insistentes em transitar pelo escuro.
Na noite dos brejos em silêncio
dos corais de insetos crepitantes
o pensamento escoa feito água boa
nas bicas da saudade feito vida.
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LEVES VERSOS
Dedos meus batam de leve a tecla
mamãe é esperta e pode acordar:
ela não ia gostar do gemido
dos versos no fim da noite
para sepultar palavras
ingeridas a cada gole.
Dedos meus batam de leve a tecla
mamãe está alerta e pode concordar:
em escrever sobre o amor ausente
é tarefa decente espantar a dor.
PATER
Teus olhos me ensinaram
que se deve saber a hora certa
de abrir e fechar os olhos
sem inocência mas consciência
diante da vida tu sempre calmo
sem tesouros ou fortunas
cavaste aos poucos uma intensa presença
a morte tira mas não esquecemos
em nós está tua presença sempre assim
noite de lua cheia em Milho Verde.
SENÃO
A estrada se desenha por sob meus pés
um calçado trinta e nove com poucos anos
pés-de-moleque na memória dos passos
chão vermelho na retina dos tênis.
Aos poucos a sombra vai-se curvando
os anos e passos se sucedendo e enfim
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anos e passos cessam e a cor vermelha
se torna desbotada como a face em sepultura.
Do tempo nada se leva senão a memória
dos passos nada se leva senão a segurança
da vida nada se leva senão o sopro eterno
dos versos nada se diz senão inúteis.
RETORNO
Voltei a ser poeta
a alma novamente rasgada em pedaços
o lábio gemendo em dores insondáveis
o peito fragmentado numa erosão incurável.
Versos me aguardem
de volta estou pois o ventre corroído
ama novamente alguém.
Voltei a ser poeta
estou neste mundo dos relacionamentos doentios
mundo das paixões desenfreadas
dos ciúmes imediatos e irremediados.
Voltei a ter a alma martirizada pelo amor
minha garganta só pronuncia monossílabos
a mente não se cansa de lembrar de um novo amor
Voltei a estar vivo...ressuscitei.
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CONVENTO
Quero uma janela bem fechada nesta noite
um quarto sem trancas não destrancável
um abajur apagado a velar minha prisão interior
vasos de violetas por sobre a mesa
e nada mais que uma música dos bêbados a tocar
quero nesta noite de clausura interior
um porto para meditar a vida.
Nesta noite importa-me o retiro das palavras
a concessão pra dormir bem cedo
mais cedo do que minha solidão.
Nesta noite quero apenas um convento.
TRIPALIUM
E como caíssem horas dos cabelos
de cor em cor se embranquecendo
a vida expirou o último soluço.
E como o tempo me amordaçasse
tortura por tortura padecendo
a vida estancou o último sofrimento.
Da vida nada se leva senão a dúvida
e se é bom perguntar por não saber
melhor calar para entender.
TUMULTO
A borboleta se cansa de colorir o ar
o peixe se cansa de perseguir a isca
a minhoca se cansa de perfurar e fica parada
o homem cria túmulos e vai para o céu?
A orquídea mata seus ramos antigos
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sobre eles constrói sua folhas
tudo nasce e renasce aqui e nada ocorre
para além desta vida.
O homem parado diante da morte consciente
retira da vida sua naturalidade e chora
mas nada devolve a senha dos vivos
e a dúvida das religiões prossegue insana.
FLATUS VOCES
Pensar na Maria e no José
na flor: ontem se abriu
deixar rolar palavras pelo ar
ao sabor das tempestades
aproximar-se da velhice
com sabedoria dos viventes
reler as cartas de tempos idos
com emoção e recato
expirar a vida devagar
como deixar de pensar.
CURATIVO
Construo minhas lembranças com meu presente. Sou repelido para o presente,
abandonado nele. Tento em vão ir ter com o passado: não posso fugir de mim
mesmo.
A náusea/J.-P.Sartre
As nuvens em algodão
prontas para estancar
o corte das estradas
fundo chão adentro
em cada canto de mato
uma abertura para olhar
um trecho para espiar
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o dia nascer quadrado.
As chuvas depois da evaporação
prontas para limpar
a ferida dos anos
profunda nas almas
em cada coração partido
uma oração para estancar
uma litania para repetir
durante a vida que passa.
MATO
No quintal as árvores se debruçam
sobre as mãos da infância
cercas que não cercam os pulos
o roubo engraçado tramado
nas rodas-gigantes da inocência
decente furto sem preocupação.
Árvores dando-nos os pés para subir
um contato imediato com a seiva
a selva é a cidade não o mato
que cresce ordenadamente devagar
sem acelerar a pulsação da horas
sem amassar a terra que é de todos.
VOZ E NÓS
A horas se amontoam feito trouxa de roupas
cada uma a seu modo amarrada
feita de nós de nós de nós.
Que te parece poeta do tempo mesmo amante
parece hora de orar pela amada
adormecida em sete palmos?
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As horas rebuliçantes sobre os dias pesando
cada uma a si mesmo trazendo
feito de nós de voz de avós...
Que te parece poeta do tempo em hiato passado
parece hora de ora em ora: gritai ao tempo
_ para!
CRESCENDO
Não sabia - ao me darem um nome
eu me perderia.
Nem esperava - depois do presente
viesse a palmada.
Não queria - depois dos pais
surgisse o mundo.
Nem contornava a igreja velha rezando
para ser condenado.
NADA
O nada nadifica. M. Heidegger
Ao heideggeriano Alfredo
Dentro da casa moraria a escuridão
mas lâmpadas artificiais recriam as cores
casas velhas refletem os raios dos tempos
a música suave convida a rever a vida
o céu insulta meus olhos com estranho brilho
repousa a treva de uma noite sem fim
e mesmo criando lâmpadas não podem
iluminar seus próprios passos
na assombrosa guerra estranha de existir.
Dentro de nós estão a luz e a treva
as lamparinas lá não iluminam
e nas trevas construímos nosso destino
luz que ilumina, treva que nadifica.
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O QUE É MORRER?
Dedico-te meu corpo são ou fraco
pois para vires ao mundo
tu que não és em si mesma
precisas de minha vida.
Não sei tua hora nem tua cara
mas já morri tantas vezes
minha carne que há de se perder
ressente o tempo de tristezas já ido.
Dedico-te meus amores: com minha ida
ferida quem sabe a alma chorem
ferida quem sabe a saudade voltem
para rever os lugares em que um dia vivi.
Dedico-te os olhares transcendentais
a vida perdida mais uma vez
toma que é tua - minha vida é esmola
para teus dias se perpetuarem.
O PÁSSARO DO EGITO
Morrer como um passarinho
sem grandes suspiros nem ais
apenas com a mão de meu amor
a segurar minha carne que fica.
Adormecer como um passarinho
breve poema em fim de noite
rolar nos braços do esquecimento
do pretérito perfeito.
Fechar os olhos sem lua
há noites em que morri
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pelas calçadas de pé-de-moleque
mas no instante de meu desfalecimento
repito: quero morrer sem ais
apenas como um passarinho.
Morrer numa noite de sábado
repetindo a mesma rotina judia
de sofrer e lamentar
os pecados as culpas as dores.
Morri tantas vezes no sábado
que sou judeu por forças das circunstâncias.
Permaneci imóvel pensando
não creio que pensar seja pecado
se for pecado tenho metros de culpa.
Comi carnes diversas
de um passado ao teu lado
se for pecado comer carne neste dia
culpa sua, meu desencanto!
Morri tantas vezes no sábado
que sou judeu praticante.
SINAIS
Versos caindo em gotas de palavras
a noite vai se desfazendo em desejos
e corpos de amantes se encontram
entre sinais verdes vermelhos azuis
o desejo sem medida em gotas de lua
desfecho de procuras o momento se faz
total porque tudo é apenas um momento
felicidade é apenas um lapso do desencanto
com a tristeza reinante nos dias frios.
Há nesta noite casais sorrindo
o mérito das ondas de luz iluminando os beijos
são tão explícitos que confesso a Deus
que todo poderoso me empreste o poder das letras
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para declarar culpados os amantes que não amam
brigando em vez de unirem seus mundos
num eterno faz de conta de felicidade.
Nestas noites em que a lua ilumina demais
desconfio como bom mineiro que houve
ontem hoje e quem sabe haverá amanhã
momentos em que os amantes desafogados
desabrigados desconsolados de seus ombros amigos
digam não um ao outro mas a partir da dor
sol e lua se encontrando
luz e trevas se atrevendo
haja o exato momento que vivo:
complacência frieza e precocidade.
EUCALIPTOS
A cada quilômetro mais distante da casa
dos móveis dos animais das flores
perdia um tanto de quem sempre serei: meu passado.
Aquele céu obscurecido pelos eucaliptos
a piscina sempre azul, mera projeção
de nossos corações orantes.
No sítio dos seminaristas carmelitas
sempre em comum se olhando
saguis passeavam pelas árvores
caindo ao sabor dos machados.
Em cada metro de verde o silêncio se pintava
e azuis eram as brisas que nos enlaçavam
em recreios sem discussões.
Pequeno córrego carregando para longe
corações que se consagram
no medo quase desencanto de amar.
Quando se está no verde e no azul
preto roxo incolor não existem
mas basta um lapso de convivência
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e o arco-íris perde seu brilho
lua cheia se transforma em nova
e nada reconstrói o tempo desgastado
em dias de reuniões e reuniões.
Aos poucos, poucos meses
os olhares se tornam pesados
a rotina sufoca e ser livre é transgredir
normas leis regras estatutos
e tudo se torna pesado nublado:
e vão-se os corpos embora
pois boa é a hora que nos afasta
dos olhares de condenação.
A cada quilômetro distante da antiga casa
as asas voltam a crescer e o pássaro enclausurado
alça seu voo baixo para a existência autêntica.
MÃE
O dia chegava pela tua boca
os olhos tropeçando no clarão
quando criança feita acordar
é ninar a felicidade para
no sonho possuir a realidade.
BALADA DO CONFUSO
Quem sabe em tempos remotos
sem remotos controles
na era da pré-imagem
na selva de um tarzã
eu fosse mais vivo
pelo menos tinha motivo
pra na humanidade acreditar.
Depois de Exupéry
dos controles das bombas
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senti uma pena de ser
é que por aqui
um mata outro sorri
um rouba outro ri
é bastante confuso.
Depois do Pequeno Príncipe
dos detonadores atômicos
desejei não ser biônico
crescer o coração e sorrir
mas se o pequeno suicidou-se
o que é que restou
pra executar pra fazer?
MORTE
E se agora fosse o momento de despedir-me
da casa dos objetos da cama
da música do dia da hora?
E se agora fosse hora de expirar para sempre
sonhos passados planos futuros
amigos por vir dias por viver?
E se agora alguém me dissesse meio sem querer
é chegada a hora de partir, levanta-te!
Como abrir os olhos diante de tudo o que fui
como seria fechar os olhos para tudo que vivi?
Se agora fosse hora de ir embora
ficaria a saudade de não ter feito
de cada hora a presença intensa da felicidade.
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NOTURNO
...eu quero meu amor se derramando, não dá mais pra segurar
explode coração. Gonzaguinha
As pernas cansadas da caminhada noturna
é que de repente a noite vai se tornando cega e vaga
e já não mais cruzo e descruzo as paralelas
é a vida que me acentua as curvas do caminho.
As pernas cruzadas tantas buscas
hoje quem sabe a morte deste momento lúcido
traga a paz às cansadas veias que desatam o tempo
que a memória apaga ao despertar do dia.
Hoje como a noite está fria e o coração agitado
prefiro o ócio dos lençóis ao frescor das mãos
prefiro a insatisfação dos andarilhos
que a certeza de tantos viajantes.
Hoje como sempre faço diferente o fim de noite
vou caminhar sobre os lençóis banhados de saudade
e vou regurgitar sobre a dura madrugada
os sons de minha infância que se foi há muito.
Hoje queria ser apenas um violino em disparada
uma canção em dó menor sem a menor culpa
e amanhã cedo eu a culparia pelas lágrimas
que nesta noite insistem em visitar meus olhos.
Hoje apenas hoje queria deixar de ser poeta e tocar
nas peles que o desejo encerra toda volúpia possível
dos que querem fazer deste viver a sangria do desejo
e de cada momento um tormento de lembrança em fotos.
Hoje já não quero mais ser imortal: quero ser finito.
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ESQUECIMENTO
Sossego, até que enfim, não suportava mais
ou se suportava, suportava esperando
a alegria de novas aventuras desfez o engano
esqueci teu rosto tua voz e teu sentido.
Desapego, até que enfim, não demonstrava mais
ou se demonstrava era por capricho e orgulho
nosso amor se perdeu em dias de deslembranças
esqueci teu corpo, tua face, teu sorriso.
CONTRA-SENSO
Tu te mandas esquecer-me e eu me mando lembrar-te
não por que te amo nem porque me detestas
só por que te esqueço e tu não me gostas.
Tu te mandas esquecer-me e eu me mando lembrar-te
não por que te amo nem porque me detestas
somente a lembrança nos faz resistir
vivendo em tempos diferentes um encontro passado.
Tu te queres me ver esquecendo sua sombra
tua luz se projeta por detrás da memória
tu te queres distante de meu corpo
a saudade se encarrega da lembrança.
Como perder-nos se já perdidos estamos
como esquecer se juntos já nos separamos
porque repisamos ainda juntos e diferentes
o mesmo tempo do amor passado?
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MENTIRAS
Não te preocupes te esqueci ( me minto mas é verdade)
uma nova paixão te fez esquecer (mas demorei a me acostumar)
é um ditado antigo e comprovei( que é mentira)
que não vale a pena sofrer por amor (tu não queres repisar nosso
amor?).
Quem amou sentindo o tempo passando
a fonte secando de leve em breves espaços
correndo as horas fomos nos afastando
hoje minto: ainda te amo.
Minto, por que ainda te quero perto
te quero junto. Te quero ao vivo
mas por que isso agora: o tempo passou
por que não percebi: tudo acabou.
VARAL DAS CONSOANTES
Vou compor poemas de portas abertas
sentir a brisa da tarde nua
seduzindo poros entre o frescor
da brisa dos apaixonados.
Abrir as janelas da alma
cavalgar poemas desatinados
nesta tarde eu mereço ser público
quero a notoriedade.
Hoje, só hoje, sem solidão
quero comunicar a paz
que entra pela janela sai pela porta
poema: varal das consoantes.
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CÉU SEU
... e foram se cobrir pois viram-se nus.
Livro do Gênesis
A hora não se consuma!
a carne que fim procura
sem cura a ermo vagamos
em busca de um amor
perdendo o ardor de pensar
o destino se oculta
pelas estradas desviadas
a delícia do paraíso
ofício do meio dia.
A hora não desarruma
a casa pelas visitas
pelos fratricidas em busca da dor
os fofoqueiros em busca da doença
o destino não me leva
o amor não se quebra
pra eu ver passar a vida
em pleno nascer do dia
último de minha jornada.
A hora não palpita
o coração em alforria
livre serei para ir
mas para onde se a hora
aprisiona e me quer viver
ir para onde céu véu dos viventes
ir para o além com ou sem alguém?
Talvez seja melhor a hora parar
deixando a vida mesmo esperar.
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INFORMAÇÃO
Se me dessem a certeza
os livros
se me dessem o retorno
das idas e idas do ser
pudesse eu querer relê-los
mas é que o medo
(os livros falam)
é mais forte que os olhos
(os livros se calam).
Parece medo pode ser presságio
mas muita informação
- um contágio
pra alma ferida de tanto amor
- um estágio
polui a mente pela divisão.
Amor desinformado pretendo
nem televisão jornais livros
nada de ver feridos olhos
novamente a história
de um amor desenfreado
com Freud do lado.
Divide bem e governarás.
AMOR BREJEIRO
A lua radiando sombras pela mata de eucaliptos
rãs cantando Elvis Presley no fundo de todos os sons
pessoas dormindo e sonhando com seus futuros próximos.
Morcegos ultrapassando nossa conversa
zunindo pelos ouvidos a inquietude dos corpos noturnos
duas mãos ocas que não se afagam nem se atraem.
Minha alma
estava distante de tudo
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a lua queria me devorar
só meu corpo, ouvidos e bocas e um frio cortante
percebia a outra presença.
Tu estavas nu diante de meus olhos
não a nudez dos apaixonados
mas dos enclausurados.
Soaram os gongos de nossas angústias
e na noite de piscina esverdeada
sobrou muito pouco de mim para remontar nosso diálogo.
Tua alma estava tão distante da minha
passeavam por outros mundos naquela hora
e mesmo librianos não pudemos justificar
o porquê de tanta rispidez.
Queria que minhalma estivesse ali para sentir-te total
mas não. Ela estava distante medrosa de sofrer.
Minhalma ao ouvir tua autossuficiência correu tanto
que suei para me reencontrar.
PASSOS DA MEMÓRIA
Ao Luiz Carlos
Os passos nos pastos gramados
e por sobre árvores os pássaros
se cantam e encantam com cores
os frutos avermelhados do verão
o céu refuta a lua e lança o sol
sob nós a luz clara da vida se faz
os sons da cidade abrigam silêncio
nada interrompe o marasmo da cascata
nem menino nem pai nem filho.
Só as aves marias são pronunciadas
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as tardes caídas se machucam nos olhos
os transeuntes desaparecem como o ar
por sobre a sombra do flamboyant
o casal se perde no tempo
constrói casa família história
e a aliança nem sequer foi comprada
o ourives se matou na madrugada sem lua
e da minha rua ouvia a madeira queimando.
Da memória rasguei meus panos
a interpretação dos anos foi concorrida
mas a batida do coração devolve-me o luar
que diz: é bom parar e novamente se emocionar
com o breve momento de olhar pela janela
e ver a mais velha cidade que se possa contemplar.
CENÁRIO
Era eu mesmo quem te escutava?
Ondas que o mar leva à praia
dos amores quisera distância...
Tu sempre vens na hora certa da angústia
procurar confunde as horas da memória
não posso querer teus lhos para todo sempre
eles são de muita gente.
Era eu mesmo quem te falava?
O tempo nos encontra de mão vazias
prontos e um e outro para se afagar e receber
mas não recebemos nem nos damos
fenecemos no paiol das promessas.
O mar cenário por muito de fundo feito
escuta os planos que fizemos há anos...
Era eu mesmo quem te amava?
A concha fechada das palavras omitidas
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abre o leque dos dias do porvir.
MEMÓRIA DE SONS
A voz das horas gritou alto
pulsando emoção desferi golpes
profundas feridas se abriram: passado.
Tua face reinvento-a a cada dia
já não sei se a imagem confere
os originais envelheceram.
Tua voz a escuto acompanhada de um sorriso
mas tuas risadas não ouço mais
me traduzo na tua imagem: sofro.
Teu corpo por onde meus olhos se confundiam
se parece agora com uma borboleta
o tempo tem asas que nos separam.
Teu jeito tua maneira de ser teu cheiro
nem a memória recupera nem o tempo revê
fui-me para longe foste para nunca mais
e entre anos dias de primavera e verão
não te recomponho mais também pudera
a memória da pele é sutil e já se confunde.
LÁGRIMA DOCE
Rola sem medo te esperei era tamanha a seca
rola sem receio de me ferir esperei-te tanto
leva contigo a mágoa a culpa e a dor
exorciza meu passado.
Esperei tanto por ti agora jorra de mim
carrega meus olhos batizai meus planos
enquanto te esperei estive seco
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seco demais para chorar.
PÁRE, AGORA
Percebe que sofro olha bem nos meus olhos
a dor está no azul e no branco por toda parte
concede que te veja sempre assim: passageira
por que se me descobre possa ofendê-la.
Por que se me tocas e me amas e te amo de volta
a dor um dia aparece e o encanto se quebra – para já
de olhar como se fosse eu quem te amo: tenho pena
de amar mais que teu próprio amor.
Sou mesmo assim: passado aprisionando o presente
não me consertes pra quê, não podes remendar
o passado em cicatrizes pela alma: tens conserto
para almas penadas? Desista: volte a ser feliz.
POEMA DE UM VELHO
Veio a hora avisando: deite-se
levantei-me. Que nada: o tempo dormira
junto de mim: não notara as rugas.
E fui espalhando-me pela manhã
e o tempo me rondando: corria de mim
o caracol estava ali : meu passado.
Choveu, mudou a estação e sentia
adormecido no tempo o coração frio
correr não dava: envelhecia.
Músicas tocaram, tentei ouvir o peito
o tempo sorria irônico: deitei-me cedo
acordei novamente: estava velho.
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Por onde corro por onde ando nasço
tempo passado, correr não devo, cansaço.
Paro, penso: o espelho não mente .O coração
está repleto de muito espaço: jamais amei.
CONFIDÊNCIA AO AMOR
Encontrei-te novamente perdido atrás de uma árvore centenária
estavas lá fertilizado pelo tempo pela chuva e pelo sol
vieste ao meu encontro e novamente depois de alguns anos
entrastes sorrateiro para dentro de meu lar e lá ficou.
Fincaste nos meus pés o esterco da pureza e amei
tu me forçastes a acreditar nos devaneios das noites de prazer
e pensei moço demais para me afastar do destino , que era
imagine só, depois de tantos corpos, o velho , o antigo amor.
Amor, és uma imprecisa palavra roubada das virgens e abortada
dos homens
não tens receio de na minha vida poder sentir de tal maneira
que apesar de desilusões e reencontros variados
possa eu inculto peito no riso definir-te?
E se te defino serás minha alegria
ou te vivendo e sentindo
lutando e gozando
não estarei ainda mais me enganando?
Hoje, amor, me sinto tão breve
como a gota de água no deserto árido
sinto-me tão frágil que sou folha
rasgada sobre a mesa do falecido.
Procuro respostas encontro meu passado
e amor, meu amor que tenho e não encontro
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tu estás tão imperceptível que não sei se vivi
ou fiz da minha vida uma abstração de sentimentos.
...essa música, no mesmo quarto e tu estás comigo?
MAR
As pedras são ondas sem praia para desaguar
cada rocha tem bromélias e orquídeas centenares
todo céu é o fundo infinito da natureza virgem
quando chove escorre das árvores a vitalidade
a natureza ao redor da cidade dos homens
inspira descansa e faz sonhar.
As ondas de cada pedra altaneira sem medida
não deságuam em lugar nenhum não há mar
tem campinho de grama no meio do mato
traves de pau de candeia da mata
três ciclos se repetem a cada dia
manhã tarde noite: a noite acaba em mar.
Minas tem mar: mar de pedra e verde
Minas tem onda: de pedras sem praia.
POETA
Ser poeta não é fácil
depende do tempo e
infelizmente o tempo é
ausência de sentimento.
Ser poeta não é fácil
tem que ter coragem e
preocupadamente coragem é
falência de ingenuidade.
61
Ser poeta não é fácil
tem que ter audácia e
paulatinamente a audácia é
demência da seriedade.
Ser poeta não é fácil
tem que ser prático e
frequentemente a prática é
indecência da teoria.
Ser poeta não é fácil
ainda mais que o tempo
repetidamente na vida
voa para nunca mais.
VAGANDO
Arrasto-me por entre dias
selvas de existência e só.
Vago-me pelas ruas entre noites
selvas de concreto que dá dó.
Dias e noites se debatendo: existo
atos e culpas atados em nó.
SOM
O silêncio: tímpanos desocupados
ou preocupados com vozes interiores
há no tempo de se silenciar o desejo
vontade de se ouvir calar.
No tom leve do diálogo sem som
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a voz aguda é o tempo interior
voltando frisando projetando
o ser diário tão desatento.
Quando tudo é silêncio interior
e fora do ser só o objeto inerte
pareço pairar sobre a realidade
abrigado no humano teto.
TEMPO AO TEMPO
Percorri caminhos de anos e cheguei
a um momento : momentos são pausas breves
para perder mais tempo.
E percebi: como cego em tiroteio o som
do destino como já havia traçado
por mim a algum tempo.
O destino não é invenção acreditem
destino é coisa percebida por quem
perde tempo em momentos.
Perdendo tempo ganhei o momento
de perceber que de tempo em tempo
o destino acontece num breve sofrimento.
MEU POEMA
Meu poema dura uma nota e meia
da escala do tempo passado.
Em dias de sol dura um nascente
nascidos na manhã de margarida na janela.
63
Meu poema dura a dureza do diamante
pra cada verso um milênio de saudade.
Meu poema não tem pai nem mãe
é órfão feito por várias mãos.
Meu poema é frio e calculista
primeiro sofro depois angustio.
Meu poema é a soma de vidas
passadas no canal da emoção.
AMANHECER
O dia começa com um grito: existo
nem pergunto quem sou até desisto
de saber se hoje serei eu mesmo
o que talvez seja muito triste.
Eu me dou novamente o dia: insisto
vivo porque não tenho coragem de partir
se penso em existir o medo de projetar
se funde ao medo de amar.
Eu me dou novamente meu nome: identifico
refaço o olhar sobre as coisas: frio
e o dia vem calmo e lento se pronunciar
sou em meio a todos que me injuriam.
LINHAS DA LINHA
O último verso ecoa bravo
por entre alamedas e becos
depois da chuva fina e fria
veio o poema noturno.
Expressivo o ônibus da palavra
percorrendo as linhas da linha
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as curvas revoltadas da mulata
a tinta preta pintando o sentido.
BARCA DO SENTIDO
Os versos vêm de longe
lá detrás da montanha azulada:
toda vez que sem inspiração
se encontra o poeta iludido
é para lá que mira os olhos.
Os versos vêm trotando
a poeira subindo: avisando!
eles chegam tipografando rimas
remando o barco das letras conjugadas.
COPO
A noite não excomunga ninguém
acolhe os bêbados e os fracos
os desiludidos os tediosos
a lua sacramenta toda dor
iluminando o fim do túnel
dos goles em copo americano.
TINTA FRESCA
Depois de acumular calendários
dias e horas segundos vejo
a noite e o dia sem graça
parece pirraça de entediado
mas não, é frieza intelectual.
Depois de rever os projetos
o quê, como, por que sinto
sensações idênticas sem farsa
parece tédio de pós-moderno
mas não, é incredulidade.
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TRAJETÓRIA
A gente anda cabisbaixo
felicidade parcas vezes tida
entre um gole e outro da bebida.
O tempo anda cabisbaixo
não temos hora pra partida
entre um amor e outro na vida.
A lua anda cabisbaixa
contemplação dos olhos ressentida
entre uma morte e outra na avenida.
FESTA EM MEL
Afunda na pele teu ferrão dolorido
coloca nas pernas a pressa dos dias
quem sabe abaixados possamos fugir
da dor da ferroada que levamos de ti.
Zum zum zum no meio do cemitério
zum zum zum no alto do cemitério.
DEMONÍADES OU BALADA DO CONVERTIDO
Creio em Deus pai...
até quando Senhor?
os homens se deixarão levar
pelo discurso mais forte
e nem a sorte os impedem
de ganhar os céus
qualquer um serve de guia
homens mulheres marias
66
lotes no céu lua de mel
vendem-se eternidades
varrem-se liberdades
e mesmo os de idade
colocam a bíblia debaixo do braço
e haja gritos para exorcizar o mundo
mundo tão perdido bandido
tão demoníaco e selvagem.
Os homens se deixam levar
pela cor da igreja
pela dor sentida que se cura
mas toda dor tem cura mesmo
e mesmo os imortais sabem disso
que adianta sofrer penando toda vida
se sofrendo ou sorrindo morremos
e nada garante o sossego
nem mesmo bíblia
nem mesmo pedir mais cedo.
URNAS E CANTOS
Passe o tempo
amontoem-se os corpos
ficaram as saudades
as palmeiras os sabiás
não tentem invocar os livros
a vida é mais que letra
não invoquem a memória
ela sempre se engana e escapa
passe o tempo
amontoem-se as placas
nós passaremos sem remédio
ou mesmo remediados morreremos
preparem as urnas e os cantos
67
não esperem com espanto a ressurreição
se ela acontecer vai ser longe
e longe é distante dos olhos
fiquem os sabiás (que também se vão um dia)
fiquem as palmeiras (que se quebram ao vento)
nós iremos sei lá pra onde
onde haja um canto indecifrável
onde haja a novidade sem culpa.
LUZ
A tolice do crepúsculo
é ser crise de iluminação
se não fossem esses postes
haveria apenas escuridão.
Mas como o homem cria e a natureza sofre
acostumados estamos à luz da noite
se há perigo em iluminar a rua
se há castigo em dormimos tarde
ninguém poderá afirmar.
Mas o crepúsculo está em crise
quem sabe se saísse bem rápido
sem ser pela vista notado
quem sabe se inscreve em Vênus
no calor dos graus mormaço
poderia deixar de ser para nós.
Que pena do crepúsculo
finda o dia dos sérios
e deixa o cemitério
com cara de catedral.
Se os anos voltassem
gostaria de sentir medo
do escuro dos olhos da noite.
68
POLIGAMIA DAS LETRAS
Conhecer o que dizem as palavras
decifrar o informe da boca aberta
a linguagem sempre esperta dos homens
decodifica o mundo o globo
os jornais: entre figuras
e estamos nus: garotos e garotas
a linguagem das línguas presas
prender o céu na boca
expressar o peito em fria noite
línguas que se dizem de si
de mim de ti do outro
reverenciar o discurso persuasivo
tão discursivo que alguns dormem
ouvir a boca da noite se abrindo
ensinando o menino a se comunicar
palavras verbos substantivos
temos motivos de sobra pra amar
a poligamia das letras me informa
que no falar: que se abra uma porta
estreita mais poderosa que entende e muito
a porta dos homens sensíveis
alguns chamam de incríveis
mas prefiro enumerar e chamá-los
imortais na arte de ouvir
imortais na arte de amar.
ESTATÍSTICA
A vida não cabe em números
em números não cabe a morte
se nasce um homem nova sorte
se morre um infeliz novos dados
a vida não cabe em estatísticas
69
triste caminho da abstração
cada um carrega em si muito mais
ancestrais e histórias
desnumeradas e sem tempo
não há números pra aprisionar a vida
um quilo um cento um milheiro
cada um é um janeiro esperando carnaval
faça bem ou faça mal é do homem
rodar moinhos sem contar as voltas
ir pelo mundo a cavalo
sem medir o estrago das rugas
a vida não cabe em números
em fichas de dados corretos.
SECA DOS TEMPOS
O homem é uma paixão inútil.Sartre
Os carrinhos de mão pelos becos
na areia os gritos de guerra
os meninos de olhos castanhos
se misturam ao cenário do tempo
incenso de missa em missa lavrada
jogados estamos entre alturas
mas não pensemos em cair
podemos sair pela tangente.
A infância na memória é viva
apesar da seca dos tempos
no chão dos poucos anos é tudo belo
não há tempo ruim nem cemitério.
BOIADA DE VERSOS
Poderia versar a noite inteira
rompeu a boiada da inspiração
70
e quero muito dizer
estou bem: estou vivo.
Nenhum poema é boi manso
sai pelo mundo feito louco
filho de pai taciturno.
O poeta ou o poema
em quem reside a loucura?
o poeta morre
o poema pra quem fica?
Leiam meus versos
pra que a boiada chegue
ao fim da estrada.
Leiam meus versos
pra que a loucura
seja completa e amada.
Leiam meus versos
e descubram que na vida
só há entrada.
O OUTRO
Havia bem antes de mim outro
indiviso humilde animado
hoje depois de amar e ver-te
sou pouco do meu passado.
Não foram as luas nem as estrelas
dizendo-me tu és passado
71
em apenas um segundo de medo
perdi quem havia amado.
Se o tempo moinho das horas
recontar meus momentos pudesse
deixaria ventos da juventude
agitar bem menos a memória.
Não posso recontar o tempo
apenas revivê-lo triste
como se em algum lugar
a felicidade ali residisse.
INGENUIDADE
Foi mesmo a tanto tempo: já me esqueço
a muitos anos nem bem me lembro as imagens
turvam-se como rio verde na memória
de nada valem as recordações: o tempo me levou.
E levando foi descendo ladeira abaixo e eu
imperícia em cascatas de acontecimentos
nem percebi o tempo não passa a dor
perdia os olhos ingênuos da infância.
Eu, eu mesmo. Que falo. Sinto e choro
eu, que me fiz em horas de tristes momentos
eu, eu me condeno - quero sentir o calafrio
do tempo injetando na veia passado.
E me vou levado pelo relógio da emoção
passei e sou passado e não me resta nada
apenas frases perdidas de um tempo ido
em que eu existia sem medo.
72
ELEGIA DA BOLA DA INFÂNCIA
Veio o tempo em longas cabeleiras
nem frio nem quente: angustiante
veio a veia dilatada pedindo: ame!
o tempo trouxe tuas cores e desvirginei as horas.
O tempo me persegue por entre árvores
os dias se perdem sem prazer
prazer era o tempo escorrendo
por entre um badalada e outra dos sinos serranos
prazer era a bola da infância rolando
sem tempo pelo campinho de terra.
O tempo me jogou na face olhos tristes
como quem olha do Pico do Itambé
prazer era a carne fresca dos amores juvenis
por entre paredões e becos
prazer era a hora do recreio no pátio
inundado de andorinhas brancas e azuis.
Dos tempos escorrendo na memória
cativou-se o bom tempo (parece eterno)
dos projetos pensados na noite
tu sabes dos projetos arquivados na emoção?
Desses que falo com a boca salivando
esses se foram nas horas da grande cidade.
Bem aventurada a ingênua brandura dos meninos do interior
bem dito o sermão do meu senhor sobre a montanha de gente
bem sofrida a dor destes dias sem sol e sem chuva
regados a desilusão
bem.... mal acordei e já olho sem luz o dia herdado do sono.
73
O frio na espinha batendo de leve em dias sobressalto existencial
é o tempo: ele te quer virgem para fecundar
tua memória de passado
é o tempo: ele te quer novo e jovem
para projetares o futuro ilusório
é o tempo: ele te quer velho como estilo colonial
para te dar lições de vida.
SOMA ET ANIMA
O silêncio, escuta, alma penada de solidão
o silêncio traz a amada, ouve o balé
os passos no palco vazio, um tambor...
O silêncio é teu amigo, senhora imortal
recebe-o nos braços ao fundo dos sons cadentes
parar o tempo e ouvir a morte penteando os cabelos
te prepara para a noite das despedidas.
Ouve, ó alma prudente, para estacionada na nuvem que chove
vê embaixo dos pés há muitos amados
parte rápido ouvindo os anjos chamando.
Nascente em meio às serras azuis dos mangais
não temeis o incógnito, vá em paz
O silêncio brinda taças, ouve coração!
Cada taça um sentimento nobre!
ENCONTROS
A alma leve feito fumaça
que se eleva que se leve
o amor bateu na porta
e nem sequer esperou:
74
aportou na minha cama
colocou o seu drama
e por ele nos amamos
a existência os planos
já começam a rolar
e quem vai nos impedir
quem poderá nos controlar
a existência justificada amando estamos
contaminados pela paixão útil.
Estou confuso mas estou agindo
se medindo me pego os metros de vida
escrevo cartas e pronto
já nem me lembro do dia de amanhã
da conta por pagar da vida por extinguir
esta estrada do amor é mesmo sem fim
e já justificado pelo outro não quero
não podes não deves não quero
pensar que há um final
assim abro as válvulas para o fim
desta água benta que cai sobre mim.
ORATÓRIO
As gotas de chuva agarradas às altas árvores
suicidam-se sobre minha cabeça
respingando umidade e verde.
O chão trespassando seus corpos mutilados
umedecia suas covas brotando
flores em coroas multicores.
A névoa fazia da mata um mistério
os sons decompunham nossos pensamentos
75
e nas voltas pelo recanto dos saguis
alimentei seus corpos saltitantes.
Cada gota de chuva era cachoeira
cada silêncio uma nova esperança.
Toda a tarde se fez oração criativa
de homens em sintonia com Deus.
Belo Horizonte / 11.02.95
SONETO DA CASA PERDIDA
“O que lá vai, lá vai, não o repises!”
Cervantes
A janela se fechou pelo vento
sem tempo inteiro ainda ouvindo
a música roçando o pensamento
fecha-se o dia no barulho esculpindo.
A antiga janela na infância se abrindo
refazendo manhãs de sol e chuva
retorcendo os dias de maturidade cobrindo
a mão suada da sorte de leve luva.
A janela áspera e inacabada ruindo
tão jovem como eu desabando
é no tempo que me vejo partindo
para além da montanha azul calando
a infância na casa dos pais traindo
- volta chuva dos tempos de acalanto!
76
POEMA SEM BREVIDADE
“Ó metade amputada de mim...” Chico Buarque
No horizonte para além dos olhos tristes
o coração está parado num ponto
em que felicidade havia.
Tu és as acácias roçando o vento
flores abertas em cio fecundando a vida
a noite dos gatos perdidos no meio do mato
a lua desnudada em sua face obscura.
Desde que amei teu olhar perdido em esperança
como se a felicidade ali residisse
desde que as moléculas do tempo nos aproximaram
como se o tempo devolvesse o momento do parto.
Não mais chorei por medo e sim por saudade
Ah! Peito tamboroso anuncia a glória dos amantes
onde reside a glória de amar senão sofrer?
Não mais penei por trabalhar mas por esperar
Ah! espera alegre que anuncia o reencontro dos olhos na hora dos
pratos postos
onde resiste a vitória de amar senão suportar?
Desde que foste para o relicário da alma do pobre amante das
lembranças impartilháveis
nunca mais vi as estrelas como pontos luminosos espelhando
nossos corpos
elas eram cúmplices do amor que me consome
tão forte que de vez em quando, de chorar me consolo.
Tu és a bíblia aberta no Cântico dos Cânticos
do pudor e misticismo exorcizando tua presença
77
pura feito túnica de batizado roubado de sua pureza anímica
enfeitiçada pelo louvor dos deuses como uma sacerdotisa.
Tu és minha ausência dolorida: ferida cancerosa do tempo no
peito
a aura fazendo arco-íris aos meus olhos
tela sempiterna de cores incomunicáveis
a vela acesa em noite de geradores desligados
é a noite que te traz.
A noite, tu te lembras, da noite escura dos corredores?
Passeávamos entre uma e outra ave maria
a noite, me digas, tu te lembras da lua vigiando nossa embriaguez
assustada?
a noite, te lembras da última palavra trazendo o silêncio à casa?
tens a noite como esconderijo eu a tenho como lembrança
pairando como flâmula das loucas torcidas organizadas.
Tu és piano amordaçando a garganta aos poucos a cada nota, a
lágrima acende imagens
a lágrima revive a magia das imagens virtuais sem foco, sem
sombra só trevas
tu consolas meus dias sem saber e porque nem te dás conta me
alegro
alegria de poeta é repisar o tempo com palmilhas de saudade.
Quando fores às verdes campinas do tempo de infância na porta
da igreja
me traga a semente de ipê nascido na praça dos seminaristas
rezadores de terço
busca mudas de flor exótica na casa pequena (que só ela cabe...)
de dona Ubaldina
mulher de olhos miúdos mas de coração pautado pela esperança.
Quando repisares teu antigo quarto vê se não te esqueças - anotai
num guardanapo!
78
olhai sem displicência para os tacos de lado a lado no chão
encaixados
imagina meus pés enroscados no labirinto dos pensamentos
olhai a parede branca parece sem vida - branco é o deserto dos
príncipes pequenos habitantes dos mitos lendas evangelhos
olhai com o coração a janela para o pomar - medi a grandeza das
árvores pelos frutos jorrados da seiva.
Quando tua lembrança repassar os idos anos que não se vão sem
dor ou espanto
já me espantei com a atualidade de tua presença em minha vida dá para sobreviver!
lembra-te dos cartões coloridos em noites escuras dos homens
cansados de estudar
espia com desejo as cartas revelando o poeta - enxuga as lágrimas
que as selaram.
Quando recolocares meu nome na gaveta da memória guarde o
nome do arquivo
deixa eu pensar no tempo passando o amor mas não apagando a
memória
deixa essa ilusão ser o ramo seco atravessando o inverno mas
vingando na primavera
deixa eu ditar ao passado o lema dos esquecidos que não se dão
conta da dor - recordar é viver...
Gritai alma de sete cores escurecida por melodiosa canção dos
amigos feitos nas horas
gritai alma solitária por tantas lanças atravessadas por algozes
amores
gritai nua pela avenida dos sorvetes das cervejas dos carnavais.
gritai diante da água benta... aspergi-vos na igreja das nossas
senhoras mães fertilíssimas.
Tu és a inquietação duradoura e às vezes de tão amarga é breve
79
és o arrozal esperando o brejo renascer da chuva de prata, do
orvalho da madrugada
és a madrugada por onde repassas tua vida de liberdade vigiada
és madrugada quente de verão, fechado o quarto, abertos os olhos
em dúvidas.
Tu, inspirador de flores e sementes a se abrirem sobre o altar e
sobre o chão
por onde plantas teus passos nos dias que se escapam dos olhos
arregalados?
tu não sabias compor músicas e me ensinaste a te reencontrar ao
som de acordes suplicantes
por onde ouves os passos dos gatos reinando na noite dos cios da
terra?
Tu és livro de poemas por sobre a cama - eu o deixo lá pois me
consolo: livros de poemas são férteis feito virgem em lua de mel deixo-os fecundando...
Tu és a singular infinitude de momentos entregues ao tempo em
pequenos objetos sacramentos dos olhos que se vêm...
tu te queres vendo o tempo como eu passado?
perdoa os versos matutinos feito missa breve - pela manhã reza-se
tão rápido, pela manhã precisamos ainda pouco de Deus
o dia traz tormentos demais...
Tu estás abrigado no tonel inconsútil da alma tu tens marcas na
alma? São como tatuagem no braço...
Estás na hora da despedida - tenho me ido tanto nos últimos
tempos!
A alma cansa-se de viajar por terra: viva o céu, se houver!
Estás na bandeja das horas... já tive bons momentos diante das
teclas que te apresentavam, belas cartas...
Fostes do meu cotidiano confuso, de inconfessas pretensões
depois do parto a mãe vê o filho crescendo se tornando outra
carne livre
80
nem me despedir consegui... há partos estranhos em noites frias,
sem graça
ficaram as fotos desde lá as guardo como trunfo diante do tempo
que não para.
Poderei escrever mais versos com pés atolados na saudade?
Recebe os versos nem meus nem teus nem nossos
não nos pertencemos: os racionais os mundiais os globalizados.
recebe os versos que poderiam ser do finito ao infinito, do breve
ao Eterno, mas são do amante à amada
recebe os versos breves em tantas letras escritas não te preocupes,
ultimamente tenho estado muito à toa mesmo.
Recebe os versos mais uma vez.
Belo Horizonte / 05.02.96
BALANÇA DO TEMPO
A luz atravessou o vaso sambambaiado por sobre a mesa em
mármore esculpido
o dia ressurgiu feito Lázaro das profundas covas do ser
transcendente
e nem bem acordava tua sede cegava meus lábios: te procurava.
A noite arrastando correntes madrugada afora: estrelas, luas, céus
mensagens chegavam por entre meteoros anímicos: esperança
e nem bem recordava tua fúria embriagada os olhos choravam: é a
tua lembrança.
Amada madrugada dos homens miseráveis sem metáfora sem
encanto
noite causticante lançando ao pensar redes sem desembaraço sem
fuga
dia perpassado de luz: nasci abrindo do fundo do útero os olhos
para a vida
momentos urgentes de equilibrar as horas na balança infiel do
tempo: urge ser feliz.
81
PAPEL DAS ALMAS
A alma partida entre luar e amanhecer
escreve, escreve rápido por entre a chuva
a noite desvelando o rosto esfacelado em dor
escreve, depressa, corre entre curvas significativas.
Vai, poeta, homem impuro, desvirginando a hora prendendo-a ao
papel
vai, poeta, enlaça a palavra por entre promessas de seguridade
afetiva
atira na parede dos papéis indefesos a cor das paixões inconfessas
mas não te esqueças: lava a alma depois do culto dançante das
letras.
Não há esperança do dia raiar orvalhando
esquece, esquece lúcido dos dias felizes
a lua nem bem chegará nem mal irrigará a pele (de chuva de prata)
esquece, esquece escrevendo: não há dessentido na letra
socorrendo a alegria
esquece e encharca o papel das letras radiosas da alma humana.
BOJO DO BARCO
A areia se abrindo para o mar em tarde noivando a noite
bela praia: olhos atravessando a maré que se enche - a lua cheia
a lua, cheia, revoltando o mar: não temos culpa pela dor da noite
a lua, enjoada, regurgitando ondas pela areia dos caranguejos
infantis: a vida não anda só para frente.
O belo regresso da noite clara, da água clara, do claro pensar
os barcos pedindo partida: a noite é feita para navegar
os astros quentes em tempo de estourar: máquina celeste
embriagada
peixes ninando a noite na rede capturados ainda sem saber: maré
alta.
Jiribatuba – BA / 1993
82
LENITIVO
Tua praia impedida por faustos casarões de ministros (de guerra
não eram...)
teus eternos jovens universitários em férias ou à toa passando
horas
o carnaval balançando corpos presentes e espíritos dos partidos
o sol desenhando nos olhos o panorama lenitivo das ondas
cadenciadas.
A Fonte da Bica restaurando a hidratação dos corpos agitados
há o tempo escorrendo por entre mãos que se juntam dançando
há os negros marcando a areia branca aos pulos da música em
tambor
tambores ecoando na memória das vidas seriadas ali vividas ou
santificadas.
Itaparica – BA / 1993
ROSA, ROSAE
Ao Pe. Félix Obrzut
Os teus postais guardados recriam tuas faces verdes em arco-íris
se abrindo em cor
a força do arrozal fertilizado pelo orvalho da lua melancólica
e nem bem a noite escorre por entre a chuva quotidiana das
enxurradas
teu brilho resvala na manhã saudosa dos pés repisando o caminho.
A igreja benzendo as vozes latinas das orações incorrigíveis e
imortais
os santos ouvindo clamores, suspiros, lamentações que se bastam
no toque à imagem
as velas acesas clamando Maria mãe das mães penosas
mãe virgem de mãos acolhedoras, recolhendo pedidos
incansáveis.
83
A lua que te fertilize por uma chuva e outra de vozes orantes
a chuva que te inicie no mistério dos frutos nascidos em estações
das verdes campinas a arara há de sofrer na retina a dor de ver
preto e branco.
Campina Verde / 04.03.96
ESCULTURA EM CAPIM
A arara azul sobrevoando a estrada dos homens fazendeiros
arara ou arco-íris em pleno dia de sol?
nos coqueiros com cachos enfeitados em amarelo hipertenso
há pousada o arco-íris gritante: é a arara ecoando na memória da
retina.
Podia passar as mão agigantadas pela virtual imaginação:
confesso imaginei por sobre a verde campina esculpida pela terra,
cultivada pela chuva
verde claro, cachos de cabelo liso por entre os dedos do passado
maqueta de florestas de capim: os olhos reduzem as imagens mais
belas:
percebe, temos belos quadros na memória.
Plana como a régua dos secundaristas traçada em ruas, avenidas e
praças
como corria o Rio Verde entre tuas terras, desafio aos não
geógrafos
Rio Verde do rancho com nome de padre, de fonte feita por
padres, de padres rezando missas vespertinas.
Rio Verde corrente entre pontiagudas pedras rolando ladeira
abaixo.
Missas ecoando entre a torre e o chão geométrico da igreja (o sino
roçando nos tímpanos as horas)
84
de hora em hora a vida se desenhava entre ipês amarelos e brancos
da Praça São Vicente
os seminaristas pestanejando aves e marias entre a alta grama dos
canteiros
ali a cidade começava: milagre de São Vicente, tela de Van Gogh
sem corvos?
VISÃO NOTURNA
E como não existia Deus se tuas luzes eram espíritos boiando na
lagoa...
era o espírito luminoso brotando do poste (luzes artificiais):
reflexos
reflexivos pontos por sobre a nata do tempo se indo pelo ladrão
das horas
erga-se novamente noite: quero rever os espíritos, Deus não está
morto.
Lagoa insana sombra que tu serás dos postes te rodeando
veja-te bela no espelho cósmico, ou na contemplação nem sempre
justa do poeta
que o olhar do poeta não tem espelho: só decomposição
existencial
que o olhar do poeta inveja a beleza etérea, efêmero nascer e
morrer do dia.
Lagoa da Pampulha / 03.03.96
GAIVOTA
O Túnel Dois Irmãos descobrindo o mar incaptável de tão imenso
e longínquo
as favelas escarpando formações mamelonares: seios nas praias de
brancas areias
o olhar retilíneo buscando a gaivota por sobre a tarde pousando o
fim do dia
85
onde sepultam os corpos das gaivotas: poderei visitar seus
túmulos efêmeros como a luz?
O Pão de Açúcar caindo sob e o chão retesando formas na
imaginação
a lua comprometida com o belo expõe a aula de estética a olhos
vistos
nem objetivas nem pintores nem poetas: a noite revelando nossos
corpos é pura
mais pura que o branco das penas perdidas pelo voo debochado da
gaivota insepultável.
Rio de Janeiro / 1995
ROLETA
Rápido vamos de ponto em ponto
ligeiro avançamos de sinal em sinal
passageiro por passageiro a roleta girando
as rodas do coletivo percorrem a poeira da cidade.
Mãos estendidas acenando - Pare!
são coletivos os movimentos
são sincronizadas as reclamações
cada momento ali dentro é muito confuso.
Belo Horizonte / 04.06.95
A MÃO
O motor ronca subindo a ladeira depredada
os homens sobem suados por entre cansaços
marcado é o passo das domésticas partindo
a casa se torna o refúgio dos cansados
a noite o abrigo dos operários incultos
que esculpem no dia-a-dia dos casarões
a história caseira refazendo o Serro.
86
24º ANDAR
Nas asas de tantos andares
vinte trinta quarenta
daqui de cima onde os mortais
se rebaixam lá embaixo
tenho no horizonte concreto estruturas.
É artificial: a imagem. o som, o luar.
É artificial: a comida, o livro, o cantor.
Belo Horizonte / 03.05.95
POBRE HOMEM, O TEMPO
A parreira crescida de seus dedos
suas veias largas jorrando tempo
nem rivais nem descontentamento
na sua vida lenta lembro bem
o que mais aparecia era a humildade
folhas caindo da árvore para o chão
palavras que se esvaem como perfume
de tua presença restou o sorriso
meio bobo quem sabe infantil
da eterna criança dentro de mim.
TEMPO LONGE
É hora de dobrar esquinas
e chorar sem rimas a saudade
das ruas de pé de moleque
das luas de noites breves.
Momento de ingressar no ônibus
nos degraus da viagem lembrar
Santa Rita em tantas subidas
desci tanto para enxugar lágrimas.
Quando fico muito tempo longe
87
das flores da Praça João Pinheiro
colho muitas dores no peito
e creio ter nascido onde não queria
porque estou atado para sempre
no solo duro puro
no colo da natureza.
Quando fico longe de tuas palmeiras
a procissão do Rosário reza por mim
por todos que vão e se perdem
na saudade sem medida dos degraus da partida
Serro dos amores alcoólicos...
CONTROVERSOS
...as tristes redes de meu pai. Do filme O Carteiro e o poeta.
É suado o papel do poeta
nem sempre dor nem sempre sorte
é suado pelas lembranças
diante dos versos não há mentira
só verdade desmedida dos sentidos
por entre espessas florestas de letras
buscar um sentido belo para a dor
encontra a melhor palavra para o não
fazer do acontecimento triste um verso
é suado o papel do poeta
se a alma está amando quem sabe
menor o desencanto o papel já não sufoca
mas quando entediado e morno
como não se pode tentar em vão
se procura no vazio a rima que não vem.
É suado o papel do poeta
de rimas às vezes sem clima
de versos às vezes controversos.
88
JANELA
Os sinos repicam entre andorinhas
e a dor tão pequenina povoa o olhar da velha
parada sob a janela aos poucos cai
sua vida se reconstrói num gole de café.
O que vê o que sente quem sabe
só se percebe nas rugas aos poucos lapidadas
anos que se vão deixando marcas
tempo que se passa marcando o corpo.
As músicas que nem mais se ouve, tocam
os lábios que nem mais mastigam , cantam
e no fim da tarde por entre serras
a vida se esvai num caldo de cana.
RUÍDO DE RADIOLA
Parar bem na porta da igrejinha e gritar
nem cantar nem orar nem pedir
somente parar e gritar pelos mortos
os vivos ficam desolados com os que se vão.
Gritar de olhos esbugalhados
quem sabe mais cedo ou mais tarde alguém venha
explique-me onde se encontram os que foram
autentique a vida após a vida.
Gritar bem alto nossa indiferença
com os que se partem porque se choramos
é pelo medo de também nós não termos um dia
a continuidade de nossa existência.
89
ETERNO RETORNO
Os filhos se casando
as casas se erigindo
os móveis comprados
as louças lapidadas
os corpos se unindo
nas noites frias do aconchego
a cidade crescendo
os lotes já sem espaço
invadidos por cimento e areia
aos poucos crianças correm
bicos se enchem de lábios
varais voando fraldas
em pouco tempo novamente
os filhos vão se casando
as casas vão se erigindo...
FEIXES
Repassar-te a limpo
recompor-te em versos
missão composta de poeta
acertada descontinuidade visual
apostar-se em tuas igrejas
possuir tua magia
as almas dos sepultados em ti
ganham o céu bem mais fácil
que todo pecador confesso.
Repassar-te no caderno de anotações
em versos desconsideráveis
não sem antes de colorir teus olhos
pisar o pé do moleque
passar o café pelo fogão de lenha
90
assistir a briga dos homens da roça.
Repassar-te a claro e a limpo
que desfrutável missão
o poeta se rejubila com o céu
mas se assusta com os amigos partidos
redimidos de toda culpa
dos nascidos, em Serro.
ROTINA ENTRE SERRAS
Entre serras um dia de descanso para os homens
as mulheres aproveitam para lavar roupa na bica
as crianças no rio tecem seus futuros molhados
a televisão sempre ligada mostra um outro mundo.
A missa das dezenove horas na igreja de Santa Rita
mobiliza pais e filhos numa única missão possível
é dia de mastro e dia de fogos de artifício.
A festa do santo mártir ano com chuva ano sem
traz o roceiro o boiadeiro e o peão
é dia de levantar o mastro que vai sair do chão.
Barulho anual borbulhando no átrio da cidade
entre serras Serro se faz igreja barroca
sinos badalando tempo meninos estourando bombas.
O coral dos homens sóbrios e das mulheres bentas
ecoam vozes por entre nossas vidas privadas
o mastro invade a noite dos lares lacrados
perfaz o ciclo das festas católicas uma a uma todo ano...
91
FRUTO
Para Nathália, sobrinha.
Chegou o tempo das goiabas
no pomar travestido do amarelo
sabiás fazem festa de gala
dos bicos receber o outono
da chuva receber o frescor do fruto...
A goiabeira encurvada pelos frutos
pisada nos galhos pelos pés do moleque
na noite que recebe os homens dos sonhos
refaz as forças da reprodução
a noite refecunda homens e plantas.
MANDINS
Somente a lua me olhava fria
metade noiva metade mulher
e nem sequer um salmo cantado
ela veio mais pura que o som
mais rápida que piau na isca.
Parou sobre o Rio Guanhães
mostrando o caminho da isca
cavando luz na água turva
espantando mandis e mandarins
deixando só o homem na margem
companhia que fosse um peixe iscando devagar.
BREVIDADES ETERNAS
O casarão azul esconde dentro de si a idade
as escadas da Santa Rita têm segredos do arco da velha
os coqueiros da Praça João Pinheiro caem suas folhas
as igrejas tocam seus sinos de bronze.
O tempo parou e não esperem
que a enxurrada por sobre o pé-de-moleque
92
traga depois do arco-íris sempre límpido
a novidade de novas formas novas arquiteturas.
Em Serro, tu transeunte de tantas vilas
a vida é assim mesmo e não repita meu erro
querer acrescentar em cada vírgula de descrição
o inesperado, o incógnito, o breve.
Em Serro, não há brevidade e sim a idade
de tantas igrejas ultrapassam séculos
deixe tudo como está e vá sem levantar murmúrio
que não seja: foi-se um visitante, ficou o tempo.
CAMINHO DA MANHÃ
Todas as dores são suportáveis desde que não falte o pão. Cervantes
Por entre a horta desarrumada
o caminho às orquídeas
passear por entre teias de aranha
num dia que mal começou
na noite que mal despediu
onde se vê o orvalho ainda virgem
os passos conduzem ao dia
no florescer das orquídeas
renovar as cores dos olhos
inovar a imaginação já gasta
...de vez em quando nos esgotamos
achamos tudo conhecer
problemas do crescimento.
As orquídeas refreando o tempo que urge
recriando a cada ciclo a flor
onde acabarão suas tranças
restarão ainda tempo de vê-la envelhecida
ou será que os cabelos cairão antes da flor?
Passear por entre manhã e tempo
93
num vai e vem colorido do sol
lá se vai o inexplicável
cultuar a eternidade.
FACE ANTIGA
O sino badalando horas
dias perdidos entre serras
chão cultivado boa terra
festas católicas marcam tempo
temos respeito pela procissão
vínculo entre terços e fila
idade levando os sonhos
varais estendidos em redes
mensagens inconfessas dos mortos
nas pedras que pisam o chão
demoníades brincam ao sol
quente é a estação do pensamento
nem frio nem dor nem vento esfria
a mania de olhar as horas
a serra azul dos papagaios
que ainda se vão pelas infâncias
deficientes físicos subindo ladeiras
homens sãos catando lixo na rua.
Serras erros serros
sonhar ser-te belo sempre
apesar dos anos correndo
dando idade à tua face.
À GAÚCHA
Acender o fogo bem cedo
sem medo da fumaça chata
tirar da lata a quitanda
servindo o café preto
depois do primeiro assalto
94
ferver a água na chaleira
não é brincadeira o calor do fogão
arroz torrando de um lado
macarrão cozinhando do outro
descascar legumes picar verduras
e soa o segundo assalto
fumar um cigarro
esfriar a cabeça
gelar a gelatina
requentar a comida
os pratos sob a mesa pedindo
comida quente feita pela manhã
o dia passa sem apetite
há tantos anos se cozinha
e o fogo continua brando
o branco na memória
o prato lavado ao meio dia
esperar sem correria o resto do dia
fumar mais um cigarro
ver a vida fazendo estrago
fim de luta início da telenovela.
IMORAL
A infância dos gols impossíveis
dos atritos eternos
das meninas pobres
de frente de casa
a infância da pobre casa da frente
dos meninos sem dente sorrindo
dos cavalos soltos no pasto
tínhamos muito orgulho...
A infância com sua turminha
times viajando para Datas
o gol agarrando os corpos
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a chuva molhando a lembrança.
Na infância cada um se descobre
por entre bananeiras fálicas
por entre fofocas de vizinhos
intrigas interessantes.
Nós pouco entendíamos de moral
parece que ela nem existia.
BALADA DO NÉSCIO
“Sejam realistas, peçam o impossível” Sartre
A juventude nas serras nascida
sabe jogar futebol
mas faz muito mal
exercícios mentais.
Ouvem um tal de Rap
de onde veio
para onde vai
ninguém sabe...
Fazem do sol seu brilho
pois suas vidas opacas
enferrujam-se ao sabor dos anos.
Bicicletas coloridas
verde limão rosa choque
pedalando o marasmo premente
de uma idade sem compasso.
Vão pelas noites de sábado
entre um passo e outro
de uma música americana
que serão sem estudo
se tudo é isso hoje?
Jovens percalços em ação
contando as pedras do Serro
- como renovar a idade
sem pensar alternativas
sem fazer o novo acontecer?
96
À MARGEM
Ao Izidório, sobrinho.
A mão ainda suja da minhoca
o rio caudaloso quantos peixes
o anzol esguio perfurando a água
o céu plastificado dando sentido ao dia.
Na margem de cá do rio escuro
onde passam os peixes e as minhocas
as recordações perfuram o tempo
sinto-me despido de sentido.
A manga pelo caminho tão amarela
a infância lambuzando seus lábios
a água ainda escorre pelas mãos
mas o tempo já se vai rápido.
INOCÊNCIA ESTÉTICA
Ao Raphael
O caldo escorre pelo canto da boca
a laranja espremida contra as paredes
do céu da boca da boca do sobrinho grita
infante é fácil brincar com os objetos
e por certo não há dor nem projetos
futuro passado presente não é decente pisar
vale a pena sorrir sem medida e sem atrito
não há força que impeça nem poder que governe
no tempo de infância a inocência é estética
e se fazem atletas num piscar de olhos
a energia dos altos dos gritos
invade qualquer residência de avós.
Infante sobrinho brincando de viver
sem medo sem poder que governe
sem cara vergonhosa que se envermelhe
na cidade pequena que não há de cabê-lo.
97
CASCATA TINHA
Nem onda nem mar
apenas enxurrada de chuva
água escura feito o tempo
em que passávamos esperando
dia tarde almoço
na Cascatinha tão distante
aos poucos descobri teu segredo
nunca escondido porém inerte
nunca distante mas sempre marcante
projetas a cidade dos casarões
nessa enxurrada que desce
par o mar dos dias que vão
para onde vão nossos fatos?
projetas a cidade do tempo perdido
nessa água turva que parece
esconder o fundo claro das pedras.
És como o Serro
sempre sorrateira
à espera do amante
de tuas cores de tuas pedras
de tua margem de tua sinuosidade.
És como o Serro
antiga demais
à espreita da última linha
que assinale sem data
extinta...
que assinale sem compaixão
secaste...
És como o Serro
um poço escuro do passado.
DIETA POÉTICA
A chuva começa a rolar
por entre pedras pontiagudas
a dieta poética está terminando
98
o abajur já vai se apagando
os sinos iniciam o repique
as letras começam a brotar
é fértil o caminho das recordações
cada emoção um poema
todo sofrimento um verso
a toalha despe o papel
e o véu sai da cabeça
a procissão já passou
o que sobrou foi a intenção
escrever versando sobre a emoção
missão difícil pra quem esteve de dieta
poética dieta de dias iguais
mas a chuva cai sobre o telhado
amianto duro que protege a memória
isenção impossível olhar para as igrejas
sem escrever o passado presente
os tênis já de lado e descalço
piso novamente pedra por pedra
dos moleques do tempo de brincar
e a chuva despe a noite
os versos já se amontoam e são
perfeitamente compatíveis com o momento
reescrever as memórias do coração.
MULTICENÁRIO
As canções ecoavam nos búfalos
imóveis a ruminar pedras verdes
as cordas rompiam os limites da viola
decompondo tempos pela grama verde.
As vozes blasfemavam cervejas quentes
há de se dar frescor a dor da noite
as cordas vocais rompiam a lembrança
buscando no passado o fio existencial.
99
As estrelas se admiravam de nossas cores
éramos verdes e azuis e lilases
cantarolantes e bêbados e melancólicos
cochilávamos nas paredes do bar...
Mas namorávamos! Estrelas e solitários
amando um no outro o brilho
multicolorido e necessário de nossos fogos.
Milho Verde / 02.01.95
TATU GALINHA
Ao Goleau
A lua sempre espelhada na água
no rio Guanhães a noite veio
nem percebi o tatu galinha só
nadando por entre luas d’água
num piscar de escuridão ali ele
morto com alegria pelo caçador
molhada experiência tatu nadando.
A lua crescia dentro d’água
parecia um parto parecia sons
peixes uivando no fundo da lama
eles ou nós bêbados não sabíamos
exibíamos a presença da coragem
entre uma cachaça e outra.
DANÇA DO ROSÁRIO
Místico bailado entre barracas
enquanto uns rezam dançando
outros dançam rezando
instrumentos confusos na noite
um mastro erguido uma mulher grávida
100
na flauta dos homens de boa linhagem
os sons se repetem há séculos.
Os olhos variando a orientação
pular é preciso catopê velho
não pare nem dance na vida
beba mais uma branquinha:
o dia raiou azul.
PAU A PIQUE
A casa velha abandonada
na esquina do tempo caindo
de pau-a-pique tantas dobras
vidas e noites passadas
tempestades frias lamparinas.
Na rua movimentada que a perpetua
ora escuro ora poste
a vida foi se perdendo
os dedos perderam as forças
a família perdeu dinheiro.
A casa velha já aos pedaços
continua imemorial
perdida em nosso tempo
sem reforma nem forma
estacionada nos olhos da história
que aos poucos sepulta
as vidas que ali habitaram.
101
FERIDA
Os telhados erguidos
pardais coloniais
ninhos feitos na noite
da chuva do mau tempo
desde criança me lembro
os filhotes caíam das calhas
e os criávamos pacientes
em caixas de papai noel
coitados de nós não podíamos
diagnosticar os danos da queda
boa vontade não cura ferida
e eles voavam para dentro de si
e desde criança não sei bem para onde
vamos todos depois que fechamos os olhos.
PRIMEIRO DOMINGO
Ao senhor Dirceu e Dona Sinhá.
Portas das vendas abertas à espera
de um comprador de primeiro domingo
vindo à cidade procurar Deus
encontrando preços novos e padre novo.
As vendas abertas prateleiras cheias
botas fubá havaianas bolinhas de gude
um movimento eterno de anotar contas
cobrar comportamentos cobrar pagamento.
O vendedor passa as horas contando casos
causando sensação de informação e atualidade.
As ruas se vão com seu calçamento hermético
prontas para receberem as águas da enchente
em metros de medo cozinhando a madrugada
casais revirando seus móveis assustados.
102
Venderia vendavais às vendas
se suspiros valessem muito
venderia varais de pensamento
se eles se tornassem livros.
BURACOS DO TEMPO
Nas ruas reinventando os anos
caminhar de pedra em pedra
ao final da tarde relembrar
as pisadas da vida.
Nos becos assanhando os pés
saltar os buracos do tempo
ao final do dia pulsar
os saltos da vida.
SUPER MODERNIDADE
Os becos camuflam os anos
os meninos escondem a bola
os lotes já vagos sem moradia
a igreja velha nunca cai
os moradores comendo quitanda
nós da varanda olhando o pico
dos dias se elevando alturas
vergonhosos estamos - quem diria
presos às pedras do tempo
aos moleques dos ventos imemoriais
não temos culpa de sermos modernos
contrapor ao chão a aeronave
nos dias que traduzem o passado
somos vítimas confessas dos calendários.
Levam os homens e deixam as histórias.
103
CARNE
Os meninos saltando na noite
nos pés latinhas de cerveja
quem diria um dia eu menino
depois de anos tomaria um gole
sapateando a rua ao ritmo do samba
os passistas quase de escola de samba
atropelando copos sujando a rua
goles de goles de goles
pular bem alto sem se incomodar
com o relógio avançando as horas.
Os pés dos moleques quebrando nos becos
como a noite aborta os embriagados!
Redime as prostitutas de toda culpa
a noite de carnaval abala os coloniais
com a nudez dos rostos felizes.
MILHO VERDE
Hippies situados e rotos
falando baixo ouvidos educados
cuspindo fogo acendendo cigarros
amassando a estrada dos carros
com sorrisos engraçados.
Hippies perdidos em pedreiras
ensaiando pulseiras
filmando o bolso transeunte
participando da fogueira
que suas mãos não acenderam.
Comiam dor e soluçavam estrada
feriam a cor de seus olhos pretos
avermelhando suas visões
fumaça de fumaça de fumaça
104
cheiravam o passado
anos 70 Woodstock Guerra Fria.
O que entendi entendi calado
desatei meu calçado moderno
caí na mesma água do lajeado
nadei do mesmo modo
bebi um pouco menos
tive mais grana no bolso.
Os hippies me olhavam
e eu os olhava sem saber por quê
só parei de soluçar adjetivos
vendo parindo seus filhos
de olhos em lagos
mas de peito feliz.
Esculpindo no chão algo mais
que se devesse ocultar
algo menos que eu devesse
reter prender entender.
Cuspiram na noite de Milho Verde
maduras provas de existência
uma essência diferente no ar
fétido de um capital animal.
Pariram seus filhos na lama
que por ser muita era de casal.
Aceitaram a paz de um mato crescente
hippies de Milho Verde
com seus lemas e suas teimosias
mostraram-me algo mais
que sexo drogas e disco voador.
105
BROMÉLIA
As portas do céu operaram milagres
nas vistas sentimentais.
Alturas em metros perdidas
subia e descia contemplação.
Natureza simples e inédita
longas tranças de nuvens
sob nossas memórias.
No Pico do Itambé descobri
há de um horizonte a outro
muitas casas e pessoas
redescobri a tempestade: barulho
o sentido das lágrimas e da chuva.
Vejo horizontes se concatenando
o Pico me disse muito e muito é sempre bastante
porém, sempre estarei a 2044 metros de me encontrar.
Santo Antônio do Itambé – MG / 20.01.95
AO PASSADO
Se vai levado pela tinta das cartas: elas chegam anunciando
passado
se vai arguindo em conversas entre uma e outra batida intelectual
se vai feito papel de parede pelos anos corroído sem reparos a
fazer.
Mais um amigo se sepulta entre uma hora e outra do dia
interminável
pretéritos perfeitos para quem das mãos rolaram pedras de
sentimentos
106
e nem bem chorávamos as abelhas continuavam sua aventura
entre os dias
de que são feitos os homens que não se deixam morrer nem em
mil anos?
Se vai tragado pela terra da virgens mulheres grávidas de filhos
telúricos
aqui mesmo, entre uma e outra oração incontestável
ficam os corpos achados pelas luas exibicionistas
um dia virá (mesmo que sem glória) do reencontro encantado dos
espíritos eternos.
BALÉ DOS SÉRIOS
...embrenhar-se na cidade em busca de fortuna que,
quando mudamos, sempre encontramos.
Miguel de Cervantes, 1693.
Do concreto nasce o dia assombrado por altos prédios aos olhos
parece que a treva imedida travestida pelos postes o crepúsculo
rompendo
exorta sombras do passado plano das ruas encravadas no baixo
chão
e os homens altos nos arranha-céus cutucam a memória de Ícaros
sonhadores.
Tenho medo da altura mágica destes prédios pós góticos (perdi o
sentido...)
parece aproximar-se da lua, logo ela tão arredia em ser tocada,
branca lua
parece um mastro fecundando a sombra da lua virgem, olhem os
véus da noite!
Tenho medo da montanha de cimento por sobre a terra navegando
balé confuso de homens descendo-subindo-chocando, há pares
dançando na avenida São João!
107
era um balé coletivo a segunda - feira: porque não me disseram...
tive medo desta desordenada dança entre sombras de altos
prédios.
O balé dos homens sérios: há homens arredios pelas praças: não
sabem dançar.
Quem sabe já cansados da garoa perene suor da lua fecundada
porque pararam os meninos já chamados de rua: logo eles tão
naturais
São Paulo escuta o brado noturno da rua e abençoa os filhos da
Lua.
São Paulo – SP / 1993
MARIA, JOSÉ E O SAPATO
Serro das marias e dos josés
da sapataiada nos telhados
telha por telha montado
das moças banguelas da roça
dos meninos sem resposta
dos homens maduros de nada.
Tuas casas têm telhados demais
e maria e josé só querem se amar
no chão dos moleques sem pecado
no chão da humanidade sem dono.
SANTA RITA
A novidade vem do alto
a morte de um matado
é anunciada pelo alto falante
ora Júlia ora Magda
ora de manhã ora tarde
o convite repetido uma fórmula
“sairá o féretro de sua residência”
108
saem os sepultáveis
anunciam-se recados
a tarde de Quarta-feira sem reza não fica
alto falante acordando andorinha
pelas escadas da santa
um padre se ergue e proclama
a igreja tão forte nessas bandas
ensina o catecismo
fogos foguetes barracas
a cada santo um festa
a cada ano um pouco resta
do espírito que ressuscita os mortos.
PAMPULHA
As luzes refletidas na água
davam a impressão de duas substâncias
uma concreta o poste
outra volátil a alma da luz.
Um sempre presente
outra se apresenta apenas na noite
como se em nós se repetisse esse fato
passei a acreditar na alma
que tudo sente mas se faz presente
na noite dos corpos.
Lagoa da Pampulha – Belo Horizonte – MG / 30 de maio de 1995
BOTAVIRA
No campinho do lote vago
na casa de Pedrelina
as pedras caíram fora
caímos então jogando bola.
109
Sábado Domingo feriado
moleques lameados e a bola
passando de família em família
a gente se confundia com os pais
nem pronunciavam nossos nomes
apenas filho de fulano...
a bola girando rolando o tempo
marcando o gol o tiro de misericórdia
crescemos e não coubemos mais ali
fizeram as casas grandes
desarrumaram o cenário
da infância suja de poeira amarela.
Restaram o tempo na face
e o menino sem braço.
300/2003
DESATINO
Um dia. Um dia daqueles iluminados.
Era setembro. Era eternamente setembro.
De que ano? Talvez a memória já apagou.
Era setembro (e fazia um sol escaldante).
E teu sorriso me veio confirmar o primeiro encontro
havia sido há pouco numa dessas escadarias da Santa Rita
havia pouco tempo que contemplara seu olhar
lânguido e sua voz ousadamente calma e rouca.
Tua encenação era tão real
que eu acreditei nela
não pude fazer nada
calei-me.
Tu eras muito mais que imaginas
ou talvez nem imagines
110
minha grandeza é não saber
dizer o que sinto.
Longos anos à mercê de teus desejos
ou meus? Já não sei. Eu estava lá
ou tu eras tão enorme dentro de mim
que me empurrei para o canto, enfadonho?
Senti muito a ofensa das palavras
mas nem as palavras adiantariam
descobri que tens a alma cercada de altos muros
e eu jamais conseguiria transgredi-los.
05 de Outubro de 2002
SERÁ QUE BETH NÃO VEM?
Para Beth Guedes
Será que Beth não vem?
A rua lotada de frases
de cada boca cheia de gentes.
Uma rua lotada de falas
a cada modo construções
de sentido de existência.
Será que Beth não vem?
(Busca-se o sentido de estar ali
mesmo sabendo que não o há).
A música de cada um tocando alto
uns escorregam para viver
outros vivem se escorregando
para ser.
Será que Beth não vem?
111
Ela vindo a noite vai mudar
de foco. Será ela sentada e nós
sentados juntos com ela.
Ela já estava ali. Grudada na nossa memória.
Ela era vinda chegando na imaginação
e a noite foi se mudando por causa dela
- ou de nós com necessidade de outros?
Será que Beth não vem?
E se vier seremos os mesmos
ou continuaremos ali sentados
pacíficos vendo as pedras?
E Beth veio.
(As pedras juntas são calçamento
A gente com outras gentes se faz
existência).
DÚVIDA
Apareço: mas não sou eu quem estou
fugi de minha corrupção ouvindo música
dilatando as veias da memória como fuga
do desvio de ser em meio a este fim de tudo.
Tropeço em mim: mas não sou eu ali
neguei minha finitude ambicionando eternidade
mas quê! Tirar essa máscara perturbadora
pode causar mais dor (horas por que horas?).
112
Estou aqui. Sou real. Sou esse ser não-ser
ser-não-sei-quando-amar
hiatos de viver já tenho muitos
quero as reticências... o frescor de amar.
Fúria de mim para este espelho opaco
não há outro entre esse ar e esta mente
tudo se é. Se vai. Se basta. Eu não:
estou engasgado com sede de não-ser.
Procuro entre os objetos meus cacos
mas onde se vão: os eus de mim brotados?
Porque os perdi entre as almofadas da noite?
Porque só me resta a dúvida?
Serro, 07 de Outubro de 2002
SERÁ QUE BETH NÃO VOLTA?
A revolta da estrela
É ser ela mesma
Eterna, apesar de inútil.
A revolta da noite
É ser ela fria
Eterna, apesar de fútil.
A revolta da vida
É ser toda
Eterno retorno.
E Beth voltou.
Deu ré no carro
E cessou nossa re(volta).
113
BOULEVARD CAFÉ
Via teu vulto nos muros nas janelas nas casas altas
teu sorriso impregnado em cada poste de luz
tua palavra escorrendo feito enxurrada nas ruas
este lugar trás tua alma nunca teu corpo.
As folhas secas do caminho de casa
o Boulevard Café continua fechado
foi lá: meus olhos te viram pela última vez
estou melhor agora. Mesmo de volta ao passado.
Os telhados escondidos da cidade
recebem o sol de um dia tão quente
e porque se vão os amores da vida
queria tua presença novamente.
Mas só há saudade ou uma minúscula vontade
de ter tua voz fugidia ao meu lado
passou-se o tempo. Passei com minha antiga
necessidade de ter-te eternamente.
O tempo tirou-me muito desejo
deu-me a satisfação de ver tudo agora lento
avalio mais sofro menos entendo tudo.
Pude ter-te mas nossos medos foram mais fortes.
O tempo tirou-me muita alegria
deu-me amigos verdadeiros
falo mais minto menos entendo tudo.
Pior seria não estar vivo.
Belo Horizonte, 1-7-2002
114
SERÁ QUE BETH JÁ FOI?
Partiu a voz e se foi o sentido
terá sido ouvido
do jeito pensado
por quem o criou?
Partiu um olhar
ido de mim ponte feito
para outro ouvido
chegado.
Partiu um carro no beco
(será que Beth já foi?)
se foi se foi se foi
cortando o ar.
Partimos nós
ali feitos muitos
confundindo sentidos
idas e vindas.
Será que Beth não vem
será que Beth não volta
será que Beth já foi
(o tempo urge ser ponte
de que valem os obstáculos?)
SOBRE A PÁ(LAVRA)
A pá lavra
o pé cava
o pi soma
o pó coça
o pú (blico).
115
O BEIJO
O beijo foi falso
mas estava eu ali
sentindo.
O beijo foi lapso
mas sentia eu ali
vivendo.
O beijo foi fácil
mas fugia eu ali
mentindo.
O beijo foi colapso
mas desligava eu ali
fugindo.
O beijo te trouxe
mas não quis
tu.
O beijo te lembrou
mas não fiz
nós.
Fui sozinho.
apenas
eu.
Belo Horizonte, 17 de outubro de 2002
300
A casa velha me deu sua sombra
e fiz um olhar medíocre
ao acordar.
116
A rua velha me deu o caminho
e fiz pouco caso das pedras
ao viver.
A amiga antiga me deu a dica
e fiz pouco caso do conselho
ao aprender.
A velha família me deu o lar
e fiz pouco caso da proteção
ao habitar.
A velha cidade me deu a história
e fiz pouco caso da tradição
ao mudar.
A antiga música me deu a saudade
e fiz pouco caso das notas
ao tocar.
O antigo amor me deu o medo
e fiz pouco caso desta dor
ao amar (novamente).
CHÃO DE POEMAS/2003
PRIMEIRA ESTRADA
chão por onde rodas passam
o carro suspende o atrito
pé-na-estrada
chão por onde se fazem caminhos
de um ponto ao outro infinito
pé-de-serra
117
chão por onde passo a vida
de um ponto ao outro do tempo
pé-de-vento
chão estradas e outros caminhos
de ponto aos pontos nos is
pé-de-moleque
chãos são tão bons
condução pelo tempo
do aqui e agora
chãos são tão dons
comichão da finitude
do ali e além
chãos são tão tons
terra vermelha
cor do coração
CHEGADA
a barragem sem ondas um mar
para Chica da Silva na tarde
de meninos pulando na verde grama
na colorida bola chutando o tempo
o tempo barrado na serra à vista
parando o horizonte escondendo a lua
nas ruas um total silêncio cortante
traz o pôr-do-sol em Curralinho
noite adentro caminha minha vida
pelas curvas do Coroado desviando a atenção
não há saída: da última à primeira rua
o chão se faz realidade: existo!
118
PULSAÇÃO
simplicidade é tarde em silêncio
adormecendo os gritos do coração... ação... ação... ação...
é ausência de ontem hoje agora
amolecendo o duro chão da existência
simples cidade cheia de serras... erras... erras... erras...
orquídeas brotando na dureza da rocha
ao lado do fogão de lenha
do maxixe do quiabo do gengibre
ser simples como a tarde silenciosa
em busca da noite fria... ia... ia... ia...
viver no chão da vida... ida... ida... ida...
rastejando em volta de si
SOMBRAS
há sombras da tarde
selando o destino do dia
ah! noite das sombras cruéis
nasça a luz da aurora!
sombras da solidão
cobrem a vida
renascer o dia
é preciso!
COTIDIANO
fogão a lenha
no quintal
fumaça de candeia
na chaminé
o dia acordando
119
os sentidos
matar mosquito
zombeteiro na perna
levar à pia
a xícara de café
para batiza-la
na água da fé
no fogão há lenha
há maria josé antônio
há mãos pés braços
nos feixes amarrados
um abraço à natureza
água terra fogo ar
elementos da vida
acordando
EM VOLTA
café da manhã na casa dos Guedes
na rua dos Cruz na rua do Coroado
com fé beber a inspiração cotidiana
em pé manter o sonho
de ser quem se é
até sem querer...
há fé na manhã do café quente
da Chícara da Silva
da Chica lenda viva
fé nos mitos: em nós sonhos
esperança de outros momentos
no silêncio da individualidade
fé no dia nascente na paz crescente
da fuga em massa para dentro de si
beber da própria luz
120
para ser sombra
mesmo que dissipada
do Eterno
fé na fé
pé no chão
em frente juntos
até que dê
PINGUELA
ao outro lado do rio
à margem direita
a pinguela conduz
do outro lado da ponte
o fim da travessia
se avista
do outro lado do nada
a história é o fio
que ata os nós
de outro lado da alma
o corpo é o elo
necessário
de um lado ao outro
passa pela passarela
e sem ela não há retorno
possível
de muitos lados se vê
o objeto sob a mesa
e sem ele não há realidade
palpável
121
do outro lado de mim
palpita o infinito
e sem ele não vejo
a mim mesmo
de muitos lados se dorme
mas há um sono apenas
adormecendo
de muita fúria se faz a tempestade
mas há apenas um nome
definindo
de muitos olhares se ama
mas é à primeira vista que
apaixonamos
de muitas quedas o rio
mas é o mapa que alinha
sua substância
muitos são os modos de ver
mas é com o sem olho coração
que nos entregamos
muitas são as formas de dizer do amor
mas é com um gesto simples
que o damos
dos lados de si se chega ao todo
pelos caminhos do chão interior
se encontra a voz:
PONTO FINAL.
122
ÁGUA
a tarde derramando águas
pelo vertedouro da barragem
molhando nosso hálito seco
sede de amor
a barragem de cimento contendo a água
somos peixes cercados
buscando sentidos
na água que envolve
mas a água não nos cabe
e como peixes pulamos para fora
bem na hora em que não podemos
- aprender a viver é resignar-se
na água ferruginosa nos debatemos
lutando contra a corrente
para chegar a algum lugar
ser humano
VISÃO
tocar-se por dentro
na ferida íntima
da dor
mover-se por fora
na fria manhã
da vida
conter-se parado
na luta diária
de ser
123
sofrer-se sozinho
na dúvida longa
de poder
ser-se o que se é
na busca horária
de crer
ONTEM
em volta de tantos caracóis – esses resquícios de atos
arrasto a concha frágil pelos dias de corpo finito
pelas ruas do chão da existência busco o endereço
do sentido de ser pretérito de ser imperfeito
não há saída – se a missa começou, termina no amém
não há retorno – causa efeito se entrelaçam, ainda bem
puxo minha carroça de outros chãos pisados há tempos
carregando malas e flores neste agora corpo nominável
pelas estradas levando a lugares jamais pisados
procurando heranças deixadas sob o céu agora azul
não há saída – se a caminhada começou, termina em suor
não há retorno – mesmo mar o rio continua água
UMA RIMA
nem nas nuvens senti
medo de cair
somente próximo de ti
não consegui sair
meu medo sempre maior
foi pouco
124
diante de tua loucura
fui mais louco
enfrentei a dor
como gente grande
na tua presença a dor
foi gigante
remexi na alma
feito líder espiritual
ao lado de tua dor
não vivi nada igual
pensei encontrar no teu leito
um pouco de paz
mas sozinho acredito agora
serei capaz
revirei do avesso
o que pensava
fui obrigado a entender
ao teu lado não me amava
UMA FORMA DE CHÃO
chão
órbita dos pés
trânsito constante
de quem é
pão
fome alimento
ingestão diária
do homem
125
cão
mordendo os vivos
espantando curiosos
com uivos
mão
acenando pra quem fica
na estação final
da vida
não
frases ditas com dor
desfazendo o que seria
grande amor
RIMA SEM SORTE
será certo
sentir
sem dizer?
e o pior
amar
sem prazer?
será certo
escrever
sem viver?
e o pior
confessar
sem crer?
será certo
caminhar
126
sem querer?
e pior
chegar
sem merecer?
será certo
se entregar
sem se conter?
e o pior
esquecer
sem poder?
AQUELE SER
via o que não vejo agora
mim de mim a mesmo eu
lia o que não tenho agora
eu em mim ao mesmo tempo
era um sonho
ver-se a si ali só
era um estranho
eu a me ver em dó?
quem era aquele ser
parado dentro de mim
qual eu mesmo outro
dúvida sem fim?
tinha o que não tenho mais
eu ao mesmo tempo mim
cria em inconfessas promessas
para por no meu eu um fim
127
O OUTRO LADO
palpitação na manhã do Coroado
ligação telefônica
preocupação
contato imediato com os problemas da vida
resolver uma bandeja de questões
fatiando dezenas de dados
ligado no mundo: CD, celular, mais o quê?
tanta coisa e o vento sopra lá fora há anos
como se a natureza fosse eterna
e nós finitos
o ibiti-rui sopra... sopra... sopra...
muda as nuvens tampa o sol
uma peneira de nuvens, que bom...
sentir na pele o calor da vida
vamos para a Gruta do Salitre
rezar o tempo no corpo quente
que a alma leve se vai
sem espanto
SALITRE NA ALMA
O futuro não é mais como era antigamente. R. Russo
sopro no topo da serra
eu parado ali não ouvia
o ruído da pedra
água mole em pedra burra
tanto bate que ensina
cada um tem sua sina
128
sal corroendo paredões milenares
e a nós venha o sal da terra
pra quem acerta ou erra
olhos buscando sentido na gruta
mas era nosso diálogo lento
que ainda se escuta
tantas formas de dizer das bromélias
das orquídeas procriando suas flores
mas era um debate nossa miséria
escadas conduzindo às pedras ruídas
nós desmoronamos um pouco ali
tentando sarar as feridas
a água lave todo intenção
boa ou má na tarde quente
batizamos a amizade da gente...
REENCONTRO
ninho de ave escondido no alto
sou fuga tardia
despiste de vida
um sobressalto
sou assim mesmo: o mesmo
sou assim todo: o tolo
sou assim pouco: o oco
sou assim alma: ou corpo?
sou ou estou
num plano muito plano
um horizonte: destino
129
feito eu feito insano
há música vária sobre a tarde
variações sobre o mesmo tema
quantos terão visto o pôr-do-sol
deste jeito em Curralinho?
cuide de ser seu
seu olhar
plantar e poderá
ceifar
MANGA
os meninos brincaram a noite inteira
pulando de galho em galho nas quatro mangueiras
de manhã o chão estava amarelo, verde, maduro
era só manga
outros meninos acendiam brasas
falando frases madrugada afora
de manhã a vida estava alegre e dividida
era só convivência
mas há vários meninos travessos
brincando nas nuvens
fazendo chover para brotar
manga e convivência
TEIA
hoje agora
amanhã muito tarde
para tecer teias
entre mim e outros
130
hoje sem demora
à tarde muito tarde
para refazer atos
entre si e todos
hoje só por hora
à noite muito longe
para dizer coisas
de mim para poucos
hoje
sem medo de dizer
do dia abençoando
mas efêmero
TARDE EM DIAMANTINA
porque me perdi num olhar
se tua voz não ouvi
teu desejo não percebi?
meu coração quis me desacatar
cenário
música
todos os minutos trazendo:
reencontro
porque se vão as vontades
silenciadas assim
numa tarde
em Diamantina?
é estranho
teu tamanho
dentro de mim
131
é confuso
tua luz
ser minha cruz
miséria humana
amar assim
demais
LIVRO DA ALMA
abrir o livro da alma
e reler fatos
ouvi-los
passar páginas mortas
e reviver atos
puni-los
amassar páginas tortas
e prescrever ações
aprendizado
MESA DA VIDA
Killing me softly this his song... R. Flack
juntei os cacos da memória
na mesa da vida
vi muitas luzes
vi muitos amigos
decolei a emoção num voo panorâmico
sob a barragem do destino
vi muitas vidas
ouvi muitas músicas
132
fui eu para lugar estranho
desses que a alma possui
nas esquinas de seus silêncios
ter comigo mesmo
quanto mais pensava
menos entendia
quanto mais amava
mais alegria
vida estranha dada pelos dias
a gente vai se cozinhando
nas panelas da emoção
e acorda pronto para ser
vida longa dada pelos anos
a gente vai morrendo
se sepultando
e renascendo das cinzas
(o que sobrou de tudo foi
isso: um sorriso ambíguo)
CAPIM QUEIMADO
o quintal canta a música
mangas batucando
vento saçaricando
galinha ciscando
cachorro uivando
o quintal rola a vida
capim queimado
árvore podada
raiz arrancada
tronco tombado
133
o quintal imita a gente
constrói
reconstrói
arranca
planta
o quintal limita a gente
cerca
lote
espaço
tempo
o quintal implica a gente
leis
lados
respeito
ordem
queria ser quintal
um conjunto
multilateral
de sentidos
de ações
queria ser quintal
um profundo
continuar
da casa
do lar
queria ser o tal
que é
só é
se é
indiviso
134
MÍNIMA CIDADE
a alma acordou
pequena vida
mínima cidade
um quintal
a alma decorou
a letra certa
mágica alquimia
da música
alma
sopro de incerteza
na máquina
alma
areia movediça
no corpo
alma
teia de sentidos
no quarto
PESCARIA
mão no chão: um caminho
no quintal (que tal pescar?)
sim, pescar o tempo de si
na barragem
mão no chão: uma vasilha
cheia de minhocas: buscar?
sim, buscar a si mesmo lá
na Barragem
135
mão no chão: uma enxada
retorcida e velha: calar?
sim, calar o amor aqui dentro
na barragem
barragem
lá me vejo
eu: inundado
de mim
barragem
lá me vou
eu: passado
eu para mim
mão no chão começo de pescaria
unhas sujas como a vida
essas mãos sujas
pecado de existir
CENÁRIO DO POVOADO
a grama cobre o chão de terra
pedras machucam a sola do pé
verde tapete dando boas vindas
para quem chega: ser natural é bom!
a igreja, o cemitério, s ruas de chão
o cruzeiro desvelando o horizonte
lá longe eu me transcendia
e pensava no Pico do Itambé
a zeladora da igreja agitando a monotonia
se enganando com os nomes dos santos
eles são tão distantes de nós mesmos
pra que saber seus nomes?
136
meninos jogando a bola verde no muro
do cemitério que corpos sepulta – só corpos
há no mercado imitação espíritos visitando
a monotonia inesgotável da Extração
a capela emoldurada na serra deu seu adro
para o pé de manga e o pé dos moleques
de boca amarela e um sorriso encabulado
as negras meninas não entendiam a visita
as casas tão miúdas: precisa-se de pouco espaço
para aconchegar os corpos cansados do trabalho diário
descansar os braços para arregaçar as mangas
ganhar a vida no chão dos dias
uma terna poesia percorre o horizonte
deste lugar quase não-lugar
um vento varre a saudade da vida corrida
de nossas eternas preocupações cotidianas
assim, tropeçando em mim o tempo todo
o silêncio, o vento, a chuva, o sono dos cachorros na rua
fui-me vendo parte desta ilusão passageira
cidade dos deuses no chão do Distrito Diamantino
pude virar minhas esquinas
subir minhas ladeiras
nadar minhas dúvidas
em dias de ser paz
subi minhas mangueiras
desci meus degraus de salitre
e reencontrei alguém perdido há muito:
eu mesmo
137
FOGÃO
na lenha do fogão se vai tanta natureza
anos e anos de paciente exercício de crescer
o último momento aquece a alquimia culinária
de D. Maria e suas panelas de ferro cozendo maxixe
ah! se ela soubesse da alquimia dos seres
cheios de leis naturais: terra, água, fogo e ar
ah! se ela quisesse chegar ao centro da certeza
das misturas no fogão das lenhas centenares
um fogão de lenha no quintal coberto de telhas
próximo dos pratos quase prontos: chuchu, andu
abóbora d’água, café em grão, cidreira, gengibre
a proximidade entre o natural e o cozido é máxima
ah! se ela pudesse se vestir de preto e colocar no caldeirão
temperos colhidos no quintal com sabores, gostos e tal!
ah! se D. Maria tivesse a arte das antigas feiticeiras
abriria as tampas das panelas e ganharia o mundo
mas D. Maria não gosta de lenha no fogão
não quer cozinhar maxixe, abóbora e andu
prefere o fogão a gás...
prefere o gás artificial
ah! se ela temperasse o caldeirão de bruxa
na carpintaria culinária
ah! se eu pudesse ouvir: terra, água, fogo e ar
pedindo: me una!
que pena: D. Maria não gosta de lenha no fogão
138
CARPINTARIA
depois da visita à antiga carpintaria
apesar do frio na espinha do tempo
percebi como a matéria contem sentidos:
um deles é a saudade
quantas lágrimas derramadas entre
uma lembrança e outra da batida do martelo
tac, tac, tac: por que se vão os amados
toc, toc, toc: pra onde vão os amados?
pude ainda ouvir o serrote partindo a madeira
entre um grito e outro de menino reclamando atenção
em meio à poeira: cadeiras, armários, ferramentas
e saudade
a poeira do tempo cobria a plaina
o torno
só não escondia os olhos miúdos
de D. Maria
uma oficina no fundo de uma casa
e muitas peças a vida vai pregando
e o coração vai se assemelhando:
caixote de amar
ah! todos os tempos voltaram à infância
e muitos sons ecoaram vivos como nunca
e o cheiro de tempos idos encheu a tarde:
de saudade
139
RUGA
a ruga no rosto
escadas de anos
marcando a rota
dos dias
cada ruga um sonho
construção de amor
cicatrizadas na face
dos anos
a ruga no rosto
serão oitenta e cinco?
ou terão cada uma
sua história?
não há fuga
há rugas sim
demonstração viva
da existência
rugas na pele
são tatuagens do tempo
na matéria sonhadora
nós
elas são um pouco
estalactites de horas
na gruta inconsútil
dos nossos desamores
pudesse saber das horas
edificadas em cada ruga
como livro aberto
ao conhecimento
140
sólidas rugas
atrozes recordações
maior a idade
maior a saudade
UM OUTRO QUINTAL
tá tudo ali
no quintal
tá tudo lá
mangueiral
tá tudo posto
hora do almoço
tá tudo indo
voltar ao ofício
tá tudo vindo
louvor ao divino
tá tudo dado
esmola a São Geraldo
tá tudo amarrado
Deus seja louvado
tá tudo limpo
bateia do garimpo
tá tudo perfeito
varanda e parapeito
tá tudo cozido
chuchu e palmito
tá tudo no jeito
vaso de amor perfeito
tá tudo a cheirar
anágua-de-sinhá
tá tudo bom
música sem tom
tá tudo gostoso
angu sem caroço
tá bom poeta
pare esta caneta!
141
DESTINO
a manga caiu do pé
ao chão (morte ou realização?)
mais próxima de todos agora
será amarelo de degustação
o peixe fisgou o anzol
no rio (morte ou revelação?)
próximo do óleo quente
será torrado pra digestão
TEMPO-MENINO
o tempo fez montaria nas serras
desgastando suas pedras
daí a gruta do Salitre
ser assim tão bela
o tempo adormeceu nas nuvens
sem perceber se chovia
daí os dias em Curralinho
serem tão diversos
o tempo cozinhou nas panelas do fogão à lenha
e nem se deu conta das rugas de D. Maria
daí a natureza da gente daqui
ser eterna
o tempo brinca de bola de gude nas ruas
e nem quer parar é eterna criança
daí as ruas daqui serem tão áridas
para que o tempo possa continuar...
o tempo se encosta nas mesas e adormece
e nem percebe seu grave defeito
142
(devia encostar onde comeu!)
sepulta pessoas e engravida moças
o tempo soltou papagaio no cruzeiro
e no seu corre-corre as pedras de seu caminho
vão descendo a ladeira
pra dar no rio
êh! tempo-menino sem tempo de
ser tempo-rei...
ELEGIA DO DIA SEGUINTE
quem virá depois de nós
nesta casa rosada
feio nossa pele
depois da barragem?
quem irá contemplar a chuva
roçar os cabelos da mangueira
espalhando frutos
pelo quintal?
quem?
eu já me vou e isso basta
mas é um bastante frio
deixar este cenário único
não verei os filhotes de Totoca
crescendo e mordendo o tempo
pior do vaso ontem plantado:
quem elogiará suas flores?
e a água descendo o nível da Barragem
quem dirá de sua altura
143
atrapalhando o banho da tarde
de verão de janeiro?
recuso-me acreditar
não veremos nada e nada
é tudo esse frio sem coberta
que é pensar a partida
quem vai cuidar da grama
esse calçamento que agrada os cachorros
e chama pra sentar ela vai crescer mesmo
ou vai parar no tempo?
é triste e quase alegre e quase triste
saber que a serra vai continuar dando de si o pôr-do-sol
saber que o tempero de D. Maria vai
continuar saboreando a almôndega
que do prato da memória se vai...
darão notícia das maritacas verdes
os jornais da capital turbulenta
e das orquídeas e bromélias e palmas
farão noticiário os periódicos?
triste e quase alegre e muito triste
saber de passados e futuros
há uma lágrima a escorrer por entre os dedos:
néctar de anágua-de-sinhá
dizer de Curralinho
é divagar
quase parando o tempo
eis seu sentido
144
DESDENHANDO
desdenho dessa manhã repetida
desse céu nublado e sem graça
dessa mesa de café sem brilho
da luz que invade meus olhos
das companhias que vão me deixar
e dessa casa rosada rio da sua cor
da sua forma
de seu espaço
de seu telhado colonial
de seu piso que me pisa
desdenho do sorriso matinal
e desse acordar... acordar... acordar...
como se cada coisa ou pessoa
quisesse me tirar de dentro de mim
como se eu fosse Lázaro
e Jesus me chamasse
desdenho desse sonho de família
dessas cadeiras silenciosas
da cachorra e seus filhotes
das panelas sujas de ontem
do cabelo desfeito no travesseiro
de tudo ao meu redor
desdenho... desdenho muito
minha arte de desdenhar
é assim: arte de ser eu mesmo
no domingo de deixar
oito dias de férias
de descansar de si
e voltar ao mundo
e aos compromissos...
lá, desdenho da segunda-feira...
145
A FUGA DA POESIA
faço poemas para fugir
não para me reencontrar
faço para ir
não para voltar
escrevo para me ver escrito
e depois de algum tempo
olhar o dito
e rir por dentro
solto letras nas linhas à toa
como quem ri ou chora
depois saio recompondo
aquela hora
vou solto feito bicho do mato
sem rumo impondo formas
às letras que soltas não valem
nelas descrevo todo ato
toda poesia caberia
no meu poema
mas me encho de letras
todo dia
muito amor aqui passaria
mas minha letra é morta
feito sombra da gruta
que não vê o dia
AI, MEMÓRIA!
fogão de lenha
no chão do quintal
panelas, temperos, sons
146
vozes cozinhando as horas
e antes que me esqueça
há os antepassados
em volta do calor
tentando loucamente
voltar a sentir os cheiros
e antes que eu me esqueça
de novo, ai memória
há o avental sobre a saia
a banha de porco na panela
anunciando o tutu
e antes que eu parta
há no ar uma fumaça
que devolve às narinas
os cheiros da infância
as sensações de tempos idos
e há esta força feminina
andando pra lá e pra cá
num balé de tempos
tirar panela do fogo
olhar o forno
picar os legumes
varrer a sala...
será que ela se cansa
de se cozinhar em meio
a tudo isso?
será que ela se cansa
de se dar em forma de sabor
para as visitas?
Parece que ela mente pra si
uma mentira sincera
sabe que na segunda-feira
o domingo foi valioso
sabe que amanhã sua mentira
147
não me canso
não me desgasto
terá valido a pena...
(há no ar um cheiro
de ervas, plantas, grãos
transformados)
UMA MESA
no chão da sala
uma mesa me faz
as vezes de poeta
coloco-me de braços dados
com todos os poetas
anônimos
mas tenho meu canto
e quero expressá-lo
ponho-me na função
de ouvir as palavras
anotando-as
cheiro a inspiração no ar
e transpiro versos
no papel
mas ouço um canto
e quero mostrá-lo
FESTA DE SÃO SEBASTIÃO
a chuva sela o dia de rezar a São Sebastião
de procissão pelas ruas e dentro de cada um
na chuva somos batizados novamente e é tempo
148
de mudar de rumo: olhar-se, ter-se, ouvir-se
as ruas molhadas germinando caminhos
uns passam por Curralinho outros vários
dentro de cada um
as sementes se embriagam da vitamina celeste
e brotam-se agarradas ao chão: um parto
de verdes gramas, árvores, arbustos
e é uma bênção de São Sebastião no chão
por onde pisam os pés e destinos
vidas e errantes
a chuva sela a carta do chão ao céu
todos vão brotando finitude
para alcançar o Eterno
na Extração o chão é pedregoso
e as casas são disfarces humanos
toda casa é cupinzeiro, formigueiro
mascarados de propriedade privada
PRETÉRITO NA ALMA
o dia se vai como o pulsar lento do coração
sem coragem para desfazer o desenho de futuros
imaginados e não vividos
o dia se vai feito eu aqui entre meus labirintos
sondando o melhor modo de passar as horas
sem medo de ser infeliz
o dia, este amigo das revelações existenciais se vai
para onde para que para quem... não sei
se vai... lentamente para ontem
149
vou-me indo descendo a encosta do morro
feito a chuva rolando a monotonia das horas
lavando a alma nos acontecimentos
vou-me (sendo se é mais fácil)
será fácil percorrer este dia de silêncio
sepulcros de pretérito na alma?
ANTIGO AMOR
acordei o sonho de dentro do fundo do poço
eu ali vendo o fundo de tantos sonhos
sonhos pequenos mas nossos mas meus?
confundo-me com a profundidade da saudade
olho por volta do sentimento que ficou e nada vejo
senão as notas desta música palpitando feito eu
no desacorde desta emoção tão febril e tola
desfazendo os sonhos na noite escura
posso olhar o passado mas é dor rever
fatos fotos mistura de sentimentos
o poço de amar é muito fundo nesta hora
cavar o passado dói os braços do coração
o mato nasceu em volta de tuas lembranças
altas árvores posso avistar tampando
o sol da tua presença e o sorriso fugas
de tua alegria
onde estava eu ao mergulhar tão fundo neste poço
não posso, não posso, não posso
escutar teus passos soltos e velozes
pelos corredores da minha memória
150
fugiste de mim
fugi de mim mesmo
hoje é lá no fundo do poço da alma
que nos encontramos
saudade é palavra vaga
na noite que se ergue tu
no vazio da existência
queria novamente nós
mas é vaga memória o tempo
e refazer o passado quem pode?
devo buscar-te... mas já te perdi tanto!
há medo nas curvas da vida
revoltadas ondas de antigos afetos dados
cobrem o poço fundo desta lembrança
eras és serás ainda? quem és afinal
antigo amor?
ANTAGONISMO
Pior de tudo que a gente ainda vai se ver
ando em ruas que não sei o nome pra me perder. Ana Carolina
as unhas afundei-as todas na saudade
era ontem na minha alma ontem eternamente
e o frio na barriga percorreu todo o corpo
brotando nos olhos longas gotas
pelo rosto escorrendo – chorar é tão triste
estraguei as notas musicais com melancolia
nada melhorava esta face deturpada de saudade
nada mesmo – como são longas as margens da alma
de um a outro lado nadando fui
eu e eu mesmo não me achava
151
tens colocado em mim muito de si mesmo
nas horas vagas de pensamento ou na imortal
incandescente necessidade de tua presença
floresces no meu jardim usando deste orvalho triste
nas noites em que os muros são intransponíveis
sonhei tantas coisas... dessas coisas irreais
mas eu era verdade e tu mentira ou meia-verdade talvez
éramos um sorriso e um lamento antíteses vivas
remanescentes de vidas passadas em quais locais?
eternidade sem tu é eu sem mim (voltar? não sei como...)
a lua na janela descobriu no meu interior grutas
eu era me perdendo entre quartos de lembranças
tantas formas quis dizer deste amor – usei adeus
e fomos virando a lua o sol o por da vida
para caminhos antagônicos
sobrou esta saudade em letras garrafais
empossada nas artérias da alma
sobrecaída na sarjeta da memória
tropeço nela de vez em quando e sei
jamais vou te esquecer
QUEDA
Nunca pensei ouvir dizer: não é por mal mas vou lhe fazer chorar...faz um
tempo eu quis fazer uma canção pra você viver mais. Patu Fu
a mentira c
a
i
u por terra
como nós um dia
afastados
152
a máscara rolou pelo chão
como eu um dia
cansado
a fantasia deixou-se cair
como nós um dia
entediados
a verdade voou pelo ar
como tudo um dia
desvendado
fomos nos despindo
da mentira
da máscara
da fantasia
da verdade
sobrou passado
PRONOME
a noite traz-te mas não levas-te
embrulho-me no lençol
da tua lembrança
a noite faz-te não desfaz-te
adormeço no travesseiro
da tua saudade
a noite quer-te não podes-te
cutuco os pés
da dor
a noite ouves-te não calas-te
roo as unhas
153
dos sons
a noite brilhas-te não ofuscas-te
fecho os olhos
da alma
a noite faz-me trazer-te
rebobino a fita
do passado
há noite face a face
comigo agora
sou cálice
cheio de si
ah noite, faz-me ter-te!
agora agora
na hora boa
da memória...
sim queria-te
querendo-me.
EXAGERO COTIDIANO
engoli
a noite
acordei
de ressaca
almocei
o dia
levantei
asiático
jantei
154
a noite
dormi
horas
devorei
o dia
cochilei
confuso horário
comi
um trem
perdi
a linha aérea
mastiguei
o passado
acordei
atrasado
mordi
o presente
encontrei
só se(mente)
acordei
metafórico
vivo
poeta
SALA E MÚSICA
diga-me que não ouvi teus passos
dentro de mim
e direi bem alto
estavas aqui
155
fale-me em desatino que muito prometi
mas essa quase mentira
desde cedo e tu sabes
estava dentro de mim
insulte-me guardando as caixas da memória
essas que enchi de tua presença
e relerei pra quem quiser ouvir
nossa história
pise-me afastando teu destino do meu
mas não adianta negar teus olhos
agora tão distantes e frios
já foram meus
arraste-me pelas ruas da saudade
eu irei alegre ou triste
recolhendo na memória a pureza
que eu sei- ali persiste
não separes minha vida da tua assim
os laços são visíveis
pelos menos pra mim
não afastes tua voz do meu ouvido
prefiro acreditar nesta bobagem
voltarás um dia!
ao meu abrigo
sonhei todas as maneiras
de render-lhe a saudade
mas tu não queres mais
ouvir-me nem por piedade
(há um som no fundo da sala: sou eu ecoando saudade nos objetos
desta casa)
156
PERSEGUIÇÃO
queria um silêncio
entre esse medo
e essa certeza
queria paradeiro
entre essa manhã
e essa estranheza
queria não ter vivido
todo esse medo
nessa manhã
de dor
NATURAL
o vento dos dias
na alma fez
frio
a queimada ardente
preparou o peito
novo amor
a chuva secou
a lágrima
do rosto
a fonte saciou
a sede
do rio
eu era tempo
de ir e vir
achar-se
natural
157
ALMA/RUA
a alma atravessada de ruas
nas lamas da vida
lavando o rosto
pureza
essa perdeu-se
poeira
essa deu-se
a alma cortada de avenidas
no suor dos dias
transpirando o corpo
por a mesa
hábito cotidiano
por a mesma
alegria no dia
a alma se vai atropelada
enrugando a alegria
passados passados há muito
eternidade – novamente?
CARMA
da boca sai o coração
do travesseiro brota consciência
na mão surge a intenção
é da noite a voz: existência
no olhar mostra o que trai
na pele aflora a sensação
da fala diz não volta mais
do pé corre aproximação
158
do cansaço se quer a indolência
da alma tece encarnação
da morte um fim da experiência
voltar sempre é difícil expiação
do dia rouba pouca paz
da dor se aprende a essência
é na paz e na ciência
o equilíbrio mordaz
ANDORINHA
vagas horas caindo pelas ladeiras
vou-me tiquetaqueando com os ponteiros
desse relógio da Santa Rita
da ladeira de degraus fazendo-me alto
de fato falta a hora do início
desse desatino chamado vida
fui cavalgando pela grama verde do adro
pelejando para chegar dentro de mim
ao alto conhecimento feito andorinha
voando o tempo migrando-se pretérito
para ser existência na umidade nefasta
da chuva de novembro
queria ser-me sentado no alto da Santa Rita
eternamente hora de contemplar a cidade
mas que! eram verdadeiras as frases
diziam de sofrimento ruptura crescimento
diziam de mim sem saber e negar hoje não posso
rolei escada abaixo
(o sino anuncia as horas desde a infância
e agora é hora de dormir feito andorinha
cansada de voar tão alto)
159
16 DE MAIO DE 2003
Acabei com tudo.Escapei com vida.Tive as roupas e os sonhos rasgados na minha
saída. Mas saí ferido sufocando meu gemido Fui o alvo perfeito...muitas vezes no peito
atingido. R. Carlos
eram horizonte plano e céu azul
até um dia: caiu a realidade
o céu tornou-se chumbo
nas costas
no coração
dos lentos cinco calendários
que restou senão uma carta aberta
e a alma lacrada de lágrimas
suspiros copiosos sem poesia
na fria noite da memória
cansado de tanta mentira
caí para o lado derrotado
tanta mesquinharia
tanto abrir a boca para matar
é agora difícil ressuscitar
AMOR
Tudo era apenas uma brincadeira que foi crescendo, crescendo me absorvendo... e
de repente eu me vi assim: completamente seu. Peninha
o amor não vem assim
anunciando chuva
feito nuvem
de verão
o amor nunca se põe
andar por andar
feito prédio
construção
o amor se dá
como o ar ao dia
160
só é preciso ter
pulmão
o amor se faz
acorde por acorde
mas não tente repetir
a canção
o amor pode ser frio
pobre na rua
mas não tente dormi-lo
num colchão
o amor é vadio
mas no peito
é senhor
de tudo
o amor é vazio
mas na alma
preenche
o mundo
o amor é sozinho
e precisa sempre
de duas vidas
para ser
o amor é vício
se vem com ele
na veia na pele
a cada início
o amor é fruta
quando colhê-lo
perdê-lo quem quer
sabê-lo quem pode?
o amor é confuso
feito carro abstrato
161
desgovernado
sem parafuso
o amor é rima
por isso só poesia
para dar sua cor
na linha da vida
queria não tê-lo
mas sou dele
e por ele
me vou
UM CHÃO
é o chão
piso asfalto
sensação
pelo chão
busco muito
paz
sonhos
emoção
sai do chão
o dia
a noite
faz tropeços
encontrão
chão
sensa chão
sensa fine
sensachional
ser do chão
humano ser
162
OLHAR DE VIADUTO
o Viaduto Santa Teresa derrama luzes pelo caminho
e subo e desço e desço e subo
o suor no chão preto se mistura aos suores todos
de muitas gentes
quantas pessoas suspensas no concreto
abstraindo projetos de vidas
ligando pontos de suas cidades
das mais secretas
sou eu ali caminhando
tropeçando num outdoor
ou num anúncio qualquer
sou eu ali descaminhando
o chão da metrópole
interiorana
sou no Viaduto Santa Teresa
carro ônibus motocicleta
roncando os motores
do tempo
e parar não se pode
contemplar andando
se quer
se consegue
(mesmo a pressa mais apressada funda
novos olhares sobre o Viaduto)
163
VARANDEIRO
vou me varandeando
sem entrar de fato
na minha casa
lá, no sótão, há
mais de mim um outro
e de outros feitos
muitos sós
vou me percorrendo por fora
o chão do coração é sem dono
de muitos sentimentos
calçado
vou me espiando pelas janelas
não posso invadir-me agora
lá estão nossos restos
pistas do passado
vou me pisando de leve pelas beiradas
sem hora nem dia de chegada
somente espiando
as cortinas bailando
lá dentro sou
medo de ser
quero ficar aqui fora
na ilusão do inteiro
lá dentro vou
fundo demais
quero ficar por fora
deste rio denso
lá dentro quem sou
pra que entrar
quero hoje ficar fora
só me vendo
164
afinal achar-se
é perder-se duas vezes
VIVA MARIA EREMITA DE SOUZA
tua voz ouvi numa tarde
experiências de tempos
correndo pelas palavras
caindo dos teus cabelos
tuas histórias tão frágeis
tua presença tão gigantesca
ficaram na memória dos 90 anos
de vida de vida de vida
na Rua do Corte tua casa era um destino
do passado ido próximo remoto
tua sabedoria era tua marca maior
belas palavras para dizer
a gentileza de teus gestos
a suavidade de tuas ações
a vagareza de tuas decisões
marcas de tua personalidade
o chão do Serro foi teu ensinamento
e por ele percorreu longos caminhos
ensinando aprendendo contando
os fatos não seriam os mesmos sem tua versão
vão-se os corpos finitos e mutáveis
ficam as palavras e a amizade
precisamos não esquecer
a história é mais que passado
viva Maria Eremita!
Belo Horizonte, 14 de julho de 2003
165
CURRAL NA SERRA
o Othon Palace atravessando o horizonte
o curral da serra onde estará?
se foi? se vão tantas coisas
e eu me venho de férias
o movimento impiedoso de tudo
comprar vender
impede o que pode ver
chãos interligados
há linhas pela cidade
muitas levam ao encontro
outras nem tanto
são saudade
há tramas de chãos
uma rede de motivos
para ser-se em meio
ao vertical de teus prédios
os chãos são vários
muitos nem têm sentido
se perdem pra quem quer se perder
outros são ilusão
teus chãos são de todos
por isso invado tudo
com olhar de medo
desejo de compreensão
Belo Horizonte é sentido
mão e contramão
horizonte feito
belo chão
166
CHÃO DO INTERIOR
o chão de dentro é escorregadio
sem placas seguras
intuição
por isso se prefere o de fora
dado por outros
situação
mas quem consegue percorrer
o escorregadio
revelação
vê-se vendo e é isso
percorrer-se por dentro
ambição
mas quem segue o de fora
o seguro já ido
enganação
vê-se revendo e pra que isso
se o de dentro é si mesmo
realização
opte por desoptar
ópio é ser opinado
opte por desopilar
as vias de si
si mesmo é chão real
essência e paixão
(quando ligares os faróis
esquece o chão dos outros
167
faça teu caminho ser teu
ao invés de cópia
quando tirares o sapato
não tenha medo do chão
se for teu feito destino
será sempre muito bom)
RESTANTE
escadas
acessos
de resto
eu na cama
corredores
portas
de resto
eu no drama
tapetes
móveis
de resto
eu de pijama
televisão
rádio
de resto
eu sem grana
cachorro
gato
de resto
eu na lama
casa e gente
168
comida e enfeite
por tudo
eu só ele te ama
RIMAÇÃO
piso-me
escala afora
toque-se
piano agora
pisotear chãos
pianotar ouvidos
planejar versos
sem linha
ser sem verso
na pauta
JANELA DE ÔNIBUS
dentro de um ônibus
as árvores lá de fora
espiam-me espiando
pela janela do tempo
as folhas verdes na beira do Arrudas
os troncos pretos de poluição
são árvores crescendo à margem
de todos nós
na margem do Arrudas há várias árvores
não sei suas espécies mas sei somente
desse tipo raro que invade minha alma
desejo de viver
169
dessas árvores não sei o nome nem a origem
sei que eu estou crescendo no chão da cidade
arrastando pelas avenidas senões e porquês
grilhões do tempo na veia da história
Belo Horizonte é ambígua
de um lado dá árvores
de outro toma o tempo
ido Arrudas abaixo...
SONHOS DE RUA
há vazios de sentido nos viadutos
eu ou a arquitetura estão confusos
das chaminés – narinas saem tufões
de poeira asfáltica e gás carbônico
há um indizível fiasco de existência
sobrepondo-se à altura dos prédios
mórbidos arranha-céus com desfiladeiros
elevadores não chegam a deus
subir descer amontoar-se feito lixo humano
se ver não ver feito espelho opaco
ruas de não-ruas de não-seres de não-nós
Belo Horizonte de tudo e de nada
uma cidade de ruas que terminam em sonhos
de sonhos que regurgitam saudades
das saudades dos tempos de outros tempos
do lento tempo escorrendo devagar nos fios de cabelo
Belo Horizonte perdeu o tempo de menina-moça
hoje já madura demais para aceitar o improviso
cai pesada sobre os olhos de quem a fita
de soslaio pela avenida Brasil
170
Belo Horizonte teve um céu límpido e mágico
mas as vértebras dos prédios ergueram calcificadas
colunas estéreis cheias de pessoas apressadas
em fazer o tempo ser dinheiro
foi-se o tempo de menina
nos olhos enrugados feito árvore no asfalto
de casco preto de tempos de maus tratos
vê-se a linha do tempo não pensada por Aarão Reis
foi-se o tempo da inocência
nas pernas repletas de varizes feito anciã parideira
de tantas ruas avenidas e favelas não programadas
vê-se a linha do tempo na testa da história: marcas insanas
CAVALGADA IMAGINÁRIA
ouço passos na estrada
cavaleiros
damas
enforcados
tiros e muitos gritos
quem somos nós ali
senão nós há muito vivido
no ouro da terra
cavando nossos buracos?
quem somos nós ali
vendo o visto mais uma vez dado
porque passamos de ônibus
pelo mesmo caminho já cantado?
quem somos na estrada de asfalto
feita terra feita picada
feita descoberta encruzilhada
sou eu o mesmo de tantos tempos idos?
171
MARIANANDO
o chão torto é cobra na serra
os olhos se equilibram no rosto
o ônibus tomba a visão
ora vejo um lado
ora vejo o contrário
brincadeira enfadonha
visões se contrapondo
mato bicho gente
passando pelos olhos
e o estômago já enjoado
Mariana tem forte gravidade
uma imantada beleza
mineral pulsação
e muitas casas miúdas
as igrejas são severas
de fé edificado o templo
mas quê! colocaram um órgão de tubo
para quebrar a monotonia
um grande órgão alemão
dessas engenhocas barrocas
suavemente adocicando a vida
nas montanhas
Mariana é tradicional
das ruas calçadas
ao coreto da praça
do bispo na basílica
ao estudante de férias
é um mágico suspiro
de eternidade
172
MONTANHAS
são tantas
mas tantas
as montanhas
sobem
descem
as tantas
as tantas montanhas
e viram
reviram
as tantas
as tantas montanhas
e rios
entrerios
as tantas
as tantas montanhas
e céu
e chão
as tantas
as tantas montanhas
e nós
no chão
nas tantas
tantas montanhas
CÉU E CHÃO
eu de olho no céu
o céu de olho no chão
o chão de olho no céu
173
eu de molho no tempo
o tempo de molho no céu
o céu de molho no anil
eu de venda na alma
a alma desvenda o chão
o chão na venda de grãos
eu cismando de ser
o ser ciscando o chão
o chão no mando da vida
eu no chão sou gente
gente na rua é pedestre
pedestre na vida é aprendiz
e é por isso que se diz
de chão de caminho de trilho
caminheiro é sempre feliz
caminheiro cavaca seu chão
faz seu destino nas curvas vagas
da vida em construção
OUROPRETANDO
inconfidência
gritam os monumentos nas praças nas ruas nas esquinas
um gemido de liberdade ecoa no morro da forca
e verde e flor e muita gente
se confunde com este cenário de dor e amor
ali o mistério é desvelado aos poucos
lentamente em cada imagem setecentista
e vivemos ali um dia ou somos novos visitantes
por que trazemos essa liberdade na alma?
174
o calçamento finge de morto sob meus pés
mas as pedras gritam história nas suas moléculas
as mesmas há anos assentadas para compor
o cenário de homens e mulheres
as casas estão ali mas poderiam não estar
esse ser mas não ser ou éramos mas não somos
essa brincadeira de não saber se é o que vejo
é um sentido para Ouro Preto
MUSEU
Et je fus trasnporté en esprit dans le temps anciens, et la terre etant belle et riché, et
fecondé, et ses habitants vivaient heurreux, parce qu´ils vivaient en fréres.
Lamennais, Paroles d´un croyant.
a espada trespassou meu coração
o bacamarte explodiu as artérias
a palmatória zuniu no ar com aspereza
e dormi no colchão de palha
um museu não é um museu
é casa de quem não vemos
é vida que não vivemos
silêncio
um museu é parte do não-vivo
mas dado para recordar
dados para se informar
vidas para se conformar
morri torturado no calabouço
senti a tontura da fome
dos presos amarrados
em correntes frias
as espadas duelavam novamente
a liteira encheu-se de damas
escravos sangravam no tronco
soldados feriam seus inimigos
175
no museu a vida se confunde com a morte
quem morre: eu ou outro já ido
quem vive: eu ou outros já vividos?
no museu cada passo é uma releitura de si
se nasce se ressuscita se refaz
se fere se morre se ouve
VARIA POESIA
da muita poesia
pouca vida
das palavras
pouca lida
da muita poesia
pouca saída
das rimas
pouco fica
da muita poesia
carrego pressa
dos amores
pouco resta
poesia é chão sem pé
toque sem mão
braço sem fé
da vária poesia
pouca alegria
da tíbia tristeza
basta fantasia
poesia quem te faz
faz mal te fazer
é para calar-se
não te remeter
176
poesia quem te mostra
faz troça dar-te
é para duvidar
não te afirmar
poesia quem te vive
faz chão de linhas
é para errar-te
não tê-la como guia
poesia quem te aquece
faz calor à toa
quero esquecer-te
mas és nobre coroa
morrer-te posso
viver-te devo?
querer-me-te-longe
se escrevo?
(poder de poesia
é ser chão da boemia
frio na garganta
voz no peito se levanta)
PRETO OURO
ouro para garimpar
preto para trabalhar
preto para cozinhar
no tempo do ouro
preto para batear
ouro de sinhô e sinhá
ouro para enriquecer
mas preto quer se alforriar
177
ouro para guardar
preto para amamentar
preto para gerar
os filhos para trabalhar
preto para esculpir
ouro em cada altar
ouro para se achar
em santo de pau oco
o ouro
preto ouro
ouro preto
o preto
RE-PENSAMENTOS
é tempo de pensar no tempo como pretérito perfeito
aos poucos imperfeito
aos poucos remoto
do tempo se busca a alegria misteriosa
daquelas: sonhos misturado com realidade
ou um pouco disso
tempo é flor desabrochando no chão da memória
tanto chão tanta flor
para ser isso
o tempo é água de mina rolando para o rio
tantas gotas formando um oceano
às vezes vazio
que é o tempo
senão este istmo de sem-tempo-sendo-tempo
essa brincadeira
de passar o anel na mão-sem-dedos-do-espaço?
178
tempo é urgência
de veias abastecendo o coração
pulsar o chão das artérias
no compasso da vida
VIAGEM AO INTERIOR DE SI MESMO
voltei nova(mente)
eu fui ali e voltei já correndo com saudades de mim mesmo
feito jabuticaba preta doida para ser arrancada na estação da chuva
voltei rápida(mente)
como quem vai mas volta muitas vezes enquanto está se partindo
feito laranja da terra doida pra virar doce amargo na mesa da roça
voltei trágica(mente)
pois desse meu desatino de ir e vir várias vezes se encena uma
peça teatral
ora sou eu no palco ora é a vida com seus genéricos ditames
divinos
voltei eterna(mente)
pois só me reconheço voltando ao paraíso de mim mesmo mesmo
confuso
mesmo eu mesmo num fim estranho que é isso tudo
voltei doce(mente)
vendo-me visto já ido e retornado buscado
e agora recolhido
como guarda-chuva no meio de uma tempestade
voltei franca(mente)
para ser eu sendo nesta busca frenética de frear o tempo
para impedir que o relógio me leve de novo
a me encontrar
nova(mente)
novam(ente)
nov(ame)nte
179
DE TUDO E DE AMOR/2006
PORTUGUÊS CULTO
,
...
.
nego o verso pontuado
!
?
:
coloque nele o sentido
ou poesia é sentimento
ou mero jogo de pontuação
e se cada um tem um ponto
tem também sua razão
descubra o uso correto
do ponto que lhe cabe bem
eu te dou a palavra
o sentido é teu
CRÍTICA CÍNICA
eu componho para mim mesmo
não para o crítico de arte
componho o sonho
e desfaço a rima
porque não preciso da crítica
para ser poeta
porque não quero a rima
que me faz careta
180
eu componho para mim mesmo
em noites de neblina baixa
rascunho o verso
e surge vida
lambuzo o papel
e surge um sentido
eu componho para mim mesmo
e não preciso ouvir suspiros
componho meu riso
e faço da letra humor
componho minha música
e laço da letra o amor
esta que a crítica inculta dos sentimentos internos
diz ser a crítica dos sentimentos eternos
que diria o verso se visse o poeta
que diria o poema se visse quem é seu crítico
todos somos vazios
com uma tampa
enorme
enchendo
todos somos atores
com um palco
decente
encenando
(a melhor crítica é escrever
um livro melhor que o lido)
181
REMÉDIO
para o dia revolto
palavra
simples
para a noite insone
silêncio
impecável
para a música alta
ouvido
educado
para a saudade fria
cobertor
antigo
para a lágrima certa
poesia
concreta
ENTRE MILHO VERDE E SÃO GONÇALO
é que as flores diziam várias frases
eu escrevia seus tons
no pensamento
é que os bichos fugiam bravios
e eu sabia seus destinos
mato adentro
é que o sol aquecia muito a pele
e eu suava seus raios
pele afora
182
é que a areia abria o caminho
e eu seguia a trilha para
Milho Verde agora
cheguei ao interior de mim
passando atalhos
amadurecendo
(crescer é ser... espiga pronta)
NOTA DE
RODA PÉ
_________
o pé me leva para onde... onde roda o pé, onde indica o nariz,
onde perdi mais tempo? o pé roda por tantos caminhos por tantas
observações ora extensas ora lentas ora estranhas ao meu próprio
com texto... a planilha nada plana da vida é cheia de roda-pés...
roda-pé roda o pé roda a pé... pedalo meu olhar para páginas
ínfimas de sentido... lá embaixo sou baixo mesmo... lá em cima
sou inconsciente... mas o pé roda tanto que estou tonto por tantas
entrelinhas que explicam entrelinhas nos roda pés da existência...
quero acabar com esse frio no estômago coloco muitas notas no
meu roda pé e para me explicar explicar esse sentido despido de
sentido, esse frio ausente de corpo, essa carne sem memória –
preciso reler todas as notas anteriores... abaixo os roda pés...
abaixo os rodapés abaixo... qualquer coisa de significado equívoco
altamente explicativo
183
PAUSA
sol e lua
estrela e rua
eu assim todo confuso
horário
dia e noite
hora e tempo
eu assim todo obtuso
temerário
DAGOBERTO: QUANDO AS PALAVRAS NÃO SÃO
NECESSÁRIAS
dizer sem falar
pelo olhar se comunica
o que implica quem não ouve
a palavra vai e volta
o pensamento vai e volta e fica
(diálogo sem som do indivíduo)
misturados no mesmo espaço
ouvir e calar
pensar e calar
parece muito
mas é o mais difícil
silenciar sensações
introjetar realidades
psicodelicamente
quando as palavras não são necessárias
rompe-se o elo
entre ser e estar
184
estará aqui quem não diz
estará assim: feliz?
quando as palavras não são necessárias
há silêncio na sala
e barulho na alma
(Dagoberto é um rapaz esperto
ouve-se ouvindo e pronto)
INCÔMODO
incomoda ver a ingenuidade
dessa hora passando feito horas a fio
há tempos há séculos por debaixo de minha ponte
há dias que o dia se faz dia de fato
há noites que a escuridão da lua ilumina os mais assombrosos
pensamentos
estou aqui neste momento denso entre o tempo de ontem e o de
hoje presente
estou aqui vazio por fora e cheio de mim por perto e por dentro
há a dura certeza de existir e existir e existir
há um anúncio na minha testa sou humano
m´batam m´batam m´batam
batman
me atropelem para virar notícia
mesmo que para mim mesmo
mesmo que para minha toda eternidade
todo o universo e fora dele haverá: a antiga ingenuidade
185
NOITE EM DIAMANTINA
Para Bernardo Abraão
um estrondo no céu
se vai a luz para o passado
pretérito de claridade e eu ruando
becos ruas desertas
ladeiras sem ninguém
eu vendo o escuro sombrio
cheio de pedras nos pés
calçando a noite de trovões
nos olhos o medo de ser sentido
eu aqui tão miudinho
é tão vasto o chão de pedras
é uma cidade esta casa
me abraça me amordaça me aloja
mas era um estrondo se ouvindo
se achegando do meu ouvido direito
o esquerdo me ouvia ouvindo o medo
todos os postes se calaram
a noite se fez noite mesma: Diamantina
os passos mudaram as percepções silenciosas mas verdadeiras a
noite pulsa na terra e no céu
pulsa saudade dos dias
clara certeza de tudo: existir
eu vendo JK brincando de estátua
egolatria aos pés de São Francisco
para que seu marco se ele é memória
em cada sensação diamantina?
eu chovendo palavras no pensamento
(refrescar a secura da história é preciso)
eu molhando jardim de horas
(florescer vasos de sempre-vivo: é tudo).
186
TEMPO OUTRO
invento um instante de silêncio
mudo para o lado mudo do muro
me perco me acho silêncio e barulho
o vento gela a pele mas não acalma a mente
viro a sintonia da memória e me vejo visto
me acho no vento real sobre a pele arfando
o som do pensamento é inconfundível
por isso mesmo há um mesmo pensando –sou eu
o mesmo posto no mundo pelo ato de ser
toco-me por dentro são tantas formas de conquistar-se
blocos de construção em anos de fazer-se parede sólida
estou erguido no mundo e é só isso muito
as ideias não são meras palavras soltas no ar
sou eu me referindo ao mundo como ser deste mundo
viro-me para o lado e sinto a presença sentimental da vida
minha vida me percorre por completo
me vejo nela mas será ela eu mesmo?
minha vida me socorre nos momentos de amnésia
me sinto eu mesmo nesta vida de cores próprias
pressinto todo o tempo passando
eu passo com um tempo diferente
o tempo se vai outro quando amo
o tempo se vai outro quando amo
o tempo se vai todo quando amo
(...)
o tempo se vai
187
POVO ENTRE PARENTES(IS)
(havia um povo religioso sem deus havia um povo político sem
democracia havia um povo histórico sem história havia um povo
festivo morrendo de depressão havia um queijo da roça sem as
mãos do artesão (entre parêntesis) havia um povo havia um povo
liberal sem liberdade havia uma imprensa livre sem jornalista
havia uma paisagem verde onde hoje só há concreto (entre
parêntesis) que povo é esse? sou desse povo estou nesse povo
represento esse povo? coloco-me (entre parêntesis) e para sair
dele(s)? fecha parêntesis)
VASO
o vaso tem flor
dentro e fora
rosada
o vaso tem sede
argila quente
quer água
o vaso tem limite
o que cabe
quer habite-se
o vaso está cheio
de terra nas bordas
por dentro ar
o vaso tem trinca
três dimensões
sob a mesa
eu vejo o vaso
dentro e fora
rosado
188
AMBIENTE DE POUSADA
a tábua range na gengiva do assoalho
eu me olho mas quero ouvir
passos de passos de passos
na noite
pousada da alma o silêncio
o requinte é o tempo ensaboando a água
rolando ladeira afora
os móveis abrigam os móveis
esses seres carentes de seres
esses homens buscando outros
diferentes
saborear este cálice de noite
o silêncio garganta abaixo
e frio e necessário
presentes
pousar as mãos no papel
para se ver por dentro
poesia
OBJETOS
o engenho me enrola
os olhos
me puxa
a janela me fecha
os olhos
me cega
a mesa me dobra
os olhos
me nega
189
a vela me acende
os olhos
me vela
a cadeira me acolhe
os olhos
me leva
a noite me despe
os olhos
me pega
a rua me expressa
os olhos
me acha
a nuvem me molha
os olhos
me lava
a cama me aquece
os olhos
me sara
a hora me passa
os olhos
me aflora
há olhos dentro
e uns grandes olhos fora
tem hora de olhar si mesmo
tem hora de negar quem me olha
(rima fraca é sonho bem dormido)
190
INCENSO
abraço a fumaça do incenso
eu abraço
ela não se dá
sem sentido sem limite sem motivo
etérea me perfuma
eu não me acho
exala no meu quarto o perfume
eu aspiro dou sentido
ela não está nem aí...
vou-me esvaziando da vida em volta
mas no interior das lembranças
é tão dura a realidade!
sem fragrância
vazia
eu não me acho
ela não se faz
LENTE DE AUMENTO
palavreio
parafraseios
freio palavra
desço engrenado
metamorfoseio
metáforas
paro a imagem
rabisco no papel
cremo
191
páginas
para salvar
a poesia
ressuscito
lágrimas
para lavar
a vida
[BARRA DE FERRO]
densidade é a noite deste mundo interior repleto de silêncio
obscurecidamente caverna obtusamente pintura rupestre na alma /
minhas marcas duram muito tempo na memória densa lenta que
nada apaga sem o muro das lamentações / coloco barras na minha
ideia para barrar os impropérios/torno denso o verso por não saber
barrar o verso que sai dos poros em barras de sentido/densidade
atravessa a loucura desse momento efêmero como a barra que
nada barra por que seus olhos já estão no fim deste verso / em
barras / densas como as ruas do serro com barras de ferro que não
evitam a anemia do falso poder que brota dos currais cheios de
barras/densas que não evitam os bois de pensar e ruminar sentidos
/ o serro tem barras de ferro na rua para que ninguém se esqueça /
curral marca de ferro com as iniciais dos coronéis que tangem
ainda o gado medíocre de seus latifúndios / vou barrar a densidade
das palavras / / porque não posso hipostasiar / / barras de ferro no
meu verso solto livre / desapegado de toda pertença à
mediocridade sem poesia dessa cidade repleta de barras na língua
no coração e na alma / barras de ferro não evitam a anemia que
acaba com todo pensamento de vitalidade / que nasçam novos
poderes sem barras paralelas /que o novo poder que nasce todo dia
seja de fato novo / sem as iniciais do passado / seja novo com
toda a densidade da vida
192
PENA
O mundo não passa de mudança,a vida o que dela pensa. Demócrito
ah! a pena sobre a mesa e eu sob mim mesmo
que pena, bela pena sobre a mesa recostada
eu de mim faço sonhos líricos de escrever
apenas
esse brindar o momento com o que sou sentindo
vale a pena de morte da imortalidade
estou frio olhando-me por dentro tentando
mudar apenas
sou esse infinitésimo desembaraço do destino
escrevi sob pena de perder o tempo, meu tempo
pequeno mas meu, relativo mas meu
apenas irrepetível
o ar que respiro me abre as ventas do ser
e escrevo e escrevo e escrevo
sem ar com ar sem rima
apenas poesia
e me atrevo a penalizar os papéis brancos
com tintas de desencanto
com linhas que vão e não voltam
que pena
193
ADÃO VENTURA DE VOLTA
Fosse a tua vida três mil anos e até mesmo dez mil, lembra-te sempre que
ninguém perde outra vida que aquela que lhe tocou viver.
Marco Aurélio, Pensamentos, Séc. II
a poesia na veia
no olhar distante
versos compostos
de estalo
o curto verso no livro
-falar muito para quê?
vale o sentido
o estado
a cor da pele no ser
refaz o olhar em volta
o caracol do tempo
é estável
a letra sorri e pensa
baila no fundo branco
o papel de cada um
é aceitável
a simplicidade da sílaba
embaraça a vista
se vê longe o caminho
da estrada
baila, poeta, na tua poesia
que roupa de caboclo
não dança só
na embaixada
194
gira, poeta, teu olhar
que o mundo te invadiu
belamente pela sensibilidade
da palavra
volta, poeta, ao reino maior
que aqui é assim mesmo
tudo passa e ensina
de graça
(teu canto se ouve: adormece nas mãos do criador-poeta)
VIRÁ O SER
o limite há
entre mim
e este ar
o passo virá
basta assim
este par
o luar será
depois do dia
e o solar
a chuva cairá
a seca
vai molhar
a nuvem passará
e seu desenho
vai borrar
195
a vida desencantará
e sua dor
acabará
é neste vir-a-ser
ser a vir: a vir a ser
me vou virando isso
ou aquiloutro
escrevo-me por meus dedos
entre mim
e este fim
e talvez me fui ou vou ser
isto tudo
de haver enfim
e dito caminho à letra
este nada
é o medo
PROVOCAÇÃO
vou quebrar a algema do sentido
na cabeça do martelo
vou fazer o que bem entender
com o entendimento
vou rezar para ver o invisível
com a palavra indizível
vou roubar a atenção da letra
com meu momento
na vida de quem lê
o lido
196
CONTRÁRIO
se é tua voz e teu jeito e ser
aqui, não posso saber
sei que vem de manhã a tarde à noite
para me perder
vou ferido pelo atalho da memória
revirando as letras do pobre passado
este mesmo revivo em mim
eu sou esta história
sou eu: tu vives novamente
seremos tudo ou eu mesmo
esse denso nevoeiro – o pretérito
more semente...
eu revivo teu corpo tua alma
para quê... não consigo o contrário
tem algo que nunca possui
o esquecimento de mim.
de vez em quanto te vejo em mim
te respiro te amo te vi
mas estou só
nunca aí
um dia entre todos os dias
será o dia de te perder
mas me vou sozinho sempre:
preciso ver para crer
UM DETALHE
minha vida
é história
passos
197
que passam
passado
que passa
sozinho
apenas
cruzando
o chão
o coração
parando
brevemente
desaceleração
minha vida
é um lago
de marolas
mar
que evapora
encontros
repentinos
emocionando
os sentidos
despedidas
dolorosas
magoando
os amigos
minha vida
é pouco
experiência
que resta
ciência
que informa
198
MEMBRO SUPERIOR
nos braços da noite
deus travesseiro
dormi o mundo
nos braços da lua
deus natureza
vivi o profundo
nos braços da vida
deus realidade
conheci o outro
nos braços da morte
deus fatalidade
conheci o muro
nas mãos estendidas
deus fraternidade
conheci amor
nas mãos unidas
deus amizade
sou eternidade
PRESENÇA
preciso dormir esse sonho
acordar novamente
ilusão
não quero a realidade
dura e concreta
do chão
preciso da vida
199
esta de agora
viva
esta de tudo
do todo
emoção
nunca precisei tanto deste deserto
repleto de medos e fronteiras
a sede me conforta
estou vivo
o oásis tão perto
ali
sou eu
o mesmo
em mim
DESEJO
encontrei o olhar
num salão da minha
emotividade
era eu e teus olhos
e teus olhos e eu
perdição
buscava-te dentro de mim
e viestes envolvidos de vida
contradição
eu me vejo vendo-te
e me vês procurando-te
perseguição
tens um olhar
indecifrável
tens um ficar
apaixonável
tens o que desejo
200
mas fechar a emoção
esta dentro de mim
para dar-te o melhor daqui
é saber-se delirante
quero teus olhos
dentro dos meus
e teu corpo
e o meu
quero teus sonhos
dormindo com os meus
e tua alma aqui
e só eu
viestes assombrando
a luz da racionalidade
quero-te comigo somente
sen-si-bi-li-da-de
VOU UNIR
v o u u n i r v á r i a s p a l a v r a s p a r a s a b e r
q u e s o u d o n o d e s s e ve r s o l i ga d o p o r s
e n t i d o s q u e b r o t a m d a c a b e ç a de q u e m
l ê o i n ve r s o
SENTIMENTO
tuas mãos passeiam pelo meu corpo: a memória de ontem já se
apaga
pego-te pelo olhar pelo beijo pela data de ontem de ontem de
ontem
201
muito longe esse desejo se perde: renovo-te pelo suor nas mãos
pela pele arrepiada ao lembra-te teu toque
vem: lambuza meu presente de ontem e de hoje e de futuro
despeja na minha orelha direita o direito de amar loucamente
vem: sussurra obscenidades eternamente perdoáveis
não temos pecado: somente somos o perdão.
toma-me: sou teu como a chuva à terra como o lírio ao jarro
decifra-me ou devoro-te: amo o mistério de tuas entrelinhas
de tuas linhas de tuas reticências de tuas meias verdades
de teu passado sem mim de teu futuro sem nós.
preciso ouvir tua voz no meu coração e saber se o que sinto é isso
ou outro sentimento sem capacidade de decifração ou rima ou
confusão
preciso ouvir tuas mãos sussurrarem na minha pele os enigmas do
desejo
que não passa que não basta que não se acha em outro lugar: aqui
em mim.
SALIVAÇÃO
gostaria de
saber
se somos um
ou vários
espalhados
por um
destino
gostaria de
saber
se somos tudo
ou nada
202
encharcados
de nossa
saliva
gostaria de
saber
se somos verdade
ou mentira
suados
um sobre
outro
gostaria de
saber
se somos isso
ou aquilo
mas não há resposta
somente
futuro
CORPO
cadê teu peito
no meu peito só
minha mente na tua fala
ouvindo-te?
cadê teu sorriso
no meu olhar
minha frente no teu verso
amando-te?
cadê tua mão
no meu silêncio
meu prazer na tua cara
gozando-te?
203
TROPEÇO NO AMOR
Pra ficar no conforto dos teus braços
qualquer coisa no mundo eu enfrento. R.Ribeiro
a lembrança de ontem
ontem mesmo: o ido
você eu o tempo
todos levados
para onde vamos assim
cantando reencontros
sem letra nem tom
sofrimento
a saudade é dura pena
para quem ama e teima
sem promessa ou cumprimento
se vai
eu amo o tempo
que traz sua pele
ao deleite de minha língua
roçando sua vida
eu amo o relógio
que goza na parede
registros eternos
de amor
eu amo o ontem
que traz a saudade agora
pois sem ontem não teria
eternamente nós
eu engulo o futuro
para transpirar nós juntos
pois sem amanhã não teria
justamente amor
204
eu interrompo o verso
para fazer miragens de seu corpo
pois sem imaginação não teria
prontamente flor
eu mastigo o passo
pois vou sem rumo
sem compasso
amar
eu infrinjo a lei
para ter julgamento
morte perpétua
à mesmice
eu crucifico a falsa fé
para ressuscitar esperança
tenho toda coragem
para viver tudo
ao lado seu
não sou eu
sou muitos
felizes
ao lado seu
não sou teu
sou intuito
de deus
ao lado seu
não sou nós
sou expulso
do impulso
ao lado seu
quero muitos
gozos
gozozos
205
PESSOA
Para Alfredo
dez anos desenhando reencontros
deu-se num mês de julho e juro
somente quem não quis ver não viu
éramos no tempo o tempo revivido
éramos o ontem olho no olho
vivendo os dias como uma longa tempestade depois da seca
a seca dos tempos se desfez na saliva frases
de explicações sobre o tempo que se foi
e se vai e se irá como nuvem carregada feita para chorar
nuvem abençoada feita para irrigar
o tempo é feito passarinho sem ninho
vai-se pelos quintais da memória
e nem a história em livros pode anotar
ele é ladrão de sensações solto por liminar
limitar o tempo quem poderá
imitar o ontem quem o fará?
não se volta o sorriso: que se faça o Emerson
não se volta o apartamento: que se faça Ouro Preto
não se volta a brincadeira: que se faça Alfredo
não se voltam os corredores: que se renovem os amores...
(o que passou, passou, passou, sou sou sou
pra frente é que se anda: Rita Ribeiro renova toda saudade).
Belo Horizonte, 10 a 18 de julho de 2004
Reencontro da turma de Filosofia da PUC depois de 10 anos
206
DA ARTÉRIA E DA ESTRADA
Para o historiador Leonardo Araújo Miranda
preparar as m(alas) da alma e ir
cortando o vento em re(cor)dações
enxugando as lágrimas com o (algo)dão
nuvem trilhando o c(eu)
eu vou pelo caminho de dentro
arenoso pedregoso mas meu
perco-me em labirintos e estações
sem problema: ap(rendo) um dia
pego a estrada da memória e me guio
por vidas de ontem e de outros
não tem problema – a bagagem é enorme
mas cabe no coração
roubo da estrada o estar sempre em busca
de chegar mas chegar nunca é chegar
para a estrada artérias de caminhos tantos
chegar é mero lapso para ir sempre
quero ver o céu azul pela janela da alma
sentir o vento frio da vida esfriando o desejo
mas não acabando por completo com esta chama
que me leva me consome me faz delirar
respiro a paisagem desta janela imaginária
e me abro e corro em trilhos e olho para a frente
não tenho cortinas sou essência e natureza
tenho um tudo de mim: minha vida
carrego as mochilas e vou esvaziando o interior
não posso carregar todo o peso de existir
207
nem conseguiria: só tenho meus quilos gravitando
pela estrada da evolução
quero levar muitos amigos e muitos amores
mas poderei? A lembrança é maior homenagem
ao amor vivido
quero lavar a alma na cachoeira das lágrimas
mas poderei? O córrego é maior que o leito
eu maior que a dor
quero amar esse momento eternizando o verso
mas deverei? A poesia é maior que o poema
eu mais que letra
mais que letra
que letra
l a
e r
t t
r e
a l
O LÁPIS E O APONTADOR
o mastro do barco carrega a bandeira
o mastro da festa indica o santo
o mastro aponta para o céu
com ou sem estrela
o cometa viaja na galáxia
o cometa brinca de rastro
208
o cometa invade o espaço
com ou sem luneta
o mastro viaja na galáxia
o mastro brinca de rastro
o mastro invade o espaço
com ou sem festa
o cometa carrega a bandeira
o cometa indica o santo
o cometa aponta o céu
com ou sem planeta
viaja na galáxia a bandeira
brinca de rastro o santo
invade o espaço o céu
com ou sem anil
carrega a bandeira na galáxia
indica o santo de rastro
aponta para o céu o espaço
com ou sem astro
com ou sem estrela
o cometa viaja na galáxia
com ou sem luneta
o mastro viaja na galáxia
com ou sem festa
o cometa carrega a bandeira
com ou sem planeta
viaja na galáxia a bandeira
o mastro aponta o cometa
no lápis desenhado o santo
no apontador gravado o cometa
juntos se dão sentidos
209
SOBRE O AMOR
preciso dizer de amar
para calar o que há
dentro e fora do ar
preciso gritar o amar
para poupar o medo
esse outro lado do erro
preciso falar do amar
esse sentido azulado
me faz sonhar
quero me queimar neste fogo
todo feito lenha que sempre dá
a quitanda para provar
quero me enfurecer de tentar
feito jogador viciado que sempre está
perdendo para da perda se livrar
quero me esvaziar de tanto amar
para vazio por dentro e fora entender
o que é se doar
CONDADO
a mata cobrando encantamento
a água rolando do útero da terra
jorrava contemplação
as folhas flutuando no céu azul
o rio descendo da razão ao coração
inundava o tempo
210
o cavalo trotando os minutos
a rédea segurando a vida
guiava o passeio
as árvores falando ventos e brisas
era a linguagem da natureza
música para a alma
eu afundava os dedos na vida
com amor por todo cenário
iluminado do Condado
eu amarrava os olhos nos troncos
com louvor por todo o espetáculo
gratuito do Condado
eu era como sou agora
pleno de natureza
por dentro essência
eu era como fui a horas
crente na humanidade
por dentro divina
UTENSÍLIO
deixa-me sobre a mesa
a mão vai me tocar
como há muito tempo
espero
fere-me com o dente
o vermelho vai aparecer
na pele já cansada
desejo
abraça-me com o olhar
211
a memória vai guardar
teu olho no meu pudor
medo
controla-me com tempo
o relógio vai marcar
a hora do encontro
cedo
faz-me ser eu mesmo
a nudez vai mostrar
eu como sou por dentro
sendo
BRINCADOR
dor de amor é dor de frio
na junta
dor de pancada
na cara
dor de amor é dor de corte
na veia
dor de morte
no forte
dor de amor é dor de choque
na volta(gem)
dor de toque
na medragem
dor de amor é dor de todos
na vida
dor de ser
sem saída
dor de amor
é qual flor
212
espinho sangue
beleza na cor
brincar de dor
da dor de amar rir
altas gargalhadas
depois de se ferir
CIDADE INTERIOR
Para Onésio Moreira Gonçalves
o céu azul em arco de tardinha se atira
nos olhos de fundo branco
o jato deixa fumaça na retina
água no pára-brisa: olhos
o passarinho distante chama
sem pegar fogo (seria uma pena)
seu canto desencanta o ruído
da cidade interior
a rua cruza dentro da imaginação
quarteirões de seres sem sinal
a árvore parada na sarjeta vegeta
ação de abrir e fechar as folhas
o vento frio congela o interior
de graus da igreja da santa rica
o relógio conta o tempo em tiques nervosos
esse povo não pára de nascer e rezar...
o cachorrinho deitado no caminho se perde
em divagações de osso de açougueiro
a carne é fraca e sustenta tanto sentimento
revestido da palavra forte amor
213
SERMENTE
Para Adão Ventura, na saudade de sua presença.
a palavra se vai empurrada por multidão de poetas
vai pegar no tranco enchendo de alegria o motorista
a máquina de sentir é engenhosa potência da poesia
o combustível é a alma o poeta o manobrista
o verso é bicicleta de rodas cromadas ladeira abaixo
o freio é o tempo: dá e tira sentimentos
a poesia não cabe na palma da mão
se espalha como semente no vento
o leitor não passa de vaso para as rosas em buquê
nele o poeta encontra além dos olhos seu porquê
DESORIENTAÇÃO
saudade do vento nos tocando juntos
da música nos acariciando o tempo
dos lençóis amassados envolvendo o encontro
saudade de ultrapassar os limites das sensações
passando de uma rua a outra na mesma direção
estar juntos no mesmo espaço
saudade de brincar com as nuvens e estrelas
tocá-las na alucinante delícia de suas curvas
estar unido ao mundo que envolve seu mundo
saudade de apalpar sua mão desorientada
nos caminhos e encruzilhadas do momento
este tempo de estar colado no papel de parede
214
a vertigem dos corpos rolando por mundos insuspeitos
a pulsação acelerada vulcão interior
depois o silêncio encantador
VIA VIAGEM
verbalizar as palavras por entre as pedras tortas do cerrado
do penteado das montanhas a brilhantina brilha
no fim da tarde cheia de nuvens rosadas de frio
encontrar as palavras no vento descabelando a orquídea
ou nas entrelinhas da noite com lua grávida de fases
no fim da vida a beleza se revela nas pequenas coisas
cochichar no papel a beleza da alva areia irradiando o sol
o gavião percorrendo o território do tempo de asas abertas
no fim o vôo humano atinge o outro
a poesia se esfrega pelo chão e tinge o asfalto de sensações
as palavras se esparramam pelo caminho
recolho as vogais
traduzindo-me
PREVISÃO
não há destino sobre a mesa
para fatiar
a receita é incompleta e falsa
é só pensar
o destino não cabe na palma da mão
para olhar
a cigana é mentirosa e finge
é só questionar
215
o destino não vem nas cartas
para cortar
a cartomante pensa que me engana
mas isso vai passar
o destino não se imprime no tempo
para contar
a vidente não viu foi isso
que teimo gostar
é teu passo em minha direção
sem retorno sem razão
é teu lábio na minha vida
sem engodo ou previsão
é tua rua no meu quarteirão
loteamento proibido e ilegal
espaço conquistado à força
uns chamam isso: paixão
(preciso compreender o momento
de falar do que se vive sem medo
e sentir o que se sente
sem tempo)
SOMATIZAÇÃO
há braços
há pernas
e esse soco no estômago:
saudade
há troncos
há árvores
e esse embuste apático
vontade
216
há sábados
há domingos
e essa fúria incontrolável
calendário
há ontens
há tempos
e essa dor interna miserável
passado
há músicas
há robertos carlos
e esse som incessável
rádio
há tantos há
tantos há tantos
e esse tanto
solitário
LUZ (IA)
a luminosidade desse sentimento
clareia os dias sem sol
como farol mesmo de dia
me guia
reflexivo espelho de colorida superfície
as cores de cada dor são densas
mas passam com o tempo
e o pincel de poeta
as sombras necessárias pelo chão
espalham o outro lado da luz
é secreto o poder da mente
revelo-me assombramento
217
o raio de sol cortou ao meio o quarto
o poder da luz separa o espaço
a velocidade da luz me conduz
para seus braços
a lua indiretamente se enche de luz
ilumina o telhado da cabeça
o sereno frio e invisível
fertiliza ideias na noite
caio sob a luz intensa
levanto com sol na cabeça
olho pelos lados do ontem
e vivo intensamente
(é preciso ir às Lages benzer
o sol na cabeça com dona Almerinda)
OUTRO FATO EM VOLTA
não vejo a pétala cair
mas vivo
a queda dela
em mim
não vejo o pássaro partir
mas sinto
a morte dele
em mim
não vejo o rio no mar
mas me molho
de água salgada
sem ti
não vejo a linha do equador
mas percorro
linhas aéreas
em ti
218
não sei das coisas inertes
mas sinto o inerte aqui
esse buraco na camada
de ozônio de si
não sei das coisas alegres
mas sinto risadas em mim
é que o circo armou-se hoje:
te conheci
não sei mais de mim nem de depois de hoje
só sinto que os pequenos gestos se furtam
à memória – peneira furada não coa farinha
teu sentido não sei: poderia?
PARTO
há um mês me engravidei de vida
de vida
de vida
queria não nascesse a despedida
ida
ida
mas o parto de amor
rima tanto com dor
há um mês me embrenhei pelo mato
do fato
do tato
queria não achasse o atalho
vingativo do espelho compacto
do pacto
do lacto
(a vida tem dessas coisas:
parti e parto)
219
DUPLO
Para Samantha Reis
me molho
na cachoeira
como o lodo
escorrega
na pedra
me nasço
na árvore
como o líquen
vegeta
na era
me penteio
no espelho
como o fio
escorrega
no tempo
me lavo
no banheiro
como o rio
umedece
o vento
me debato
na solidão
como o sótão
converge
porão
me elevo
na procissão
220
como o vinho
na missa
tem pão
me canto
na emoção
como tiro
sem rumo
tem direção
me presenteio
com a verdade
como palavras
mesmo sem sentido
têm emoção
SOBRETUDO AMOR
Quando você deixou de me amar, aprendi a perdoar e a pedir perdão.
R. Russo
dedico este verso ao inverso do amor
a situação é a seguinte: amor sem amor
ou amor sem amantes sem um cem de emoção
de um lado míope grega para não dizer platônica
dedico este lado da vida para ser exemplar
como novelas de Cervantes medievais
sou um homem de vidro quando amo
e quando não amado me quebro em mil cacos
dedico esta seca sem irrigação sem solução
ao desamor dos desamores aquele não vivido
pensado tanto que fez chover no inverno
mas não: o efeito estufa estufou meu peito
dedico este momento para sepultar-te desamor
não posso ficar dependurado no tempo
221
como azeitona em Atenas sagrada:
preciso amar
ser feliz
ter verniz
no coração
ser feliz
ter nariz
empinado
ser feliz
ter Paris
de cenário
mesmo que eu só
quero e mereço
sobretudo amor
realizável
DIZ
amor provocação
intensidade perfeição
carinho afeto demonstração
mensagens camisinha
paixão loucura admiração
sensibilidade carícia
afeição carta telefonema
presente chaveiro
fascinação briga ciúme
discussão café almoço jantar
casamento família motel travesseiro
música lágrima encontro
palavra mentira correio
interurbano celular internet ônibus
casinha
222
tenho palavras várias para amor
mas prefiro ainda este frio no estômago
tenho sentidos vários para amor
mas prefiro ainda este mistério sombrio
tenho palavras
prefiro
silêncio
UNILADO
o inverso do universo é o verso
do macrocosmo o cosmo
do chimpanzé o zé
combina vida com ferida
cirurgia com intervenção
dor com pavor
metáfora é outro lado
fora da meta
do não poeta
o mesmo é o identificado
o idem do ente
repensado
o outro não é outro
sou eu mesmo
desse lado
o pouco é muito
muito claramente
modificado
223
o nada é algo
senão essa palavra
seria errado
o vesgo não erra
vê o mesmo
de outro modo
amor não é semente
senão seria promessa
amor não é besteira
senão passaria depressa
amor não é sofrimento
senão o outro lado da curva
de cada universo
TARDE EM FIM
a tarde revoou como passarinho
a noite estreitou o laço da solidão
não sem destino a vida passa
melhor saber ou ficar dúvida...
há parêntesis no olhar da vida
coloco-me vendo e vejo o tempo
descendo a ladeira
feito estudante atrasado
a tarde não se vai embora
fica estacionada para sempre
neste limiar tolo
do meu olhar
queria chuva veio o sol
queria a nuvem veio o azul
podia metáfora
224
serei metonímia.
(o coração está tão pequeno
feito folha amassada)
COISAS DE AMOR
o amor está amassado
no lixo da casa
-carta de amor!
o amor está anotado
na agenda de dias
-diário de amor!
o amor está cantado
no vinil arranhado
-canção de amor!
o amor está envergonhado
no espelho de hotel
-lugar de amor!
o amor está desgastado
nas frases sem sinceridade
-palavras de amor!
o amor está suado
na noite de intenso calor
-fazer amor!
o amor está meditando
no verso composto na dor
-poema de amor!
o amor está por dentro e por fora
habita-me os cômodos da alma
-ser de amor!
225
SEMPRE HÁ
há braço
no sábado há noite
na vida há vida
após há morte
há lembrança
no domingo há relógio
na vida há amor
após há sorte
há nota
na agenda há letra
na vida há fraco
após há forte
há de amor
há de esquecer
na vida há um dia
após outro
NOVAS PALAVRAS
toque
de leve
a tecla
elétrica
toque
de forte
a tela
energética
toque
de breve
a pele
amarélica
226
toque
de sempre
a paixão
eternética
toque
me toque
quetoque
tóquico
QUANDO
quando disser
eu te amo
não que eu te ame mesmo
é que errei na frase e tropecei no medo
quando fizer
amor
não me digas que entreguei meu corpo e alma
é que frisei o momento errado no desejo
quando quiser
prazer
não digas que talvez ou que amanhã
é que preciso mesmo do teu beijo
quando vier
adeus dizer
só abaixe os olhos e enfrente o mundo
depois da porta bater
quando arrepender
voltar
não te metas na vida que já passou
foste com ela para nunca mais
227
PARTIDA
a poeira da porta sacudida
a fechadura trocada
o segredo morto
como eu
a noite tem estrelas demais
o dia virou noite
só um sol
para mim
a frase tem letras formais
o diário ficou vazio
sem um vogal
de ti
saudade da tua mão
conduzindo o rumo
da minha razão
saudade da tua razão
confundindo o pouco
da minha noção
saudade da tua vastidão
ampliando o horizonte
da minha dimensão
saudade da poeira acumulada sob a porta
quietinha há tantos anos
anotando os passos
de nossa relação
bateste a porta tão desesperadamente
não sobrou nem poeira
de nós
228
SARTRE
Para o cão existencialista companheiro de poemas e músicas.
sonho de cachorro
tem saudade do dono
ele acorda tantas vezes
afim de olhar
sonho de cachorro
tem carinho do dono
ele acorda várias vezes
afim de encontrar
sonho de cachorro
tem comida de dono
na vasilha da noite
vai procurar
o cachorro sonha
para vigiar o sono
do dono
o cachorro sonha
para brincar na noite
de dono
LUANDO
voz na garganta
eu ouvidos imensos
capturando
teu som
ruídos de amor
miríades de desejo
memorizando
teu jeito
229
gemidos de prazer
dispersos na noite
imortalizando
teu ser
quero a lua cheia
nos teus olhos
pra eu ser sempre
são jorge
quero a lua meia
nos teus óculos
para eu ver sempre
minha cara metade
quero a lua feia
crescendo teus pelos
para eu ter sempre
monte de vênus
quero o desejo
de perder o medo
ser simplesmente
eu tu inteiros
O! LHOS
os olhos abri
que vi
bem te vi
teus olhos
me vi
bem me vi
os olhos perdi
230
parti
bem longe me vi
nos olhos
renasci
bem junto de ti
os olhos de ti
perto de mim
unidos assim
quero de ti
esse sim
nunca fim
DEVANEIO
queria de amar tirar somente a essência
basta de momento sem rapidez de tempo
cansei de ousar parar a onda no alto
ela desce sobre minha vida e me lava
tão fundamente
tão lacrimejante
tão eu mesmo
queria de amar somente o fruto
mas tem tempo para crescer
enraizar minha vida na tua
e mesmo sem água devo beber-te
tão solenemente
tão frouxamente
tão nós
queria de amar somente o futuro
mas o relógio não volta a inocência
de quando eu era tão puro ao teu lado
que cabíamos num só destino
231
VISÃO
olhando teu olho
me vejo
tão perto
me perco
,
olhando tua boca
me ouço
tão forte
me marco
olhando teu coração
me sinto
tão mesmo
me toco
olhando tua vida
me parto
tão junto
me uno
olhando teu hoje
me acho
tão eu
me vivo
olhando de amor
me fujo
tão fugaz
me sou
PAPEL EM BRANCO
pedaços de vida
se juntam
para me desmontar
232
me perco neste amontoado
tolo desejo
de se unificar
quero a perfeita imperfeição
da busca eterna
sem me mumificar
preciso tocar minha alma
por dentro da vida
sem me justificar
quero apenas essência
neste mar revolto
me navegar
deixo a rédea da alma
solta no tempo
me atropelar
passo dia e noite pensando
como deve ser bom
além desacordar
escrevo de pena papel
como é ruim vida
em branco
CUPIDO
o anel dourado no dedo esquerdo
ou de prata no direito
casar-se razão e coração
caminhar neste longo hiato
233
a noiva não sobe a escadinha
com medo de se cansar
é que a santa é rica
só não cura amor desfeito
de tempos em tempos se enlouquece
a vida tem dessas coisas ocas
cheias de sentido
por dentro
de lenços em lenços o amor acaba
o destino tem dessas coisas loucas
cheias de verdade
no centro
acabam-se os acabamentos
a rotina derruba a sensibilidade
murcha a margarida do bem-me-quis
sobra a pétala do malmequer
o encontro verdadeiro
é um tiro no escuro
cupido é um deus grego
nisso especialista
CURVADO
o caminho afasta os destinos
são tantos chãos
entre eu e tu
-nações
o caminho brinca de saudades
são tantos pântanos
entre eu e eu
-poções
234
o caminho disfarça mágoas
são tantas lágrimas
entre eu e tu
-canções
o caminho afeta as almas
são tantas preces
entre eu e eu
-perdões
o caminho decreta leis
são tantas escritas
na minha vida
-sanções
o caminho cheio de retas
são tantas curvas na alma
ando tanto para rever-te
muito pouco para perder-me...
LONGE
por detrás da montanha azulada
a nuvem continua seu ritual
chovendo sempre
muito pouco encontro
eternamente distância
e me vou guiado pela imaginação
de nuvem compondo o céu interior
para achar-te
como que de surpresa
entre as curvas do amor
e me vou fechando os olhos na vertigem
235
as asas da imaginação enormes
em busca do longe
foi-se o tempo da saudade
quero apenas transportar-me
para bem perto da tua montanha
onde por trás há enormes nuvens
chovendo enormes gotas
lavando a alma
no reencontro
SALVAÇÃO
preparo o leito
dormir sozinho é fútil
rolar para o lado
não sentir teu peso
tua vida roçando meu destino
tua pele caminhando meu desejo
preparo o peito
estar sozinho é inútil
falar para dentro
não sentir teu ouvido
teu significado no rosto
entendendo de mim mais que eu
preparo o jeito
ouvir sozinho é confuso
acostumei as notas
a ecoarem na tua emoção
tua música soa pelas paredes
descascando a alma em ruínas
o que faço para tirar tua voz do meu sentido de ser
236
a quem recorro para elevar este amor à categoria felicidade
a quem interrogo sobre esta insaciedade?
o que é tudo isso na minha alma
a encher a cisterna do desejo
e verter em conta gotas
o gozo necessário de cada encontro?
o que é isso muito na minha vida
repleta de rituais tão lindos e únicos
depois de tua língua no céu da minha boca
me salvei
como não me salvar
não há mandamento maior
que esse que vivo
- amar amar amar
(deus é três em um
somos três em dois
santíssima trindade
-amar amar amar)
SORRIO
eu acordei dentro de mim
tirei da cama um novo rito
eu acordei no fundo de mim
meu próprio rio
rio não passa existe
com pouca ou muita
água de sempre
rio não se basta
237
depende do leito
e da palavra
rio não se cabe
transborda quando cheio
de si mesmo
rio do rio
da graça de graça
da água molhada
da lágrima ou enxurrada
rio do obstáculo vão
rio não pára
quanto mais desafio
maior a vitória
venço a correnteza
inundando-me de mais
mais e mais e mais
prazer de chegar ao mar
GRITO
vencer a letargia dessa história
contendo o grito presente no pensamento
mas ausente na garganta
vencer a vitória da passividade
controlando a mente e silenciando o grito
ausente na garganta
vencer de todas as formas
a forma equívoca de ser coletivo
de ser um ser sem sentir outro ser
ausente do outro lado do querer
238
não dá para engolir
sapos e sapos e sapos
de tanto ano de quietude
precisamos cismar a mudança
não para regurgitar
o tempo o tempo o tempo
de tanta história errada
precisamos escrever a história de um novo tempo
VIDA E VERSO
coloquei o dedo na ferida
longe da dor saiu sentido
é que o verso cura
toda frescura
é que o cego vê
com a alma
embotar a frase é engolir seco
melhor engolir vida e cuspir poesia
é que o verso desnuda
toda alma pura
é que o vesgo vê
de outro ângulo
entre a vida e o verso existe apenas
o tempo
entre a vida e o medo existe apenas
o segredo
silêncio é punição
falar é construção
239
MOMENTO
a euforia pelas veias
oxigênio é ar para viver
em cada momento
gás!
a alegria se faz taquicardia
e pulsa e pulsa e pulsa
em cada silêncio
vida!
a festa interior rende horas
adiciono ao tempo meu tempo
ser eu mesmo feliz
ora!
vivo o momento
de ser feliz
sem me importar
a razão sempre diz!
vivo o momento
de ser eu mesmo
unicidade
de caminho sempre há...
IN-DECISÃO
São só dois lados da mesma viagem:
o trem que chega é o mesmo trem da partida.
M. Nascimento/F. Brant
era o medo
o medo sempre paralisante de decidir decidir decidir
em várias vezes repetidos os sons desta palavra na alma...
240
decidir não decidir... deixar o acaso me guiar por atalhos de
existência...
mas será possível não ser decisão de decidir... quero parar o tempo
num átimo entre ver
o amanhã e pensar o agora, suspiro tantas palavras para fugir do
relógio que me excita ao momento de decidir... preciso fugir para
dentro de mim onde me escondo com meus medos e meus receios
mais nobres e de tão nobres são eternos... me vejo vendo o visto e
me assusto revolvendo a poeira do caminho anterior...
onde estão as pegadas seguras do passado, apagadas entre um
amor e outro entre um sonho e uma desilusão estou aqui agora e
me vejo vendo o visto e me perturbo com tanta visão de visões
que se vêem na minha vida breve e
c h e i a d e a l u c i n a ç õ e s i
n c o e r e n t e s . . .
preciso fugir do medo de ter medo da dor em ter dor do prazer de
buscar o prazer da vitória de perder o tempo em divagação sólida
e válida...era o medo de me enrolar com o passado antes e o futuro
depois e eu lacuna entre o medo e a decisão
(ação: substantivo anti-filosófico antônimo de decisão)
MEDIDA
a voz viajou pelo ar
como folha jogada na primavera
era eu mesmo quem vivia isso:
-eu te amo
a voz ecoou pela gruta
como eco do tempo na vida
era eu mesmo quem ouvia isso:
-eu te amo
a voz soou pelo alto falante
como notícia boa em dia de sol
241
era eu mesmo quem sentia isso:
-eu te amo
me interrogo das formas
a vida entrega sonho e faz amor
entre alma e corpo
o amor integra toda dicotomia
me exclamo das formas
a vida dá amor e toma a paz
entre as nações interiores
o amor é guerra sem vencedor
(do amor tomei a medida certa
entre falar e ouvir
morrer e viver
lutar e vencer)
TRAÇO
tomo a manhã para começar o dia e concebo a tarde como vazia
é que a noite parece conclusão da manhã tomada e da tarde vazia
e a madrugada é terra de ninguém
e nela me sinto desacampado de toda sociedade
e nela me vejo vagando solitário pela noite escura
sem fim
sem traço
sem finalidade
a chuva caída é mar cheio de sentido
a noite vazia é cheia de lua lugares e gentes
a lente sem olhos é miopia sem problema
impressa no papel da oftalmologia
242
preciso libertar o pensamento da forma oca
do dia com fases frases
libertação
NARIZ
o espaço entre minha vida
e tua vida era mínimo
o meu nariz no teu nariz
acabaram-se as fronteiras entre os mundos
quando quem te ama está
na mira dos olhos
na ponta do nariz
o mundo perde a distância
foi assim: teu nariz no meu nariz
e razão e coração juntos
não tive dúvida:
amor é proximidade
FLORESTA
quando cai a tarde na floresta
fecha-se um ciclo da vida
durmo cansado
acordo reflorestado
quando o sol se põe na floresta
o café na garrafa
o pão sobre a mesa
anunciam a hora de conversar
na floresta o encanto dos cães passeando
pelas ruas longas desembocando na contorno
243
é uma magia de bom viver
é saudação à vida
no fim de tarde da floresta
pouco muito pouco me resta:
desligar preguiçosamente da vida
e ouvir as árvores ninando o sono dos moradores
(quando a chuva cai na floresta
os pássaros cantam em festa)
CERTEZA
medo de virar a esquina e perder teu sentido
medo de revirar a memória e não encontrar teu jeito
tenho medo de perder tua vida de vista
tão distante que não saberia dizer se somos iguais
tenho medo de confundir tua voz no meio da noite
é que ando meio atribulado para não dizer solitário
mesmo com teu amor na minha vida
tenho medo de apagar os sonhos do futuro da lembrança
acordar refeito de um vulto chamado felicidade
é que os vultos felizes se apagam tão docemente dos dias...
tenho pena de esquecer de nós dois pelas manhãs de Belo
Horizonte
ou pelas tardes da Pampulha afogando as luzes da emoção
cultivei as flores da paixão nos canteiros da ilusão
quero não colher o fruto da existência:
essa cena se repete – uma vida longe da outra
aos poucos e para sempre
244
a existência dilui a paixão em gotas homeopáticas
aprende-se a ingerir a tristeza com facilidade
(não há certeza de que não te amo
há certeza de que me desconheço amando)
GENTE
reviro
a volta
reviravolta
(perco-me na ida
ou na volta?)
reviro
a vida
revivida
(perco-me na volta
ou na ida?)
revivo
a volta
revolta
(perco-me na vida
ou na sua saída?)
revivo
a saída
retraída
parêntesis revelam
as entrelinhas da mente
da gente
245
VOLTA, TEMPO
quem pode voltar o tempo
e refazer os segundos de cada hora?
quem me deras o tempo todo de volta
aquele mesmo: tu à porta pura ingenuidade
de braços abertos de coração aberto
para me amar
pudera eu voltar ao tempo da infância
aquele mesmo: descompromisso com o relógio
brincadeira de dia sono lento de noite
e de noite todo o tempo para imaginar o dia seguinte
quem pode voltar o tempo
e redizer as frases com exatidão?
a juventude não é um sonho ela se foi
tão cheia de conflitos que hoje vivo disso
herança dos mal tratos da maturidade
não importa: o tempo se vai para todo o sempre
é belo ver-se passado como o dia de ontem
com sua unicidade
eu me fui para o calendário da vida sem tristeza
não há somente alegria na vida
eu posso afirmar: cresce-se na dor
(na alegria se mede o crescimento interior)
me vou hoje para a eternidade
porque me faço eterno no sentir o mundo
todo meu que me orgulho de ser eu só
o dono de tudo que me cerca
basta fechar os olhos e o mundo em volta desaparece
246
só eu permaneço pensando para espanto de mim mesmo
não opero nenhum milagre em existir
apenas sei que a vida é algo maior que voltar o tempo
não há tempo para tentar voltar as horas
é perder o tempo refazer o tempo de ontem
APESAR DA NOITE
a vida não pára no olhar a nuvem sobre a cabeça
nem se ressente da gente olhando para a frente com melancolia
a vida se basta a si mesma como o dia de ontem impresso
no jornal de hoje sobre a mesa suja de poeira
eu me guio por entre o tempo de ser alguma coisa
na vida que me é dada entre os objetos colocados
me vou percorrendo por dentro o longo caminho
dado por fora como o suor é calor do corpo quente por dentro
me basta este cenário de tempo-passado-tempo-presente
me basto dentro do tempo da vida bastante a si mesma
eu me vou enlouquecido pela hora de planejar as próximas horas
como se isso fosse muito e é muito pouco para quem precisa viver
eu não consigo me imaginar fora do lugar que habitam meus
sonhos
porque sorrio e sofro deste abismo chamado destino – mesmo
utopia, mesmo real
é que não adianta tropeçar nas horas como se fossem um acidente
de percurso
o destino caminha levando cada segundo para o fundo do poço
e não basta fazer de conta que fazer de conta é viver
não é assim: preciso fazer de conta que vivo
e assim viver livre
247
quis sempre ser livre
apesar da noite
quis sempre ter saída
apesar do dia
minha liberdade entra pela minha garganta como o ar desta manhã
fria
não suporto esse cenário- toda liberdade será castigada
não mereço este rompante: a dor cavalga para todos os lados de
mim mesmo
me perco me acho me escrevo me relato – isso parece tão
levianamente chato
quis sempre ser livre
apesar da vida
ENGUIÇO
lá fora estão todos as cores
o azul do céu
o verde do jardim
e muitas flores de cada tom
lá fora encontro todas as dores
de amar
de amar muito
de amar sem resposta
lá do outro lado da rua
o carro prata
a mulher nervosa
o cachorro rosnando para quem passa
lá do outro lado do bairro
há tantos destinos
se cruzando
se perdendo
248
tudo não passa de ilusão
como um carro desgovernado
os olhos captam rumores
do interior
meu interior é vasto
meu distrito é único
meu sonho é esquisito
só permanece meu o que de mim saiu e voltou e se alojou aqui
no mais é somente isso
um enguiço completo
INGENUIDADE
a ingenuidade corre lenta pela vida
quisera flor para nunca ser semente
de discórdia
ingenuidade ainda bate à porta da emoção
quisera carta selada nunca carta a escrever
rompimento
o dia é ingênuo mas mutável
sou tão ingênuo
na tristeza
a noite se faz certeza
sou tão ingênuo
na beleza
não posso voltar os olhos para o lado
acabou-se de desmoronar o último tronco
da árvore da infantilidade espiritual
249
ILUSÃO
os olhos cerrados
o dia se vai
estados
a alma fechada
a hora se foi
guardada
o sentimento morreu
na entrelinha da linha
com ele eu
todo o pesar da hora
incomoda fartamente
agora
estou amordaçado
com um grito na garganta
sufocado
preciso dessa hora vaga
entre uma ilusão e outra
da minha história
CURVA DA TRISTEZA
a curva da lágrima
é sem sinalização
por isso me perco
aflição
sair para onde
de alma lavada
se a lágrima suja
250
a vida passada?
fugir para onde
de alma batizada
se a lágrima impura
é dissimulada?
a curva da lágrima
é sem retorno
por isso choro sempre
para ela não mais voltar
mas ela sabe o caminho a percorrer
sai da alma a sofrer...
DIAS DE VAZIO
a divisão me consome
entre ontem e hoje
eu homem
atravesso as ruas
luzes me fazem
eu sombra
viro para o lado
a lua no céu
eu poema
é assim triste isso
vazio este momento de solidão
eu razão
é assim fútil isso:
fundo este lago onde me vejo
eu vazão
251
tenho horas de ser vazio
vagando por aí
eu caminho
tenho nódoas na alma
desde muito cedo a mágoa
eu destino
vejo me vendo isso tudo
luto por dentro árduas batalhas
eu desafio
é assim mesmo: vago
amargo sabor de ontem
eu existência
VAZIO
quando acabar este verso
seja melhor sepultar
o verbo
quando acabar este texto
seja melhor esvaziar
o cesto
quando fechar a palavra
seja melhor amparar
o poeta
vazio
do que
preenchia
seu interior
vazio
252
O CHEIRO SEM CHEIRO DA ROSA
SOBRE A MESA/2008
CHEIRO
o cheiro sem cheiro d[a rosa sobre a mesa]
é cena dantesca
fala de todas as cores
menos da essência da rosa
cheiro sem cheiro
do morto sobre o altar
espera o cheiro com cheiro
da cova
o cheiro sem cheiro da vida
retira da vida a essência
o perfume é propriedade
dos corpos
poesia sem cheiro
cheiro sem poesia
palavra sem consciência
consciência sem corpo
o ambíguo é uma postura
diante do cheiro da vida
COR
o azul
a borboleta
o amarelo
o sol
nomes e coisas
paus e pedras
canoas
cais
253
o nublado
que cor é essa?
ausência de brado
da cor?
o verde
a mata
o vermelho
a flor
nomes e seres
existência e essência
rosa
da rosa
o escuro
que cor é essa?
ausência de cura
da luz?
FRIEZA
esse momento sem futuro
a dor de recomeçar por fora
o que antes era tão lindo por dentro
me deixe me ame me abandone
mas não me faca saber da dor
mais que o próprio amor
essa lápide na alma
frieza ao final do dia
o amor tem caminhos estranhos
viva a morte do amor
vivacidade querer do tempo
a eternidade
254
TRANCOSO
trancar a alma dentro da nuvem passando
fechar o corpo dentro da onda batendo
me vou guiado pelo barulho dos pés
na areia indiscreta daquele mar
fechar os ouvidos para ouvir a pulsação do mangue
sentir na alma a lama lavando o pecado
um dia de sol ali é um mistério de viver
queria o laço que me prende à terra
daria de mim o melhor para morar nesse horizonte
mas só tenho minha dor mineira
para cantar a beleza baiana
RÉDEA
deixo a rédea da alma
solta no tempo
vou cavalgar liberto
AZUL
a bola azul sobre a onda azul
jogando equilíbrio na retina azul
me tornou estático
a bola azul respingada de água salgada
boiando na crista da onda da tarde
me tomou de assalto
a onda azul de moléculas multicoloridas
sob o azul amarelo da Bahia
me roubou o tempo
255
a retina azul dos olhos
no azul da onda
na bola azul
semelhanças demais
ONDA
o caldo é medo antes
e depois sensação de estar vivo
é muito - a onda
o peso
o chão sem sentido
o ar com tropeço
o caldo é medo agora
e suspiro de alívio depois
é cruel – a onda
pressão
a gelatina movendo-se
contra a parede do pulmão
o caldo é fuga
da praia
dentro do mar somos
renascidos das águas
INTERROGAÇÃO
porque vai dia e vem dia
e Serro parece murchar?
onde estão os rios caudalosos
para fazer o novo germinar?
por que Ventura é de Santo Antônio
256
e não do Serro?
por que Francinha subiu para o céu em Monlevade
e não no Morro do Paiol?
porque Eremita lançou só um livro
e não vários em toda a vida?
por que Dario só fez memória única
e não todos os textos que podia editar?
porque as águias que um dia nasceram
por lá não puderam ficar?
porque até o hino que era belo
virou serenata vulgar?
por que milton cantou itamarandiba
e não cantou Serro?
por que o Clube da Esquina foi em Santa Tereza
e não na Santa Rita?
porque a novidade vem da periferia
e não do centro histórico espetacular?
porque Milho Verde e Gonçalo
para poder se vangloriar?
queremos o melhor
e o melhor
não pode ser demais
para quem tem asas nos pés
BETH SE CASOU
ela viu a vida com outros olhos
as lentes da mente se foram
e o coração se abriu
para a alegria da união
ela se viu unida
257
sem separação
ela quis uma vida
sinceramente elo
ela se permitiu criar laços mais fortes
a força da vida é marca de cada um
em chão de dias de horas
de eternidade
Beth resolveu se casar
e calar a solidão de dentro
gritando amor por fora
PAU PEDRA
por isso
por aquilo
por trás
por frente
me vingo
e viro
me choro
me sorrio
por tudo
por nada
por mim
por ti
me visto
me saio
me suo
me sinto
258
por esse
por aquela
por vinte
por trinta
me passo
me levo
me basto
me vou
(não sei dizer o nome da rosa sem o espinho no caule da mesma
rosa rosa rosae rosarum rosinha não sei dizer o nome da flor
murcha sobre meu peito arfante rosário rita conceição do carmo
tantas mães olhando do alto nossa baixeza de vocabulário)
PALAVRA
a palavra pingou na roupa
o azul da frase
o vermelho da crase
a palavra respingou no chão
o tédio da vírgula
o exagero da exclamação
a palavra manchou o cobertor
a dor da frase morta
a cruz do período longo
a palavra deixou uma marca no ouvido
259
PÁGINA
parece: o vidro embaçado
mas esquece sou eu de novo
parece: o choro na face
mas esquece era eu muito moço
parece: a tristeza na alma
mas esquece era eu sem calma
parece: a pergunta sem resposta
mas esquece sou eu nessa página torta
HÁ DIAS
há dias tão curiosos de ser uma tristeza alegre por fora como uma
manga quase madura fazendo hora de ser derrubada pelo vento da
noite ou pela não do menino da rua de cima cheio de habilidade há
dias tão profundos a gente acorda cheio de ideias prontas e eu não
era assim ontem essas frases prontas essas vírgulas todas bem
articuladas tenho resposta para tudo mas só havia questões a
resolver que síntese estranha é esse sentimento bem resolvido há
dias de acordar tão tarde e não faz falta para ninguém nem para
mim mesmo por que não faz diferença estar dormindo ou
acordado se tudo é apenas pensamento bailando apenas dentro de
mim e não para ninguém em absoluto há dias frios e dias quentes
e dias quentes por dentro e gelados por fora e outros gelados por
dentro e quentes por fora e em outros pareço-me mais estranho
são dias de frio por fora e frio por dentro e não consigo desligar
esse ar condicionado há dias de muito furor de viver e dias de não
viver para evitar qualquer furor ouço muito mais mas às vezes me
calo para falar para mim depois isso é o livro dos dias avançando
para as páginas finais há dias de sabedoria milenar mas nos dias
de burrice existencial eu me perco por perder porque sei que no
final do dia eu vou me achar de novo diferente divinamente
diferente e essencialmente eu mesmo
260
TAO
tão junto de si
tão distante de ti
não há resposta
apenas o vento na janela
tão dentro de mim
tão fora de si
não há aposta
apenas a música no ouvido
tão crente aqui
tão morto ali
não há proposta
apenas a solidão no peito
EFEMERIDADES
Para Eduardo, o João
efêmero como esse momento que passa escorre se vai se foi
volátil como essa propriedade do ontem dentro de mim hoje
volúvel querendo querer o mais querido pensamento e sentimento
seria inútil
me vou percebendo a luz do dia
como se dela sobrevivesse agora
mas agora é muito para perceber o sol
é noite no meu peito e meu peito sou todo eu
efêmero como o fermento que deixa se assar no pão e some
volátil como o gás que respiro e já me fez viver e morre
volúvel como a percepção fraca desse som que já vai longe
eu estou parado diante de mim e todo o universo gira comovido
261
pois na sombra do universo grande feito um todo poderoso
meu querer se faz a poderosa sabedoria única a me consolar agora
essa agora é hora de saber-se poupando energia para ser mais
efêmero
volátil
volúvel
ESSE VENTO
esse vento esse vento esse vento me leva para dentro desse nó na
garganta esse vento esse vento me rodopia por todo o universo e o
mundo meu se torna um mundo sem som para o ar balançando a
realidade que é muita que é dura que sou eu nesse vento sem
cachoeira sem ouvido para ouvir sem cabeça para filosofar sobre
esse vento esse vento me comove me remexe me reinventa por
que busco a tempestade mas a calmaria da brisa é muito graciosa é
vento calmo demais e vento calmo demais é menos sofrimento
posto que alma é suspiro espírito é sopro divino e eternidade é
esse vento equilibrado dentro do todo eu eu vento ventania queira
apenas agora nesse momento estar sem esse sopro da vida dentro e
fora de mim e o tempo esse redemoinho de ontem e hoje e amanhã
me apavora por que vento bom é vento passado vento bom é vento
dissipado e assim me vou dissipando a realidade no vento que me
carrega por que o diabo está no calor sem vento do sofrimento
preocupado demais com o vento da paz que me arde por dentro
sem fazer chama apenas tentando remediar esse início de
turbulência vento vento esse vento esse vento esse vento me leva
para dentro desse nó na garganta
acordei... nossa! me vi vivendo acordando esse tempo mas que
tempo louco a loucura das horas sumidas na ampulheta das vidas
eu acordei para dentro de mim e o de fora se libertou de mim eu
me fui para onde?
262
de relance me vejo agora e fico perplexo para onde me vou sem
minha permissão não me permitiria perder a mim mesmo se fosse
assim não deixaria acontecer o acontecido acordei... nossa levantei
do túmulo da antiguidade feito múmia então esquecida
me dispus a aprender e o aprendizado se deu com um mestre
severo, rigoroso e cheio de outros adjetivos em vírgulas cercado,
um mestre versátil, duro, reação, ação, cármico
eu me acordei pela voz da vida e a vida tem um som de sereia e o
mar me afogou em lágrimas por que trazemos dentro dos canais
lacrimais o gosto das ondas do mar que de tempos em tempos
inundam como tsunami nossa cara-praia essa mesma cara que o
espelho reflete e desconheço (serei eu tipografado em miríades
desconexas nessa tela narcísica?)
eu me acordei vazio por dentro e por fora por que dentro e fora
são a mesma coisa e o mesmo pensamento sobre a realidade e não
há em cima e em baixo há tudo num todo real de observação
possível pela parte do todo que sou eu esse mesmo eu dormindo
acordando sendo algo diferente (o sono deixa o corpo lento e a
boca amarga deixa a alma leve e a razão maluquecida)
eu me acordei com essa nova mania de perguntar porque como o
que... como se houvesse resposta possível a não ser uma mágica
chamada pergunta não há dúvida maior que a pergunta feita por
que toda pergunta traz um universo vazio cheio de possibilidades
e eu mergulhei nesse fundo oceano da dúvida para achar um corpo
inerte de frente para si mesmo
eu me acordei de dentro pra fora mas num movimento de rastelar
para dentro o mal feito dentro dentro feito dentro feito de tanto
erro quero a verdade mas a verdade está cheia de provisoriedade
que também é um erro prestes a ser desfeito a gente é assim uma
incabada tela na parede de um pintor anônimo retraçando seus
263
projetos coloridos a gente sonha tanto colorido e acorda em preto
e branco e cinza e pranto
eu me acordei para essa vida que é só minha e minha e minha a
vida é uma contagem progressiva ou se marcamos a hora de voltar
é regressiva para onde vamos depois do bolor das células
putrefatas a sete palmos? Para onde vamos com nossas dúvidas e
com nossa incapacidade de mudar um hábito pequeno que vira e
mexe mexe e vira acorda com a gente apegado a cada célula a
cada molécula da nossa pobre matéria
acordei pequeno feito micromolécula mas imenso em amor
acordei miúdo feito um surdo mudo mas de mente repleta de
desejos
acordei chato querendo suando rompendo com meu medo
cansei de ter medo da vida e quero voltar à vida acordada
faço um acordo comigo mesmo
que volte a sonhar mais depois de cada dia acordado
POR CAUSA
Para Samantha
No medo do Serro não ser mais o que era antes.
por causa das palavras me fiz existência por causa da existência
me fiz o que sou essas palavras meio ditas meio pensadas no fim
de algum período semanticamente
tenso tenso tenso tenso tenso
repenso e reexisto e redigo e reescrevo
por causa das palavras me fiz verbo e o verbo habitou dentro de
mim e o verbo se faz poesia e o verbo se faz novas palavras e o
verbo se faz e desfaz fazendo novas palavras que calam as antigas
palavras do início da existência
tensa tensa tensa tensa tensa
264
por causa das palavras repito o medo repito a existência repito
meu nome MEU NOME é essa palavra encarnada que dizem ser
eu mesmo quando me ouço sendo falado por outro faça-se a luz
faça-se a gênese de novas palavras novos sentidos novas retensões
tensões tensões tensões tensões tensões
releio a ficha das minhas aparições no mundo é meu passado
pesando sobre os ombros sobre o CORPO que se move em
gravidade pelo planeta sou lunático vendo a lua sou estrelático
sonhando pisar nas estrelas essas luzes do nascer do dia em
ressaca em Milho Verde preciso distender
tender entender prescrever precaver querer
por causa das palavras sou esses passos passando pelas ruas do
Serro a mais misteriosa cidade do meu mundo por que ali nasci e
não me nasço de novo por que não me reconheço estando ali por
causa das palavras suadas nas noites nas infinitas noites da
decomposição de ser serrano de ser essa tensão essa pretensão de
ser melhor
(por causa das palavras adormeci sassá e acordei raposão)
ME PONHO
me ponho no meio do problema e tenho medo do problema estar
fora de mim o que vai se tornar um problema externo e se fosse
interno seria mais fácil de entender mas como é extra-epidérmico
não posso resolver acho que o mundo acordou muito complicado
e eu não faço parte desse mundo externo que não muda mesmo eu
mudando de dentro para fora de dentro para o mundo externo
solução de mundo é palavra nova de dentro para fora de fora para
dentro diálogo entre luz e sombra
265
ESSE SERRO
Para Rogério Mota Pereira
Hay ombres que luchan um dia e son buenos
Hay otros que luchan um año y son mejores
Hay quienes lucham muchos años e son muy buenos
Esos son los imprescindibles. Bertold Brecht
nas calçadas pisei fundo da lama saiu o sentido nas ladeiras
escorreu o medo esse esse excessivo – quando surge o esse
significa que não há apenas um substantivo há vários e vários tem
esse esse esse de plural Serro tem esse no início e não cabe plural
cabe pau e pedra cabe construção cabe beleza cabe muito sem
excesso sem esse excesso de esses presente na fala de quem diz da
cidade que me fez desconstruir meus esses e edificar meu esse
inicial (SER) Serro tem esse no início por que é único é singular
mesmo sendo decadente e sua decadência (sem esse) é o ciclo da
renovação chegando ao ápice o fundo do poço tem lama feito a
ladeira escorrendo chuva feito eu escorrendo medo do que vi nas
minhas últimas férias (com todos os esses confusos que consegui
falar) tenho medo desse medo expresso nas frases da madrugada
chuvosa onde está essa cidade sem necessidades (com esse) de ser
melhor?
(não me caibo em mim quando falo desses esses)
o ciclo vai chegar ao fim sou otimista o ciclo vai passar por mim
por ti vai tenhamos esperança tenhamos sensibilidade tenhamos
dignidade o ciclo vai passar e vai surgir um novo significado para
o esse no início maiúsculo como os outeiros vigilantes que
observam o tempo passando nas ladeiras com lama que o ciclo se
abra para o resgate o singular mesmo que isso signifique
incorporar mais um esse
diamantis mineirus magrellus
rogai por nós!
toninhos maguinhos joãos surubins
rogai por nós!
venturas francinhas eremitas
rogai por nós!
266
É...
explosão
variedade
sou eu agora
vivo
multidão
pluralidade
sou eu agora
único
percussão
musicalidade
sou eu agora
prático
chuviscação
pluviosidade
sou eu agora
poético
SIM
não me confundo
há somente
esse hora
não me retorno
há apenas
contramão
não me converte
santo por santo
sou antão
não me ocasiono
semeio apenas
essa prova
267
RELÓGIO DA ALMA
na hora da volta eu voltarei mas me pede
gosto desse sorriso sem brilho buscando
mais brilho depois do perdão
na hora da partida vou me lembrar mas pede
gosto dessa carta fosca implorando
o retorno depois do verão
na hora do novo amor vou me apiedar mas pede
gosto desse sinismo maluco cogitando
se houve o esquecimento de fato
na hora da dor solitária do antigo amor vou chorar mas pede
gosto dessa memória do prazer matutando
o relógio da alma
AUTOCANIBALISMO
não sinto nada quando amo apenas amo e sinto pouco em volta
por que a volta é um longo círculo em torno de si mesmo na
eterna roda da fortuna da vida e a vida é muito para apenas uma
volta são voltas que encenam voltas aos palcos do corpo e vários
corpos encaram a encarnação desse ser em volta com seus
próprios amores amor que será? que será? quê? Não posso pensar
no amor amando amando amando é muito voltar a si mesmo
dentro do amor e fora dele nada sou apenas esse dragão engolindo
a própria calda e há uma variedade imensa nesse autocanibalismo
autoantropofagia preciso entender o que é o amor sei apenas que é
essa comichão nos pés pode ser indício de algo eterno chegando
tomando posse do corpo finito com alma eterna é um mistério esse
ouroboros do tempo
268
DEDO
tocado por seus dedos sou mais
nuvem brotada da umidade
dos dias passageiros
do tempo
embriagado por suas palavras sou mais
gota a gota no alambique
litros de lágrimas
do ser
fulminado por seus olhos sou mais
raio partido no céu
energia da vida
do todo
IMPÉRIO DO AMOR
não sei dizer como foi aquele encontro mas tento
pois já tentei tanto descobrir o sentido dessa vida
era uma tarde de um dia absurdamente outro
por que os demais haviam sido iguais
não sei dizer por que houve encontro mas lembro
pois já guardei cada segundo desde sua chegada
era tarde na alma e o dia se anunciava outro
por que os anteriores haviam sido mortais
sua luz eu vi dentro de mim refletida
não a luz das sombras descobertas
mas da sombra encoberta que um dia brilhou
revelada em seu segredo
sua luz me invadiu por dentro porque por fora
já havia ocorrido tantos enganos por anos e anos
269
e não pude esconder a intrigante memória dos tempos
no sorriso bobo de quem se vê amando novamente
eu era um pouco de todas as vidas passadas
e por todo passado me fiz todo inteiro ali
me pus de pé de pronto de inteireza feito
por que a inteireza é apenas um lapso
havia me dividido tanto por amar sozinho
me juntei ali por amar ao mesmo tempo
porque o tempo de outros amores
foram muito diferentes
tempo de enganos variados
de variada conjuração do peito
esse mesmo que bate agora sentido
por tua ida e vinda na minha vida
tua chegada foi uma conjuração cósmica
uma confusão cármica
uma lesão por arma
uma dor de prazer por dentro
tua chegada foi o sonho realizado
e um poema fraturado em versos dissonantes
tantos versos meus para cantar isso
vejo agora todo o horizonte abarca nosso encontro
todo encontro é apenas um insignificante delírio
de duas almas paralisadas na contemplação do lago
pois Narciso vive procurando seu reflexo
para se afogar de amor por si mesmo
amar faz bem pra si
por que esse si
270
é si mesmo completo
num terceiro
amar teu olhar tua fala tua bobagem
são insignificâncias que as praias contarão um dia
há registros de nossos pés em tantas areias
e a natureza sabe quem fomos ali
a natureza sabe de cada momento sobre as ondas
de cada momento sob as árvores
de cada grito por sob a chuva
ah, quanta saudade de amar assim!
hoje sei do encontro registrado em cada célula
das diversas células que ainda virão com as vidas
por que se chegastes agora
agora é todo realizado
mas sei e sei profundamente que o tempo
traz e leva feito chuva e sol
deserto e chuva
terremoto e vulcão
mas sei das eternas conquistas a fazer
das bandeiras que ainda irão se levantar
dentro do coração para hastear
a memória desses amores
tua voz é essa imposição de atenção
amar é essa dor pecadora feita conversão
dessas conversões de judeu para cristão
de cristão para muçulmano
tua voz é um delírio de obediência
um silenciar a vontade de dentro
271
para fazer duas vontades
ao mesmo tempo
toma meu coração que ele é teu
eu te pertenço por que te amo
te amo por que me pertenço
e me dou por que sou todo meu
e esse momento me dá a certeza do ontem
quando fui perdido pelas ruas procurar
teu coração aberto e minha alma eterna
subjugada pela ordem de amar
toma meu coração que dou de espontânea vontade
pois o império do amor é mais forte que o império da verdade
por que o império da poesia é mais vasto
que o monastério da filosofia
CONSUMO
fui me enfileirando na calçada
quando me vi
já meio não visto
estava como todos: igual
fui me voltando para os lados
as calçadas cheias de vitrines
já meio não visto
estava como todos: consumidor
eu me vou levado pelo tempo
pela imagem e pelos sons
pela fila de pessoas em busca
de ser verdade em meio à mediocridade
272
ANIMI
o vento na rua me chacoalha por dentro
vejo muitos eus na rua e o vento
é só um dado a mais na minha pequena realidade
a ilusão de ser é maior que o vento lá fora
e dentro de mim os temporais de consciência são fortes
furacões macabros varrem o ontem
distensio animi
distensio animi
distensio animi
UM ANO
eu me vou girando
como o relógio embriagado
de tempo
SAUDADE
é uma saudade esse som no fundo da alma
...
som de passado passando como saci pererê pela mata
ouço passos cruzando pernas dentro da alma
varro o ontem e sinto o barulho dos ventos
da escadaria alta uma cidade encantada lá embaixo
as vozes de instrumentos musicais ecoando pelas ladeiras
esse som de tambor em dia de festa de terços e rosários
latente possante e ausente agora nesse ínfimo tempo em som
exceto isso: o vazio da percepção imediata
ouço o som da caneta beliscando o papel noite adentro
no meio do vale e das árvores: jabuticabas, laranjas, pêssegos
e de gambás colhendo o fruto no silêncio da madrugada
273
ouço minhas vozes gritando atrás de bolas, papagaios e
brincadeiras
eu era tão feliz naqueles dias sem futuro e a eterna necessidade de
ser
tempo adulto
vasculho minhas gavetas
canetas esquecidas
tempo ido
entulho o lixo da memória
objetos esmaecidos
tempo tido
o silêncio da saudade é uma rosa se abrindo
longe dos meus olhos
SUBO DESÇO
subo desço que descer e subir é esse? perco acho que perder e
achar é esse? vejo não vejo que tipo de ver é meu vendo? que tipo
de tipo é meu tipo? e seu tipo é um tipo daqueles ou daqueles nãotipos típicos de tamanha aversão atípica? queria ver na lágrima
que cai a diferença de outra lágrima que cai mas não é a lágrima é
o rosto que funde o mundo com o seu sentido a sua pele é o fundo
da alma para a existência da lágrima brilhante correndo para a lei
inevitável da gravidade newtoniana achei um sentido para esse
despertar enaltecido que é a vida confusão entre o ido e o por vir
vivo numa demência de sentidos que me acho despido de um tipo
próprio, requisito básico de ser algo que se é sou eu mesmo agora,
demente diante da tecla que me diz de mim me diz do agora sendo
eu mesmo subo desço as escadarias da minha alma para achar no
fundo do poço o posso posso ser o tipo mais ínfimo de tipo mas
serei sempre um tipo propriamente
eu
274
HORÁRIO
tem horas de morrer
e pôr-se a decompor no tempo
tem horas de se derreter por dentro
como imagem perfeita por fora
tem horas de ser grande na vida
e medíocre no quarto
tem horas que dói ser a máscara
não a frase bela ensaiada
tem horas que o silêncio fala alto
impondo-se cantos no ser
tem horas de imortalidade
e medo
tem horas de finitude
e esperança
tem horas de ser muito
e dormir sozinho
tem horas de ser amor
e não conseguir conviver
tem horas de correr atrás
e querer ter você
nessas horas me lembro do ponto de partida
levando seu corpo para longe de mim
275
SI
sair de si
para outra margem de mim
de balsa
de canoa
no vento
na noite
sair de si
para outro lado do lado
na planta
no desenho
no tempo
no hoje
fugir de mim
para algo de si distante
da música
para o silêncio
da luta
para vazio
amar é estar onde
se me perco
voltar quando?
amar é tráfego
intenso
de nós na alma?
NOVEMBRO
vou construir um telhado de quatro águas
o meu coração é frágil
pode não suportar a tempestade
276
VOLTA
quero a vida de volta
preciso de ar
de amar
de ser
quero minha vida de volta
longe de agora
essa dor
de se dar
quero minha vida de volta
desse delírio de juntar-se
quero distância
SALTO
eu quero dar um salto
mas sem asas
não posso
sair para o outro lado da vida
FIM
quando seu sorriso não disser nada mais que o sorriso
deixa eu me calar e sentir o tempo nos levando
morreu a paixão
procuro só encanto
quando sua presença interferir na minha alegria
solta as rédeas da minha vida
liberta essa alma
da gaiola do destino
277
quando eu me cansar de correr atrás de seu sentido
permita-me escrever muitos versos satânicos
sobre as uniões eternas e divinas
quero somente juízo de paz
quando eu me cansar de sua voz
solte as amarras dos meus lábios
preciso falar que já chegou o dia
do fim de nossos laços
SONO
não acordei: fiquei parado no sonho do sono
buscando esquecer o sonhado
mas veio a memória lembrando
o que não era para ser exato
É QUEM DIRIA...
é quem diria... no fundo do fundo há um profundo estar só esse
vento de dentro para fora de dentro para o tempo de dentro para o
passado esse vento me leva me invade me varre me arremessa no
chão me eleva nas nuvens da saudade esse sopro é o tempo
marcando a pele do espírito é o não-dito dito de outra forma negar
seu amor é negar o tempo negar ao vento a total invisibilidade é
deixar-se ser ele mesmo na copa das árvores
ELEGIA DA MEMÓRIA IMORTAL
eu vou pela vida como quem vai à venda subindo o morro do
Botavira a mãe aguardando o macarrão para o almoço mas a rua é
sempre tão fascinante com acidente carro batido no poste no meio
da cidade
278
eu vou pela vida sem levar o macarrão para a mãe pois a pressa é
inimiga da poesia e aprendi desde cedo a retardar o prazer de casa
contemplando a rua extensa da emoção do mundo
eu vou pela vida derrapando rua abaixo aquela de terra vermelha
com antibiótico próprio e sem os vermes de ciência
contemporânea às vezes de patinete de rolimã da oficina de Nadir
mas vou com pressa para chegar até à Igreja de Santa Rita
eu vou cruzando o tempo da infância de um morro a outra morte
de uma santa a outro santo de uma estação chuvosa a outra fria e
sem graça de pêssego no quintal a manga no Patronato com pedrasabão polida no fundo do rio
eu vou dissipando a névoa da madrugada no alto da Santa Rita por
que o relógio que me acompanha até hoje toca fundo na alma e
conta meus minutos sobre a terra que agora asfalto impede os
antibióticos naturais de agir e me perco com dores de cotovelo
eu vou parando de bar em bar para ver as sinucas as cervejas as
cachaças para os santos e vou me percebendo fora da história dos
transeuntes da rodoviária porque a vida é feito rodoviária com
farnesis gritando a hora da partida e me fui e até hoje sou ido
eu vou para dentro de mim achar essa porção mágica chamada
elixir da eterna juventude ou elixir da eterna memória que não se
apaga de uma infância emocionante mas sem explicação
eu vou para dentro de mim para descobrir as imagens de alguém
que não existe mais mas que adoraria viver novamente a inocência
da terra vermelha com antibiótico com a experiência que a vida já
deu ralando o joelho nas estradas tortuosas da existência
avisem minha mãe que o macarrão vai demorar pois peguei a
patinete e fui atrás do cometa Halley que passou ontem e me
deixou assustado como o eclipse da infância na churrascaria de
279
Nondas essa cidade é mesmo uma terra de loucos apelidados por
seus piores defeitos
avisem minha mãe que o macarrão vai faltar na panela por que
resolvi ir atrás da banda de música com seus dobrados e pratos
rachados e homens de pernas tortas e sapateiros e mulatos e muita
fé de que a procissão sem música agrada menos ao santo
avisem minha mãe que o macarrão de Duduca aquele mesmo de
papel azul e muito barato preços populares vai faltar no almoço
pois resolvi dar uma olhada no relojoeiro consertador do relógio
da santa rita e me perdi nas engrenagens estrangeiras
avisem minha mãe usem a voz de Júlia ou Magda no alto falante
com música que irritou o argentino petit e o fez pintar mandalas
espiritualizantes e gerar um filho artista para acalmar sua alma
psicodélica pois não volto não volto não volto
minha mãe deve saber que depois do morro do paiol a vida é outra
e depois daquelas curvas eu nunca mais seria o mesmo que um dia
saiu de casa para comprar macarrão na venda de Duduca viu o
cometa Halley e nunca mais voltou
a vida sem infância seria muito chata mas a maturidade sem a
terra vermelha com antibiótico natural é uma incredulidade
(passem um e-mail para minha mãe... o tempo já passou demais)
DANÇA DE FITA
a efêmera alegria
pena sobre a testa do catopê da festa do rosário
voa voa voa pena leve
feito vida breve
280
a eterna saudade
batida de flecha de caboclo no barulho da multidão
estala estala estala flecha de madeira
feito vida matreira
a mágica temporalidade
luta de mentira entre marujos na praça velha
tine tine tine espada dos mares
feito relógio de santa rita nos ares
FORÇA
a nuvem não chove
escorre
a chuva não cai
morre
a planta não brota
sofre
a flor não cheira
descolore
ALTA MAGIA
a água suja do rio
o rio sujo de água
dentro e fora?
a vida limpa de dia
o dia limpo da vida
cima e baixo?
a morte caduca de noite
a noite caduca de morte
longe e perto?
281
LOUCURA
para o lado
para dentro
para fora
onde fico melhor agora?
para silêncio
para outro
para mim
onde fico melhor assim?
para atitude
para indecisão
para certeza
onde tenho maior beleza?
para trabalho
para sono
para vigília
onde tenho maior insígnia?
para banho
para escrita
para leitura
onde pego minha loucura?
REZO DOIS TERÇOS
rezo dois terços no rosário
para contemplar o inteiro
282
PALAVRA
a palavra dita bendita caprichada caminha de boca para ouvido
sem curva ou onda ou partícula ou partícula ou onda toda palavra
caminha dentro a dentro ou dentro para fora ou fora para dentro
mas persegue sempre infinitamente uma conexão
a palavra explícita implícita desdenhada ensina sobre a carne que
habita o significado cérebro mente espírito ex maquina que somos
sem a palavra que encontro somo sem o verbo
o verbo se fez carne
o verbo se fez palavra
o verbo fez
ligar ações
é propriedade do verbo
SOU EU
onde passa essa esfera mágica
sou eu
girando pelo mundo afora
onde passa essa loucura cósmica
sou eu
pirando pelo mundo agora
onde passa essa alegria cármica
sou eu
sorrindo da caixa de Pandora
onde passa essa inocência bélica
sou eu
disparando ais pra quem me adora
283
PONTEIRO ADIANTADO
adiantou pouco o ponteiro marcando as horas antes de ser a hora
certa
adiantou quase nada esse sorriso meia boca evitando a confissão
evidente
seu amor me sobra
seu amor me transpira
contar as horas para trás tentei mas nem permaneci no devaneio
contar as horas só vale se o amor é para o futuro
seu amor me cobra
seu amor de inspira
LADEIRA
a gota rolou pelo rosto
chuva suor lágrima
pegou rapidez pela ladeira
parou.
a gota deixou uma avalanche
neve nevoeiro nevasca
pegou escuridão no tempo
fechou
AMOR
estou no meio mim mesmo sem poder sair pela tangente por que a
tangente é distante demais para ser percorrida em uma música
fuga em dó menor fuga em dó maior não sei bem das notas que
retratam esse momento sei que ferem e sei da dor sem bússola na
mão sem bússola no peito sem bússola na alma vou perdido entre
a solidez do ontem e embriaguez do amanhã e esse amanhã que
284
não chega na noite vesga sem direção sem armação sem coloração
sem esse aumentativo dilatador das veias das artérias chamado
amor o mesmo o mesmo o mesmo mostrador de direções tantas
estou no meio do fim mesmo sem querer sair daqui posto que
direção é coisa menor para quem perdido prefere se encontrar
posto que o poste é muito denso para todo o tempo e todo o tempo
é uma viagem para muitas almas várias que não eu agora perdido
sem direção sem tangente sem batente sem essa incandescente
vontade de superar o desequilíbrio que o não-norte me dá mas
amanhã amanhã sim amanhã será um novo dia trazido pela
esperança que chega chega e enche o coração de pressão a eterna
pressão que de vez em quando eu reconheço como amor
rompe as artérias
cumpre seu papel
desfrute seu ser
em mim feito prazer
vem amor
me chove
me seca
me infesta
vem
vem
vou
vou
CONTAS
a barraca pronta para o cachorro-quente
a poeira vermelha sobre o pé-de-moleque
metros e metros de gente
feia?
285
bonita?
a maçã-do-amor servida pela dona infeliz
a pescaria de peixes de mentirinha
muita muita muita gente
cheia?
vazia?
a igreja de pé-dentro-pé-fora azul dourado
a mesa cheia de doces coloridos secos e molhados
vária vária vária gentilidade
velha
novinha?
(a festa do rosário é cheia de contas
e cada conto é cheio de outros contos por dentro
como um labirinto do fauno
mantras de Hare Krishna)
VOU LAVAR
vou lavar meus pés vermelhos no vasa canudos
para secar as varizes profundas do tempo oco
antes de entrar na cidade pelo arraial de baixo
C(IDADE)
cidade não lugarzinho
cidade tombada não esquecida
cidade religiosa não falsa virgem
cidade carnavalesca não pé-de-valsa
existir ali como
se chove muito
286
crescem raízes
no calcanhar
NO LAVA-PÉS
no lava-pés as baratas d’água brincam de homem velho
purificando os seus pés vermelhos no final da tarde fria
SANTO
vou liberar meu santo
para subir rápido
o céu fica vazio
quando sofro
vou exagerar na prece
para fluir ágil
o céu fica frio
quando morro
TRANSMUTAÇÃO/2009
AR
suspiro
e o que vai embora
se vai
não sei bem
se eu
ou o passado
suspiro
inspiro
preciso
ar para amar
287
E EU?
não posso colocar nuvem dentro do mar
o mar é maior que o ar que nuvem que céu
e flui como todos os elementos
e eu?
não posso queixar do ontem já é tempo ido de longe
mas colocar o que no lugar do agora
nada flui mais ou menos
por que eu?
SILVOS
magia é retornar por ruas tortas
acertar o passo
magia é uma lenda de frente para trás
escutar o outro
magia é tarde na alma cedo na existência
desfrutar o pouco
magia é cultivar roças de vento no rosto
abraçar o incenso
magia é o momento de mutação
amar a si mesmo
LIXO
eu colocaria todo o sonho numa lata de lixo
mas a lata de lixo está posta no mundo
minha mente não
eu depositaria o desejo para o caminhão pegar
288
mas o desejo sujou todo meu ser
sou impuro feito chão
eu sei das necessidades de equilíbrio por dentro
de sorriso por fora
mas sou lixo
total
MANHA
na manhã de pura manha
sou apenas esse vácuo de átomos perambulando pela casa
ela ou eu está vazio de sentimento próprio
aquele perdido ontem de noite no travesseiro
hoje pela manhã o sol se escondeu a nuvem tampou toda claridade
não poderia ser diferente eu sou fora o que tenho dentro
o coração está apertado no cinturão da dor
essa palavra vaga dizendo saudade
quando acordo e meu espírito parece ainda vagar pela incerteza
eu me deixo guiar pelas notas do dia e de dia me levo
eu não me procuro me deixo perdido feito bilhete em gaveta velha
não quero me encontrar agora: preciso de um tempo (contato
somente à tarde)
PASSEIO
estive ontem só deus saberá onde
não me lembro era noite e chovia e me debatia debaixo de um
guarda chuva imenso como esse verso
estive ontem só eu um dia lembrarei
não me vejo vendo o que via sei que a noite caia letárgica feito o
abismo do pretérito feito o verbo
289
estive ontem tão solitário
juro que todo juramento nada valeria me ia para locais obscuros
procurando na noite o termo
RECONEXÃO
preciso de ligação
entre esse tempo agora
e o de ontem
preciso de conexão
entre essa música
e a nota
preciso me ouvir baixinho
para deixar límpida
intenção de leitura
quero me ler
quero me ouvir
quero ser apenas
eu mesmo
se alguém me encontrar cabisbaixo me deixe
só assim eu me encontro mirando o chão
porque se houvesse me achado
olharia o horizonte amplo
feito fato prestes à realização
SONO PESADO
o dia de hoje é como hora vaga na mente agora
nada de mais nada de menos apenas esse tempo
tic tac coração passando
290
não me vou pela vida como quem vaga pelo paraíso
o paraíso não existe nem ali nem aqui
fico parado esperando o céu abrir
mas os pulmões são fracos para soprar
a tristeza escorre por cada olhar
pinto cada lágrima na tonalidade certa
nem mais nem menos apenas esse vento
refrigerando por dentro o calor da alma
sonhei os planos mais elevados
a vida veio amordaçando o sonho
ele foi se reduzindo velho ficando
nem mais nem menos sou apenas sono pesado
OUTRO
outra ideia
outro tempo
mas como
sou mesmo
outro corpo
outra dimensão
mas como
sou idêntico
outra era
outro ser
mas como
sou prisioneiro
queria significação
mas não acho esse termo
não vejo esse fim
de tempo
291
POEIRA
eu falo por mim mesmo e não levanto poeira a minha volta porque
a poeira pode ocultar o passado me levo me lavo me escovo por
dentro para ser melhor por fora eu me calço eu me cuido porque o
cuidado é importante para viver muitos anos muitos anos para
frente do que já foi para trás eu me vou eu me parto eu me
esquadrinho para acertar o passo mas vou fundo em cada
sentimento de estar bem ou de estar mal que são aristotelicamente
parecidos eu me vou escrevendo por mim mesmo em letras vagas
de vaga luz de vaga tonalidade eu vou aprendendo nada se perde
tudo se transforma e na roda da fortuna eu estou bem no meio de
mim mesmo
GNOMOS
o jardim era antes da escola de fato
a flor vinha antes da dor
o sorriso antes do livro
o mato cresce na cidade
campo
montanha
o mato cresce
certo
ermo
cresce como gente
se não cuidar
morre cedo
cresce como quer
precisa aprender
a se controlar
292
ACIMA
sobre o chão
o calçado
acima o pé
é
sobre a borracha
o carro
acima o zé
e o pé
sobre a nuvem
o avião
acima a fé
do zé
DONO
perdido não é a melhor expressão
do sorriso sem graça
fim de noite
noite sem fim
talvez um pouco sem conexão com o mundo
meio sem prisão externa
todo sem pretensão maior
vida em mim
não sei se me refiro assim ou de outro jeito
tomei um jeito torto depois de ontem
acordei com mania de tentar me achar
dono enfim
DESERTO
na nuvem de dentro ar sopra
chove muito é temporal
mudo de rota
não me acerto
293
no céu de dentro o chumbo pesa
tufão sem fim me leva e leva e leva
quero uma rota
não me de[ser]to
QUANDO
na espinha passou pensei que era o amor estabilizado aquele de
que falam os casados os sábios os comportamentais
quando eu me vi diante de um corpo sem prazer sem fantasia sem
contentamento eu me senti tão frágil que me embalei em novos
pensamentos para fugir para dentro e não o mundo aqui fora
quando eu me perdi totalmente numa desilusão que me guiou por
vários e longos anos eu me crucifiquei porque não há como
remediar o tempo perdido que se torna insano
quando eu me retive diante da realidade essa fria realidade do
clima quente por fora e uma geleira na alma eu não soube o que
fazer porque não sabia que seria assim e assim é muita coisa
quando eu me resolvi pensar o sentimento o sentimento virou um
sentimento mais refinado e refinamento é uma bomba rompendo
os tendões das pernas que me levavam para seus braços
quando eu não mais suportei olhar seu corpo sentir seu cheiro
tocar sua alma com meu espelho eu
não sabia mais que eu não amava seu amor
eu apenas soube de algo novo
eu apenas me senti pesado na compreensão
eu apenas me repeti por dentro o que por fora já era real
quando eu deixei de amar você
a vida ficou sem graça
quando agora novo amor?
294
VIDRO
o vidro me liberta da realidade
cria uma imagem
ficcional
o vidro me embaça por dentro
quem são eles elas aqueles aquelas
quem sou eu afinal?
o vidro me quebra o dia
paisagem urbana
racional
o vidro me desvela o mundo
quem são esses essas outras outros
por que somente eu normal?
o vidro é janela
janela é parede
entre o mundo
e eu
TEMPLO
o mundo se abriu como uma possibilidade
das muitas de dentro para fora
do pensamento para o sentimento
o mundo se abriu como ventre prenhe – está na hora!
nascimento
crescimento
eu no mundo sou apenas um templo
295
IDADE
a alegria da vida é fácil
manhã vem o calor dos corpos
tarde tem o café na mesa
noite sem pesadelo
a alegria aumentou com a idade
sopra velas de experiência
ESTAR-NO-MUNDO
não vejo desse jeito que vêem talvez essa dificuldade de entender
outro olhar seja da miopia que nasce e entorpece meu jeito de
deformar a realidade
não vejo dessa maneira exagerada agora nem antes talvez na idade
remota do tempo ido no interior da casa pobre do interior de
minas
não sei o motivo mas o olhar se vai cheio de esperança pelo que
foi mergulhado em saudade e pelo que vai ser cheio de devir
filosófico
não sei o motivo desse olhar míope me revelando cores que não
via ontem mas que desejo ver amanhã pela manhã de cada
renascimento
eu afirmo a vida dentro de mim em cada novo projeto de estar-nomundo e se isso só não foi uma epopéia penso sobre o feito e o
que será ainda perfeito
296
MANHÃ
a manhã veio cheia de poesia
por causa da chuva
por causa do sol entre nuvens
dizer não saberia
(sei que não saber é muito interessante e poético
porque se tudo soubesse seria um mistério vivo
longe disso prefiro ser mistério por desvendar
sei que não saber é muito ético)
a manhã chegou feito clarão
os olhos se abrem
sem força de vontade
apenas sãos
REDAÇÃO
há uma obrigação no ar
poema
saia
há uma empolgação no lar
poema
caia
há uma comoção ao par
poema
fala
há uma intuição de mar
poema
nada
297
MEDO
preto e branco
luzes se espalham
não vejo
pressinto
amarelo e azul
luzes se apagam
não creio
desconfio
o medo me envolve
toda vez que busco
a certeza
MISTÉRIO
mistério falta
nesse átomo
que me
embala
mistério fala
nesse ato
que agora
me capta
mistério sempre
nessa voz
interior e quente
de dentro
mistério solto
nesse som
quase oco
(sou eu) outro
298
MUTANTE
para Benedito Alves
transmutação
é o primata virado zé
num ano de três mil gerações
transmutação
é o eu virado outra coisa
depois de anos na encarnação
transmutação
é o dia virado noite
no mesmo tempo da ação
transmutação
é morrer na câmara
renascer na iluminação
transmutação
é passar pelas provas
para a depuração
transmutação
é a física de dentro
vibrando na mutação
transmutação
sou eu inteiro
feito o iod da criação
transmutação
sou eu feito eu
no eu do arquiteto grão
299
TEMPLÁRIO
o templo se ergue
no meio do mundo
altura
largura
comprimento
profundidade
o templo se despe
para ser vestido
liberdade
igualdade
fraternidade
mutação
PALAVRA
o hiato se faz nesse ato
ato de ir não voltar
caco de si no ar
o idioma se faz palavra
lavra de cortar
pedacinho de si no falar
eu quero ato palavra
HERANÇA
não solto a barriga da minha mãe
lá há um cordão
me amarra
não largo a mão do meu pai
lá há um imã
me atrai
300
AÇÃO
uma certa melancolia
talvez por essa chuva
caía no telhado de amianto
hoje chove em outro lugar
uma bela melancolia
quem sabe por essa música
rolava quando o álbum era visto
hoje toca insignificante
uma plena melancolia
não sei se por hoje ou por ontem
quem sabe pelos calendários todos juntos
unidos como sempre para passar o tempo
(melancolia é um estado de espírito
anunciando a transmutação
mutação
ação)
TEMPO
mudança necessária
mutação medida
trans [forma] ação
mudança à vista
mutação concedida
tempo (raliz) ação
DE NOVO
de manhã o sol aquece a vida
feito cobertor de madrugada
esquece o frio
de manhã o dia nasce feito esperança
feito herança herdada
esquece a miséria
301
de manhã o pássaro pousa tão de leve
feito notícia boa
esquece o telejornal
de manhã a mangueira está tão repleta de
feito abundância gerada
esquece o infortúnio
manhã é começo
feita para novo tropeço
manhã é novo aconchego
de si logo bem cedo
BRUMA
a bruma sopra forte
de uma costela direita
a outra esquerda
quase tufão
a bruma abala a estrutura
do arco diafragma
a respiração ofegante
quase aflição
a bruma treme as pernas
de um lado ao outro
o caminho fica longo
quase comichão
a bruma sacode a poeira
da mente envelhecida
o pensamento já enganado
quase renovação
a bruma esfria o coração
aquecido demais para a situação
é que acordei como se tivesse ido ao mar
sentido a bruma soprar
302
frutos
ÚTERO
não posso me calar diante do globo
azul de fora visto
terra amiga mãe
útero da vida
não posso me furtar diante da cena
de um satélite artificial
o ponto de arquimedes
de fora da terra
não posso me deixar o mesmo
depois da imagem da terra
vista do espaço
útero astralino
IDENTIDADE
no primeiro acorde já sei
é hora de sair do casulo
para o dia
a vida
no primeiro tom da manhã já sou
a identidade de ontem
a persona de agora
a sociedade
no primeiro bocejo já fui
repetição da rotina
as pessoas
a saciedade
no primeiro abrir de olhos
o cenário não muda
303
mas hoje – o que foi isso?
eu voltei outro
(parece estranha a estranheza desse momento
parece tanto a tanteza desse instante
parece vária a variedade dessa variante
mas sou outro)
DIA
o dia volta e revolta
revolução
o dia vai e volta
devolução
o dia vem e vai
gratidão
o dia pega e dá
retribuição
eu no dia sou
transmutação
É ASSIM
acontece comigo toda vez que durmo
não sei o motivo
me mudo
acontece comigo toda vez que soluço
não sei o delito
mas sofro
acontece comigo toda vez que penso
não sei o pedido
mas projeto
acontece comigo toda vez que escuto
304
não sei a música
mas emociono
acontece comigo toda vez que sou bruto
não sei de mim ontem só sei que de novo
não me aceito não acredito não me oculto
SEGREDO
segredo é esse entremeio entre o feito e o calado
mais calado que feito – a imaginação de quem não sabe
é fértil
segredo é esse vazio medíocre entre o ato e o silêncio
mais silêncio que discurso – a curiosidade de quem não entende
é deserto
ESOTERIA
esotérico me levo para o centro do mistério
salto linha para engolir o vazio
cheio de sentido
da linha vazia
esotérico me passo para o outro lado do hemisfério
pulo a linha do equador para entender capricórnio
e volto para o norte
do sul pleno
esotérico me busco de um lado ao outro da obra
meço o nível para ver se aprumo
e volto para a medida
correta
esotérico me deixo guiar para a viagem
que não chega a lugar nenhum
repleto que é apenas
de mistério
305
MOMENTO
meu momento se situa entre esse esperar
e o acabamento
meu momento não vem de ontem nem de hoje
é o próprio tempo
meu momento está na chance de ser
eu mesmo novamente
meu momento se dá no instante do tendo
vaga-lume não sabe que a luz
é nada mais nada menos
que seu termo
TROCA
trocaria o conceito pela poesia
se poesia me desse a certeza sobre o medo
trocaria a filosofia pelo teatro
se o teatro me revelasse por inteiro
trocaria as mãos pelos pés
se os pés me informassem o toque do desejo
trocaria essa voz que grita no deserto pelo silêncio
se o silêncio fosse o fim do meu medo
COR
a cor do azul é um azul inteiro
informando o azul que é parcial
eu me informo o azul inteiro
não me vejo vendo por partes
306
a cor desse vermelho é um vermelho de calor
perigo de chegar-se próximo demais
fome de menos estimulada
não vejo o vermelho sinto a sua essência
não me sinto sentindo apenas
todo o meu todo é apenas isso
isso sou eu posto no mundo
plenamente
EXISTÊNCIA
sofro do mal de amar
desde os olhos abertos
até os olhos fechar
peno a dor do desejo
desde o peito receptivo
até o peito machucar
eu amo desde sempre
muito antes de conta me dar
só não sei se o tempo foi ontem
ou hoje depois de beijar
eu amo desde a eternidade
como um sopro antes tem ar
depois é só vendaval e essa mania
nomear - E X I S T Ê N C I A
RIMA SEM RIMA
o medo é esse falar
baixinho para si
eu apenas vou me escutar
o medo é esse bater as asas
307
correr mais que o outro
para sozinho ficar
o medo é essa rima sem rima
medo de não rimar
o medo é o que faço agora
medo de enganar
preciso transmutar o medo
alegria de amar
como dizia o profeta a profetizar
ama e perfeito serás
APRENDIZ DE UM GRAU
para Dona Aparecida Clementino
aprendizado
letras e um dicionário ao contrário
a vida é um letrário
quem decifrar me informe – sou pobre coitado!
eu aprendi que a vida é cheia de letras ao contrário quando percebi
que o discurso de uns é exatamente o seu contrário e que a ação
que vem de dentro é quase um anedotário
eu aprendi que o olhar muitas vezes me mata mas pode ser
engraçado já que as letras em discurso desmascaram o hipócrita
como a letra do dicionário define a palavra
eu aprendi com os fatos o que muitos dizem e relatam e é apenas
uma grande mentira disfarçada de letrário chato
308
eu aprendi que mais vale uma ação bem praticada e calada que um
discurso contrário ao ato realizado
eu aprendi que há certas pessoas no mundo que não percebem o
idiotário e na próxima vida – e elas virão, talvez! – deverão junto
de cada ato ao lado decodificar com o seu próprio letrário
eu aprendi que a palavra é muito forte na boca de quem ama e
quem odeia como aristóteles ensinou o caminho do meio preciso
aprender a amar e odiar na medida certa para não fazer feio
eu aprendi que mais vale uma palavra calada que um monte de
verbos voando sem significado agitando as mentes com palavrório
eu aprendi, só não sei se vivi
POMBA
a pena caiu da pomba rolinha na minha janela
roxo quase sem roxo se fez mais leve que o ar
lembrei quatorze bis lembrei de volitar
a pena ziguezagueou como semente de paineira envolta no
algodão
a leveza da vida é esse momento
bela imprecisão
a pomba rolinha vive
prontamente vive
sem dor nem medo
existe
a lição da pena
voar mesmo triste
asas no tempo
de quem não desiste
309
COFRE
guardarei o nascer do sol
dentro da gaveta
da memória
embalarei o cometa viajante
no papel alumínio
da emoção
depositarei a esperança de hoje
no cofre forte
do amor
IR
esperança no porvir
herança por vir
festa na alma
fé com calma
caridade no agir
idade para ir
longe com alma
ÁGUA
chuva rola pela calha
- como cala a voz na fala?
chuva vai e faz da semente broto
-como o gosto é base do seu contragosto?
chuva na sarjeta escorre para o rio mesmo subterrâneo
-como do sorriso se despe o riso?
310
UNIDADE
vou batear o cascalho do rio
trazer de volta o brilho
do diamante
vou quebrar a esquina da casa
trazer de volta a certeza
da reta
vou encharcar cada lado da face
para trazer de volta a unidade
do ser
FÉRIAS
ofuscação de sentido
manhã inebriada
folga de mim
sono
deixo-me deixado
deitado na cama
folga enfim
férias
BONFIM
amarro a fita no braço
a sorte no abraço
prece para o senhor do bonfim
desejo sem fim
convoco o anjo da guarda
ajude coração que aguarda
311
eu mereço a ajuda do mais alto
para ligar os dois mundos
micro
macrocosmo
VIDA
vida esse barulho de chuva na onda quebrada de uma praia
distante mas perto da memória que não ousa esquecer
vida esse sussurro de noite gatos no quintal devassando o desejo
da natureza de procriar como nós em dias de sol aquecendo a pele
vida esse sopro de tempestade no fim da tarde de um mar total de
azul de cor de terra de cor de lama de cor de amor e paixão
vida essa canoa parada entre dimensões de tempo de maré que
leva de maré que traz peixes sonhos rede cheia e vazia
vida essa luz de uma igreja barroca de santo amaro de senhor do
bonfim de fins tão bons para quem tem fé para arrumar as gavetas
da sorte
(hoje a vida amanheceu como sol nascente em praia de maré alta e
lua cheia revoltada quero viver esse momento como se fosse a
última maré para encher as redes de fartura e felicidade)
LUA
lua dorme sobre o sono dormido dos humanos na terra
dorme, mas como, se revolta a maré?
lua forja uma nova espada para são jorge
forja ou faz que aumente o brilho da fé?
lua dá meia volta e volta cheia de luz
lua dá volta inteira e volta minguada de amor
312
RUA/LUA
a rua é asfalto gato cinza e lixo
na lua há um santo alto azulado e fixo
a rua é de ninguém
a lua é de meu bem
a rua é do poste da luz da boemia
na lua há sorte no eclipse de dia
a rua e a lua
a lua e a rua
id (entidade)
UMBIGO
umbigo na barriga é cordão umbilical
umbigo de nascido é mal de sete dias
umbigo de crescido é sinal de partida
para a vida
umbigo de bananeira é sinal de abelha e beija-flor
umbigo que se abre e vira cacho de verde
umbigo cai e vira total amarelo
para alimentar a vida
nascimento tem umbigo rompido
crescimento tem umbigo cicatrizado
umbigo
ambíguo
313
MULHER DO CONDADO
a trança da mulher do condado me amarra
no tempo da infância daquela escada eterna
o balaio de taquara na cabeça me equilibra
no tempo diverso de outros lugares tantos
a cor da pele me ilumina
fé em senhora do rosário
o jeito de andar pelas ruas tortuosas me conduz
pelo sabor eterno do pé-de-moleque
a mulher do condado
é cheia de sentido
VÊ
houve entre ontem e hoje
um tanto de som
houve entre o menino e o maduro
um tanto de tom
houve o barulho da cascatinha
um tanto de flor
houve o relâmpago no pico do itambé
um tanto de cor
houve
ouve
ou vê
314
SERRANIA
o sino toca
a procissão sai
um homem reza
uma banda dobra a música
a velha canta
a procissão vai
um louco peca
uma janela se abre como espírito
a cidade pára para procissão
a alma se comove
move
vê
LÁ TRÁS
de noite os moleques assoviam
um assovio frio
io io io io io io io
de noite os moleques riam
um riso dispara
rá rá rá rá rá rá rá
de novo os moleques vigiam
a mexerica no pé do vizinho
(o pé do vizinho dá árvore
cheia de frutos por causa da terra
vermelha vermelha vermelha
na sola)
315
MUDA
a mudança sobe o morro
desce a beira do rio
se eleva
se vai
a mudança percorre a cidade
de um lado ao outro
o caminhão
se vai
a mudança de dona ana
vai pra lá vem pra cá
percorre a cidade
casa nova
a mudança de dona ana
é rápida é diária é vária
CIDADE
eu vou e volto para minha cidade
apesar de minha
é de muitos
eu vou e volto por minha rua
apesar de tortuosa
encaminha
eu vou e volto por minha escadinha
apesar de elevada
comisera
eu vou e volto por meu botavira
apesar de cascalho
energiza
eu vou e volto por minha cascatinha
apesar de fria
baliza
316
NÃO
hoje vou dizer não porque quero dizer não e simplesmente pensar
no não como não de fato eu preciso dizer não como quem vai e
volta e recolhe a certeza de algum ponto do ontem eu vou lhe
dizer não pois acredito que é hora de colocar um ponto final no
sim em excesso de excessos feito eu prefiro hoje o não não e
pronto pois que fique claro que hoje eu optei por dizer não ao
mundo a mim mesmo e a todos que me escutarem se o mundo
começou com um sim o casamento começou com um sim e todo
amor começou com um sim digo não e nada desejo dar início
apenas me permitam dizer
não
VARIEDADE
esse sentimento
pode ser o que quero
pode ser o que deve ser
mas pode ser um tanto de outros sentimentos guardados
na miríade de espectros secretos da alma aprendiz
essa certeza
pode ser tola como a que quero
pode dar em lugar nenhum
mas pode me levar a tantos lugares diferentes prospectados
na projeção de cores que se faz futuro a todo tempo
esse momento pode ser vário
mas pode ser um condutor
para onde quiser
317
PÁGINA
a página branca me convida
me oferta o espaço
a página branca me quer
me permite a condução
há linha no vazio
há verso no oco
da página
a página branca me engana
me faz acreditar no vazio
a página branca me diverte
me faz o tempo passar
há letra e sílaba no vácuo
há poema no todo
da página
FUTURO
virá
novidade
um tempo
outro
virá
perplexidade
um canto
pouco
virá
rompimento
318
uma versão
louca
virá
contentamento
uma tristeza
frouxa
irá
silenciosamente
corvo da madrugada
irá
pausadamente
estorvo da gargalhada
rá rá rá
FALATÓRIO
gostaria de dizer tudo termine em sorriso a flor que nasceu a dor
que machucou o tempo perdido em frases diante do muro das
lamentações
gostaria de dizer tudo valeu a pena a manhã chuvosa a noite que
não levou a nada o tempo herdado em canção dissonante no show
do século
gostaria de dizer tudo mereceu ser como foi a vida sem graça a
morte na hora errada a existência partida entre a infância e a
maturidade no teatro de arena
gostaria de dizer tudo foi repleto de grandeza desde o campinho
de terra e lama no verão à quadra de cimento e tabela e cesta
319
gostaria de dizer tudo foi intenso como a espiritualidade esotérica
do incenso no quarto ilógico da adolescência
gostaria apenas de dizer
e o faço com a memória
RETRATO
no álbum de retratos
distrato
na fotografia escurecida
vida
no monóculo azul
sul
na imagem do tempo
esclarecimento
DENTRO
o cenário de dentro
é vasto
como um mar
alto mar
o cenário da gente
é amplo
como um tempo
temporal
o cenário da vida
é próprio
como tatuagem
escondida
o cenário sou eu
para mim mesmo
um enigma grita
-exponha-se!
320
MENORIDADE
a primeira confissão foi quase uma dor
entre o feito e a correção
a primeira comunhão foi quase um parto
entre alma e ação
o primeiro amor foi quase eterno
não fosse o tempo e a traição
o primeiro livro foi quase o melhor
não fosse a próxima edição
a primeira vez foi muito
a segunda vez foi repetição
uns chamam isso de idade
prefiro transmutação
A BONECA
vou colocar a boneca de minas novas na janela enquanto escrevo
versos ouvindo música no dia em que ela envelhecer eu mando
numa caixa para cláudio de joaquim soldado reformar suas tranças
e seu humor
MAR
o mar na memória
ocupa espaço
passo
o mar na história
afunda o casco
asco
o mar
sempre o mar
321
NÚMERO
o número
força a porta
da vida
ou a vida
força o número
àquilo?
o número
revela o destino
na carta
ou a carta
põe no número
sentido?
o número
me faz
ou faço
número?
NOME
titulação
do homem
da mulher
profissão
condecoração
do soldado
do voluntário
coração
remuneração
operário
chefe
opressão
322
CEDO
redemoinho no interior
tempestade de imagens
desarrumação
fragmento de dor
mosaico de vidas
acomodação
dia de ficar sozinho
noite de dormir mais cedo
expectativa
TEXTO
um texto religioso sobre a mesa
olho perdido em algum ponto
da iluminação
um texto sábio diante do olho
mente esvaziada diante do ponto
de interrogação
SABE
dicionário para o significado
fé para a vida
renovação para o restante
calendário para o tempo
pé para a lida
transmutação para a sobra
eu me vou hoje como a bússola no bolso
orientado mas sem saber
crendo mas sem entender
o porquê
323
OUTRO LUGAR
a mala dentro do ônibus
tempo de partida
um som um tom um apontamento
o verso escorre montanha abaixo
a sala dentro da casa
variação de lar
uma menina um menino uma reza brava
o verso descobre a sensibilidade
HORA
o mistério do tempo é o relógio
que passa o que ninguém vê
para outro tempo dado
o mistério do relógio é o tempo
existe mesmo sem eu o querer
insiste mesmo sem eu poder
passando o que não quero perder
por linha dada no tempo
me passo
por linda tarde de hoje
amanhã lembrança
eu me fecho
de tempo
tem dó
preciso
de pouco
tempo
só
324
EU NÃO POSSO
eu não posso voltar para a sua sombra na retina azul dos olhos eu
não posso
eu não posso ligar para sua voz no ouvido direito a me falar eu
não devo
há entre nós dois um longo tempo perdido ninguém pode explicar
começou num calendário distante e nenhum fio mais nos ligou
nenhuma linha mais nos tocou nossas vidas se afastaram de uma
forma inadmissível para quem vive de amar
eu não posso pedir perdão pois não é o caso quando o amor acaba
eu não posso falar de saudade pois os meus pés se distanciaram
com consciência de sua sombra
há entre nós dois um terceiro elemento estranho ninguém pode me
encontrar na sua vida pois ferida cicatriza tempo passa e amor
amor amor não sei dizer só sei que me faz falta mas eu não posso
eu não posso
não posso
posso?
O QUE VEJO?
na última noite do ano desejo
na última hora do ano desejo
na última cena do ano desejo
o que vejo?
(colocar uma frase entre parêntesis quer dizer que há sempre algo
a dizer no último instante de algum fim que se dá como tal eu não
entendo de final eu sei do desejo inicial de novo começo começo
sem fim)
325
PÉ FRIO
pé
água fria
cascatinha
esfria
cabeça
SABER
estou feliz como quem foi viu e aprendeu
feliz como quem sabe
sabedoria
estou feliz como quem divisou o antes e o depois
feliz como quem espera
esperança
JARDIM
o jardim está de frente da janela
abre e fecha
flores
o jardim está pequeno
nasce e cresce
cores
o jardim está agradecido pela chuva
muda e fruto
noites
CARACOL
um ano vai outro ano vem
a vida é pista de mão dupla
estação de trem
326
um ano vai outro ano vem
eu mergulho no todo
onda mar tem
o ano passado é um caracol
o ano que será passado é um desenho
ilusão do tempo
ONDINAS
eu cresci no meio do mato
no beira do tanque
na margem do rio
na cachoeira
eu cresci em meio às ondas da vida
pra lá e pra cá
eu chorei quando precisei acertar o ritmo
de etapa em etapa
pulando a lapa
não afogar
eu cresci em meio às marolas da vida
pra cá e pra lá
SIMBORA
leve a vida
a que lhe dei um dia
em dias e anos e tantas outras lembranças
leve os móveis
os que nos contam a história
em calendários imutáveis de tantas esperanças
327
leve as fotografias
os registros de cada momento
só não se esqueça de me perdoar quando bater a porta
só não se esqueça de me levar como memória justa
só não se esqueça de me doar um tempo de sua recordação
leve-me levemente
feito onda de piscina
CASCALHO
o pôr-do-sol me revelou por dentro
fenômenos intensos de luz e cor por fora
eu não sei dizer quantas cores no céu
ou se um céu apenas ou vários eus
o pôr-do-sol me levou para longe
um tempo de se perceber totalidade
RESPOSTAS
eu não vou roubar de mim essa história
escorre por entre os dedos
feito massa de quitanda
eu não dou a ninguém o direito
de dizer o que é isso de fato
eu procuro e eu mesmo encontro
RESPOSTAS
328
TUDO MUDOU
só sei que se foi numa mutação de cores de sons
de nós de flores de muitos
só sei que a luz convergia no seu caminho
as vozes falavam de flores orquídeas matos
só sei que a rosa o azul o azul escuro o branco
o relâmpago e a chuva nos diziam textos
só sei que não há como contar desse jeito
tão diminutivo o que se passou ali
só sei que quando me dei conta
entre lages e vila do príncipe
entre ontem e agora
entre todos os que aqui viveram
tudo mudou
BAGUNÇA
a bagunça das ruas tortas
e o quintal
é a mesma
a bagunça das cabeças
e o hospital
é a mesma
a bagunça entre quem é ou não
e o pessoal
é muita
a bagunça entre todas as coisas
e a moral
é vária
329
(nesse canto de vida o tempo é breve mas de um breviário sagrado
como se houvesse em cada linha da história um hinário de nossa
senhora da conceição)
salve rainha
DICIONÁRIO SERRANO
para Théo e Sassá
ao verso somente o sentimento
ao rio apenas o peixe pequeno
ao menino a muleta e o barulho
a mim eu mesmo
ao pé-de-moleque a enxurrada
à árvore de copa eterna o ninho
à dona que escreve quitandas o forno
a mim eu basto
à igreja de santa a opa e a fita
à procissão coral de vilma e banda
ao mato verde e alto semente tanta
a mim os olhos
à terra vermelha o sapato branco
à música alta na praça o sino das horas
às festas eternas o último gole
a mim a boca
à moça pura na frente a família
à lente de aumento a moral
aos poucos sinceros a distância
a mim o silêncio
aos nomes sem nome aos importantes sem título aos moradores
dos altos aos indecisos da vida a todos os que amam demais a
todas as mulheres sofredoras a todos os balaios de bananas eu
desejo
[t r a n s m u t a ç ã o]
330
BOA VISÃO
para André, Rogério e Frida
boa vista de lages
sou eu
olhos
boa vista de lages
desce e sobe
vai e volta
imagem
boa vista de lages
de rua única
de escola pública
de moça pura
de diamante eterno
de cruzeiro sem cristo
de sempre viva e coroa
boa vista de lages
de vasto olhar
de todo vagar
de carro parado
cachorro zangado
de rio e cascalho
de gruta e passado
na tarde de boa vista o olho se perde no vasto das lages e as lages
se entrecruzam com as cores do entardecer eu não posso me calar
diante desse espetáculo incontornável de uma tarde tipicamente
serrana porque tipicamente mineira
331
SUBLIMINAR
a rosca da rainha
é uma frase oculta
em português antigo
nas mãos da quitandeira analfabeta
o círculo fechado
e incompreensível da moral serrana
prende a fera de cada um
para domá-la
SALAMANDRAS
eu queimei cada carta
escrevi tantas muitas
uma mais louca que a outra
a queimada no mato anuncia renovação
a alma educada
queima de amor
paixão
a queimada na mata declara devastação
a alma penada
arde por se dar
caixão
eu queimei o amor e acendi de novo
e passei esse fogo vida afora
devastando a interna flora
TEMPO
vou furar a orelha do tempo
para ficar
novo
sempre
332
vou inseminar o tempo
para ficar
prenhe
ventre
vou ler fábulas para o tempo
para sonhar
mundo
outro
vou abrir a gaiola do tempo
para voar
liberdade
total
ELEMENTAL
o escravo cantava baixinho
para os elementos da natureza
[humana]
[puritana]
LETRA
minha letra percorre o sentido da linha
devaneio por sobre a certeza
do ponto final
eu me busco em cada traço de letra
cada traço de eternidade
afinal
EU
eu sou a brisa da tarde
puramente posta
horizonte
333
eu sou o não da negação
supostamente fechando
questão
eu sou o pulso forte da vida
início ao fim
cardíaco
eu sou esse sim de certeza
talvez mentira ou não
temporal
eu sou o ventre da noite
grávido de lua
rua
NEGATIVO
o preto e branco da fotografia
me explica
cor negada
o preto e branco é tempo outro
de dentro
cor mascarada
SONHO
o sonho posto no tempo
eu envolto em lençol
sou fraco
mas livre
o sonho frouxo na noite
eu inerte no enxoval
sou frágil
mas ágil
o sonho colorido na mente
eu pairando no quarto
sou ave
mas preso
334
ESQUINA
na rua a cor da tarde
as aves tolas
o pipoqueiro
o carreteiro
a menina
pense
na rua que corta outra rua
os rostos tolos
o mal cheiro
a má vida
a mulher
sente
na rua de esquina tanta
o céu de nuvens
a cega pedinte
a vida vazia
a qualquer
mente
FOI
esquecimento não sei se foi
se foi
não foi
esqueci
esquecimento não tem ou se tem
não tem
se tem
perdi
esquecimento isso busco e se busco
esqueci
perdi
chi
335
ESSE APELO
esse apelo vem de dentro me diga me pronuncie me fale me dê
notação me explicite me jogue no mundo eu sou apenas uma letra
frágil
esse gesto de dar ajuntamento às palavras interceptar o
encantamento das esquinas das vogais sem acelerar sem se
perverter se revelar
essa vontade de agrupar letras
de onde vem?
por que vem?
PARÊNTESIS
me dê um parêntesis
para decodificar a palavra
nascendo da palavra
me dê um parêntesis
para tirar a palavra
da estante
parêntesis
pare
par
are
ar
rente
ente
sis
336
REZA
cada conta do terço é um pouco da verdade
da mulher no banco da frente
da igreja do rosário
cada imagem é um reflexo projetado da necessidade
do homem com a fita na mão
beijo e bênção
leva santo
leva santa
libera
ouve santo
ouve santa
reza
LOUCURA
os loucos com suas manias
uma escreve
outro grita
outra tem desejos ocultos pelos meninos da rua
uma persegue
outro agita
os loucos da minha cidade são esforçados
em mostrar a loucura sã
da vida
quem nunca enlouqueceu
jogue pedra
quem nunca se enfraqueceu
dê três pulinhos
337
quem nunca sofreu
beba a birita
a loucura na minha cidade é saudável
desperta os meninos e as meninas desde cedo
para as dores da vida
aprende quem quiser
louco? eu não sou louco
MARESIA/2009
ESTADO ESPIRITUAL
eu me vi entre o mar e a terra
entre a areia e a era
de um tempo vulgar
eu me vi pleno
mas diante do mar
fui apenas
simples
eu me vi completo
pois de frente para o mar
era apenas
o de antes
eu me vi entre o todo e o vir-a-ser
me perdi entre tantas pancadas
de onda na cara para acordar
o mar fala sempre a verdade
338
PROCESSO
eu peguei o trem na estação
eu fui de avião
fui
eu coloquei o trem no coração
eu fui rápido
trem bala
eu fui para ver
para crer
para mudar
maré alta
eu fui para achar
me perdi
onda boa
salta
eu fui para sempre
de todo feito
de pouco mudado
abstrato
RIO E MAR
o rio cururupe entra no mar
pela porta da frente
sem medo
da maré
ele envolve
engana
difama
o sal
ele interage
339
flui
dilui
o doce
quem são os peixes nesse encontro
de mar ou de doce
de paz ou de guerra
do abismo ou da montanha?
TARÔ
o tarô do mar
roda da fortuna
gira roda
é outro agora
cada carta um segredo
ciclo repetido
vira roda
é outro por fora
o mar joga as cartas
sobre a praia
eu leio
apenas
PURIFICAÇÃO
ouvi dizer de baianas na escadaria
água-de-cheiro dos orixás
eu fui me lavar
vida nova
ouvi falar de nova sorte em ilhéus
água-de-cheiro da mãe-de-santo
340
eu quis lavar
toda vida
ouvi os tambores repicando na praça
água-de-cheiro na cabeça
eu me lavei
nova trilha
CAMARÃO
a cor vermelha
pegou fogo
bronze
miudinho
pernas e pernas
crocante
camarão
sabor de sol
FRIEZA
só entendi o mar
na certeza
da totalidade
sofri o mal do mar
na angústia
da finitude
sofri de maresia
na frieza
da carência
341
CABANA
a cabana pequena de dona maria
vende
acarajé
abará
a cabana rústica da dona vigia
o casal
a maré
o mal
a cabana recebe as bênçãos da maré cheia
cheia de palavras
produtos
preços
a cabana de mar
se abre
se fecha
manutenção
PEDRA
pedra corta onda
meio
pedacinhos
pedra corta maré
feio
pontinhos
pedra no meio da praia
lugar para se sentar
no fim de tarde
ver o mar morrer
342
RELÓGIO MARÍTIMO
a emoção do mar engolindo o rio
sensação de fim de linha
de percurso
absoluto
a emoção de mar tragando rio
espinha em frio
susto de muito
vida passada
o relógio do mar
é de tempo vário
outra dimensão
ROTA DA ÁGUA
a água nasce na montanha
para o leito
estreito
a água cresce no limite
para o mundo
fundo
a água morre no mar
para a nuvem
voltar
sempre voltar
sempre água
mar
343
DOCE
o doce do mar
o movimento
o doce do mar
eu dentro
o doce do mar
rio
o doce do mar
frio
o doce do mar
fútil
o doce do mar
inútil
SEREIA
a sereia meio peixe
meiumano
ensinou a lição
somos muitos
a sereia de dois mundos
mundúnico
decifrou o código
somos vários
sereia canta muito forte
para desvirar o vento
daqui de dentro
344
ONDA PULSA
a onda se aproxima dos pés
mar adentro
a onda me causa medo
mar tem tempo
a onda me expulsa de mim
mar me toma
a onda me devolve outro
além mar
PECADOR
os pescadores sabem do mar
mais que eu
-nada sei
os pecadores sabem do mar
como eu
-tudo sei
VASSOURA BENTA
vassoura na escada da igreja
laço branco
na cabeça
vassoura para limpar o chão
tirar o velho
a doença
eu ouvi um coronel gritando
-não me expulsem
345
eu ouvi um antigo morador
-não me excomunguem
a baiana usa fita de senhor do bonfim
na alma invisível aos olhos terrenos
MERGULHO
eu não sabia de outro mundo
sem o som de fora
eu me assustei
silêncio puro
eu não queria outro fundo
mais que eu
barulho
mudo
eu vi o peixe
a pedra
a cor
eu pequeno
mergulho
BAIANA DO ACARAJÉ
a baiana do acarajé debaixo da árvore
espia a fome
minha fome
de dendê
a baiana vai ao fundo da panela
espia o que resta
abundância
já foi
346
a baiana de óculos garrafais
faz acarajé gigante
tempero elementar
apimentado
a baiana se mexe
se vira e altera
panela vazia
bolso cheio
SOM
saudade de la vie en rose
piaf me leva
me tira a paz
saudade de le temps
aznavour me pega
me tira o sono
OLHO
o olho não vê a água doce dentro do mar salgado
eles andam juntos ou separados?
o olho não vê quase nada do mar cheio
ele é só daqui ou do mundo inteiro?
o olho não vê o imenso
há outra luz no intenso
ROSA
a baiana tirou o espinho da rosa
não furar o pé-do-santo
ela que é tão cuidadosa
revelou da rosa o melhor
perfume da mão-de-santa
347
TAMBOR
o tambor toca cantiga de além mar
onda de orixás invade a praça
é hora de iluminar
a alma
o tambor convoca auxílio do além
barco de santos aporta na massa
é tempo de renovar
com calma
OUTRO SER
a mãe-de-santo convoca o santo
para a consulta
cabelo solto
voz rouca
a dona vira caboclo da mata
o terreiro é pura cachoeira
bicho solto
água outra
saudação
presença
desce
sobe
fala
INCORPORAÇÃO
QUEM SOMOS?
somos um no som puro e claro das ondas
somos muitos na praia sem silêncio interior
estamos em outro planeta por causa da sonda
somos quem pisando na areia volúvel da praia?
348
VISTO
eu me vi perdido no olhar
profundo
fundo
do mar
eu me vi passageiro temporário
obscuro
sisudo
no mar
eu me vi outro diante do mundo
aberto
discreto
de além mar
CALDO
a dona na onda pulo sem calma
caldo de onda se faz no fim da tarde
(quem deseja pular a onda
se torna vítima da força
contrária de si mesmo)
FARMÁCIA
o segundo mais fecundo
não na farmácia
foi de pé na areia
remédio de vida toda
349
CAPOEIRISTA
o menino da capoeira
pula pula pula
vai longe
o cabelo encaracolado
salta salta salta
cai na fronte
o menino rouba a cena
pulo salto algo próprio
de gente forte
ÁGUA DOCE
da água doce no mar
quem saberá
sabor
ido
da água doce dentro do mar
quem contará
gotas
idas
da água doce de todo mar
quem encontrará
rios
idos
da água doce do mar salgado
eu apenas sei
da tarde
em areia fina
a areia me diz do tempo
350
QUIOSQUE
na beira da praia o quiosque
enroscado no seu eixo
disco voador
no calçadão o quiosque se arma
armação de madeira
tenda popular
o quiosque move os olhos
para o côco dependurado
preço barato
RECOMEÇO
me leve
me amasse
me aperte
me suporte
me desperte
que o mar seja sempre
tempo de recomeçar
CABANA AMARELA
o sol não penetra nas casas amarelas
espalhadas pela areia
serve-se o prato
do dia
não há luz solar debaixo do amarelo
o garçom atrapalhado
dá seu prato
do dia
351
debaixo da sombrinha amarela
minha pele se defende
do amarelo maior
o sol
BEM VINDO
chegar às alturas ver a praia lá em baixo no seu fluxo e refluxo de
águas leves pedras pesadas pessoas microscopicamente projetadas
na areia
chegar de avião sobrevoando rio e mata e mar ferrugem e verde
bandeira e verde mar cores na retina cansadas prontas para
descansar
chegar nas asas de motores possantes pousar os olhos sobre a sua
estrutura urbana sobre seu projeto de civilização me trouxe de
volta o menino das montanhas
eu cheguei ao solo ao chão guardando do sobrevôo uma imagem
iluminada do lugar iluminado em todos os seus cantos e recantos
welcome Ilhéus
CARMOSINA
o terreiro de carmosina fica no malhado
um lugar afastado perto da antiga mata
o sagrado precisa de tempo para ser
compreendido
carmosina tem 92 anos e veste branco e vermelho
a guia azul é charme de baiana mãe-de-santo
a vaidade não tem idade
vai idade
352
o terreiro abriga
fome na barriga
o terreiro assina
sultão das matas
CÉU AZUL
o céu abre-se de um jeito tão puro
visto branco para manter o ritual
ser puro é sempre a busca
nunca final
o céu pleno de ar
azul vagando na atmosfera
o mar é aquarela de azul
pintada pelo olhar
eu vejo o azul do céu
na água cristalina
quase etérea
da onda
MÃE DE TANTOS
mãe-de-santo e seus tantos
tantos desejos
de se libertar
dos tantos
tantos pedidos
a mãe tem no santo outros tantos
tantos desejos
de se escutar
depois de tantos
353
e tantos bocejos
a mãe tem santos
e tantos cantos
chamar
despedir
PRATO
os pratos de beira-mar
mexem com a imaginação
molhos tantos nomes outros
moqueca
feijão de corda
vatapá
os pratos de todo mar
celebram uma língua outra
tipos tantos formas outras
casadinho
baião de dois
abará
BENTA
arrebentação: limite do mar
da ação
da caminhada
da vegetação
arrebentação: saudade de horizonte
de fonte
de monte
de ponte
354
DOIS ÓCULOS UMA FACE
os óculos escuros escondem
o mar interior
revolto
mentem sobre o que há lá dentro
fundo do mar
escuro
as lentes tampam o sentido do olhar
refletem somente onda e mar
absurdo
TROMBA
aguardo a trombeta da maré alta
soar no ouvido de dentro
chamando-me
espero o ruído dos tambores da maré
tocar nos meus sentido internos
convocando-me
vou para o mar
arrebentar
a tristeza
vou para o mar
argumentar
comigo
mesmo
355
CACAU
cacau amarelo no pé
pé vermelho de sol
escadaria de fé
cacau escuro no fogo
fogo apaga na água
chocolate logo
cacau gera coronel
coronel gira economia
casamento e lua-de-mel
o cacau é fruta bendita
adoça a saliva
PANELA
quanto remelexo das ancas
para sair uma cocada
baiana
quanto rebolado nas ruas
para vender no tabuleiro
quitanda
quanto sol na testa
para o acarajé
pimenta
quanto braço forte
para o abará
bananeira
356
MENINO
o menino em mergulho
ao fundo do mundo
no mar
a menina com orgulho
no olhar distante
admirar
a dignidade é profunda
mundo fundo
mar
PISCINA
o cheiro da água na narina
intenso
azul
o odor de cada produto
químico
bruto
piscina de hotel
GAIVOTA AUSENTE
no mar de ontem não havia gaivota
de cor alguma
no mar de anteontem também não vi
asas sobre a areia
onde a gaivota ?
ela se colou à minha imagem de mar
sem ela o mar não tem asas
357
CASUAL
me deixo quieto
para o destino
feito onda
me levar
me deixo pronto
para o sensível
feito cais
me embarcar
me deixo pacato
para o transcendente
feito guia
me destinar
FRITO
quanto tempo da rede até o óleo
quente
quanto tempo de liberdade à morte
sempre
quanto tempo da carne trêmula à imobilidade
peixe
frito
SURURU
dos nomes
nada guardei
a não ser
o cheiro
358
sururu
quem é?
dos tipos
pouco sei
a não ser
o gosto
sururu
de onde vem?
ANZOL
o anzol no seu arco
bate na água
afunda
o anzol no seu destino
carrega a isca
morta
o anzol na sua intenção
rasga a carne
viva
o anzol arqueia a linha
arco do triunfo
pescado
BICHINHO
os pequenos bichos da areia da praia
se escondem de mim
há medo
os bichinhos se enterram na areia
se defendem de mim
receio
359
eu os vejo tão naturais
escavando túneis
de minuto
eu os tenho em boa conta
não preciso deles
agora
deixo-os brincando de esconde-esconde
meu olhar não consegue ir tão longe
meu mundo é outro
BASTIÃO
na minha terra são sebastião protege
da fome da peste da guerra
(da guerra nunca entendi por quê)
na terra de Ilhéus são sebastião prefere
baianas lavando a escadaria de sua igreja
(da lavagem nunca entendi o quem)
ARAZUL
o bico da arara azul
é imenso como volta ao mundo
de colombo
a arara precisa de bico grande
para proteger a cor de dentro
o coração
o bico é preto e afiado
como espada de jorge
na lua
360
a arara azul espalha cor no ar
para espantar a monocromia
repetição
MANGUSTÃO
uma flor feita
enfeitada
pronta
mangustão
uma fruta de rua
na rua vendida
saborosa
mangustinho
uma cor de vermelho
um cheiro de litoral
lambuzar a boca
de mar
NETUNO
no fundo do mar netuno acorda
maré alta
dispara dardos de furar onda
e encher de água o olhar
netuno acordou no fundo do mar
seus dardos atravessam a tarde
profundamente
contemplação
361
SOBERANO
o mar não precisa de mim
inteiro como ele só
me abandona
pequenez
o mar não deseja me ouvir
completo que dá dó
não dele puro
de mim sujo
PESO
pedra e mar
leveza e peso
onde está meu interior
no fundo ou na superfície?
o interior do mar é vivo
como eu no fundo sou frio
por que será?
LIVRE
os peixinhos presos nas pedras
depois da maré vazando
que querem da vida
-descanso?
eles gostam da água muito quente
pedra de calor quase carinho
que querem mais que isso
-remanso?
os peixinhos brincam de prisão
362
chego a ter dor de seus corpos
encarcerados
a maré enche
liberdade
PEIXE
o peixe não se importa
sem pressa
vai e vem
a insuportável lerdeza do peixe
me desacelera
a insustentável leveza da onda
me lava
o peixe vê longe
quando quer
vem e vai
o peixe não tem pressa
deixa a onda levar
o mar é limite
seguro
PÉ
o pé remexe
na areia
cresce
o pé ferve
na areia
sua
363
o pé limpa
na areia
suja
eu coloco os pés no chão do mar
para me edificar por dentro
FLEXÍVEL
a onda dobra sobre seu peso
como o bambu na mata
a flexibilidade é lição
da natureza
MOTOR DE TUDO
fico pensando no primeiro vento
no primeiro sopro
no início
do mar
fico pensando no negócio do tempo
a onda inerte no ócio
no princípio
do mar
qual a causa de todas as causas
da física do pensamento?
RABISCO
de cada mar visto
o marisco
de cada onda vista
o rabisco
364
desenho mares na eternidade
do olhar
nada apaga
a marca do mar
DENDÊ
quente na boca
dendê
forte ao nariz
me dê
acarajé na mão
abará na folha
eu preciso de dendê
eu quero me benzer
pelas mãos
da baiana
AZUL AÇAÍ
a cor do açaí é forte
como eu na provação
como maré alta
no calçadão
a cor do açaí diz de interiores da terra
a força da raiz do tronco da copa
a força oculta dos seres vivos
que habitam as profundezas
açaí me mostra a força da terra
da areia juntinha que ergue árvores
frondosas
a força da unidade é sabedoria do mar
365
NAU
o equilíbrio do navio
onda agitada
me leva
o perfeito equilíbrio
nada abala
me pega
eu não sei do navio
engenharia de vida
eu não sei do vazio
cheio de partida
só sei do navio
guiando
só sei do vazio
angustiando
não quero navio
preciso desgovernar
não quero vazio
necessito mar
PEDRA MOLE
o índio põe nome de pedra
pedra mole
itacaré
o índio brinca de pedreiro
ele sabe de deuses
compondo a praia
que hoje dura é
itacaré é pedra mole
366
CASA DE LITORAL
casinha vermelha
e branco
casinha amarela
e tanto
casa de litoral
alegre por fora
por dentro
floral
casinha verde
e branco
casinha azul
e pronto
casa de litoral
janela no mar
entre e sente
tramela não há
TIPO DE MAR
mar de água quente
mar de frio tenso
mar de naufrágio
mar de passatempo
o tipo do mar é o tipo de cada um
como eu faço tipo para cada situação
367
PESCADO MATUTINO
não me tragam notícia de além mar
demorada frágil desgastada pelo tempo
tragam-me notícia feito peixe
pescado de manhã
pronto para servir de bom alimento
BARCO FRÁGIL
o barco não se preocupa com o equilíbrio
o mestre artesão mediu suas possibilidades
antes de lhe dar a vida
o barco não se ocupa com a sua íntima fragilidade
o mestre artesão calafetou todo sua estrutura
antes de lhe lançar no mar
NAU FRÁGIL
o navio não chegou ao porto
se perdeu
morreu
na praia
o navio não ficou no porto
não verá navios outros
desceu
no fundo
o navio morreu na maresia
ou no sal de dentro do mar
se conserva intacto
mar morto
368
QUEM?
quem vai secar as pedras depois da maré...
-eu não estarei ali para ver a secura chegar
quem vai recolher os presentes de iemanjá...
-eu não sei como trocar os presentes que ela rejeitar
as baronesas que o mar trará quem poderá tirar...
-eu não vou ver a praia verde de ondas a clarear
os brincos de pena da morena vão voar para longe...
-eu não estarei ali para vê-los plainar
o queijo de leite de cabra da vendedora esperta vai se perder...
-eu não sei apascentar as cabras para do leite queijo virar
o pôr-do-sol nos óculos escuros refletirá o mar...
-não sei se a praia da tiririca ainda estará por lá
elegia de mar
eu não vou despertar iemanjá com meus presentes com meus
sabonetes com meus espelhinhos vou deixá-la no fundo do mar
o fundo de mim sou eu agora
lembrança de algo que não tenho mais
nem nos olhos em frente
nem na alma por dentro
eu não vou subir na pedra que dá para a maré alta porque não
estarei ali para me lembrar qual passo é mais adequado às pedras
do caminho e da vida
estou seco por dentro
como mar sem onda sem maré
areia plena de corpos mortos
369
cemitério litoral
eu tenho inveja dos peixes aprisionados nos recifes coloridos pois
têm a quem voltar a maré subirá e vai salvar seus corpos minha
alma está perdida para sempre no mar
estou maresia por dentro
ressaca de altas ondas por fora
eu não vou ancorar no cais
o navio naufragou fundo
eu não verei os golfinhos na praia bailando no ritual de
alimentação eu sinto fome desses momentos imortais na sua
inconsciência eu volto para o mundo dos sérios
odô miô, iemanjá
CUPUAÇU
o gosto amargo da fruta de mar
eu confundo se de mar ou de mata
é tão unificado esse espaço entre
água e terra
o gosto amargo do cupuaçu vem
me libera do doce
o doce puro
prefiro um pouco de amargo
para aprender
o gosto forte do cupuaçu tem
me torce o hálito
sem doce puro
opto pelo amargo do branco
para me entender
370
GUIA
a guia azul da mãe-de-santo
azul branco vermelho
tantas cores para tanta fé
me guie santo de outro mundo
a guia é uma coroa no pescoço
veste as armas de santo invisível
opera milagres de voz rouca
de voz pouca mas sábia
a guia beijada por carmosina
é azul de um azul
sem precedentes
ESPELHO
o mar se sustenta
peso
estruturas
nos ombros de netuno
o mar suporta
leveza
corpos
no espelho de iemanjá
HIATO
a vida no litoral sobe e desce
não as ladeiras do tempo
mas as alegrias do dia
o dia no litoral é ondulado
vai e volta e se dá e se perde
como alergia de mulher grávida
o dia no litoral é cheio de hiatos
371
CASA
a casa de cor frágil
(precisa de veraneio)
a igreja de cor violeta
(precisa do natal)
a esquina fica cheia
(precisa de novidade)
a vida do litoral
em cidade miúda
é vida curta
dezembro
janeiro
carnaval
(grande parêntesis)
FLOR
o hibisco no jardim belisca a língua
do beija-flor
a bromélia perfumada morde os lábios
do zangão
o coqueiro-da-bahia seduz o olhar
da formiga
a orquídea do litoral fica prenhe
de umidade
372
SUOR
o suor do corpo é muito
o cheiro da praia é surto
necessidade
de coito
o suor no rosto é broto
de cada desejo feito
saciedade
de corpo
MENINAS DE PORTO
no bataclan
meninas de porto
abertas como barra
enchem o cais
as meninas de ilusões
compostas e descompostas
novas e velhas
falam demais
as meninas de respeito no quarto
trabalham para financiar uma vida
fora do bataclan
não há realidade
SERIEDADE
acordei são paulo
adormeci itacaré
isso é ruim ou bom
não sei como é
373
CAMPO QUÂNTICO
o mar quando imerso nele
é meu campo quântico
campo quântico do meu magnetismo
natural
campo quântico
da minha emoção
MEMÓRIA
minha alma sabe do mar
do impulso de arrebentação
do querer invadir novos mundos
trazer novidade de outros todos
minha alma sabe do mar
da lágrima salgada alívio imediato
da maresia corroendo como tempo a relação
sei da vida e tantos prantos
JEITO
navio pesado
longe da praia
navio levado
motor e ronco
navio de porto
não sabe da praia
apenas os pequenos
resistem ao encalho
eu vi uma chalana tão pequenina na praia
me identifiquei com ela
-precisa-se de jeito para navegar
374
DIALÉTICA
a corrosão do moinho é semente
a revelação da arquitetura é o vazio
a redenção da música é o silêncio
a negação do mar é gente
POEMA DO MAR NÃO
o mar é completo
não precisa de mim
sentidos
tato onda
visão horizonte
paladar sal e doce
olfato maresia
audição arrebentação
o mar é pleno
não depende de mim
existe antes
existirá depois
o mar é todo
flutua denso
medita tenso
eu não
FRUTA
frutas de mar são cheirosas
coloridas e vivas
energia
frutas de mar são prazerosas
375
cheias de história
vitalidade
frutas de mar
caem no chão
frutas de mar
enchem a mão
INTERIOR
dos lugares de paz
um se torna eficaz
dos poentes de luz
um se põe para mais
dos sonhos que traz
ali é sonho demais
um lugar especial
meu mar
um lugar essencial
mar interior
VENTO
há um sopro no coração
vento litoral
me tira
da rota
me levanta
me joga na pedra
me põe no caminho
376
me devolve o sentido de tudo
me revolta
me tranqüiliza
me confunde tão fundamente
não sei se é vento ou apenas eu em redemoinho interior
eu me arrebento em cada pedra da vida
rio de cada movimento de maré interior
CLARO/ESCURO
búzios brancos
búzios escuros
a sorte
dois lados
o claro
o escuro
a vida
a morte
os dedos jogam búzios
viram e me viam
por dentro
os dedos jogam búzios
caem de tantos lados
eu todo
búzios dedos dos deuses na vida
eu me perdi no mar
no mar de dentro
revolto
feita brisa mal resolvida
377
MARÉ BAIXA
eu me perdi no estar
no mar de sempre
envolto
feito criança prestes a perder o colo
eu me perdi no mar
no mar da mente
consciente
feito alucinado pelo corpo
eu me perdi
quero me achar
maresia se vai
eu me perdi
volto eu prometo
vou voltar pra mim
eu me reencontro
no mar de fora
completo como eu
quando quero ser pleno
basta deixar a maré
baixar
levemente
constantemente
MARESIA DENTRO
agradeço ao vento litoral a maresia dentro
frescor que ultrapassa a tarde
a noite
a madrugada
agradeço ao vento litoral cada hora de mar na pele
378
nas lentes dos óculos
me ensina me educa me obriga
olhar para dentro
felicidade
SILÊNCIO COMPLETO
silêncio: ele é completo demais para algo dizer
calem-se as vozes
as preces
as músicas
silêncio: ele é total para algo pretender
façam reverência
olho fixo
totalidade
MAR COMPLETO
o completo é delicado
mas inteiro
o completo é purificado
mas cheio
o completo é mar
eu sou beirada
COR SEM NOME
de todas as cores do mar
uma delas não sei
indefinida
permanece
aquela: sobressai num estágio
de calmaria
aquela: sobrevai num período
de maresia
379
COR REVELADA
fim de tarde
meu olho fixo
na onda ensolarada
o sol rouba a cor do mar
me leva junto e fico
sem saber a cor da cor
pôr-do-sol
eu me ponho no pôr-do-sol
não sei colorir
SINUCA
o movimento de onda indo onda vindo
uma sinuca de bico
o taco o taco o taco
quem acionou?
o movimento começa de um outro movimento
qual o outro movimento se somou ao já existido
nesse tempo diverso do que eu ali
dei por visto?
CASA VELHA
a casinha na ladeira tem data de fabricação
ou o tempo estampado na sua face
denunciando a idade
a casinha tem delicado contorno de linha reta
ou a retidão da família na sua planta
denunciando a moral
380
MOÇA
a moça brinca de vender
frutas de litoral
ou um litoral de frutas
cada cor cada preço
a moça de fé robusta
vende sem desconto
o preço da feira longa
é descanso à noite
RETORNO
voltarei apesar do tempo urgente de retornar
ao lugar de onde vim para cá
voltarei apesar da vida acontecendo lá
num ritmo alucinante de bem estar – será?
voltarei apesar do tempo ser dos deuses
e eu ser apenas uma onda perdida
de mar
voltarei apesar das pessoas que o destino dará
e eu ser apenas a monotonia de uma onda
que não pode parar
voltarei apesar de mim
381
CONFISSÃO
para Manoel Bonfim
confesso: não sei de mim tanto quanto deveria
esforço-me para conquistar território meu
em algum lugar
confesso: poderia ser melhor maior mais
represo-me em água de passado sujo
de tempo parado
confesso: eu não deveria estar onde estou
liberto-me somente em presença do mar
aqui sou
RUGA
a ruga no rosto
o rosto no sol
o tempo
passou
a fuga do posto
a isca do anzol
o tempo
matou
a velha é livre
mostra sua face
382
MUNDI
o mundo cabe
onde se sabe
dele
o mundo vale
onde se cale
ele
SONHO DE HOTEL
o sonho no quarto de hotel é cheio
colorido e pleno
a onda invade
a imaginação
o sonho no quarto de hotel é tanto
versátil e sábio
a onda penetra
a emoção
CAFÉ DE POUSADA
eu quero dizer do café da pousada
é tão variado
visual
eu quero dizer do hibisco sobre o bolo de chocolate
ou da banana assada amarela feito sol de praia como
se ela saísse do quintal agora
eu quero dizer das fatias cortadas milimetricamente
ou do suco de fruta espremida na hora como se o pé fosse bem na
janela
eu quero dizer da manhã
o alimento
casual
383
NOME DE PRAIA
a praia da concha
sem concha alguma
a coroa vermelha
sem rainha nenhuma
o cabo frio
de frio eterno
praias reais
COLONIAL
o colonial veste a casa
o chapéu de século antigo
protege do sol
o colonial reveste a fachada
roupa colorida para ver nosso senhor
dita a moda litoral
MARISCAR
ao mar a palavra
ao mar a letra
a mim casco
de marisco
eu me entrego nos braços do mar
eu me revelo nos braços do rio
eu sou quem sou
se me arrisco
viva o mar
mariscar
me arriscar
384
FAROL
a luz no fim do mundo
o farol
eu preciso me orientar
luz interior
o farol se acende
eu me guio
volto
ao meu colo
AZUL VESÚVIO
na praça da cidade o azul de vesúvio
se destaca
como se destaca de corpo inteiro
Jorge Amado
na praça da cidade do cacau há um monte
de mesas na calçada
como se destacam as pessoas se alimentando
de palavras soltas no ar
bar vesúvio de cor azul
como céu de litoral em janeiro
puro janeiro
sonho
COLÔNIA
o chão de pedra
calça meu pé
de calor
o chão do tempo
informa quem é
de valor
cidade colonial
385
MERCADO
o mercado de artesanato
caótico
prático
o mercado de artesanato
fabricação
própria
(cada um contribui com seu papel para que o mercado seja a cara
de cidade litoral)
MERCI
obrigado pela mata
obrigado pelo litoral
a todos os santos de cada mata
a todos os santos de cada onda
obrigado pelo pecado
obrigado pela absolvição
a todos os santos de toda hora
a todos os santos de cada praia
obrigado
CASCA
o tempo veste a bromélia de sempre
tira a pele troca a cor verde amarelo
o tempo despe a velha do nunca
fica a obra acabada sentimento sincero
386
FAMÍLIA
a família faz plano
depende do ovário
são
a família quer crescer
depende do menino
grão
a família vai aumentar
depende de papai-mamãe
chão
VIAGEM
se eu me indispuser no balanço do navio
enjoei de mim mesmo
não do balanço do mar
se eu não suportar a viagem pelo mundo
cansei desse corpo meu
não da alma de amar
CHEIO
estou cheio
como vento forte ressaca maré alta maresia
tudo em excesso de mar
estou cheio
eu creio chegou a hora de cais antes de mais e mais
tudo em processo de vida
estou cheio
o balaio que não encontrou comprador
tudo remexe e é dor
estou cheio
preciso renovar o estoque para todo toque
tudo aquece e é furor
387
CENÁRIO
a força do quadro
a louca de um troço
o menino do jambo
a menina do jongo
vi a cena
puramente
janeiro
mar e praia
CASTELO DE AREIA
ela constrói um castelo
tão perde a noção do tempo
de estar na beira do mar
ela edifica uma torre para a eternidade
alta que cabe uma rapunzel e um príncipe
mas o encanto se acaba
castelo de areia
CARNAVAL
amor de mar
é para sempre
ou até a próxima
onda
amor de mar
é eterno
ou até a outra
estação
amor de mar
é imortal
ou até outro batuque
CARNAVAL
388
ALGEMA
soltei as algemas
liberei os pulsos
corri mar adentro
a criança armou o circo
dentro da alma
ou se pôs para fora
sem amarras
a criança livre
feito gaivota
em vôo idiota
tempo perdido
é que as gaivotas
não voam apenas
observam a lerdeza
dos peixes e se divertem
serrei as algemas
da cidade grande
sou pequeno como nasci
NAVEGANTE
o navegante doma a onda
cavalo bravo solto do mar
o navegante sonha o peixe
anônimo alimento a fisgar
o navegante rompe a matéria
flui sobre a onda mãe
o navegante aperta o leme na água
389
o ritmo do mar necessita equilíbrio
viva a vida do navegante
precisa como barco elegante
CILÍCIO
edifico a arquitetura do navio
como um arco triunfo
mortifico o peixe com cilício
como um condenado à fogueira
AMARRA
o silêncio do pensamento
é pleno diante do mar
o silêncio do tempo
é total perante a maré
difícil fugir dessa amarra
os tímpanos não funcionam
o pensamento não se concatena
estou preso no barulho do oceano
MAR OUTRO
o mar é um só ou muitos como eu?
o mar é totalmente feliz
porque não chora
não ama
não ora
o mar é plenamente feliz
porque não envelhece
não nasce
não diz
390
POEMA DE MAR
consulta a linha
falta pouco
para o mar
virar poema
outro
vário
meu
seu
VERÃO
na cabeça há cérebro
noz recheio da alma
cabeça é cérebro
mente sou eu
o movimento do rio
foz final de linha
inverno é frio
verão sou eu
ASA ABERTA
o destino carrega para o mar
eu me destino para o chão
a asa quer saber de voar
eu vôo quando sei amar
o destino é intenso
comensurável
no chão pisado
na asa aberta
391
NOME DE SANTO
de santo não entendo
é poder demais de outro lado
de santo não compreendo
é saber demais depois de morto
de santo não sei nem a data de nascimento
eles estão vivos na boca do povo
DESPEDIDA
preciso ir embora
levarei o verso
na garganta
vou libertá-lo
na tela
depois
sem cela
o verso
livre
voltará em boa hora
COTIDIANO/2009
INSTANTÂNEO
meu peito tá que tá cheio
de poesia
se espalha
me empala
eu no meu peito que tá cheio
de alegria
se extravasa
me gargalha
392
MEIO DA CIDADE
o dia é cheio de plenitude oculta por trás de postes
de pastelarias lotadas de ar e vozes e queijos
será que há nesse pastel de vento um pouco
de tempo? Haverá!
o dia me recebe bem no meio de seu centro da cidade
de ruas escuras da madrugada em horário de verão
será que há nesse relógio da vida um todo
de tempo? Quem viver, verá!
GAIOLA E ASFALTO
a gaiola no chão
um passarinho
de bico aberto
de branco intenso
morre de medo
o moço fumando seu cigarro
sem se preocupar com o objeto
de asas de falas de tanta diferença
eu quis libertar as asas do passarinho
mas me permiti apenas contemplar
tenho inveja da liberdade
das asas que se recusam
a voar
tenho inveja da caducidade
dos homens sérios que usam
a cidade para se amofinar
393
COTI DIA ANO
dentro do cotidiano
cabe dia
cabe ano
centro do dia-a-dia
salve o ido
salve o ia
EXCERTO URBANO
a menina brinca de tempo futuro
roçando a face morena na janela
do coletivo azul
de céu
o homem xinga em pensamento o ontem
olhando um jornal abundante em violência
da vida coletiva
da cidade
a mulher pinta o rosto preparando o sorriso
já dentro de um escritório antes de nele estar
a vida é aflitiva
em toda idade
OS DE MENOR IDADE
algo foge quando corre o menino de rua
espanto geral espalhado no ar
o menino sem casa mora na casa toda
a sua cidade ou seu presídio
a sua possibilidade
ou seu exílio
394
a sua menoridade
ou seu sacrifício
algo morre quando o menino de rua sofre
eu me canso de persegui-lo
ROTINÁRIO
eu me envolvo na rotina de cabeça
como fumaça de incenso
no corpo
abraço
eu me devolvo à rotina diariamente
como nuvem num ciclo eterno
de chuva
secura
eu vou para o meu trabalho
como um obstinado
no tempo
preso
vivo a rotina
sou da rotina
REVISTA
abro a revista colorida por dentro e por fora
domingo dia bom de fazer leitura
rever o tempo do ontem
passado
fecho a revista e possuo o dado da realidade
domingo é fruto de uma semana árdua
fecho os olhos e me volto
amassado
395
o sono depois da notícia
amassa a cor da revista
a notícia de leve
fragmentada
PÃO MATINAL
o pão quente da padaria
no domingo é mais
mais tempo
para si
o pão pronto da calmaria
no domingo é tal
muito sal
purgação
INÚTIL POEIRA
a poeira por sobre o prédio
parada
estática
está
a poeira no andar último
ninguém limpa
ninguém percebe
sujeira
a poeira se consome no vento
o vento percebe sua existência
eu também navegando os olhos
pelo cotidiano do dia na cidade
396
PRECE DO SONO
eu me descubro no acordar cedo
tão cedo que os santos se espantam
com a prece
pouca
eu me percebo pleno no amanhecer forçado
quase enforcado por um relógio imaginário
estou pleno no trabalho de dormir
e pegar o serviço pelo chifre
eu estou cheio de trabalho ao dormir
e preciso me refazer para mais trabalhar
meu tempo de descanso é pouco
o corpo reclama
a alma reza
tola
MURO
o muro divide a rua entre
quem está na rua
ou no lote
noto no muro
o invisível
do porte
vejo no muro
a mensagem
do óbvio
o muro fecha a rua
feito margem
de rio
397
DE UM PONTO AO OUTRO
a cabeça balança na curva
se curva
debate
pra frente pra trás
a cabeça ginga na parada
se turva
batida
em toc toc no encosto
a cabeça com boné
lenço ou outro apetrecho
se liga novamente
ponto final
JANELA DA SERIEDADE
o homem na janela viaja
a cor do lado de fora é muita
a mulher na janela dispara
a dor para fora de si que é vária
os sérios se sentam
sozinhos na janela do coletivo
AZUL
a conversa fácil
o detalhe
breve
a viagem ágil
o trocador
serve
398
o ônibus azul vai
ponto a ponto
enche
o coletivo sai
carro tonto
vende
eu tenho lugar cativo
nesse mexe remexe
da coletividade urbana
LANCHE RÁPIDO
a lanchonete rápida
serve e serve e serve
não se pode demorar
o tempo está quase passado
mas se ainda vai passar
por que não deixar o tempo
esfriar feito café no lar?
a lanchonete tem caixa
ficha salgado prato
não se pode esperar
o relógio agride o pulso
mas se o relógio não para
por que não desfrutar do tempo
como aquele de colher manga madura no quintal?
TEMPO JUNTO
o tempo do coletivo
é de porta aberta
porta fechada
roleta rodada
grávida sentada
399
o tempo do coletivo
é de ponto cheio
ponto vazio
trocador sonolento
idoso identificado
FAST FOOD
o tempo de um fast food é rápido
como uma fecundação indevida
o tempo da comida rápida é sinal
de eficiência do sistema pague-pegue
o tempo é ligeiro
na lanchonete
de vermelho
letreiro
VIRA-LATAÇÃO
cachorro na madrugada da cidade
deixe o lixo para o vira-lata
caridade
pomba na manhã do centro
jogue a pipoca para a vira-lata
asa quebrada
rato na última hora da noite
caia o resto de comida ao vira-lata
da boite
400
O TEMPO LOUCO DA CIDADE
enquanto a vida passa lentamente
na cidade interiorana
o tempo foge
aqui
enquanto a moral permanece
na cidade conservadora
o tempo muda
daqui
enquanto os homens são apenas
da cidade ou da roça
na cidade do interior
aqui a vida é outra
enquanto as mulheres são tolas
na gravidez ou no parto
na maternidade do interior
aqui o tempo gera a louca
enquanto eu procuro me encontrar
no interior de mim mesmo
aqui nessa cidade grande
eu me perco em território ermo
DONO
descompostura
na praça
pública
sou de outro
tempo
do tempo
de ser
sou de muito
401
tempo
do tempo
de crescer
sou de longo
tempo
do tempo
de permanecer
sou de pouco
tempo
do tempo
de se perder
a praça é publica
eu sou apenas
dono de mim
FLOR
morrer de amor
não quero
prefiro a flor
mesmo sem cor
morrer de dor
não posso
opto pela cor
branco gelo
O TEMPO COTIDIANO
o tempo dia mês ano calendários fundidos jungidos unidos
devassados em rugas amontoadas na face
o tempo se traduz em ação perdida em comoção vendida em
aparência pobre de sentimento
402
o tempo me rouba a paz como faz com folhas secas em estações
variadas há tantos e tantos e tantos dias varrendo da face da terra o
velho o ido o passado
o tempo me angustia nesse vai e vem de onda sem fim rasgando o
sentido em mim de mim pra mim em contentamento de ser e estar
no mundo mesmo vazio
o tempo me roda em seu ciclo puramente insólito e vou girando
em transe único em constante desavença entre as três dimensões
do ontem do hoje e do amanhã
o tempo me leva para lugares reais e lugares que somente a mente
saberá dizer para si mesma onde foi o que viu o que aprendeu o
que sofreu
o tempo sofre em mim a angústia de ser
o tempo morre comigo quando se faz perder
o tempo ferve em brasa para depois desaparecer
o fogo do tempo é passageiro
a alma do tempo é ligeira
a dor do tempo é cotidiano
CASA
para Mariângela Pena Andrade
a casa casou-se com todos
do cão no quintal
ao sapatinho de metal
a casa abrigou a todos
da artista de fases várias
ao engenheiro de poucas falas
a casa adormeceu a todos
de noite a menina de cabelos longos
de dia o casal no sofá em sonhos
403
a casa cresceu árvores no quintal
passarim de tons psicodélicos
deu bougainville goiaba flor para o natal
a casa tem arte
de cima em baixo
do teto ao tato
a casa tem paz
de céu e família
construção fugaz
(a arte mexe na casa pela manhã e de tarde já há outra obra
vivendo pronta para ser apreciada
a arte ali faz parte)
DESEJO
queria que fosse verdadeiro
o sopro do pulmão
eternamente
pronto
queria que houvesse eternidade
na mão sobre o coração
fluentemente
sonoro
queria que nada me retirasse daqui
os olhos buscam o por-do-sol
calmamente
colorido
queria que fossem as aves em árvores
o roçar de suas penas me deslumbram
esvoaçadamente
ventania
404
queria que o tempo estivesse oculto
nada de suas leis reveladas
como as rugas na face
como eu feito estrada
queria apenas que o tempo me contivesse
sem me expurgar de sua roda da fortuna
ANO PASSADO
o ano foi tão breve
feito forno de quitandeira
transformando massa
em biscoito de goma
o ano foi tão leve
feito papagaio de menino
alterando a rotina dos dias
voando no alto da santa rita
o ano se foi
muito de mim
trouxe
de volta
o ano se foi
um outro em mim
foi-se
embora
o ano tem 365 dias
ou 366 noites
eu tenho uma vida
agora
405
DEDARATA
no jornal ele passa
de um dia para outro
a notícia envelhece
como nós
na revista ele cansa
de ser um dado morto
a revista tem dedarata
como nós
ele feito 14 bis voa hoje
volta irrequieto Dumont
inventa outra máquina
de parar as asas do tempo
USINA
divido o dia em três turnos
como um operário da indústria
de manhã é hora de pegar no batente
a estiva do porto – acordar
de tarde é fuga da manhã com sono ou sem sono
o dia prossegue – estar alerta
de noite já penso no dia seguinte e me deixo levar
pelo som do futuro – reinício da tarefa
divido a vida em três turnos
como um joão-ninguém diante da vida
na infância – já foi! – peguei o mal de viver
na maturidade – está aqui! – resolvo o mal de querer
na velhice – virá? – vou pedir para renascer
sou operário da indústria
a vida é um existir que se desenha
406
APARTAMENTO
os blocos se deslocam pela janela de vidro
o ônibus consome grande atenção para o urbano
as cores são intensas e vão de um azul tolo
ao salmão não grelhado
os apartamentos sobem um sobre o outro
sobrepondo histórias de vida
de muitas vidas
paralelas
o apartamento fecha o cerco
ali dentro se é o que se é de fato
a voz a música o fogão a gás
o espaço é feito gente de cimento
BANHO
o banho perfumou o banheiro
eu saí da fumaça repleto
de outro cheiro
o banho consumou o dia inteiro
eu me refiz ali dentro
para outro feito
o banho enxugou o suadeiro
eu fechei os poros
vou dormir refeito
URBANIDADE TEATRAL
a fumaça xamânica do trânsito
a pomba de pernas tortas na calçada
a árvore seca em pleno dia de chuva
eu perdido como todos na rua
407
o anúncio de venda de lote no poste sem data
a mensagem no muro de um grupo sem identidade
o prédio fechado para reforma sem nenhum operário
eu identificado com o vazio no meio da rua
o policial obsoleto no seu posto de trabalho
o ninho do pardal dentro do poste de cimento
o alarme da motocicleta acionado por ninguém
eu presentificado diante de fatos mudos
a cidade dorme cenários
eu os revelo para mim
a cidade fornece cenários
eu os guardo sem fim
cenário inútil de urbanidade
SERVIÇO PÚBLICO
o que se passa ali dentro quem faz o quê em cima de um móvel
qualquer naquele espaço condenado a ser algo na minha
imaginação (interrogação)
quem conquista quem o homem ou a mulher a mulher ou a mulher
ou o homem ou o outro homem naquele espaço minúsculo de
sexualização (interrogação)
o dinheiro sai do cartão da bolsa em viva moeda em morta
civilidade o casal é carinhoso rancoroso será um amante será uma
experiência nova (interrogação)
eu me pergunto
diante da placa
em vermelho
MOTEL
408
BOCA DO LIXO
a chuva escorre para a boca-de-lobo já com azia de tanta impureza
engolida na tarde de verão da cidade
o bicho ‘tá solto
as moças e meninos dos lugares escuros e altos já com ardência
nas partes pudentas na noite de verão da cidade
corpo de delito
PULSAÇÃO COTIDIANA
o cotidiano traz tristeza
alegria variada e incolor
o cotidiano pulsa melancolia
existência falseada na sombra da dor
a vida pulsa forte
no amor
na alegria
ou dor
EU IDENTIDADE
a mente não apaga a identidade
não a perco por um segundo sequer
eu a tenho como eu todo
repleto de mim
a mente não decifra o mistério interior
eu possuo luzes que ainda não iluminaram
insights que não se decifraram
foco de mim
409
ESTAR-VIVO-E-EM-PÉ
gostaria de evitar o assunto mas não posso
aparece sem querer
não posso
dele sair
gostaria de provocar outra expressão mas não ouso
surge sem de mim depender
um fosso
fundo
é esse detalhe
é essa mancha
é essa falha
existência
TRAJETO BREVE
estou na superfície do dia
pairando por sobre o sentido
entre o prédio gigante demais
e minha pequenez de sombra
estou puramente sem paciência
o trânsito caótico de pessoas despóticas
o carro amassado pelo moço sem referência
e meu trajeto breve no mundo
SACOLA DE COMPRA
a sacola sacode toda seu polímero
a caixa lá dentro encobre o objeto
tirado da vitrine de uma loja
real
410
a sacola pula na mão suada
a fruta lá dentro pede pra virar salada gelada
engolida às pressas no fim de tarde
nutricional
a sacola pede mão
a mão pede água
a água pede rio
o rio pede fim
SILENCIOSIDADE
esse silêncio prenunciando o seco na boca
na garganta na voz na trama da vida
esse silêncio absurdo
suplica sentido
esse silêncio
me fere
silêncio
eu
FILOSOFIA
a filosofia não desmente o tiro no pé
antes sabe muito bem de quem veio e pra quem é
a filosofia não mata ninguém
antes esclarece - morrer é muito bom!
(na hora certa!)
e convence o desavisado
a melhor hora aquela não é
a filosofia não tem nada de complicado
411
antes é o leitor de teses
ousando dizer da complicação como hipótese
complicado é o filósofo distante da fé
a filosofia alivia o fardo da existência
não coloca mais peso e mais dor
só quem tem medo de viver
faz da filosofia seu horror
viva a filosofia
sem o suicídio
banalizado
de amor
viva a filosofia
sem o precipício
estigmatizado
do sofredor
eu sou feliz porque penso
eu sou feliz porque ajo
eu sou feliz porque sinto
plenamente
LEVE
leveza
quero ser leve ao andar
mais leve ao me retratar
leveza
essa pureza interior
ausência plena de dor
412
leveza
esse estômago vazio
da fome saciada de amor
leveza
essa pena voando pela janela
despreocupada do pouso forçado
leveza
esse sorriso breve e verdadeiro
desocupado da rotina do obrigado
PLACA PUBLICITÁRIA
a placa enferrujada na parede
no segundo andar do prédio
demolido por dentro
vazio de paredes
a placa verde branco preto
de número do telefone apagado
por que não tiraram ela de lá
se puderam arrancar sua memória?
a placa morre sem sentido no alto
do segundo andar do prédio
vazia como ele vazio
devolvam a sua dignidade!
MANIFESTO DA IDADE
quando o tempo passa por todo o corpo e desacelera
e por causa desse tempo passado a vida fica mais bela
eu preciso dizer que o tempo na pele é tatuagem indomável
eu necessito dizer que o tempo é uma herança glandular
413
manifesto minha inquietação contra todos
negadores do tempo na carne e no osso e no rosto
o tempo é deixado de lado como se cada célula fosse culpada
pela grandeza da experiência da existência acumulada
manifesto minha repulsa contra as rugas despistadas
como se fossem piadas as frases de amor eterno passageiro uma
vez que o que é eterno se guarda na alma não no corpo
esse poço sem fundo de tantas necessidades temporais
eu nego a negação do finito
o rosto eternamente belo
sem as curvas do tempo
com versos e prosas
eu me recuso a acreditar que somos um tempo sem idade
a idade é a roupa do tempo no corpo e a beleza da alma
posta no mundo para todos verem
a idade é um cartão postal
a idade é tempo vivido como água de mar tem sal
como comida boa tem tempero que agrada e dá paz
a idade não pode ser um feio
a idade é sonho inteiro feito
eu manifesto contra a prepotência dos anos que não passam
os dias os anos as eras passem no corpo e na alma
marquem esse meu objeto no mundo todo agora
preciso sentir em mim o tempo pleno
eu não suportaria me equivocar diante do espelho
prefiro assumir cada ano vivido pois só assim
sou autêntico diante de cada sonho realizado
uma miragem contrária a isso me faria outro
me dêem a idade merecida
não tenho vergonha
414
somente alegria
de ser meu tempo
me levem na lembrança com minhas rugas
com meu pouco cabelo com minha voz rouca
eu digo ao mundo inteiro nada valeu mais a pena
do que o cotidiano me recriando
deixem-me na idade que eu tenho
pois não me surpreendo
sei bem! daqui a alguns anos
terei outro corpo
outro corpo
outra idade
outro tempo
pra contar
deixem-me com meu espelho
com minha idade
com meus anos
e meus dias
eles serão sempre meus, eu manifestamente assumo isso
BICICLETA
a bicicleta vermelha
de aro de alumínio
desce a ladeira
a bicicleta inteira
é geometria
equilíbrio
a bicicleta sente
a condução
do ente
415
JOGO DE PALAVRAS
eu escrevo sentidos muito sentidos
eu descrevo imperativos muito imperativos
eu sinto sentimentos muito sentidos
eu minto palavras para dizer nada
quando eu quero a palavra me mostra
quando eu não quero a palavra é ostra
quando eu preciso a palavra é sentido
quando eu despisto a palavra é mentido
a palavra é chave de significados
procure meu jogo de esconde-esconde
ILUMINAÇÃO
o dia revela à cidade seu rosto puro
suas esquinas nuas
seus postes feios
suas feiúras
o dia dá à cidade seu corpo todo
suas árvores de tronco escuro
seu ar fétido ou puro no alto
sua chuva suja na sarjeta
o dia deseja à cidade a sua verdade
a luz do dia desse ano é puro
a luz desse momento
é dia pronto
BAIRRO
o bairro tem vidas paralelas
como a minha a sua e aquela
o bairro tem ruas convergentes
como eu você e essa gente
416
o bairro tem aves em todas as árvores
como eu tenho ninho na mente para dar em asas
o bairro tem cachorros atrás do portão
como eu sou fera para defender meu coração
o bairro abriga muitas histórias
como eu me carrego na memória
FLORAÇÃO
a flor do jardim está tão apagada
não suporta mais o peso da cor
já caída pedindo que a terra
consuma sua seiva e cor
a flor se despede do mundo
quase feliz pela vida em volta
abelha formiga besouro
o olhar de alguém na janela
CENA DE FAMÍLIA
será que a menina no colo da mãe
enrolada no pescoço
vê o que eu vejo
pela janela
de vidro
do ônibus?
será que mãe atada ao corpo da filha
preocupada com o horário
crê no que vê
no mundo cão
fora do coletivo
chão?
417
FECHADO PARA BALANÇO
estou agora como o bar do bairro na segunda-feira não me
incomode não bata à porta hoje estou fechado para qualquer
situação
estou agora como a árvore cortada pelo corpo de bombeiros
depois da tempestade sem graça e podado para qualquer
conversação
estou agora como o ônibus de portas fechadas passando a mil
quilômetros por hora no ponto repleto de pessoas estou em outro
mundo
estou agora nutrindo raízes no cotidiano
RUÁRIO
a rua vazia demais para ser eu um transeunte estava eu parado
dentro de um espaço coletivo observando a miséria humano do
trabalho de um dia exaustivo daqueles
a rua parecia um cadáver solto e sem ninguém para chorar seu
defuntamento sem cheiro sem cor sem nenhum significado
daqueles
a rua estava tão magra como a moça anoréxica mas ainda forte
como o rapaz vigoréxico saindo da academia com os braços
cheios de músculo e vazio de significado
a rua me apertou por dentro
me jogou num mundo obscuro
a rua me fez silenciado na noite
de retorno para casa
FIM DE MÊS
fechar o mês
abrir novos códigos de barra
a vida é cheia de pretos e brancos
418
finalizar o Mês
abrir uma nova conta no banco
a vida é feita de faz de conta
reinventar o mês que parece vai se repetir
fugir da rotina de acordar e levantar
a vida é feita de cotidiano
SONORO
o telefone toca e me desperta
da acomodação da novela
nada revela
o telefone treme e me chama
me remove das pernas para cima
sempre acelera
o telefone fala
por alguém longe
eu de perto
vivo também distante
CÃO
o portão se abre
o barulho das chaves na mão
despertam os ouvidos
latidos
o portão se fecha
o som dos passos na escada
aceleram o coração
batidas
o cachorro reconhece
o cheiro do dono de longe
419
PISCADA
o som do olho espiando a vida
a voz da mãe chamando para a comida
estranho som do dia-a-dia
a voz rouca da louca da rua
a verruga dolorida na volta da lua
pequeno ciclo de mão e pua
SIRENE
a sirene dos operários espanta as aves
avisa do tempo
pressagia a rotina
a sirene oca por dentro roda as horas
maltrata o corpo
quando demora
a sirene puxa uma força estranha de dentro
a mente necessita de um som mais puro
que o dia duro
FLUIDEZ
o cotidiano flui apesar
da hora gasta inútil
o cotidiano vai apesar
do tempo perdido fútil
o cotidiano continuará apesar
de todo verso lúdico
o cotidiano é mar laborioso
de ir e de voltar
420
MANHÃ/2009
ACORDAMENTO
eu acordo das trevas da noite pronto para a novidade
uma noite feita um dia a mais no calendário
suporto a manhã devagarzinho
eu decifro a luz do dia ressurgente tonto da suavidade
o corpo abandonado na cama para refazimento
sustento a manhã divagando sozinho
DESPERTADOR
o despertador tocou tão alto
o primeiro som espantou
as aves do sonho
o despertador afundou as notas
no tímpano esquerdo
direito me levantei
o despertador me roubou da noite
do sono do sonho do repouso
eu revivo nesse toque
forte
OSSIFICAÇÃO
os ossos rangem dentro da estrutura de músculos
os operários erguem meu corpo
construção no mundo
os ossos deslizam um sobre o outro para não se partir
os engenheiros calcularam meu todo
edificação sem fundo
421
eu sou feito de ossos concretos
um prédio de carne e dor
de manhã a edificação sobe
de dia quero construir amor
PRESENÇA
quando meu olho direito mira seu olho esquerdo
a manhã se dá sem medo
quando eu amo bem cedinho o dia se torna eterno
a manhã me sacia cedo
quando eu tenho seu corpo aquecendo minha frieza
a manhã me faz nascer o sol
quando eu toco sua pele fertilizada pela noite
a manhã se faz moldura perfeita
SONHO
lembro-me dos vultos dos nomes talvez quem sabe da cor
mas é vago no final das contas
a manhã roubou a certeza
do sonho
lembro-me pouco tão pouquinho que fico com pena da minha
mente
não conseguiu identificar por um segundo o cenário múltiplo
a manhã levou para sempre
meu sonho
quando a manhã chega
com ela a luz
com ela a sede
422
quando a manhã rompe
com ela vou
com ela me perco
o sonho vai junto
ladeira abaixo
sem medo
do passado
MILAGRE MATINAL
sou o sacerdote da manhã diante da cozinha
a água quente pronta para a mutação
café em pó virando bebida
reparto o pão em vários pedaços e me dou o sabor
é que na manhã o pão solitário parece comunhão
do corpo com a alma
na janela o sol vai aparecendo como milagre
a retina não se acostuma à visita sagrada
do astro deus em minha vida
recolho todos os utensílios do início do dia
lavo cada objeto com água quase benta da rua
começo o dia de fato
TRINTA MINUTOS
o intervalo entre o acordamento de todos os sentidos
inclusive o mais importante
da minha inteireza
é de meia hora
exatos trinta minutos entre acordar de fato
423
sair no exato tempo de um coletivo azul
passando solto com seus pneus pesados
girando o meu mundo
trinta minutos me separam da casa
do mundo do trabalho
esse mundo fosco
da rotina
trinta minutos me deixaram para trás
da casa abrigo
eu me vou
para o dia
BICO DE LACRE
o bico de lacre é uma ave pequena
de tão pequena cabe no vermelho
da lembrança
seu bico forte
seu vôo curto
sua pena cinza
seu topete bonina
o bico de lacre voa baixo no capim
come semente cata minhoca
voa em bandos miúdos
tem medo de gente
o bico de lacre me anuncia a manhã
leve como pena de passarinho
denso como chuva de outubro
eu nesse cenário sou apenas eu mesmo
424
LIÇÃO MATUTINA
a manhã me toma para si dentro de si para sempre e eu não me
importo amanheço em sorriso ou em angústia feito mas feito e
isso é o que me basta ao amanhecer do dia
a manhã me consome as primeiras energias e eu deliro com esse
dar-se da noite em manhã em manhã feito dia em dia feito
imortalidade da alma cativa de um corpo temporário
a manhã me ama de um jeito tão próprio e eu me dou como quem
se dá a deus o absoluto no momento da morte mas nasci pela
manhã repleto de absurdo eu no mundo com todos os astros
girando sobre minha cabeça
a manhã me digere levemente e me dá sua acidez para aprender a
digerir as pessoas as situações as nobres situações de quem vive a
ponto de pressão máxima
a manhã me acostumou tão mal não sei sair de casa sem a náusea
de sartre na bolsa com a distância entre o coração a mente de
thomas merton não sei viver sem o início do dia chamado manhã
eu não posso existir sem o começo do dia ensolarado aqui dentro
feito sorriso lá fora o sorriso do mundo para o mundo para fora
para os outros do qual eu faço parte a todo momento
a manhã me dá o melhor de mim me toma de mim para o mundo
me põe onde gostaria de estar mesmo sem saber e para quê saber
se o silêncio impõe a verdade...
eu sou manhã hoje eu sou manhã agora sem eclipse solar eu sou o
que sou sem negação de ser e estar nessa manhã de dia ensolarado
e de vida propriamente dita a manhã me trouxe novamente para
dentro de mim e de lá não quero que ninguém nem nada nem eu
mesmo possa me tirar
hoje eu comecei em mim um novo tempo uma nova fase de rotina
eu sou o dono de mim mesmo na manhã da minha alma mundana
425
FRIO
o vento encontra ainda o frio da madrugada
como eu encontro ainda o resto de mim dado
ontem
a brisa invade a noite ida com o calor do dia
como eu vou e venho numa maresia constante
ressaca
o dia se dá da noite
o frio se dá no calor
como eu me dou
apenas de mim
BRILHO
o passarinho cantou na árvore
a pomba rolinha busca comida
desde cedo o mundo
é voz é fome
o cachorro procura o dono
a sacola de plástico o lixo
desde cedo o mundo
é abandono é cansaço
a namorada deseja o namorado
o noivo foge desde ontem do casamento
desde cedo o mundo
é traição é sofrimento
até quando a manhã será sem brilho
para quem está sem brilho?
426
ESCONDERIJO
a manhã me abriga no seio da terra
eu corpo inteiro alma nem tanto
eu massa matéria ego
eu sou apenas manhã
queria me esconder no alto da árvore
como faz um passarinho quando vem o medo
ou o cansaço da vida de vôos baixos
ou a vida rasteira do pouso na cidade
queria estacionar no último galho da árvore
não no mais distante precisaria ainda
de um pouco de folhas para me proteger
na meditação do dia que começa
queria apenas um pouco do isolamento
que a manhã me rouba no dia de trabalho
no dia de rotina
começa de novo
ALMA PURA
roubo dessa manhã o ar puro
pureza é a expressão mais forte
de fora para dentro
de dentro para o todo
o ar frio o ar saudável o ar
essa dose de purificação
esse dom de quem procura
no de fora o de sempre
dessa manhã com chuva fria
eu quero me deleitar na cama
sentindo o cheiro puro do ar
pela janela da alma
427
TRÊS MINUTOS
três minutos para expressar
a saudade da manhã
de neblina
três minutos para rememorar
a pluralidade da manhã
de morro acima
três minutos para reatar minha alma
cansada da magreza da cidade grande
com a fartura do meu interior
(minha cidade tem manhã singela
tem padre e capela
menina e menino
na porta da escola)
DEVOLUÇÃO
o rosto enxuto na toalha da verdade
o dia no espelho começo com saudade
do tempo ido escoado perdido
na pia batismal dos dias
as mãos cada vez mais envelhecidas
lavam e se lavam e se levantam em prece
já não sei onde andam as fantasias de ontem
talvez na gaveta do quarto esquecido da memória
acordo concordo resgato esse eu mesmo
de dias atrás de manhãs atrás de mim feito
eu me perco nessa manhã de novidade
pulsa em cada célula um novo sonho
preciso me encontrar
428
SORRISO PÃO-DE-QUEIJO
ela me sorri
em meio
ao trânsito
de pessoas
ela me dá bom dia
no meio da rua
na manhã sem graça
da cidade grande
ela me vende pão-de-queijo
mas me sorri tão suavemente
compro saudade do povo
de ontem de ontem de ontem
MULTIPLICIDADE
é que no céu ainda havia lua
e ao mesmo tempo no tempo
de um único olhar
o sol brotava feito novidade
é que os pássaros começaram a acordar
e ao mesmo tempo os seus predadores
de um lado ao outro da mata
morte e vida se anunciavam
é que eu me dissipava feito névoa por dentro
para me fazer tempo bom por fora
de um modo inequívoco
eu me procurava
multiplicidade
de mi mesmo
429
FRIAGEM
na luz do dia eu me vejo refletido
na flor colorida eu me reflito
reflexão
na volta da terra eu me vomito
na volta da lua eu me transmuto
ovulação
na velocidade da vida eu me acelero
não sei se me encontro ou me deixo
motivação
na manhã quando eu me acordo
um outro lá dentro se dorme
maturação
eu sou feito de ciclos
como o vento
faz frios
NÁUSEA
saio cedo
não acordo
ninguém
saio cedo
não provoco
alguém
eu me vou
como outros
vão
430
eu me parto
como outros
dão
o dia se faz
e me desfaz
o dia é capaz
de dar a paz
amanhecer é suportar-se
PERGUNTAR NÃO OFENDE
onde as árvores
cobertura da rua
agora asfalto?
foram parar onde
senão no movimento
da locomotiva?
onde o gás carbônico
exalado pelo cansaço
agora meu corpo?
se sacrificou à toa
para dar meu gás
na vida?
onde a agenda
desenho infantil
agora maturidade?
se desbotou na memória
para dar mais cor
à idade?
431
SALTO
pulei da cama com saudade
aquela saudade inexplicável
de um tempo ido
bastado em si
pulei da cama hoje pela manhã
carregando a cruz do condenado
atacado pelo remorso do sono
sonhado em mim
LARA
para Verlaine Goulart
ela veio ao meu mundo
antes da entrada
dos homens
e mulheres
no trabalho
ela veio tão cedo
feito notícia boa
de incomum
e muito forte
parto natural
ela chegou cedo ao ouvido
ouvi seu choro longe
iniciando sua vida
repleta de sonho
para realizar
ela chegou lindamente pela manhã
aos ouvidos de seus expectadores
ela começou sua trajetória no mundo
432
dando um show de alegria a todos
bem-vinda ao mundo novo
mais novo por sua presença
nascimento de Lara, filha da Verlaine, na noite de 23 de março de
2009, comunicado no dia seguinte pela manhã
OBRIGADO À MANHÃ
eu conheci seus olhos na manhã de um lindo dia de sol e não me
esqueci mais do sofrimento que a noite de solidão pode trazer para
os corpos amantes separados
eu conheci sua face seus olhos sua boca numa manhã eterna que
dura aqui dentro como uma tatuagem na alma reforçada em seu
contorno nos dias nas horas repassados
eu jamais esquecerei do seu sorriso pronunciando o bom dia a boa
chegada a boa vinda àquela cidade de campos verdes e planícies
vastas por meus pés pisados
o sol da manhã trouxe a figuração de seu corpo e sou grato à essa
luminosidade reveladora da sua alma ingênua para meus olhos
juvenis abertos aos amores renovados
obrigado à manhã por sua revelação no diafragma da minha lente
interior
obrigado à manhã por trazer seu corpo para minha vida memória
da anterior
433
VELÓRIO DE DIA
quero morrer de manhã para ter o dia inteiro para recordar quem
sou quem fui que fiz das horas dos dias do tempo
quero morrer ao raiar do dia para ter a manhã toda para me
iluminar por dentro com o que sobrou de uma vida inteira vivida
para fora
quero morrer na virada da madrugada para dar uma alta
gargalhada ouvida só por mim do lado de lá ao lembrar da idiotia
dos materialistas
quero morrer bem cedinho para dar tempo de rezar por mim junto
aos meus que rezarão por mim junto ao corpo inerte deixado como
prova do fato
quero morrer na hora do acordar dos pássaros para renovar a
esperança de reencontrar novamente uma semente para me
alimentar por dentro
quero morrer de manhã cedinho ainda ao cheiro do café para não
assustar ninguém e ficar pouco tempo no velório sem sentido
quero morrer de cedinho bem cedinho miudinho
mas vamos mudar de assunto
para deixar a natureza
agir por si só
DIA
o dia quando inicia
o alarme me anuncia
o dia quando morre
a cama me socorre
434
o dia quando chove
guarda-chuva me recobre
o dia quando sol
minha alma é girassol
o dia quando música
ouvido de boa astúcia
o dia quando cedo
tempo muito para ser cego
dia dia dia
venha suave
ave ave ave
SONHO RUIM
eu me deitei ontem à noite
para renovar meu corpo
mas o sonho me roubou
a paz
eu me fechei na cama
para inspirar a célula
mas o sonho desesperou
o dia
premonição existe?
LÁGRIMA
a lágrima de manhã
é difícil
a alma acorda pronta
435
a lágrima de manhã
é inútil
a alma não repara
a lágrima na manhã
é fútil
a alma não melhora
a lágrima
é coisa
noturna
a lágrima
é fruto
tardio
ENERGIA
eu revirei a noite toda na cama
mas me encontrei pela manhã
eu inventei bobagens a noite toda
mas resolvi a insanidade de manhã
na noite há má vontade
manhã é decisão
tomada
220 volts
PREFERÊNCIA
prefiro a hora de sair
chegar é pouco
acredito na hora de ir
voltar é fosco
436
quando o sol nasce no ponto móvel
eu mobilizo o olhar para dentro
quando o sol se põe no lugar escuro
eu começo de novo a me tatear no mundo
prefiro a flora a sair
que a flor a retrair
quero o sol de rir
que a noite de se ferir
PALAVRÃ
para a manhã
chuva calma
céu rosa claro
ave na janela
pão quente
manteiga mole
para a manhã
eu mesmo
para a manhã
o vento frio
o ônibus atrasado
a menina e a mãe
o pai e o trabalho
óculos escuros
na manhã
a esmo
manhã palavra sã
manhã acorda divã
manhã consoante
manhã como antes
desejo a manhã como palavra
437
GATO
o gato na rua na esquina para dentro de casa
vai prontamente
a noite acabou
o gato pula pela rua molhada para a casa seca
vai displicentemente
a noite findou
o gato sabe das horas como sabe dos cios
de noite uivou feito louco
de manhã ressaca moral
BICHO MATINAL
os bichos matinais são cheios
cheios e plenos de sinais
do bem-te-vi
vendo quem não devia
do gato preto em pleno dia
de sexta-feira treze dá medo
do joão-de-barro refazendo o teto
depois do alagamento do bairro
do urubu pegando sol para voar alto
a morte vem da noite como melodia
os bichos matinais são cheios
cheios e plenos de sinais
ai de mim que os vejo
438
CHUVA
quando a chuva bate na janela
eu a deixo entrar
no meu sono
quando a chuva cai lá fora
eu adormece no leito
em paz
quando a chuva aumenta
eu cubro o rosto
para desligar
quando o relógio desperta
eu tomo o guarda-chuva
para o dia enfrentar
(quando acordo com chuva forte eu me ressinto
a natureza com suas peripécias
quando acordo com chuva leve eu me desminto
a natureza faz da chuva flor e festa)
DICIONÁRIO: MANHÃ
manhã
do latim maneana
de mim mané e ana
de si a fé e cama
manhã
do latino anglo saxônico
feito verbo substantivo adjetivo
quando a boca do povo se abre
439
MISSA MATINAL
quando o sino tocava eu era acordado pela fé na missa de padre
gusmão o mesmo que virou bispo de uma prelazia distante tão
distante que esqueci o seu nome
quando o sino atacava meus nervos para encontrar deus – nesse
momento achei que ele estivesse naquela hóstia sobre o altar – a
manhã era plena de fé
quando bem antes de terminar a missa a cidade acautelada dormia
ainda plena de sonho ou pesadelo eu me virava comigo mesmo
para me encontrar
quando a igreja fechava as portas ao bater do trinco eu me cegava
para o cotidiano e esperava outro momento como aquele para ser
eu mesmo
quando a vida se faz um fato frouxo como o roubo da alma pela
força de uma fé já composta robusta e instituída feito aquela
vivida por mim ali
quando a vida é roubada na ilusão da religião ritualística como
solução para a conspiração interior de outras vidas
quando o menino vai virando outro homem outro ser já cheio de
perguntas incomunicáveis a igreja foi ficando pequena demais
para caber a interrogação
eu me excomunguei diante da igreja quando suas paredes não
mais me suportavam nem suas estruturas me podiam controlar
eu me pus do lado de fora do edifício gigante para encontrar nas
pedras de cada caminho longo ou curto um sentido próprio
440
o sentido estava não impresso nas páginas do missal nem
confesso nas palavras de um cardeal elas estavam ali dentro do
que pensava
o sentido estava não autorizado pela volta e meia ajoelhado
cabeça baixa voz alta pela palavra frágil do ágil sacerdote sagrado
porque homem
o sentido estava não proposto no contrato de mediação entre
minha alma e a alma de alguém que tem alma como eu e eu
admitia ser dessemelhante
o sentido era outro mas eu não via eu não previa eu não me
escutava mas cria cria e cria como creem os incrédulos que
confiam numa força estranha
o sentido era tanto mas eu não prosseguia na iluminação porque
de cada vela acesa em frente ao altar do sacerdote eu me apagava
e me perdia
o sentido era a vastidão de outra palavra articulada no calabouço
da minha razão que de frágil era senso comum mas era minha
somente minha e me afligia
o sentido eu o fui encontrar do lado de fora de costas para o altar
de frente para o espelho do meu quarto ou do lago de narciso dos
gregos filósofos gerados na mitologia abissal
o sentido era o bater a porta e ingressar no universo vasto das
vidas vividas e encadeadas e jungidas e unificadas e significativas
para as quais eu me sentia completamente prontificado
o sentido não era o edifício erguido por mãos de homens jovens
velhos passados e renascidos pois esta é a lei
o sentido era eu mesmo quando mesmo eu era ele feito antes e
depois no jocoso movimento incessante da temporalidade
441
o templo sou eu mesmo
erguido em bases
próprias
o templo sou eu mesmo
ressurgido em asas
de fênix
TEATRO DA VIDA
na minha cidade natal
manhã é chaminé
fumaça feito incenso
de fé
na minha cidade pequena
manhã é pão-de-doce
adocicado feito páscoa
ovo de chocolate
na minha cidade inexplicável
manhã é uma rotina
tirar a cortina do rosto
teatro da vida
GINÁSIO/COLÉGIO
a sirene da escola
no ouvido ainda
me comanda
me faz aluno
fogão de lenha
caderno caneta
me anoto
me noto
o dia era frio
442
o dia era quente
o dia era sirene
sireneternidade
RODOVIÁRIA
a rodoviária cheia de pobres
adormecidos sem lar
ou lares sem adormecidos
é sempre muito confuso
a manhã no inverno é de dar dó
para quem fica na rodoviária
dormindo no banco de cimento
isso é a manhã do interior
a rodoviária
o papel queimado
o louco já louco cedo
o ônibus das 5 da manhã
MATINA
a matina da festa do rosário é uma prova de fogo
foguete bebida e um padre aprovando o esforço
para quê mesmo: serve?
a matina da festa é muito muito muito cedo
ou tarde para quem fica vidrado na lua da noite
para quê mesmo: um teste?
443
BANDA DE MÚSICA
a banda nas ruas alegra os corpos quentes debaixo do cobertor
espesso nas casas de telhado colonial
folia do divino
um divino acorde
um acorde para quem dorme
folia do divino
divina música quente
para orelha gelada de quem dorme
a banda passa tremendo o telhado
mais (que ele vive rangendo de frio ou calor)
com seu dobrado aceso ou apagado
a banda nas ruas de sobe e desce vibra a fé no coração de jovens e
velhos vivendo uma vida no cobertor do tempo
COR DE SONHO
acordar é um trabalho
trabalhar é tarefa dobrada
para o acordado
prefiro o sono meu atalho
farfalhar as asas na noite
passo vidrado
acordar é muito pouco
opto pela noite de cor
sonho lembrado
444
MOLECULAR
sua lembrança se vai apagada pelas horas pelas manhãs pelas
tardes pelas noite preciso de suas mãos em minhas mãos para
reavivar a memória de minhas moléculas
sua lembrança se vai desbotada feito vestido de noiva guardado no
armário no porão em um lugar secreto acompanhando a fotografia
em preto e branco sem nitrato de prata o tempo não estabelece a
hora de esquecimento
sua lembrança se rompeu feito elo de correntes enferrujadas e
forças opostas seu corpo para um lado minha alma para outro e
não há o encontro há tantos e tantos anos
por que sua saudade me toca agora feito essa chuva escorrendo
para o nada? por que sua saudade me tropeça as pernas das cores
de sua lembrança?
sua lembrança se apaga em mim mas o sentimento primeiro esse
permanece livre de minha e de sua vontade e me tomou agora
SOLAR[IDADE]
o sol nasceu breve
passou
o sol se move
bastou
o sol mexe minha sombra
revela a face do outro
não eu
o sol faz calor
suor
445
o sol tem quentura
vapor
o sol me transfere
do oriente para ocidente
ponto de mutação
NATURAL[MENTE]
há uma ligação entre a árvore acordando
e a mente pensando
eu sou da natureza
há uma permuta entre a ave cantando
e o ouvido pulsando
eu sou biológico
há uma relação entre a tempestade esbravejando
e o corpo assustando
eu sou meteorológico
ESTAÇÃO
com a manhã chega o outono
o céu se altera
desacelera
com a manhã chega o inverno
o sol se distancia
amarela
com a manhã chega a primavera
a flor se plenifica
rica
com a manhã chega o verão
a chuva se intensifica
recria
446
VITÓRIA
vencer a noite
é manhã
como a frase ao final da linha vira outra linha para outra frase e
assim por diante
deixar a noite
na manhã
como depois do banho cada célula morta sepultada está nas águas
quentes de março
voltar da noite
pela manhã
como depois do primeiro amor as moléculas sábias fazem tremer
as pernas no primeiro estágio de uma nova/velha paixão
a manhã
sempre
a manhã
NADA SE PERDE TUDO SE TRANSFORMA
o queijo branco sobre a mesa envelhece
a idade chega em forma de escuras bactérias
o café esfria dentro da garrafa e cede
ao calor do início de sua vida
a fruta amarela vai perdendo sua cor intensa
o tempo passa pela casca e pelo interior
a flor no jarro perde a graça diante do espelho
e morre desbotando descolorindo
de manhã o tempo continua a passar
para mim que sou vivo e sofro de tempo
para os objetos e vivos seres sobre a mesa
a espera da troca adequada pela nov[idade]
447
GRAVAÇÃO
o corpo está gravado na cama
uma noite daquelas
de sonho
de cara amassada
o corpo se levanta lento da cama
os braços de morfeu gravados no lençol
são prova de que não estive só
na noite que a manhã acorda
o corpo inerte
a alma solta
o corpo pouco
a alma tanto
CORPO MATINAL
a pele sente a manhã
o olho pede a cor
do dia
o cérebro volta da noite
pede serenidade
ao dia
a vida retoma seu ciclo
desejo de rotina
no dia
o dia é o vício do corpo
a noite é edifício da alma
FINAL DA MANHÃ
a manhã termina ao meio dia
quando o sol ultrapassa a retina
informa outra seqüência da jornada
448
do tempo em ciclo
eu vivo cada etapa do dia
escalando seu tempo
para ser mais intenso
cada degrau do ciclo
a manhã entrega seu turno à tarde
os deuses da manhã descansam
cada parte tem felicidade e tormento
a cada um conforme suas obras
a deusa aurora já fez seu galope
é hora de repousar a si e aos cavalos
os deuses abrem e fecham as cortinas
da minha da sua da nossa retina
que venha a tarde
onde o tempo arde
TARDE/2009
HORA DO ANGELUS
na igrejinha colonial no alto do morro
-e por estar lá nem da corneta precisaria
o padre anuncia ainda na minha memória
a hora do ângelus
hora de por deus no meio do dia
-e dar a deus a manhã passada
boa ou ruim bem ou mal vivida
é de deus a graça da vida
a prece sonora divide ainda hoje meu dia
ao meio como sou corpo como sou alma
como sou razão como sou sentimento
os anjos anunciam um novo tempo
a tarde começa com deus na boca
449
uma prece reticente nos ouvidos
ainda escuto as palavras
lavras do colonialismo
SOMBRA DO MEIO DIA
a tarde se abre no calor da sombra sem inclinação
eu marco o tempo da tarde no meu corpo
não inclinado na estrada da vida
a tarde me aperta o diafragma vazia barriga
a tarde de ar quente começa no almoço
rápido ou lento familiar ou de rua
a tarde se dá na impaciência do dia
ainda uma parte na rotina
o segundo turno cortante
a tarde
arde
vária
JOGO DE DADOS
a tarde diminui a névoa interior
mas dissipa meu eu para longe
demoro para me encontrar
a tarde flui a impaciência do dia
o problema maior já foi dado
resta agora o jogador
a tarde conduz para o caminho do fim
é o dia com suas regras próprias
propostas a mim
450
SUOR E MEIO
suor de meio dia é muito pesado
como estivador no porto faz água
sair de si e volver ao mar
suor de dia pela metade é árduo
como churrasqueiro diante do fogo
faz a água da carne se evaporar
suor é fruto do calor envolto no corpo
ardendo em brasas feito alma na paixão
sedenta por calor sem fim do abraço
PISCINA INTERIOR
a piscina azul me convida
aprofundar os olhos
no fundo abismo
a piscina refrescante me incita
olho por dentro da água
me vejo centro
a água no corpo
o frio no osso
relevo o suor
a piscina me deixa pronto para a tarde
no azul da água vejo o azul do céu
mergulho em mim mesmo
451
[SOL]IPSISMO
o sol na pele alimenta o sonho inerte na alma
sem saber ou já sabendo sem certeza persigo
a realização do brilho solar na vida presente
é que o sol de dentro ofusca a dúvida pouca
me visto do sol da tarde para enxergar longe
a tarde tem horizonte pleno feito praia grande
brilhar depende da força de dentro para ser
luz incandescente para se acender na vida
eu me dou o sol totalizado na tarde de verão
para ver de dentro o que meu mundo por fora
exige que eu seja mesmo no sonho ora vago
ora cheio de luz como guru indiano na chuva
ASFALTO
o asfalto queima a sola do pé
dentro do calçado
mole
é
o asfalto deixa claro sua fala
o calor é mudança
dança
há
o asfalto permite ida e vinda
quente ou frio
rio
lá
o asfalto é quadra de futebol
de jogo e de briga
bola
olá
452
HORA DE ALMOÇO
quando chove na hora do almoço
vejo da janela do ônibus
o moço
oco
quando corre a moça entre os carros
vejo pela janela do carro
o tombo
bobo
quando o menino se perde da mãe na praça
paro o tempo do almoço sinto saudade
da mão da mãe
na minha vida
PAIXÃO
paixão na tarde é de olhar cansado
sem esperança
de contato
paixão na hora do almoço
acontece tão pouco
já saciamos a fome
paixão é coisa de fim de tarde
de mesa na pracinha
de gente em à toa sendo
paixão é fruto do fim do dia
quando o dia já não dá nada
e a noite já chama a alma
453
VIDA NA TARDE
o interior é sempre esse olhar vago no furacão do tempo fluido
diluído desmanchado em horas passadas em outras horas jamais
ultrapassadas
a vida no interior essa vidinha minúscula por isso de beleza nunca
vulgar me volta para dentro quando ainda sonhava com terras sem
donos
donos de quintais não havia ainda na vida dos meninos roubadores
de jabuticaba de mexerica e de qualquer fruta cobiçada por ser
alheia
a vida na tarde passava tão defronte da rodoviária e os meninos
vendiam chup-chup em caixas de isopor para refrescar o calor
alheio
em casa a tarde era o momento de parar a vida para olhar
fixamente para a jarra vermelha laranja ou de qualquer cor com o
seu suco tirado de dentro do fantástico saquinho químico
a vida na tarde era café suco suco ou café e pão ou cará na casa de
pedrelina colhido no quintal lá da pedra redonda e transformado
em energia para o corpo necessitado de vitalidade
a vida de tarde era esperar pelo sol mesmo em tempo de frio para
poder se jogar na água da piscina da praça de esportes vazia vazia
vazia
a tarde da minha cidade lá do interior lá da montanha era hora de
vida em família tão em família que todos faziam o mesmo ritual
no mesmo horário igual
a cidade onde nasci era eternamente culinária e saciava minha
fome de correr livre por ruas minhas tão minhas que por elas caía
e levantava com a maior dignidade a cada tropeço
454
a cidade do interior é de gente da roça que usa a tarde para se
fantasiar de consumidor e de turista voltando para casa de ônibus
com sacolas imensamente cheias das coisas da cidade
ah, minha cidade, dorme agora na memória como as professoras
em descanso depois de uma manhã exaustiva diante do quadro
cheio de giz
dorme como eu depois do almoço digerindo o tempo em doses
homeopáticas
ARTÉRIA QUENTE
tarde de cidade enlouquecida
buzinas alucinantes
correria inútil
meia verdade
cidade tresloucada no calor da vida
a pulsação se percebe na excitação
pressão alta
artéria frágil
a tarde sentencia o veredicto da cidade
condenação em 40 graus ardendo
cada um carrega a carga térmica
no corpo repleto de calor
TÉRMICO
o ar frio do shopping center
o ar quente da rua
artificial
natural
eu passo por dentro do shopping center
para me reconhecer na rua
455
PRISÃO
prendam o ladrão que passa e leva meu sonho na mão veloz da
agilidade marginal
prendam o cachorro na carrocinha que late e leva meu ouvido para
o lugar do medo
prendam a natureza no parque municipal que fechado e aberto me
dá a tônica do à toa
prendam minha sombra em casa não quero mais esse calor de
centro de cidade
ENTRE AS FOLHAS
o sol se coloca dentro da mangueira
na janela eu avisto a tarde
verdejante
partida
os raios dourados no meio do verde e amarelo
a janela da alma se abre para o cenário
pacífico
poente
a tarde vai perdendo sua força entre o verde
é que a noite precisa de nossa fraqueza
para se fazer
totalidade
a mangueira deixa cair a manga
preciso arregaçá-la
preciso prová-la
preciso...
456
RIO RI
o rio está poluído na tarde
morto
inerte
ido
o rio está fraco de tarde
torto
triste
caído
chove entre sol e lua
tempestade é sopro
de vida
o rio ri
QUARADOR
a fonte de água
bica é seu nome
a dona preta
lava roupa
anil feito céu
roupa branca
quarador cheio
tela solar
quem não tem quarador
põe o lençol na grama verde
para a tarde quarar o branco
exprimi-lo - intensidade
457
CALOR E DESEJO
no inverno o dia é tão curto
por isso a lembrança do sol
do meio dia ser o melhor
para o corpo gelado
os pardais os pombos e nós
tirando da tarde sua essência
bater as asas do frio
para viver melhor
o telhado colonial grita frases quentes
quando o sol tempera sua estrutura
de barro queimado/resfriado
o calor é desejo da vida
PARA ONDE VÃO AS LEMBRANÇAS DEPOIS DA VIDA?
a criança dentro de mim ainda brinca
no quintal de pedrelina
catando a vida
infante que era
dos girinos
dos lambaris
o tempo sacode ainda a poeira da queda e chão
no morro do botavira que dá para o centro
centro? o centro agora sou eu
falando do ontem
dos meninos
das meninas
eu ainda estou em algum lugar do campinho
a lama ainda percorre meu corpo agora
a bola ainda produz seu movimento
entre as traves
458
do goleiro
do boleiro
eu não me acostumo com a maturidade presente
ainda há um mundo de fantasia vivido em cada poro da existência
dessa vida repleta de memória do corpo da carne da alma e da
infância passada
TARDE NA PRAIA
a tarde na praia é costas avermelhadas
maré sobe maré baixa
olhar no horizonte
de areia
é como miragem o navio
eu me queria partir
mas fico
no aqui
é como tatuagem o sol
eu me queria pálido
mas prefiro
a cor
praia e tarde
casamento pleno
como olhar
e miragem
TARDEAR
o desdobramento da manhã essa corda vibrando esse acordar-se
tão tarde tão tardemente feito que me despeço da metade do dia ao
avesso
459
esse momento de revelar-se de cara amassada mas refeito
prontamente para a vida exigindo energia vitalidade vibração
acordar tardemente de mente vazia mas de corpo restaurado como
a árvore depois da hibernação ressurge suas folhas viçosas e
prontas para o sol
esse estar tardemente acordado me é muito satisfatório me é
extremamente mágico
ESTRUTURA DO OLHO
Viva el señor don Cristóbal / Que viva la patria mía
Vivan las tres carabelas / La Pinta, la Niña y la Santa María
Las tres carabelas. Alguero e Moreo. Na voz de Caetano Veloso.
o arco do triunfo é o olho direito erguido
a aurora boreal é o olho esquerdo preciso
vejo e vendo me olho no mundo em sombra
como a nuvem para mim deve ser nobre
mesmo escura no chão
a estrutura do olhar é gigantesca
a curvatura do enxergar é vesga
olho o mundo em volta feito colombo em teoria
volto o grande olho para o interior onde busco
apenas sabedoria
DO LATIM: LIBERTAS
de manhã sou entediado
saudade da noite
de tarde sou enfadonho
compromisso e rotina
de noite sou libertado
do dia que vivia
libertas quæ sera tamem
460
INTERMEZZO
a tarde se rasga ao meio dia mesmo que eu esteja inteiro em mim
me parto ao meio
a vida se cumpre no exato termo de cada hora e no início de outra
desde que seja um contínuo
o dia não me deseja nem leve nem pesado apenas me passa em
horas como em sol e lua vai
a tarde pouco se importa de meu cansaço de meu enfadonho
existir a tarde é um dado do tempo
com ela me faço mormaço com ela me faço metade de mim pois a
outra metade é manhã
a outra parte de mim é a lua ao nascer e esperarei pela noite como
quem espera a água na sede
a tarde me rouba de mim e nada põe no lugar senão o sol quente
diante dos olhos amiudados
a tarde é esse furto de tempo não posso gostar desse estar no meio
de algo sem saber o seu fim
a tarde me invade apenas isso vale
VENTO DE PAPAGAIO
se é para lembrar da tarde
me volto no tempo
posso
quero
se é para focar o dado
461
me enrolo no vento
forte
fraco
como papagaio no alto vejo
a máquina na mão do menino
e rio da cena antológica
como avião no alto deixo
lá no chão a sombra da asa
é frio o tempo de ontem
a tarde da infância é leve livre louvável
a tarde da meninice é volúvel volátil voadora
há o vento no alto do morro levando o papagaio
há a mão guiando a linha pela altura da cidade
saudade da máquina de soltar papagaio
essa sedosa recordação da hora vaga
ESTRADA DA BARRAGEM
em memória de Beto de Nadir
foi no fim da tarde eu me lembro
eu me lembro muito
não chovia nem fazia frio
não fazia nada além de nada fazer
era durante a semana
um dia de homens sérios
os homens de compromissos
mas eu era menino e sujava a roupa
a máquina com o pneu gigantesco
com uma pá do tamanho da rua
462
alargou a subida de terra e argila amarela
era amarela aquela terra muito amarela
o ronco do motor diesel e uma largura aberta
eu me pus a olhar aquela rua antes picada
quando a máquina rompeu seu destino
o manobrista voltou a pitar seu cigarro de palha
a máquina grande como nenhum brinquedo
forte como herói da televisão em preto e branco
barulhenta como nenhuma banda de música
ou batedeira da minha mãe fazendo bolo
eu peguei meu carrinho de plástico
coloquei a cordinha na ponta do pára-choque
e fui o primeiro o primeiro ser vivo
a percorrer a nova estrada do botavira
ela dava na barragem
ela me ligava ao morro dos meninos pobres
mas eu era pobre e tinha medo deles
porque o medo era da miséria
eu fui o primeiro a deslizar pela estrada
e era fim de tarde e o fim de um dia novo
e o menino percorreu a estrada
e o menino escorregou pela argila
o amarelo ainda me suja a memória
o carrinho ainda me guia pela estrada
eu me vejo no cenário do lugar
imortal da estrada da vida
há uma força oculta na abertura da estrada
um caminho novo é sempre uma nov[idade]
uma tarde finalizada com um novo horizonte
é sempre uma tarde abençoada
463
PARADA
a nuvem murcha no horizonte
o pneu do tempo furou
hora de olhar
a tarde cair
a nuvem evapora no céu
o algodão do tempo fluiu
hora de parar
do mundo rir
FIM DE TARDE
quando a tarde se despede
eu tenho a sensação
de morte
quando a tarde se enviúva
eu choro pela escuridão
que desce
quando a tarde se vai
eu paro no tempo
da saudade
quando a tarde suspira
eu encho o pulmão
para a noite de lua
TARDE BOA VISTA
não há entardecer mais belo
nem lusco-fusco tão nobre
do que aquele que sobe
boa vista de lages
464
chuva de um lado
talvez milho verde
sol no outro
talvez pico do itambé
raios ao norte
um jato ao sul
estrelas ao leste
eu sem rumo
o pôr-do-sol na estrada
anuncia a estrela
a estrada me leva
ao extremo da tarde
eu me vou puxado pelo tempo
da natureza tão vasta
nada nada nada
posso dizer - ali me falta
PAI MORTO
foi de tarde
acho que por isso
me dói
o meio-dia
foi no meio da tarde
identifico ali
o choque
que arde
a notícia de sua partida
do corpo que desce para a cova
da alma que vai para o invisível
465
me chegou friamente
com a morte não se brinca
mesmo na meninice
a morte o tempo explica
mas a dor o tempo complica
o olho interno sabe
jamais nos separamos
nem aqui agora
nem por causa do pranto
TARDE FRIA
o frio bate na lagoa
afugenta o peixe
é que o fundo
protege
a tarde de frio na pele
arrepia todo o corpo
é que o tempo
enrijece
TEMPO TARDE
o tempo passa mais doloroso na tarde
o corpo percebe o cansaço
o caminho se alonga
a ruga sobressai
o tempo dói na tarde da vida
por causa disso já sei
aproveito a manhã
para saber-me vivo
466
a tarde corrói a vitalidade
por causa disso aprendi
uso a noite como escudo
contra o tempo que trai
MULHER DA ROÇA
ela não tem vergonha da ruga no rosto
do rosto de um longo tempo passado
ela não mede a vida pelo cansado da pele
mas pela memória do afeto
ela não deixa a ruga ser seu cartão de visitas
a sua luz brilha mais forte que a ruga gasta
a sua luz é o tempo brilhando na vida
sem medo de ser tardia
as mulheres da roça
quando na idade longa
sabem que é hora
de vestir-se de sabedoria
TEMPORAL
escurece e a tarde se perde
não identificada
obscurece o sol e a tarde alarde
chuva e granizo e feio
a nuvem é a sombra da tarde
a tarde sem luz é vazia
467
ECLIPSE
eclipse
a tarde se enrola na noite
clipes
solar
o sol some para dar lugar ao vazio
lunar
ESPECIARIA
o corpo estendido na cama
músculo e carne e silêncio
a tarde passa em sua pele
leve como seda chinesa
é impressionante seu sono
o suor o revirar dos olhos
a tarde tempera seu sonho
com especiarias indianas
PALAVRA
faço minhas as palavras da tarde
adormecer sem noite
acordar ainda de dia
repito a frase dessa fase do tempo
mendigar pela noite
remediar a manhã
DEZOITO HORAS
são 17:56h e a noite se aproxima
outono como estou a fim do outono
a cada doze horas uma noite
ou dia passando nos olhos
468
são 17:58h e a noite é lua
dentro da casa o incenso
anuncia o vento pouco
da nova estação
são 18:00h e passou por mim
a hora do ponteiro breve
como leve é a tecla
que me leva noite afora
REZA TARDINHA
a procissão saía sempre à tardinha
mais ou menos num horário
entre a chegada da banda
e o coral de dona vilma
fim de tarde com procissão
arrastada e sem música
é um pecado grave
a ponto de agudo
a procissão de santo ou santa de gesso
com seu cabelo fixo e imóvel apesar
do sacode pra cá pra lá do andor
queria alguém vivo ali em cima
mas ainda não vi santo ou santa
em vida
apesar de alguns se quererem
como tal mesmo e sempre irreal
469
BANHO DE RIO
o rio me lava
leva a sujeira
do corpo
nada
o rio purifica
carma da alma
na água
passa
eu me banho no rio
de santo antônio
do itambé
cheio de fé
POBREZA
o menino enxuga o rosto
o goleiro pega a bola no mato
eu vejo esse cenário
abstrato
a moça com a leiteira
o menino na jabuticabeira
eu vivo essa realidade
ladeira
a tarde consome a vida
no alto ou em baixo
a cena da pobreza
lida
470
TARDE LOUCA
nunca me esqueço da mulher louca pela cidade afora em tarde de
lua cheia ou de sol vazio do calor das mãos necessárias para
acabar com toda a nossa loucura só o amor trata
quando os loucos pulavam no meu caminho eu não assustava eu
me acostumei com eles porque não sei o que acontece com os
meninos do interior do brasil a gente nasce esperto
os doidos com seus apelidos feitos para irritar mais a loucura
feitos para incendiar ainda mais o semblante do pobre coitado a
língua do interior é afiada feito punhal de matador de porco
cada louca com sua mania cada louca com seu saco de tralhas nas
costas sem rumo ou fazendo de conta que rumo não há e eu me
lembro dessa cena maluca eu sou normal
BICHO DE RUA
abandonado não se sabe por quem e nem por que deixado de lado
como se nada fosse a não ser um corpo de quatro patas no mundo
indesejado como um atrevimento feito carne o cão o gato o bicho
vai se fazendo rua de rua pra rua de lata vira lata
tenho pena do bicho da lata na tarde quente sem refresco da rua
quente sem dono porque se a rua cuida a rua é de ninguém
tenho pena de quem abandona
pena da ex-dona
triste pelo abandonado
bando relegado
471
MOSAICO
de tarde minha vida pulsa freneticamente
o som da alma parece fábrica em movimento
operário proletariado industrial
de tarde minha existência ferve densamente
a chaleira da vida parece apitar
em casa na rua no trabalho
de tarde sou um mundo em mosaico
espero a noite para me rejuntar
TARDE MALDITA
a tarde me roubou a sua presença para sempre
por toda a eternidade dessa existência
não desejo mais ver sua sombra
no meu caminho
a tarde no bairro floresta me deu o veredicto
a distância do antigo amor é sabedoria
de se preservar no espaço interior
para manter a vida
a tarde no boulevard café era quente
tão quente que de repente
eu fervi as turbinas
e me perdi
a tarde de descompasso entre meu e seu passo
ligeiro lento dois corpos no acaso
quando a vida desata o nó
o tempo se altera
choveu depois acho que não vai se lembrar
472
choveu aqui dentro eu me recordo bem
vai embora que o mundo lhe espera
eu serei o mesmo a lhe aguardar
PÁRA-RAIO
mirante do anos 50
vejo ainda
a nuvem
pronta
diante dos olhos
o fluxo úmido
o chão
quente
a química da tempestade
o raio dentro da nuvem
homem chão espaço
vendaval
a chuva rola na ladeira
eu corri com medo
de ser apenas ali
pára-raio
ENTRE SOL E LUA
quando a onda para na praia
quando o sol afunda no mar
quando eu me volto para traz
e não vejo a sombra
é hora de se despedir da tarde
no horizonte a noite cavalga
rédeas eletrizantes
473
seres da novidade
quando os orixás da noite amarram o dia
quando os peixes esbarram na maré alta
quando eu me olho para dentro
e me noto
é fase outra essa da noite
essa da lua cheia
ou nova
não importa
a tarde fecha suas portas
tortas
rotas
outras
CARTA
o carteiro de bolsa azul
passa de tarde na rua
seu suor transpira
mensagem longa
a carta vem de longe
batida corrida amassada
mas vem com palavras
lavam a alma
a carta é um depósito de consoantes
nas linhas vagas do sentimento
eu me sinto vivo quando leio
letra e linha e sentido
474
ESPORTE
o corpo baila
dança bela
o jogo clama
resultado
o corpo paira
crava o braço
o jogo deseja
pontuação
o corpo nada
desliza n’água
o nadador bóia
batida de braço
o corpo fala
linguagem vasta
o esporte é suor
energia gasta
AMOR TARDIO
queria seu corpo suado
na tarde deitado
comigo
mas mas mas
é tarde muito
digo vazio
sua memória é tarde
infinita como dado
jogo perdido
sua sombra é fraca
475
deixada de lado
esquerdo acho
sua nobreza é muito pobre
não deixou em mim nada
para ser eu mesmo
FIM DE TARDE
a tarde acaba sem ressentimento
sinto pouco sua falta
perdoe-me
a sinceridade
a tarde se vai em boa hora
sinto muito pela manhã
me alegro nos braços
da noite
a tarde é apenas esse intervalo
entre o que penso e falo
entre a moça virgem
e a velha de lua
NOITE/2009
CHEGADA
a noite chega como notícia boa
anunciada pelo silêncio dos pássaros
acomodados em árvores e postes
a noite chega na temperatura ideal
nem mais nem menos apenas minha noite
ser feliz plenamente de asas abertas no tempo
ela vem como um véu sobre o dia
mas longe de me esconder é na noite
476
revelo-me mais de mim ao mundo
chega e fica para sempre
escura como outro lado da lua
a vida agora é rua e sonho
ÓRBITA
a lua serena desperta
esperta e cheia
devagar a liberdade está plena
a lua rege o livre-arbítrio
a lua vai chegando e acerta
a órbita do sentimento
a noite é porta aberta
ATIVIDADE NOTURNA
os bichos da noite saem para a rotina
de asas grandes e brancas a coruja
mira de longe
os gambás de ritmo lento
sobem em árvores
fruto fresco
os morcegos nem precisam de luz
a noite é feita de som
a fruta de sabor
os homens procuram outros corpos
a noite tem um tempero próprio
aquece a vontade de amar
477
OUTRO LADO
de um lado sou plena luz
outro lado sou luz que ainda
não reluz
de um lado sou plano que conduz
outro lado sou abismo que ainda
não seduz
de um lado sou são jorge masculino
outro lado sou mulher que ainda
não reproduz
de um lado sou clareza e distinção
outro lado sou obscuro que ainda
não deduz
a lua me é homônima
multifônica
FOGO
o asteróide feriu a terra
fez uma vesga de luz
é novidade em fogo
espermatozóide astral
desfez-se tão breve luz
na boca da noite roçou
fez o giro torto e caiu
brilhou na boca do céu
asteróide
ana boli z ante
478
FOGUEIRA
nada combina melhor com a noite
do que a fogueira
em volta dela nós
cantando amando
a fogueira liga o século de agora
com um século inimaginável
do tempo da pedra lascada
rudimentar mas iluminado
a primeira fogueira ainda queima
outra agora e nós em volta teima
o tempo se repete
na noite reflete
CONSOLO
a noite esse farfalhar de lençol sobre o corpo
se dois farfalhar duplo
se um farfalhar puro
a noite nesse leva e traz nas asas do morcego
ou no brilho predominante da lua
revirando as marés
a noite nessa tríade do dia fechando o ciclo
abrindo a boca em estrelas tantas
me perco no universo interior
a noite me inquieta para ser eu mesmo
me salva para ser outro
parado não se chega
a noite me consola
desde sempre
479
CHEGADA
a chegada em casa
é som de cachorro
latido lambida
alegria plena
a casa se ilumina
trazer o mundo
em casa objeto
deixá-los quietos
a casa recebe
o dia acabado
a casa percebe
outro horário
a noite enche
cada casa
novidade
dia de trabalho
PERNAS AO CÉU
as pernas para o alto
depois do banho
levar sangue
ao cérebro
as pernas para o ar
esquecer o dia
passos idos
imagens
as pernas para o céu
pensar na lua lá fora
cozinhar a noite
na panela
480
QUE NECESSIDADE
da noite dessa noite eu necessito mais que o ar que respiro que é
cheio de sol do dia que passou e morto apodrece nas células
mortas do corpo que agora vegeta e sente saudade de um ido
tempo lindo
da noite desse momento depois das dezoito horas eu preciso como
abrigo que abrigue a paz dessa solidão e a ternura desse dizer ao
mundo estou cansado de tudo que vai passando diante dos olhos
em desesperança
da noite meu espelho onírico eu desejo eu me perverto de tanto
desejo em sumir dentro da face obscura da noite sem lua sem
artifícios de luminosidade eu estou sem sela montado no cavalo da
vida que corre corre corre
na noite eu consigo encarar cara a cara meu espelho na
artificialidade da luz elétrica que ilumina meu banheiro onde
banho meu corpo cansado desse dia dia dia que se repete como
que que que em frases que parecem que nada querem
eu preciso dessa noite como ela se dá agora e não me roubem essa
noite do jeito que ela está sem ligação telefônica sem televisão
ligada sem ventilador no teto para amenizar minha mente girando
girando girando
a noite me devolvam a noite como ela é como ela se faz límpida
pura como poema de alma poema de rima sentimental daqueles
que a compreensão de séculos nada dirão pois o silêncio fechou o
verso em sete palmos
dou-me a noite pobre rota sem destino posta no meio de um
caminho vago como onda fraca desabando no mar sem ninguém
para lhe dar sentido que venha um mar de novidade para romper o
dique dessa desencanto
481
a noite eu me quero na noite desvairado como os lobos sem trégua
diante de sua caça pequena e frágil e contagiados pela ferocidade
da noite como sempre a natureza se mostra eu que sou natural me
seja natural noite amada
a noite eu deslizo por entre seus dedos e me amasse e me repasse
em seus tempos de ontem de hoje de amanhã e me projete para o
futuro distante de tão distante que seja agora como eu
queria que a noite fosse apenas essa hipocrisia em dizer e nada
falar em ouvir e nada entender em pestanejar os olhos e cair
minha face pronta para mim mesmo onde está meu rosto próprio?
onde está minha face de antes agora desfeita?
a noite me rouba a noite me diz para calar a voz e mesmo assim
roubo o silêncio infinito das linhas para deixar a saudade do som
de um verso mesmo pobre caindo como chuva na linha aérea da
poesia
a noite sabe de mim mais que todos os olhos em meus olhos mais
que as bocas em minha boca mais que eu mesmo sei de mim e
nada sei sei que nada sei meu amigo sócrates me consola desde
infinitos calendários
a noite me dá o que tenho mais escondido se encontra é essa frieza
na alma que se rompe de tempos em tempos e se torna se torna se
torna isso isso isso dado
sou um dado na noite jogado pelo destino sou um asno na noite
amarrado e domesticado pela vida sou a página do livro já lido e
relido e posto de lado preciso ser a próxima página que emoção
ser a próxima linha na alça de mira
eu preciso desatar os laços da prisão interior e deixar de lado o
lado que me deixa sem lado e me põe em evidência eu preciso
482
respirar os gases da noite para explodir em temperatura tanta que
me faça fragmentos de novos sentidos
eu preciso dessa noite como ela se dá agora para nunca esquecer
dessa noite sem telefone sem televisão sem ventilador já estou
resfriado demais já estou pleno demais já estou nauseado demais
já sou muito no mundo
eu preciso da noite como nunca pensei eu desejo a noite em libido
existencial eu apenas preciso dessa noite e que ninguém nem eu
mesmo me roube essa noite (por favor)
NOÇÃO
caiu a máscara
o ás da manga
inexiste
saiu a lua
uivo na rua
persiste
floriu o vaso
às nove horas
assiste
choveu a nuvem
ladeira abaixo
desiste
DEUS
se deus criou
a partir da noite
criou de fato
o ato na noite
483
vasto
largo
o tato da noite
casto
vário
se deus criou
na noite sonhou
universo
per[feito]
DIA COM NOITE
de dia fecho os olhos
para fazer noite
esperança
de dia a sombra larga
memória da noite
refrescância
de dia óculos escuros
opor à luz a noite
lembrança
de dia perco
de noite acho
de dia morro
de noite nasço
DIA/NOITE
não adianta acertar o passo
benzer o sol na cabeça
a lua desvira sentido
o corpo atrapalhado
484
desencontro da alma e corpo
lua e sol
a vida
vai bem vai mal
FOLHA MORTA
o vento bate forte
a noite se revolta
a face gira e gira
norte?
a janela bate torta
a noite acena chuva
o pensamento cai
folha morta?
LIÇÃO
de repente a noite
somente ela
me serve
agora
não somente a noite
talvez o melhor dela
me teste
embora
sei do sorriso disfarçado
da hipocrisia deliberada
me dói
mas é
sei da mentira escancarada
da pouca fragilidade
485
que é
dada
sei da noite para me encontrar
apesar da face triste do outro
que fere
certo
CAMA
a cama se desorganiza
para abrigar o corpo
volta à sua rotina
de manhã
a cama se ajusta ao corpo
para refletir calor ou frio
depois levemente
es[vazia]
METÁFORA
escondo debaixo do cobertor
da noite
defronto com o inimigo oculto
no sonho
a noite é deveras divertida
metafórica
TRAVESSIA DA NOITE
o travesseiro aconselha
acredito nisso
especialmente
depois do dia
longamente vivido
486
o travesseiro desdenha
permito isso
cruelmente
após o dia
orgulhosamente tido
a travessia da noite
começa por ele
travesseiro
LEGADO
deixo a noite para quem vive
pois a noite é vida plena
de plenitude iluminada
eu não
deixo a noite como herança
pois a noite é um grande baú
repleto de surpresas
eu não
deixo a noite por memória
pois a noite é nada mais
que a totalidade
eu não
INFÂNCIA
das noites vividas
agarro-me no galho
da infância
para ser
das noites várias
487
ato-me aos primeiros dias
da cidade velha
para crer
de lá me vejo
por todas as outras
noites vastas da vida
vivenciando
de lá reflito
em toda noite dada
na rota da vida feito
roda da fortuna
a infância
é a noite
mais bela
da vida
SÃO JORGE
a guia
me guia
da bahia
a minas
carmosina
mãe
de mim
me guia
de noite
estrela
no olho
brilha
488
a escuridão
faz do grão
estrela
constelação
a guia
azul
da bahia
ilumina
FRASE DE LUA
a lua tem santo impresso
cada montanha e abismo
apresenta são jorge e dragão
em mensagem de lua cheia
a mensagem da lua
é de fé e de pé
leio a frase
universal
ORQUÍDEA
a moça entrou no ônibus
era noite e chovia
era estranho mas trazia
um embrulho celofane
a orquídea agarrada ao vaso
pedia a proteção das mãos
a flor alta sabia do ditado
medo de queda no ar
a orquídea branca e rosa
no vaso verde e preto
no colo da moça morena
a fragilidade está em toda parte
489
ALMA NOVA
a lua nasce no morro do bicentenário
corrige o rumo
do tempo ido
infância tola
interior
a lua cresce entre a montanha e os olhos
se cheia clareia a mata
se nova inspira a seiva
se minguante me leva
ao alto da santa rita
a lua leva para o alto
de lá sinto a cidade
as pedras tantas
as casas prontas
refazimento da alma
FRAGILIDADE
é na lua cheia
somente nela
o olho preso
no céu tela
é na lua nova
por que dela?
saio no sono
pela janela
é na lua crescente
contrário da vela
derreto a vida
loucura repleta
490
é na lua minguante
a lua se deixa não sê-la
olho a fotografia antiga
vontade de refazê-la
quando a lua se mexe
em fases o movimento
da vida é comum
sempre frágil
ÚLTIMA CEIA
a mesa ou o sofá
ou um canto da casa
a noite é hora
da última ceia
que seja a ceia pouca
ou vária ou sem graça
a noite é posta
em xeque
a última ceia
um quadro
retórico
na parede
MISTÉRIO DA MEIA NOITE
quando acordo de madrugada
o silêncio invade os tímpanos
o misterioso silêncio noturno
do medo e da possibilidade
491
quando acordo de madrugada
tropeço em móveis pesados
o misterioso objeto de tropeço
está onde não deveria ficar
quando acordo de madrugada
sinto um arrepio na pele
me lembro o universo humano
é o dia dos homens sérios
GATOS
a janela dá para o quintal
os gatos se dão na calada
da madrugada
uivos
arranhões
gemidos
impaciência
será? a lua fertiliza mais que o sol
será? a madrugada é mais pura
será? os gatos sabem do amor
mais que nós?
MADRUGADA OPERÁRIA
não sei quem de fato dorme
no mundo de hoje ou de muito tempo ido
os homens fizeram da luz artificial
um tempo outro
um tempo tão outro
madrugada é dia
492
dia é dia mesmo
hora é hora de qualquer coisa
não sei se se dorme ou se se acorda
quando os galos cantam no escuro
só sei de um tempo outro dado
olho vermelho no trabalho
NOITE NATURAL
a noite é da natureza
o dia da impureza
de noite o corpo nu
de dia enclausurado
na noite a vida é plena
de dia é feia
de noite o corpo saciado
de dia rotinizado
DESDOBRAMENTO
saio do corpo quando durmo
percorro outro mundo
sem muro
saio do corpo porque fujo
do corpo em descanso
mudo
saio do corpo em plenitude
as cores são mais vivas
do alto
493
ou de dentro da cor maior
ou porque vejo melhor
sem tato
ou por fora da órbita física
ou porque caminho mais
sem pés
saio do corpo quando durmo
o mundo de cabeça para baixo
no escuro
TRAVESSEIRO DE LETRAS
as letras prenunciam o sonho
abre-lhes caminho
cada letra devagar
compõe o divagar
a leitura antes do sonho
fertiliza a terra do nunca
toda letra pulsa retórica
cada frase rouba a lógica
dormir sobre o livro
é abençoado
o travesseiro de letras
é imaginário
POSTE
o poste solitário segura centenas de velas
braços forte e tesos
estrutura de fios
ligando a cidade
494
o poste incansável abre os olhos na noite
equilíbrio perfeito
corpo de cimento
pés no chão
o poste vê quem perde a cabeça
o poste vê quem desce a ladeira
o poste é o vigia sóbrio
da noite
VÉSPERA DE FERIADO
noite de véspera de feriado
é vasta pois tem horizonte
descanso de corpo e mente
por vinte e quatro horas
noite para dormir
sem despertador
programado
nada perturbe!
noite para fugir
sem medo
para o à toa
nada marcado!
EGO
não sei da folha lançada ao chão
nem mesmo do bicho falecido
eu apenas sei do que vive dentro
do mundo submerso do ego
não sei da chuva fria saída da nuvem
nem mesmo do vento que a janela abriu
eu apenas sei do que se passa no interior
do mundo próprio do eu
495
VIDA NOTURNA
enquanto durmo outra cidade acorda
enquanto descanso outra idade passa
vivaz feito o fogo sobre a brasa
noite da música alta
a música alta acorda as moléculas
vibração em caixa acústica
na noite alta o zumbido do ouvido
se faz vida noturna
NOITES GEMINADAS
entre uma noite e outra
era melhor ter ficado
adormecido
o dia com suas necessidades
o seu apelo à atividade
neg[ócio]
o dia é exposição forçada
dos motivos de viver
im[posição]
hoje era melhor duas noites
uma seguida da outra
emendadas
hoje é daquelas noites
preferia geminadas
dia terrível
496
MOTE
noite
fria
ia
noturno
quente
ente
noite
mote
oi
noturno
rígido
turno
A CIDADE SABE DE MIM
as pedras do pé-de-moleque sabem de mim mais que eu mesmo as
marcas no caminho são tantas e as pisadas do chão da vida são
vários a pedra no chão é lição de dois lados
as ruas íngremes as ladeiras incontornáveis os caminhos para o
alto da cidade sabem de mim mais que eu mesmo por isso é bom
repisar o passado para tirar do rumo incerto o certo rumo
as andorinhas da igreja de santa rita guardam em suas asas os
sinais do tempo ido passado tido no alto da cidade montanhosa e
traduzem o elevado melhor que os padres obcecados pelo pecado
a noite indevassável da cidade perdida no tempo ensinou que o
tempo perdido também é útil para a vida a renovação é uma tela
em branco esperando a tinta o pincel e o pintor
497
os muros de pedra-sabão úmidos feito mulher em concepção
sabem dos limites mais do que simbólico sonho de jung da
psicanálise de freud ou do socialismo de marx
a minha cidade é noite acolhedora na alma e dia frenético de
perder a calma de perder a paz de perder a si mesmo
a minha cidade me devolveu a mim mesmo na noite e de noite eu
entendi a lição da cidade de interior
lá se fazem almas prontas para o mundo tecidas por dona milude
abençoadas por dona ermelinda das lages
sem pedras no caminho por causa de luiz paletó e sua mania
requintada de afastar as pedras para o canto da rua
sem a sanidade infértil por causa dos loucos e das loucas mais
divertidos do caminho de vida no interior o medo da loucura cura
sem a fome bravia por causa da festa do rosário de mesa farta de
almoço jantar e sobremesa de doces aprovados pelo ministério da
saudade
a cidade sabe de mim e me deu a vida
BÊBADO
de um lado para o outro da rua vai
ziguezague da alta hora da noite
ponto cruz quase via sacra
o bêbado costura
os pés dão passos de dança clássica
o equilíbrio é lição de vida toda
498
a dança não acaba no chão
passo em falso
ele sabe de um rumo imaginário
o bêbado tem bússola na alma
norte no fundo do copo
forte dom de rumo
em casa a porta se abre
no interior a tranca
é só na alma
não na casa
JOÃO SURUBIM
ele subia na árvore com frutas
sempre de madrugada
um homem de quintal
dos outros
ele calava os cachorros com sua simpatia
(no interior os cachorros conhecem a todos)
as galinhas confundiam dedo com puleiro
(no interior as galinhas são fáceis)
joão surubim era uma figura
de quintal
de carnaval
de rodoviária
joão surubim morreu tão sem graça
voltou a ser ninguém
no interior o diverso
é belo se controverso
499
NOITE
a noite fria de lua cheia
as torres demarcam o território
em cada ponto da cidade
é de noite que os gatos saem
assim como os gambás
e nós
é de noite que o sonho basta
assim como o cobertor
para nós
a lua se encaixa em cada forma
da cidade bela erguida nos morros
a noite se esquadrinha em todo momento
de uma amizade toda surgida no tempo
a noite fria congela os vegetais
refrigera os peixes as aves os marsupiais
devolve a vaga lembrança do uniforme
vestido na noite anterior para a manhã seguinte de aula
a noite se põe estática
nós caminhamos entre sombra e luz
o quadro é amplo
feito a vida toda
OUVIDO
vivo puramente em lágrima
convertida
minto cada palavra
pecaminosa
500
crio esse sentido
insignificante
estou partido
como ontem
estou remexido
como sempre
estou parado
para me enxergar
HÚMUS
estou cansado
de me perseguir
húmus
a folha sobre o chão pode ficar murchando
eu me vou passeando para dentro
onde o húmus jamais aumenta ou diminui
inexiste
a chuva sobre os carros pode escorrer para os rios
eu me vou buscando na vida
onde a correria pode existir
mas não leva a nada
a lua pode mudar suas formas aos olhos
eu me vou refazendo fases
onde bisturis não operam as horas
que se passam em rugas várias
501
ESCADA
não desço a escada para subir de novo não sou mais criança e o
fôlego acabou bem no meio da subida como a escada de jacó que
sobe eternamente para outras dimensões fora da realidade física
dos sem-fôlegos como deve ser viver sem o físico o corpo os
sentidos numa esfera para acima da corporal? como deve ser
respirar o ar rarefeito da quinta dimensão livre das amarras de um
corpo gravitando em volta de si mesmo que se abram as prisões
dos sentidos que se cortem os cordões da percepção violada que se
cruzem as fronteiras da nova vida sempre renovada das outras
percepções quero partir de vez em quando mas tenho medo de em
outra dimensão o medo ainda fazer parte da mente sem corpo
físico porque a prisão é um corpo cheio de sentido e cada sentido
é uma cela própria pronta para ser aberta mas como abrir cada
cela se estou violado por elas? como fazer essa volta essa viagem
essa renovação essa despropositada volta ao que era antes? deus
me criou para ser eterno e por isso cada estação menor é um
suplício de novas escadas para subir para subir para subir!
AR
preciso da vida em cada célula
para viver todo o tempo de cada molécula
preciso de sonho na mente
para reviver todo o ontem no imaginário do agora
eu preciso de ar
para aromatizar
de gás
para borbulhar
célula e molécula
mente e imaginário
502
BENZEDEIRA
eu virei meu vento ontem à noite
ou foi ano passado não me lembro
passei pela esquina de um beco
ou numa encruzilhada do tempo
eu virei meu vento
como papagaio solto no alto da santa rita
por meninos de máquinas possantes
e não mais deixei de sonhar
eu virei meu vento
por causa das placas novas da estrada
indicam rota diversa obrigam parada provisória
e eu não sei torcer meu livre arbítrio
eu virei meu vento
onde o vento faz curva
deve ser no alto do morro da páscoa
onde jesus anuncia seu novo tempo
eu virei meu vento e agora
só mesmo benzedeira para terminar
a obra do destino nas vias de dentro
preciso me benzer com dona almerinda lá nas lajes
ela conhece a rota dos ventos
semeia brasas apagadas nos rios
ela sabe que todo vento virado
é destino que se faz lado a lado
503
PLENITUDE
não vou esperar a noite
já sou dia
tarde
todo
não vou esperar o duplo
já sou guia
caminho
pleno
não vou guardar as lembranças
já sou futuro
fé
realizado
ÚLTIMO SUSPIRO
o último suspiro da noite
sou eu acordado
o último escuro da noite
sou eu abrindo os olhos
a noite se vai
sonho
delírio
sono
a noite se foi
com lua
com luz
com paz
o último lapso da noite
sou eu revigorado
504
OLHOS DE CONCRETO / 2009
A PROFECIA
quando a cidade se revelou como estrutura
verbal substantiva metafórica
(nome próprio)
de sintaxe complexa
de leitura abstrata
algo - uma profecia
brilhou no outdoor e eu vi
como num sonho acordado
eu vi
como num pesadelo macabro
o pensamento da cidade
no outdoor sobre o viaduto
desde aquele dia a cidade
é outra coisa
por dentro
e por fora
O DISCURSO DA PROFECIA
a cidade consome todas as minhas energias
vão para o asfalto dependente
sempre
de calor
e se vão para o rio imundo
e fétido
descendo barriga abaixo
cultivando em seu leito verminoses nas populações ribeirinhas
505
(a cidade faz sujeira
em todo o seu dejeto
em todo o seu jeito de
ser e de se estruturar)
a cidade me abate feito boi à moda antiga
me amarra nos seus obstáculos e desfere
o golpe de pau sentido em todo o corpo
a cidade limpa ou
suja é
vida e é
morte
não sinto paz
–sou incapaz de sentir alguma coisa nesse mundo quente –
nas mãos e contramãos
não sinto alegria nas curvas emendando no viaduto
apesar de dar em seu eixo redondo a volta no mundo quando giro
no viaduto
eu sinto minha mente mais pura - mas só ali!
(queria tanto dar uma
volta inteira no
mundo
feito imaginário de
júlio verne!)
a cidade me pisa e me soterra e sou ninguém
nessa terra pobre e bestial de homens
trafegando sem sentido em cada e muito e
vário sinal
os sinais são tantos que a mente se perde em
tantas tantas tantas vozes gritando
506
mudamente em cada placa
em cada guarda municipal
em cada homem do exército
a cidade me zanga tanto! quando chego em casa sou um cachorro
bravio esquecido das asas da
alma das asas do
tempo
o tempo na cidade é tão furioso diminuto magro
o tempo na cidade é mordaça na alma
na alma
na alma
na alma
para onde ir depois de um dia de cão?
não tenho para onde ir a cidade é um
vazio
sobre o concreto o concreto mais vazio da humanidade a
humanidade mais cansada do mundo
o mundo está cansado eu estou cansado
quem não está cansado?
o mundo a
cidade a
rotina andam cansados de si mesmos de seu
ciclo de seu
espaço de
tempo corrosivo
a cidade me consome todas as alegrias
preciso dormir para esquecer esses versos e voltar à engrenagem
da cidade
acordar
507
trabalhar
cansar
voltar para casa
casa
casa
com engrenagem
nervos à
flor da pele
as flores morrem nos canteiros da cidade!
televisão e sem asas
onde andam as asas da cidade?
comecei a ter pavor da cidade
hoje pela manhã
o céu era azul com nuvens de um vermelho quase rosa
o mesmo quase rosa que me minha mãe ensinou
“é sinal de frio” e a
manhã amanheceu em frio breve sem pavor até então
o pavor se deu quando
o poste se apagou e tirou da noite seu véu de lirismo
ah, o lirismo de fernando pessoa
me fez falta nessa manhã
um sentimento me pegou pelos
pés pelas
mãos pelo
umbigo
fui levado pelo avesso
dos ponteiros que
indicam felicidade ao
longo da vida e me vi
diante da cidade
508
a cidade se fez sem poste e de repente o céu virou
apenas um grande sinal marcas de pneus de carro
derrapados soltos no espaço a me informar a cidade
amanheceu estamos todos preparados para a vida urbana a
vida urbana é sua condenação
no ônibus lotado já cedo
como se nenhum ser vivo houvesse dormido bem
(deve ser por causa do dia anterior nos desvarios da ci
da
de
deve ter sido porque todos sonharam o mesmo pesadelo que narro
e minha poesia agora é narrativa de um encontro entre a cidade e
meu pavor pela cidade)
no ônibus com mau humor nas rodas
na cor desbotada no número 666
impresso na sua lataria corroída pela
agitação dos pensamentos de seus usuários
no ônibus o motorista olhava nos meus olhos como a dizer
“porque você existe, usuário?!”
a me desejar um bom dia entre os dentes
no ônibus havia filósofos existencialistas sentados e em pé
a pensarem de mim
“porque você parou meu ônibus, ingrato?”
como se sartre estivesse ali dentro a expor suas ideias
engajadas sobre o
ser-para-o-outro
509
e sartre me apontava o dedo e dizia
“você é meu inferno!”
a rua já não era a mesma de ontem
(quando eu ainda achava bonita a cidade)
a rua pôs-se como um limite sujeitando a liberdade de todos
nós
é que a rua é feita de linhas demarcadas em branco
e que de noite são reflexivas
(um filósofo inventou o reflexo das luzes! iluministas!)
e de um lado e de outro para passar é preciso piscar luzes indicar a
decisão e decidir dói muito
–como dói pensar sobre a cidade!
a rua é um limite ingrato
de quem está prestes a perder
o limite da própria liberdade
não firam o limite da rua que
a cidade se vinga com suas garras
e lança corpos ao chão
e sangue nos pára-brisas dos carros
e nos pneus gordos e velozes dos ônibus
a cidade amanheceu feia como há muito tempo eu não percebia
a cidade não desceu bem nessa manhã e dela fui me
distanciando
subvertendo
desapegando
quando dei por mim estava eu com as mãos sujas
de tanta cidade com as veias
510
aprisionadas e hipertensas
com a mente nublada a ponto de chover
e o verso se faz agora nesse
exato momento
a única forma possível de impedir o
colapso definitivo
eu ainda preciso da cidade enquanto coisa melhor não é criada
(como posso ouvir isso vindo de mim mesmo agora... a cidade
está impressa na minha alma... preciso de uma grande borracha)
chamem os descobridores
anunciem
nos outdoors
denunciem
à polícia federal
precisamos
criar algo novo
a cidade abre suas pernas para qualquer um
de qualquer lugar
de qualquer nacionalidade
de qualquer naturalidade
os carros são doenças venéreas
de todos os tipos
de todas as qualidades
de todos os países
ford chevrolet
fiat chrysler
volkswagen
511
lada gurgel
renault
os carros comem a cidade
lotam suas vias
de uma velocidade insuportável
de tão rápida passa a ser engarrafamento venéreo
os médicos já denunciaram mas de nada adianta...
a cidade só goza com os carros
os carros buzinam para irem mais rápido
mas para onde vão os carros mais rápidos
se tudo está parado
se nada anda nessa cidade absurda?
os carros sinalizam em alerta
mas ninguém liga
nem a cidade se faz ouvir nos gritos
nos gemidos
na pele queimada da criança
na mãe de braço fraturado
no motoqueiro imprudente em pedaços
sob o olhar passivo de todos os motoristas
de quem morre dentro das ambulâncias
(carros que precisam andar rápidos para salvar vidas)
os carros são ódios petrificados sobre quatro rodas
as motocicletas são ódios mumificados sobre duas rodas
512
todos sobre o controle de um louco oficialmente reconhecido pelo
estado e apto a
matar a
buzinar a
pagar multa
(que essa sei: é a grande ordem da ordem precisamos de dinheiro
para manter o poder do estado em ordem e progresso)
a cidade mata gente
mas mata mais que gente
mata árvore não há uma árvore em contato com a outra são
isoladas na sua vergonha são isoladas na sua tentativa de limpar os
pulmões da cidade fumante
as árvores morrem soterradas em calçadas de cimento
envergonhadas de tal maneira que cobrem seus galhos de
preto para camuflarem sua existência inútil
e perdida no tempo diante da voracidade da cidade
para que árvores na cidade nas ruas
nas calçadas?
não há sentido algum para troncos altos no meio de uma selva
mórbida de cimento e gente que não sabe porque vive
(quem
descobriu o
sentido da
vida na cidade
sobre a
sombra de
uma árvore?)
513
as árvores não precisam da cidade nem a cidade delas dentro dos
carros o ar condicionado faz papel de sombra
basta que seja assim
a cidade evoluiu tanto que
a natureza precisa se calar
o pensamento precisa se calar
o ser humano precisa se calar
o poeta precisa se calar
(esse sempre se cala porque escreve e seu grito quase
nunca se ouve a cidade tem medo da poesia!)
o eco da cidade é um eco de coração parado
a cidade não é mãe não dá colo
não há calor em suas mãos e seus pés não aproximam
são apenas multidão perdida na geometria urbana
levem a cidade para a ecoultrassonografia
somos filhos das estruturas de concreto
nos apartam
nos apertam
nos mentem
nos sentem
friamente
o diagnóstico da cidade: acefalia ou muitos cérebros
para controle dos outros cérebros descontrolados
a cidade tem alma ou apenas cabeça?
a cidade tem apenas corpo ou sede de veias?
eu vi um coração batendo na mão do médico na televisão
esse aparelho quase outdoor
514
a televisão é intrusa
reflete o pensamento da cidade dentro do lar
os cabos levam o pensamento ao meu ouvido
a tv é um grande outdoor
interno em cada olho de concreto
a cidade acaba na porta da minha casa
(a rua é suplício)
a gravidez da cidade não existe
criança chuta a barriga e nasce
(vida)
manhã
tarde
noite
será viva ou acéfala: conheci a cidade
já pronta já pronta já pronta
por que pronta?
por que não me abortou?
me faz necessário cidade enganosa...
ninguém pode desviver no império sombrio da cidade a lei existe
para ser cumprida a realidade existe para ser cumprida a cidade é
um fogo queimando com corpos reais sendo tragados para dentro
de seu
inferno
a cidade é um inferno e não me refiro ao inferno
515
dos prazeres
dos bêbados
dos viciados
dos assassinos
falo do inferno medieval ao qual somos condenados
eternamente
absolvam-me da cidade
eu preciso sair da cidade desse tipo de
caos desse profundo lixo cultural me
retirem enquanto respiro desse cenário medíocre que as palavras
fracassam em definir
o outdoor me agride
com suas mensagens para o dia das mães e
com suas letrinhas miúdas no final da promoção imperdível
o outdoor lança sobre mim suas garras e me pega pela linguagem
quando paro sobre o viaduto
(a outra parte da cidade suspensa não isenta de seu tédio)
e me vende um produto que eu não quero
eu não quero
por favor: eu não quero!
apaguem o outdoor
descontratem o publicitário por traz do outdoor
prendam esses marqueteiros em casa e
não os deixem sair para fazer isso comigo
o outdoor com seu papel de quinta categoria agarrado à madeira
de quinta categoria por uma cola de quinta categoria
516
o outdoor é o pensamento da cidade
eu não quero saber o que se passa na sua
cabeça por favor
não dialogue comigo
eu me recuso a conversar com sua
provocação
eu não desejo entender sua dinâmica
eu me recuso a me orientar
pela propaganda gasta estampada na sua
testa
me abandone
me deixe de fora da promoção atual
o outdoor me olha de todos os lados (porque um dia fui
alfabetizado? para conversar com a cidade! que ironia!)
o outdoor me subjuga e fala
tão alto...
acabo por ouvi-lo e por traz dele a cidade
fala bravia
compre
me faça viver
me faça existir
me faça ser o pior de mim
me faça ser o pior do pior de todos os piores que houver
a cidade me asfixia
seus gases dos exaustores
na chapa fritam hambúrgueres gordurosos
para sustentar tantos como eu na fome da cidade
das chaminés mesmo distantes mas vistas do alto
517
tragando a vida das árvores em carvão feitas
e entregues às siderurgias por caminhoneiros
sem sonho sem ilusão
de uma praticidade incrível
(as estradas da cidade alimentam a cidade)
dos ares condicionados
puxando para dentro dos prédios
o ar fresco da manhã e nos devolvendo o ar quente
das bocas cansadas nas ligações de telemarketing
nas operações da bolsa de valores
nas decisões tomadas nos prédios do governo
os gases da cidade me apodrecem por dentro
aceleram minha morte e a cidade não reconhece minha
necessidade de ar puro de ar real de ar apenas
que seja
a cidade me apavora com seus bordéis de felicidade rápida
de orgasmo seguido de uma nota de dez reais
(o orgasmo está no corpo ou na carteira com o dinheiro para
circular livre pela cidade?)
a cidade com suas putas e travestis no alto do
morro (bem no alto fica o prazer, diz a cidade!)
bem de frente à delegacia de polícia para maior
proteção da alegria da civilização culta ocidental e
charmosa
o sexo na cidade é
fácil para distrair
a cidade com seus orfanatos lotados de filhos irrecuperáveis para a
noite ou para o dia
518
que o dia e a noite são mais felizes
quando a família dá bom dia ou boa noite
cada criança de rua é uma provocação ou um exemplo?
(a cidade mostra que não se deve ser
como eles a cidade nos ensina como
seguir o rumo certo como ser livre em
suas leis por causa de suas leis por
traz de suas leis)
a família de rua é um grito no escuro ou uma missão?
(a cidade mostra o absurdo para que
nos contentemos com o mínimo e
não reclamemos da vida na cidade
que é difícil mas não impossível)
a cidade me toma de mim com sua geometria esquálida
com sua sombra pouca
com sua pobreza farta
com seu casario de mal gosto
a cidade com suas casas mortas de
vida curta de lote tomado por muro
de muro tomado por pichadores
os pichadores sabem da cidade melhor do que eu
os pichadores dão à cidade o que ela merece
o feio
o tripudiado da linguagem
o embaraçado do traço gráfico
519
o pichador sabe da cidade mais que eu
porque enfeita o caixão da cidade com
ornamentos em preto sobre o fundo branco das casas
–fechem o caixão dessa maravilha grotesca!
o pichador quando picha bate na cara da cidade
e hoje eu me deleito com essa ação nobre
que os pichadores sejam elevados à categoria de heróis nacionais
tirem seus nomes dos anais do crime
eles merecem bustos nas praças
nomes nas ruas
máscaras mortuárias nos museus
suas lições devem ser ensinadas nas
escolas de todas as classes de todos
os níveis
o pichador é o verdadeiro herói nacional vamos distribuir spray de
graça nas esquinas
(a esquina é lugar onde se vê
a cidade de dois ângulos e se pode
dar conta da sua traição)
vamos pedir um empréstimo ao fmi
para financiar o caixão da cidade
em melhor estilo kitsch
eu idolatro os pichadores e seus seguidores como eu
que eles sejam eternos enquanto
não morre a cidade
os bustos da cidade nada me lembram
520
a maioria deles está cheio de cocô
de pardais
de pombos
e muitos deles são caminhos de ratos na noite
sem sentido dos bichos urbanos
os bustos nada me dizem
um monte de cimento com ferragens por
dentro
um tanto de mármore a envelhecer no
tempo
quente ou seco ou sempre instável da cidade
os bustos dos heróis nada traduzem à minha alma agora
são apenas seres fora do tempo e do espaço e
dentro da cidade que deseja me ensinar o que ela preza
mas eu não
estou nem um
pouco
interessado nas
lições da cidade
os bustos não profetizam nada
nem me devolvem a fé na cidade
e não me venham com placas comemorativas
para dizer do tempo apodrecendo cadáveres nos cemitérios
(o herói dele nada resta senão um osso cruzado sobre o outro que
lhe foi corpo um dia como eu vivo agora em meu corpo magro
mas meu
521
e que só meu pode virar algo da cidade)
a cidade com suas placas
(a única verdade da cidade está nas placas de trânsito)
elas não mentem elas nunca mentem porque fogem à ditadura da
morte na cidade elas previnem a morte mas tolos são os que não
ouvem as placas de trânsito morrem atropelados morrem
esmagados nas ferragens
dos carros
a cidade tem um olhar cáustico
a cidade tem olhos de concreto
ferrugem por dentro da estrutura
de seus
significados
a cidade pulsa elemento químico
o ferro sustenta sua estrutura
ele pode cair a qualquer
momento
a cidade delira sem anemia
a cidade delira sem seu oposto
a cidade se faz carne e osso
e come sua própria carne
sem se importar
a cidade arranca a terra de seu lugar
gruda no chão os
522
carrapatos sanguinários
arranha-céus de pé-de-chumbo
interferindo na
vida interna
do leito dos rios
cada prédio cada casa é uma conquista
de espaço e a cidade sabe de seu poder
ESPAÇO E PODER
quando se avista do alto com seus tentáculos
sobre o antes verde sobre o antes ar puro
não há equívoco: a missão da cidade é
governar o solo
prender cada um de nós
dentro de suas garras altas ou
baixas e desfazer o sossego
de nossas vidas pequenas e
tornar nosso ar quase que um
sufocamento feito com nossa
própria ajuda
a cidade sabe que a poluição é seu
pulmão mais sórdido
dentro do qual cada um de nós procura
viver mais e melhor
mas o ar se esgota como se esgota o ar do mergulhador
em alto e profundo mar
onde as profundezas da cidade vão nos levar?
523
onde as suas loucuras vão nos conduzir?
para onde iremos nesse choque entre a liberdade de se viver e de
se achar que vive com a estrutura de concreto da cidade erguida
para nosso cômodo modo de vida contemporâneo?
a cidade caminha para o mar e toma do mar o vento litoral
seus cinco andares seus quinze andares
sua necessidade de acomodação
sua investida em conforto
a cidade toma do mar o frescor da tarde no atlântico
e não se respira ar puro se respira ar de concreto
se respira ar de carro em alta velocidade pelas ruas
não se acham mais lugares que não sejam cidade
para onde fugir dos olhos de concreto?
para onde ir além do pensamento da cidade: os outdoors?
não vejo fuga possível a vida é essa civilização correndo atrás de
si mesma sem saber que ela é a criadora da própria necessidade
parar o mundo e viajar em outro caminho... qual?
voltar aos campos verdes
à natureza
acho pouco
deixem a natureza
como está!
a natureza não precisa de nossa dor nem de nossa angústia
a natureza é si mesma é si própria e suas leis são altamente
eficazes diferentes da cidade onde o
caos predomina
o papel jornal com notícias populares foi esquecido
524
sobre um abrigo de ônibus e o vento levou a notícia
para o chão e falava na manchete:
enchentes matam
e o papel sentiu na cara os pingos da chuva
encharcado suado corpo todo molhado
foi se deixando morrer
e foi se deixando levar para
a boca de lobo se somando a tantos e tantos
outros restos da cidade
plásticos
copos de plásticos
copos imensos de plásticos do mcdonalds
caixas de pizza do pizzahut
maços de cigarros souza cruz
pedaços de um brinquedo
era um brinquedo diferente dos outros
era um homem forte de braços musculosos
e segurou a boca de lobo para não ser tragado
pela água
e fazendo força fechou a
boca do lobo
e inundou em vômito na tarde toda
a avenida
um brinquedo forte e cheio de vida
segurou a garganta da cidade
525
e fez a enchente virar outra notícia
outro jornal
outra enchente
a cidade tem ciclos infinitos de destruição
a cidade não pára de matar pela água
por terra
de carro
por arma
por fala
por taquicardia
por excesso de civilização
a cidade mata porque repõe suas peças muito rapidamente
a cidade mata porque novos corpos são gerados
na manhã
na tarde
na noite
em motéis de esquina em motéis de luxo
em hotel barato sem plural
(o s é um espaço ausente ali!)
crianças viram fumaça em becos escuros
nascem e morrem sem certidão
de nascimento
sem cpf são almas sem identificação
o nome não vale nada para o registros oficiais
a cidade não deseja construir memória de seus infelizes
a face alegre prevalece sobre a
526
lou
cu
ra
nascer para viver pouco é viver inutilmente
viver para reproduzir
e aumentar a cidade em
seu exército de homens tristes
o mendigo na rua na sua cama de jornal
se envolve na alma da cidade
– a notícia é a linguagem obscena da cidade
fria fria fria
nada lhe dá senão a noite e o sereno que nem a lágrima de seus
iguais ela as tem por ser caridade demais para um
homem
civilizado
nada lhe permite senão um pedaço de chão
onde a lua faz da sua sombra um fantasma na rua
mas esse homem é uma vida e uma vida única
jamais vivida será por qualquer outro
deixem ele viver uma vida digna...
deixem ele ser um sofredor por opção não por sujeição...
deixem ele ser si mesmo por ter opção de ser si mesmo do jeito
querido e gostado
um homem
(mendigo feito na cidade)
527
é um coração no peito como todo coração
tem necessidade de outros peitos para se fazer
um som pleno um homem pequeno em bolso é
um outro outro
não eu outro
mais que eu
porque vive no
mundo
mas roubado de si mesmo na cidade
quem não é mendigo de si?
eu sou mendigo de mim
a cidade colabora com minha pobreza...
às vidas roubadas pela cidade manifestemo-nos!
um dia de silêncio total para não ler
o que a cidade anuncia
vamos queimar os outdoors
deixando a cidade
sem pensamento
fria congelada
desabastecida de realismo
de significado
o outdoor é o pensamento da cidade...
calemos o seu verbo
o seu substantivo
a sua sintaxe
paremos a roda viva do consumo de si mesmo
528
não coloquemos mais lenha na fogueira da
cidade inquiridora
havia uma pomba de asa quebrada na rua da cidade
ela como tantos na modernidade
quando morrer ninguém
cuidará de seus vermes
nem um gato para lhe roubar a dor
sentida deitada no cimento frio da calçada
nem um ato de compaixão
trazer a morte antes da percepção da morte
em cada olhar de quem passa friamente
já trazendo a morte em cada boca assustada
a cidade às vezes deixa de matar para fazer sofrer mais...
por que será?
um dia vi um bem-te-vi agonizando
na esquina de duas ruas movimentadas
ele ficou no canto à espera da morte
por três
dias
consecutivos
ninguém lhe tocou a dor
a dor lhe veio pelo olhar
os olhos de concreto de
cada um passando diante de seus olhos
o bem-te-vi me saudou tantas manhãs
mas no chão ele era nada ninguém
529
reduzido a objeto indesejado
o que fazer com seu corpo insepultável?
suas asas são para voar
meus olhos de olhar...
somente de olhar!
meus olhos de concreto, também?
a cidade me roubou o coração
nem dos bichos sei gostar
um dia vi um cão morto no asfalto logo de manhã
era uma segunda-feira e o trânsito continuava o mesmo
como sempre a cidade exige
o que permanece o mesmo
o sorriso da mente matinal se foi
na contemplação do corpo estirado
depois de pneus roçando
sua vida breve
ele roubou o meu dia
a cidade permaneceu intacta
no absurdo silêncio da morte
que não dura um instante breve
a cidade de alma monitorada por cabos de fibra ótica
a cidade tem alma! a cidade de alma penada...
o sistema é alma da cidade
o satélite vigiando nossas vidas lá na órbita
a rede de computadores controlando as máquinas
530
os telefones tocando quando o
sistema quer
a televisão nos informando quando o
sistema quer
a vida se tornando vida quando a alma da cidade deseja
o sistema é uma alma que não pára
quando pára o mundo pára
quando desliga o sistema
a cidade é cataléptica
e seu cadáver desligado
se decompõe
quando fora do ar
o sistema é uma alma complexa
sem poesia interior
o sistema é apenas exterioridade
fria como uma tomada plugada
a cidade de sistema complexo
pensa e somos controlados
pelo pensamento dela
em insights de consumo
outro dia me dei conta da cidade em devaneio
sua mente foi longe e seu sonho criou asas
o avião foi inventado para dar sonho
à cidade fria
no seu sonho os aviões viajam por cima dela mesma
e lá de cima ela se vê organizada
em estruturas
esculpidas no solo
531
a viagem da cidade é
ela do alto se vendo
e quando os aviões carregam bombas
nas guerras sem fim
(parecem matar a cidade)
é o pesadelo da estrutura
sentimento de destruir-se completamente
(como a morte destrói o corpo
mas a alma sobrevive)
a cidade morre de medo de desligar seu sistema
na guerra a cidade sofre a perda de suas ruas
e a mobilidade de sua velocidade constante
na guerra a cidade se mata (suicidarse!)
para depois renascer mais forte
vítima de seu próprio sonho de grandeza
é que quando o sonho de grandeza impera
o império do sonho é pesadelo
de perseguição por megalomania
os aviões projetam suas sombras no solo
o sistema vive completo solo e céu
a cidade é uma estrutura rápida
aprende com os próprios erros
(como todo sistema tem seus erros
nossa alma humana também os tem)
a cidade tira de cada vida a eternidade
532
somos breves de brevidade inútil e de reposição rápida
somos um produto na estante do tempo da metrópole
somos nada roçando em
nada-outros
nada-vivos
um dia vi um homem no
chão morto
sem cabeça apenas um corpo e nada mais
apenas um morto e nada mais
somente um homem acidentado
pela cidade
que acidente terá sido ele para si mesmo?
não se deve perguntar por si mesmo na cidade
corre-se o risco de achar-se vazio
de poeira cósmica imerso
a cidade mata o corpo
e tenta matar a alma
a cidade é o que é
a alma o que sobra
não da cidade
mas da cidade
morta no corpo
a memória do tem
po
a alma exista!
533
preciso de alma para desacreditar
a cidade com seu corpo monstruoso de tantos corpos
composta
a alma insista!
coloque-se de pé diante do viaduto
contemple, por favor, o pensamento da cidade
o outdoor
a alma persista!
quero lhe apresentar ao mundo inteiro
e dizer do prazer de ser mais que um produto
na estante
a alma ressurja!
entre as ferragens carcomidas entre o tempo
morto de cada rua torta de cada encanamento vago de cada sonho
roubado
a alma!
acorda alma!
que a cidade veja a
alma de cada um e lhe
lance um olhar de
respeito
a alma! sacode a
poeira, alma! que a
cidade receba a
transcendência de
quem a habita
a alma! revele-se agora! de alma
é minha poesia e não de
534
concreto meus olhos são de
carne e de matéria etérea e pela
alma eu vejo mais que concreto
caiam as vendas dos olhos de concreto da cidade
retiremos, com urgência, as marcas do tempo perdido
na cidade assassina
na cidade abortiva
os olhos de concreto precisam de
tom azul
os olhos de concreto precisam de um
colírio
os olhos de concreto precisam de
renovação
os olhos de concreto somos nós esquecidos
memória para um novo concreto de tempo
desperto
memória de tempo ressurgido da alma de
cada um
história nova tempo novo outro fundamento
para o concreto erguido
alma rebatizada na água da vida
um novo útero para a cidade
535
um novo parto para outro tempo
cidade prenhe de criatividade
e de poesia
e de poesia
e de poesia
A DESCONSTRUÇÃO
a cidade subverteu diante da tarde chuvosa
os olhos de concreto se revelaram em sua beleza sadia
o efeito fotográfico da chuva escorrendo no asfalto
encheu o chão de luzes de néon impressionistas
e algo de novo ressuscitou dentro dos olhos de carne
era eu bebendo a cidade através da garganta da alma
livre a cidade se deu para meu olhar desconstrutivo
a alma da cidade é da cor do arco-íris sobre a
montanha
a cidade de feia bela ficou
poeticamente bela na tarde de um segunda-feira
eu não suportei a chama dentro de mim e colori a cidade
com os olhos de dentro
OS OLHOS DE DENTRO COLOREM
OS OLHOS DE CONCRETO
sim, a criança corre sobre o asfalto, docemente
aquecida pelas mãos da estrada percorrendo
sua trajetória na vida
536
sim, o carro passa de leve com sua sombra de sonoridade
vibrante como vibram as artérias da cidade por debaixo do
carro colorido de tão colorido me roubou a visão
sim, a tarde na cidade ressurge em luz de poste luz amarela luz
atraindo mariposas seres da noite e projetando para além
do horizonte as luzes piscantes da colméia humana
sim, a cidade se parece, agora como ontem, apenas minha casa
casa desgastada por emoções rápidas (as emoções ligeiras
sobressaem no horizonte emocional da cidade) mas a
rapidez é da personalidade da cidade
eu vivo na cidade e ela abriga
minha pobreza de ser
sou nada mais: sopro de vida
por sobre a cidade assustada
creio na sinceridade de sua
geometria urbana na devoção
de seus templos escondidos em
esquinas e átrios misteriosos e
não sei se mente a cidade
como pensava
talvez a cidade tenha na sua carne a verdade de tantas gerações de
seres vivos e humanos
talvez ela saiba mais que eu dos encontros e desencontros do amor
em seus jardins públicos em suas praças de árvores de vida curta
em espaços onde o vazio de um encontra o vazio do outro e se
fazem cheios de
vazio puramente
há uma doce alegria nos homens vazios
537
em cada esquina
há uma cruel versatilidade em todas
as casas comerciais
eu não vejo a cidade escura ela brilha como sonho bom agora que
os olhos de dentro se abriram para a expressão correta de suas
artérias dilatadas pela
necessidade de vida
eu fiz a cidade como ela é urgente rápida e trôpega
eu fiz a cidade como ela está pronta para o coito
pronta para o embate dos corpos
das vozes e das vidas
a cidade é o que é porque eu a crio em mim em sua plenitude de
corpo e alma
no corpo a cidade é cicatriz de transeuntes desesperados
na alma uma virgem que não
conhece a verdade
a cidade é um quadro artificial como a tela de um pintor é sempre
um artifício de vida para ser mais plena
a cidade não fala nada, eu me enganei, ela apenas contempla
a vida pouca a vida besta que se
passa em seus viadutos
a cidade está cansada e
envelhecida porque eu
envelheci o olhar
538
preciso reformar a retina para
aprofundar a dor da cidade
preciso rever a cidade e
deixar a poesia limpar a
sujeira da rotina a miséria do
espírito
a cidade não tem religião por isso abriga
todas todas todas
(a religião na cidade é uma escadaria de igreja ou
um pastor a sussurrar no microfone frases para
espíritos surdos os espíritos se ensurdeceram nas
cidades mas não é culpa dela é culpa da mente que
habita o corpo ou da alma que se confunde com
corpo... isso pode acontecer com qualquer um)
atire a primeira pedra quem não tiver pecado
já dizia o nazareno
que deus abençoe a cidade em sua missão de nos abrigar preciso
de sua sombra de sua estrada de sua distância para me achar para
me fazer eu mesmo eu preciso das árvores retorcidas da cidade
as árvores entrelaçadas em galhos retorcidos
cena de pura magia fadas gnomos silvos
nunca havia visto uma árvore abraçando a outra
só as tinha visto de
mãos
dadas
unidas nas alturas até que o vento as separe
até que a morte resseque o sentimento
539
(o tempo passa para árvores e humanos)
nunca antes a cidade é paisagem inesperada
nenhuma reprodução acontecerá
se o homem não quiser
(semente não é amor?)
semente tem suor de prazer?
a semente se machuca quando cai e
quando voa a liberdade está nas suas asas?
as árvores abraçadas na tarde me lembram
a cidade une apesar das distâncias
a cidade é relacionamento mesmo vago
a cidade quando dorme sonha o desenvolvimento
de uma ideia fixa sempre em busca dela ou
de outra ideia menos fixa mas mutável
a cidade sabe sonhar e apertar os cintos da noite
para criar a ilusão do progresso e o progresso
é ilusão para os olhos de concreto mas
vivemos bem nessa ilusão pura
quando a cidade sonha e ela sonha muito
nós somos os agentes secretos reunidos
em delírio de cidade em divagação
entretemos a noite no seu sonho
a cidade sonha tão forte que agora sei
das tempestades da madrugada é o suspiro
da cidade sonhadora em travesseiro de nuvens
em céu revolto prestes a mudar de lado
o sonho da cidade é sempre um fim de tempo
que os tempos sejam outros depois do sonho
540
que a cidade precisa dormir mais para ser
que a cidade precisa acertar mais para crescer
a cidade quando acorda apavorada fuma
e suas chaminés contaminam a natureza
façamos para a cidade uma noite tranqüila
para acordar atenuada em sua existência
eu preciso me redimir diante da cidade
ela sou eu em objetos posto no mundo
ela é meu mundo feito outro dado
de mundo em esquadrinhamento
a cidade tem sua doçura
em colméias de gente feita
eu sei do doce da noite
na boca de lobo
eu sei da madrugada fria
é apenas uma necessidade
de corpo repensando a vida
num transe de mendicância
a cidade é revoltada porque jovem
quando a idade chegar ela vai se redimir
lançando livros de memória de tempos outros
em que a morte era o outro lado da vida
(a morte é uma
necessidade para o
renascimento e a
cidade sabe das
necessidades mais
que eu que sei apenas
541
da imanência do aqui
e agora a cidade sabe
do tempo mais que eu
que sei apenas de
ontem e o resto se
torna esquivo e
embaçado na
memória frouxa)
quando a cidade corre a velocidade me comove
o transporte é uma forma de generosidade
nas mãos da cidade eu ando e corro seguro
se quiser a segurança
a cidade precisa da minha decisão e diz isso
através do arco-íris no horizonte em fim de
tarde
a cidade me faz decidir a todo momento e
diz isso
na chuva antes do arco-íris mesmo
tempestade
a cidade fala através de símbolos tão vastos
minha hermenêutica é frágil e não-iniciada
somente os iniciados na arte da urbanidade
podem entender os mistérios dos viadutos
somente os batizados no orvalho da madrugada
542
podem render graças aos encantos do concreto
as montanhas
emolduram o
horizonte
e nada foge ao dia de
luz e à noite
a montanha some
diante do altar com
velas
são os postes velas
para a promessa da
cidade
não há vento que apague os postes eles
suportam toda adversidade a cidade
é fé em cada viaduto erguido em altura
tanta que tonto fico
nem a tempestade mais forte (geradora de arco-íris)
apaga os postes com sua intencionalidade
é que a alma da cidade vibra mais de noite
quando a alma dos humanos pede sossego
os postes são escalados pelos
homens de macacão cor de
trânsito aquela cor de quem
precisa ser visto no meio do
acidente e ser identificado
como salvador da situação
isso de elevação é próprio da
fé e a cidade tem fé tão plena
que invejo a luz sempre
ardente dos postes aquecendo
543
a rua fria da madrugada
cavalgada pelos animais das
carroças pobres
os animais usam viseiras para
não olhar a cidade e
desvendar sua estrutura
dialética obscura para quem
vive em outra dimensão que
não a transcendência
nas cidades do interior ainda há
carroças para coletar o lixo
eu me lembro de um carroceiro
que limpava a cidade de dia
e de noite dormia em paz
enquanto o burro só via o escuro
da viseira sombria para sempre
eu sei que há lixo na cidade
mas o lixo é proveniente
de mim mesmo alma impura
e séria feita
para a purificação
o lixo da alma é pior que o lixo
do corpo e mais eterno e pode
ser que um dia seja reciclado
a vida é
mesmo uma escola!
a cidade fala através de mim
eu transpiro para ser sério
a seriedade é a linguagem
dos verdadeiros iniciados
544
o sorriso é deboche de
quem bebe a cidade
e não suporta o
potente elixir da
eterna juventude
o sorriso dos bêbados
não é provocação da
cidade
é a cidade vista por
outro ângulo que
agora rejeito
a cidade é minha mãe
meu abrigo
minha sombra
meu tempo
a cidade é pouca
por isso me resta
pouco tempo
para dizer
das curvas
das esquinas
das larguras
da profundidade
da extensão
eu sou cogitação
eu sou cartesiano
a cidade é pascal
a cidade me trata bem
545
bem me dá bem me toma
eu preciso enviar um pedido
para minha iniciação... urgente!
poderá iniciar-me o tempo?
poderá iniciar-me a solidão?
poderá iniciar-me o arco-íris?
a cidade sabe de mim mais que eu dela
eu sei pouco dela e ela muito de tudo
que se passa dentro e por dentro corre
esse rio da vida é pleno para nós dois
mas o tempo da cidade é vazio
quando cheio é arquitetura
o tempo da cidade é cio
quando fertilizada é periferia
a cidade me tem no colo
sem ela eu seria nada
ou ela sem mim seria
plena
das estruturas do
planeta a cidade
supera as estruturas
da linguagem
de oculta em
mistérios
de profunda em
semântica
546
a linguagem da cidade é um código
subliminar em cada esquina e há
tantos e tantos que me perco nessa
babel de tempos
diversos
feita
cada esquina uma linguagem
em cada ponto outro fator de identidade
eu não sei se a cidade se reconhece no múltiplo
ou se a divisão é de fato sua es
tru
tu
ra
ninguém consegue a plenitude na vastidão
mas se enterrando no próprio e curto
a cidade consegue atingir o enorme
sendo de base só
li
da
o arco-íris quando surge é o coroamento
da cidade uma coroa efêmera feita de sete
cores próprias assim é a cidade: arco-íris
sete cores em uma re
du
zi
da
o nome da cidade pode ser qualquer um
o nome não é a cidade a cidade é para além
do nome de uma letra após a outra
o sentido da cidade é sempre para além da estrada
547
no final do poema
já exala um cheiro
de dialética no ar
teima em
polarizar
a cidade é um antagonismo
de guerra e paz
de sonho e vigília
de vida e
morte
mas é também de arco-íris
e de outdoor
ou se quiserem: do natural
e do
artificial
a cidade é essa confissão
de temporalidade de dois
lados da mesma moeda
os olhos de
concreto
a cidade é essa loucura
porque não se porta como eu
ela é um objeto de objetos feita
eu sou apenas ao pensamento dado
548
e nada mais que isso: sinto muito
a profecia estava errada ou certa
já polarizada
e nada mais insisto: deixo o verso
para afundar a antinomia
já relatada
a cidade é um cérebro
precisa de
dois
lados
CEM MÓDULOS / 2009
INSTRUÇÃO PARA MONTAGEM
encaixe cada módulo
poético
na caixa sonora
do pensamento
encaixe cada módulo
frenético
na parede instável
do sentimento
LAJE
a laje da casa invade o passeio
o sol não entra pela janela
o lençol com mata virgem
não realiza sua fotossíntese
549
o lençol que era alegre perde suas folhas
o sol não brinca com a química da mata
a marquise é um tabu intransponível
entre o sol e as altas árvores
GEOMETRIA URBANA
eu odeio as retas da cidade
os ângulos esquadrinhados
a certeza da esquina
o resto de rua torta
eu nego à sombra do arco
a proteção que me deseja dar
eu prefiro a sombra da árvore
incerta em broto de qualquer lugar
eu abomino a geometria urbana
seguir os passos no traço do arquiteto
pisar no solo de um projeto pronto
minha memória é da árvore livre
DIA
quando o sol rouba das estrelas o brilho
a manhã acontece
quando a humanidade tira do sol o calor
a tarde desfalece
quando o cansaço deixa o corpo inerte
a noite floresce
VIADUTO
o viaduto da floresta
é leque de cimento
se abre
550
se fecha
sua sombra
sua fresta
me revela
no vento
da tarde
LIBERDADE
grito de liberdade na paisagem urbana
sou eu
diante da bandeira
vermelho e branca
de tiradentes
e companhia limitada
eu preciso de liberdade essa
liberdade que me faz eu mesmo
de
nin
guém
de ninguém
mes
mo
mesmo apenas de mim
por favor comuniquem aos
qua
tro
ven
tos
preciso de liberdade para abrir
as asas
mesmo não sendo
pássaro
quero o vento no rosto e apenas isso
o rosto
o vento
551
EU SOZINHO
noticiem minha necessidade de alforria da vida
dessa vida miserável de escravo das coisas banais
não suporto mais essa
algema
na alma
esse aperto na garganta feito
espinha de peixe
que não desce nem sobre mas está ali atrapalhando o
trânsito estomacal
tirem o prato diante dos meus olhos
e deixem o vazio para me achar dentro dele
não quero mais essa vida estacionada
na esquina
não dobra não dá seta não reivindica
espaço
não por favor publiquem meu grito de
desespero
não quero
relógio
não quero
horário
não quero
você
eu apenas gostaria de estar
ple
na
men
te
LIVRE
LIVRE
LIVRE
552
DOIS LADOS
o coletivo ora tem sombra de um lado
ora tem sombra do outro lado
como um rio em duas margens
como a vida sempre a vida
com lições profundas
o sol ora tem calor de meio dia
ora tem um frio na espinha
como seus braços que para fazer um arco
precisam se fechar sobre minha vida
sufocando minha liberdade
SEM TÍTULO
me abrace
liberte-me
passe por aqui
sem apertar
sem pensar
SONHO
o sonho se abre
olho na fresta
outro mundo
sonho profundo
553
pouco mundo
sonho absurdo
pesadelo oba
pelado sem roupa
o sonho se fecha
olho na testa
SEMÁFORO DOS VENTOS
o vento manobra entre os semáforos
a mão do engenheiro de tráfego
controla a brisa
nunca o homem
logo o homem criatura da natureza
o vento segue as normas do trânsito
da cidade e vai e pára e
nós nós nós
a garganta tem nós
quando ar passa
sem ar há silêncio
quem somos nós? o vento sabe e se cala
nunca paramos para tomar um ar
o ar trafega no ritmo do
engenheiro de trânsito
maldito semáforo dos ventos
554
EU PALAVRA
tudo eu é verbo
tudo eu é palavra
tudo eu é letra
tudo eu é substância sonora
não há nada no eu realidade
não seja eu palavra viva
ou eu morta
o passado é eu letra morta
pronta para eu ressurreição
minha eu carne é palavra
minha eu consciência palavra
eu sou eu inteiro eu palavra
nada no mundo é sem eu palavra
eu mundo
FOLHA
eu sou sombra de folha
na janela balançando
viva
eu sou folha caída
na janela sumida
saudade
555
REDUÇÃO
motocicleta
bicicleta
roda
óculos de gandhi
carro
carruagem
roda
óculos de lennon
ANOTAÇÕES
a escada desce e sobe e sobe e desce
a voz rouca ecoa ainda no concreto
plena como a tarde é plena no dia
é professora desejando o tempo infinito
entre diários eternizando a aula
ou entre alunos dinamizando a vida
a sua passou entre um intervalo e outro
entre uma re[união] e sorrisos múltiplos
ela se vai escada acima
acima do nível do mar
sim, o mar resolve a dor
da vida dos rios cheios
a vida se vai no clima
quente e frio e múltiplo
as estações se foram aqui
parte com a pasta debaixo do braço
16.05.2009 / Despedida de Cláudia Rajão de seu trabalho na
E. E. Paulo das Graças da Silva
556
ARMA
quem produz armas no mundo?
quem coloca a arma na vitrine?
se ninguém arma
ninguém mata
se ninguém morre
ninguém chora
quem produz sonho no mundo?
quem coloca o sonho no dia?
TARDE FINDA
a tarde, não, a tarde não me abraçou
seu colo, seu colo não me deu abrigo
a tarde se vai e dentro dela o tempo
meu tempo, de ser
a tarde, não a tarde não me libertou
seu calor, seu calor não me reviveu
a tarde se foi e perdido nela eu:
eu mesmo, frio
FERNANDO
ah, fernando pessoa
queria tanto
entender o quanto
sua poesia se faz espanto
recheado de encanto
em rima declamando
a vida em seu lamento
às vezes denso
557
mas sempre tento
esquecer que dentro
do meu peito o senso
de viver bate lento
feito a vida sensata
BRASILEIRO
eu sou brasileiro?
porque sou brasileiro?
por causa de quê?
dessa poesia sem nexo ou
de um tapa-sexo de carnaval?
MODERNO
invejo profundamente oswald de andrade
e o seu ser moderno
ser moderno para ser inteiro no mundo
a modernidade nas artérias pulsando tempo novo
mesmo já ido e reinventado
quem criou a pós-modernidade é vazio de modernidade interior
quero primeiro ser moderno para revolucionar meu mundo e fazer
novos os mundos à minha volta
quero ser moderno
invejo oswald de souza
invejo tarsila do amaral
invejo a poesia pau-brasil
no melhor sentido antropofágico
558
quero ser moderno
apenas moderno
viva a modernidade
ÁGUA DE VASO
o passarinho toma banho
no aparador do vaso
roubando toda atenção
da mente
o passarinho não sabe
mas a água do vaso
é para ele mesmo
fazer a festa
o passarinho acredita ser esperto
mas antes dele eu pensei no banho
nas penas molhadas
no bico saciado
o passarinho molhado
leva a água do vaso
para a natureza do bairro
sedenta de umidade
TODO
todo o pensar
é sofrer
antes
todo o sofrer
é pensar
durante
559
todo o amar
é prazer
antes
todo o prazer
é gozar
durante
a vida é todo
ser pleno
bastar
a vida é plena
ser total
estar
Belo Horizonte, 19/05/2009
a tarde caiu triste, pena dela
GERÚNDIO
do gerúndio necessito
para o rio continuar
passando
sem meus olhos
do gerúndio preciso
para o mar ficar
vagando
sem meus barcos
VENTO DE AMAR
medo de abrir a janela
e receber o frio
de fora
para dentro
560
a vida é pura demais
para abrir janela
tão tarde agora
para outro vento
o amor quando se vai
deixai ir sem medo
COMIDA
o show vai começar
as portas se abrem em preto
os funcionários se agitam
a boca saliva
o restaurante se abre
SELF SERVICE
BETWEEN
entre o passado e o futuro
me vou levado pelo tempo burro
entre a vida e morte
ou ando ou perco o trem da sorte
entre o reflexo e a reflexão
vou lutando como no xadrez o peão
561
SINAL/FAROL
vermelho
amarelo
verde
o semáforo para o carro
o tempo, não ousaria!
o semáforo detem o pedestre
a morte, não poderia!
o semáforo prevê os olhos
a dor, não suportaria!
o semáforo triste me olha
saber de mim, não caberia!
FIO
a pomba pesada
no fio de aço
equilibra
a tarde
o pardal sério
no meio fio
delimita
o lado
eu que eu
no frio
persigo
a vida
562
FUGA DE PALAVRA
a estante
o instante
casa
eu
o passarinho
a passarela
rua
ela
há constante
há passante
mundo
nós
TOLICES
a tarde parou para me olhar
nada nada nada
foi apenas um breve pensar
pouco pouco pouco
a fila deixou de andar
ora ora ora
foi apenas dor de amar
tola tola tola
o fogo fechou sua chama
não não não
foi apenas o ar que reclama
sim sim sim
563
CHEIRO
seu cheiro me veio novamente
pelo vento, não sei
apenas ou talvez pelo tempo longo
de dez anos sem ver seus olhos
sua mão apalpou meu rosto
e eu retribuí a lembrança
dedicando alguns minutos
ao amor passado
seu cheiro me comoveu na manhã
um domingo sombrio até então
e você veio levemente tocar
o afeto existente no vento quente
GOTA
o orvalho é a fonte de água da planta
no inverno
o frio corta
o frio queima
inferno
a enchente é o excesso de umidade
no verão
o calor muito
o calor plúvio
inundação
564
ALGODÃO E TEMPO
no fundo do tempo
do tempo do mundo
o algodão tingido
de imundo a limpo
a cada segundo
tic
tac
tingido
limpo
resgate
SEGUNDO HIPERATIVO
o relógio de pulso
no pulso do homem
mede o impulso
do segundo
repetidas vezes
o relógio na parede
passa hora e minuto
mas é o segundo
o primeiro e vário
impulso
OSSO
o osso na boca do cachorro
é gosto de decomposto
mesa posta não tem osso
osso é posto de lado
565
o osso na lata de lixo
se fecha para acabar
já acabara antes na
morte de seu todo
o osso
é parte
do todo
na boca
do cão
partido
REAL
realidade
palavra difícil
quando o mundo
parece inverdade
verdade
palavra inútil
quando a mente
parece irrealidade
MENTE
a fotografia sobre a mesa
a mente sobre a cabeça
nada há senão
imagem
a melodia no som da sala
o ouvido mede a nota
antes então
silêncio
a mente mente
a gente sente
566
SEM TÍTULO
fundação
buraco
linha
fundo
chão
minhoca
canhão
linha
toda
mão
quente
pulsação
linha
fundação
buraco
RITMO
depois da tarde
a noite parte
a hora
depois da noite
o dia arde
a sola
dias e noite
ora bolas
567
FÉ
vou com
pé
volto na
fé
se parto
a pé
se fico
de pé
se rezo
fé
duvido
não é
fé
sou
eu
de pé
NOME
o músculo da língua
a contração do lábio
o céu da boca em lua
seu nome é palavra
a batida do coração
o sangue rápido
o peito em tambor
seu nome é emoção
meu corpo sabe
cada sílaba tônica
do seu nome
na alma
568
TRINTA E SEIS
eu me senti hoje com 36 anos
trinta e seis anos nos braços
nas mãos
os pés
todo trinta e seis anos na cabeça
sim! na cabeça me senti com tempo
passado e o dia se iluminou e o espelho
parou de mentir: a verdade veio forte
trinta e seis anos sem nenhuma culpa
culpa? a culpa não cabe nas rugas
nem nos cabelos que se perdem
belamente nas horas e no vento
trinta e seis anos repletos de tempo
hoje eu me presenteie com a idade
real, fundamente real, tanto que
a alma soube mais de mim
trinta e seis anos
o começo é agora
QUANDO AINDA AMO SOU EU
sobrou... uma dor passada em kilômetros
nas ruas eu me desfaço ainda do seu ser
sepultado mas vivo dentro de mim todo
por todos os poros em que sinto a vida
faltou... informar-lhe das horas à toa
diante do tempo passando o filme velho
das horas diante de mim através de sua
velha e sempre velha capacidade de negação
569
não posso deixar esse verso sem término
de nós não houve o fim apenas o deixar
passar o tempo das cartas de amor e dos
bilhetes de juras eternas de amor infinito
não acredito ainda nisso: lhe vejo dentro
em profundidade partindo minha noite
e de vazio enchendo a manhã fria de agora
não sei se desejar seu corpo é algo real
não posso deixar de dizer: ainda lhe amo
em todas as ridículas tramas da vida
e mesmo no desenrolar dos fios frágeis
eu sou seu com toda minha verdade
eu sou seu e isso me basta
no frio espaço entre lembrar
e esquecer de novo para continuar
vivendo a vida: resto da sobra de nós
POUCO AMOR
o seu corpo é outro
me abraça me beija
é pouco por ser isso
torto
o seu pouco é corpo
feito outro me deixa
é torto por ser isso
pouco
o ser torto é tudo
a sobra e a queixa
570
do pouco desse seu
corpo
me ame como puder
se sobra tempo ou
pouco corpo eu
sofro
QUINZE MINUTOS
quinze minutos para escrever um poema
talvez se eu dividisse cada verso em uma centena
desse a conta exata dos ponteiros em cada trema
mas o trema nem existe mais e o tempo passa
o verso se enche no papel de uma vontade crua
é que às vezes eu esperava o verso solto na rua
agora eu tenho apenas quinze minutos e por isso
o tempo é uma corrente que me segura
o tempo dispara o coração pulsando meu no peito
o tempo é pouco e a alma é relógio em despeito
dos quinze restam tão poucos segundos e vejo
no papel o tempo consumido de qualquer jeito
passaram-se quinze minutos?
não sei... apenas sei da pressa
PASSADO PARA TRÁS
o passado é a imagem feita eu
de frente para um espelho
apenas breu
não sei se o quero agora
571
dentro de mim total
apesar de outra hora
o tempo de juntos nunca mais
o passado ficou no ontem
não volta jamais
MESMO
a folha caiu do alto
o vento desarrumou
a vida
a folha partiu abaixo
encontrou viva folha
e colo
mas veio o vento de novo
(o vento é novo no sopro)
e jogou no chão de terra
o corpo da folha morta
mesmo mortos temos colos
mesmo no tempo sopra o vento
mesmo no dia há calor e frio
mesmo eu há outro ouvindo
METAFÍSICA
acima do sentido opaco do objeto
o sentido agradável do animal
se faz diante dos olhos
acima do brilho fosco da mesa
os olhos vivos do cachorro
me faz pensar em mim
572
sou acima em mente
mas nem isso faz
da mente apenas
pensamento
estou pensando o objeto
e o animal irracional
e há vida na palavra
de cada um deles
LIMITE
o vaso limita a planta
para baixo e para cima
na raiz se faz a altura
na extensão do vaso
o corpo cheio ou feio
o vaso imita a vida
não se pensa fora
da mente dentro
não se sente longe
do peito ardente
TELEFONE
o telefone se arrepia
e toca para dizer
da alegria
de ser
ele
o telefone em calafrio
pede para ser
o seu motivo
de estar aqui
tocando
573
GRAMPEADOR
o grampeador sobre a mesa
tensionado em dois pólos
um deseja o outro
precisa da mão
eu dou a mão para os opostos
e o grampo fura a folha
e realiza o seu ser
unindo o separado
o grampeador precisa da mão
para apertar sua vida e
dar oportunidade
realização
o grampeador me pede folha
mas além da folha mão
além da mão
atenção
FOLHA BRANCA
uma folha em branco
é pensamento do lado
de cá sem necessidade
de escrever-se
a folha escrita é nome
atrás de nome fila
indiana de letras
unindo a frase
quando no papel
o pensamento é
a roupa da folha
um dia branca
574
PERGUNTO, APENAS
o estágio em que me encontro?
não sei se me encontro antes ou
depois do ontem feito longe
o ponto de equilíbrio já chegou?
não sei se me permito
viver entre treva e brilho
a vida é foi ou é bela?
pode ser pouco
desejo só abrir janela
LÁGRIMA SECA
a lágrima secou na lente dos óculos
o tempo apaga a memória sempre
eu não sei se ontem chorava ou
apenas lembrava
a lágrima deixou sua parte mineral
bem na lente que me faz ver melhor
a água da lágrima se foi para sempre
como eu não sei de ontem a lente
o passado brinca com meu humor
deixa estar sempre assim: mudar
o passado rima com todo o fim
faz passar o indo para o findo
SOM E MENTE
o espaço entre a música no alto-falante
e meu ouvido ligado à mente
é ondulação
(minha mão não pode evitar a sonorização)
o que há entre o som se expandindo
e meu ouvido vibrando em mente
é auscultação
(minha mão só pode desligar a emissão)
575
NADA É O TEMPO
o tempo é um nada
se fosse algo
seria água
o tempo é nada
se fosse todo
seria lodo
o tempo é nada
se fosse eu
seria riso
o tempo é nada
se fosse meu
seria isso
o tempo é nada
se fosse hoje
seria céu
o tempo é nada
se fosse noite
seria véu
o tempo nada é
se fosse mar
seria maré
o tempo nada é
se fosse lar
seria café
576
TUDO DE NOVO
o próximo poema
esse sim, é o necessário
o poema feito é outro
tempo vário
o próximo verso
esse vai me tornar feliz
o verso realizado é duro
feito cicatriz
MOVIMENTO
eu me reviro na cama
para um lado
para outro
na mesma base de estrados
eu me banho no chuveiro
de cima para baixo
de baixo para cima
na mesma posição inteiro
eu levo a xícara à boca
num vai
num vem
para acabar à toa
CINCO SENTIDOS
o tato me diz do frio
mas do trato me diz
o costume
o olfato me diz do cheiro
mas do fato me diz
a história
577
a audição me diz do som
mas do silêncio me diz
a música
o paladar me diz do gosto
mas do dar-se me diz
o amor
a visão me diz do fundo
mas do coração me diz
o mundo
NÃO META O NARIZ
o copo verde
de borda longa
sobre a mesa
cabe o nariz
o nariz vai antes
da boca
que depois
beija o copo
o nariz permanece
dentro do copo
para que boca
prove o suco
o canudo
quando em uso
não deixa meter
o nariz
o canudo
quando junto
deixa o nariz
de fora
578
EXTERIORIDADE
o que nasce de dentro para fora
eu sei: o espelho me mostra
o que nasce de fora para dentro
nunca sei: fica em lugar estranho
eu quando penso penso cores
além de cores penso sons
além de sons penso se posso
guardar o que de fora vem
FRIO
nem a noite nem o dia
empolga-me pouco
o frio do inverno
o corpo fica lento
e lento tudo em volta
e rodo pela casa em transe
LIVRO
viro a página do livro
e outra página vem
a poeira deixada
para trás vai
a melhor é a próxima
ou a que foi já lida?
se para frente se pensa
para trás se valoriza
se para trás se dispensa
para a frente com a vida
579
MUNDO
alergia ao mundo
tem gente com isso
alegria no fundo
tem gente sem isso
o mundo irrita
como o chato
o erro não é do mundo
o que falta é tato
no fundo
o mundo
é quente
como gente
INDIFERENÇA
enquanto a grama cresce em tons de verde
enquanto a lama seca no brejo plano
eu fico entre planta e terra
olhando
depois do sol quente na pele eu viro a página
com um banho quente para receber a lua
mas ela fica grande e pequena e não sei
abrir a porta é muito para a noite fria
enquanto a coruja caça o rato na alta noite
enquanto os pássaros viram a cabeça sob a asa
eu tiro um tempo para prosseguir
olhando
O DE FORA
coço os olhos e o mundo some
resta algo dentro e tem nome
sou eu mesmo
580
durmo o corpo e o mundo coube
inteiro na mente sonolenta
eu sonho lento
passo a mão sobre a cabeça e dentro
há processos de dois mundos
eu interior e fundo
o mundo de fora
o mundo de dentro
se despisto o tempo
resta sempre eu mesmo
LÍNGUA ÁSPERA
eu encosto na palavra de leve
a abstração da letra
me faz cair
eu recosto no verbo devagar
a ação da sílaba
me faz declinar
eu suporto o substantivo calado
o nome é símbolo
me faz pensar
eu detesto o adjetivo pejorativo
o outro é defeito
me faz tropeçar
as palavras vibram em mim
eu vibro com o som delas
na língua áspera
581
CONTRÁRIO
quem errou o sentido do conceito
eu mesmo ou outro enganado?
às vezes penso na infância
com mentiras enormes
às vezes me delicio
com a mentira desvendada
mas se é possível a mentira
por que não pensei ao contrário?
o oposto nem sempre é verdade
a aposta nem sempre é vitória
sempre acho cruel pensar
porque pouco se sabe real
BIOSFERA
sobre a terra eu vivo
nada mais que livre
muito menos tive
outra pretensão
sei do espaço: existe
é onde respiro
e sinto o peso
e sensação
na esfera eu me caibo
e se o ar acabar
a vida se vai
esgotar
582
VERSO BREVE
o verso breve
fala leve
quase
neve
o verso curto
fala puro
salta
muro
o verso mínimo
fala cínico
assassino
frio
BINÓCULO
olho para baixo
há muitos anos
desde pequeno
ereto
olho para longe
há poucos anos
desde com amor
repleto
ABACATE
o pica-pau no chão
come o abacate
junto com
o sabiá
eu pensava que ele
fosse apenas de larvas
de tronco podre
583
o pica-pau gosta da moleza
assim como o sabiá
o sabiá não tenta
a dureza
eu pensava que sabiá
fosse apenas de abacates
mas é amigo do pica-pau
a moleza do abacate
agrada o malandro
pica-pau
SONO CANINO
o som toca de leve
os ouvidos dele
e se entrega
o bigode recolhido
as orelhas murchas
a calda caída
os olhos revirados
o focinho seco
o pensamento longe
tão longe que ressona
debaixo do cobertor
de listras em marrom
o som toca de leve
e leva o cachorro
até à praia de itacaré
nos braços da canção
de nana caymmi
dorme sossegado
no som da maré
dorme confortável
no leve som
584
BANHO
no banho a água se espalha
por dentro e por fora sou
o que se molha
no banho eu apanho do quente
ou do frio inconsistente
do início
no banho eu fico de bem de pé
sentado só quando sofro e penso
que chove ou água é maré
no banho eu me calo
se canto o momento
é estranho
no banho eu não sou nada
apenas um corpo e espuma
na pele me perfuma
o banho muda a rota
como roupa suja lavada
limpa mas sempre desbota
VOLTA, MUNDO!
a volta ao mundo
girando pelo eixo
num rodopio frio
ou no equador
como voltar ao mundo
depois do giro completo
sobre o eixo da bola viva
585
a terra de baixo ou de cima?
a volta ao mundo
é rápida nos pólos
eu quero um pólo
para me entender
DENTRO E FORA
o alimento sacia por dentro
o corpo com saídas pra fora
o vento espalha o cabelo por fora
com raízes presas por dentro
a chuva molha os poros da pele
cheios de sangue por dentro
o sol queima o rosto pela manhã
e de tarde a febre queima por dentro
o mundo é de dentro
o mundo é de fora
eu sou de mim mesmo
(parece... até agora)
FRAÇÃO DE TEMPO
dos tempos diversos faço a vida
não de tempos eternos
mas de frações
o tempo é vasto demais
para ser toda a vida
dos tempos dispersos faço a vida
não de fases definitivas
586
mas de períodos
o tempo é casto demais
para ser gerador de tudo
DESEJO
a pele sente a outra pele
o desejo é pele e pelo
o desejo é pela pele
o olho prende o outro olho
o desejo é olho no olho
o desejo é pelo olho
a mão toca a outra mão
o desejo é mão na mão
o desejo é mão no chão
o corpo entra em outro corpo
o desejo é penetração
o desejo é sensação
ESPÍRITO
o de dentro mais profundo
esse sim sou eu puramente
eu mesmo no labirinto vivo
de vidas e vidas e vidas
o espírito é a medida do eu
arquivo de si para o seu
nada mais que si mesmo
o tempo todo inteiro
o de sempre e outro
o de nunca e vário
587
pode ser agora e é
o seu contrário
eu sou a essência do que ele é
e dentro dele a vida é toda
nada lhe escapa na memória
sempre é parcial o tempo
o espírito não é frio ou quente
é apenas e nada mais que isso
o de dentro mais dentro
e fundo da gente
SEM TÍTULO
o satélite artificial
depois da órbita
caiu no chão
588
UNHA E BARBA
a unha corto e ela cresce
o crescimento é total
enquanto na vida animal
há o que interesse
o pelo no rosto não para de nascer
desbasto e ele insiste em permanecer
não sei se devo parar de pensar
para a vida parar de aumentar
IMITAÇÃO
o barulho em tudo se assemelha
contudo, a abelha
sabe que não é ela
as gotas em tudo imitam os sons
entretanto, o grilo
sabe que não é aquilo
o artifício pouco remedia
a seca do chão no inverno
é tempo de estiagem
[água de mangueira no jardim]
POEMA CANSADO
o cansaço veio como um abraço de urso
nunca vi um urso de perto mas se assemelha
o cansaço me veio sem seus braços a água
do chuveiro era quente mas sem sua presença
o dia acabou cedo, bem cedo! mas continuei nele
tão ativamente atado e ele me sugando as energias
que dia cansado desde o início, meu deus...
meu deus, eu preciso de uma nova filosofia
589
NOITE SÓ
na noite vejo sua ausência
em cada canto da cidade
no cata-vento do jardim
na hora parada do sinal
na noite a sombra do ontem
é diversa em todo meu ser
torço para surgir a aurora
para a inteireza voltar
quando passo rápido
o olho veloz
sua saudade me pega
noite voraz
ESPELHO
no espelho eu vejo
mais de mim
ao avesso
inverto
no espelho eu teço
linhas de mim
no tear
mental
no espelho eu meço
pontos sem fim
a geometria
mentirosa
PERGUNTA
a pergunta de hoje é simples
tão simples que a guardo
590
no fundo das horas
do dia
a pergunta agora é jocosa
talvez por isso necessária
me ronda há dias
a fio
a pergunta interior é própria
de tempo vago de vagar-se
sem nenhuma nitidez
no frio
a pergunta não se faz alta
baixa baixinha pouca
o tom questionador
angustia
MOVIMENTO
eu subo a ladeira
se desço é fácil
prefiro o alto
não o baixo
eu fervo no carnaval
se fico em prece
o tempo é vago
nada acontece
eu cruzo o caminho
se estaciono é pouco
movimento total
risco fatal
591
ESTANTE
na estante o livro
cala toda palavra
ele se fecha
silêncio
como antes o livro
é palavra vagante
ele se abre
diálogo
o livro aberto
é palavra viva
na estante há corpos
letárgicos aptos
comunicação
LOUCURA
dos loucos nada sei
como não sei se razão
é louco vagando
sem emoção
pouco sei da loucura
se elogio ou frescura
sinto admiração
pela divagação
nada sei dos loucos
nem da loucura pura
do puro louco simples
outro de brilho pouco
592
DEFINIÇÃO
dicionário não sou
mas significo muito
para mim mesmo
imaginário não sou
pois existo diverso
e não a esmo
inquebrável eu sou
curvo quando sofro
minha estrutura
me segura
questionável eu sou
a dúvida me dobra
é minha fratura
me cobra
HERA
o muro exposto ao tempo
do grafiteiro
do pichador
da cidade
o muro tapou o rosto
e nunca mais se deu
ao grafiteiro ao pichador
nem mesmo à correria da cidade
a hera cresceu nas suas pernas
escondeu a nudez para sempre
ninguém jamais vai abusar
do branco de sua pele
a hera escondeu para sempre
a memória do muro urbano
593
LÍRIO
o lírio cresce no vale
longe dos olhos
sempre
pronto
o lírio desce raízes
distante das mãos
eterno
ficar
NOITE IDA
o ônibus bocejou comigo
o último resquício da
noite passada a frio
a fio a fino trato
a manhã engoliu a saudade
da noite em cada minuto ido
para onde é que se vão os sonhos
depois do dia nascido?
QUANDO
quando sacudi a poeira
nas costas do tempo
me fui com ela
efêmera
quando subi a ladeira
com o mundo nas costas
me fui com ele
pesado
594
quando eu lavo as mãos
de um jeito tão belo
me dei a pureza
espiritual
CAMA ELÁSTICA
o trapezista roda o ar em volta
de cada movimento circular
se ele desce e sobe e vai e ergue
há proteção: cama elástica
HORA
não há hora pronta
ela vem aos poucos
início
meio
fim
no fim a hora é tonta
passada para trás
passado
presente
futuro
não há hora santa
o tempo é pecado válido
inferno
purgatório
céu
595
OPOSTO
eu vou para um lado
eu venho para outro
não paro na maré
fico em pé
a vida leva
o pouco erra
a vida traz
o muito era
não sei se fico no claro
ou se o escuro me ocupa
se a vida é um ambíguo
texto sem nota de rodapé
SETE PALMOS
acima da nuvem o céu
se abre menos véu e mais intenso
debaixo da nuvem eu
me fecho mais meu e mais tenso
acima do chão os pés
abrem caminhos próprios
debaixo do chão se é
dos sóbrios o menos
ACHADO
se vai mais um tempo diante
diante da vida que se faz tempo
596
de tempos em tempos me vejo
vendo o ido tempo de se ir
eu me perco no tempo e me acho
vendo no tempo o perdido achado
e é assim nessa marcha para o todo
ou o breve achado que sigo e me perco
não me ocupo do perdido apenas do achado
não me preocupa a hora ida finita em passado
me busco na hora vaga que ainda não se projetou
nem se fez hora ida que abandonou meu relógio
eu me perco e me acho
no tempo e no vago
MODULAÇÃO
a vida é um módulo
junto ou separado
que se separou
ou vai se juntar
a vida é um móvel
dentro ou fora
que se fez dentro
ou se perdeu fora
PEDAÇO DE SENTIDO
a rotina me ensina
na retina
597
a menina me fascina
e nina
a bicicleta me enrola
discreta
o pássaro me eleva
rápido
a vida é passageira
ida
ÓTIMO
otimismo diante de cada gesto
mesmo o inútil carregado de matéria
otimismo diante de cada festa
mesmo a fútil carregada de hipocrisia
otimismo perante o dia e a noite
mesmo com um peso entre os dois
otimismo perante a vida e a morte
mesmo com o medo mais forte
otimismo na vida
a vida é sempre
lição de fazer-se
ótimo
598
O SOPRO DO TEMPO NO RELÓGIO DO TEMPO
INFÂNCIA – 2010
1
eu me via ali
naquele lugar
de verde morro
vivo quando lá vi
vo
no plano espiritual
havia um si
nal
um lugar do alto
na tela posto
na boca de mulher
feito projeto de vi
da
no plano material
fez-se na
tal
serro é lugar ambíguo
difícil de viver
bom de aprender
duro de es
que
cer
minha terra natal
é simples demais
para ser grandiosa
ou
te
a
tral
599
2
desci para uma barriga
que até hoje até agora
me guia
o umbigo do mundo
no útero feito caverna
esqueci do tempo
vidas outras passadas
o tempo se renovou
nove meses de 1972
de fevereiro a outubro
o corpo se plasmando
no oleiro da criação
3
quem terá acariciado
meu corpo
pequeno feto na barriga da gaúcha?
sinto os dedos do cotidiano
fazendo de mim realidade
a roupa lavando
o fogão com panelas
eu fui levado para lá
e para cá fui chegando
a vida se liga
entre céu
e
terra
quem terá falado de vidas passadas
no ouvido direito de minha mãe?
600
4
a família já era grande
cinco pratos postos na mesa
cinco bocas para alimentar
eu para chegar
a família quase completa
dos filhos o último
ainda feto
no útero
o casal mais cinco filhos
sete destinos entrepostos
debaixo do mesmo teto
de amianto quente ou frio
5
a casa de caridade
recebeu a barriga
nove meses após
para esvaziar-se
fez-se o parto
fez-se a luz
mesmo
na noite
a lua de outubro
são jorge
a espada
um fruto
dia de são lucas
601
dia do médico
dia de alma
ligada ao corpo
6
nascer é atividade terrena
de corpo ligando alma e
ter
na
tornar-se ser-no-mundo é muito
para um feto posto no mun
do
nascer abrir os olhos descobrir
o muro entre o finito e o in
fi
ni
to
nascer é dar-se outra chance
para fazer-se novo depois do an
tes
7
o médico faz nascer do útero
a nov[idade] para o mundo
as mãos arrancam do fundo
o menino para o tudo
o médico sopra na alma
anuncia o princípio
acorda! venha para fora!
602
o mundo surgiu em duas mãos
no primeiro abraço
o tempo e o compasso
no primeiro tato
a medicina da vida
medicina ensina a vida
a cuidar de si mesma
8
casa de caridade santa tereza
das irmãs de são vicente de paulo
no corredor das barrigadas
angelina espera a hora
o corredor de clarabóia no teto
anuncia a salvação pelo alto
deus está onde senão no céu?
deus se fez luz nos olhos azuis
o hospital de pobres e ricos o único para todos e todas
abriu o quarto para angelina ela deu ao mundo um corpo
no mesmo espaço de nascimento
a morte espera no leito
dor no peito ou mesmo
dor de vida triste
no mesmo espaço do surgimento a morte é a triste sombra da noite
melhora repentina traz o velório pausa para rever a vida passada
603
9
infância se mostra
no espelho retrovisor
me vejo no tempo
ido para sempre
infância se coloca
no espelho d’água
eu afundo o corpo
na memória
não há medo de perder-se a infância é
porto seguro
10
colo e peito
poesia
leito
afago e cheiro
filosofia
feito
mãe é sonho
bom
sempre
11
o leite quente na boca
como promessa de tempo
farto
604
o leite é investimento
na bolsa de valores
do tempo
o leite me alimenta
ainda hoje quando
dá sede de vida
12
a pinta grande no pescoço eu a vejo como um amuleto de toda
sorte na vida é que a foco num ponto do espaço faz da mente um
alvo fácil para o conhecimento
a pinta pintou
o sete
a semana era
peito
e pinta
a pinta grande ainda a mexo no pescoço da minha mãe como
recordação do ritual de colo peito atenção e tempo de saudade da
infância antes da ladeira da vida
13
não havia a cidade
nem o medo
nem o tempo
não havia o outro
nem o amor
nem o sempre
no colo
ainda se é
apenas pro
mes
sa
605
14
agarrei-me ao colo da minha mãe como quem sabe que um dia
virá a porta aberta da vida a passagem para o ônibus a vida que
vai empurrar para a
lágrima primeira
a lágrima de fome não dói
a lágrima de amor essa não sai
se soubesse da vida do amor e do sofrimento pediria para imantarme ao colo quente ao peito farto ao momento puro
para dele jamais sair
a saída da vida é pelo caminho do meio
meio, equilíbrio?
ainda não sei o que é isso...
15
o primeiro passo de criança
é saudade de colo
o primeiro passo sozinho
é retorno ao peito
saudade do primeiro passo
aquele que a memória
encobriu de orgulho
saudade do primeiro chão
aquele que a história
revelou vão
o primeiro passo de criança
606
me criou o medo claro de sair
e nunca nunca nunca voltar
ao colo de mãe
16
o caminho entre o quarto e a sala
entre o brinquedo e a área
era muito grande
o caminho entre a vida e o amor
entre a existência e a dor
era óbvio instante
o caminho se deu na vida pelo primeiro passo
dele nunca mais me libertei alguns chamam isso
existência liberdade
destino
ou finitude
17
cada quarto e cada cômodo
uma cor diferente
é que meu pai
tinha alma
multicolorida
cada passo e cada tombo
numa cor
irreverente
verde vermelhão
tinha lição
esclarecida
607
18
eu quero o chão da infância frio como alma de morto posto
sobre a ca
ma
para se vestir
eu quero o chão da infância frio feito alma sem amor deposto
na vida que se
vai per
dendo
eu quero de volta o chão nele me reconheço mais sou mais
de m
i
m
que hoje
19
as meias sujas
o bico imundo
o brinquedo
barulho
o berço rouba o colo
o travesseiro o ombro
a cozinha
atenção
crescer é ser roubado
ou roubar de si o tempo
que se vai para a frente
mata quem está dentro
608
20
quando vejo o tempo dos primeiros dias nas lembranças quase em
preto e branco sem cor da
vi
da passada em montanhas outras e
tantas e vastas
quando sinto o tempo no espelho negando a imperícia da
caminhada o rosto que se ia fazer para outro se tornar a delícia da
vida tola
vem uma vontade de amordaçar o relógio e asfixiar seus pulmões
e quebrar as pernas dos
pon
tei
ros para não andarem como eu um
dia aprendi
eu me arrependo de não saber na infância que era a infância ali
presente se soubesse não a teria deixado ir tão sem memória e sem
nitidez como agora vejo que se passou
quando me vejo agora sou apenas um pálido reflexo do tempo ido
que se expressa apenas nas imagens vagas do primeiro passo e da
pretensão de ganhar o mundo
mundo?
como assim, mundo?
o mundo era apenas eu e minha mãe num tempo fundo
porão de chumbo
609
21
as flores,
quais eram as cores?
não registrei a paleta
não sei onde estive
sem cor para nomear
as cores,
quais eram as flores?
não dei conta de sua graça
não soube nada de sua raça
nem cheiro para cheirar
22
roupa quente para o inverno
corpo nu para o calor
não sabia de corpo
sabiam para mim
temperatura corporal
febre ou não doença
a pele da mãe sabe
o que destoa
o chá na mamadeira
para dentro a tradição
do tempo barroco
afasta toda inquietação
o corpo esse que sou eu dentro
me era tão distante de mim
não podia formular ideia
concreta sobre a existência
hoje, somente hoje,
o calor é indício de febre
ou de amor eterno
ou paixão leve
610
23
corpo sem regras
prisão de ventre
doença certa
corpo de criança
urina que excede
doença ou peste
eu quando criança não sabia dos controles de esfíncteres e da
bexiga e devia ser muito
di
ver
ti
do
não se controlar borrar nas calças ou mixar em público coisas tão
feias para os adultos e que a vida da civilização proíbe ainda bem
que a infância permite experiência de
li
ber
da
de total
24
ser servido
fartar-se
a vida na
adaptar-se
ao mundo
após o choro
para descansar
infância é útil
pelos prantos
fútil
25
pelos não havia pelos em nenhuma parte do corpo
cabelo só cabelo ralo e curto e pouco no couro
611
a vida biológica indica o desejo
prazer não havia prazer em nenhum lugar além da boca
fazer o quê?
o mundo cabia na ponta da língua
a vida biológica muda o sabor do beijo
26
a cidade em volta era abstrata
necessidade nenhuma
de rua
ladeira
beco
a cidade grande ou pequena
podia ser o que fosse
eu
em mim
cabia
que desse o beco na rua
a rua na estrada longa
eu não estava nem ai
para os caminhos
importava-se o trajeto
único e possível
do chão ao peito
do peito ao leito
612
27
o chocalho vibra seus agudos sons nos tímpanos provisórios
ele se foi mas me deu sua sonoridade
para ser o que era
aos brinquedos quebrados, perdão, pela dor da destruição
a infância quer construir um novo mundo
sob os escombros
tinha eu culpa por não saber das mãos fazendo arte na madeira
podia me condenar quem fosse pelo prejuízo à ciência
dos costumes infantis de destruírem para crescerem?
mordi os bicos e chupetas devolvendo sua borracha ao inútil
cada caco de carrinho feito era eu aprendendo o mundo
a lição da destruição infantil bem sei dela agora
ser adulto é construir muros
INDESTRUTÍVEIS
entre si e o mundo
28
tristeza não sentia
se sentia passava
entre um colo
e outro
tristeza não curtia
se curtia chorava
e ria novamente
e pronto
a madureza da vida
não é como da fruta
fruta pronta se revela
eu pronto
me
reservo
613
29
ausência do que hoje sobra
é o tempo na janela
agitando a copa
da árvore bela
o que poderia faltar
se o peito e a mãe
eram o sagrado
mineiro altar?
30
a infância vista de longe
como fim de tarde triste
é mosaico
tento juntá-la
ela em mim
se sou eu que se avista
meu olhar talvez insista
reconstrução
preciso fazê-la
por mim
mosaico do tempo
reforma da vida
edificação
eu me juntando
em cacos sem fim
614
31
o que do seu leite me veio
não posso afirmar
ao certo
a idade passou
a vida também
o que de sua voz se eternizou
não posso sussurrar
como em solfejo
o calendário avançou
a estação é outra
o que de seu aconchego eu tenho
não posso ninar em palavras
pois meu colo é vazio
os móveis saíram da moda
e não me sento no mesmo
tempo
32
será que
as mães
se cansam
em algum lapso de tempo
do ido tempo
cuidando?
será que
as mães
se lançam
em devaneio e se fosse...
tenho medo
seria eu vivo?
615
33
templo eu edificado
tempo eu presente
futuro
passado
a arquitetura do corpo
erguida no meio do mundo
que se dá como raiz de fundo
a vida é plena de estruturas
eu sou um templo
sagrado para mim
uma oração
sem fim
eu sou um templo
céu ou teto
um coração
partido
o templo se ergue frágil
frágil porque dado
de mundo
ágil
eu me quero templo
trinta e três vezes
perdoado
reerguido
616
joguem-me no chão
que a lição da infância
me fará reerguer
pedra
pedra
pedra
por
pedra
pedra
pedra
34
a música de ninar
esmorecendo
eu criança
o gato
a casa
a música de sonhar
tirando-me do chão
a canção mais bela
vem da infância
ple
na
35
a visão de céu nunca infinito
no colo da mãe o céu é pouco
o mundo em volta é tonto
eu preferia o rosto de mulher
617
não avistava longe o avião passando
nem o cruzeiro do sul me guiando
a visão limitada da realidade
me fez apaixonar mais fácil
quando o mundo se abre
a visão se dispersa
para achar o amor
nada guia
pudera voltar
ao tempo de
olho no olho
daquela
sinceridade
ingênua de
filho e mãe
mas o tempo
renova as telas
da cidade
entendi: o
tempo passa
para casas e
gentes
36
o choro avisa e consola
desorienta e apavora
por isso até hoje
choro com medo
e o feio se faz desde pequeno
a lágrima é receio de dor
ou de doença para a mãe
um aviso ao universo
618
o choro de ontem me banha
a face sem vergonha apesar
das frases de vergonha
impostas de fora
o choro é um batismo
é a primeira e única
identidade da alma
37
a água fria na testa
nas mãos de cônego júlio
homem tão alto
meu batismo
foi uma cascatinha
nascer em espírito
através da água
benta que arrebenta
o umbigo espiritual
a carne é pecado
a igreja sempre alta
eu pequeno ser renascido
quanto mais alta a parede
maior a liberdade de quem está
do lado de fora
a primeira lição do
pecado
é que o pecado vem
de fora
619
38
o batismo me deu uma madrinha
e dois padrinhos acima de qualquer
mas de qualquer suspeita
zico era um padeiro negro do botavira
suas mãos até hoje me dão uma moeda
para comprar balas
seu nadir um mecânico católico do botavira
de olhar honesto e de família grande
boa para tomar café da tarde
pedrelina senhora de fé de filhos e de única filha
de casa cheia de mesa farta de porco no chiqueiro
e de quintal com campinho e
chup
chup
o batismo me ligou para sempre ao botavira
onde quem vive se vira
quem morre sobe o morro
para o rosário
a benção até hoje ouço
“benção madrinha”
“deus lhe abençoe”
zico morreu
muito
novo
620
39
a crisma foi no mesmo dia
antes o padre salvava
a alma de uma
e única vez
a crisma terá sido válida
como saber se dela
posso me usar
para
o
c
é
u
?
40
as igrejas da minha cidade
tiveram cemitério dentro
a do rosário hoje tem fora
todas encomendam almas
fazem missa de sétimo dia
pedem e nunca dão esmola
as igrejas são tão antigas
que os jovens preferem
o lado de fora
621
41
eu não usei tampão nos olhos ou em um
ou no outro de cada vez
nasci de nove meses inteiros
e mirei corretamente o médico
eu não usei tampão nos olhos por isso tenho mania de equilíbrio
por isso tenho raiva
do dia perdido
por isso fico sem graça
diante da pouca visão
eu não usei tampão nos olhos por isso tenho loucura pela
to
ta
li
da
de
42
meu umbigo foi enterrado no quintal da casa de
dona odília
a mesma casada com
mário o motorista gordo
que de tão gordo tinha uma enorme alegria de viver
meu umbigo foi plantado no quintal bem debaixo do
sabugueiro
de flores
brancas
622
ao lado da nascente de águas claras que abastece a cidade inteira
na falta de água nos canos
meu umbigo foi abandonado na terra para se decompor e fertilizar
a vida em volta do quintal e nenhum bicho ousou retirar dele a
vida que dele saía
é por isso –
acho que talvez seja por isso –
da minha paixão pela água que nasce da terra pelas flores que tem
raízes no solo e pelos quintais com frutas maduras
é por isso – acho que ao invés disso tudo – que eu amo o solo do
meu primeiro sepultamento dos meus primeiros tombos dos meus
primeiros passos e dos meus primeiros erros
o umbigo enterrado no quintal de dona odília deu
o norte na vida e o sul na família
43
tive sorte
na minha cidade
muitas das crianças
morrem muito cedo
tive muita sorte
na minha pequena cidade
centenas de crianças miudinhas
morrem tão cedo que o caixão é de abraçar
tive muita e grande sorte
na minha ilustre e pequena cidade
centenas de crianças desprotegidas e mirradinhas
batem as asas cedo que nem se ouve o vento na maternidade
623
44
eu pulei em seus braços
(a expressão é forte
e atual porque me peguei
escrevendo agora)
eu chorei de alegria quando o vi
(eu teria chorado de qualquer
maneira mas é que me achei
mexendo na gaveta da memória)
um homem magro de bigode de vida curta
seu abraço
me falta
e me falta
por causa
do tempo que passa as vidas entre si
como viagem de trem e paisagem
eu sinto o coração forte
quando
penso em seus braços
eu sinto a vida sem morte
quando
penso no seu colo
45
os braços de homem seguram
para não deixar
cair
não para abrigar
624
os braços de pai
asseguram
for
ça
extra
ordinária
na vida longa
os braços do meu pai revestem
todo o perigo de graça
é um não-abrigo
necessário hoje ainda
46
a paternidade é de fora para dentro
a maternidade de dentro para fora
seja isso o que for eu só me lembro
disso quando a memória do pai aflora
o que há de fora para dentro é o mundo
por isso no mundo a filiação é mais forte
menos íntima na carne mais explícita
no pensamento
quando a paternidade se revela na alma
a admiração é como flor na janela
jamais se abandona por fora
se faz de dentro e agora
meu pai vive tão fundamente na alma
como fonte jorrando da terra
o tempo dá a margem e o leito
o amor é abundante
625
47
fim de tarde
ou começo
da noite
eu e berenice
sempre na cozinha
perto do fogão de lenha
meu pai nos coloca no colo
e rimos em alucinante ritmo
somos a sanfona nos dedos dele
gargalhadas no ar
como notas dissonantes
o momento do colo é eterno
assim como o cheiro da sopa
de macarrão de duduca número zero
ou de letrinhas no prato fundo
48
em companhia de meu pai
a tarde caía mais sóbria
mais segura
terna
em companhia de meu pai
a noite vinha em lição
cruzeiro do sul
três marias
três marias
três marias
em cada estrela da noite
apontado está seu dedo indicador
dando nome e significado pleno
aos astros estelares
626
49
quando meus passos acompanhavam os seus
quando o fim da tarde de domingo esclarecia
a nossa ligação ultrapassando o tempo de agora
eu berenice e você
o trio pai e filhos
íamos até a famosa
churrascaria de nondas
cada um tinha o direito de pedir
salgados refrigerante e sorvete
eu me enrolava em cada volta
do pastel folhado de queijo
eu me plenificava na perna
sempre cambeta da galinha
da qual surgia a coxinha
das melhores lembranças da vida
ao seu lado mirando seus olhos
sempre estarão presentes em mim
sua voz cheia de decisão
seu conhecimento pleno de razão
e seus livros em latim em francês
idiomas que evocam sua lembrança
sua presença
na minha vida
é fim de tarde
agora
e sempre
50
o papel seda da gráfica de pai
o grude de trigo da mãe
a vareta da chácara do barão
627
a linha da loja de seu antônio
eu subia aos céus na tarde
pelas asas imaginárias
do papagaio
eu descia ao mundo real
no fim de tarde hora do banho
máquina sobre o armário
por mim o papagaio
teria luzes como as estrelas
para levar ao céu
pai e mãe
por mim o objeto voador
seria cheio de cometas
para guiar ao universo
eu pai mãe
51
a morte me atravessa
me joga para dentro de mim
onde sou apenas finito como quem amo
a morte é sempre esse gosto ruim na boca
dia que passa lento mês que fica inerte ano obscuro
eu me perco diante da força da morte por isso amo mais
quando o pai se vai
e o amor é muito
a dor é infinita
... ... ... ... ... ... ... ...
628
52
o olho de dentro
atravessa
o tem
po
o olho de fora
confunde
o pen
sa
men
to
o olho da alma
aprofunda
o sen
ti
do
o olho de fora
mesmo vendo
é per
di
do
o tempo da infância
é olho de dentro
na es
sên
cia
629
53
o pé na bacia
no banquinho
assentado
fim do dia
a água morna
pés cansados
o dia acaba
pé no chão
meu pai vive
na toalha fina
da memória
sempre livre
54
quando seu jair da serra chegava
no jipe americano com sua barriga
imensa e sua muleta ornamentada
quando eu via meu pai negociando
o saco de laranja com todas misturadas
sabia: o dia não seria mais o mesmo
o sorriso de meu pai adoçava a laranja
e o canivete da bainha anunciava o gomo
primeiro a ser provado e eu era o escolhido
era um despertar do dia para momentos familiares
em volta do saco de laranjas de jair da serra
a vida familiar era festa ácida
630
55
ouro fino é um lugar longe da cidade
um povoado de casas tão distantes
uma das outras por causa das cercas
das grandes fazendas
no meio do lugar há um rio largo
tão largo que os peixes crescem
fortes e robustos e pesados
atraindo os anzóis
meu pai sempre me levava na
kombi velha
caindo aos pedaços para a pescaria
que começava no quintal de casa quando
as minhocas eram desenterradas para a morte
a pescaria era no lusco fusco dia quase noite
a água de rio na noite é uma serpente sem olhos
não fosse a estopa queimando no meio do mato
não haveria outra referência a não ser sua mão amiga
os peixes sabem dos homens mais que os homens deles
trocar a fartura do rio pela miséria do anzol nunca foi
um comportamento dos seres do
fundo do ouro fino
mania de grandeza do século dezoito nas minas gerais
56
a família toda em
santo antônio do itambé
bóias de caminhão dona sinhá e seu dirceu
a cachoeira no domingo de manhã era nossa
631
de mais ninguém de mais ninguém
tronco de árvore boiando girando afundando
a água escura descendo do pico do itambé
até hoje não sei para onde foram de mim
rio abaixo – pois sim! – as horas n’água
o sorriso da família alegre
ecoa na caverna da alma
sou eternamente grato
ao rio à montanha
à memória ao sol
pelo cenário
imortal
57
pinhão no natal
era panela no
fogão
pega o pinhão
descasca e
come
leva o pinhão
para dentro
fome
pinhão no natal
era pai e mãe
juntos
pinhão no natal
era eu e a vida
prontos
632
58
na minha casa ninguém foi ao jardim
não o jardim de flores esse não que falo
de outro:
a escola antes da escola de fato
na minha casa brincávamos de ler e escrever
com os que já estavam na escola de fato e era
muito:
brincar sem o castigo de não aprender
na minha casa ninguém gostava do jardim
por causa da merenda, não sei, ou porque na
vida:
mais vale a família que as letras
na minha casa
ninguém foi
ao jardim
mas todos
sabem ler
e escrever
59
a fumaça do fogão a lenha
não fogão a lenha de barro e tijolo
era o fogão a lenha à moda sulista
ligava a alma ao corpo bem cedo
a casa se enchia de um cheiro
de árvore morta
sem
alma
633
roubada de sua vida ainda
na plenitude da vitalidade
o cheiro de árvore anunciava
a hora de levantar
o café na mesa
início
do dia
o café-pó de tão morto
a árvore seca de tão morta
as vidas cruzadas
na porta
da
co
zi
nha
60
o pé de mexerica do quintal de dona odília sempre me deu água na
boca acho que por isso havia uma fonte de água pura bem no pé
da grande árvore
quando do subimento do muro para separar nossa casa do quintal
de dona odília
– como se fosse possível erguer muro de berlim entre a
mexerica e minhas mãos habilidosas para o furto infantil cheio de
desejo proibido e ácido –
aprendi do limite entre a propriedade e a
necessidade
634
esse pé de mexerica me faz salivar ainda hoje quando olho no
relógio da alma aquele tempo discreto da
infância
de
interior
esse pé de mexerica envolve suas raízes no fundo de meu chão
interior e espalha ventos de saudade
nos
olhos
azuis
esse pé de mexerica me devolve a ingenuidade perdida como se
fosse o passado um ninho de pomba rolinha bem no topo da copa
do pé de mexerica com
sua
acidez
inequívoca
61
atou-se aos pés a poeira da infância
a poeira vermelha da minha cidade
a poeira amarela do botavira
a poeira ainda sobe
quando a memória abana o tempo
a poeira do campinho de terra agora morta
revela o negativo do retrato dos pés
é que a fotografia da infância se dá não no papel
mas nos dedos amassando poeira ou lama
amarela ou vermelha do chão da cidade velha
a poeira-terra-poeira cobrindo o corpo de meu pai
635
debaixo de sete palmos de saudade
– e que saudade desumana! –
o corpo do meu irmão fechado na terra úmida
a poeira da vida e da morte
são faces da mesma terra
62
quando o olho de dentro persegue o passado
–que vejo, será real ou apenas um desejo? –
não sei se o passado se descobre ou se fixa
na cadeia da
causalidade
quando percorro o panorama da infância
– que caminho, será possível ou imaginário? –
o chão é areia movediça onde enterro o verbo
cada história é um substantivo
[im]próprio
63
antes da rodoviária havia
um posto de gasolina e
os carros criavam asas e
decolavam botavira abaixo
era um jeep americano
– era sim, um jeep descolorido na memória –
marcado de bala por causa da segunda guerra mundial e o povo da
minha terra tem verdadeira fixação pelos carros que enfrentam
com bravura o chão das roças duro poeira ou lama
636
a intransponibilidade
é um desafio real para o povo daquele lugar
quem seria o motorista do jeep voador? era o maravilha em sua
juventude
(diziam que o pai dele era lobisomem e eu tinha verdadeiro pavor
em subir o alto do botavira especialmente em época de quaresma
quando os
demônios de dentro
parecem dormir depois do carnaval, apenas parecem pois segundo
contavam era nessa época que eles despertavam para assustar os
incrédulos... haja fé na mitologia serrana!)
o maravilha homem escuro feito a noite decolou o jeep americano
e causou novidade na cidade de
homens analfabetos
que sempre precisavam de fatos reais para se tornarem reais
(se ele soubesse do racismo norte-americano ele não se sentaria na
arma de guerra... mas ele desconhece martin luther king... isso são
atualidades! volta, poeta, à infância!)
antes da rodoviária havia ali um posto de gasolina e havia um
homem de perna torta (não sei se ele tocava na banda de música)
antes da rodoviária
(o prédio mais feio do mundo barroco serrano construído pelos
pedreiros do morro do bicentenário)
637
havia um posto de gasolina e dentro dele eu passava para ir para a
casa no botavira mas num belo dia de verão o posto fechou e o
lote ficou vago e apto para a obra mais feia da cidade tudo por
causa dos grandes ônibus
grandes ônibus
(necessários mais necessários que um lote vago como se o vago
fosse ausência de sentido)
preferia o posto preferia o vago preferia o vôo de
maravilha
no jeep
prefereria... se a infância não tivesse ocorrido para trás daquela
nuvem passageira
roçando o pico do itambé já dissipada
já ida
já chovida
já morta
64
o vento passa na copa das árvores
frutíferas ou não
floríferas ou não
que eu não sei dessas
somente os beija-flores miudinhos e verdes e rápidos
o vento corre sem cheiro pela ladeira do rosário em época de
calmaria para aquelas bandas porque quando a matina anuncia
caboclo catopé marujo o cheiro de urina domina a vida é feita de
contrastes e de cheiros repudiantes
638
o vento na minha terra se chama ibiti-ruy
– esse nome lindo dos índios que num passado que se perde nas
folhinhas marianas detrás das portas de dona milude (irmã de
vicente de bela) –
morro dos ventos gelados os índios perdiam o olfato no frio do
monte de terra o nariz esfriando no inverno escorrendo sobre as
penas sobre a pele vermelha sobre a floresta intocável ainda
virgem que os portugueses defloraram nossas terras para arrancar
o coração da terra que ouro é o espírito das antigas terras do ibitiruy
ah! os portugueses não sabem nada dos ventos dos índios eles
sabem dos ventos
dos mares das índias
dos mares de salvador
dos mares de paraty
de cabral
de caminha
de sardinha
os portugueses roubaram o nome e os ventos dos índios e
nenhuma pena mais se agita no morro dos ventos gelados nem no
inverno nem no verão os índios se foram porque roubaram das
terras o espírito da terra o ouro que dura mais que o roubo
os portugueses não sabem dos ventos das montanhas sabem dos
ventos dos mares e onde posso buscar a herança dos índios senão
na memória perdida dos dias? ah, os portugueses nos deram a
civilização! tola resposta ao vento que não mais sopra
os portugueses levaram o sentido dos ventos dos morros da minha
cidade para sempre nas suas caravelas – que as caravelas
639
precisavam de muito vento quente ou frio – para sair dos portos
com todo a alma da terra
o ouro
o ouro
o ouro
de tolo
de tolo
de tolo
a europa hoje fala de sustentabilidade cadê o vento que sustentava
a alegria dos índios serranos?
para onde levaram o ibiti-ruy?
devolvam o vento que sobre as copas das árvores frutíferas ou
floríferas agita hoje sem
identidade
eram o motivo
(as penas dos índios
de existir do vento)
65
o sol se foi fechado pelas nuvens e era tão cedo ainda mas ele se
foi e com ele se foi também a janela da vida para a manhã coberta
de fuligem
infância é esse
mito lírico
perfeito e
tímido
de todos que chegam até à maturidade será a melhor fase da vida?
quem saberá...
640
chegar ao outro tempo dela afastado me agrada me agradou sou
grato à vida pelo tempo corrido e agora feito outra coisa para além
do tempo de
bolas de gude e
bola dente de leite na garagem de dona pedrelina
avistar a infância do alto do pico do itambé ou do morro
bicentenário bem de madrugada para não assustar a cidade lá em
baixo no vale que
vale um centro histórico
encarar esse tempo de calendários outros e fartos como peitos de
vaca das fazendas do condado ou rápidos como
seriema na estrada de
milho verde indo para
são gonçalo que dá em
diamantina que dá no
google earth
o sol lacrou sua luz bem cedinho entre as nuvens escuras da
tempestade e nem fazia calor e nem fazia outra coisa senão
memória cheia de nostalgia
66
era um dia comum de uma manhã comum e foi depois da escola
marlene miranda alfabetizando o caderno e de vez em quando a
mim mesmo no grupo joão nepomuceno kubitschek
quando eu aprendi meu sobrenome achava mais fácil
que escrever
ku –bi –ts –chek
641
era um dia bravio no sopro acho que pelos papagaios no céu era
agosto e não havia tanta comida para os passarinhos curió tisil
pardal sabiá a seca
na minha cidade chega por esses tempos e
as pessoas costumavam morrer de maneira
súbita e os cachorros zangavam e sumiam
de casa
era um dia sem maiores surpresas aparentes porque a infância é
um dia feito pela mão divina e não pela agenda de compromissos
na infância da minha cidade criança era um ser
jogado no destino da família da igreja da
escola e etc que é bom não enumerar que o
verso fica muito grande
era um dia vago como vaga é a sua anotação no calendário e
alguns passarinhos resolveram ir morar dentro de quatro paredes
ou de quatro telas porque se cansaram da vida dura de nascer
crescer e multiplicar e por cima se alimentar
meu pai resolveu fazer um condomínio para passarinhos em
depressão
(é que os passarinhos sabem quando vão cair no alçapão
bobo de quem acha que eles são iludidos pela comida!)
e cansados da vida
(eu sempre achei que o asilo dos velhinhos era porque eles – e não
os filhos deles! – se cansaram da vida)
meu pai abriu as portas de um viveiro um grande caixote na
parede da cozinha que tinha água potável chão de cimento e um
galho de jabuticabeira
642
bem no centro
e uma tela para que eles não pudessem sair antes de sua
recuperação completa do tédio da vida
os passarinhos caiam no alçapão e iam morar no condomínio
fechado longe dos gatos
(que só caminhavam
na tela com permissão do cachorro que ficava ao lado e de vez em
quando sonhava em ser livre)
os bichinhos de corpos grandes ou pequenos se
abrigavam da vida na natureza para serem
apreciados por todos da casa um ritual macabro de
olhar a vida alheia sem ser convidado
(os passarinhos não assinavam contrato e se assinavam
meu pai os enganava com letras miudinhas na última página)
o viveiro era cheio de canarinhos pombinhas fogo-pagô sabiás de
peito roxo macho e fêmea
(a tristeza na minha cidade afeta os dois sexos
indistintamente)
e havia codorninhas de cocô espumante azulão
curió-coleira curió-da-cabeça-preta melro tico-tico
e sanhaço
(viviam tão pouco que sempre desconfiei que já chegavam
em estágio terminal)
o viveiro de cores obtusas de
porta fechada
643
para evitar fugas (a fuga da vida é uma constante no alto da
montanha) servia refeição variada de fruta colhida no próprio
quintal de mamão à laranja de folhas verdes a jiló que esse não
dava na cerca dava no sacolão lá do alto da cidade
o viveiro me dava medo durante o sono eu acordava
depois de sonho ruim eu acordava
isso até hoje se repete repetidas vezes
como um presságio achando que a porta estava aberta feito
caixinha de pandora e nossa... é bom nem pensar... os passarinhos
tristes e deprimidos soltos pela cidade e nem me lembro se o
último que ficava – porta fechada na correria da madrugada– era
verdinho da cor da esperança
(o mito de pandora aconteceu dentro da
cabeça na minha infância e eu nem sabia
que ele existia)
o viveiro saiu da cabeça do meu pai e virou tela quadrada na porta
da cozinha vigiado por um cachorro e no final de tarde depois de
retirada toda a sujeira eu ligava a mangueira vermelha e fazia
chover sobre as aves que se deliciavam com a água de cloro que
não fazia a dor aumentar feito a chuva real que tem adubo para o
desespero
(é por isso que quando chove as plantas se
enlouquecem e começam a brotar nas hortas
nos canteiros nas roças)
o viveiro era tão comunitário e as nossas vidas paralelas giraram
durantes vários anos até que um dia eu me cansei do atendimento
privilegiado aos pássaros
644
(isso se deu naquela fase em que as percepções de
tempo e espaço se mudam e os hormônios
enfurecem a face a ponto de pegar fogo e explodir
em furacões de pus)
eu deixei de lado a vida paralela da não-natureza
hoje o viveiro só se abre aqui dentro
na bola de cristal
da fantasia
67
cheiro de cachorro filhote é diferente de cachorro grande não sei
se acerto no sentido mas é que a vida no início exala perfume e já
para o final o odor se perde a vida não é fácil para homens e
cachorros
o cheirinho de infância canina pela casa ele chegou numa caixinha
de sapato (será de um bamba ou de um kichute não me lembro...)
nos braços de
meu pai
ele veio sem raça definida como os homens que precisam hoje de
exame de dna para saber a conjugação entre
espermatozóide e
óvulo
ah! se tivesse dna na minha infância a gente ia descobrir as moças
do morro com filhos dos ricos do centro histórico...
ah, se ia...
645
pior se fossem os filhos das
tias do alto do cemitério filho de um mistério sombrio heranças
que não serão jamais repartidas!
ele veio revelando uma cor de marrom com preto e focinho de
raça brava mal ele sabia que a corrente estaria para sempre no seu
pescoço como brinde por nascer um dia filho de
cachorra de rua
rex esse era o nome do filho da rua com pai indeterminado para
ele nunca fez falta mesmo e o nome foi dado por meu pai que
conhecia latim de traz para frente e queria a grandeza num
código lingüístico que
invertia a origem do pobre
coitado miudinho
rex era um cachorro estranho nem podia sonhar com liberdade
dada em curtos passeios quando arrebentava suas correntes e saia
correndo pelo bairro até ser pego de novo
ainda bem que em agosto ele nunca fugiu
senão ficava louco e ia para a estrada de
diamantina ser comido pelas onças
rex era um cachorro que gritava meu nome para tirar seu corpo
magro da reta das correções de formiga sempre de madrugada
sempre na alta noite as formigas sabem o que fazem
(na minha casa não havia dedetização havia correção de
formiga matando todos os insetos que a imaginação
pode criar na calada
da noite)
as formigas enfileiradas comiam todo tipo de carne todo tipo de
vida num ritual macabro sempre antes das chuvas que as chuvas
matam formiga na correnteza das ladeiras e elas sabem disso –
quem terá ensinado para elas?
646
quem terá colocado isso na cabeça
das formigas?
rex gritava e ia eu quintal afora soltar suas correntes
(será que ele combinava com as formigas
um ataque noturno?)
para libertar sua vida supérflua da supérflua necessidade natural
das formigas em correção
mas queria falar do rex
e as formigas
cort ram
os
v rs s
68
minha mãe pegava o pintinho dentro do ninho e pedia licença para
a galinha já cansada de ficar sentada vinte e um dias para colocar
dentro da caixa de papelão com fundo de papel picado da gráfica
que ficava do lado oposto da casa
o pintinho de corpo mole saiu da casca tão dura do ovo
– será que lá dentro é gostoso como barriga de mãe
em que a gente ri e fica de cabeça para baixo e se
espreguiça a hora que quer? –
eu gostava de sentir o calor do corpo da pequena ave na época de
frio sempre tive essa
mania infantil de querer salvar o mundo
quando chovia eu colocava os pintinhos na caixa grande e
pertinho do fogão de lenha eles ficavam adormecendo o corpo em
crescimento
647
corpo que eu nomeava e um dia no futuro me apossaria nutrientes
em canja depois do hospital
que por lá eu fui várias vezes por causa da asma
minha mãe por ser mãe entendia da maternidade da galinha e
respeitava o ciclo sem interromper a natureza em mensagem
explícita
sobrevivência
69
chamem guido retratista
invejo ainda hoje a arte do render o tempo no papel
que hoje é dia de festa e tem churrasco improvisado no fundo de
casa perto do canteiro da horta ou no porão da gráfica e se ele não
puder vir jogue uma praga nele tipo aquela que sua casa vai cair
com todo mundo lá dentro num dia de chuva
chamem guido retratista
admiro ainda hoje as fotografias na caixa de biscoitos
pois ele mora lá em cima na cidade – vai que ele acaba demorando
ao descer as ladeiras – para registrar a família em convulsão sulina
pode chamar um ou outro vizinho que vizinho mineiro é muito
chato e desconfiado e parece que o ritual de churrasco gaúcho não
comporta esse desconfiança menor
chamem os rapazes amigos de cirineu aqueles do ginásio que
jogam xadrez depois do almoço meu pai agrada muito desse jogo
de estratégia que evita a guerra real em fazendo a guerra
imaginária
648
chamem helena de dona azulina e de padrinho zico pois vai ter
cachaça lá da roça de fulano de tal
(não importa de onde desde que seja cachaça e para quem bebe
não importa a origem desde que seja frio ou quente o dia e que
haja clima na pele para inventar o motivo)
chamem os meninos curiosos serve aquele mesmo que se
dependura na janela para ver televisão e pegar um pedacinho de
carne todo envergonhado acho que o filho da dona lá do paucomeu que me esqueci o nome a memória está a serviço do
esquecimento
chamem também seu dirceu e dona sinhá lá do itambé ela
desengonçada ele que chama a gente de “coronel” como se
estivesse no século dezoito se a estrada não estiver ruim por causa
da chuva
chamem, que ver quem mais... chamem as nuvens para tapar o sol
na hora de servir o churrasco pois o amianto esquenta ainda mais
a brasa que queima no chão cercada de tijolo de construção
(minha casa sempre esteve inacabada e por terminar e por isso
amo essa lembrança do que está por fazer)
chamem a chuva no final de tarde para a casa ficar em silêncio
absoluto (exceto pelo som das gotas no amianto) onde cada um
possa sofrer calado ou rir sossegado no domingo que se expressa
em família reunida
chamem o tempo para se revelar na fotografia em preto-e-branco
eu sobre a mesa dando jóia para guido retratista para a vida que de
fato era ali totalmente alegre
chamem o pisca-pisca de cleuza os músculos arredondados de
irineu o vestidinho caseiro de letícia o chimarrão de angelina e
izidoro e as barbas longas de cirineu
649
avisem que vai haver música daquela coleção de vinis regionais
que meu pai trouxe do sul na sua última viagem pelo brasil meu
pai comprou pilha caso a luz vá embora e a radiola funciona por
causa de otávio consertador de rádios a alegria está garantida
chamem o nitrato de prata para deixar no papel esse dia revelado
no quarto escuro de guido retratista que a sombra bem aproveitada
se torna sonho no futuro ou lembrança do passado
chamem os personagens da fotografia de novo
talvez mãe tenha feito chico balançado de sobremesa
(que não apareceu no álbum... não sei bem o motivo)
a fotografia pulsa na minha mão
tic-tac
toc-toc
70
o cabelo duro e verde
efeitos do cloro da piscina
a mutação ocorre dentro
e fora da água
para brancos e negros
a piscina com água azul
nada, cloro em profusão
cabelo endurecido
pele amarelada
um ser de outro planeta
a piscina da praça de esportes
quando era eu ainda criança
não me afogava porque no raso
se tem muito ar e se pode e se deve
manter a vida fora de perigo
650
71
seria a mesma janela a mesma abertura para a contemplação do
mundo do menino no século XVIII e eu? o menino
– aquele mesmo de família portuguesa ou de escravos em
senzala feito e parido ou na mata debaixo de árvore–
o que via através das nuvens no mesmo por-do-sol
de um dia meu próprio pela janela de vista para a
mesma igreja de santa rita?
o brinquedo de madeira pelo chão de terra sujava-se como o meu
depois de tantos anos mas no mesmo cenário? o menino do século
XVIII terá sido mais feliz ao contemplar a chuva se formando na
cabeceira do rio quatro vinténs ou naquela época o rio era sem
sentido e desfigurado na sua
nos
tal
gia?
sei apenas da sede dos tempos enchendo o copo da vida seja lá ou
seja cá pois a necessidade de se explicar vivo é a mesma em
qualquer tempo e sob qualquer teto se bem que uns se protegem
mais que outros
por causa da espessura do telhado
não tenho objeção quando à construção de cada existência que o
respirar é o mesmo para os corpos mas o pensar esse em que me
detenho agora é vário para os corpos presos ao tempo e presos aos
costumes e preso de si
em figuras de tempos outros
o menino correndo no século XVIII não sou eu correndo no século
XX as pedras são outras e foram outras dadas ao pisar dos pés
calçados diferentes para sentir o mundo ao chão o sentido da vida
651
muda feito líquen na pedra ou árvore em calor ou seca só sei da
cas
ca
ti
nha passando no meio do fundo sem graça
em outros tempos que a água era farta na porta de
casa no centro antigo
o menino antigo
(a antiguidade é tão distante que fica para
além da serra do gavião e vai ter na serra do
raio)
não se media como eu me meço não se perdia como eu me perco
os motivos eram outros e tantos e vários e tontos e vazados de
uma absurdidade que só a comparação estranha agora pode ousar
o menino de mim nada tem mas se inscreve na história da
generalidade
INFÂNCIA
ou se quiser nesse conceito que agora significa um olhar de
comparação serei eu feliz comparando minha vida pequena diante
da vida outra do menino de tempos imemoriais
terá sonhado o menino na mesma
desesperança que eu? do mundo sei
tão pouco, saberia ele mais que eu
afeito às letras mas também ao vazio
dessa era niilista pelo menos nele
havia a certeza a crença e a
esperança da redenção em mim
pouco há de futuro que só o que se
passou é certo que vivido nada mais
652
o menino terá ele visto os pássaros em gerações primeiras que eu
as vi em décimas décimas quintas vigésimas os pardais terão se
entristecido mais com o avanço dos dias ou apenas o povo
habitante dessas longitudes?
(judas perdeu as botas entre o
arraial de baixo e o
botavira e
jadir canela
bate nele todo domingo de páscoa para fazer justiça à sua
indelicadeza esquecer seus passos errados pela cidade
barroca)
o menino esse que se fez antes de mim o que tem de mim e o que
tenho eu dele?
somos a continuidade um do outro ou apenas cada
um no seu mundo isolados?
o menino do século XVIII veio antes de
mim sofreu antes de mim gozou do mundo
antes de mim e esse antes é apenas o que
dele eu posso dizer de mim ele nada pode
dizer que sua voz já se calou entre as
pedrinhas que rolam para o rio para o
frio para o
mar
653
72
a primeira encenação no grupo joão nepomuceno
foi um poema
ora, vejam, um poema
um poema adaptado de o pequeno príncipe
aquele mesmo de saint-exupéry o francês voador
a primeira encenação foi a pedido de dona sussuca
a diretora me vestiu de príncipe e
me pôs no pátio
devia ser uma festa para as mães (a minha nunca ia lá)
dona sussuca
não deve ter
lido o livro
como eu
depois de
quase vinte
anos
é que para quem não sabe o pequeno príncipe
é desapontado com o mundo triste melancólico
e se deixa matar por uma serpente além de não ter
um chão seguro no mundo para
pousar seus pés
e além disso foi escrito depois da
segunda grande guerra
eu me acostumei com o papel
até hoje é meio assim me disfarço
de príncipe que inicia coisas
e termina a si mesmo enquanto faz
o início
ser algo
eu na infância era inteiro
hoje sou esfacelado é como se
depois do vôo no avião eu nunca
654
nunca mais pudesse ter um chão
uma calçada para colocar minha existência
como o personagem existencialista de exupéry
eu não tenho lugar no mundo por ser ele frágil
eu não reivindico um posto definitivo entre as coisas
o mundo é repleto de não sentido não amor não paixão
não poesia não música e por mais que declame poemas
dona sussuca me perdoe mas eu nunca me inteirei
das coisas do mundo mesmo lendo –
e talvez por isso!
textos vazados de amor ao mundo à vida e à existência
o pequeno príncipe se deixou matar
eu por enquanto vivo e já e um grande feito pois
a vida quando não se vai cedo
provisoriamente vai dando certo
mesmo entre os torpes baobás
e a fúria da civilização
– ser gente é deixar-se viver
73
o vento bate na face frio
o corpo morto é frio
o vento só leva
a morte
cidade afora
a morte se expande
friamente na ladeira
655
não tapem o rosto
deixe a morte bater
de frente de lado
no corpo vivo
um dia esfriado
o calor cessará
a criança morta
morta estará
o frio é morto
nada nasce dele
esquentem-se
enquanto podem
a morte avisa: inverno
74
quando eu ficava de mãos postas sobre o altar
o medo do céu era muito grande
sempre tive medo de altura
e o céu é muito alto
me desculpe dona terezinha de naina mas a
senhora causou pânico em mim várias vezes
me colocando no alto do altar para
homenagear nossa senhora no mês de maio
mesmo anjo que fosse não queria o céu
alto e de lá como descer sem medo
a altura celestial sempre me foi impossível
por isso criei raízes e não asas
656
75
marlene miranda me ensinou a ler
a escrever a somar a ter admiração
pelas letras no quadro verde
as raízes da infância são quadro e giz
nunca soube onde ela morava
(acho que na escadaria da santa rita)
nunca soube se ela gostava de poesia
(acho que ela é muito séria para isso)
as letras juntaram como eu na vida
as sílabas viraram representações do pensamento
as letras encardiram a memória em livros
e nem o anil de pedrelina poderia tirar esse feitiço
marlene miranda de letra de bolinhas
fez girar a lua na minha cabeça
é que a lua real é apenas um fato que passa a lua
de palavra é eterna apropriação da alma
quando o mundo gira em torno das palavras
a palavra vida passa a ter carne e osso
e significado e nunca mais desvinculei meu nome
do corpo que agora ao mundo trago
as palavras me salvaram de mim mesmo
sou mais por causa das oxítonas paroxítonas
proparoxítonas e algum tempo depois veio dona vilma
colocar acento definitivo em quem sou agora
marlene miranda da letra de bolinha
657
76
sempre gostei do isolamento
nunca do recreio no grupo
a convivência alargada
na infância é vaga
77
a fila um atrás do outro por ordem de tamanho antecedia o hino
nacional e
has
tea
men
to
de
ban
dei
ra
não havia ditadura
(será que um dia ela vai voltar? e agora que eu sei o que ela é?)
na minha vida nem poderia eles os homens do poder não
habitavam a minha mente isso se deu tantos anos depois
as pombas brancas voavam livres no céu azul de outono da
minha cidade e não havia tortura nem pau-de-arara nem
morte por sufocamento nem confissão forçada nem vôo
para a morte essas coisas da vida política adulta
a fila se organizava por série e passei por quatro delas da primeira
à última antes de ir para o ginásio antes de descer a ladeira eu que
via o ginásio da porta da cozinha da minha casa
não havia formas de governo nem
ciência política na minha infância eu
658
era alienado ou a alienação é um
estágio primeiro da consciência de
ser-no-mundo para mudar-o-mundo?
não havia ditadura e nós de uniformes azul-e-branco íamos em
sete de setembro um atrás do outro como soldados saudar e
reverenciar a revolução de 1964
(será que eu me tornaria um ditador se não fosse a
filosofia? será que eu me tornaria um soldado raso se não
fosse a poesia profunda?)
a fila se organizava no pátio e depois de todo o ritual odete (que
morava lá em cima no gambá) ou maria de lourdes (da voz rouca
rouca rouca) ou seja lá quem for apertava a sirene até ela virar
aluno em sala de aula para inicio das aulas
a fila
era
a
ordem
e as palavras – mal sabiam os ditadores lá do alto do poder –
eram a desordem geral pois libertava as almas de quem quisesse
ser livre
a fila do grupo me ensinou a ser correto com quem manda (e os
professores quando mandam pedem quando pedem sussurram e
quando sussurram nos amam) e abstrato quando penso a fila era
uma grande brincadeira infantil seguida de desenho de paisagem
serrana no caderno
a fila do grupo era mais engraçada que todas do mundo quando
dona conceição de cici da padaria cantava em português
659
come si pianta la bella polenta la bella polenta si pianta così - si
pianta così, [ah! ah! ah! la bella polenta così! tcha, tcha, bum,
tcha, tcha, bum, bum-bum-bum-bum
come... s’innaffia..
come si cresce...
come si fiore...
come si taglia...
come si cuoce...
come si serve...
come si mangia...
come si gusta...
si pianta così, s’innaffia così, poi cresce così... ecc, la bella
polenta così!
que dizer desses sons que a fila me faz lembrar… tem cheiro de
meninice – apenas isso
por que o tempo envelhece?
78
o sopro do tempo no relógio do templo
fazendo a vida girar ou se enquadrar
depende do formato do relógio
no pulso
o sopro no templo do tempo se dá em
cor apagada parede rabiscada de bola
dente de leite em pé virado para a lua
em sorte
o sopro do tempo no coração é batida
forte ou fraca de emoção perdida
ou acabada essa mania de viver
ainda vai me levar longe de mim
o tempo explode o tempo na face
660
qual mãe não acredita no futuro do
filho? o tempo de promessas é a
infância nada mais que a infância
o sopro do tempo no relógio
do templo sopro de coração
partido por isso o relógio tem
hora e minuto para ser exato
eu não! a vida sou eu
inexato tic
inexato tac
inexato tic
79
morderia o pé-de-moleque
se houvesse a mão da mãe
nele há mão e pé de escravo
tomaria a água do quatro vinténs
se fosse limpa feito alma de neném
nele há esgoto e lixo macabro
80
bebê gente grande em miniatura
qual palavra me constituía
se tudo que sou agora
é palavra grande ou pequena na alma?
bebê de palavra pouca na boca
qual palavra fazia de mim ser eu
se a mente era vaga como a onda
661
sem pensamento?
a palavra é a
certidão de nascimento
da memória na mente
só assim se é de si mesmo
81
o olho de fora me vendo pequeno
eu de dentro vendo
tão grande
o que de fora se avistava
na frente dos olhos
o olho enganando a realidade de dentro
falsificada pela mente miúda que
de miudez a mudez
se dá na consciência
eu via e se via era visto
mas não me recordo
não havia espaço-tempo nem
memória para calar fundo
o medo
o medo cria a memória mais
rapidamente que a necessidade
a necessidade é também memória do tempo
depender é
ser-não-ser
entender é crescer para dentro
onde as palavras
nos escrevem mais que
os olhos de fora
662
82
cidade? não não havia
brasilidade? não não cabia
nacionalidade? não não sabia
personalidade?
onde estaria?
83
na infância não foi o mar
a me levar para longe de mim
nem o avião
a embarcar meus sonhos
muito menos o trem
a esquentar os pés em apito pelos trilhos
foi apenas a ladeira
dando no céu
foi a ladeira
dando em eu
84
o vento sopra no relógio
sopra forte em tempestade se anunciando ao longe
a chuva na minha cidade tem lado para acontecer
e todos sabem o caminho que traz a
gota adubante
ela vem dos lados da fazenda de
dr. walter pelas bandas do
tanque de paulo levy
a chuva vai pela trilha e a poeira do caminho antes
alta se acalma e vira a lama vermelha
adubo de vida é o cenário da chuva
663
as lembranças melhores são férteis
das tardes acabadas em nuvem negra
gotas de suor da natureza escrava do homem
85
o fórum era no início do século XX
uma cadeia nova
ela caiu e sumiu dentro do tempo
como tanta coisa cai
na minha cidade
o fórum ficava onde terminava a cidade
lá no alto do gambá que hoje vai até ao limite
no morro de areia onde as pessoas constroem castelos
o fórum foi
reinaugurado
quando eu estudava no grupo
e depois da aula eu e um bando de meninos
íamos visitar os sanitários nobres dos juizes
aquele banheiro era tão bonito...
de uma nobreza pública
de um riqueza dúbia
eu e mais um bando de meninos
depois da aula com merendeiras
íamos ao fórum
aprender o juízo
86
eu brinquei na obra do
clube ivituruy
tão rico tão rico que era preciso ser sócio
sócio de que?
nunca houve piscina...
nunca houve quadra...
664
eu pu
lei
do muro de arrimo
para dar de cara na areia
e sonhava ser batman
para voar
hoje o prédio é tão feio
minha infância se sepultou
na areia do concreto
em cada pare
de
meu tempo está para sempre
e
di
fi
ca
do
87
o sonho era um bolinho frito
com goiabada dentro
escondido atrás da caixa
lá no alto da estante
o sonho da minha mãe era doce
o meu também e do meu pai também
quando meus braços cresceram
eu peguei o sonho que me cabia
665
88
no porão da gráfica havia uma rede
uma rede nordestina bem
r m d
t a a a
nós descobrimos que o seu balanço
acordava o riso dentro da alma
intoxicados pela trama risonha
fizemos a rede
u a
l
o
p l
r
a
t
para rir mais e mais e mais
a infância é um ar dentro da alegria
o porão da gráfica me fez ver
o riso como fonte de conexão
entre as vidas de todas as regiões
do país que eu não podia
n e d r
e t n e
89
kátia foi o primeiro amor infantil
de urso de pelúcia dado
em presente
com cheiro de perfume forte
o amor infantil faz curva
pela esquina da praça
não se efetiva
nunca
só em letras de carta
escrever o amor na carta
666
fez dele um amor real
mesmo que
apenas
por alguns minutos
o amor infantil passa
rapidamente
90
os dentes caem
o corpo expulsa
a infância pela
boca
os dentes saem
o corpo sepulta
a infância com
boca oca
os dentes voltam
o corpo convulsa
a fase nova pelo
céu da boca oca
a boca e as fases
na boca oca
céu da boca
há frases
91
de dentro do corpo os pelos
saem em matéria desconhecida
nas axilas no rosto
667
nas partes de prazer ainda adormecidas
os pelos mudam a pele e o mundo
o ar fica confuso e toca diverso
até o arrepio passa a ter outro som
o corpo muda a sua voltagem
os pelos dormiam dentro de mim
veio o vento do tempo no relógio
o pulso ficou violento os vulcões
de hormônios iniciaram sua história
92
quando eu era criança
o carteiro conhecia
a todos pelo
nome
ele me entregava
as cartas
no meio da rua
para adiantar o
expediente
o carteiro sabia do peso
de cada mensagem
decerto conhecia
os sentimentos em
cada envelope
as mortes chegavam do sul pelos correios
os telegramas eram tiros certos
minha mãe chorava
meu pai saudava o
tempo triste
668
o sul era tão longe de mim
e assim ainda o é
somente uma carta incerta
para dar notícia das
montanhas distantes
93
eu minha mãe e berenice
fomos ao sul
eu tinha apenas seis anos
devo ter dormido muito pois a memória
adormeceu junto com meu sono passado
só recordo de ficar preso num banheiro
na rodoviária de
sarandi
minha vó era uma senhora
de uma austeridade chocante
parece um cenário de filme francês
a casa o rio ao fundo o morro verde
e tudo muito
muito
escuro
e polenta no café da manhã
estrada chão e caminho de roça
eu apenas me lembro de mim
e de parentes tão impressionantes
distantes sem nenhuma
cor de amor
do sul ficou apenas o sono
o ônibus
669
e um pacote de sagu
que minha mãe consumiu numa tarde
fria refletida na panela
pintada de vermelho
94
final de ano dá jabuticaba na
chá
ca
ra
do
ba
rão
época de ensaiar a invasão perfeita para saciar a fome
dos frutos doces levemente acariciados
pelas
abelhas e formigas
amigas das flores
final de ano é época de jabuticaba em todos os pés
e de longe a chácara do barão
pa
re
ce
um
im
pé
ri
o
cercada de mortos e vivos por todos os lados
missão de coragem adentrar pelo
f u ro da c er ca
670
guido da chácara toma conta dos bichos e das árvores
sempre de mal humor
ou de humor sem
graça como se
quisesse
dizer não dizendo sim
ou dizendo sim como
dissesse volte mais
tarde
e pode achar ruim se me encontrar colado
ao corpo da dona jabuticabeira
sempre uma
sacola ou um balde
para levar para casa
e deixar depois de limpa cada grão se
resfriar na geladeira
para potencializar
o trabalho da doçura do tempo em cada
grão nascido nos braços abertos da
árvo
re
gi
gantes
ca
95
quantas vezes eu cai no chão
pé-de-moleque para me fazer gente?
não sei do tempo abstrato
sei apenas do tempo em cicatriz
como essa que tenho nas costas
da cerca da cachoeira do itambé
ou dessa que tenho na mão
quando fui apontar o lápis
671
esse tempo me cabe dentro dele
do tempo dos ponteiros abstratos
pouco sei e não poderia ser diferente
a alma dissipa a lembrança o corpo guarda
96
as casas sem cor sempre sem cor a infância
o caderno sem linhas sempre sem linha a dor
a família sem graça sempre sem farsa o tempo
a escola sem alegria sempre sem fantasia aprender
a infância mente para mim até hoje
eu minto para mim a todo tempo
97
o carrinho
o revólver
a mão pesada da mãe
a areia
a piscina
o café da tarde em groselha
o mercadinho de osvaldino
a caderneta
o macarrão de duduca
e seu jeep verde
a barragem o jacaré que eu nunca vi
(o lago ness da minha
672
cidade tem jacaré)
o posto de seu walderes com ar para pneu
(o ar da novidade da minha
cidade saía do botavira)
pequeno cenário
se soubesse dele
tão caro hoje
teria impresso
em clichês
na gráfica
cada grito
cada fenda
cada vida
engraçada
toda fala
irrepetível
a infância sabe que se perderá
por isso faz de conta que
outro tempo não há
minha mãe guarda fotografia em preto e branco
da minha infância
até quando elas estarão entre nós?
98
fizeram um esgoto canalizado
deve ter sido o prefeito waldemir mesquita
673
para jogar todo a imundície da cidade no lucas
bem no meio do botavira
20
metros
de
cimento
para bicicleta verde
para patinete de rolimã
dos meninos de nadir da oficina
eu me ralei todo certa vez
descendo o canal de cimento
mas não caí no rio sujo
o chão me abraçou antes
99
durmo ainda...
sei que durmo em calendário de há muito esquecido na parede ora
azul ora verde minha casa de felicidade em
cada tijolo
durmo ainda...
no colo quente e fértil em temporalidade da minha mãe no sofá
diante da televisão em preto e branco passando as horas que o
corpo precisa de tempo para estar à altura da alma
que o abriga
durmo ainda...
sob o impacto da voz dos meus pais sobre os meus ouvidos
roçando a mente por fora e fazendo o coração esquecer da vida
com suas lições
árduas e fortes e duras
durmo ainda...
674
berço de madeira com manta de poliéster lá da loja de seu antônio
com calor em cada fio com esperança de vida longa entre
sua trama
durmo ainda... de mão e pernas miudinhas cabendo num abraço de
pai e mãe e sei que as unhas que cresceram e que foram cortadas
não
foram em vão
cheguei aqui e agora...
dormindo e acordando revirando dias e noites primavera verão
outono inverno a história do meu corpo é a história de uma alma a
se revelar no
espelho do tempo
cheguei aqui...
de bagagem cheia por dentro e por fora (corpo e alma são atados
como cheio e vazio de uma mala) com as mãos sujas e limpas e
limpas e sujas a vida dá banho de
purificação a cada hora
a vida começa na infância
a alegria começa quando
a infância é feliz
na memória
100
o marreco desceu pelo rio lucas
parou para olhar o tempo
no botavira
virou notícia
mauro de castelo
pulou no rio
675
pegou o verde corpo
levou para casa
eu como criança
pedi com tristeza
no olhar natural
para meu pai comprar
o marreco salvá-lo
da morte que apagaria
sua cor de grilo cintilante
eu comprei o marreco
levei-o debaixo do braço
como um troféu vivo
para o galinheiro
da minha casa
salvando o quadro
verde bandeira do brasil
daquela manhã de inverno
101
não me
faltou nada
a infância
me deu
o necessário da
necessidade
não me
ocultou nada
a infância
me fez
pleno na minha
676
insaciedade
não me
mentiu nada
a infância
me foi
a verdade da
possibilidade
102
o mato me protegeu da tristeza
o verde é chá de sumiço
para a lágrima
nova
o mato rasteiro de capim cidreira
deixa o sofrimento adocicado
o tempo é
doce
o mato verde me abrigou na admiração
dos fatos tristes da vida de criança
daí as raízes não se
perderem
a terra onde nascemos espalha seu cheiro
sua vitalidade em todo nosso corpo
somos blindados pela
natureza
minha raízes são fundas no chão do serro
porque eu quero assim e me sacio nisso
mais que perder o corpo e a alma em
degredo
minha raiz ultrapassa meu sapato
677
é vida bem vivida em sua falta
e na sua admirável
amplidão
o portão da vida se abriu no serro
e o caminho se fez tão vasto
por causa das dobradiças
fortes
que sempre resistem ao meu retorno
quando preciso de novas forças
para continuar a
vida
o mato
o chão
a raiz
eu sou natureza em aprendizado constante
103
quando eu me for
para outro tempo
que os deuses da infância
me socorram
anjo da guarda
inominável (mas para que seu nome impresso aqui nessa
folha?) mas farfalhando suas asas na escuridão do meu quarto em
noite de estrela no céu e amianto no teto
terezinha de naína
ela me ensinou preces de grande utilidade para as horas de
medo da minha infância e quando o pesadelo fazia-se presente
para o crescimento da alma
678
padre trombert
ele me ensinou que o tempo passa diferente em diversas
partes do mundo e dentro de si também com seus três relógios no
braço
meu pai
quando me levava à missa para purificar minha alma
ingênua das ingenuidades do passado de outras vidas e me fazia
acender uma vela de seriedade e uma luz cheia de energias
positivas quando em sorriso nos seus braços
quando eu passar para
outra página da vida
que os loucos me
consolem pela seriedade
maria sem braço
na sua distração quanto à origem social de seus
zombadores e no braço faltando diminuindo o peso do corpo
maria três pulinhos
cabocla em festa do rosário diária em pedra na mão
armada para a grande batalha contra os palavrões da cidade (quem
são os loucos? quem são os loucos?)
maria mirrinha
com sua voz estridente fazendo a vida passar devagar nos
seus gemidos lancinantes aumentando nosso medo da noite que
traz a dor no alto do morro
expedito preto
com seu saco de plástico nas costas carregando um mundo
que só ele e mais ninguém saberá contar de seus personagens (ele
679
me carregava também? eu era um peso para esse pobre homem de
casa singela perto do cruzeiro?)
pinto pelado
homem de quarto na casa da vila naninha sempre pronto a
correr atrás de nós para nossa alegria a imaginação aumentava
suas pernas e seu tamanho logo ele tão velhinho como o tempo
barroco da rua direita
quando eu passar as
páginas do caderno
minhas professoras do primário
irão comigo
marlene miranda de tãozinho soldado
com seus quadros do pato totó abertos a cada semana com
uma história que envolvia a descoberta de um novo mundo ela
colocou dentro de mim as letras e elas nunca mais saíram (alguém
pode medir o que é isso?)
dona zélia de lázaro do banco do brasil
a mulher mais gentil que conheci na minha vida (além das
serranas dona milude e maria eremita e dona júlia da santa rita)
com seus lenços coloridos e uma lágrima pronta para cair dos
olhos e ela que me levou para o banco do brasil meu primeiro
emprego sério
iara de maurício do banco do brasil
com suas filhas lindas (por onde estarão? na minha
memória elas são crianças como eu quando as conheci) e suas
pulseiras brilhantes e sua pele morena e cabelo bem cuidado
dona conceição de cici da padaria
680
com seu rosto vermelho como a bandeira do japão quando
nervosa fazendo brincadeiras pelo grupo rato e gato e ensaiando a
quadrilha para nos enfeitar de povo da roça que eu conhecia bem
pois morava pertinho da rodoviária
quando eu sair do colo da minha mãe
o mundo vai mostrar outro chão
estou pronto para o que der e vier
o bom do tempo é o dia seguinte
O SOPRO DO TEMPO NO RELÓGIO DO TEMPO
ADOLESCÊNCIA – 2010
1
o meio fio na minha cidade é de pedra-sabão
(nem em todos os lugares
especialmente na ladeira que
dá no cemitério
perto da oficina de zé dias)
o meio fio separa um lado do outro
a rua e a calçada
a cidade e a vida
eu e o tempo
no meio fio caminhei tantas vezes
sem saber que ali ensaiava os passos
para a vida que exige sempre
e
qui
lí
bri
o
constante
681
um jeito de corpo
o meio
fio dá
um jeito de corpo
meio
fio faz
2
eu desci pela última vez do grupo para casa
quando completei o
quarto ano
eu desci para não voltar mais
apenas anos depois para visitar
apenas para visitar a praça
da árvore de xixi-de-macaco
a praça com um lindo
chafariz de pedra-sabão
temperando a água com o que há de melhor
a mão do homem construtor de escadas entre
o passado e o presente
eu desci pela última vez porque passou-se o tempo
quatro anos inteiros como a
lua em fase cheia
3
eu chutei lata do grupo até minha casa
do gambá ao botavira
a vida possibilita
caminhar sempre
682
eu chutei a lata de óleo do posto asa branca
(esse nem existe mais
e era um lugar de
passeio na minha
infância no
domingo à tarde)
a lata rolou em hora cheia
alterei a natureza da idade
a idade tem várias formas
e cada época uma trilha sonora
mesmo barulho de lata
você já chutou lata?
4
o banquinho de pedra-sabão ficava...
além da minha mente agora
essa lembrança que se apaga
...junto a casa velha da
rua fernando vasconcelos
era um banquinho solitário
como quem nele sentava
para ver a rua sem movimento
depois que os meninos subiam
para o grupo com merendeiras
um banquinho
eu saltei esse banquinho tantas vezes
683
nunca nele me assentei
não me cansava na subida
e para descer todo santo ajuda
5
a casa tem uma lira no portão
o vento quando assopra muito forte
de outubro até fevereiro
faz música de dia e de noite
a lira foi feita em ferro fundido
os anjos usam de suas cordas
para despertar nos meninos
o gosto pela banda de música
quando a banda santíssimo sacramento
sobe em dobrado na procissão
a lira angelical se incorpora
o dobrado fica divino
oi lira oi lira oi lira
6
ela velhinha eu e berenice novinhos
ela na janela com sua boneca na mão
eu e berenice na rua indo para o grupo
a velhinha não era louca de rua
(na minha cidade há loucos de rua
e loucos de casa que ficam escondidos)
684
a velhinha era de uma pele tão alva
que a manhã quando nascia pedia
licença para se refletir no seu rosto
a velhinha era de mãos tão frágeis
que a boneca quando chorava fria
pedia colo para sentir a vida em seus dedos
7
minha cidade se satisfaz em jogar
as casas antigas no chão
não, sei que não é medo da casa
é do tempo o medo da cidade
é do tempo fixado nos tijolos
desse tempo a cidade tem medo
por isso quando era pequeno
e o tempo não doía
tinha medo de ser casa velha
é do tempo soprando no relógio
desse tempo a cidade teme
por isso quando era pequeno e o tempo não ia
tinha medo de ser velho feito essa gente
8
fui obrigado a aprender outro tempo
o tempo da quinta série chegou em fevereiro
ao som do bloco rela e seus ensaios na praça
ao som de um carnaval do bloco vai-quem-quer
(dona laura e zé rela me mandaram para a
escola outra escola de outro tempo de outro
ritmo
685
mesmo sem saber
a trilha sonora da adolescência foi
carnavalesca)
fevereiro é mês de volta às aulas até hoje
o ginásio fica no largo do pelourinho
mas quando ali entrei o tempo já havia
destruído quase toda lembrança de grandeza
um lugar de tempo outro e de tempo destruído
9
o primeiro dia de aula no ginásio
foi um dia de imensidão eu não via
eu mesmo ali dentro daquela obra grande
via os outros e os outros eram muitos e muitas salas
até hoje me perco entre as portas do ginásio
como alguém poderia viver bem ali dentro?
até hoje me deixo perder em memória de ana maria
a diretora assentada na maior sala do mundo
DIRETORIA
10
a quinta série é um vai e vem de professores
um vem com giz e voz outro livro e voz
um tem caso para contar outro vira caso
para esquecer
a quinta série é uma fase fora da lua
a lua não tem cinco fases apenas quatro
saudades do cometa halley passando
686
na imaginação na voz de socorrinha
saudades de elza falcão com suas garras imensas
de dona aparecida com seus números infinitos
de isabel almeida com argüição na segunda-feira
o dia mais triste de todos os estudantes
saudades dos medos hoje tão tolos
de caderneta com falta
um carimbo azul desbotado
emília recolhia nossa ausência
11
quando penso no ginásio penso com medo
minha quinta série foi num prédio em ruínas
metade do prédio o tempo já havia paralisado
outra metade nos abortava
as paredes não se sustentavam mais
o tempo havia deixado marcas fundas
as tábuas não rangiam novidades
a cor se apagava a cada aula
a nobreza era um tempo distante
talvez uma placa velha anunciando
“aqui nasceu o barão de diamantina
mas quem era esse barão? eu nunca soube...
sonho até hoje com uma aula interrompida
por tábuas mortas e paredes apagadas
caindo em nossas cabeças
no final da conjugação do verbo
MORRER
(eu tu eles nós vós eles)
687
sonho até hoje com uma aula destruída
pelo tempo desmedido em estruturas gastas
como explicar o medo de morrer soterrado
imaginando o descumprimento dos dez mandamentos?
antes do tempo cair sobre nossas cabeças
mudamos de prédio mas o medo
do ginásio velho nunca saiu
da memória
12
o novo prédio era a casa de joão pinheiro
(até então outro ilustre desconhecido)
foi a casa de nhô costa também o senhor
da tipographia e dos jornais serranos
a escadaria de madeira fortalecia as pernas
nada mais que isso... o tempo passava
entre recreio de merenda gostosa
e uma aula indigesta
o recreio era um momento de liberdade
as serventes
(esse era o nome das senhoras cozinheiras)
faziam a comida mais gostosa do mundo
feijão tropeiro
sopa de macarrão
mingau arroz doce
o recreio era um momento de comprar bala
bala soft de caramelo na casa de toninho
o recreio é um tempo gasto para si
por isso sempre de extrema liberdade
688
13
o tempo sai no corpo de dentro para fora
apesar de verem em nós o tempo
de fora para dentro
o tempo sai em cada um na versão familiar
a altura o tamanho a musculatura
hoje falam em dna
14
a adolescência começou no abacateiro
lá no quintal da casa de amianto
meu pai plantou ele só pra mim
nele fiz meu lugar de meditação
via a cidade e me via dentro dela
e já muito fora de mim
é que quando o tempo surge na vida
é preciso traduzir a idade em si
o abacateiro cresceu como eu
no galho de formato banquinho
ele dava seu colo para meu repouso
da vida chata das espinhas sérias
o abacateiro cresceu comigo e eu
cresci dentro dele no mesmo tempo
mas hoje ele não está mais lá no quintal
eu sobrevivo ao tempo ele se foi
cortaram com ele um braço amigo
mas suas raízes secas devem estar sob a terra
meu umbigo da adolescência estará para sempre
no chão à sombra imaginária do abacateiro amigo
689
15
a fotografia de hoje é real em faltas
falta a casa velha da rua tal
falta a árvore bela do quintal
falta o tempo mantido
o tempo ido me diz do que fui não do que sou
16
na oficina de afonso estopa
além de carros em frente
o dedo brincava de tapar
olho d’água
no botavira o chão era frio
e de cada buraquinho
a água brotava potável
olho d’água
o olho d’água não tem cor
de saudade é seu tom
apenas de saudade
seu bom e alto som
olho d’água eterno
aprofundei-me cada vez mais
no mistério das possibilidades
690
17
walter de seu dirceu do itambé
morou lá em casa para fazer
ensino médio
ele construía rodas d’água
moinho e cidade imaginária
nas fontes do botavira
walter pintava quadros
para a aula de área terciária
eu acompanhava com arte
o silêncio de suas criações
18
a fotografia de hoje
é o que não havia
o que não estava ali
não existia
a fotografia de agora
mente tão fundo
não posso acreditar
apagaram meu tempo
que faço agora
sem a realidade
do ontem vivo
somente dentro?
691
19
o tempo me fecha no mundo
por todos os lados
estou pronto:
sou eu mesmo?
o tempo me cala por dentro
a cada passo dado
estou tonto:
serei eu mesmo?
em cada vento do tempo
no relógio do templo
estou mais pronto:
edifício lento!
20
a aroeira no fundo do quintal entre o pessegueiro
e o muro perto de onde minha mãe queimava lixo
ou entre a cerca do quintal da infância minha
e a cerca do quintal da infância dos filhos do barão
(que o tempo passa para todos e
ficam os nomes para eu rir deles... os
filhos do barão sofriam da dor do
tempo como eu? o título lhes tirou as
espinhas do rosto? o charme
monárquico tirou da vida a cicatriz
da queda da árvore? vai o tempo e
ficamos nós com nosso dizer sobre
ele)
a aroeira de frutinhas tão pequenas e sem sabor para mim
e sem sabor para quem quer que fosse atrás de sua sombra
692
com galhos fortes e um tronco esguio quase imponente
recebia minha visita e de berenice para escrever na sua pele
tatuamos nossos nomes na pele da aroeira
nem sabíamos do tempo levando o tronco
para dentro dos fogões de lenha da cidade
ou para a fogueira de são joão no botavira
a aroeira dizia de nós
nascer crescer dar frutos
nós não dizíamos dela
a natureza não se quer eterna
um dia descobri sua queda
sua morte por mão humana
um dia descobri que a aroeira
tem mais sorte que nós
morreu sem pensar na morte
dói antes de ser de fato
21
o tempo leva mais
mais muito mais de mim
eu não posso colocar nada no lugar
da memória apagada da linha fria
das saudades da alma qual a mais forte?
não, não há resposta... o tempo me esquece
eu não posso retornar ao ido sem a fúria da nostalgia
mera inteligência do esquecido para sempre no tempo
o tempo apaga eu de mim mesmo
sem perdão e não há outra maneira
a vida é amadurecer o sentimento outro
de nova versão desbotada do vivido real
693
22
o botavira é lugar do século XVIII de botar e virar cascalho de
botar a vida e virar esperança nova todo dia
o botavira desbotou-se na memória feito retrato velho daqueles
sempre puritanos e familiares nas paredes das casas miúdas
o botavira se apaga da memória
eu sobrevivo dentro dele ainda
na vida breve dos girinos sapos
na vida longa do calçamento de pedra
o botavira descobriu mais de mim que eu mesmo e sua argila
amarela me conta mais de mim que o sol de agora
o botavira de campo grande num lote vago e de meninos
descobrindo no tempo a bola girando
o botavira amanheceu certo dia
com calçamento de pedra por todos os lados
por baixo dele meus passos e um pouco
de mim se foi: avisa se sepulta em todo lugar
o botavira adormeceu aberto e acordou amordaçado
por grandes manilhas de cimento para drenar seu suor
os olhos d’água se calaram para sempre e uns dizem
que até o chafariz da chácara do barão calou sua voz
o botavira virou lugar de casa amontoada
de pouco quintal porque as famílias crescem
para cima e para os lados e a história se faz
berço cheio de filhos como ninho de pardal
um dia calaram a voz da adolescência
com manilhas de cimento e pedras
de calçamento frio
694
23
a loja de samuel (um homem aristocrático com uma rural verde e
branco sempre estacionada no lugar onde ficava a igreja da
purificação – na minha cidade o povo vive derrubando o sagrado)
a loja de samuel funcionou no sábado eu e berenice fomos até lá
(era no alto da cidade) para adquirir uma máquina fotográfica tão
pequena tão pequena que cabia minha face
a loja de samuel me deu a primeira fotografia saída do meu
próprio olhar e ele não sabe (contem para ele, binha, augusto, ele
precisa saber disso!) mas mudou minha forma de ver o mundo e
de pensar o que vinha de fora para me fazer por dentro
é que o mundo cabe no clique de uma máquina fotográfica
o mundo cabe na mão quando se está prestes a registrar
a face do dia da tarde a face da vida alheia
se soubesse teria fotografado o tempo
correndo nos cabelos
passando ligeiro
entre os dedos
24
eu não sabia era pobre
mas sabia a pobreza é espírito
não a materialidade das coisas
a pobreza de interior é fecunda
ensina não pela falta das coisas
mas pela necessidade de pensar
o mundo pela forma e fundo
eu via os meninos ricos
com miséria de espírito
695
nenhum escreveu poemas
minha cidade separa ricos
(serão ricos os que se dizem ricos?)
dos pobres na praça joão pinheiro
(serão pobres os que se acham pobres?)
prefiro ainda hoje a pobreza das coisas
com a oportunidade do sentido útil
25
curei a asma da infância na
quadra da praça de esportes
nem dr. walter indicou mas
meu anjo da guarda orientou
- vai, corre, nada, pula, deixa
a palavra soltar-se dos pulmões
asma é prisão da palavra de outras vidas na garganta
se a coragem vem e a palavra sai a asma vai embora
se a covardia chega morre-se cedo de peito sufocado
a asma não suporta a liberdade da palavra pelo vento
só sinto saudade da maçã posterior
à injeção benzetacil lá na farmácia
a dor da injeção superada pela cor
vermelha do fruto em papel violeta
- vai, escolhe a maçã, deixa
a dor na caixa de madeira vazia
696
26
tenente nonato era um sujeito entre o sério e o ridículo
mas sempre um homem roubando a cena musical
meu pai tinha um respeito muito grande por ele
o que conversavam?
filosofia?
ditadura?
partitura?
ignoro o som o tom a voz de cada um em diálogo
mas sei que um dia eu me dei conta que ele tocava
um piston dourado tirado de uma caixa preta
e ensaiava a banda de música para um dobrado
tenente nonato era um homem tarado por mulheres
e foi assim até a morte o sexo era uma porta de entrada
para a vida dele na vida dos outros e sei muito dele
pois quase nos afogamos no barco furado da lagoa
num passeio até a distante (a estrada de terra é um carma!)
alvorada de minas com rio largo e campo longe e fazenda
com lagoa funda eu me arrependo até hoje de entrar
na canoa furada: sobreviver é lição adolescente
27
apesar do medo de morcego
sempre gostei da noite
apesar de não ter asas fortes
sempre voei no sonho
o morcego assusta de dia
de noite se dependura na lua
28
entre a poeira e a lama
entre o gol e a linha
fiquei no limite
697
entre a quadra e o campo
entre a família e o bando
fiquei menos triste
29
um dia a barriga estava cheia
um dia a vida estava vazia
as letras começaram
a fazer falta
um dia a cabeça estava miúda
sei: é normal entre as nuvens
a palavra me pegou pelo pé
um novo caminho
silma de benilde tomava conta da biblioteca ao lado
bem ao lado do ginásio improvisado e ela me olhou
(ela nem deve se lembrar: a memória é fraca para todos)
mas meu primeiro retirado da poeira foi diálogos de platão
pouco entendi daquela barbudo corruptor da juventude
mas só de ser barbudo (meu irmão mais velho era barbudo e usava
camisa do solidarność, lá da polônia)
simpatizei por seu ato de bravura: morrer pela filosofia
a bravura de viver nunca me abandonou
se sócrates morria pelas palavras ditas
eu queria viver muito para ouvir a voz
da vida com cartazes na biblioteca
silma de benilde me benzeu a vida
no empréstimo de livros de adulto
se ela soubesse o que pode a filosofia
o que fazia sócrates ali na minha cidade interior?
698
30
dona laura com caderno de canções
de pastorinha em época de natal
a vida é divertida
quando se canta
a vida é muito boa na voz de dona laura
seu livro de canções deve ser colocado
na estante imortal da nossa cidade
(que apesar de grande coração
joga tanta saudade no chão)
31
zé nunes nas suas lojas unidas
uniu a vontade de escrever
com uma máquina usada
por quem terá sido?
nunca soube
só sentia as teclas já vibradas
já com passado sobre a fita ora
preta ora vermelha
máquina de escrever
portátil companheira
das primeiras letras
em papéis da gráfica
não consigo formular
devido ao tempo avançado
o alcance dessa aquisição
a vida nunca mais voltou
699
sempre foi para a frente
em versos em palavras em ensaio
de vida que a vida é sempre
uma palavra por ser escrita
a máquina foi companheira
durante quatro longos anos
e até outro dia eu a via
numa gaveta da casa de berenice
mas ela se foi com sua arquitetura
para o lugar que sempre quis
do silêncio das teclas
a vida é feito de silêncio
zé nunes vendeu muito mais
que uma simples máquina
vendeu poesia
32
ela, dona vilma, de nome tão forte ainda na memória
de todos e todas passageiros do ginásio
ela, dona vilma, forte no dizer e magnânima na gramática
me deu à palavra escrita em casamento
no final de cada bimestre a maior nota era sempre apreciada
um bloco de notas com frases de grandes pensadores
da ediouro (um nome muito apropriado para as palavras)
era entregue num ritual de homenagem ao esforço na língua
língua que aprendi a amar bem cedo
tão cedo quanto acordar no inverno
e ouvir exemplos de frases para fixar a forma
como o verbo o adjetivo e o substantivo se juntam
para expressar de nós, nós mesmos
700
do mundo, o nosso jeito de ver o mundo
da manhã o sol nascendo
da vida o canto das horas
dona vilma sempre usou um salto alto para senhoras
no alto de seus saltos equilibrava o fundo e a forma
nas palavras honestas nas brincadeiras maduras
nas letras inequivocamente manuscritas
folhas e folhas rodadas no mimeógrafo
o dia começava com cheiro de álcool
para acordar dentro da alma o plural
o incrível plural de cada vida
dona vilma me ensinou a amar as letras
e deu às letras um contorno de sentido
33
quando os vi não acreditava
quando os ouvi o coração palpitava
fora a rima involuntária
oswaldo frança júnior
adão ventura
encheram minha oitava série
de um brilho especial
ainda mais que oswaldo
foi o paraninfo da formatura
de um ciclo que nos retirava
dona vilma e dona aparecida
do currículo das manhãs
do caderno dos livros
e levava-as para a vida
701
a conversa com eles foi no auditório
do ginásio reformado e ana maria lins
sabia dos livros de oswaldo
e queria uma pergunta de nós para ele
mas como entender esse autor
no cafundó do mundo serrano?
como entender ventura
no calor de novembro?
o conselho de oswaldo claro
e jamais esquecido:
leiam o que puder, a todo tempo
a toda hora, mas sempre leiam
(será que
todos ali
ouviram
da mesma
forma que eu?
acho que sim
tenho certeza
que não)
34
o barroco se apresentou na adolescência
tudo demais
tudo muito
por ter nascido numa cidade de barroco contínuo
no comércio na vida no eficaz controle da vida alheia
na política provinciana na atitude irresponsável
nas famílias jungidas como casa geminadas
702
entendi bem cedo o que significa o tempo
dado aos construtores das igrejas
e ainda forte no meu tempo ali
percebi claramente a continuidade do barroco
na cidade do interior com seus fingimentos
com suas paredes de dois lados
incrível ser barroco
ter dois lados e oco
por dentro
francamente o barroco
é a expressão da alma
dos serranos
a adolescência é um despiste
como igreja barroco sem pregos
ajustada à situação do morro
ajustamento é o termo certo
mas nunca me dei bem
com a face oculta
sempre preferi a face certa
a real por isso a poesia
em mim coube
o fingimento
o barroco
o tempo
estruturas fundamentais
de meu oco tempo
adolescente
703
35
ana maria lins
de dona leonor
de lili sales
não foi minha professora
lá no grupo e nunca soube o motivo
acho que por causa do turno
ou do a do b ou do c
encontrei sua alma alegre no ginásio
reformado como cada caso contado
seios grandes por causa
do leite de mamão
a alegria dela ecoa pelos corredores
do tempo de ginásio
36
a igreja no natal fazia presépio
diminuto mundo bíblico
sempre gostei de
resumos
o lugar de jesus
ficava vazio
até dia 25
dia de peru
minha mãe fazia um peru
assado com uma novidade
um sinalizador vermelho
para indicar o ponto certo
704
a vida podia ter esse recurso
manjedoura vazia
peru no ponto
37
os campeonatos do campinho de pedrelina
nunca tiveram fim ou se tiveram eu nunca
eu nunca soube do fim porque para mim
só existia o apito inicial e uma tensão grande
eles devem se arrastar até hoje sem troféu
ou volta olímpica ninguém me avisou
nem sei se eu perguntei para saber
deve ter sido tudo invenção
um campeonato envolvendo os meninos
do leiteiro do machadinho do pau comeu
nunca soube da classificação se primeiro
ou o último (pedrelina deve ter interrompido)
não sei se o campeonato acabou ou não
só sei da bola rolando dentro da alma
de um ponto ao outro dos ponteiros
verdadeiras traves do mundo
38
meu deus, estou dentro de um aero willis
cor azul claro em direção à várzea
nem asfalto havia
me acompanham sem carteira de motorista
ailton de dona zulina ao volante
e dona odília quer aprender
a dirigir
705
meu deus, isso não pode dar certo
pois começou errado com mentira
para mário que dormia depois de
um porre daqueles de domingo
meu deus, os anjos da guarda protegem
mesmo sem saber da proteção divina
se não fossem eles a batida seria pior
a asa do anjo bom diminuiu o impacto
as aventuras adolescentes na minha cidade
sempre tiveram cheiro de coisa errada
a certeza é uma experiência chata
da maturidade
39
o ford barata de levi leôncio
ficava estacionado graciosamente
diante de sua casa
pertinho do rio
o ford preto caía aos pedaços
a alma era intacta
é que no botavira os carros
foram sempre idolatrados
tinha medo de entrar na baratinha
vai que me levasse para o rio
vai que me deixasse noutro mundo
e sem contar a voz rouca do dono
valda teco e ninha
filhas de levi leôncio
brincavam no posto
de seu walderes
706
a vida no botavira
era uma descoberta
de sentidos
profundos
40
só não lembro seu nome
mas era um mulato de pernas
tortas bem tortas
e tocava pratos
na banda de música
o som dos pratos
permanecem
os pés tortos
corrigiram-se
41
a cidade de muros de pedra-sabão
e de almas altas
a cidade de entulhos nas ruas
e de vidas banais
a cidade era escola casa campinho
e praça de esportes para ricos
eu seria tão pobre assim
nem a praça de esportes
poderia pagar?
mas ela não era do povo?
minha cidade é pão e ovo
707
42
a chácara sempre me pareceu um furto
sem dono sem dona
sem nada dentro
a chácara do barão nunca teve vida
menos no verão
das jabuticabeiras
a chácara só teve vida no dia
em que o patrimônio nacional
ingressou pela porta da frente
eu ia ali de vez em quando
ver slides sentado no assoalho
e contar casos de túneis secretos
quem viveu a curiosidade dos túneis
sabe dos morcegos de asas grandes
e da saída misteriosa para outro mundo
(quando cresci e
caminhei pelo túnel
os morcegos se
apagaram da imaginação
o segredo se desfez em
água de mina
e túnel desabado...
amadurecer
é endurecer a fantasia)
43
na minha cidade sempre houve
pessoas consideradas
artistas ou artistas
considerados pessoas
708
eudes lá do jacu morou lá em casa
e seu desenho vinha com uma leveza
lá do fundo da alma
magno zeó de sebastião cirilo e dona dodô
(pelo nome dos pais se percebe que morava
no centro histórico)
fazia até exposição no ceará
carlinhos dumont sempre cantava com
violão e gaita numa estranha
engenharia musical
minha cidade sempre teve artistas
e eu nunca soube de suas artes
antepassadas
44
nunca soube de belmiro de almeida
nem dos sons do maestro cardoso
e dos versos ocultos do pai de dona milude
e dos escritores anônimos com seus livros
queimados depois de sua morte pelos parentes
vivos (se o oposto fosse, seria melhor para a cidade?)
a arte sempre esteve e ainda está nas pedras
na ladeira que sobe no beco que desce
no caderno do ginásio oculto o verso
no livro de cecília meireles lido na santa rita
a arte reveste as pedras de pedra-sabão
e ouço os sons de fernando victor fourreaux
criador da banda santíssimo sacramento
e suas filhas em coral na matriz
709
ouço os tambores da festa do rosário
espantando os maus espíritos da cidade
para trazer a novidade depois do frio
e da matina sem fim na alma
a arte está nas paredes descobertas
das igrejas das imagens restauradas
e as palmeiras da praça joão pinheiro
sabem das artes barrocas do tempo
45
a cidade da minha adolescência tinha vida
artística (as pessoas cultivavam a música e a pintura)
intelectual (eu ouvi palestras de maria eremita a maior artista da
história em cadernos guardados no quarto de hóspedes – quem
vivia ali estava bem alojado!)
noturna (para conversar sobre o tempo das diretas já, para os
tempos de uma nova nação ao som de caetano veloso no bar
diamantis)
hoje não sei como andam as pessoas
afastei-me do tempo por causa do relógio
46
no ateliê de magno zeó as horas eram alegres
e o sorriso tingia as telas de cores
e a ironia enfeitava ainda mais o céu
(o céu dos quadros
dele eram os mais
bonitos de todos os
bonitos quadros que
já vi)
magno zeó vendeu artesanato de minas novas
e tinha uma amiga museóloga que cuidava
da chácara do barão
710
dona dodô era sua mãe e sempre estava na janela
esperando o tempo passar
(o chuchu cozinha rápido na época
do frio... corre dona dodô senão
queima e seu sebastião cirilo depois
que voltar da comemoração do dia
da pátria vai ficar bravo e mostrar a
cicatriz da segunda guerra para todo
mundo ver e a senhora vai pedir
para morrer!)
quantas ruas terá visto os olhos de dona dodô?
quantas mulheres de balaio terão vendido bananas dedo-de-moça
para enfeitar a fruteira sobre a mesa?
quantas pessoas conversaram com ela antes de maguinho e guará
voltarem para o almoço?
47
a igreja era um ritual social
as irmãs seabras sempre fiéis
julinha glorinha ceição rosinha
mas não cometamos um desvio de conduta
havia um irmão
zé
de singela estatura
por isso mesmo
zé
a igreja no domingo se enchia
com coral de vilma e sua voz
de espantar insônia
e de pessoas bem vestidas
depois da missa vinha o passeio
na praça joão pinheiro não a única
mas a que dividia socialmente
711
ricos e pobres
feios e belos
a igreja matriz mudou alguma vida
depois dos sermões de barriga cheia?
quem terá decidido ser mais humano
depois da hóstia negada pelo pecado?
quem terá decidido se matar
depois de pisar em campas?
48
eu ia para a igreja
como coroinha
e sempre dormia
eu ia de noite
e sonhava com anjos
e sempre acordava santo
eu ia para fazer a primeira
ou segunda leitura para esquecer
todos os versículos após o pânico
eu ia cheiroso com perfume da água de cheiro
da loja de leandro de dona lucinha (absinto, sim...)
mas nunca senti com ele a sensação dos poetas europeus
eu ia para a igreja me perder
nunca me achei entre as palavras
sem verdade e sem ciência
eu ia por que não tinha outro lugar
para deixar a alma solta devido ao sono do corpo
e era tão bom ouvir as asas dos anjos roçarem meus cabelos
712
eu ia fazer a obrigação
aprendida no ensino religioso
mas nunca soube se isso dava resultado
nunca fiz planilha de custo-benefício
nem se falava nisso ainda eu era jovem
jovem demais para saber de roma e suas almas perdidas
adolescer dentro da igreja
é cindir-se mais ainda
entre bem e mal
entre verdade e mentira
entre religião e pecado
entre hormônio e castidade
adolescer dentro da igreja
é um tiro no pé
não se sabe o certo
não se sabe quem se é
ou se se é, é outro feito
como sombra de vela
agradeço ao anjo
pelo sopro de liberdade
ao pé do ouvido
49
sempre difícil o inglês
minha alma sempre foi de francês
desde vidas passadas e na semântica
francamente
era uma expressão
de tê, professora de inglês
antes dela era iara
713
que um dia usou colírio vencido
e feriu seu ollhos
(mesmo assim ela nunca me viu francês)
quando conheci irmã maria do carmo
já no colégio das irmãs
minha alma se reencontrou
ela falava vários idiomas
entendia alma francesa
dos alunos poetas
mas só ela
as demais
nunca ouviam
nada
nem eco
nem voz
50
o professor de educação física
era benício e morava na casa
da praça de esportes na praia
a primeira vez
da bola de basquete
foi difícil
a forma gigantesca
diferente do futebol
e aderente borraca
apitei vários jogos
as mãos sempre as mãos
usadas para ser do esporte
quando a adolescência
tem linhas rígidas
a liberdade brota
714
a bola sempre rodou
o tempo na quadra
e o basquete foi sempre
a maior paixão
51
a turma se reunia
para jogar
basquete
em horários
alternativos
cinco da manhã
era divertido
sem técnica
alguma
52
um dia lalado prefeito
chegou à cidade um técnico
para fazer da técnica
o jogo
o esporte tomou o tempo
da tarde
da manhã
as linhas são importantes
sérgio era o nome dele
e dediquei meu tempo
para fazer a bola ir
onde o querer deseja
715
um tempo próprio
de grande propriedade
um tempo nobre
de grandes possibilidades
viagens jogos atividade
a vida passava dentro
da quadra e fora dela
o amor sempre forte
a vitória no esporte
é um grito no final do jogo
a vitória no tempo
é lembrar com saudade
53
a bola roda no alto
e cai na mão
o olho atrai
movimento
a bola gira
feito mundo
e a lua marca
a fase do amor
a bola se converte
em relógio
o amor se diverte
no corpo
54
colégio: três anos ali dentro
entre irmãs de são vicente
missas na santa rita
e retiros no sítio
716
uma diretora era tão séria
que me roubou tempo
para entendê-la
outra era tão personagem
que me deixou marcas
teatrais
todas de azul e branco
e nós de azul e branco
mas sem pecado mortal
55
karine e rosana sempre em risos
a adolescência é riso sem fim
(até hoje não sei bem o motivo
mas deve ser por causa de um
hormônio ainda desconhecido)
a sala com sheila amélia e raquel
e tantas outras personalidades
a sala era um tempero forte
e eu espirrava crescimento
as conversas e as brincadeiras
fazem crescer rapidamente
(até hoje me encabulo com a falta
de seriedade de mim para comigo)
56
nunca levei a sério o ensino médio
o tempo era outro, não de cadernos
era de barzinho na sexta e sábado
de teatro no diamantis
717
a vida girava feito disco de caetano
ou uma fita cassete de vinícius
não havia ideologia a não ser cazuza
nem questionamentos até ouvir legião
a vida era uma espinha prestes a secar
por isso a intensidade das experiências
todas: a última vez
todas: a primeira vez
57
o primeiro grande amor
foi no alto da santa rita
preciso parar um pouco
para lembrar com alegria
a cidade resolveu criar
o cenário perfeito
apagou as luzes
não tive aula
a cidade estava entregue
ao amor nas casas nos becos
e no alto da santa rita
era eu e outro corpo
um outro corpo com cheiro
mãos de arrepiar o desejo
e fazer erguer as estruturas
da alma
o amor durou o tempo
que o tempo permite
a inocência é um tédio
718
a sabedoria é um medo
o beijo, o primeiro grande
o beijo, o mais real de todos
o beijo, seguido de desejo
esse sem luz no alto da montanha
ah, o divino mestre dirigiu o roteiro
na porta da igreja (fora dela, oba!)
um cenário único setecentista
trovões sem chuva: o amor molha
58
o carnaval na adolescência
é outro: há bebida e pulos
e ressaca com vômito
o carnaval é outro
atrás do bloco
eu tô doidão
(joão surubim levava o estandarte á frente
a sua calda se arrastava pela praça)
tempos bons de minhocão
de uma cidade em brincadeira
sem o tédio da quaresma
o primeiro som pedras rolantes
uma praça toda para diversão
e a luz sumia bem na segunda-feira
o carnaval é a melhor festa do mundo
libera o fantasma do tempo
e desmente as espinhas
719
59
no carnaval o grande amor
pulava diante dos olhos
e no coração
no carnaval eu era o amor
na avenida principal
no carnaval eu era a paixão
em cada copo vazio
60
música? não me lembro
talvez houvesse a alegria
de tempos novos no brasil
ah, sim! chico buarque
era ouvido com
naturalidade
“Vai passar nessa avenida um samba popular
Cada paralelepípedo da velha cidade essa noite vai se arrepiar
Ao lembrar que aqui passaram sambas imortais
Que aqui sangraram pelos nossos pés
Que aqui sambaram nossos ancestrais”
o samba mais correto
para as pedras da cidade
feita em liberdade
720
61
a procissão de cinzas
com cônego júlio
ao alto-falante
tantos santos
na praça onde
ontem
eu descia ao
inferno
dos sons ecoantes
o
s santos na praça
colocam a moral
em dia
entre os santos
algum era o padroeiro
do carnaval?
não sei...
a memória se foi
na última marchinha
62
para cada casa sem cor por fora
(culpa do patrimônio?)
uma parede de cada cor
na casa dentro
a vida é mais alegre
colorida
a borboleta sem cor
é mariposa apenas
721
63
o corpo quando corpo de fato
é torto como torto é o espelho
eu nele sou outro de frente
não posso ser o mesmo daqui
o corpo é deveras torto
visto de cima para baixo
como assim? totalidade?
isso não existe aos 14...
64
minha alma adolescente é feita de letras de música
hoje quando ouço a trilha sonora do meu tempo
ressurgem pessoas e situações e vozes
-não posso desmenti-las!
a música é a voz do tempo na janela da alma
e na alma imortal roda um vinil em chiado
na vitrola amarela sobre a mesa da sala
-o cheiro de cigarro vem do quarto de pai!
calar essa voz não posso
fechar essa boca não ouso
ela sou eu a gritar
-o tempo é ritmo bom!
65
a trilha sonora da
consciência a se formar
música a música
poema a poema
veio da bahia
de santo amaro
da província
por isso acho
a descoberta do mundo
se pareceu
722
caetano com sua filosofia
com sua poesia
com sua trama
própria
a cada poema descoberto
um novo som do mundo
até a última música sempre
um momento de autoconhecimento
66
antes do estatuto da criança
e do adolescente
e mesmo dentro dele
sempre acessei o mundo dos adultos
a noite terminada em madrugada
a segurança sempre houve
a casa sempre próxima
do mundo à casa se ia a pé
67
garajão era o nome
o globo espelhado
as primeiras sensações
de perder-se
depois o club
som do nilceu
dentro das escolas
forró rock balada
a descoberta do ritmo
o gole de bebida
um mundo interior
girando
723
68
o trabalho era entre
escola e treino de basquete
o trabalho para receber
o dinheiro no fim do mês
o banco do brasil em dois
momentos diversos
um na rua rio branco
depois no centro
quatro anos em maturação
69
a aabb ficava longe, longe
íamos a pé para jogar ping-pong
ou mesmo inaugurar a sauna
na quadra de areia
algo de mar grudou no corpo
nunca mais esqueceria aquela sensação
sol e areia
suor e água
70
o mar se revelou
na abertura da ladeira
de pedras quentes
o ano já não sei
só sei da visão
jamais passada
eu era uma criança saindo de si
724
para o mundo tão vasto e
de horizonte amplo
o maior horizonte era físico
mas era também eu mesmo
dentro de cada possibilidade
nunca deixei de amar o mar
e o sal na pele me preparou
para temperar a existência
71
a onda me puxou o pé
para dar boas vindas
mais que isso
me banhou
como em batismo
no mundo outro
diverso e vasto
mas verdadeiro
o mundo se dá
como onda
o mar se dá
como absoluto
72
faltou alguma lição da natureza
para completar o destino?
faltou a voz de um conselheiro
para reatar a realidade?
725
73
pedrinho recebia espíritos
na sala preparada
velas e cachimbo
pedrinho inicia pessoas
na arte de conversar
com os mortos
eu achava tão bela a cena
de preto velho revivido
e de gente rodando
e de benção de outro mundo
na noite católica do interior
de todos nós
74
o primeiro relógio de pulso
era de várias cores
de várias pulseiras
o tempo tem uma cor
para cada dia
o tempo tem uma face
para cada hora
o primeiro relógio colorido
mostrou horas fortes
acorrentadas
75
as revistas chegavam do outro lado do mundo
traziam notícias tão interessantes
quando me dei por conta
726
vivia na cidade grande
o modo de viver já não cabia no quarto
na igreja no colégio
algo metafísico ocorria
o tempo passou a ser outro
a matéria sobre os roqueiros de brasília
os programas sobre os punks de são paulo
revistas revelavam outro olhar
não meu mas querido por mim
identificar-se com o mundo
autoconhecer-se no mundo
fomar-se sobre as próprias bases
sempre em erguimento contínuo
76
estranhamento:
quem era eu?
talvez nessa hora viesse de fora
a resposta... mas não!
o tempo é uma artéria funda
estranhamento:
eu era eu?
a fotografia talvez me desse o chão
e a postura... mas que vão!
o tempo é desbotamento
77
revistas impróprias debaixo da cama
como um outro corpo por debaixo
727
a vida é impulso de toque
e de interpenetração
quem é a imagem dentro da mente
senão o todo desejo de si na tela
de papel em convulsão
de sexo e fantasia?
78
sou ainda o mesmo do sofá
deitado em sábado à tarde
ou outro levantado e saído
pela porta nunca retornado?
um pouco resta do passado corpo
a memória do ido corpo sentindo
feito emoção gravada no interior
da casa que me abriga: eu mesmo
79
nunca me confessei sem temor
nem pedi perdão sem vergonha
essa lição de pecado céu e inferno
é um tique do medievo no tempo
libertar-se do sacramento
quando a dor se faz real
não é possível: deus ali
era quase um obstáculo
a religião é um livro
que nos abre
ou nos fecha
para sempre
728
80
a alma se liberta ou se perde
ainda mais no tempo? não sei
apenas sei de um deus que foi
ampliando sua exigência
quando me vi estava diante
da opção profissional futura
ser ou não ser um sacerdote
para encarar a vida de frente
81
um dia acordei com sede de estrada
ou sede de mar
missionário
marinheiro
nunca soube quem me trouxe
a voz interior sussurrante
vai! sai! ganhe o mundo!
um dia dormi antes da hora
acordei cedo demais
para uma vida leve
e o peso das horas
fez-se uma opção de vida
ou de vida sem opção
para quem sonho com
mundo além das montanhas
82
os passos não estão lá
nenhuma pedra sabe
como eu sei delas
de mim
729
os gritos não alertam
como eco na várzea
eu sei das vozes
em mim
83
o colégio estava decadente
minha turma de contabilidade
foi uma das ultimas
o colégio estava descrente
como materialista
depois da igreja
84
dos últimos dias antes
de sair pela rodoviária
ao som de farnesi
dos últimos instantes
na cama da família
só lembro da alegria
nem pouco nem muito
uma sinceridade diante
da vida
85
pindeco e eu fomos conhecer
uma casa no trevo na br 262
indicação de uma irmã do hospital
quando cheguei pareceu uma revelação
a felicidade estava na opção
aprofundar a vocação
no seminário
lazarista
730
86
no terceiro ano do colégio
no dia da formatura deixei
um recado para cada um
com endereço novo
em campina verde
cidade desconhecida
passaria um ano
apostando em deus
87
o vento soprou forte
no alto da santa rita
fechava, como podia?
os olhos para o mundo
não via senão o sacerdócio
meses de enclausuramento
antes da clausura real
antes do tempo certo
88
meu coração estava livre antes
como pude levar meu próprio eu
para um lugar não meu e de ninguém?
não posso entender dos hormônios espirituais
não consigo compreender essa força incrível
das coisas reais acontecendo na vida
eu trouxe para mim essa realidade
ou ela veio pelo destino
ou pelo acaso?
731
quem era eu antes da fuga para o triângulo mineiro
nunca mais saberei...nem poderia: o tempo se foi
a memória da fé tola me envergonha
acreditar nos homens de batina
tenho medo de todos eles
mas cria em mim
a fé era eu com fé
nada mais que isso
um pouco além
seria retórica
89
fui juntando roupas
fui fazendo compras
fui enchendo malas
me perdendo
fui doando discos
fui levando a sério
fui louvando anjos
me esquecendo
90
ninguém ninguém mesmo para impedir
nenhum sinal divino para me despertar
do sono de mudar o mundo
nem o som da banda de música
nenhum amigo verdadeiro para dizer: pare!
nada me tirou da rota de colisão e os pneus
do ônibus assinaram no asfalto a sentença
-liberdade para aprender com a vida!
732
91
se a manhã tivesse amanhecido outra
vária e sem sol e sem frio e feroz
se o dia tivesse perdido a sua graça na montanha
e eu soubesse que não podia removê-la
de dentro de mim
se ao menos a tempestade tivesse levado
o telhado de amianto da casa eu poderia
supor que algo estava errado e que seria
nada feliz longe do vento no relógio
do tempo passado na santa rita
se ao menos a banda de música tivesse desafinado
se ao menos os loucos deixassem por um dia
um dia apenas sua loucura de tempos tantos
eu saberia do meu engano de maneira inequívoca
mas nada alterou-se: eu tive a certeza
o tempo me jogou para fora dos muros da família
o vento balançou os cabelos para nunca mais
e as palmeiras da praça riam de minha decisão
pois sabiam da saudade que se leva na alma
de uma cidade escrita no interior de si
92
a vida é o que dela se pensa
mas o que dela se dispensa
também é vida
outra, mas vida
a não vivida
a deixada de lado
para ser outro dado
da realidade
733
93
o relógio da santa rita tocou
uma hora da tarde tão alto
o relógio da santa rita esgotou
furiosamente o tempo serrano
o relógio recebeu um sopro forte
e indicou a hora de ir embora
o relógio da santa rita comunicou
a todos os relógios do serro
a hora de eu ir-me embora
o motor ligado a mala pronta
nunca mais (ou seria até breve)
ouviria o som do relógio nobre
na alta madrugada serrana
quando os galos ainda dormem
quando as mulheres não procriam
e o hospital recebe os anjos
o relógio da santa rita ultimou
e fui de ouvido em pé e nada ouvi
senão o barulho de uma lágrima
gotejando sobre o coração
a cidade de vermelha terra
soube se despedir de mim
os dezoito anos se foram rápidos
como patinete no botavira
734
ou como bola em direção ao gol
no campinho de pedrelina
o tempo passou rápido demais
eu sabia disso e o relógio da santa rita
só me fez ver a realidade das horas
na alma em muro derrubado
94
deixei para traz algo que merecia ver?
nunca saberei: sei do tempo interior
do tempo de outros ali jamais
captarei sua essência
o tempo é o lugar onde se vive
a realidade é um fato de alma
não se deve julgar a necessidade
alheia se há uma distância grande
entre o vivido e o que viveram
o que viveram sem mim será
sempre e para sempre a memória
de outros relógios enlouquecidos
95
o vazio do quarto vazio ficou
sem a angústia dos meus sonhos
vários e insignificantes
o vazio da mesa vazio calou
os pratos de comida
os talheres levados à boca
735
o vazio na gráfica vazio escreveu
nos livros do tempo
o silêncio dos passos
um vazio é sempre oportunidade
de rever o espaço ocupado
no mundo
96
a bola não quicou mais na quadra
nem a matina da festa do rosário
acordou-me no frio mortal
do junho irremediável
os sinos não dobraram dissonâncias
o vento estava para sempre dentro
da minha alma embrulhado no envelope
das irmãs seabras
a saudade dessa eu me lembro limpou
o terreno para grandes amores
e um novo eu saindo do casulo
ou se perdendo para nunca mais
97
o sol da tarde me acompanhou
(por isso a tarde ainda me é inimiga)
até me lançar em belo horizonte
onde os viadutos me confundiam
ainda mais: eu vinha das ladeiras
onde se descia ou subia nunca
se passava para ir a muitos lugares
sempre para o alto ou botavira
a última tarde pelo morro do paiol
brilhou tão forte: o ônibus era um
736
cavalo de são paulo diante do cristo
levava a notícia de outra vida
98
o rio quatro vinténs encontra o rio lucas
lucas é um homem muito rico
tem quatro vinténs em ouro
desde que a terra os fez ligados
quatro vinténs para lucas
para levar suas água
ao rio santo antônio e de lá
à liberdade: o infinito mar
quatro vinténs se joga nos braços
do amigo lucas e o faz rico
mas o mar é mais rico ainda
recebe a eternidade do ouro
eternidade: haverá em cada ladeira
ou ao subí-la se perde como cabelo
em trança desfeita antes de dormir?
99
o sopro do tempo no relógio do templo
me fez templo distante
e frio na espinha
o sopro do tempo no corpo
expulsou do corpo o prazer
de ser corpo apenas e mundo
o sopro do tempo na alma
fez dela uma cega dúbia
sem corpo o que seria?
o sopro no coração
é doença de tempo
na alma triste
737
100
um terço da minha alma reza
outro terço se desespera
o pouco que resta
é festa
um terço da minha alma canta
outro terço cedo se levanta
desobedece
o pouco que manda
a minha alma é um rosário
três terços é um inteiro
nossa senhora do rosário
é lua cheia
completa visivelmente
discreta na escuridão
pouca de um lado
toda para a multidão
O SOPRO DO TEMPO NO RELÓGIO DO TEMPO
MATURIDADE – 2010
1
a maturidade não é só idade
é uma soma de dois lados
o de dentro e o de fora
a maturidade me ocorreu
dentro do ônibus indo
dentro do ônibus chegando
indo de serro
chegando a campina verde
no triângulo mineiro
738
a maturidade não é idade
é uma passagem para o novo
de três lados
2
de noite o ônibus desceu e subiu
serras? não sei, dormia...
o tempo estava em óbito
o passado era apenas o tido
uma parada em uberlândia
para tomar um café e mais
alguns tantos quilômetros
para chegar à campina verde
no caminho plano (a memória é reta)
via não montanhas já idas longe
via apenas um planalto e bem longe
minha vida nova a se projetar
3
o amor não veio a galope veio de carro
é que os cavalos do motor ardiam em brasas
como eu quando diante do grande amor
o amor veio me buscar e nunca me entregou
em lugar nenhum (poderia ter me deixado, mas não!)
4
o grandioso da vida é sempre o novo
o repetido não traz angústia
a não ser se for ruim
os armários desmontados sem roupas
739
as camas desagrupadas um quarto
coletivo e uma casa nova
o seminário é um espaço oculto
um corre mais depressa que outro
para ser o mais obscuro
na realidade falta realidade
ela ficou em outro lugar
ali é o frágil
5
de cada um carrego uma lembrança
a primeira lembrança me vem
em prece e desencanto
dos mais piedosos
dos mais falsos
dos mais corajosos
todos enfim no mesmo teto
repousando o sonho não estado ali
em outro lugar num tempo futuro
ali na casa grande de sonho
apenas o futuro podia contar
de cada um
seminarista não tem passado
deus leva o passado em erro
para o limbo
o preço óbvio se paga
não demora muito
740
e o tempo retorna
com o tempo voltando
o erro não desiste
e sempre permanece
não tenho dúvida hoje
a vida de seminário é fuga
para um sentido menor
6
o dia-a-dia era prece matinal
a prece de manhã sempre tão pouca
os santos duvidam da necessidade
sempre gostei de prece noturna
de um dia passado na angústia
para a alma se revelar
nunca gostei da prece matinal
o mau humor não permite
a revelação
quando o dia começa antes do nascer do sol
e a prece antes do fazer-se o sofrer
vaga-se na luz da dúvida
7
o café da manhã com pão do interior
o pão de cidade pequena tem um gosto
diferente e parece ser outro é o tamanho
da vida refletido no sabor da fábrica
eu via na mesa grandes garrafas de café
741
uma vasilha gigantesca de leite
e sempre sempre os peixes
lá embaixo no canal de cimento
o canal dava para a barragem
eu sempre tive a mania de alimentar
os bichos mesmo que eles nunca
me pedissem
os peixes pulavam no miolo de pão
o corpo do peixe fora da água me lembrava
o ouro fino rio e peixe da infância
8
todos os dias da semana era feito de aulas
logo pela manhã filosofia
e depois se o dia se abrisse
latim e francês
os estudos de história para vestibular
os estudos de teologia para enganar a vida
nunca acreditei na ciência: ela me tornou
cético diante de mim mesmo
9
havia o intervalo para o café
hora de ver-se à toa no tempo
e diante da fazenda os bichos
me lembravam do serro
o intervalo era hora de nada
como o nada é intervalo
da vida
742
10
o quintal da fazenda
ou da casa paroquial
que era fazenda
mesmo cidade
era um mundo à parte
eu fui menino de quintal
quantas vezes me perdi
entre o cajueiro pleno
e o pé de carambola
e a cisterna com peixe
o fundo do poço
sempre próximo
as frutas grandes de encher
os olhos e as mãos o fruto
pleno de suco e massa
a boca sedenta por novidade
o quintal com cajá-manga
mexerica de todo tipo
horta com extensão nunca vista
e eu ali no universo mais interior a mim
no quintal eu me encontrava em casa
não entre os livros que me tiravam do lugar
eu sempre preferi o ritmo da natureza pura
me dizendo da vida que vale a pena
11
os bichos do quintal sempre muitos
os pássaros outros
os porcos
o peru
743
os bichos da fazenda são divertidos
guardam risadas tantas
em gritos e gemidos
ecoando na tarde
12
o almoço de seminário é formalidade
prece para começar
prece para acabar
uma conversa sempre sem graça
o almoço com gosto de interior
eu me fortalecia no medo
enquanto o corpo perdia
os músculos herdados do serro
o almoço sempre generoso
de sabores tão honestos
de panelas tão grandes
sempre havia uma festa a ser feita
eu acreditava na humildade (ainda)
deixava para almoçar por último
quem era eu ali: o menino mirando
uma santidade de brincadeira
13
no seminário são justino de jacobis
havia um banquinho bem em frente
que dava para igreja de nossa senhora
a mesma das graças do colégio do serro
o banquinho nos abrigava depois do almoço
744
crianças jovens e os padres sempre
a conversa inútil de um dia bastardo
a conversa sem rumo ecoando no sino da torre
14
eu fui várias vezes até a praça são vicente
conversar com algum amigo sobre a vida
e os ipês antigos me observavam com desdém
ele no alto eu nos primeiros passos da vida
a praça são vicente é muito grande
como o coração do santo da caridade
com banquinhos de cimento e chão
quebrado por raiz corajosa
na praça são vicente eu rezei o terço
o terço mesmo o terço sempre
o terço da cabeceira de cama
da infância
15
o sono, sempre o sono, na ordem
do dia mais correto possível
o sono me fazia acreditar numa vida melhor
depois do almoço antes da limpeza
a limpeza era feita todos os dias
para gastar um tempo da tarde
às vezes eu estudava
às vezes eu jogava vôlei
sempre eu queria o ócio
nunca queria a rotina
745
16
eu morei num antigo colégio
desativado com salas grandes
e duas quadras para esportes
nelas eu me fiz esportivo
os gritos de vitória
sempre vencer a si mesmo
a vida é um convite intenso
17
a limpeza encerrava com café
o café com pão de doce
e peixe comendo miolo
na varanda sempre estava
olhando para o galinheiro
espiado por um cachorro grande
tomando água no poço dos patos
sempre em festa na tarde
18
no final da tarde era hora de tomar banho
preparar-se para a missa diária na capela
com cantos e textos e sempre uma equipe
preparando a liturgia
a missa no final da tarde me fazia pensar
mais e mais na vida e nunca pude dizer
que o dia assim era perfeito: terminava
diante do altar
19
a capela era simples e dava no quintal
de um lado e de outro dava no jardim
o mesmo jardim tinha um poço de água
com um jacaré dentro
na capela o piso era vermelho
746
quantas e quantas vezes comi hóstia
durante a limpeza para sentir o gosto
sem a santidade do sagrado
20
o jantar era um momento sagrado
e dividia a minha percepção do dia
na noite alguém ressurgia era eu mesmo
de outra forma vendo a vida
a noite de janelas com luzes acesas
e de leitura psicológica da existência
a noite de seminário é vasta e muito
é a maior noite do mundo
21
de noite eu me sentia à vontade
para conversar sobre o quer que fosse
eu me sentia liberto das amarras
da luz e podia transitar
entre luz e fogo
de noite eu era eu mesmo livre
para enfeitar o diálogo com ironia
a mesma que cria no interior
a simpatia da convivência
entre verdade e mentira
22
de vez em quando eu saia para a cidade
dentro de um carro de padre
visitar alguém
a cidade plana de postes tantos
e asfalto de asfalto tanto
fazer sempre o bem
747
23
a lua sempre dormia depois de mim
eu nunca desafiei a madrugada
nem precisava: estar ali era o desafio
a lua sempre soube e sabe mais de mim
pois me enxerga na maré alta ou baixa
eu sei dela quando ela quer se mostrar
é preciso de olhos fortes para encarar
frente a frente a lua em suas fases
24
o sono coletivo é mistura de roncos
viradas para um lado para outro
perder-se entre as horas tardes
o sono coletivo é frio para quem assiste
cada um em seu sonho de vida outra
o desejo de saber-se outro sendo um
25
final de semana: o sábado de manhã
em quadra com futebol ou em campo
de terra com futebol de poeira e grama
quase nenhuma
o sábado de manhã com esporte
eu sempre correndo atrás da sombra
da bola eu poderia chutar o tempo
para as redes da maré alta
eu perco o sentido da vida
quando em jogo
748
26
o sábado à tarde era vago
tão vago que ia até à vila
um lugar onde os pobres
se abrigam do dia de trabalho
(se há trabalho na cidade)
o sábado de caminhada popular
indo ao ponto extremo da cidade
perto da rodovia de terra e areia
eu me via sempre melhor ali
(o povo sabe a verdade da vida)
27
no sábado à noite o sorvete
na avenida (a avenida é vasta)
foi na avenida que amei seus olhos
pela primeira vez de fato
até ali havia sido apenas intuição de amor
mas o corpo todo é sempre alma plena
eu tentei e ainda tento entender porque
minha alma se perde na busca da sua
na avenida de asfalto e jovens de sábado
eu me vi diante de um corpo com alma antiga
essa alma eu sei que já conheci em outro corpo
mas não me pergunto: apenas sei
perguntar-se é amar tolamente
afirmar o amor é deixar
o tempo rolar ladeira abaixo
eu sempre soube dos altos e baixos
28
quantos sábados acabaram em pizza
ou em sorvete e cerveja e caminhada?
749
não sei... o calendário mudou minha face
e desfez a passada num corpo mais jovem
só me lembro do pouco que precisava
para sorrir da vida e fazer alegre
o fim de noite que hoje se espalha
longamente... a insônia, que bom!
29
no domingo de manhã era dia de missa
lá no alto da cidade eu passava pela
praça com fonte luminosa e árvores
sempre floridas a cidade era um grande jardim
depois da missa em igreja moderna
eu me dava o direito de fazer nada
andando pela cidade plana
ou de vez em quando o nada vinha
quando descia em direção à casa
cheia de pessoas desconhecidas
30
o domingo de tarde era de passeio
a fazenda era sempre um convite
feito pelas árvores e riachos
pelas trilhas e eucaliptos
nunca me deixei perder pelas raízes
elas me abraçavam tanto que por vezes
amei a terra com sua gravidade
nunca me abandonei no por do sol
750
eu sempre voltei para casa a loucura
nunca me foi um lugar comum
o domingo na fazenda é lento
os animais descansam ou eu
penso no descanso para eles
os pastos grandiosos
as árvores de frutas
nunca me soltaram
o domingo era eu e deus
no meio da natureza
de tempo lento
se me dói algo de passado
é esse tempo parado e visto
pela emoção da saudade
eu não sei se vivi bem
sei que vivi tudo que
pude viver de bom
a natureza é sempre generosa
em ensinar lições gratuitas
de sobrevivência
31
os votos nunca foram feitos
no entanto eles pairavam no ar
como uma condenação
antecipada
pobreza
castidade
obediência
751
só são vicente de paulo
os conseguiu viver pois
ali dentro pouco vi
da intenção feita realidade
32
no primeiro retorno de férias
meu quarto era outro
minha família era outra
a cidade era outra
nada parecia me revelar
antes a saudade de campina verde
era a única verdade pulsando
dentro da alma
o estágio de um ano chegava
ao meio
o estágio de meio ano chegava
aos poucos ao final
se eu soubesse antes dos planos
errados que são antes de se fazerem
um dado do mundo interior
se eu tivesse a ousadia de sair
desse cenário pela porta da frente
teria sido quem sabe mais feliz
33
as cartas recebidas eram sempre
uma reafirmação da tal vocação
eram quase um sinal da fé
colocada em mim pelos outros
752
alguém entendeu esse gesto?
não sei... ainda me dispenso pensar
quando em outubro uma caixa
vinda da minha cidade trouxe
doce cartas lembranças de família
eu não pude conter minha alegria
quando eu senti a vida pulsando
ainda em outra cidade distante
eu me senti constrangido a ser
um membro desgarrado da família
34
o telefone um dia chegou
e sua instalação fez tocar
o coração mais forte
o telefone chamou-me de manhã
e minha irmã anunciou que a linha
era um contato direto entre o interior e eu
35
o calor do triângulo mineiro
é de toda hora e de dia inteiro
o calor refresca com suco natural
ou mexerica ou caju ou carambola
o calor triangular
manhã
tarde
noite
levava o coração a sentir saudades da montanha
753
36
dona nair foi minha madrinha
deu-me uma camisa azul
e uma bíblia de jerusalém
fora isso deu-me a simpatia
e uma filha preciosa guardada
no seu quarto como uma pérola
a filha não sabia seu nome
nem mesmo sentia sua presença
mas gostava de rádio e só isso
mas o coração de mãe amava
como o amor enfeita os altares
ela levava para deus sua arte materna
quando soube depois de alguns anos
da morte de dona nair eu pude entender
que seus braços estariam prontos para receber
novamente do outro lado da vida sua filha
37
dona ubaldina era uma simpatia
talvez de família antiga
como seu lenço
dona ubaldina era cheia de plantas
na cabeça e em casa e em vasos
fazia sua arte de florista
38
margarida fazia quitandas
morava perto do seminário
eu e a quitanda nos entendemos
desde cedo muito bem
754
margarida era católica
e sabia da história
dos padres dali
muitas delas estranhas
(isso é era apenas um detalhe)
39
a roupa era lavada com água quente
nunca entendi bem o motivo
deve ser para evitar mal maior
catarina e mercedes cuidavam delas
e de cada um de nós lavavam a roupa
suja no pátio da fazenda
40
mercedes era uma alma sublime
quando em nostalgia noturna
bebia uma bebida secreta
ouvia músicas profanas
e cantava alto e chorava
para quem gemia sua alma
para quem tremia seu desejo?
mercedes era uma alma gaguejante
sabia da vida da casa mais que todos
e tinha impresso na sua existência
a vida de muitos padres
secretamente
41
o ano acabou em campina verde
que bom que ele acabou
muitos foram embora
755
bem antes de seu final
a rotatividade é grande
a vida muito difícil
suportar a rotina
e aprendê-la
o ano acabou com uma boa notícia
os sobreviventes passariam
três anos em belo horizonte
cursando filosofia
era preciso ainda o mais difícil
passar no vestibular para ser
um estudante de sócrates
platão e tantos outros sábios
42
belo horizonte sempre foi casa
de novidade como toda casa
e casamento entre necessidade
e tempo passando leve
um horizonte novo
uma nova oportunidade
é que o tempo em livros
se faz mais prazeroso
43
a casa seminário abrigou
dois anos de estudos
a casa seminário de jardim
grande como a minha alma
a casa pronta para ser de muitos
como a vida que se faz no plural
756
44
a sala de estudos com livros tantos
e mesas tantas de ano para ano cheias
eu sempre estive inteiramente ali
seja na manhã de estudos fora
seja na tarde e noite de estudos de dentro
quando o almoço convidava ao ajuntamento
a prece abria o ritual que se fechava com banana
amarela de tão amarela nutritiva e cheia de vida
um ping-pong depois do almoço ou qualquer coisa
para fazer do dia de estudos algo para além
do mundo de pedra de dentro
45
em 1992 o brasil não era o mesmo
e fernando collor de melo insistia no teatro
a política de brasília me fez pensar o mundo
em caras pintadas na praça sete da capital
em 1992 o brasil buscava a sua identidade
e fui crescendo em ação em meio ao novo mundo
de política na praça e de protestos pela avenida afonso pena
como se pudéssemos com caetano escrever uma nova ordem
46
a orquídea um dia foi deixada
do caraça à casca da árvore grande
de frente da minha janela
as flores nunca vi
as flores são sempre promessa
como o tempo é sempre depressa
quando a alegria se faz presente
queria ter visto as flores da orquídea
757
retirada da serra em frio de julho
mas o frio de dentro foi maior
e não gerou flor alguma
47
a primeira noite de sábado
(uma noite de sábado era diferente
quando primeira por causa da mesada
que todos recebiam para passar a vida)
a primeira noite de sábado
(uma noite de comer batata frita
às vezes pizza mas sempre o sabor
de final de noite era solidão)
48
a periferia de belo horizonte
ainda era apenas uma ingênua
violência
a periferia da cidade
fazia medo pela pobreza
e serranos ali morando
a periferia era visitada
nos sábados à tarde
numa caminhada épica
49
beira linha era uma estrada inacabada
onde um trem passaria no lugar
ao invés das casas pobres
beira linha era um vale de argila
fria e sombria com esgoto a céu aberto
758
e casas pequenas de gente vibrante
beira linha era uma linha sem trem
apenas de gente sem lugar no mundo
morando em terra invadida
50
ao domingo no bairro paulo XVI
era intenso feito trabalho de fábrica
reuniões sem fim
encontros eternos
à noite a missa terminava o dia
ao lado do povo do lugar
jovens velhos crianças
fase de novidade
o domingo era um dia desgastante
não pelo salmo pronunciado com fé
mas pelo corpo desejoso de descanso
para os pés cansados de manter a existência
51
eu vi o shopping del rey se fazer
concreto em concreto erguendo
estruturas no lote vago
eu me comovi com o vento forte
na janela da kombi durante dois anos
indo e vindo para a faculdade
52
era um padre engraçado
uns falavam do avc
outros falavam da timidez
cabelos brancos
voz rouca
759
mãos enrugadas
apetite voraz
ele sorria sem nada dizer
seu mundo era interior
se me entendia não sei
a recíproca é verdadeira
53
outro padre lia dicionário no corredor
com os olhos carregados de colírios
um para cada mal e eu o ajudava
a embaralhar as letras do papel
na lágrima salgada do medicamento
ele falava mais que as tábuas da lei
e sua palavra era a lei do mundo
nunca entendi como o dizer
na boca desse padre podia ser
tão infantil num corpo velho
54
o padre supervisor tomava conta da vida
de cada um em detalhes singelos
é que cada um falava do outro
e assim ele sabia de todos
quantas vezes me perguntou coisas
saídas da imaginação de outros
a palavra ali dentro era mentira
ou interpretação maldosa dos fatos
55
um padre velhinho usava aparelhos auditivos
e sua voz era tão gritada como alarme de perigo
fiquei sabendo depois de muitos anos
760
que a rodovia barulhenta lhe ceifara a vida
as vozes do mundo nem sempre são tão altas
para escutarmos com a devida precisão
às vezes as vozes do mundo se calam
para continuar nos ouvindo
56
o coração se desgrudou da rotina
eu libriano vivia em fantasia
a vida não podia ser apenas
planejamento
o coração se permitiu liberdade
quando me percebi em outros braços
a casa fechou suas portas temporais
para um novo ciclo na vida
57
ao me ver fora do seminário
voltei para dentro de mim
fui obrigado a sobreviver
com o próprio ar
ao me ver fora da redoma de vidro
senti o vento do tempo no relógio do templo
e lembrei das badaladas horas da juventude
no vai e vem das ladeiras
58
depois de três anos imerso no estrangeiro
eu estrangeiro de mim mesmo
fiz um longo percurso
para me achar
761
três longos anos em sensações de presídio
a alma não suporta algemas estranhas
feitas de fora para dentro
eu me libertei
59
arrumei as malas com lágrimas
nada melhor que a alma
presente para o tempo
ser forte
selei três anos em choro
para dizer para mim mesmo
eu cresci eu venci
sou forte
60
voltei para em 1994
e o aquário pequeno
trouxe um beta
azul azul azul
o retorno é sempre frágil
os laços da prisão anterior
eram maiores que eu ainda
saudade saudade saudade
61
a casa de antes não era a casa de antes
era apenas a casa do passado
não me achei ali
eu era outro
a casa não me aconchegava e o quintal
não tinha o mesmo gosto e tamanho
da infância inocente
eu voltara tolo
762
62
a vida é negar o passado
para abrir o presente
ou deixar-se contente
no tempo chato
eu voltara de corpo
a alma ainda perdida
procurava por si mesma
em meio ao tempo
63
olhar esse tempo agora
é aflição no peito
não há certeza
da necessidade
desse sofrimento
mas volto com coragem
sei apenas que o ontem
meu é para sempre dado
não posso mudar os ponteiros
mundo apenas
a duras penas
a poesia daquilo
(se é que havia poesia)
64
o verdadeiro amor não passa
nas tardes de sábado eu era
agitado pelo tempo
de dentro
763
o amor de sempre não cala
suas vozes gritam na alma
como fantasmas a enviarem
mensagens secretas
eu amo até hoje a saudade
do grande amor deixado
nos calendários do tempo
morto nas agendas
seu amor não sai da vida
às vezes mais forte
às vezes menos sorte
eu lhe vejo eternamente
65
a gráfica funcionava em casa
o trabalho entre os papéis
tão gasto
eu passava o tempo querendo voltar
para belo horizonte
tão longe
a cidade nunca foi tão sem graça
o tempo parecia perdido
tão morto
66
hoje sei do tempo na alma e no corpo
intenso feito chama e lenha
unidade
hoje eu sei do tempo na célula e na mente
incenso perfumando o ambiente
privacidade
764
67
não me lembro da alegria sobre o teto
nem da novela nem do filme
a poesia foi minha parceira
um ano de solidão
(quando se deve parar a vida para pensar?)
não me esqueço desse vazio de tonalidade
o olhar perdido numa cidade morta
porque eu morto sem vida
permaneceria até o retorno
(quando se deve pegar o ônibus de volta?)
68
a vida sem graça do interior
foi muito sem graça ao redor
sentia uma vontade de ir-me
mas o corpo era imóvel
o telefone me ligava ao de fora
e o de fora era uma fuga do dentro
amordaçando os minutos frios
da vida ali passada
69
as cachoeiras da serra do espinhaço
são frias e batem na pele em alerta
cada minuto para a natureza
é questão de vida ou morte
as águas dos rios dão pouco peixe
são poucas as chances de abundância
a natureza se pauta pela comodidade
do instinto de preservação
765
70
a rotina de 1994 foi um intervalo
entre chegar do que era delirante
e ir para o que seria interessante
nada mais a viver que o retorno
a fuga de si começa pela negação
do entorno geográfico
71
voltei para belo horizonte
para um convento e assim
o medo de permanecer
como igreja velha no serro
se foi
voltei para a cidade nova
para um convento e enfim
entendi o coração batendo
forte como vibração nova
que é
72
a filosofia voltou à pauta dos dias
e a faculdade retomada era um prenúncio
de novidade na mente e no coração
1995 foi um ano de revisão do passado
e depois de seis meses no convento
eu me retirei para um apartamento
no vigésimo quarto andar do prédio
em companhia do medo de altura
apesar de negar sempre a baixeza
a pior qualidade dos prédios
e também das pessoas
a meu redor
766
73
o último período da filosofia
foi um misto de casa aberta
aos amigos e coração renovado
para o amor
os últimos dias do curso
anunciavam mudança dos ventos
e algo novo crescia na alma
uma grama nova em orvalho
1995 passou ligeiro
e em meio às aulas
numa escola estadual
iniciava o magistério
1995 deixou marcas
para sempre na alma
conheci mais de mim
e de mim fiz vários
74
os amigos se reuniam no fim de tarde
e era tão bom conversar sobre a vida
lenta vida passada em contraponto
à cidade ligeira
as conversas eram sobre o fundo de nós
do nó na garganta e às vezes da falta de esperança
que a vida de cada um contém no seu íntimo
à beira dos caminhos conjuntos
75
eu tinha medo da janela
e da altura do chão
sempre o medo
767
rondando
eu temia pular do alto
e saber da morte
bem no meio
do vôo cego
por isso sempre me preveni
fechando as cortinas
para evitar que o desejo
do vento me atraísse
76
eu investi na leitura de sartre
a ele dediquei algumas horas
tentando entender a carência
do ser em busca de ser
o existencialismo era uma fuga
do corpo para o corpo apenas
a alma do meu ser se esvaia
no vazio da liberdade
77
eu não me encontrei na filosofia
antes ela era tão sistemática
e eu tão fragmentário
eu não me dei por inteiro com os sistemas
me dei em partes em poucas partes
eu sempre fui imaginário
78
a formatura da turma teve uma festa
tão própria do mundo profano
com samba no final
e cerveja
768
a formatura com família e tudo mais
com direito a discurso de paraninfo
e sempre uma saudade
de mim mesmo
79
o ano de 1995 acabou sem apartamento
o ano de 1995 acabou sem escola
não conseguia me manter em belo horizonte
como se a vida dissesse: volta para sua cidade
arrumei as malas mais uma vez
dessa vez para ficar inerte
no aprendizado renovador
de quase dez anos
80
o final de ano na minha cidade natal é confuso
chove sempre mas faz calor quando o sol abre
uma janela por entre as nuvens espessas
paradas sobre o pico do itambé
o final de ano me recebeu ainda na ilusão do retorno
não se daria tão cedo e sei das horas de projetos novos
para permanecer na cidade com um olhar mais crítico
mas a alma renovada pela novidade
81
o retorno de um novo professor
se deu sem aulas na escola
e nem mesmo a casa velha
pode abrir suas portas
769
a casa sempre em litígio
houvera sido perdida
para sempre
na justiça
o telhado de amianto
o quintal de pessegueiro
e de mangueira
e de chácara do barão
foi como o tempo embora
como a novidade de dentro
muda sempre o cenário
de fora
82
fui para um canto da praia
morar com minha irmã
numa casa digna
porém nunca minha
a minha cidade tem frio
nas espinhas dos morros
e os rios são veias de sangue
gelado dentro da geometria urbana
83
foi a primeira vez que morei em casa
de telhado colonial com telhas que brincam
de sino na época da primeira chuva
de outubro
as telhas sorriem para a chuva imitando
o toque de josé olimpio nos sinos
da igreja matriz que ficava de frente
para a casa quase minha
770
84
a praça de esportes sempre vazia
com espaço para correr e pular
mas sem pessoas para isso
um vazio sempre a ocupar
vontade de voltar o tempo
e fazer girar a bola da vida
85
é na ladeira
que me vejo
subindo e descendo
no tempo
em 1996 pouco
muito pouco lembro
talvez um ano a mais
juntado aos outros idos
é na ladeira
que me sei
vigiando o novo
do vento
86
a cidade sempre parada ou quando em movimento
eu fora dele: eu sempre por fora por gosto de estar fora
é que estar dentro dessa onda social custa muito e eu
sempre medi fins e meios
a cidade envolta em sua rotina se apresentava como uma história
a ser contada primeiro para mim mesmo (estar ali: por que?)
a história tem o poder de justificar a existência de cd um
em cada lugar do mundo
771
87
eu ia às missas no sábado à noite na igreja do Carmo
sentia sempre um preço por aquela igreja grande
cheia de espaços vazios por dentro
eu na missa sempre divagava olhando para os santos
estáticos em seus altares de chumbo com olhos irreais
e uma vida sempre heróica sempre me parecendo falsa
eu ia à missa para despistar o alma sedenta de sentido
e colocava a hóstia na boca para me alimentar por dentro
daquilo que a vida me negava por fora
88
devo ter passado por carnaval na praça joão pinheiro
sempre sem graça com corpos suados pulando e bebendo
o carnaval no serro nunca foi para mim
irreal demais para ser pleno
nunca o carnaval da adolescência esse nunca mais
a intensidade das descobertas do corpo nunca mais
eu sei que em tudo o tempo é outro e eu vários
depois de uma vida em calendários sucessivos
89
a aproximação da história serrana foi lenta
mas altamente enriquecedora um tesouro
desvendado em visitas à casa de maria eremita
a mulher mais livre da cidade
a história foi se dando comigo e as pesquisas
mostraram muito de mim e mais do entorno
é que o tempo desvendado e como mina aberta
flui em letras e textos e fotografias
772
90
peguei um gosto pelo curioso e o fausto
da cidade setecentista contraditório
em comparação com a pequenez da vida
dos dias atuais
a história com suas personagens e até os rios
ganhavam uma fisionomia diferente e a dignidade
passou a acompanhar casarões e famílias
becos e ruas direitas
91
por esse tempo ia até belo horizonte
para mudar de ares
tocar outros corpos
e amar a vida
na cidade miúda a vida era enfadonha
para o amor como sempre
o amor é sempre outro
no lugar mesmo
92
o tempo passado é vasto feito pasto na montanha
de lados feito o do esquecimento o não visto
é o mais perfeito posto que não exato
nem cheio nem inteiro mas presente
o tempo ido para lugares estranhos de hoje na mente
se foram tão levemente saídos de mim como quitanda
a mesma quitanda de pastora saída para lata do forno
onde a candeia queima sem parar há vários anos
773
93
decerto que tudo na minha cidade poderia ficar como estava
eu sei que a realidade é sempre uma composição no plural
mas nem por isso deixei de lado e isso é o adolescente em mim
a necessidade de afirmação da vida em meio ás montanhas
a cidade ainda continuava pronta e eu ainda a fazer nas horas
é que o relógio da santa rita nem sempre tocou dentro de mim
é que às vezes o conserto demorava e eu me desinteressava do
tempo
mas ainda creio no tempo como existindo somente quando
pensado
94
o rio lucas correu durante um ano inteiro sem eu notar
assim como as andorinhas se reproduziram e morreram sem me
dar conta
o tempo devastou os pastos e as paisagens e construiu casas
eu me habitei de mais passado e a vida foi se fazendo
um experiência sempre interessante
o tempo passa ainda entre as nuvens do inverno mas hoje diferente
não sou mais o que vive entre essas casas soturnas e tristes
sou aquele que saiu de si viu outro mundo e quando voltou
decompusera o olhar e olhar se fez outra forma de verdade
95
o amor quando chega muda o tempo
as árvores sopram lentamente para avisar
o tempo não para em qualquer momento
o amor quando vem é para deixar marcas
sonoras marcas que o silêncio sabe ouvir
em noites infinitas de discussão entre mente e razão
774
eu vi o amor tão próximo como o anunciar de uma nova era
eu vi o amor tão intenso como o provocar do nascimento da hera
eu sofri por saber desde o início do silêncio oculto das palavras
por trás de cada ato e os atos foram muitos numa peça de cinco
anos
96
a casa da banda ficava no beco do carmo
e a chuva soltava as pedras sempre
até que um prefeito resolveu
colar as pedras no cimento
a casa da banda sempre foi ali para mim
desde muito cedo eu queria entrar
nas fileiras da música mas não pude
quando ainda criança o tenente nonato
não gostou da ideia de eu aprender
a música por certo me achava franzino demais
levei muitos anos até que um dia
entre um programa cultural na FM
e uma descida para minha casa
eu me vi diante do quadro de partituras
solfejando notas e aprendendo música
numa tarde de redenção do passado
a cada nota aprendida eu me orgulhava
por fazer do sonho a palpável realidade
e das notas uma forma de cantar o sentimento
aprendi muito rapidamente o valor da mínimas
semínimas colcheias e semicolcheias fusas
e semifusas e o clarinete passou a guiar a curiosidade
775
o primeiro som ainda estéril saía devagar e medroso
e sem intenção de ser grandioso com outros pares
para fazer uma orquestração pelas ruas da cidade
na banda de música eu aprendi o verdadeiro sentido
de ser e estar como mais um tijolo na construção
sem solo apenas em uníssono
97
a história e a música estavam tão fortes no dia-a-dia
não pude separar partituras e palavras
a vida amalgamou a novidade
entre linhas e linhas e linhas
entre uma pesquisa e outra
entre um ensaio e outro
a vida passou célere
como dobrado
98
o primeiro dia em que toquei meu instrumento musical
foi na festa do rosário de sabinópolis e devo ter errado
metade das notas do dobrado já que a execução era sim
prova de fogo no meio do calçamento esburacado
a primeira vez... um desafio
como sempre a vida permite
o aprendizado mediante
um preço alto
99
a música passa pela alma e deixa notas
o etéreo se comunica aos sentidos interiores
a alma sabe da música mais que o ouvido
a porta de entrada precária do sexto sentido
776
a música coça a sensibilidade de dentro
desperta os sentidos para a vida
faz da alma presença no corpo
objeto do mundo
100
1998 é o ano que nunca acabou
e ainda vivo pulso dentro da alma
o tempo quando intenso rebate nas paredes
sempre coloridas da memória
eu trabalhava na chácara do barão
de túneis para água e lendas
para o turista desavisado
as jabuticabeiras com esquilos
as goiabeiras com bem-te-vis
para o menino agora crescido
101
aprender é lição da vida que passa
como o rio descendo para o mar
eu nunca soube onde daria o rio lucas
se chegaria ao mar
aprender é ambição de vida frágil
rolando ladeira abaixo no inverno
ouvir e obedecer pode não ser bom
mas faz bem para a maturidade
102
a seresta na praça era uma espetáculo lindo
as palmeiras aplaudiam com suas folhas
e mesmo a lua saia tímida rapidamente
por detrás da nuvem para apreciar as notas
777
a seresta com vozes femininas
e vozes de brilho masculino
com clarineta de maestro
com violão de zulu
103
a banda de música na chácara do barão
reunia crianças no pátio gramado
e a alma ficava cheia
de vida
no final o lanche para os músicos
nas pedras do pátio interno em flor
o tempo vigiava os dobrados
eternizando-os na memória
104
os primeiros condutores para os turistas
em horas e horas de apostilas históricas
e palavras sobre o tempo passado
na antiga vila do príncipe
os alunos do ginásio ingressados no curso
sabiam que o tempo passa e que um dia
talvez hoje, não sei! almas nobres
visitariam a nobreza serrana
105
abrir a cidade aos de fora
deixar pronto o café na sala
permanecer atento ao movimento
de quem entra e sai no perímetro
o turismo começou como um ato generoso
de olhar os de fora com olhar de bondade
778
106
as reuniões na chácara do barão eram eternas
num solitário embrenhar-se entre os vivos
para descobrir se valeria a pena
o evento
as reuniões de palavras hoje perdidas
o tempo apaga a voz nas paredes
e deixa apenas o sentido geral
da conversação
107
viajar para belo horizonte era uma aventura
aprender a fazer projetos
aprender a executar projetos
descobrir o caminho das pedras do recursos
acreditar talvez tenha sido o aprendizado
a fé em dias melhores em vitória no final
se o final se dá apenas no decesso das horas
mortas no relógio da santa rita – aprendi muito
108
ainda ficou no paladar da língua o vinho
lá de são gonçalo tão rústico
ou o queijo tão nobre
das fazendas
ainda permanece a noite de início da secretaria
aquela mesma de turismo e cultura
com presenças tão fortes
na memória
779
ainda escuto a clarineta do maestro da banda
na noite sem fim de uma inauguração
os dias de minha vida nunca mais
seriam os mesmo depois dali
109
as fontes da saudade escorrem ainda na noite
a lembrança é desapropriação do tempo
no tempo que fica ainda latente
nas estruturas do ser
não sei como o tempo vai morrer
mas morro quando desço em mim
aos porões da memória apagável
escrita em carvão na alma
110
quando 1999 começou eu era um secretário
de um prefeito distante como tudo na política
a distancia entre o sonho o delírio e a realidade
quando em 1999 resolvi ser mais feliz
a vida foi anunciando suas obrigações
aprendizado constante cortante
necessário
111
comecei o ano nos braços imaginários do grande amor
aquele abandonado na quase maturidade dos calendários
quando ainda havia uma ilusão diante da vida em aberto
como livro de folhas em branco a preencher
comecei imaginando que a hora do amor se fizera real
mas a realidade para mim nunca foi um cenário fixo
antes mutável pelas forças exteriores não sujeitas
ao impulso interno do meu querer
780
112
nas viagens a belo horizonte o grande amor
diante dos olhos em promessa
sempre em promessa
nunca ato
nas conversas parecia um entender-se
na distancia eu me via sozinho
como um macho na natureza
na época do cio das fêmeas
113
fui apagando do muro da vida
a ilusão (o tempo passa e ensina!)
deixei de lado o grande amor
para virar apenas lembrança
mas como foi doloroso
escrever a última carta
aquela pedindo nunca mais
nunca mais quero ouvir seu som
aquela dizendo de mim
a dor toda feito eu mesmo
aquela que gostaria de esquecer
mas sei: foi a mais importante
a carta mais madura da vida
saiu na madrugada em horas vagas
a memória apaga o calendário
mas guardei a cópia no arquivo
114
para retirar da vida o grande amor
surgiu um câncer de pele
como resultado de um longo processo
de dor sem remédio
781
para expurgar a dor da vida a medicina
criou o bisturi para cortar na carne
o passado instalado no peito
feito coisa ruim
115
antes de ir para a cirurgia
me dei de presente um cão
com um mês de nascido
para cuidar dele
cuidei de mim
para saber dele
soube de mim
116
voltei para casa sem o câncer
sem o grande amor
mas comigo
e um cão
a vida precisou se refazer
ser escrita novamente
com novo capítulo
imediatamente
117
a chuva de outubro no serro limpa
o telhado e faz as telhas de argila
cantarem sem parar em festa
assim como os pássaros
a chuva lava a cidade por inteiro
e devolve a promessa de vida
à natureza sempre necessitada
de conservação
782
118
o grande amor quando se vai para nunca mais
não deixa nada em seu lugar a não ser
a certeza de que alguma coisa no passar
lento ou rápido das horas deu errado
o relógio do grande amor é descontrolado
e não importa o tempo da folhinha velha
o sentimento não se apaga jamais de dentro
como uma imortalidade de amor
lamento o grande amor
mas o grande amor
é apenas passado
vivo
119
o primeiro encontro de bandas de música
deixou o coração na boca do estômago
durante dias e dias e dias
fazer a música tocar na praça joão pinheiro
para uma multidão de ouvintes e músicos
de várias partes do estado
fazer ecoar no tempo os dobrados e hinos
especialmente o hino da cidade
fez o coração vibrar forte
120
maria eremita de souza lançou seu primeiro livro
para não fugir à tradição dos historiadores serranos
um livro durante a vida e nada mais
783
ela ensinava calada o que devíamos fazer falando
e o silêncio sábio de sua cada na rua do corte
era motivo de alegria enquanto ela vivia
121
a feira livre começou bem de frente do ginásio
num sábado de manhã de setembro com barracas
espalhadas no largo do pelourinho e eu descobri
como o serrano tem medo da rua e vai a ela
apenas por necessidade absoluta
a rua na minha cidade é lugar de exposição
a casa é lugar de contenção de si mesmo
mostrar-se em público com sua fraqueza
é sempre muito para o povo tímido
do alto da montanha
122
maria eremita lançou seu livro no serro
no salão do colégio lá no alto da santa rita
e cada livro serviu para ajudar o hospital
sempre necessitado de recursos
a feijoada servida aos convidados
presença da banda de música
e eu sempre achando o sorriso
de maria eremita um enigma
123
o último ano na prefeitura foi marcado
por uma certeza de que o tempo deixa
marcas profundas na pele do corpo
e na epiderme do espírito
784
eu me achava até então essencial
mas o tempo queria dizer outra coisa
e foi muito bom ouvi-lo um dia gritar
bem alto para eu ouvir: tudo passa
124
a casa da música foi inaugurada em janeiro de 2000
no dia 29 de janeiro por ocasião do aniversário
da minha cidade: 286 anos de vila do príncipe
a casa da música fica ainda hoje no botavira
e os dobrados ainda se ouvem
no ensaio da banda
inaugurar uma casa é atividade digna
e fecha um grande ciclo
em obra póstuma
125
a vida passava pela música e ensaiava o saxofone
à noite no quarto para afinar os dobrados da banda
sempre em agenda lotada durante o ano por causa
dos santos e suas festas que nunca cessam
pedra redonda
mato grosso
alvorada de minas
pedro lessa
chácara do barão
igreja do carmo
igreja matriz
casa dos ottoni
a banda nunca parava e eu sempre junto
para tocar e ser tocado pela música ecoando
no tempo das montanhas elevadas a música
sempre altera a mente de quem ouve
785
126
o brasil completou 500 anos de conquista
e ajudei a plantar árvore de pau-brasil
na entrada da cidade
e expus as primeiras fotografias
em preto e branco como retratos
da negritude serrana
o rosto da minha cidade
é misturado não como
o morro que é apartado
127
mudei de casa duas vezes em 2000
até chegar à praia numa casa apertada
onde a poeira entrava por todos os lados
e meu cachorro ficava sem graça
enchia garrafas de licor
para vender na cidade
para garantir sustento
no ano seguinte
128
as mudanças de casa foram muito engraçadas
e o cachorro filósofo era sempre o último a chegar
noticiando sua aprovação ou não do lugar novo
e ele sempre tinha razão no seu focinho premeditador
a loja primavera levava o caminhão e os homens
desciam e subiam os móveis e as caixas de livros
livros sempre acompanhando meus passos
como quem sabe que a letra é uma boa companhia
786
129
o ano de 2001 iniciou uma nova era
na vida que passa lenta nas montanhas
e o tempo encarregou-se de ensinar
que ninguém é insubstituível
130
associei-me à minha irmã
para reinaugurar a gráfica
da família e fazer obras
de reestruturação do espaço
e descobri no meio da obra
que eu me reconstruía e fazia
de cada tijolo erguido um sentido
novo e farto para permanecer de pé
131
o tempo arrastou para dentro de mim
o medo de não ser feliz
a idealização da felicidade
é uma loucura que trago
o tempo não retira nem dá nada
é o ser que se faz carência de ser
e nada mais diante da vida
esse dado biológico
132
o artesanato foi uma lição forte
negociar com quem tem arte
e sempre uma pitada de má vontade
para entender o que de fato é arte
787
nesses tempos me lembrei da estética
ah, se a estética fosse ensinada como se deve
desde o berço os artesãos seriam mais justos
em seus pesos e medidas
133
a loja na frente
a gráfica atrás
o memorial da imprensa
junto com todos nós
uma lugar misturado
de turista visitando
e funcionários operando
as máquinas de impressão
134
as escolas visitavam o memorial
depois iam para a casa da música
ouvir dobrados e músicas tantas
dos meninos do maestro
135
a viagem até minas novas rendeu
boas conversas e muito fantasia
sobre um vale do jequitinhonha
que do serro é tão pequeno
nunca soube nunca me vi do vale
sempre achei o rio jequitinhonha
tão pequeno nascendo na serra
feito criança desnutrida ainda
eu sempre me achei na minha cidade
a mesma da revolução liberal de 1842
e de tantos serranos incríveis não pela história
788
sobre eles contada mas do que deles restou
a coragem dos idealistas está no rosto
de quem sobe e desce as ladeiras
viver na montanha em constante inverno
é tarefa árdua para pessoas evoluídas
136
ia e vinha com a banda de música
por onde pudesse ir e vir
numa alegria forte
levar a música em conjunto para longe
era uma forma de exportar a arte toda
da minha cidade além de seus limites
137
voltei á chácara do barão dessa vez para o supletivo
lecionar para os meninos e meninas da zona rural
de lugares tão distantes que passei a considerar
minha cidade o centro do mundo
138
o jornal livre pensador depois de o serro hoje
foi uma construção de proporções absurdas
livre pensar numa cidade onde penar livre
é se acostumar com a vida dura de cada dia
o jornal livre pensador passou por fases
da mais absorta tentativa de revolução
até a mais espiritualizada concepção
de notícia e artigo
139
senti das coisas vividas um novo mundo
pulsando fora de mim e me chamando
789
senti num dia de 2004 um profundo mal estar
quase uma náusea sartriana entre as montanhas
não pude mais me prender entre as grades
da civilização serrana e pedi as chaves
soltei as asas para um vôo novo em outro lugar
foi quando a janela da alma mostrou a novidade
140
o grande amor brotou num julho de 2004
bem no meio da cidade grande
entre carros e barulho
prédios e saudades
foram dias e dias pensando
sentido a volta para belo horizonte
e criando motivos para ficar por lá
eternamente ao lado do grande amor
141
viajei incessantemente para belo horizonte
até criar a coragem de pedir a ana célia
que abrigasse em sua casa um serrano
por um tempo de um ano
tempo suficiente para ajustar a vida nova
e fazer novas as coisas velhas
e criar novas asas para voar
mais alto que antes
142
a poesia ressurgiu na vida
em frases emocionadas
em versos apaixonados
era o amor jovial
790
143
aos poucos fui esvaziando a casa velha
e me desfazendo de uma história
passada na casa do botavira
aos poucos fui tirando a roupa antiga
para colocar uma nova persona fora
essa chamada destino feito
144
vendi os móveis
doei livros e fotografias
os jornais para o museu
eu me fui deixando para trás
sem medo e com esperança
da novidade gratificante
em cada caixa ida para belo horizonte
a certeza de que o a vida jamais seria
o mesmo vento no relógio do tempo
145
as paredes da velha casa
o chalé da praça restaurado
os sons da banda de música
ficaram onde ainda estão
na memória afetiva
imutável e eterna
do tempo
em tica tac na alma
2005 é um ano de reinício
para sempre lembrado assim
os ponteiros do relógio da emoção
marcando fundo na existência
791
RESÍDUO ORGÂNICO / 2010
CUIDADO: RESÍDUO ORGÂNICO
o que sobrou de mim das horas
o que ficou em mim do tempo
expulsei em versos como a brisa
joga fora o mau tempo
o que restou de mim agora
o que quebrou em mim do vento
excomunguei em versos como a fé
é certeza do bilhete lido
tome cuidado ao ler os versos
são o que sobrou da vida em regresso
ou do tempo fazendo uma novela clara
na existência frágil em gesso
PISADA
eu piso de leve
a sola do sapato
ele leve
que leve-me
eu piso em breve
o chão do mundo
ele deve
deter-me
eu piso sempre
meu eu interno
ele cabe
o eu que sabe
792
ARTIMANHA
a árvore na cidade
nasce sempre como eu
de manhã
os bichos com idade
vivem sempre como eu
de manha
eu sei do tempo agora
quando tento embora
ser artimanha
SOMBRA
hoje a manhã não trouxe
a sombra do corpo no asfalto
não me vi no espelho opaco
do chão da cidade
hoje bem cedo não se revelou
o outro lado, o escuro, da alma
na face clara do dia nascido
da cidade decorada
hoje eu não me vi no chão
outro, como outro feito, dado
eu me dei no silêncio do dia
sem sol logo ao nascer da vida
(o dia surgiu ainda escuro
escuso-me de revelar-me)
793
SOM DE OSSO
os ossos do corpo se rejuntam
ainda cato os sentidos de ontem
e o corpo emite sons impuros
de reconexão entre os pólos
não me lembro do comando
apenas sei do osso frio e sempre
unido um ao outro para erguer
a estrutura orgânica no mundo
sei apenas da máquina ligada
o dia é sempre uma eterna
abertura para os silêncios
prestes a se calarem
VEIAS DA CIDADE
por debaixo da terra
uma cidade submersa
versa sobre o nada
por dentro da terra
a cidade perversa
cessa o seu ruído
por entre as casas
a veia submersa
expõe o sepultado
a cidade de dentro
flui nas casas afora
seu líquido urbano
canalização
794
RELAÇÃO
o corpo suado
trabalho de dois
de lados
a alma distante
sensação a dois
estados
o corpo aperta
a alma se cerca
de alerta
calor
suor
êxtase
VEJO
entre nuvens
entre os dedos
entre os dentes
eu vejo o vazio
no meio da casa
no meio da frase
no meio da vida
eu vejo o vazio
dentro de cada
dentro do todo
dentro do tudo
eu vejo o vazio
795
INERTE
antes da chuva
silenciosa
no telhado
antes do sonho
cadencioso
na mente
antes da mentira
absurda
na frase
antes da verdade
desengraçada
na vida
eu me preparo
no acaso
inerte
no tempo
AINDA VÃO
da vida sei o que falta
da falta se faz a vida
inteira ainda não
mesmo sim
da vida sei o que tarda
das altas horas do dia
inteiro ainda vão
mesmo tão
796
CHEGADA
já, já a pista de pouso da várzea
do rio do peixe avistada do morro do paiol
anunciará o perímetro urbano
já, já a última curva abrirá meus olhos
para uma cidade em meio à natureza
humana e animal da urbanidade
vejo dentro de mim o espelho
mirando fora a cidade
viva de dentro
GEMIDO NOTURNO
os gemidos da noite se não há filhos
são ouvidos pelos bois e vacas
pastando sob a árvore
os gemidos sexuais se há filhos
são ouvidos pelos filhos e animais
corujas e marsupiais da noite
em tudo gemido de prazer e dor
a natureza se faz confidente
a noite se faz depositária
SEM SABER
eu não sei de mim quando vagando entre casas
velhas casas do tempo ido de outras vidas
dadas na cidade onde minha alma renasceu
para aprender novamente do tempo
eu não sei de mim quando olhando para a montanha azul
percebo eu mesmo crescendo entre os matos enormes
das horas da vastidão que o sentido interno representa
como se as nuvens fossem as mesmas de antes
eu não sei o que me dizem as mesmas pessoas encontradas
depois de muitos anos distante de suas rotinas só sei
que há um mistério de tempo se fazendo o mesmo
para todos ao mesmo tempo e separando vidas
797
CADEIRA DE BALANÇO
vovó quando velhinha
na cadeira de balanço
ficava calma na vida
por causa do vai e vem
se vai se vem
virá talvez
ou não
pode ser
no balanço da cadeira
a vida ficava mais leve
como amortecida
no ritmo lento
FOLHAGEM DE ESTRADA
a folhagem coberta de poeira espessa
guarda dentro de si a natureza
sempre selvagem
e por ela vive
a folhagem da estrada coberta de poeira
preserva dentro de si o verde
para a primavera e a chuva
purificadoras
COMO O JEQUITINHONHA
assim como o rio jequitinhonha
nasce pequeno e frio e tímido
no alto da minha cidade
assim como o rio jequitinhonha
corre sem graça feito menino miúdo
na ladeira abaixo até o mar
eu me sinto agora
percorrendo a vida
798
CRENÇA
se fechar os olhos
e nada se fechar
terei vivido
sem esperar
mas se fechar as vistas
e outra maior sinalizar
terei tido
muita fé
nisso acredito
a vida não cessa
no fechar dos olhos
POEIRA DO TEMPO
a poeira rola leve sobre as coisas
no tempo dela no peso dela
suavemente
a faxineira tola pega os panos
embebe de lustra móvel sela
impiedosamente
a poeira se apaga das coisas
o tempo se leva embora
limpidamente
CORPO OCO
o corpo de dentro é outro
vestido porque é pouco
se o médico abre e vê
o vestido despe o corpo
outro interior feito de osso
799
ou de osso cheio de nervos
ou de nervos com artérias
ou de artérias com sangue
o corpo interior feito de carne
apodrece e passa e vai embora
rejuntar-se aos elementos orgânicos
da terra geradora da tarde
o corpo de dentro é outro
despido porque é oco
o corpo é oco
o corpo oco
oco corpo
morto
PRISÃO
nada me prende
nem o muro da casa
nem a grade da alma
nem a mente
nada me sente
sem o pulso do corpo
nem a face ao vento
nem a morte
eu me soltei da realidade
plenamente fora de mim
sem passado sem futuro
e essencialmente sem presente
estou distante de mim e nada me prende
estou partido de mim e nada me sente
(o relógio continua seu delírio
eu não eu não eu não)
800
PREFERÊNCIA
o dia é fato consumado
o amanhecer é dia por fazer
prefiro a manhã
sempre
o dia poluído termina cansado
o amanhecer é pista livre
prefiro a manhã
leve
VIDRO
o vidro segura o pensamento
dentro de leve passa longe
da janela do coletivo azul
o vidro assegura o pensamento
dentro da mente e do corpo
longe a alma se projeta
o vidro impede o pensamento
de fugir pelo mundo e fazer
do momento outra coisa
que apenas momento
O FRASCO
vou guardar em frascos
como aqueles de perfumes
raros frascos de eternidade
frágeis frascos de passado
eu bem poderia conseguir
guardar em frascos o cheiro
das boas lembranças
801
toda lembrança é acompanhada
sempre acompanhada de cheiro
imortalizado pela visão e audição
vou guardar em frascos
para abrir quando estiver triste
vou consertar minha alma
com o perfume bom do tempo
SUA BENÇÃO
o sorriso é uma imagem
límpida e forte
veio pelo telefone
na notícia de sua morte
não acredito na morte
nem na imobilidade depois
acredito na continuação
do trabalho de existir
o sorriso anunciou
seu estado de libertação
mas a tristeza é semente
adubada do tempo na alma
seu corpo trêmulo se foi
volta, então, à veste espiritual
e manda do espaço sua alegria
da vitória sobre o tempo passado
falecimento de Nadir de Souza, meu padrinho,
no Serro, dia 25 de agosto de 2009
802
BAÚ NOTURNO
a noite me protege não posso sair
a noite me veste não posso ficar nu
a noite, sempre a noite...
me devolve a mim
entre o barulho do mundo lá fora
e barulhos intensos do pensamento
a noite me devolve a sonoridade
da alma batendo como se fosse coração
a noite me dá o significado da vida
tenho procurado por ele entre os dias
mas o sol ilumina demais preciso do obscuro
para abrir o baú da alma com sinceridade
entre o mundo de todos lá fora
e o som da alma aqui dentro
a noite me devolve frágil
como sempre fui e serei
a noite, sempre a noite...
DE NOVO CORPO E ALMA
o corpo tem sombra
a alma tem cores
o corpo tem contra
a alma tem sonho
a alma sou eu num todo só meu
o corpo é história de uma parte só teu
a alma é verdade do que sou eu
o corpo é memória do pouco que fui teu
803
MORTE ORGÂNICA
meu corpo é esse pedaço de tempo
partido entre tantos outros tempos de outros
de outras de tantos que já nem sei se me emendo
ou se devo me emendar para saber quem sou
meu corpo passou de tempos em tempos
por outros tempos que para mim foram outros
a vida é uma colcha de retalhos tecida de dia
de noite de madrugada e de sonhos inúteis
meu corpo é apenas esse isolado conjunto de órgãos
funcionam sem eu ordenar e se ordeno não obedece
a morte é o descontrole absoluto do de dentro
mas operado pelo de fora: o mundo me devolve a mim
a alma sobra de todo o tempo de corpo
e de nome imposto ao corpo encarnado
quando quando quando será meu deus
o momento de ser apenas eu dentro de mim
partir para mim mesmo
sem corpo apenas alma
sem tempo apenas calma
partir em mim mesmo
CABELO
o cabelo caiu e vai com ele o tempo
o tempo de vida passado sob o sol e a lua
o cabelo nasce cada dia mais fraco e pouco
o pouco de vida ainda resta sem eu saber
o cabelo muda de cor e fica mais leve
o leve da vida é esperar pelo absurdo
no dia seguinte haverá o cabelo?
804
PELE
o reflexo da pele no olho
sob o fundo azul é belo
e sob a lua a pele brilha
espiritualmente por fora
o creme revitaliza a pele
a doença empalidece a cor
o bronzeador queima melanina
a escuridão revela o toque
a pele pede amor
em poros de cor
O CORPO MUDA
eu voltarei para mim
quando meu corpo enfim for
apenas um passado inerte
sem futuro à frente
eu voltarei para mim
quando a alma for apenas eu
e o futuro estiver mais claro
que o tempo de um corpo fraco
eu voltarei para mim
depois do espelho partido
após a cama da manhã outra
há um paraíso além do tempo
eu voltarei para sempre
várias e várias e várias vezes
para ser tempo e depois sem tempo
para seu eu e ao mesmo tempo muitos
805
UNHA
a unha cresce dia a dia
sábado ou outro dia
eu pego o cortador
e aparo o tempo
a unha desce para o chão
some no sábado de cuidados
o cortador volta para a estante
eu volto com a mão refeita
a unha foge do tempo
eu aparo sua fuga
e jogo a memória
no lixo
PELO
o pelo sai da pele
e preso no solo
do corpo vivo
floresce arrepio
o pelo cai se morre
mas outro surge
dos poros abertos
pela vida
o pelo vai se expor
o mundo interior
é pouco diante
do vento lá fora
806
DIGITAL I
a digital na identidade
é minha mesmo mas
ainda duvido se eu
sou apenas sensação
a digital é pura vaidade
registro de um corpo
provisório e frágil
sou apenas recordação
a digital não muda
a vida toda é a mesma
mas ela me nega sou
uma mistura de identidades
CEDO DEMAIS
quando eu souber do tempo
eu lhe contarei, espere!
por enquanto o segredo
é apenas eu com medo
medo do tempo
cedo no tempo
CORPO DENSO
me sinto lindo se paro e penso
mas a lembrança é piso oco
do tempo já desfeito e pouco
me sinto indo se falo e ajo
mas a memória é teto baixo
do tempo apertando o frágil
807
sinto eu mesmo
se me penso
mas sou outro
se me adenso
OLHOS FECHADOS
fecho os olhos no quarto escuro
a noite me fecha em sua história
o dia se vier vai ser diverso demais
a note e o escuro me roubam de mim
os olhos fechados me sepultam
o pesadelo é fuga para dentro
mais e mais dentro do interior
onde o escuro vira pensamento
EU AINDA AMO
não sei onde deixei esse rastro de mim
no vento passando no peito ardendo
em cada canto de seu corpo eu me fui
para um lugar não mais meu nunca seu,
eu sei
eu sei... o amor não é o vento na árvore pela manhã
nem apenas essa carta escrita no espanto da dor
eu sei... o amor não é apenas um tempo ido
é desejo de tempo eterno mas seu corpo se foi,
se foi
se foi para tão longe que as lágrimas tecidas
uma atrás da outra em anos de saudade não podem
jamais poderão dizer do amor perdido na noite
tão distante que o calendário apagou,
para sempre
808
para sempre eu sei nunca mais teremos o tempo fresco
da descoberta do toque do beijo do roçar da mãos
como a dor de não tocar seu corpo me lança para fora
do tempo de todos os tempos que hoje vivo,
tudo passa
mas a saudade de sua voz no meu ouvido acelerando
todas as moléculas do meu sentimento ainda me perco
na suave ternura de sua voz distante longe demais
para correr para junto de seu abraço,
quanta história
quanta história por detrás da saudade e somente eu
somente eu posso contar sobre quem foi seu corpo
o todo seu diante dos meus olhos desatinados de paixão
sei que devo voltar ao choque cotidiano dos corpos,
vou
eu vou para junto do dia para me perder de novo
sempre um renovar de ausência sem fim e sua falta
mutila o futuro roubando de dentro o que se vai fora
meu sorriso se emudece a cada dia quando o sol,
o sol
me permite dizer entre o trânsito caótico da cidade
mais um crepúsculo distante de seus olhos pequenos
o tempo vegeta estéril nos calendários idos, perdidos
eu me perdi de mim e não sei o caminho de volta,
ora
ora
oração
coração
eu me deixo no corpo
eu me fecho no pouco
da distante emoção
809
PELE OUTRA
a pele sai do corpo
não preciso dela
quando amo
outra coisa envolve
interior se revela
quando amo
a pele cai do corpo
não me acho nela
quando amo
outra chuva umedece
flor na janela
me visto e amo
SUOR
o suor é resultado
de água no corpo
de lado a lado
atravessando
a água me conheceu
mais que eu mesmo
por dentro de mim
devassando
agora vai embora
para o mundo e pinga
no chão do tempo
para refazer o ciclo
em outro
810
HERA SOBRE A ERA
a hera cobriu o muro
onde o revolucionário
anônimo e idealista
saudava a revolução
a hera matou a mensagem
de um novo governo
e quem sabe talvez
de uma nova era
a hera cobriu a tinta
como o tempo descobre
o bem e o mal
das eras
DENTRO E FORA
continuo crescendo
por fora a unha
e crescendo muito
por fora o cabelo
continuo perdendo
por fora a juventude
e perdendo junto
por fora o tempo
eu cresço ainda
perco
por fora
acumulo por dentro
811
REINO
se fosse vegetal
teria ainda seiva
pelas veias feito
sangue animal
se fosse animal
teria ainda mente
por dentro feito
tempo passional
se fosse eu mesmo
o tempo todo apenas
teria a vaga razão
do que se chama inteireza
FIM DO CORPO
o mundo é mesmo estranho
aqui se nasce em corpo
mas na hora da morte
pouco sobra do todo
o mundo do nós é osso
e acaba numa cova
de sete palmos abertas
em frio fosso
POEIRA
o corpo diferentemente dos móveis
da minha casa e do meu quarto
não junta poeira em algum canto
812
o corpo espontaneamente se lava
na água do suor escorrendo
meu corpo não junta poeira
sou mais que um objeto
sou um corpo sabendo-se corpo
e nenhuma poeira sobra
ÀS VEZES CORPO
às vezes me acho no meu corpo
quase sempre estou vagando
em estados físicos
misturados com estados
puramente lindos de sentimentos
eu sou apenas isso
um corpo cansado
um sentimento
passado
às vezes eu me toco no meu corpo
quase sempre estou longe da pele
em estados líricos
amalgamados com estados
meramente fixos de fingimentos
eu estou apenas nisso
meu corpo apagado
um revestimento
borrado
813
PURO
o pé assenta o corpo no chão
inteiro sou eu de pé
pronto para ir
ou voltar
o pé me leva pelo mundo afora
inteiro sou o que se espera
um corpo falante
alma que está
o pé me eleva
a mente vai junto
me misturo na realidade
puro puro puro
O TEMPO CAI
o cabelo voou no vento
a minha história se espalha
de um lado ao outro
de um longo tempo
a respiração ofegou
outro dia quase parou
de um jeito ou de outro
eu sou o que foi é e passou
A MENTE MENTE?
na mente encontro conteúdo
mais que no mundo ou é apenas
o mundo interior que é o mundo
de fora e exterior?
814
na mente brilham o sol e a lua
e as cores intensas deixam
marcas indeléveis na memória
do tempo interior
na mente eu sei que processos
breves e lentos belos tantos
acontecem desde meu nascimento
quando a luz se fez nos olhos de dentro
a mente é uma lente de aumento
do estar-no-mundo pensando o mundo
a mente está no cérebro?
o cérebro é pequeno para o meu eu
o cérebro é do tamanho de um grão
eu sei que para além do orgânico
algo intenso pulsa fazendo meu ser
ser mais que agora meu corpo no chão
a mente não é apenas cérebro
mas será a mente apenas mistério
eu amo o mistério e por causa dele
me interrogo por dentro e por fora
SONHO
o sonho acordou meu corpo
não pude mais descansar
depois de viver a realidade
paranormal
o sonho delirou meu mundo
não posso ficar parado na cama
depois de ver a realidade
anormal
815
o sonho me cutucou a curiosidade
não quero menos do desejo real
depois de estar na realidade
desigual
o sonho me roubou a paz
não vou dormir
nunca mais
LÍQUIDO
líquido nos olhos
permite o movimento
pra lá e pra cá
eu vejo
líquido entre ossos
consolida o movimento
estou aqui e lá
eu ando
líquido nas mãos
acorda a manhã no rosto
dormia e não já
eu vivo
ARREPIO
o arrepio orgânico
dos pés à cabeça
foi por causa
do medo
o arrepio semântico
da letra ao sei que é
foi por toda
a linguagem
816
FIXAMENTE
não chove dentro só fora
quando a mente chove
no mundo chove
é tão simples
não move está tudo parado
quando a mente move
o mundo roda
é tão exato
quem nos engana
a mente
ou o mundo
em volta?
DIA
o dia raiou
o olho sabe
de dentro abre
à vida
o dia brotou
o olho pisca
de dentro brilha
ao dia
ABRAÇO
o abraço só tem sentido
se há pouco espaço
entre os corpos
atados
817
quando distantes o abraço
é saudade de contato
entre os poros
arrepiados
o abraço significa
muito mais dentro
que o espaço fora
ligação de almas
DEDO
entre os dedos passa o ar
se abertos para o vento
entre os dedos passa água
se dentro do mar me agito
entre os dedos há moléculas
soltas orbitando entre o nada
os dedos são abertos sempre
mesmo juntos em prece
os dedos são abertos entre si
para passar o vento
ENTRE AS PERNAS
absurdo a bola passando
entre as pernas do jogador
de futebol
como pode uma bola tão grande
passar entre pernas tão fechadas
de modo tão descomposto?
818
as pernas abertas grandes ou pequenas
deixam passar a bola entre si - mas como?
uma bola gigante entre pernas miúdas
o espaço é a mente
NUDEZ
a nudez do corpo
é natureza no mundo
exposta em total
sensibilidade
a nudez dos bichos
é sempre real
eles não se vestem
naturalidade
VOZ
a voz sai de dentro do corpo
através da boca e ganha o espaço
o pensamento é interior
a palavra é feita para ecoar
a mudança de lugar
é palavra exterior
a permanência dentro
é pensamento
para fora o eco
para dentro o seco
819
VIDA ORGÂNICA
a vida orgânica
é semântica
nada mais
nada mais
a vida orgânica
é quântica
move tudo
move tudo
a vida orgânica
é inexata
acaba rápido
acaba rápido
a vida orgânica
é chata
prende gente
prende gente
TERRA
é
é ar
é arte
EARTH
FUNDO
o mundo é fundo
muito profundo
subterrâneo
subcutâneo
sublingual
submundo
820
SUPEREGO
dentro de mim mora outro
de casa edificada no topo
me rouba a atenção
pede troco
dentro de mim tem um oco
espaço para crescimento
por dentro se cresce
mesmo pouco
dentro de mim há uma reserva
oxigênio para fôlego
por dentro se afunda
no todo
dentro de mim o tolo há outro
com sua antena ligada
me inspeciona
com dolo
IDIOMA
iu
ui
you
we
we
ui
you
iu
we
you
iu
ui
aujourd’hui
821
VOAÇÃO
pego de leve
levo e pego
pego leve
leve pego
a pena no ar
sem peso
sem corpo
ainda voa
o corpo
sem pena
com peso
ainda voa?
MOTOR
o motor no corpo
o pé
a mão
o conjunto
o corpo gera
aceleração
rotação
ação
o corpo é motor
ventilador
resfriador
temperatura
o corpo é motor
corpomotor
cortor
822
ASA DA LETRA
palavra boca afora
e por dentro ficou
o quê?
palavra perdida
e o que me deixou
não conta?
palavra jogada fora
e o que me marcou
é risco?
palavra
são apenas
letras
voando
voando
voando
voando
A FALA DA LETRA
a letra persegue seu olho
seu olho persegue a letra
bailam na folha em branco
as letras em preto escritas
o cérebro dança a música
da leitura de letras em papel
em papel feitas letras surdas
em cérebro fazendo barulho
a letra no papel é muda
823
ela lhe muda a curva
do olhar no fundo branco
da folha preenchida
a letra persegue seu olho
seu olho persegue a letra
minúsculas curvas são letras
maiúsculas letras são início
a letra persegue o decodificador
você decodifica e a letra insiste
em dar ao papel um som na mente
o vazio da palavra é branco
a letra persegue
a letra sabe
ser
som
a letra escreve
a letra cabe
na voz
do papel
TEMPO FÍSICO
o estômago ingere
o alimento ferve
desaparece
depois sai
o sangue oxigena
o glóbulo branco
aquece
depois vai
824
o corpo funciona
vive um tempo
curto ou longo
depois cai
PELE
o outro é sensação por fora
arrepio na pele
o outro é pulsação da hora
frio de neve
o outro é apenas
outra pele
se me toca
revele
LENTO
o tempo afina os ossos
o cotovelo
o joelho
velho
o tempo refina os olhos
o sentimento
o pensamento
lento
OCO OUTRO
o bom do pensamento
é o silêncio por fora
não quero falar
ninguém me conhece
o pensamento é bom
quando preso
825
se solto
faz vento
o pensamento é oco
quando dentro
se falado
faz outro
o pensamento é bom
quando somente meu
INTEIRO
o extremo do corpo
é o vazio do mundo
do vazio para o corpo
o mundo é cheio
o inteiro
é início
meio
fim
o inteiro do corpo
é sempre meio
o fim do corpo
é sempre início
DEDO
pego o ar entre os dedos
no invisível do tato
não há recheio
no meio
o ar é ausência de corpo
o mar cheio é nada
se entre os dedos
não o tenho
826
AMOR CHEIO
o corpo mais corpo
é no amor
sensação
matéria
o corpo é corpo
no amor
secreção
hormônio
o corpo é próprio
no amor
expansão
contrário
sem outro corpo
o amor é vazio
DOENÇA
haverá algum segredo ainda não revelado
dentro do meu corpo ainda vivo?
as doenças genéticas dentro
o coração baterá lento
o distúrbio frenético
a glândula terá dor
haverá algum segredo mascarado
dentro do meu corpo ainda em risco?
O OUTRO MORRE
o outro morreu
o medo espalhou
o corpo morto
é morte no ar
827
o outro se foi
o corpo podre
a terra comeu
é sorte ficar
o outro parou
o corpo inerte
a roupa última
é corte sem ai
o outro morre
antes de mim
pedagogica
mente
QUAL?
o mineral
o sal
o líquido
qual?
química
há leis
dentro
de mim
física
há leis
fora
assim
o vegetal
faz mal
o remédio
qual?
828
ALGUÉM VIVE
eu parei
mas o corpo
continuou
vivo
eu calei
mas a mente
confessou
vivo
mesmo morto
por dentro
o corpo luta
um tempo
morto-vivo
sou de noite
na solidão
de mim mesmo
MENTALIDADE
eu penso sem parar
eu penso até cansar
o pensamento contínuo
muda muda muda
não devia ser assim
luta luta luta
eu penso até dormindo
quando o sonho é ruim
eu acordo e volto de novo
para mim
829
eu não paro de pensar
há sempre esse vagar
em si mesmo toda hora
dormir ou acordar
eu penso sem parar
eu penso até cansar
PASSA O TEMPO
o tempo passa em mim
o corpo fala que sim
mas alguém permanece
intacto e inteirinho
o tempo pesa
nas pernas
sonho
e leve passo
o tempo cessa
se amo
durmo
e o amor passa
o tempo passa em mim
o corpo fala que sim
sim eu sei que o tempo
vive numa luta sem fim
ESPIRRO
o sofrimento
devia passar
feito
atchim
830
não gripe longa
uma coceira
espirro
fim
POUCURA
o poema curto
fala absurdos
o poema claro
canta escuros
ACHADO
achei depois de outro a mim
o outro era eu sem fim
apenas começo e meio
sem inteiro assim
achei um outro esse sim
sou eu mesmo inteiro
até que enfim
estou de volta em mim
INACABADO
o corpo pequeno era outro
um outro que agora está aqui
infância é tempo estranho
de ser ainda sem fim
hoje sei do corpo
pronto em mim
mas não tenho
para onde ir
831
fugir para o futuro
as rugas
a idade
a doença
fugir não dá mais
o tempo é absurdo
me deu a infância
para encontrar a dor
para onde irei pronto
em corpo feito
e em necessidades
ainda inacabado?
SANGUE
tirei o sangue para exame
a agulha penetrou a veia
e eu me pus no frasco
como um tipo sanguíneo
eu sou aquele sangue
na mão da mulher
de unhas azuis
sorridente?
o sangue retirado
depois de fragmentado
e todo analisado
vai para onde?
tirei sangue
sem entender
se era eu mesmo
no frasco quente
832
ROUPA ÍNTIMA
o nu do corpo
sou eu apenas
sem roupa
o nu do corpo
não revela
o que penso
lá dentro
sou feio
sem roupa
me defendo
eu não tiro
a roupa interior
tenho medo
da nudez maior
eu não firo
o eu superior
tenho medo
dessa nudez
o nu do corpo
sou eu apenas
sem roupa
eu sem traje
sou trajado
por dentro
ENERGIA
o almoço convida
energia no corpo
dentro do poço
estomacal
833
o lanche servido
moléculas no corpo
regurgitando energia
vibracional
o sono calado
ou sonhado
o corpo parado
neuronal
EXAME CLÍNICO
pouco sei do corpo
o meu corpo dado
intuitivamente
nada sei de suas leis
ele não me informa
rapidamente
não posso diagnosticar
os processos do sangue
sabiamente
o cientista coleta uma gota
do sangue em veia minha
descobre doenças
acha insuficiências várias
anemia
leucemia
hiperglicemia
a gota de sangue em mãos alheias
falam mais de mim que o sangue
em litros dentro de mim correndo
834
não sei absolutamente
do meu corpo por mim
preciso de um outro
o outro usa uma gota
e de mim tira
várias conclusões
eu não sei nada de meu corpo
VEIA
a veia dilatada na mão
anuncia o calor
a veia sumida no corpo
anuncia o frio
para onde o sangue vai
no inverno
se no verão ele tem
o mesmo volume de antes?
DENTE
o dente amassa a comida
dentro da boca úmida
desce triturada a massa
para o estômago
o dente precisa de outro
outro dente de outro dente
para fazer a trituração
permanente
o dente sozinho
não morde
um dente sozinho
não pode
835
VERME
o verme lá dentro da barriga
alimentando sua brancura
chupando o sangue
via intestino
o verme cresce e reproduz
quanto tempo vive lá não sei
mas sei que meu corpo
abriga seres vivos demais
além de mim há outros
vírus
bactérias
vermes
os vermes são os piores
os vermes são os piores
DIGITAL II
a digital está cobrindo os dedos
sou eu na carteira de identidade
com uma marca até minha morte
a digital vai me acompanhar
a digital é silenciosa e policial
quando houver um crime
o homem de arma na mão
obrigará a dar o sinal
a digital é uma marca
duradoura e material
ela não muda se lavada
ela tem a minha cara
836
COM OU SEM
o corpo sem banho
fede
o corpo com banho
leve
o corpo sem brilho
fosco
o corpo com brilho
fofo
o corpo sem fome
gordo
o corpo com fome
magro
o corpo sem vida
morto
o corpo com vida
doido
o corpo vivo
o corpo morto
eu vivo
eu torto
TEMPO DO CORPO
queria o tempo longe do corpo
distante dele bem distante
mas ele se cola nas células
se passa em mim e eu vejo
o tempo passa no espelho
e eu sou chamado a controlar
837
a esperança de viver mais
ou menos já não sei o tempo me confunde
o tempo passa em mim
não me deixa fugir por quê?
o que ganha com essa cena
difícil para eu ver?
o tempo acorda em mim
sai pelos dejetos entra comida
eu alimento para morrer
eu vivo para morrer
o tempo me passa as horas
eu não posso parar
eu não sei se quero parar
já me acostumei ao lamento
o tempo vai me arrastando
e sinto que vai chegando
a hora do tempo ser outro
o tempo se morro vai me deixando
o tempo um dia vai me deixar
MÚSCULO
o músculo cresce
o moço pega
o peso
sobe
desce
o músculo intumesce
o moço rola
838
a barra
peso
dobra
o músculo esquece
o moço olha
o relógio
músculo
moço
envelhecem
o músculo
envelhece
o moço
envelhece
CARNE ALHEIA
sinto pena do boi
cortado em tiras
no açougue
sinto pena do porco
vendido no peso
um troco
sinto pena da carne
morta e vermelha
na vitrine
sinto pena da fome
que come a carne
de sangue
sinto pena de mim
eu como a carne
por fome
839
MENTE E OLHO
o olho vê
excita
a imaginação
registra
o olho capta
a cena
a imaginação
redesenha
o olho acha
a mente
mancha
tamanha
o olho sabe
ir aonde
a mente
cabe
ANTINOMIA
o corpo desce
sete palmos
a alma sobe
altiplanos
o corpo mexe
irritado
a alma cede
devotada
o corpo
vive
a alma
ferve
840
EU SOU DOIS?
a dor no corpo
é músculo cansado
é osso trincado
pancada na mesa
a dor na alma
é promessa desfeita
é amor acabado
é morte chegando
os dois são
apenas
eu
NARIZIM
o nariz pede bis
cheiro bom
no ar
feliz
o nariz faz atchim
cheiro ruim
no ar
infeliz
o nariz sabe
o cheiro
que lhe
faz feliz
o nariz sabe
o cheiro
que me
aperta o rim
841
CORRENTEZA
mandem buscar
as lembranças de mim
no rio
que vai longe
mandem recuperar
o corpo que eu mantive
intacto em mim
até aqui
ele se foi
em pele
cabelo
saliva
água abaixo
rio abaixo
se foi para
o fim
PULSO TEMPO / 2010
À PROCURA DO TEMPO
não sei de onde me veio essa ilusão forte
nem esse sentimento tão
nobre e besta
de colocar o tempo o tempo dentro dele
como se fosse possível emoldurar
nas cenas
o relógio tiquetaqueando a matraca das horas
na alma fervorosa por mais tempo
de tempos idos de tempos findos
842
a vida passa em tempo e o
tempo
tem
tempo
dentro de si mesmo e se faz ele próprio
no próprio ato de tornar eterno na
memória
o si de si
mesmo o
sempre si
mesmo
tempo
não me acuse de querer devotar ao tempo o verso
pois dentro do verso já se consome
de tempo
o tempo
entre o pensar o verso e sentir o verso na folha
já foi o tempo preencher a lacuna entre o
nada e
o todo
entre as intermitências da realidade frágil que de fragilidade
se compõem as estruturas da alma do senhor tempo
esse que passa por mim
desde vivo e morto será
sempre eu tempo
feito na vida no mundo que o
mundo nada mais é que
tempo ido
para fazer do futuro tentativa de tempo passado esse mesmo
tempo vagabundo roçando na minha vida para tirar de mim
843
sua razão de ser e
estar
dentro
da
natureza de cada um
o tempo se faz bem
dentro de si mesmo e
nas categorias de mim
eu me dou a ele e ele se dá a mim sem metáforas apenas real
o tempo não conhece a poesia mas sem ele a poesia seria fria
o poeta procura no tempo a si mesmo e os versos
puxam para si
o pecado da vida sacramentada em lugares
passageiros e mãos
que hoje são fortes amanhã serão serão...
talvez nem serão
o tempo leva a força a coragem
a verdade e
a história
por isso a poesia é frágil mas precisa ser para o mundo
compor-se de mais brilho que a cor realçada
no verso
é a eternidade do rosto do tempo nas folhas
eu me arrisco em aprisionar o tempo
em verso
para me libertar
de sua trajetória
nas minhas
moléculas
estou à procura do tempo
844
no verso no inverso
no controverso
estou à procura do tempo
na vida e no mundo
e no relógio interior
O TEMPO É O INTERVALO
eu procuro
o tempo
entre as diversas
fases da vida
nascimento
crescimento
morte
o inteiro não é o tempo
o inteiro
início
meio
é a vida
o tempo está no
in
ter
va
lo
nas reticências do que está para ocorrer
o tempo é um
in
tro
845
fim
me
ti
do
eu procuro
o tempo
entre o sêmen jorrando na
estrutura quente
correndo atrás de seu deus
intenso
o óvulo
quem poderá saber desse tempo
oculto nas entranhas da mu
lher?
quem não contou no relógio nem
nos calendários o tem
pó?
ela sabia apenas da presença de um
encontro
no mais fundo de si mesma mas o tempo
o tempo estava lá calculado para o
milagre
quem conta a vida nesse intermédio de tempo?
eu conto minha vida no dia do
nas
ci
men
to
mas o tempo em que eu era dois prestes a ser um no
encontro?
e o tempo da expectativa de óvulo fecundado,
846
não era eu já?
quem eu era ainda feito não feito mas já tempo?
eu procuro o tempo entre os hormônios latentes da infância
e a adolescência sempre pronta para ser outra coisa negando o
passado do corpo simplificado na
existência infantil
não me perco nessa busca eu sei que o
corpo é um depositário de tempos em
expectativa de vida em expectativa de
expectativa de vida se tornar mais vida e
sobretudo vida madura
o tempo entre os hormônios é tempo
prestes a ser outra coisa
que será desse tempo?
por que o
tempo aí se
esconde,
ocultando sua
face?
o tempo está nas veias do corpo e
faz das veias cor viva e não sei o
motivo pelos quais as veias se
abrem e se fecham como ponteiro
fechando e abrindo
horas no relógio
o tempo está no pelo que nasce e que antes era tempo de esperar o
nascimento e maturação
e sei que o tempo aí escorre pois o vejo em outros corpos infantis
como o meu infantil um dia foi
o tempo entre a infância e a juventude pulsa
entre dois momentos e o vejo preparando o
847
terreno para ser diferente em dois momentos
da mesma existência
é o tempo...
é o tempo...
é o tempo...
eu procuro o tempo entre uma árvore de frutas vermelhas e
coloridas e cheia de graça da infância pronta e a mesma árvore em
outro tempo com as mesmas frutas sem graça por causa do tempo
que se passou na mente que vê a fruta no galho no tronco sob o
fundo azul do céu não sei o que muda mas muda algo
e esse algo é o tempo alterando
as cores da alegria de viver e as
tristezas sentem mais prósperas
no coração de quem começa a
entender a passagem do tempo
na boca do estômago
eu vejo o tempo no céu de quatro estações fazendo seu
ro
do
pio
entre as
pi
pas
entre as aves migratórias que vão para todos os lados à procura de
tempo bom para ser feliz
eu vejo o tempo brotando do chão na raiz da árvore aparente
levantando a calçada lentamente para fazer a
destruição ser uma realidade no caminho de cada um porque o
tempo sabe
fazer-se
vida e morte e
848
infância e adolescência e
tarde e noite
o cha
fa
riz
deixou um dia de rolar água foi a obra do tempo depondo contra si
mesma no intervalo entre uma geração e outra a criança que antes
be
bia
á
gua
agora não poderá mais se embebedar da água da montanha
o tempo passou para a velocidade da água
jor
ran
do
o
tem
po
levou a vontade da natureza de expor suas entranhas dos
fundos possantes das veias do solo
eu sei muito bem onde se esconde o tempo da infância
(
)
ele está entre o movimento das sombras das casas
antigas
há tempos desvendando o lado do sol e da lua porque o tempo se
faz sombra e claridade no chão das
cidades e dali brota o pulso
forte do tempo em temperatura
quase corporal
o tempo é esse intervalo
(
)
849
vadio entre a manhã e a tarde e entre a tarde e a noite e mais
acentuadamente na madrugada dormida velando o corpo do pai
frio e sem graça imóvel porque seu tempo já passou
sobre a terra
eu sei da vida sendo arrastada no tempo mas sei também da morte
abafando o tempo passando para o pretérito
as falas
as saudades
as verdades
há uma grande verdade
há uma grande verdade
há uma grande verdade
o tempo está em toda parte
o tempo é toda parte
sem ele
não há espaço
nem memória
as crianças crescem dentro de um tempo
pre)
(estabelecido
seja pela medicina
seja pela mãe ainda menina
seja pelo calendário
as crianças crescem dentro do tempo e partem dentro de um tempo
eu sei que no interior do tempo ainda há o hábito o velho hábito
de no sétimo dia deixar a criança longe de todos do mun
do
escondida para passar por uma nova etapa de tempo
sete dias perfeitos para criar coragem de amamentar no peito
encher os pulmões bem fundos e deixar o tem
po
prosseguir em sua jornada sua jornada sua jornada
850
intermitente entre filho e mãe e pai
e a sociedade sempre insaciável de ver o corpo alterado
pelo tem
po
o tempo é o intervalo entre
a casa e)
(a escola
entre
a meninice e)
(a burrice
entre o colo e)
(o solo
entre a mão da mãe e) (a mão do coleguinha
o coleguinha que ensina a dor
de longe da mãe aprender
que o tempo machuca mais quando solitário
o tempo é o intervalo entre as fraldas o cueiro e a mamadeira
e o prato cheio obrigatório com
jiló e
alface e
mostarda
e para variar um tempo para
adaptação
entre o prato na mesa e paciência curta
da mãe sempre atenta ao mundo que espera o
filho
o tempo é o intervalo entre os intervalos das aulas primeiras
no pátio correndo arranhando os joelhos a queda o levantar
851
e o medo de voltar para casa
e estar tudo diferente
esse medo da alteração das
coisas inevitável passar das
horas
sempre tive medo de chegar em casa e descobrir que todos
todos sem exceção haviam me abandonado para traz
deixando-me sozinho para
viver um tempo sem limite
quando se é criança o tempo
existe mas muito do lado de
fora
o tempo é o
estar-entre-duas-coisas
sem saber o que é a segunda
coisa que virá depois da primeira que não se sabe se é a primeira
o tempo é
causalidade
demais para ser correto
o tempo é
incerto
demais para ser verdade
o tempo é
incompleto
demais para ser inteiro
o tempo
sou eu
demais para ser eu mesmo
o tempo é o intervalo entre coisas completas e coisas quebradas
do carrinho da loja e do carrinho do porão da casa
852
do carrinho limpo
com cheiro de loja de
samuel
e o carrinho cheio de
lama da barragem de
claudionor
do carrinho com rodinhas inteiras
e do carrinho de rodinha solta sem remendo sem conserto
o tempo não tem conserto
o tempo é concerto
com certo
certo
o tempo é a certeza de que as coisas vão passar
mesmo eu fora delas e fora delas vendo
o tempo vai passar sem se
preocupar se o vejo
ele é indiferente ao meu
desejo de parada para
descanso
o tempo não levanta cedo nem acorda
ele é o cedo ele é o tarde
ele é o todo em minha volta e nada mais que isso
o tempo é o intervalo entre os medos
medo de cair e não conseguir se
levantar depois do tombo
de bicicleta de patinete de corrida de
um ponto ao outro para nada
ou na brincadeira de pegador ou
esconde-esconde ou rouba-bandeira
ou rouba meu tempo
eu sei dos medos de cair e não se levantar pois a queda do corpo
853
é o prenúncio da queda de dentro que a vida vai trazer
inevitavelmente e sem avisos prévios apenas
imposição
o tempo é uma imposição da vida
o tempo é uma imposição da vida
o tempo é uma imposição da vida
eu bem sei do tempo imposto
nas horas de morte
o intervalo entre a vida e a
morte de um ser amado
é muito estranho não se sabe
a hora da sua morte
sabe-se que ele é para a morte como eu-sou-para-a-morte
mas quando o pai morre é como se o tempo parasse e parasse
porque não precisa prosseguir na ausência de quem fazia o tempo
ou os intervalos do
tempo serem tão
alegres e tão felizes
que não houvesse e
sinto que não havia
tempo para pensar na
morte e na despedida
o tempo tem lenços brancos
estendidos no mundo
o tempo tem lenços lindos
espalhados pela infância
o tempo tem lenços amassados e rotos
pisados pelas ladeiras
a novidade da vida é o intervalo entre o ontem e o agora
esse agora pulsando em moléculas na alma
(unida presa amarrada)
854
ao corpo
o meu corpo tempo de tanto
passado
templo de tanta emoção e tanta
saudade
a novidade da vida é o intervalo entre
a fogueira e
a árvore
ainda em pé lá na mata no mato na floresta
eu caminhei dentro de outros tempos
me fiz fogo antes do fogo real
me fiz real antes do fogo fictício
a novidade da vida é o intervalo entre
a saudade e
o fato
os fatos tantos criados pela junção de tempo e palavra
as palavras são habitações do tempo na alma
eu as quero longe de mim e não posso removê-las
o tempo pulsa dentro de mim como o rio
dentro do mar virando mar(e)
sia
eu sou essa poesia
acabada e sem fim
sem fim e ultrapassada
antes que eu queira o fim
eu sou essa poesia
inóspita habitante do tempo
as palavras são arcadas dentárias
da boca da noite
eu sou apenas o tempo
855
eu sou apenas um templo
eu sou apenas o ido
nada por vir
não, nada por acontecer, é muito
sou apenas o tempo
pulsado
pulso
tempo
pulso
lento
pulso
vento
pulso
tanto
pulso
pronto
pulso
leve
pulso
sério
pulso
eu
pulso
seu
pulso
meu
856
eu procuro
o tempo
entre
o sinal aberto e o acelerador do carro
pedindo passagem para algo além do paradeiro
o tempo é o movimento e sem ele as coisas pairam num
intervalo entre ser e não-ser entre viver e não-viver
o tempo é uma pulsação lenta ou rápida
mas é uma
pulsação
bela pulsação
em mim
sinto
pulso
eu pulso o tempo de todo o mundo
no pulso do meu tempo dentro de mim
e fora de mim não há outro tempo
o tempo é único
o mais subjetivo fenômeno do humano ser
não há como traduzir
não há como catalogar
há apenas indício
de descontinuidade
de continuidade
de longevidade
de curta duração
de breves notas pulsadas
o prazer
857
esse intervalo entre o desprazer depois
e algo sem palavras durante
a frase
EU TE AMO
dita com significado de alma de pura alma
que tempo é esse?
o prazer do prazer do peso da amada
o prazer do prazer do vazio do dia seguinte
os corpos e suas sensações de vazio de tempo
onde estava o tempo no momento do sexo pleno?
não sei onde estava eu quando amei de fato
era eu mesmo ou outro tempo se fazendo?
não sei... apenas me lembro de uma pulsação nobre
entre o presente
e o futuro
o futuro é pleno quando amado
e quando amando a vida é junta
e junta são dois pulsos em tempos feitos
são vibrações de tic tac unidas numa
eternidade bestial
eu sou fraco quando lembro
do tempo do prazer dado
e escorrido e passado
eu sou fraco mas eterno
quando do tempo faço
memória e palavra
a dor
nego o tempo da dor eu quero esquecer o tempo da dor
858
mas ele insiste em ser ausência de tempo de prazer
há no tempo uma mistura de dois pólos
a polaridade do tempo é o rosto do tempo
a máscara teatral do tempo em dois momentos
a dor e o prazer
eu não suporto o tempo da dor
eu não gosto do tempo da dor
eu abomino o tempo da dor
qual dor doeu mais?
a dor da morte ou do desamor... tão parecidas!
a dor da perda é tempo de solidão
e solidão é
tempo perdido
mas tempo perdido
é prazer do reencontro
há tantas contradições no tempo
e na dor por dentro desse tempo
eu me dou a saudade a eterna fome
de ingestão da presença
quantas dores eu senti
no tempo do
afastamento
mas o tempo ensina
na saudade a lição
professor tempo
ensina a lição na vida
parece cômico a visão
do tempo abstrato
859
sendo um professor
do fato
o fato é apenas fato
contra eles não há
argumentos
apenas tempo
eles se fazem no
tempo
e o tempo é o fato
todo
eu quero não ler
para saber da dor
eu preciso fugir
para o não-tempo
o não-tempo
é não-dor
é prazer maior
é amor
no amor eu sou não-dor
no amor eu sou apenas
todo
tolo
no amor o tempo para
não sei se para ou se altera-se em seu fundamento
mas algo de inovador
acontece
e aí me percebo fora do tempo normal
um outro tempo pulsa
marginal feito padrão
não-identificado
860
a correnteza da existência flui devagar
o prazer aumenta
a pressão de existir se
extingue
o mundo não reprime
o mundo é condição de possibilidade
(no amor)
(um
grande
intervalo
de
tempo)
no amor o prazer é condicionamento de felicidade
no amor sei que o tempo é outro
o tempo se desfigura
se altera na forma
o tempo se apresenta de outro modo
a lentidão do
mundo
em câmara
lenta
esse slowmotion me faz
tão bem
porque no
amor o tempo
pulsa
ritmada com os transcendentais
o céu o infinito o harmonioso
o absoluto o eterno o indizível
o absolutamente humano e divino
casados em pulso
único
861
no amor sei que saber é nada
que o prazer é tudo e que esquecer-se de si
é cair nos braços de outro ser
totalmente enlaçado
numa ligação justificadora
de estar-no-mundo
no amor eu sei que sou outro
no amor eu sei que faço coisas
que não faria em tempo comum
no amor eu sofro porque gosto
e gosto para evitar a dor
no amor a polaridade dos corpos
é imã que coliga num destino comum
e até as palavras os versos o poema
são apenas conjunções bestiais
de um sentimento de tempo
outro
embriagado de outro
o outro é o prazer do amor
o outro é prazer sem espaço de
dor
o outro é junto
e junto é destino de prazer
a dois
mas da natureza sei tão pouco
há um tempo na natureza que
sou eu
pensando a própria natureza em mim e
fora de mim juntos
862
eu sei pouco da natureza
queria saber o tempo pulsando
dentro dela mas sou
apenas eu mesmo pensando dentro o
que fora está
tão belo
procuro o intervalo entre o
movimento original do vento
e os cabelos acenando tempo
para quem vê meu rosto
o vento impulsionado por
forças sobrenaturais
fazendo dos cabelos um
cacho de tempo partido
procuro o tempo entre a
semente germinando
e o tempo do fruto caindo da árvore
e os pássaros pousando
freneticamente entre os galhos
para saber das sementes
para saber dos
frutos
para saber dos
ventos
migratórios
ventos que levam e trazem
asas perfeitas
voando em busca de
tempos melhores
a natureza sabe do melhor tempo
eu confundo ainda velho o tempo certo
o certeiro tempo de parar para pensar
de pensar para parar
de parar apenas por parar
863
estagnação
a natureza reconhece as leis do universo
mais que eu racional que sou
passo horas diante do tempo para saber se há tempo
e nada me diz do tempo senão a natureza
inteiramente tempo de ser
si mesma
eu sei da natureza tão pouco por isso ouço os sons
pulsando o tempo dentro de si em cada ser vivo
o tempo é vida em cada ser e ser é muito
na natureza de competição pela sobrevivência
quem viverá mais?
eu ou a natureza?
o eu ou o tempo?
o tempo existe
mais que eu
mesmo fora de
mim em
outro?
o tempo está
fora do mundo
ou preso às
rédeas da
loucura?
o tempo é a natureza
não tenho dúvida
sei apenas que a dúvida
é tempo perdido
as aves não perdem tempo
os bichos não perdem tempo
e mesmo quando deitados
é para economizar o tempo
864
para viver mais
os vírus não perdem tempo
as bactérias não perdem tempo
e mesmo quando vagarosas
é para não matar seu hospedeiro
eu sei do tempo da natureza
fora de mim
mas dentro
sou vazio
eu sei do tempo ali fora
mas em mim
pulso
tempo
outro
difuso
confuso
absurdo
taciturno
eu queria um tempo para ser fora de meu tempo
mas não posso: para existir preciso de espaço-tempo
não se separam espaço-tempo
não se separam passado-presente
futuro futuro futuro
haverá futuro?
o futuro na natureza
é um poço sem fundo
leis leis leis
o futuro é uma lei
865
de sobrevivência
morte
eu procuro o tempo
entre a arma e a morte
chegando ao corpo
alheio o disparo
rápido em lentidão
feito o rápido é o
tempo não visto
todo tempo é lento
pois é vasto
eu sou tão miúdo que
sei nada do tempo
a morte é um tempo oculto
desfolhamento na árvore
corpo frio dos bichos
asas frias das borboletas
a morte é tempo secreto
de espírito vivo mesmo corpo morto
ou de morto morto e vozes em volta
absurdo sentir-se sem corpo e vivo
mas o absurdo é o outro lado do tempo
eu sei que a morte não existe
é apenas um chiste do tempo
eu sei que o tempo sobrevive
mesmo dentro de mim na alma
e fora do cérebro por dentro
eu sei que a
morte não
interrompe nada
866
apenas
acrescenta
silêncio às
palavras
no passado para
sempre
cimentadas
eu sei que o tempo da morte é breve
e longo é o tempo para quem fica
por que fica a ver o outro sem voz
sem reação sem sensibilidade
na morte o tempo despulsa
expulso para outra dimensão
de outro tempo vago para quem vai
admirável para quem fica
na morte o corpo explode
mas a alma implode
outra pulsação
novo ar
no pulmão
novo mar
outro calçadão
eu sei da morte na natureza
e dentro de mim mas quero da morte
apenas outro pulso
outro tempo
sou descobridor
sou explorador
eu quero outro pulso
outro tempo
867
as imagens humanas são breves
como a folha da árvore
nascendo
crescendo
caindo
destelhando
ou ainda como o muro novo deixando-se cair
com a chuva com o sol com as estações
pixações
entre a alma e o corpo há um
muro
um alto muro chamado
tempo
a natureza levou nove meses de gestação
para me fazer pronto para a vida orgânica
e no parto a lágrima da maternidade caiu
por causa da dor do tempo novo saindo
o tempo novo é sempre bem vindo
o recém nascido é apenas outro tempo
a começar outra história
outra lendária existência
eu procuro
os tempos vários que formam o mundo
(os tempos que vários formam o mundo)
os tempos vários formam o mundo
eu sei dessa deformação
eu sei dessa formação
eu sei de algum tempo
pulsando
em mim
no aqui e agora
868
O TEMPO NÃO ACABA, APENAS MUDA
o tempo nunca acaba
desloca-se dentro de si mesmo
para outras coisas menos perceptíveis
que ali já
estavam
o tempo nunca acaba
ele rola de uma geração
para outra geração
a fim de conviver com
todos os seres
em todas
as eras
o tempo não acaba
ele modifica o
mundo
para se inserir
novamente
como o tempo
de alteração
o tempo não acaba
ele envelhece os novos
e dos novos faz mortos
para renascer renovado
e começar novamente
em mentes novas
o tempo não acaba
o tempo renova
o mundo
os seres
869
a si mesmo
o mais mutante dos universais
o mais consistente dos ancestrais
o tempo é definitivamente
ele mesmo
ele mesmo
ele mesmo
não se procura
se basta
GRÃO DE TEMPO / 2010
GRÃO DE TEMPO
os grãos de terra rolam ladeira abaixo
o fim da terra solta é o rio
levando para o oceano
absoluto oceano
o resto da construção
das ruas
das avenidas
do casarão
os grãos de terra deixam o alto da cidade
se integram ao fundo do córrego
desde novo dando no oceano
como os portugueses
desde sempre ligados
pela estrada real
à opressão total
da colonização
870
TEMPO
demora
quanto tempo
dia mês ano
estão em uma hora?
DESCARTÁVEIS
enquanto eu fico parado
o mundo gira
enquanto o encanto
cessa o infinito
eu passo
horas
dias
meses
anos
enquanto eu fico atado
ao seu mundo
enquanto o desencanto
cresce ao limite
eu falo
palavras
frases
verbos
adjetivos
enquanto eu fico chateado
o mundo continua
o ciclo rápido
o giro perfeito
dos descartáveis
871
MÚLTIPLO TEMPO
o múltiplo tempo de cada ser
da lesma correndo na folha
do gavião coçando as penas
da coruja pensando filosofia
há tempos tantos espalhados
não posso juntar seus pedaços
a fragilidade é o conjunto
deixa o tempo de cada ser
ser apenas um tempo
SÓ
eu queria apenas desatar os nós
tão sabiamente enovelados pela vida
só sei que o nó
dói mais
quando fico só
o nó dobrado
é nó apertado
do estar só
CALÇADÃO
o calçadão da praia segue seu ritmo
uns caminham para si mesmos
outros procuram um olhar
aquele mesmo que signifique amor
no calçadão há uma estrutura de vida
um tempo diverso do tempo da praia
no calçadão a diversão é ver e
sempre, acima de tudo, ser visto
[mesmo que por si mesmo ali]
872
VAGA
a chuva cai
caio
vou
escorro em ai
saio
sou
a chuva é
apenas é
é
eu não sou
não sou
ou sou
não sei se chovo
não sou a chuva
sei que sou ou
não sei se caio
PASSO
passo pelo rosto as mãos
o tempo está dentro da face
oculta do dia inteiro
feito eu agora
o corpo pede apenas um banho
o tempo está no corpo afora
explícito no seu cheiro
feito eu afora
873
SEMPRE
o pingo de chuva
o canto da ave
o sopro do vento
sonoridade
a tarde se perde
entre
som
água
a tarde me prende
dentro
tempo
sempre
MUNDO CHÃO
debaixo da sola do sapato
o mundo é nada
poeira do chão
debaixo da sola da sandália
o mundo é pouco
sentido que não
LEQUE DO ABSOLUTO
o mar quando espalha em onda na praia
abre um leque de água na areia
o mar dá opções como a vida
molhar se dentro
secar se fora
não é possível ficar incólume
diante do tambor marítimo
chamando para o ritual sagrado
banhar-se no mar
874
refazer a vida o destino
rio jordão sou eu agora batizado
quero andar sobre as águas do mar
para entender de um outro ponto de vista
o leque do absoluto
VIDA
a vida se reserva ao direito
de ser ela inteira dentro
de si e ponto final
a vida não detesta nem ama
apenas ensina o que tiver
que ser e sempre é
a vida não é plena
é apenas aresta
de teia longa
retecida
a vida não é pouca
é em si talvez oca
cheia de verbos
ecoada
a vida é apenas
o pouco
o muito
dado
DUNA
os grãos de areia nas dunas
são tantos tempos geológicos
varridos dia e noite
na formação do deserto
875
EXPECTATIVA
dar tempo ao tempo
esperar que o vento
sopre por dentro
da fruta
dar tempo ao vento
aguardar que o tempo
passe por fora
do fruto
AMOR, SIM
o amor ah o amor
está ainda em mim
e rola pelo chão
da cidade
o amor pois bem o amor
está pleno longe do fim
e brota no dom
da idade
o amor se mistura
ao cotidiano
frágil
ágil
o amor me censura
se cotidiano
mutante
antes
o amor está
o amor se dá
do nascer
ao pôr-do-sol
876
PREGUIÇA
sonho
leve
longe
breve
sonho
deve
longe
leve
sonho
agora
refaz
vida
MEMÓRIA
ainda me vejo parado no tempo
ainda contemplo o momento do amor
aquele momento ótimo onde o vento
passa tão perfumado que marca a memória
eu sei das horas passadas ao seu lado
e das noites dormidas em sono comum
acho mesmo que os sonhos eram os mesmos
para que o amor pudesse ser imortal
eu me lembro do primeiro beijo
não esqueci a primeira música
e como poderia esquecer-me da carta
a mais amorosa carta de amor escrita
não eu sei que não foi apenas uma ilusão
o tempo destruiu as comportas da alma
eu sei que não foi apenas bestial sentimento
algo em mim não sou eu mesmo eu sei
877
mudamos e o tempo mudou-nos
o tempo dançou a sua valsa em torno
e seduzidos pelo som da orquestra
esquecemos de renovar o repertório
o tempo passou
muito rápido
já não sei
se lhe amo
já não sei
não sei
PENSAMENTO
por debaixo do chão havia escondido
um sentido para além do meu umbigo
nasceu hoje entre a tarde e a noite
uma revelação como açoite
por entre a nuvem e a lua havia aparecido
uma palavra muita densa para ser entendida
hoje eu vi uma chuva de significados fortes
cortando o céu de sul ao norte
há palavra bela
por toda a face
terna e no fundo
da terra
há palavra cova
entre as fases da lua
que velha ou nova
na flor se renova
há palavra plena
entre o vento
e o tempo
se faço pensamento
878
CON[VERSAÇÃO]
se o vento do poema sopra
belo como o firmamento eterno
eu me dou um tempo singelo
para ser apenas verbo
se a hora soa nos quatro ventos
o sentimento expulso velo
entre palavras e o desejo sei
o poema me encontrou frágil
o poema me escolhe como parceiro
de um tempo de outro olhar dado
o tempo se casa comigo e o verbo
se engata nos trilhos da emoção
o poema sabe de mim
como o tempo rouba
em mim o verbo
do verso
TEMA
entre as pernas da tarde sopra
o vento do dia de verão longo
como futuro do subjuntivo
entre as tetas da noite deleita
o tempo de vida feita em verões
como quem paga para ver e vê
entre mim e a vida
eu me ponho sutil
o dia é longo e vário
variação sobre o mesmo tema
879
PERECÍVEL
descartável a hora
sem o futuro
mesmo prisão
do tempo
descartável sou eu
sem a loucura
mesma paixão
do sempre
descartável a música
sem a doçura
mesmo afinação
do ente
descartável
o momento
é apenas
perecível
RESTA O ROSTO
o rosto me arrasta dentro de si
o espelho me vê e sou outro
outro tanto variado
da forma e do conteúdo
nunca quis a idade
apenas novidade
nunca quis o tempo
apenas a eternidade
o rosto me mostra por fora
sei que assim não sou por dentro
o tempo é um modificador atento
me faz acreditar que minto muito
880
FUGA
das coisas que passam
fica um pouco
do vago
a imagem repassada
deixa um tolo
sem ego
das coisas que bastam
fica o todo
do laço
a figura mascarada
mostra o logo
do dado
do que se vai
pouco atrai
deixa ir
fugir
VENTO
o vento é filho
do ar quente
do ar frio
em luta
na atmosfera
o ar se move
originado
pelos opostos
o vento é filho
do caótico
girando
nos trópicos
881
na hora da chuva
o ar se comove
as árvores reviram
suas emoções
o vento é filho
da dialética
[mas quem
criou os contrários?]
TEMPESTADE
a tempestade no fim de tarde
revirou o ponto de vista
eu que era apenas interior
abri a janela para ver a paisagem
a natureza modifica o ponto de vista
nova janela se abre aos olhos
a natureza sempre altera
nós, os artificiais
CACO DO TEMPORAL
poeira cósmica na sola do pé
de onde viemos
para onde vamos
porque aqui permanecemos
poeira cômica da eternidade
na sola da vida de quem é
ou de quem passa o tempo
o único que merecemos
poeira universal
caco do temporal
882
TRAVESTI
ele é outra pessoa fora
querendo ser o de dentro
o de dentro quando sai
é resultado estranho
a roupa a voz o jeito
revela outra pessoa
fora com desejo de ser
o de dentro enclausurado
LUZ
a luz da noite
revela o dia
eterno
a luz da fábrica
desperta o sono
terno
a luz do sol
esconde a estrela
bela
a luz dos olhos
acerta no alvo
tela
a luz foi feita
num dia de treva
início das eras
883
HUMANO MUNDO
o mundo o artefato de sentidos espalhados em vidas
em nomes sobrenomes e identidades
em retratos três por quatro em documentos
em vozes diversas elevando-se na multidão
eu vejo o mundo estando nele e dele sinto
a existência transcorrer em antenas parabólicas
em tentativas de sintonização com o todo
mas o todo não existe o mundo é fragmento
pedaços cacos restos de outros dias passados
o mundo é sempre jovem e renascido
pois basta apenas palavra nova para significado
sempre renovado para ser sempre o mundo
o mundo de carros estradas aviões e ônibus espacial
especiarias conduziram encontros de mundos
a rota da seda foi uma estrada para a novidade rara
de mundos de marco pólo mundos de europa e oriente
sempre o diferente somos mundos alheios
até a palavra revelar quem somos por dentro
há tempo outro no tempo fora há tempo todo
dentro fora é apenas o mundo o belo mundo nosso
redes virtuais em torno da palavra
do ser e do ente e da filosofia de vida
o mundo não se restringe amplia-se
o mundo não se capta é a captação
as coisas a extensão a finitude
a multiplicidade a opacidade
o característico o fugidio o vazio
o mundo é também uma angústia eterna
884
dessas de acordar cedo e ter de se vestir
do nome do tipo sanguíneo da fala
do gênero do idioma de si mesmo
eu queria perder meu mundo durante o sono
os mundos parecem não sonhar
nem sono parece ter o mundo lá fora
se fosse dormir o travesseiro seria
apenas a modificação
o mundo não é alterado o tempo todo
antes permanece intacto em suas estruturas
pesadas como as curvas de niemeyer
precisam de profundidade para sustentar-se
o mundo esse é o artefato
o grande artefato do homem
deus não está nas coisas do mundo
nem poderia: ele deixou o mundo para o mundano
o mundano somos nós
o nós que o censo demográfico
conta de tempos em tempos
nós somos corpos apenas
corpos significativos
sentidos desprotegidos
se hão houver sempre
o mundo
o mundo é o humano
o mundo é o humano
o mundo é o humano
885
FABER
o que fica?
nada fica
tudo move
chove
o que passa?
nada passa
tudo arquiva
espaço-nave
o que será?
nada será
tudo está
por fazer
o que somos?
nada fomos
apenas homem
homo faber
CORAÇÃO PERMANENTE
o coração antes de ser órgão
é o local onde eu me faço
amor
o coração antes de ser frágil
é o mais forte dentro do espaço
fácil
o coração antes de ser sofredor
é o mais verdadeiro eu acho diante da
dor
o coração antes de ser volátil
é o mais constante em mim batida
ágil
886
o coração antes de ser órgão
é o endereço do eterno
seja o que for
amor
OOOPS!
surpresa
abrir os olhos
a vida
como mesa
banquete
servir os molhos
do dia
como festa
PALAVRA
a palavra roda
ônibus e fala
a palavra cola
tinta e folha
a palavra esconde
silêncio do homem
a palavra revela
cai de pára-quedas
a palavra
abre alas
abre alas
a palavra
887
NINHO
o ninho cabe vários corpos
e o vôo também lá habita
para uns é realidade e alimento
para outros é questão de tempo
o ninho fica no alto da árvore
e defende uma família grande
de pai e mãe e filhos pequenos
em pouco tempo será ninho somente
SONHO
o sonho me permite ir longe
em desejo
em outros lugares
em outras vidas
o sonho me deixa leve
passo a noite
em cenas várias
quando acordo
sou apenas
eu mesmo
o sonho é um convite para a fuga
de mim para outros
de outros para mim
é sempre divertido
LIVRO
o livro na estante me vê
são olhos gigantes
são vozes altas
frases tantas
888
de lá ele me pede o olhar
a leitura de quem se faz só
diante do tempo da hora
eu se preciso pego na obra
os arcos do entendimento
se curvam diante das letras
os lagos nos olhos inundam
as retinas de sentidos
o livro na estante me dá
de si o todo
a mim
o necessário
INVERNO/VERÃO
quando venho no inverno
a poeira vermelha da estrada
quando venho no verão
a lama vermelha e serração
quando no inverno
seco e azul
quando no verão
fresco e nublado
eu vou e venho
a estrada é o desenho
o grande desenho
na linha do mapa
889
CÉU
o céu de olhos fechados
chove
de olhos abertos
azul com ave
QUARTO DE POUSADA
eu num quarto
padre rolim
nomeia o espaço
dele o patrono
logo ele
padre
torto
dele o nome
logo ele
inconfidente
fugido
eu num quarto
histórias várias
eu num ato
vitória cara
dormir o tempo
acordar saudade
890
VAGA MEMÓRIA
vejo-me aí sabe como
um pouco tudo e tudo muito vazio
é assim: um som traz a dor
se esparrama pelo sepulcro caiado
de tantas vidas existidas
neste sonho quase pesadelo velo
o medo inconsútil de decidir
esse frio na barriga sou eu
essa dor na espinha sou eu
esse ser-não-ser sou eu
e é vaga a memória da pele
afoga a ternura do ontem
em minutos de congestão emocional
preciso voltar daí, sabe como
atar-me ontem com hoje
ser-me novamente o mesmo
mas mesmo é sempre muito do medo...
PORTUGAL
vou-me antes de partir
na imaginação ofegante
no contorcionismo
da pré-imagem
passando slides de não vivência
cumpro o ritual de sonhar
pisar o chão de além mar
mar além da alma
quero voltar sóbrio de lá
mas encantado pela sombra
de outro continente
sob meus pés
891
35
faz um ano
faz talvez quatro
eu me fiz quatro anos
somente para mim
foram quatro anos cheios de pequenos períodos longos
imensos
foram quatro anos repletos de uma intensidade verbal interna
eterna
não sei se fui em mesmo lá trás que fiz isso que chamam
amor
nem posso dizer que ontem fui eu a jurar amor eterno
faz um ano
talvez
eu
não sei...
aqueles sonhos ainda existem
agarrados aos calendários da parede?
meu deus, as horas voaram pelas janelas
e acho que você foi junto... quatro anos!
assim não posso me perceber olhando os objetos fixos
rígidos objetos sobre os moeis fixos sobre o tempo fixo da
imobilidade
eu me mudo tanto por dentro que por fora parece uma
miragem
mas sou eu mesmo contando as horas sepultadas em seu
entorno
faz um ano
talvez quatro
nem sei se muito
ficou o quê, mesmo?
892
SENTIDO
deixa eu de lado dormindo
para acordar de frente para a vida
me revire por dentro
para desvirar por fora
abro a boca da noite
para cantar o coração partido
PEDRA
em volta o pensamento dá voltas
espirais caracóis túneis
em volta o pensamento dá notas
aos sons aos tons aos dons
o pensamento sai de mim e volta e volta
frio quente puro impuro
passeia pela vida e recolhe do dia
a sensação a emoção a estação
o pensamento me faz
inteiro por fora
pequeno por dentro
intenso na vida
o pensamento me traz
as vidas da vida
as ruas da vila
pedras rolantes do tempo
893
BOMBA
eu vou provocar uma catástrofe com meus sons internos
eles depredam muros picham personalidades riem da
realidade
eu vou provocar uma hecatombe com minhas palavras
elas vão cheias calor aos ouvidos de quem não está
preparado
eu vou provocar um desastre com meus atropelos
eles se dão de dia de noite de sempre e me perco da rota
eu vou procurar a cura
em algum lugar longe
de toda provocação
CORREIOS
inverno é frio na pele e som na alma
fondue na mesa e amor na cama
vou remeter uma carta bomba por sedex
para desfazer os erros de uma entrega total
ÍMPAR
olho no olho me vejo aceso
sol no fim do dia seus olhos no meu corpo
sou por do sol por de mim por de ti
é por isso que amo: vivo percebendo.
olho o que olho por que acredito no terceiro olho
que fundo dois olhares em algo mais holístico
que dois planos que haja três três três
porque assim se faz a vida: de ímpar pluralidade
894
olho por olho dente por dente vida por vida
quanto mais vivo mais admiro as cores de cada manha
quando a intuição brilha num ponto entre os dois olhos
físicos
minha alma me diz: veja para além de si mesmo
(ao amar sinto que um novo olhar me funde
com toda a realidade cósmica de cada momento)
PARA DEPOIS
vou me perder na próxima esquina
essa já foi
vou me romper na próxima estação
essa já foi
vou me corrigir na próxima encarnação
essa já foi
INOVAÇÃO
prefiro olhar com olhos de dentro para que o fora seja
sempre essa mistura de mim e de todo o universo pois
melancolia não cabe quando o universo e a mente se cruzam
e novas realidades se fazem tão profusamente que se fazem
novas e novas ondas e partículas e por isso vejo o que vejo
para me ver vendo o olhado sempre e eternamente para olhar
o visto não quero fechar os olhos de dentro para ampliar os
olhos de fora por que fora e dentro são realidades idênticas
uma voltada para o outro e outra para o outro que sou eu
vário a cada nova reconstrução não paro no sinal da vida que
a vida mande novas mensagens psiquicamente graváveis
para virar memória de um olhar sempre em inovação
895
SURPRESA
a vida não surpresa é o que vivo agora sem medo de ser
existência sem medo de ser apenas vida
a vida não suspeita é o que sinto agora florida como jardim
em inverno no serro do frio eterno na alma bem como gavião
pousado na torre do cruzeiro olhando do alto mais alto de
toda altitude de minha infância o mundo lá em baixo e aos
poucos eu dentro dele colado ideoplasmado criptografado
jungido a cada ato do outro dos outros da teia de relações da
alma
eu me sinto sobrevoando o ato e de cada fato retirando a
lição própria do silêncio que ao final quer significar nada
mais nada menos aprendizado saber calar-se saber ouvir as
batidas da vida no oco da mente é lição de maturidade lição
de jovialidade para quem nunca envelhece porque se renova
a cada sobrevôo sobre os atos e os fatos
a vida me é dada de maneira tão corriqueira que vegeto às
vezes e de vegetação rasteira me faço mas não me iludo a
vida é feita para as alturas dos vôos dos céus dos arranhacéus de cada asa composta de cada sonho brotada sim a vida
é para os sem medo de altura sem medo de ternura sem medo
de experimentar a vida é assim mesmo um grande
laboratório de árvores envelhecendo
a vida se faz pelo tempo cada tempo cada sentimento
registrando arrastando uma caneta sobre a superfície lisa do
tempo eu me marco no chão da vida para me fazer história e
você o que tem feito com as marcas que o bisturi da
eternidade jamais poderá arrancar eu me pego pensando e
sentindo a vida por que só me posso pensar dentro dela e
preenchido por cada espaço vazio de mim mesmo
896
ETAPA
de frente para tuas portas me abri em várias formas
flor de lótus no pântano de cada vida por baixo podre
sim, havia ali entre teus quintais infernais um deus cego
o ego de cada um derretendo as pedras de cada tempo
nunca me detive na contemplação das horas que
esfogueavam de teus relógios
daqueles relógios bem colocados no pulso tic-tac da alma
devolva minha alma eu preciso prosseguir entre as novas
palmeiras
não aquelas de tempestades imensas vistas do botavira
preciso retornar para dentro para reinventar o meu mundo
afora
me devolva o voucher de cada tempo perdido como escamas
do piau apanhado no rio
fui tantos tempos ido e agora preciso de tantos tempos para ir
novamente em paz
devolva-me o sabor da infância para inspirar a reforma
predial do entendimento
essa chuva que me revira retira do telhado as passagens do
ontem
deslocando-me no teu tempo me vejo amparado por mãos
familiares
subindo descendo me dando me pedindo estou aqui agora
dizendo
-deixa-me ser sem teu tempo de portas abertas
deixe-me fechar uma etapa!
ENTRE
entre uma música e outra eu me faço outro
porque não sei
deve ser essa nota nova a cada forma tempo-espaço
897
entre um feijão cozinhando e arroz torrando em me vario
porque não sei
deve ser esse sabor novo a cada desejo satisfeito
entre uma notícia velha e a mesma notícia refeita eu me
revisito
porque não sei
deve ser essa mania de novidade em cada célula
entre um livro e um e-mail eu me releio
porque não sei
são muitas histórias para se contar numa vida
ESVAZIAMENTO
a nuvem em cima do jardim novo
florido verdejante arrumado
me fala
o sol sobre todas as cabeças da terra
amarelinho quentinho bom
me fala
só não me falam as palavras
cheias de silêncios
em cada sílaba
só não me falam os vazios
da arquitetura humana
de cada dia
o jardim floresce
o sol brilha
a palavra emudece a razão
o vazio é cheio de sentido
898
CONSUMO
eu imagem
eu notícia
eu quatro portas
eu dinheiro
eu a todo vapor
ou a seco (compre)
eu rótulo
eu etiqueta
eu promoção
eu financiamento
eu a todo calor
ou ar condicionado (ligue)
eu mensagem
eu mala direta
eu desconto
eu faixa com telefone
eu de todo dia
ou comprador agora(invista)
CLIMA INTERIOR
nas pedras do rio eu rio
nas pedras do chão eu brilho
nas sombras das casas eu sonho
ser apenas realidade
na chuva da serra eu subo o nível
na chuva inesperada eu tromba d’água
nas águas correntes da vida eu sonho
ser apenas tempestade
899
nos olhos do furacão eu rodopio (a mente é furiosa)
no vento de cada dia eu me esfrio por dentro
no alto do pico eu me faço acima do mar
quero apenas controlar meu clima interior
FIO
as células sabem do tempo
mas eu que tenho células
pelo corpo e dentro delas
moléculas
não sei do tempo e vazio
fico olhando o ponteiro
do relógio que tic-tac
me leva
não, ele não me leva
sou eu que me levo
de leve e livremente
dentro do tempo
que pulsa ardendo
em cada célula
que morre
e renasce
nos pés
ao último
fio
de cabelo
900
CORAÇÃO PARTIDO
partido coração
me leve para dentro da vida
me traga para dentro da rota
da felicidade
partido coração
me faça mais real
me parta mas igualmente
entre mim e mim mesmo
partido coração
me leve no barco
me deixe ao encargo da obra
de ser eu arquiteto o tempo
TRÂNSITO
do alto da cidade
na mente apenas
carros
mão
farol
contramão
lanterna vermelha
transito
pelo
trânsito
DESEJO
olho no olho
boca na boca
semente
broto do desejo
901
PAPAGAIO
paralelo
paralelepípedo
epíteto e elo
papagaio
papa-légua
régua e galho
parafuso
paracetamol
amor e uso
CERCA: PROPRIEDADE INTERIOR
há cerca de todos os tipos
por dentro dela se prendem
galinha galo
vaca boi
mula burro
pato pata
marreco marreca
há cerca de vários formatos
arame farpado é muito comum
quando subo a serra do cipó
o arame me acompanha pela estrada
e os bichos lá dentro estão felizes
mais que eu que estou
solto pelo mundo
902
há também cerca galvanizada
de um arame que não corta
apenas prende e separa
quem está dentro
quem está fora
até mesmo na estrada
eu sei que há um limite
entre as propriedades
em minas gerais há fazendas
grandes e pequenas
latifúndios e sítios
mas sem a cerca nada seriam
a cerca é o certificado
nítido e claro e óbvio
da propriedade
como se a cerca trouxesse em si
o lembrete exato
afaste-se! eu sou o dono!
há cerca impedindo o gado
de chegar até outra parte do pasto
o manejo é cuidadoso
não há liberdade alguma
tudo é vigiado
por isso certas cercas
confluem em mata-burros
para evitar que os bichos
entrem e saiam quando quiserem
903
as cercas se espalham pela serra do cipó
e se podem ver placas com alertas
PROPRIEDADE PARTICULAR
NÃO ENTRE
mas se eu entrar terei sido comprado
como o gado que pasta na forragem
eu terei virado bicho
a liberdade é fora da cerca
ou pelo menos é a possibilidade
de viver fora dela
os arames são atrelados aos paus de madeira
para não saírem por aí como linhas
de papagaio pelo céu azul da serra
puxadas pelas mãos dos meninos sonhadores
ou permitindo que poetas escrevam
em linhas tortas do tempo
a poesia bela fluida no passeio
pela alta montanha
há dentro das cercas uma comunidade
pode ser rural ou apenas de passeio
de subsistência ou apenas de meia
até mesmo os grãos produzidos ali
estão cercados para sempre e têm
sempre um dono que se diz
o proprietário
as cercas podem ser quadradas
retangulares ou mesmo e essa predomina ali
904
arredondadas como se um compasso
passasse no chão do planeta
dando a cada um porção de terra
mas sei que a fragmentação das terras
é resultado das partilhas centenárias
feitas desde os portugueses
há mais de trezentos anos
as cercas não choram nem sorriem
estão estacionadas à mercê do tempo
não produzem outras cercas
não conversam entre si
pelo contrário as cercas
são sempre sérias e fleumáticas
e nunca permitem que se passem
por dentro de si sem fazer com o corpo
uma inclinação como que para uma
majestade
as cercas reinam absolutas na terra dos homens
e dividem a humanidade por todos os lados
os de dentro e os de fora
os produtores e os consumidores
os pobres e ricos
os vivos e os mortos
as plantas e as árvores
há sempre uma divisão em cada cerca
e a multiplicação das cercas
é resultado do
coração
pequeno do
homem
905
no coração não há cerca
há muros quais fortalezas
no coração não há perda
há sentimentos pastando
em tempo eterno
de tantas vidas
de vidas tantas
no coração não cabe a placa
de proprietário eterno tudo passa
é a existência que deixa sua marca
como o rio que não tem cerca
porque livre escorre pelo mundo
levando sua vida a todos os cantos
bem queriam os homens cercar os rios
mas eles dão no absoluto
o oceano
eu vi a chuva caindo sobre a cerca
e na frieza de suas estruturas
pensei um pouco em mim
e nas cercas da alma
le
van
ta
das
preciso refazer
a propriedade interior
sou do mundo
e do mundo
eu
sou
906
DO CASULO À BORBOLETA
até que a borboleta surja do casulo
o mundo girou
diversas vezes
e trouxe a primavera
e levou o outono
e trouxe a floração
e levou as folhas mortas
até que a borboleta sossegadamente apareça
num mágico dia de sol depois da noite de luar
é preciso que o tempo escorra na vida
gerando filhos e fazendo-os morrer
porque no tempo entre o casulo e a borboleta
entre o abominável invólucro
e a cor que paralisa os olhos
há uma imensidade de pequenas obras
acontecendo no mundo
até que a borboleta resolva sair do útero
as janelas terão se aberto e fechado trazendo
para dentro de casa o calor do sol
o frio do vento de julho
e o beija-flor de rabo branco
trazendo a notícia de boa sorte
lá de longe de onde suas asas frágeis
conseguem buscar a informação divina
quem diria que entre o casulo e a borboleta
o planeta iria girar centenas de vezes e os dias
907
verão as noites e as noites verão as madrugadas
e as camas verão os corpos e serão abandonadas
no dia seguinte já que os corpos humanos
trabalham para seu sustento
e para seu nervosismo diário
não, a borboleta no casulo não pensa, nem sabe
que sua demora agita ainda mais o mundo
que bombas se fazem nos túneis da faixa de gaza
que crianças perdem seus pais em guerras civis
na áfrica na ásia ou no rio de janeiro
se o farfalhar de suas asas faltam ao mundo
o mundo escurece em fuligem bravia
o mundo se deixa morrer sem cor e brilho
mal sabe a borboleta dentro do casulo
das horas de terror sem suas cores belas
nem poderia imaginar que entre os intervalos
de sua gestação a morte cavalga rápida
entre vidas jovens entre jovens mulheres
ah, se a morte tivesse uma borboleta
para admirar pousada nas suas costas
será que deixaria de aparecer nos telejornais?
a borboleta dorme dentro do casulo
e naquele escuro silencioso e mudo
o milagre vai acontecendo como o tecer
do fio do bicho-da-seda forte
e o laço entre o nascimento e a vida
se fortalece nas paredes da casa mãe
908
a borboleta bem poderia romper o casulo
e deixar suas asas crescerem límpidas
no cenário da floresta ou da cidade
precisamos de sua cor para enfeitar
a vida que passa
des
co
lo
ri
da
men
te
entre os grãos de tempo da existência
vem, borboleta, espalhar
um pouco de cor e vida
ao mundo sem cor
ao mundo onde a dor
se mistura com o dia-a-dia
até que a borboleta surja do casulo
eu espero o milagre
acreditando nele
até que a borboleta transmute a vida
eu aguardo o novo estado
de um novo mundo
mais fraterno
mais colorido
mais simplesmente
humano
909
LIBERTAÇÃO
a noite me entregou a manhã
puramente
sem nenhuma culpa
puritanamente
a noite me lavou por dentro
igualmente
e por fora me deu de volta o sorriso
externamente
a noite me libertou
dos medos
AUSÊNCIA
outros lados da mesma vida não vejo sei que não consigo ver
os vários lados da mesma vida é tarefa do absoluto que só ele
sabe do todo do pleno da totalidade
outros lados da mesma vida há sempre uma parcialidade no
meu modo de ver de conduzir a mente diante do espelho que
o outro me fornece
outros lados tantos e muitos e múltiplos e eu múltiplo pouco
sei do todo fazendo dele apenas uma constante forma de
fugir para o transcendental
outros lados da vida de quem vejo de quem percebo de quem
me toca os sentidos do corpo eu sei que jamais poderei saber
do todo jamais saberei do conjunto da obra
a obra é vasta demais e perpassa vidas tantas múltiplos
corpos e tantos tempos isso que dói os tempos dados a cada
um de nós para sermos sempre parciais
910
sempre pequenos diante do absoluto como o rio diante do
mar é apenas uma contribuição para o conjunto eu sou
apenas um lado das vidas dos outros e dos outros sei apenas
um lado
o tempo é vastidão eu sou apenas uma pedra que se tornará
grão e quando miúda saberá mais do absoluto que o concreto
muro do absurdo
espero me tornar apenas um grão de tempo
pequeno por isso complexo
mínimo por isso participante
do todo
espero me tornar um grão de tempo
PONTEIRO
o tempo não se acumula
é apenas um
em tudo
em mim
o tempo não engana
é verdadeiro
na face
na vida
o tempo não anula
é realização
está em tudo
está no fim
o tempo não abana
é o vento
no ponteiro
no inteiro
911
GRÃO
o mistério do grão
é ser em todo
um resto
de razão
o sacrilégio do pão
é faltar à mesa
mesmo pouco
em grão
o profético do grão
é ser memória
da poeira
do chão
MÃO DO TEMPO
a mão sobre a cabeça
ainda está pousada
ela nunca sairá daí
está atada ao passado
o passado das lembranças
das grandes e infinitas
daquelas sem fim
que deixam marcas
o momento único eterno
não apenas pela mão
mas acima de tudo
pela mão falando pelo coração
912
RE-TARDAR
a tarde quando acaba morta
feita bêbado de cidade pequena
abandonada e sem jeito quase sem graça
eu me volto para o interior
é na tarde silenciada em noite
me vejo parado diante do tempo
o grande tempo que trago dentro
um longo tempo meu e de mais ninguém
a tarde se deixa jogada resignada
e não insiste não clama diz nada
não pode se furtar ao desejo de voltar
ela sabe assim como o tempo que um dia
[re]tardará
TEMPO PAULINHO DA VIOLA
Silêncio por favor, Enquanto esqueço um
pouco a dor no peito. Paulinho da Viola
a emoção da vida no corpo
e do corpo com alma é assim
um samba de paulinho da viola
manso e calmo em fim de tarde
a sutileza da vida passageira
e do corpo-passado se fazendo
é assim como um sambinha leve
em caixa de fósforo de paulinho da viola
o samba dele
parece anunciar
outro tempo
na vida
será verdade
ou mentira?
913
O QUE PASSA
debaixo da ponte
passa a água
limpa ou suja
não pára
debaixo dos pés
gruda o pó
de onde vem?
ninguém saberá
TEMPERATURA
inútil pensar
o tempo foge
pelos ralos
da realidade
fútil falar
o tempo arde
na pele
da sensibilidade
LABIRINTO DO SONHO
o labirinto das imagens
perdidas entre vozes
e situações absurdas
que comovem
o labirinto dos arquétipos
misturados entre nós
e vidas estranhas
que lembro
914
a lembrança é frágil
como o vento da noite
na face é quase inexistente
para quem dorme
o sonho
sempre o sonho
CONVENÇÃO MUNDIAL
o calendário amassado na parede
ou no relógio folheado a ouro
passa os dias um a um devagar
sem perguntar se autorizo
o calendário na agenda anual
ou pior: permanente feita para lembrar
o tempo convencional pula rápido
entre o sol que nasce lua que se apaga
o calendário me rouba
a vida e eu me calo
há uma convenção
mundial contra mim
GRÃO DE FÉ
grão de café moído na hora
como o tempo quando visto
seja no papel ou na parede
tem cheiro tem sabor tem vida
grão de fé usada na morte
como o tempo quando perdido
seja na vida bestial ou heróica
tem efeito tem cura tem sorte
915
MIRAGEM DE VIDA
apesar de descer dos mundos
desconhecidos
apesar de contemporâneos
somos estranhos
apesar de querer-te a fundo
descabido
apesar de ser eu apaixonado
somos inabitados
eu não coube
na tua vida
tua vida muita
sobrou na minha
descer novamente
novos mundos
para conhecer-te
no profundo
ESTRELA DE AVIÃO
no avião a lua estava próxima
poderia tocar sua brancura
do distante chão
no avião as estrelas estavam perto
como luzes na ponta da asa
invadindo a imaginação
dentro do avião
as estrelas mais próximas
que todo o real chão
916
TURBULÊNCIA
no espaço sem chão
não há rodas
apenas avião
a turbulência é o barulho
dos 810 km/h rápidos
sem chão
SALIÊNCIA
ar sem chão
turbulência
de avião
ar com chão
saliência
desaceleração
FALÉSIA
gostaria de saber do tempo
das falésias
mas a miséria é muita
elas subsistirão à minha procura
pela tempo absoluto
PRESSÃO
o ouvido não ouve
cheio de pressão
explode em bolhas
de congestão
sinto a cabeça tonta
dentro da aeronave
apenas sei que lá fora
há um ar puro
917
um ar puro
feito o mundo
sem pressão
CINTO
o cinto de segurança aperta no meio
o corpo sente a mão visível de outro
tentando paralisar o movimento
contrário do acidente
o cinto de segurança prende
sinto muito
TREM DE POUSO
o trem de pouso não tem trilho
segue a pista do aeroporto
apenas suporta a todos
a altura foi vencida
MENINAS DE NATAL
as meninas pobres do subúrbio
correm uma atrás da outra e se
escondem atrás das árvores
o dia passa para elas normal
para mim o dia é outro
diferente de outro dia
por isso me perco
na singeleza da cena
a brisa do mar
as meninas
a brincadeira
algo de frágil no ar
918
TURISTA
o turista em passeio não muda a vida de ninguém
nem das árvores
nem das praias
nem dos rios
nem dos pássaros
o turista é apenas um passageiro rápido
tão apressado que sua chegada
é retorno em sete dias
ou oito noites
sempre
eu, turista, não mudo suas vidas
nem poderia para elas sou ninguém
a vida vai continuar a mesma
depois que eu for embora para longe
o mar o mesmo absoluto
as ondas as mesmas pra lá e pra cá
SOL
o sol nasce atrás da vegetação litorânea
o mar avisa ao dia a chegada da renovação
maré alta ou baixa peixes nas redes ou livres
a ponta negra continua bela terminando nervosamente
no morro do careca
o sol está agora entre as últimas nuvens e seu rosto
claro e alvo surge entre os galhos da última árvore
no alto da montanha alta da mata atlântica
eu sei que o dia será renovador e cheio de vida
o sol anuncia uma vida nova sempre
919
FORTALEZA
aquela estrela de cinco pontas no meio do mar
é o forte dos reis magos dos magos da antiguidade
mas os magos antigos sabiam da paz interior
não se preparavam para a guerra
nem para o sangue do inimigo
aquele forte com paredes tão grossas em pedras
tem uma capela bem no meio anunciando a terrível
política estrangeira da cruz e da espada e da morte
o forte é apenas o medo da invasão por todos os lados
os homens ainda fazem guerra
a guerra existe ainda
no mundo
fortes e fracos
no mundo
TAPIOCA
tapioca com carne de sol
e dentro da tapioca fechada
em duas partes iguais
o queijo derretido
a moça da tapioca sorri alegre
a carne tem sol dentro de si
por isso uma luz interior
surge diante da tapioca
A MOÇA
as moças do interior do rio grande do norte
são sorridentes e falam como se houvesse
diante de si uma pessoa sempre importante
tratada com uma superioridade incrível
920
as moças comedoras de camarão
ficam nas calçadas ou pelas ruas
dentro das barracas ou mercados
e têm os olhos puxados como os índios
OUTRORA
para o visitante a vida é outra
passeios e alegria
mas uma vida real prossegue
dura e sem graça
sinto no ar um outro mundo
diverso do meu
sinto no mar uma outra onda
diversa da minha
BUGGY DE NATAL
as rodas traseiras gigantes sobem as dunas
a areia é como gelatina no seu caminho
não há caminho difícil
a trilha é fácil
deslizar lateralmente pelas dunas
ou subir aceleradamente pelo atalho
a emoção do deserto significa muito
para quem sente um grande vazio
o buggy acelera
eu me perco na visão
onírica e ao mesmo tempo
cheia de realismo das dunas
921
SEVERO, O MOTORISTA
severo dirige o buggy
na praia
sob a ponte
nas dunas
a fotografia é o registro
da velocidade
do deserto
nas dunas
MAGNATAS
na praia de jacumã
uma casa chamou a atenção
aristocrática com seguranças
e pessoas vazias tomando champanhe
que se passava ali?
não saberei jamais
nem quero somos apenas
os mesmos em tempos outros
os magnatas das casas
morrerão como os trabalhadores
como as mulheres operárias
como eu pequeno e cheio de prazer
ESSE MAR
esse mar em azul escuro distante
como se captasse dentro de si em espelho
o frescor da nuvem nascida no céu
esse mar que próximo se enverdece
em algas tantas enganando a retina azul
como se uma mata invisível ali habitasse
922
esse mar que amo em tonalidades tantas
no litoral do brasil feito encantamento
de orixá em dia de lua cheia
esse mar me devolve o melhor de mim
nele sou apenas o pequeno ser aprendendo
o mistério dos elementos no absoluto
RESSACA MARINHA
o que houve no fundo do mar
na noite que passou em sonho?
as algas e corais se despediram da vida marinha
a praia se encheu de corpos mortos
desprendendo seu último colorido sorriso
CAJUEIRO
vou estender meu neurônios
numa praia de areia branca
e de vez em quando terei uma ideia
para gerar um fruto colorido
o maior cajueiro do mundo
sou eu quando penso
PITANGA
o potiguar
comedor de camarão
o rio potengi
de camarão tanto
a pitanga doce
de sobremesa
923
CAJÁ
as frutas do litoral são ácidas
de um amarelo extremo
de um vermelho extremo
as frutas do litoral são pequenas
de um tamanho mínimo
de um encanto máximo
as frutas confundem pelo nome
pequi ou cajá?
MENINA DO BALDINHO
a menina de maria chiquinha brincava na praia
seu biquíni amarelo sobre a pela branca de dois anos
emoldurava a tarde em sua infantilidade
ela sustentava a teoria de que poderia fazer uma piscina
cabendo seu corpo minúsculo com a água do mar
carregada num balde cor-de-rosa
seus olhos grandes e negros e brilhantes
não sufocavam a fantasia da brincadeira
ela tão cheia de si diante do mar absoluto
ela tão absoluta na sua fantasia desmedida
ela imitando o mar em seu vai e vem trazendo para o mundo
outras formas de som de volume de colorido
ela ainda não sabe do tempo que o mar ensina
a vida vai levar a fantasia como balde
vai deixar muitas vezes as mãos vazias
para depois com alegria encher novamente
o mar é uma entidade pedagógica ensinando à menina
a eterna menina que um dia sairá do tempo da fantasia
924
a lição do tempo e da onda
da chuva e da semente
um dia a menina de biquíni amarelo saberá do mundo
agora com seu tempo insignificado até mesmo para ela
ela não está nem aí para a filosofia
ela não se preocupa com o tempo
o tempo bate em ondas
e vai continuar batendo
VENDEDOR DE PEIXES
o vendedor de peixes
equilibra-os em feixes
num pau
percorre o calçadão
sem dentes na boca
oferece o fruto do mar
GRÃO DE AREIA
os grãos de areia cada um com seu tempo
unidos nas palmas da minha mão ou
roçando os pés na caminhada matinal
os grãos de areia são tantos e cada um é si mesmo
cada um tem sua cor própria e sua história de movimento
que o mar sabe girar o tempo para fazer a alegria das pedras
quantos tempos diferentes em cada grão
estão enterrados na areia?
na ilusão da areia concreta
erigida em milhões de anos
fragmentos unidos em tempos tantos
925
MAR ALTO
o menino-tempo empina o sol
ele surge como pipa
atrás do morro do careca
e faz do dia de sol
mar que alegra
LIGAÇÃO
os destinos se cruzam na praia
tempos em grãos sobre os pés
[sempre a areia]
como ela somos vários
ligados pelo absoluto
ACELERAÇÃO
dentro do tempo o pior de tudo
é a sensação de sua rapidez
aceleração excessiva
EQUILÍBRIO
a mão do mar conduz o surfista
na linha do seu corpo a onda
o mar absoluto é dono de si
e de todos que estão dentro ou sobre ele
e o equilíbrio é característica do perfeito
926
TOLICE
eu tenho dentro de mim o vazio
o nada nadifica
o mar é todo
o mar pensa o todo sem etapas
ou apenas me aparece assim – como sou tolo!
FALÉSIA
gostaria de saber do tempo
das falésias
mas a miséria é muita
elas subsistirão à minha procura
pela tempo absoluto
MAIS QUE EU
o mar paralisa
se o cabelo alisa
o mar assombra
se o corpo sobra
o mar agita
se o eu gravita
o mar ma habita
mais que eu
ele o mar de nada
absolutamente nada
necessita
927
VAZIO / 2010
O VAZIO É O OPOSTO DO CHEIO
dentro de si num espaço aparente
eu me dou o
cheio
e me dou o
vazio
não sei se há uma vazio por encher
ou um cheio por
esvaziar
eu sou
indeciso
vou buscar nas letras do
verbo
cheio de ação e vazio de poesia
o sentido
vou provocar o vômito do certo
cheio de erros por perto
sem
sen
ti
men
to
não me contentarei com o vazio esse pouco
diante do pleno e cheio e
imenso
que pulsa forte
dentro
928
o cheio ou o vazio
serei eu prestes a
cair
novamente em
poesia?
o vazio ou o cheio
quem está aqui
dentro
quando vem o
receio?
a vida é essa
mistura do
substancial o cheio
e do vago e
imemorial o
sempre estarprestes-a-acontecer
o destino o vazio
da liberdade na
alma
essa alma
terra e mar
céu e inferno
essa alma
dividida entre
bipar] [tida
necessidade e desejo
cheio e
vazio
quero encontrar o
vazio se houver
929
e o cheio já disposto
revisitar
sei que a poesia é
mínima
vou encarar de frente
o cheio
essa lua completa no
céu da boca
esse vento invisível
na pele
e do vazio vou
fazer apologia
ele é
necessário
mais que a
vida
sem ele a vida
não teria seu
tempo
no tempo entendo o vazio
sem vazio não há liberdade
sem vazio
nada há
o cheio e o vazio
o arrepio antes do
frio
o pensamento antes da
ação
eu preciso do vazio
mais que o cheio
estou cheio de
mim
quero que o
930
vazio
livremente me dê
outro que vive em
convento
quero que ele venha
livre por que
único
meu porque interior
do vazio quero
apenas
mais que tudo
dentro
a novidade
dela me faço o bem
o bem que é o vazio
feito realidade
do vazio quero o todo
o absoluto absorvendo
dentro de si meu ser
no final do verso cheio
quero o vazio novo
o novo é sempre
livre
o livre é sempre
o
c
o
vazio do todo
no cheio tolo
o vazio se faz memória no verso da história do tempo do agora
ontem hoje amanhã eu me escorro na dinâmica dos poros do ser
esse vazio chamado existência que se preenche em lacunas de
931
tempo o tempo que rouba do vazio sua liberdade na essência sou
vazio ou cheio? o que é a vida ao seu fim: um cheio que se
preencheu do vazio ou um vazio aberto depois de uma etapa de
enchimento? o vazio é a necessidade da liberdade antes do ato o
fato do tato eu era assim vazio quando livre agora preso sou cheio
de amarras na alma me solte o tempo! me solte o absoluto e me
abandone no vazio vago da onda quebrando sem som sem tom
sem sorte a sorte é uma mera conjunção do vazio que não sabe
para onde vai como eu que de tanto ato sou pouco livre para ser
vazio novamente serei vazio novamente serei completamente
vazio quando cheio dessa vida? que o vazio seja ele mesmo
intenso intenso intenso
ANTES DE SER QUALQUER COISA
quando no tempo dos tempos
ime
mo
riais
perdido na fração quântica do
ser em gestação
na quantidade tanta do
criador múltiplo
dentro de seu pensamento
vagando
era eu vazio
ou cheio?
todo o destino já havia
ali
na gênese da minha origem
da mais primitiva
memória
de mim criado para ser
932
era eu vazio ou
cheio?
se meu destino todo completo
desenhado estava
no livro
das horas do tempo
eu era
eu mesmo ou o vazio?
era eu vazio ou
cheio?
meu deus,
quem me criou
na distância do tempo eu
eu se era eu o mesmo de agora
me perco
seu apenas que dentro de
deus
eu era um fragmento de
destino
um lapso do pouco que agora
sou cheio do muito que estou
eu era vazio mas de
um outro
outro tipo de vazio
era o vazio
do tempo ainda por
passar
o que dói saber que
era puro
o vazio original não
é pecado
nem ao menos pode
ser salvação
933
salva-se no tempo e
pré-criado
como ser uma
liberdade imortal?
das asas do tempo
primeiro
aquele que passou
sem registro
do qual nada sei
sobrou o vazio
o vazio da origem
como ausência
na natureza sempre se é alguma coisa
cheio de vida ou animado o que na prática
ocupa espaço e espaço na natureza é vida
ou morte que é cheia de vida que se foi
o espírito se houve seu início
em tempos
imemoriais sei que esse tempo se tornou
agora carne e na carne estou cheio
de órgãos
que dizem da minha constituição
fí
si
ca
é o corpo matéria perfurado
de vazios
tão grandiosos que são
invisíveis aos olhos
e os olhos se enchem de luz
para enxergar
o cheio enganando porque é
vazio
sei do corpo ocupando espaço
934
mas nem todo espaço é repleto
de alguma coisa e alguma coisa nem sempre
é o cheio se mostrando aos olhos
da vida no corpo sei do cheio
o ar nos
pulmões
o estômago inflado
o intestino em ventos
da vida sei do sangue entupindo
artérias
cheias de tanto líquido arrebentando
em derrame doentio nos
hospitais
o cheio está ocupando todo o
espaço
da vida sei do início no útero
vazio ou cheio quando ninguém dentro?
da vida sei dos corpos na barriga da mãe
vazia ou cheia depois do parto?
da natureza sei que é cheia
o vazio não cabe na vida
mas sem o vazio que seria
da fome?
a fome a primordial
necessidade
é vazio de comida dentro do
corpo
ou a sensação de
enfraquecimento
depressão de vazio dos
nutrientes
935
o corpo é cheio
dele sei muito
sou ele e ele
me contem dentro
do corpo e alma
essa ligação absurda
sei que um enche o outro
mas o bom é o vazio
o vazio da alma sem corpo
vagando em madrugada
nos braços do sonho
que vem como consciência do vazio
a alma esvaziada do
corpo
sem peso sem
necessidades
é livre e por isso sei
profundamente
que deus me criou
livre
por que
vazio
o cheio o estar cheio
veio depois da necessidade
de passar pela experiência do repleto
que é enganação para compreender o vazio
se deus cria cria para a dialética
a oposição eterna entre diferentes
vida e morte qual dos dois
é mais cheio e
936
mais vazio?
do tempo ido
ido em tanto desgaste
esse desgaste chamado
idade
o tempo cheio da vida
pulsante
eu sei que se foram vários
calendários
mas dos calendários
nada sei
é uma convenção que me deixa apenas
sem saber se o que trago aqui dentro
e´ de fato o real o farto o
absolutamene
pleno
do vazio da vida sei tão pouco
o que não foi
o que não ocorreu
o que deixou de ser
o que não fui
o que deixei de fazer
o que foi obstáculo
o que não se deu
o beijo partido
meio vazio
meio cheio
937
a carta de amor pela metade
meio cheia
meio vazia
mas vazia no final
nunca ntregue
o destino há?
cheio desde o início
o projeto de minha estrutura
será que um dia a verei realizada?
e desse projeto absoluto
do absoluto pensando o
finito
serei eu algum momento autor
ou mero ator a representar a
cena?
o destino cheio de
ho
ras
de dias e de noites
tris
tes
para delirar em
fu
tu
ro
a manhã vazia de
so
fri
men
to
é que os dias passados
são pesados e
enfadonhos
o dia seguinte vazio
ainda
938
é sempre promessa
justa
o destino não existe?
se existe até onde eu
posso continuar nesse
sofrimento triste?
se é destino o cheio
cheio desde o início
não há vazio apenas
um roteiro a cumprir
o destino não sou eu
estou de fora dele eu sei
não posso atuar no cheio
eu desejo o vazio
como nunca desejei
eu sei que o vazio sou eu
partes a descobrir
mesmo que sem graça
a alegria é o cheio
da tristeza tola
os opostos não são
necessários
é apenas uma relação
mental
frágil e boba que não se
resolve
a alegria da vida não pode ser
apenas o vazio da tristeza
há algo mais espalhado
939
no sorriso dado
a morte não é o
oposto
da vida que se passa
é algo mais não sabido
repleto de vazio
o não realizado é o vazio?
se vivo e não morro
estou cheio ou prestes
a novos vazios?
onde estou agora meu coração
onde ele está estou eu?
não posso confirmar
a dúvida é a
segurança
do destino
estou tão cheio de mim
de pensar o
ontem e o futuro
esse vácuo incessante
incomoda muito
o vazio não há para quem viveu
eu vivi eu sei que vivi tanto
enchendo de mim mesmo
o vazio que outro
será que dentro desse vazio
que antes nada era já havia
a previsão do agora cheio
do hoje determinado pelo vazio?
da vida passada o tempo
me é o repleto
940
o completo
o cheio
a oposição é frágil
a nada leva a não ser
a certeza própria de quem vive
há em tudo
na vida
no tempo
nas pessoas
nas coisas
o vazio
o vazio ultrapassa o tempo
sobrevive às coisas
sobrepõe às pessoas
é a fissura da realidade
não haveria o agora
sem o vazio
nem o amanhã
já captado sem
o
o
c
o
do tempo
sei do vazio como possibilidade
para o fato das coisas
das pessoas e da natureza
sei do vazio como realidade
941
ainda não completa por fazer
escorrendo entre os
d
e
d
o
s
vazios entre si de carne completa
o tempo é vago
não vazio
o tempo é dado
esvaziado
quando cheio
emparedado
será muro
mudado
o tempo é parceiro
do vazio
como o menino só
sente frio
o tempo é meio termo
cheio e vazio
eu gostaria de preencher
as lacunas das horas
o tempo é sempre por fazer
o vazio ainda por fazer é apenas
vazio e só o nada
é no nada que sei do
vazio não no tempo
que é algo interior
é no nada que esfrio a alma
942
o vazio não tem temperatura
mas arde quando sofro
no nada aprendo sobre o vazio
do nada sai a voz anunciando
é hora de criar a vida
o nada é triste
o vazio é absoluto
no vazio eu sei
do que existe
a casa vazia tem
pa
re
des
por fora aos olhos o cheio
por dentro o oco do es
pa
ço
a
ár
vo
re
é cheia por
fora
não vejo sua seiva e
se seca
ela vazia
morre
o monumento na
aparece do
surge para
praça
vazio
impressionar
943
os olhos tão
contaminados
vê de novo o
na praça
arvores
às vezes
cheios de olhar
por cheios tantos
cheio a constar
o vazio é pouco
preenchem o espaço
com bustos sérios
os bustos do tempo paralisados
entre o
tempo do ontem
e a pretensa homenagem do agora
os bustos nas praças são cheios
não tem para onde ir
não se movimentam
estão parados eternamente
não podem querer
não estão optando
não são
apenas preenchem o vazio da praça
mas não podem usufruir do vazio
esse das almas livres
das almas cheias de espaços ocos
a menina de cabelos
longos
no colo da mãe
ainda
está feliz porque nos braços do tempo
está cheia de
vazios
o vazio de quem nasce é
alegre
mais feliz e completo de quem já
viveu
944
e sabe dos vazios completados na
existência
gostaria tanto de repassar a
sensação
desse frio do vazio na
alma
o tempo ainda puro
sem pecado
ou punição
sei tão pouco desse vazio
distante
perdido entre as alamedas da
memória
não posso recordar do vazio desfeito
quando se deu a
ruptura eu
eu não pensava sobre isso
não registrei o
que se passava
mas passou e
sinto que o
vazio
deixou de ser
ali existente
para ser
esse cheio
cheio de mim
em mim
aqui dentro
poderei fugir?
não posso fugir dos cheios agora
trançados no meu interior
é impossível sustentar-se agora
945
sem as peças cheias de sentido
seria eu mesmo
agora
sem o vazio
desfeito
no tempo da
existência?
não! sei que
não seria
a surpresa vem
desse fato
de ser agora o
pleno
não tão amado
mas
eu
mesmo
eu sei da minha composição
da minha bula eu sou
o meu
remédio
no cheio de agora
sem perspectiva de vazio
eu me
sustento
apesar de cambaleantes as pernas
entre os destinos de tantos amores
a energia do vazio
se foi
o vazio é pleno de vitalidade
ele sustenta invisivelmente
por isso quando o perdi
deixei
de ser outros para ser esse identificado
aqui identificado comigo
mesmo
946
o desejo de vazio melancólico
tão enfadonho que o destino
parece ter sido escrito
antes de mim
e a liberdade
teria
sido
apenas um tema
de canções de amor
ou de livros existencialista
o vazio e o
cheio
minha carne é
essa luta
diária entre
vida e
morte
posso me abandonar?
o vazio diz: mereço crédito
ainda farei grandes coisas
em sua vida enfadonha
posso me libertar do corpo?
o cheio diz:
quero ficar
eu sem sua
carne serei
passado
e voltarei ao vazio
só posso ser pleno
se vivo em sua
carne
serei vazio novamente
se desfeito dessa ligação
mas a alma
dela me lembro
947
ela existe
decerto
ela é a sede do
vazio
e do corpo provisório
deseja se libertar
sem
culpa
para novos vazios
em outros corpos
e outros lugares
distantes do tempo
o tempo é frio demais
para ser esperança
o tempo é pouco por detrás
da lembrança
eu sei da minha
lembrança
cheia na memória
é na memória
que o cheio
pulsa forte que
abala a
verdade
a verdade nada
mais é
que o cheio
falado
se o vazio não
houvesse
948
não haveria
filosofia
não, o cheio é falso
provisório e im
pró
prio
para
a
vida
sim, o vazio é belo
criador da beleza
como ópio
na mente do
torturado
o vazio é minha pele
interna
o cheio é o selo
do medo
o cheio
o vazio
eu no meio
ou para ser exato
eu dentro
do tudo
eu mesmo
o dentro
entro
fico
permaneço
o fora
ora
deixo
enlouqueço
949
DEPOIS DE SER TANTA COISA E DE AMAR
a vida passa
às vezes tão sombria
às vezes tão sóbria
às vezes tão sobra
às vezes tão obra
inacabada
sou um pedreiro nessa construção
diária e repleta desses
vazios
por dentro como um
vão
o vão da obra
inacabada
ou acabada
em vazio
o vazio
perdido
planta
sobre a mesa
cheio de projetos
de ocupação
na tarde quando sopra
um vento estranhoa
vida se dá tão cheia
de compromissose
omisso me retiro para
dentro de mimcheio
ultrapassado e
confuso
a vida cheia de passada
950
contornada por mim
mesmo
em momentos tão vários
variantes sobre o mesmo
tema
a vida
passada
a vida
enchida
a vida
prescrita
a vida
conturbada
sou eu
eu sei... sou eu nessa
tarde morna
amortecendo o
impacto de sonhos
desfeitos
em vazio se bons não
sei
mas vazios
se ruins não sei
encheram as
comportas do ser
hoje eu estou
cheio
tão cheio da
sociedade
e da idade nessa
formação
cheia de pessoas
vazias
951
que não me
preenchem
ao contrário me
deixam de boca
seca
boca seca é
o vazio da
língua sem
palavra
hoje eu entardeci lotado até à boca
como um pote de
minas novas
na argila comprimida no fogo
o fogo da tarde me fez temer
quebrar cada
pedacinho
do inteiro que agora se me apresento
não sei se o cheio
é apenas o enfadonho sentimento
de viver situações imerecidas
daquelas que a vida enche o dia
a vida precisa aprender
a ser mais
se
le
ti
va
sei que a viagem das palavras
é retorno ao
e
qui
li
bri
o
952
mas a vida me leva
pelo braço
e vou por minhas
próprias pernas
me encher
me encher
da rotina dos dias sem graça
e das pessoas que fazem do dia
um dia ainda mais sem graça
a graça da vida é o vazio
estou cheio
não quero descobrir
se suporto estar cheio
o cheio é melancólico
o outro é infernal
o outro é cheio demais
para partilhar com ele
meu
vazio
meu vazio
escorregada pelos dias
há tantos dias
o vazio sou eu
não quero o pleno
o anjo vazio
é mais feliz
o anjo cheio
perdeu a raiz
a vida é esse embolado
de cheio e vazio e o estado
sempre impraticável
do agora
meu vazio
onde andará?
953
por onde
andarei se tão
cheio estou?
tão cheio pobre de mim
que a pobreza é
vazio
e leva para a frente
hoje estou
cheio
sem para onde ir
esse estado de adormecido
apesar de em pé e
dói por que não
para onde fugir
vivo
tenho
para onde ir depois
se a vida me acorrenta
da vida
à existência?
para onde correr se as pernas
que levam para cá e para lá
me condenam a
caminhar
estar caminhando
estar
se olhando
um balaio
cheio
de mortes
o que foi amigo
morto
a que foi a mãe
morta
o que foi o pai
954
morto
a que foi amiga
morta
o cheio é muito para
essa tarde
apenas sei desse
vazio que não é
desse vazio que não
será mais porque
repleto
de conteúdo
o vazio
o amor vazio
tão novo
tão frágil
o amor passado
tão sofrido
engasgado dentro da alma
sem saída para lado algum
o amor preenche tanto
para meu espanto
nunca mais esvaziei a alma
para amar de novo
daquela forma
do jeito inaudito de antes
do primeiro amor
o primeiro amor
é flor
o segundo amor
é dor
contínua
eu não esqueço do
passado
955
ele me retrata mas e
o vazio?
onde estará ainda o
vazio
para ser feliz
novamente?
poderei depois de amar
ser ainda outro
no amor novo
sem precedentes?
o amor é essa tarde
cheia de chuva
de barulho
de absurdo
o amor não me fez bem
não faz agora
queria o vazio de antes
do amor tão passado
para ter esperança
para ter a surpresa
surpresa?
depois de tantos anos
lotando a vida de
ba
ga
gens?
como esvaziar o
conteúdo
da alma lotada de pedregulhos
das praias todas
avistadas
no tempo das férias?
956
amor eu sei da impossibilidade
da fragilidade do tempo
levando
trazendo
novo amor
mas novo amor
agora?
não sei se depois de cheia a alma
poderá chegar ainda um conteúdo
tão simples que me
a jogar fora as tralhas do tempo
adornando as
malas da vida
o amor
novo amor
ainda hoje
ainda há tempo?
impulsione
o amor
renova
ainda
a alma?
não estou cansado do amor
apenas gostaria do amor sem
as tranças
da cabeleira do tempo queria apenas
cabelo liso
o tempo do amor novo
já acabado
findo
de lado deixado
a música no ar
evoca
o silêncio do
vazio
957
do antes da
chuva
o quente
depois do frio
o barulho da manhã
na barriga da mãe
o vazio da visão
dentro da
placenta
os sons da infância
novos libertados do
vazio
mas o vazio ali era
emoção
o cheio de agora é
lotação
o silêncio precedendo
a banda de música
o giro no ar da batuta
a batuta vazia de som
o som depois da
batuta erguida
em compasso de
silêncio
a zoeira do conjunto
na ladeira
o silêncio é
oportunidade
como o vazio
mas depois a alma cheia da melodia
958
a redenção do tempo
o terço evocando
o perdão
mas depois o voltar para casa
dormir em paz e saber
que o dia seguinte estava
cheio
a procissão do ser no mundo
o frio na barriga da morte
o quente da mão da lágrima no rosto
o tempo passa tão
rapidamente
como o vazio se
enche tão
definitivamente
sem retorno
sem entorno
mácula
o tempo
a vida
a existência
o amor
acabado
separado
o cheio
presente
passado
o vazio
futuro
eu
dividido
farto cheio
959
O CHEIO É OPOSTO AO VAZIO E VICE-VERSA
no cheio vago dentro
como se da noite escura tirasse o claro
da lua surgindo no horizonte
bem tarde da madrugada
eu sei das horas passadas
dos vazios e dos cheios
na taquicardia do tempo
passando desafinado na alma
mas sei do vazio ainda constante
mesmo que ultrapassado de vida
o cheio me é um dado
prefiro o não dado
o vazio
absurdo
o vazio sou eu
ainda por fazer
o cheio sou eu
feito
acabado sem
saber
o cheio e o
vazio
são lados
da vida
da vida
passada
futura
960
ESPELHO / 2010
ESPELHO
estava parado diante do espelho
não sabia da vida estacionada
diante da própria imagem frágil
sabia apenas de mim em corpo antigo
estava entregue ao tempo e isso
foi se misturando com os dias
e os dias foram se mostrando
quem habita o corpo diante
do espelho
no espelho
sou espelho
SITUAÇÃO DE SONO
não procuro no sonho
ninguém
nada
mas vem
não imagino situações
absolutamente
mas tem
quem
o sonho me faz
outro no sono
não sei se isso
é real ou não
961
PUDERA
mendigo do dia
o sentido
preciso do dia
o digo
gostaria do dia
a fantasia
CHEGADA DO TRABALHO
quando a pipa recebeu do céu
azul quase azul em fim de tarde
autorização para o vôo ocasional
quando do céu a rabiola da pipa
branca agitou-se por causa do vento
a meditação seguiu em espiral
quando na tarde depois da chuva
a pipa cor-de-rosa de rabiola branca
voou dentro de mim eu fui embora para casa
COR DO QUE SE FOI
o arco-íris depois da chuva
medindo a curva da terra
eu de relance percebi
cores novas em mim
dores mortas enfim
algo novo acontece
não sei quando
vem sem aviso
962
algo de velho morre
sei que foi hoje
foi sem sentido
o arco-íris não sabe de nada
nem das cores novas em mim
ele só sabe da chuva que sem ela
ele, que é choro de chuva,
não teria começo só fim
ESTOURO
do jeito que vai
vai apenas e sai
e sai apenas e ai
a vida é correria
do jeito que estou
não sei se vou
ou fico ou sou
a vida é estouro
ANTI-ESPELHO
a escuridão me trouxe o dia
não a sombria manhã que ela estava bela
e o sol fazia no rosto um espelho contrário
iluminando a escuridão sem nenhum sucesso
eu não acordei espelho do dia
antes o dia se pareceu um oposto
como a sombra da lua imersa na noite
contrasta com o lado iluminado pelo sol
hoje acordei inverso
963
COISA
das coisas que duras permanecem
eu as vejo mutantes
entre tantas
outras coisas
errantes
das coisas que pesadas enrijecem
eu as vejo antes
entre outras
várias coisas
pedantes
das coisas que ásperas entristecem
eu as vejo rolantes
entre muitas
tantas coisas
quebrantes
MUDANÇA
da despedida guardo
a memória limpa
e purificada por ter
vindo afinal para cá
da tristeza de quando
antes de ser agora
eu aguardo outro tanto
de mudança de endereço
964
ALTURA
ponto final não há
nem poderia
sou letra maiúscula
a começar
a palavra
solta pelo ar
eu viajo nas alturas
do começo de despontar
eu sou como a chuva do alto
para o alto sempre feita
para o alto bem alto
voltar
NÃO
não resolvi meu coração
para a tristeza
mesa sem pão
não permiti meu coração
fincar um ponto fixo
sou mutação
não insisti em solidão
sou mais que o tempo
da pouca paixão
não investi em reflexão
quero ser apenas pouco
com muito de intenção
apenas eu
ação
965
AFLORAÇÃO
os óculos tirados
deixados sobre a mesa
em descanso
para as vistas
a mente livre
leve e revolta
ao mesmo tempo
em tudo
eu sou poesia
quando
despido da lente
de fora
eu sou poema
quando
poesia de dentro
aflora
OBRA
nem poderia estar
eu me ausento
de vez
em quando
eu fujo para ficar
quieto dentro
e por fora
sem barulho
966
eu prefiro manifestar
em mim eu mesmo
em sonho de palavra
meu sonho é palavra
e não sonho senão
dentro do tempo
esse tempo
vão interior
O TEMPO NO ESPELHO
o espelho é a vida
dada em sua franqueza
diante dos olhos
mesmo cansados
o espelho é agora
dado em sua fraqueza
das mãos tolas
sem argumento
eu me vejo em tempos tantos
e me vejo vendo outros cenários
se vou chegar a percebê-los não sei
vale o espelho como exercício contra o medo
não, eu não parei de sonhar
eu tenho quadros de miragem
antes aqueles que chegaram até aqui
minha mente caminha com espelhos eternos
não, eu desejo esquecer a vida
eu quero me espelhar no passado
sem sombras nem ofuscação
967
eu preciso do espelho do tempo
eu sei da hora passada em frente de mim
ou em busca de mim mesmo sem fim
eu sei que a mente me engana
mas sei da minha imagem
gostaria de passar pelo espelho
sem que dele viesse o tempo
gostaria de brincar para sempre
do tempo de crescimento
o tempo espelhado na vida
se faz idade e da idade retiro
o som dos ossos gemendo
procurando a melhor imagem
eu não sei se o espelho mente
se a vida é uma mentira sórdida
sei que do tempo em imagens tantas
eu me faço espelho de agora
eu não posso saber da próxima imagem
que o tempo vagueia pela vida antes da pose
eu sei apenas das horas programando
encontros com meus novos rostos vistos
eu sou espelho de dentro
se revirando para fora
eu sou onda do tempo
passando imagem pura
que o espelho me seja amigo
como o tempo me faz companhia
que o espelho me corrija o erro
da rota dos dias vazios
968
PRESENÇA
no silêncio posterior a nós
das vozes caladas na noite
eu sinto o imponderável
quando vejo seus olhos
no silêncio depois vida
das almas silenciadas
eu sinto a existência
continuando forte
eu amo o silêncio
da declaração de amor
sem palavras
somente presença
TODO
dos rostos no espelho
da rainha
do rei
dos rostos no tempo
da freira
do frei
eu sei da parte
do todo
só deus
969
ANTES E DEPOIS
o vento sem barulho
é presença do absoluto
a chuva sem bonança
é ausência do orgulho
o silêncio dos dias
me dá a paz
a verdade das vidas
capaz me faz
o vento antes da chuva
o silêncio antes da verdade
a vida é assim
antes e depois
CERCADO
o tempo entre nós
é cercado de mistério
deixemos a cerca
aprisionar a paixão
o silêncio entre nós
é cercado de pretérito
deixemos a cerca
amordaçar a sensação
970
ROMPIMENTO
da palavra
acho que não
do verbo
faço que sim
substantivo
sentimento
adjetivo
rompimento
CHAVE
vou para a cama
dormir um pouco
antes do dia acabar
com voz rouca
vou me apagar
a vela da consciência
brilhou demais
quanta paciência
vou me retirar
fechar a porta
jogar a chave
nos lençóis
depois eu encontro
depois eu acho
a chave de fora
971
UMA HORA DE SONHO
son
o
son
o
son
o
son
o
TEMPO E ESPELHO
no espelho da vida
visada do tempo
eu sei que hoje
risada do ontem
no espelho do tempo
há vida que passa
há também eu mesmo
parado quando do fato
o espelho não mente
apenas e somente
sou eu no tempo
presente
972
RESULTA DA POESIA
da bela flor
resulta a boa semente
da tela em flor
delira a sábia mente
da grande árvore
desfruta da altura o pássaro
da fronte altiva
desnuda o sábio realidade
belas e grandes
mentes sábias
fazem um mundo
de sensibilidade
SONORIDADE EXISTENCIAL
na tarde amassada feito papel inútil ao fim do dia
eu me vejo em necessidades tantas não sei até
até quando essa alternativa de esconder o som interior
será possível não sei se conseguirei esconder de mim
a música reflete na parede os acordes de ternura
ou ainda de mutilações da vida feitas pelo amor
eu escuto e não me encontro entre as notas da tarde
essa tarde me parece uma outra imagem do meu interior
eu sei que há horas em que o tempo é inútil
não nego a beleza da vida que vaga sem tempo
o sem tempo do estar em si presente e vendo a si mesmo
na solidão o único invólucro que a vida me dá agora
eu sei muito bem eu sei das horas de fim e reinício
hoje o medo de que eu esteja entardecendo por dentro
973
veio me levando para caminhos antes desconhecidos
é que a idade é uma prisão sem volta do hábito cotidiano
não posso me furtar de saber quem sou eu e somos tantos
perdidos em olhares de espelhos tantos e ocos e fartos
essa vastidão de sins e nãos que passam pelo rosto
como brisa silenciosa que é apesar de singela
eu sei não me posso deixar sem pensamento ele vem
e me rouba e me confessa a mim mesmo quem sou
não, não sei, porque exatamente agora no fim de tarde
entre um minuto vago e uma hora estúpida eu me vi
eu me vi cheio de palavras interiores e de vazios externos
não sei nada da vida e da vida vivida pouco entendo
sou apenas agora meu espelho sem avesso eu sou
apenas essa miragem de sonoridade interior
eu sou apenas o que pensa o mundo
e do mundo faz o conteúdo de si
para não dizer a verdade hoje
eu faria qualquer coisa
mas não posso eu me vejo fazendo alguma coisa
e não posso os cabelos agitados pelo vento me falam
me amordaçam à realidade essa prisão do tempo
de um tempo ecoando dentro de mim feito maldição
quem sou eu?
talvez o que se faz
sem saber se fazendo
e já feito
que estou eu?
talvez o que jaz
974
sem saber jazendo
e já jazido
eu que pergunto
respondo em alto som
na tarde dada por fora
porque dentro sou noite
[a estranha noite escura
a misteriosa noite densa
de mim mesmo com sons
de desespero de ser si mesmo]
AGORA
de lado apenas
virado o rosto
no travesseiro
nu na noite
o rosto triste
a noite longa
a lágrima pura
sou da noite
a briga continua
ecos de palavras
o pensamento
é prisão de palavra
a noite de lua
muda a fase
quisera eu
mudar agora
975
MUNDÃO
o mundo pulsa
como eu pulso
compulsão
o mundo gira
como eu giro
girassol
DELÍRIO
ela disse ainda sob o efeito da medicação
de um modo tão espontâneo
que por um momento
breve feito picada de seringa
acreditei no seu delírio
voltei no tempo
ela disse: moro lá embaixo no botavira
e o botavira da infância surgiu diante
bem diante dos olhos de nós
mas ela estava em outra cidade
no hospital que não era a casa de caridade
e seu braço em soro escorria
o botavira virou delírio
na tarde quente
de fritar miolos
FRIO NA BARRIGA
o frio na barriga
esse precede o fim
da linha do trem
do trem do dia
976
esse dia ordinário
como outro dia
desnecessário
esse dia impróprio
como aquele dia
óbvio
o frio na barriga
processo do sim
de ontem e agora
começo de fim
ESPELHO DE BANHEIRO
o espelho do banheiro
é fumê
nele eu me vejo
não você
o delírio do corpo
prazer
nele estou sozinho
sem você
o espelho embaçado
por todos os lados
na mente um passado
você do meu lado
ESPONJA
na minha casa
de gente miúda
era comum
muito comum mesmo
977
dividir o sabonete
a esponja
fosse sintética
ou de bucha natural
na minha casa
era comum
tão comum e normal
tomar banho junto
para passar o tempo
a vida o pecado
fosse de dia
ou em alta noite
FRONTEIRA
o espelho verdadeiro foi seus olhos
aqueles perdidos na paisagem interior
como se eu caminhasse léguas e léguas
e nunca alcançasse
eu nunca alcancei a verdade de seus olhos
distantes feito vento rodopiando no mar
e eu na montanha no meio do mundo
longe de seu mundo de além-mar
voltarei ainda várias vezes
em eras das eras perdidas
vou atravessar sua fronteira
e encontrar minha verdade
o meu espelho é você
sempre você
para sempre
você
978
MIRAGEM
a miragem do sonho
na vida passando
é seus olhos dentro
dos meus inteiros
próximos
a ponto de cegar
as horas
passageiras
ótimos
a ponto de chegar
no fundo
da alma
REFLEXÃO
o mar é azul
espelho de iemanjá
virado para o teto
do oposto do mar
o retrovisor do carro
é espelho do longe
o raio da bicicleta
movimenta o tempo
o rio calmo
é espelho do céu
o frio intenso
miragem de véu
979
INTERPRETAÇÃO
no barulho do mar
reage o ouvido
faz dentro
pensar
na vibração do vento
reage a pele
faz sempre
arrepiar
eu repouso
na noite
depois do dia
interpretar
RESSONHO
das horas reponho na estante
o sonho por mais estranho
amanhã eu sei se sei talvez
a vida será ressonhar
SENTIDO
os sentidos são espelhos
do mundo lá fora
transformam
em ideias
dentro
a caneta
o papel
a seta
o anel
980
os sentidos são reflexos
do mundo todo
interpretam
em mentiras
centro
o menino
a maçã
o piriquito
a manhã
os sentidos são mentais
levam para dentro
o que por fora
atrai
QUATRO
o fogo pode dar sinal
se do alto visto
o fogo pode ser final
de noite
a água pode afogar
se dentro do corpo
a água pode matar
fatal
a terra pode sustentar
se a casa se edifica
a terra pode deslizar
mumifica
o ar pode engasgar
se entrar errado
o ar pode acabar
sepultado
981
MUDEZ
o espelho não fala
apenas reflete
se eu fosse espelho
seria mais feliz
sem espelho
não haveria
a palavra
muda
sem espelho
não teria
a palavra
surda
o espelho não dialoga
apenas transfere
para os olhos
o movimento
OBJETO DE TEMPO
para trocar de roupa
espremer o cravo
conferir a ruga
lugar certo
espelho
indicado
por especialistas
para observar as pintas
passar o creme
escovar os dentes
lugar perto
espelho
indicado
por existencialistas
982
CRIAÇÃO
o homem
imagem
semelhança
de deus
o deus
contrário
diferença
dos seus
espelho?
RAPIDEZ
a vida no corpo
esse momentâneo
e estranho sentimento
uma prisão instantânea
vai ser rápida
vai ser breve
sei do tempo
passando
vai ser ágil
vai ser leve
sei do ermo
ficando
ERRO
das horas perdidas
da vida feridas
ficaram no corpo
a alma se vai
983
libertando
todo dia
comemoro a ida
está chegando a hora
da saída
flutuando
a morte
não é nada
sei da vida
nada exata
errando
INTEIRO
a chuva fina
na madrugada
consola a mente
deitada no travesseiro
a lua cheia
da hora tardia
aumenta a tristeza
da mente sabendo do meio
a vida quando
em processo de vida
é lenta demais
para ser inteira
ESPELHO DE FOME
os olhos da abelha
espelham as flores
os olhos dos pardais
984
espreitam as cores
nos bichos
os olhos
são aptos
ao espelho
a natureza
alimenta
por que
é espelho
a fome
precisa de espelho
o alimento
na fonte
DIA
o dia corre tanto
em coisas tão vagas
não é o mar
no seu ritmo claro
é o dia
com seu cinismo chato
o dia passa ligeiro
em falas tão ácidas
não é o almoço
é o dia
com seu apetite de asco
985
CANSAÇO
cansado de corpo e alma
me ausento durante o sono
quando retomo a consciência
me custa
a identidade o tempo a calma
ausentes das horas cotidianas
quando perco minha vontade
me assusto
haverá em outro canto
outro eu pronto?
haverá de novo o encanto
meu sem pranto?
FOTOGRAFIA
as fotografias são espelhos do tempo
os sorrisos desbotados
os abraços depois do clique
o registro eterno da situação
espelhos do tempo na gaveta
ou nos álbuns de família
ou no arquivo digital
vistos no momento lacrimal
a vida na fotografia
é espelho da família
daquela que passou
como o tempo usado
fotografias
são espelhos
do tempo
986
SALA DE ESPELHOS
a vida
espelhos em brincadeira
sou tantos
sou vários
formatos múltiplos
gordo
magro
grande
pequeno
informe
cabeça para baixo
espelhos em brincadeira
numa sala ampla
o tempo muda
a cena
o corpo
a mente
a vida
AMOR TORTO
na hora errada
não se cala o coração
na vez da traição
morro estafado
pequenas traições
é o sonho da perfeição
no amor que rola breve
entre os dedos
as feridas incicatrizáveis
o peito batendo em terremoto
a língua afiada para machucar
gostaria de acabar com a cena
987
pequenas traições
sentir-se atraído
para lugar nenhum
o amor é torto
O ESPELHO E O VENTO
o lago parado
o dia em azul
tudo calmo
o rio sereno
o dia em domingo
muito fácil
vem o vento
no lago
azul borrado
passa o vento
no rio
serenidade breve
MARCA
a página do livro
o espelho é a mente
se mentira dentro
da mente depende
a televisão em cores
o espelho é o cérebro
se conteúdo doente
o aumento é da lente
vejo os objetos do mundo
há neles uma intencionalidade
se espelhar fundo na alma
deixando marcas
988
INFINITO
o infinito não é espelho
não me vejo dentro
não consigo mirar
o incontável
deus é infinito
o universo é infinito
[onde haverá um espelho
para o corpo?]
VÍTIMA DO TEMPO
quando as vistas cansadas
e as pernas atravessando o samba
quando a chuva sem som na janela
e eu perdido em olhar tonto
o tempo
serei a vítima
do tempo
ele terá passado por todo meu organismo
deixando as marcas fundas da existência
e eu cedido ao tempo sem volta
VIDRO DE LOJA
na rua a loja de vidro temperado
lá dentro o ar condicionado
refrigera a alma
os carros passam refletidos
no vidro com a propaganda
estampada em cor de rosa
989
o dia se passa em espelho
a rua é um movimento
de reflexos agitados
a loja continua parada
o movimento é o espelho
o mundo do lado de fora
MÚSICA
a música toma conta do espaço
que pertencia à sua imagem
um novo rumo toma o pensamento
e eu que pensava em saudade
o ritmo da música cria outra esfera
nela circulo com novo humo
uma novidade em cada nota
e eu que pensava no fim do amor
SÍSMICO
o poema é reflexo
do perplexo
eu cismo
sísmico
o poema é espelho
do recente
eu mimo
mímico
990
NÃO QUERO VER
não atravesso diante do espelho
se não quero me enxergar
não grito diante da caverna
se não quero me ouvir
eu prefiro me ocultar
quando nada
quero ouvir
ou enxergar
por isso prefiro
a ausência
do espelho
INFÂNCIA
a infância jogou as redes
ainda caio nos medos
de uma vida
ignorante
a infância deixou fraturas
ainda cedo aos medos
de um dia
o antes
a infância é espelho
da alma agora
infelizmente
nessa hora
991
REFLEXO SEM VISÃO
quantos reflexos dentro dos olhos
molhados na manhã dos dias
não viram imagem dentro
da mente?
MEMÓRIA ESPELHO DE MIM
eu puxo a mão da memória para não perder a imagem de
quem sou diante do espelho de mim mesmo
não quero impor a ninguém um corpo e uma alma sem noção
de si mesmos
OLHOS DO LAGO
o espelho da natureza é invertido
o dia ensolarado vira em instantes
chuva de granizo por sobre os quintais
apagando o sol que antes iluminava
o rio cheio de água na estação das chuvas
se enfraquece no inverno que é frio
lá na montanha o rio cheio é espelho
do peixe em desespero
na natureza os reflexos são invertidos
em opostos de seco e molhado
em sol e chuva por todos os lados
nos olhos do lado
992
O QUE
o que muda
ficou um tempo
igual
senão seria outro
afinal
o que luta
venceu um pouco
parcial
senão seria derrota
total
o que vive
foi um instante
inicial
senão seria morto
final
OPOSIÇÃO
o diferente de mim
é o mar
o dado em movimento
mais que o ar
o oposto de mim
é o amar
o feito em sentimento
mais que raciocinar
993
ESPELHO FIXO PASSADO
não voltarei ao passado
mas ele insiste em ficar
dentro de mim
rachado
não gostarei do deixado
mas ele persiste em falar
algo por mim
calado
o passado é o pesadelo
do espelho ainda vivo
mesmo quebrado
REFLEXO INTERIOR
a filosofia me desconfia
o reflexo me esvazia
o niilismo é futuro
que a mão tecia
a filosofia me desafia
o reflexo me sacia
o psiquismo é turvo
sou eu à luz do dia
OPOSIÇÃO
amor
espelho máximo
da dor?
de que lado
se dá o reflexo?
994
se soubesse
quebraria o inverso
o sonho do oposto
é ser sem oposição
ENQUANTO
enquanto o corpo joga para fora
o tempo em pele e ruga
o vento em sopro quente
a vida em células mortas
enquanto o corpo jorra a cada hora
o passado em doença e cirurgia
o erro em palavras de chumbo
você em lembranças de versos
enquanto a alma se depura
na angústia do corpo morrendo
eu vou me lembrando sempre
de você no meu espelho
SEREIA
a sereia se olha no espelho
ela tem passado como eu?
a calda
é a calda da sereia
o seu passado
achei a resposta
a sereia tem calda
que se arrasta
mais que meu passado
apenas imagem
995
a calda
a calda da sereia
divide sua existência
ela bem se parece comigo
mas ela vai morrer meio a meio
gente e peixe
eu vou morrer três a três
passado presente futuro
a sereia se olha no espelho
ela tem passado como eu
MONÓCULO
o monóculo da festa do rosário
foi o primeiro espelho da idade
visto depois de muitos anos
ele ainda é uma novidade
o monóculo tem uma criança
pareço eu ainda em tempos outros
com outras pessoas em tempos idos
ele ainda sou eu em outra cidade
GATO
o cheiro do gato morto
na esquina no lote vago
é espelho final
da vida
toda em saltos
brincadeiras?
pulo do gato
onde andará
o morto do gato?
996
ASA
a asa se equilibra na outra asa
o pássaro tem duas asas
se tivesse apenas uma
não voaria
uma tem a mesma força da outra
o pássaro tem duas asas
se uma fosse mais forte
do chão não sairia
CONDIÇÃO
hoje eu acordei arisco
com medo de repetir
o dia de ontem
reflexo condicionado
DURMO
a noite sem lua
sonho sem limite
imagem perfeita
cara no travesseiro
a noite dá o sonho
o melhor espelho
de todos os espelhos
o sonho leve e frágil
997
HOJE
hoje é feriado
nada a fazer
um bom poema
sai sem dor
como a prece
na noite é forte
de manhã tem
pouco calor
POMBO
vi um pombo morto no chão
não era um pombo
era um sapato
os olhos espelharam errado
para a mente vagando
de dia de sábado
o espelho
se confunde
SONHAÇÃO
na cama a alma rodopia
em sonho que arrasta
para lá da imaginação
nunca soube do sonho
com explicação
a alma se revela outra
e sem espelho vaga
pelas ideias efêmeras
998
pelos universos paralelos
sem complicação
complicado
é acordar
MOSTEIRO
eu poderia prender os pés no vento
para sair da realidade mas não
o vento passa racional
e não sei voar
sem asas
eu queria estar em vários lugares
no alto da montanha um mosteiro
a fé é tão passional
e não sei calar
palavras
ENVELOPE
dentro do envelope pardo
é escuro é claro
não sei não vejo
dentro do envelope vazio
o ar preenche o espaço
simulo não percebo
dentro do envelope tem papel
a palavra lá dentro
enche demais
999
VAZIOOIZAV
o espaço vazio
cheio de ar
o copo vazio
cheio de ar
há paradoxo
na visão do espelho
a mente
mente
não sente
o ente
como se deve
a mente
é crente
se depende
não sabe
realmente
LÁGRIMA
a lágrima reflete
o mundo à sua volta
mas seu mundo
não está em volta
vem de dentro
de mim
como a lágrima
me reflete
sem ela
não sabedoria
das dores
de dentro
1000
CALMA
o arrepio percorre
o corpo
fiação elétrica
dentro
é a alma
o pensamento morre
no tempo
mudança dos ventos
dentro
é a calma
RENOVA
sorrio da angústia
aquela que matava
o tempo novo
é o sorriso
pleno
dos mais plenos dados
vem como uma paz
depois do combate
em guerra sangrenta
vem como uma chuva
depois do calor ofegante
dos poros abertos suados
sorrio da angústia
é o tempo
renovado
o tempo
renova
sempre
1001
AJUNTAMENTO
a palavra escrita
não seria nada
sem a folha branca
no fundo
a palavra proscrita
não seria vil
sem pensamento
do mundo
a palavra espiritual
não seria útil
sem esclarecimento
do estamos juntos
a palavra
semeia
a alma
ajunta
RELAMPEJO
a cidade é um relâmpago
cenas variadas
vividas anonimamente
a menina olhando para a vitrine
o sorvete derretido no chão
o pombo comendo a pipoca
a sacola cheia de biscoitos finos
pessoas em tempestade
as vidas são trovões
quando juntas
1002
SAÍDA
a sala tem quatro paredes
eu entro e saio
entre elas
pela porta
a toca tem um caminho
o coelho entra e sai
dentro dele
pelo oco
há saída
eu sei
há saída
VISÃO
o livro é espelho
do livre
a geladeira é espelho
do frio
a menina é espelho
da mãe
a televisão é espelho
do fel
há espelhos por todos os lados
de que lado eu quero estar?
vendo
visto
1003
PENSAMENTO
penso tanto
mas não sei se penso
para trás ou para frente
o pensamento tem sentido?
penso tanto
às vezes direita às vezes esquerda
para ditadura ou democracia
o pensamento é opção?
penso pouco
quando caminho
preciso só das pernas
não da vida em fé
o pensamento é vazio?
penso pouco
quando durmo
preciso só dos olhos
fechados sem nexo
o pensamento é solidão?
PO[SSIBILIDADE]
dessas ligações misteriosas
não sei explicar
um livro antigo na estante
vira pó
palavra vira pó
1004
desses silêncios misteriosos
não sei ouvir
a mensagem escrita nas pirâmides
vira pó
construção vira pó
DO SILÊNCIO
para Samantha
das areias da praia
carrego o silêncio
o silêncio absurdo
do absoluto
das montanhas
almejo o silêncio
o silêncio obscuro
do concreto
dos amores
desejo o silêncio
o silêncio puro
do infinito
dos livros
recebo o silêncio
o silêncio profundo
do desconhecido
das vidas
recolho o silêncio
o silêncio chocante
do recomeço
1005
VIDA
chegar?
a vida é uma corrida
não sei quando começou
e tenho um lugar
para terminar?
ficar?
a morte é um obstáculo
não sei quando virá
e tenho um medo
de findar?
CONTAGEM
conto de um a dez
o tempo não muda
conto outra vez
desisto da luta
o tempo
não pára
quando
conto
o tempo
prossegue
quando
conto
1006
MÃOS
prezo as mãos
uma de cada lado
em proporção
rezo com as mãos
juntas no centro
em oração
imploro pelas mãos
levadas ao céu
em depressão
as mãos são mensagens
espelhos fixos
do coração
ENFIM
o fim não existe
há apenas o fingimento
de que o tempo parou
por um momento
há tempos não finjo
sinto as cordas do tempo
rígidas pelo corpo
estou preso
o fim
fim
1007
DA MORTE
as pessoas mortas
que fazem ainda?
a saudade da presença
é toda pequena e torta
o invisível atrás da porta
mesmo não visto há
PALAVRA MUTANTE
o corpo de ontem
não tem agora
o mesmo sentido
a palavra mudou
tudo
o homem de hoje
é outro do início
outro significado
a palavra mexeu
em tudo
TATOO
não sabia da saudade
o reflexo da memória
mais doloroso
que tatuagem
1008
SEMPRE
crio nas voltas da mente
a vontade de ser sempre
UNIDADE
a mão direita sabe sempre
o que faz a mão esquerda
não poderia ser diferente
na unidade
O VERBO
semeio a palavra
entre a substância
e o ouvido
faço verbo
e o verbo se fez carne
O VENTO TEM VÁRIAS FACES
soltei o poema pelo ar
para alimentar o vento
com palavras de amor
o amor sempre vale
a tempestade
1009
HUMANO / 2011
ANJO DE[CAÍDO]
das nuvens
num dia de sol
veio o homem
para a terra
sem asas
nu em pelo
pronto para ser
o que fosse
de longe
não se sabe de onde
o homem chegou
com sua loucura
diversas faces
cobrem o homem
com nuvens escuras
dentro de si
veio para voar
sem limite
pelo mundo
de fora
um dia voltando
para as nuvens
do pobre engano
de voar tão alto
aguarda
as asas
crescerem
feito anjo
decaído?
1010
ETERNIDADE
o céu se abre
é o sorriso
as nuvens
abrem
a boca
mostram
os dentes
a alma se abre
é a vida
as lembranças
retornam
como o tempo
demonstra
a eternidade
O SER
das coisas da alma
amontoado de bagagens
estantes cheias de lições
vidas passadas
vida real
das coisas da alma
erros em viagens
distâncias não percorridas
pessoas esquecidas
vida atual
o ser é humano
o ser é espírito
1011
CORPO
o corpo é humano
tem dentro de si
o mesmo
a pele por fora
por dentro
o ser
os olhos que olham
por fora de si
o mundo
o corpo é humano
tem por dentro
e por fora sentido
TRAGÉDIA
a tragédia está no ar
quando o humano
se faz tempo
e lugar
a tragédia faz contar
os mortos
os corpos
embalsamar
a tragédia é o fato
contado em lágrimas
na tele da televisão
ampliada no jornal
a tragédia
é um evento
humano
[ontem 111 presos foram mortos no carandiru
hoje quantos morrerão tragicamente?]
1012
HUMANIDADE
em mim toda a humanidade passa
como brisa suave em mim todos os dias
nos poros na consciência sou eu humano
todo e pleno humano em todas as horas
todos os momentos da vida até aqui
fui humano em sentimento em medos
em tristezas em esperança
e fui mais longe quis ser eu mesmo
a humanidade passa dentro de mim em mensagens
de grandes pensadores alguns tristes alguns felizes
mas todos como eu de uma humanidade na veia
como um sangue povoado de passado e tradição
ser humano todos os dias pela manhã
ao colocar a roupa da cultura da fala do eu
a identidade do humano em mim surge
ressurge se reconfigura se renova
a humanidade em mim mês faz eu mesmo
como se dela dependesse para ser pleno
e a plenitude é o sonho maior da humanidade
em mim quando acordo
a vida já me acordou tantas vezes e me revisitei
porque no humano de cada dia em vozes várias
eu sei que o tempo é maior ensinamento
nele sou de fato o humano de mim mesmo
1013
a herança
o legado
sou eu mesmo
humanizado
não há outra maneira de ser sem ser eu mesmo humano
dolorosamente humano
prezeirosamente humano
ser humano é o melhor dos fardos
não sei ser outro sem ser humano primeiro
é como se a humanidade se escorresse em mim
feito água benta nas pias batismais desde cedo
o humano em mim respira cumplicidade
o humano em mim
é todo o humano assim
feito um projeto
se realizando
do jeito possível
da forma imprevista
do jeito único
de responder ao tempo
o humano de cada um
é apenas o jeito de ser
compreendido
nas várias formas de se fazer
ser humano
tantas formas de ser
dentro da humanidade
em mim
1014
DOR
a dor do outro
é o outro em falta
de si ou sendo si
na falta do todo
a via crucis da vida
é a outra vida que salta
dentro da vida que alta
se afasta da felicidade
a dor cabe no outro
se cabe no torto além
cabe aqui dentro porém
é desejo pouco
a dor do outro
é sempre oposto
um desejo forte
de não ser em si
PERDIÇÃO
a inconsciência sabendo-se perdido
incapaz de reencontrar o norte
é um ato de desespero
humano sempre humano
a negação do si estando ser
eficaz forma de oposição
da humanidade de dentro
deixando-se de lado
a humanidade é um moeda
de dois lados opostos
na mesma vida
perder-se? achar-se?
1015
RAÇA
a raça tem cor na pele
os olhos assim enxergam
por trás dos olhos vendo
há mente pensando
quando somos raciais
no momento de olhar
ou na cor que criamos
dentro de nós?
CRIANÇA
a criança no colo da mãe
sorridente leva em si o mundo
entre o corpo crescendo
e a cultura existente
será ela um dia humana
ou já humana está?
que dizer das crianças
adultos desumanos?
[onde erramos?]
COMICHÃO
a hora passa
a perna coça
o tempo roça
o caminho da-se
a situação
é condição
do tempo
comichão
1016
SOLENIDADE
a vida não tem fundo
se dá a cada dia
entre os muros
do mundo
a vida não sabe de si
eu sei da lida
quando penso
no tempo em mim
o tempo acaba com a vida
tão solenemente
me acho
humano
TOQUE
toque de recolher
é a tarde fechando
os olhos do dia
quero me preparar
para adormecer
não quero viver a noite
hoje o dia foi nobre
e o rei do dia fui eu
a noite me traz o frio
1017
MORRO
a notícia chegou
tragédia humana
nas encostas do morro
o morro matou
cansado de ficar
de pé
como pode o morro
saber do humano
-cansado da vida?
o morro resolveu
descansar e levou
com ele muitas vidas
SILÊNCIO INTERIOR
a solidão não fala
ao contrário se cala
dentro do diálogo
interior
não há conversa
na solidão o outro
que sempre fica
não resta
a solidão impõe
silêncio interior
1018
NITERÓI
o cachorro saiu do meio
dos escombros
das casas ruídas
da lama
e os seres humanos?
muitos ainda estão
soterrados no tempo
o corpo é morto
[há um cheiro de morte no ar]
HUMAN
humano
man
ano
mano
DEPOIS
depois que a noite se foi
o dia nunca mais foi
o mesmo
tudo muda
eu como a noite que se foi
fui me encontrar entre tantos
diversos
tudo altera
[a vida é dinâmica
feito o sonho na cama
rotação]
1019
REPOUSO
a cidade ainda se debatia
raivosa e fétida
quando eu ainda
distante de toda realidade
exceto a minha interior
dormia
ROLAÇÃO
afinal, o humano
na chapa quente da vida
na lapa densa do dia
afinal, o humano
homem e mulher
rolando feito pedra
um sobre o outro
afinal, eu humano
no humano do mundo
mundo miúdo onde
rola a vida sobre todos
LADO
o lado da sombra
é o meio da luz
se revelar
revelar?
o lado da claridade
é o meio da sombra
se acabar
iluminar?
1020
METADE
humano
no fundo
é homem
homem no fundo é vazio
vazio
metade do cheio
ainda por ser
NÚMERO
ai
vai
por
todo
lugar
ar
por
todo
vai
ai
SOBRA
o que parece
carece
de explicação
o que resta
está
sob utilização
o que sou
ou
é ou será
o que conta
onda
quebra no mar
1021
AMOR
que toda planta
verde azul ou amarela
toda árvore
pequena média e grande
possa dar flor
que todo ser humano
possa ter amor
FILÓSOFO
o pensamento é a tarefa
não o ar quente nos pés
o filósofo é ser humano
que lembra o dentro
o interior em caverna de razão
o exterior em engano da sensibilidade
a vida passada em ética de gestos nobres
a morte na dialética do tempo mutante
o pensamento
é a obra prima
de dentro e na voz
do filósofo
OBSTÁCULO
assim como o rio
possa a vida do humano
ser profunda se necessário
rasa se ditar o tempo
mas que seja em obstáculos
dando no absoluto
1022
ASA
as asas não as tenho
mas para que asas
se tenho o pensamento
e o coração pulsando
em cada letra da sua voz?
as asas não as quero
para ficar mais perto
para sempre junto de tudo
ou do nada que se parece obscuro
em cada nota do tempo na vida
VERDADE HUMANA
os pés e os braços
sempre busquei
o amor distante
e quando perto
achei que mentia
para mim e para os pés e os braços
em presença e abraço
mentira existe quando?
quando sei que a vida
é assim em mistério
de tempo em à toa seguindo
quando descubro o peito
sei que reside aí em mim
como sempre em verdade
1023
[AMAR]RAR-SE
o amor define o humano
não o cansaço do dia
em final de jornada
nem o galope das horas
em relógio terminando
o turno da fábrica
o amor define o humano
na pequena vida emoldurada
em tons de vermelho é a paixão
o rosto vermelho diante do outro
o outro sem vergonha presente em nudez
tão pura como se não houvesse adão e eva
o amor somente ele define o humano
as loucuras os dramas as cartas
os encontros as despedidas os poemas
e nisso tudo a fragilidade boba do momento
dizendo vai passar vai passar vai passar
mas quero eu preciso loucamente AMAR
MÉDICO
nasci nas mãos do homem
chorei o primeiro desencanto
nas mãos que não me amavam
mas já traziam para a realidade da vida
um homem de branco tão alvo
como nuvem caminhando pelo hospital
ou como um anjo desolador anunciando o fim
o médico é um recurso humano ao humano
1024
para doença de amor sei que não há cura
mas para doença de corpo finito rápido
fugindo da via curta e breve e fugaz
sei que pode haver remédio
medo
médico
remédio
remédico
LUZ
apaguei as luzes da sala
do quarto e do banheiro
sobrou a imagem do dia
claro feito um sol nascente
a luz me atravessa e cria
na memória do dia a luz
inventada para mostrar
a realidade em volta e dentro
tenho a luz diante dos olhos
por ela o humano se faz certo
sou apenas agora um jogo de luz
as sombras são os resquícios do tempo
ENGENHEIRO
a casa sai de um rabisco
o prédio em estruturas
sobe antes como ideia
em cálculos precisos
o vazio se preenche
com matemática
1025
e geometria e o cheio
se edifica em paredes
o homem pensa a casa
desde os tempos remotos
e sua engenharia se ergue
de dentro para fora
FIM
não me chamei
mas vim assim mesmo
para encontrar entre gemidos
a voz de dentro pulsando vida
não me interroguei
mas afirmei assim mesmo
o jeito de moldar o destino
meu apenas meu de mais ninguém
não me engracei
pelo contrário, sempre sério
fui me encontrar entre as teorias
de um ceticismo arrogante e vazio
eu sempre soube de mim
entre os caminhos do tempo
esse tempo frágil que domina
tudo em mim e vai ter um fim sempre um fim
FOGO DE SAUDADE
os pés ainda estão na mesma posição
amarrados esperando o algoz acender
o fogo para consumir o corpo todo
para arder de amor de puro amor
1026
até hoje aguardo as horas trazerem
o vento calmo para diminuir a saudade
mas vem o cheiro do silêncio e a noite
se torna novamente vaga feito onda sem mim
aguardo ansiosamente por sua presença
entrando por todos os espaços da alma
essa que habita você e no entanto nunca
nunca conduziu seu corpo para meus braços
um tempo infinito se passou entre as pernas
deixou os passos tontos e perdidos nos anos
e as primaveras com seus perfumes se foram
sem fazer sequer um barulho de sua voz
onde está o sonho do encontro
senão aqui na memória apagada
de um casamento sem álbum de fotografias
ou de fotografias sem a imagem do amor
sinto sua ausência como um fogo que não destrói
antes constrói a dor empilhando em mim o não-ser
o não-sentir o não vazio da voz rouca sem tom
o não que ecoa em minha memória como recordação
não poderei perdoar o tempo pelo fogo
minha alma arde sem se perder e não
não posso me calar diante de sua lembrança
preciso do verso para expurgar a dor
mais uma vez você é uma dor em mim
1027
FOLHA
do verso em flor na folha
pétalas sem cor do tempo
faço novamente o poema
sem remendo
no verso em dor na tarde
dias sem frescor na vida
faço temporariamente o lema
eu arrependo
VIDA INTERIOR
amo o que de dentro se expõe
ou se esconde em desejo
infantil
amo a alma que brota do vaso
em raízes fundas no corpo
ardil
amo a palavra somente pensada
como uma folha prensada na tipografia
dando vida ao texto
amo sua vida interior porque sei
nela eu vivo ainda apesar do tempo
esquecendo nossa fantasia
OBSCURO
a nuvem não chove
nunca chove água
ela esconde em si
o vazio que a move
1028
o sol não aquece
nunca esquenta
ele esconde o frio
por dentro da pele
o arrepio da água
não nunca teve
nunca há frio
mesmo se neve
CAMINHO
quando sair pela porta
e os pés jamais mirarem
o caminho antes tantas
tantas vezes percorrido
o caminho entre o desejo
e o seu chão profundo
marcando o vago e triste
coração
quando sair e for embora
para nunca mais me abandone
a mim mesmo me deixe
preciso reaprender a viver
esquecer das horas tristes
de amor miúdo que não cresce
antes, bem antes, murcha e desce
para o buraco da tristeza
sair deixe minha alma se libertar
por favor me abandone a mim
sem pedir para voltar pelo caminho
onde um dia de mim me perdi
1029
TANTO
os homens foram meninos
e tiveram sonhos
e ilusões de vida
e de ótica
os homens foram meninas
que deixaram o tempo
entre os cabelos crescer
e se cortar para renascer
os homens foram tantos
o mundo dos humanos
é um tanto de tantos tantos
que hoje me espanto
fui humano
sou humano
um tanto do
tanto de outro tanto
O PADRE
o padre é do interior
tão interior e vazio
que vive na casa paroquial
onde a vida é artificial
eu sempre vi o padre
como oco por dentro
e cheio de dogmas
por fora
nunca vi um padre
feliz e sorridente
os dentes da alma
não existem
1030
RASO
raso muito raso
hoje sem profundidade
esgotado no tempo
estou cansado
raso como o rio seco
longe das chuvas
chuvas densas e fortes
da montanha azulada
raso como o campo
secando na tarde quente
sem ventos brandos puros
para espalhar o orvalho na noite
raso tão raso que pena
hoje não há profundidade
estou rastejando em mim
sem lugar para mergulhar
hoje estou raso
sem fundo
o outro agora
é realidade
MEMORIAZINHA
a palavra não alivia
a voz muda calada
é essa memória fria
a estrada se apaga
na forma e no conteúdo
sempre o tempo mudo
1031
o cheiro de seu corpo
não sei onde encontra
eu me fui sem retorno
há passado e há palavras
hoje sou sem passado
doem apenas as falácias
BATIDA
o tempo bate
pelo corpo
para lembrar
à sonolenta alma
é hora
é dia
é mês
é ano
é ano do novo
é ano de ser
só e simplesmente
humano
PÉ NO CHÃO
no mar se banha na praia
em alto mar não é possível
colocar os pés no chão
para sentir o coração da terra
1032
COMUM
o pingo do ser é o humano
no límpido oceano
vida em comum
o mundo
a faísca do ser é o humano
no infinito abismo
vida comungada
no mundo
IMAGEM
durante o sonho não sei de mim
sei do paradigma da noite
fazer-se símbolo oculto
para ensinar o bruto
a vida no sonho é cifrada
em código tão poderoso
dentro de si se perde
não tenho chave
o sonho é um catálogo
de aberrações em cores
o sonho não traz a paz
muito menos melhor me faz
o sonho adormece
por alguns instantes
o barulho do pensamento
contínuo dizendo de mim de mim de mim
1033
CORPO
tu o corpo
tu mesmo o outro
fora de mim e tanto
preso em imagem
dentro de mim
feito todo
tu o corpo
o pobre corpo
sofrido e condoído
mas sempre amado
sempre amado
como hoje
tu o corpo
diante dos olhos
amado e fundo
pequeno e mudo
sem sentido
lembrado
tu o corpo
o mesmo há muito
a ermo o lembrado
dentro do tempo
mesmo passado
dentro ficado
tu o corpo
amado e eterno
frágil e externo
muito de mim
em mim dado
cabendo na vida
1034
tu o corpo
o outro corpo
desejado na noite
apegado aos sentidos
eu sei de tu corpo
mais que do o meu
tu corpo
pobre corpo preso
no tempo do relógio
não sei onde vou parar
a memória apaga
suas curvas
tu corpo
amado corpo
lembrado fruto
das horas em passado
das horas em marasmo
tu corpo nunca meu
tu corpo
onde estás agora
vive em mim todo
todo está longe
como nuvem passando
sem saber onde
tu corpo
amei tu
no corpo
tu sopro
brisa leve
morto
1035
DIA IDO
o dia apressado
corrido entre atos
perdido no espaço
o dia acelerado
despido entre dados
batido em passo
o dia se foi
leve em tarde
sem fim e noite
sem mim
ESPERA
enquanto espero da água a fervura
do café o sabor de fim de tarde
enquanto espero a lua para ser noite
e da noite o ser fim de dia para ser saudade
eu me mostro no espelho da vida
humano diante do tempo
TEMPO CANSADO
a sombra da árvore não é fria
nem quente como o peito
amando diariamente
a noite com lua não é bela
nem feia como o passado
irretocável
eu sei do tempo
entre sombra
entre noite
cansado
1036
ESTRELA
a estrela fitada longe
como e do universo
viesse um grito forte
de não sei onde
a estrela pequena ponte
entre o espaço interno
e o espaço infinito
do nem tudo se pode
PLÁGIO
não posso parar
preciso permitir
a ascensão em mim
da novidade
não posso calar
necessito coagir
o impulso de morte
sem atividade
sei da vida hoje
mais que passado
ontem e ontem não
não tem plágio
LUTO
a notícia suja do jornal sujo
se espalha pelo ar da casa
os mortos a morte o furto
1037
a notícia não é boa é sempre
uma maldade velada no real
não há realidade fácil
a notícia ocupa espaço no fim do dia
mais que toda alegria a notícia vem
fechar com luto a vida passando
SORRISO
o sorriso no rosto
prendo-me nele
satisfação
a tristeza na face
fujo-me dela
ingratidão
MEMÓRIA E HISTÓRIA
a voz ecoando forte
a memória é som
que não cessa
a dor bailando tonta
a história é curva
que não fecha
CONSOLAÇÃO
do vento esse vento de viver
não parando não deixando de ser
apenas o barulho do encontro
entre tantos a ausência é o frio
1038
o vento assoprando na nuca
o tempo vai apagado como rastro
de animal em extinção e farto
de ser inteiro
o silêncio do vento me isola
mas a saudade do tempo
essa saudade oca de sentido
me consola
ACORDO
o corpo renovado pelo sono
ou pela ilusão do pleno
volta ao mundo
sério
o corpo amenizado do peso
ou pelo vazio da noite
retorna ao dia
frágil
VIDA
não posso dizer
as palavras fugidias
estabelecem um vácuo entre
eu e minha pobre vida
não posso fingir
as situações indubitáveis
criam o senso de realidade entre
eu e minha triste lida
1039
DANÇA DAS HORAS
a liberdade de coçar a ferida
é dentro do ser a própria tarefa
quando amar desejo é outra coisa
a ferida é externa e somos feridos
a liberdade de expressão da alegria
é de dentro para fora quase sempre
mas o silêncio da alegria contida
é tão funda que vem como um vulcão
ser livre de mim não posso
agarro meu corpo
pego a mão
e me guio
sou apenas a liberdade
momentânea no corpo
nada mais que corpo
na dança das horas
QUESTÃO
por que quando se sabe o que dizer
alguém em nós nos obriga a não dizer?
é defeito de nascimento ou será imperfeito
o crescimento de dentro?
ORÁCULO
dos muitos dentro
me perco entre o essencial
o que decide
1040
dos vários por fazer
me deixo sempre no final
inacabado
dos outros a se apresentar
me faço silêncio absoluto
espetacular
eu sei de mim
apenas o que estou
secular
eu quero em mim
outros de dentro para fora
oracular
ENQUANTO DER
se eu me deixar
de lado
vou para onde
acabo?
se eu chorar
fraco
virá um outro
chato?
se eu quiser pouco
virá um outro
tão intenso
a cobrar?
eu não vou me deixar
vou ficar comigo
enquanto der
1041
ASPEREZA
da saudade essa palavra áspera
guardo na ponta da língua o adeus
que não foi meu nem seu
foi do tempo
VAZIO COMO EU
subjuguei a vitória do amor
ele nunca vence apenas
convence por um instante
condenei o tempo ao amor
como se eterno ele fosse
apesar de estar em mim
fechei a janela da alma
para ver se me recapturava
pouco adiantou
o amor é vazio
assim como eu
RESMUNGO
coço a cabeça
esfrego os olhos
resmungo versos
você não volta
1042
HUMANITAS
do humano o tempo
atravessa a vida
de cabo a rabo
não sou gato
do humano a vida
em três tempos
ida e volta
não sou bumerangue
do humano a história
em acontecimentos
notórios e secretos
não sou museu
do humano a memória
dos aborrecimentos
internos e familiares
não sou livro
sou humano
apenas humano
corpo e alma
na terra
FIM
quero uma casa no campo
frio que nem pranto
e patos na lagoa
para me espanto
1043
quero uma noite seguida
de um belo dia
e chatos à distância
do meu recanto
quero um lugar longe
tão longe que possa
na curva do caminho
esquecer de mim
que tudo tem fim
que tudo tem fim
em mim
em mim
AMOR E DOR
depois do amor
do suor e da flor
não sei de mim
fiquei pelo quarto
pelo ato
perdido
depois da dor
da carta de amor
não quero em mim
resposta me aparto
do fato
doído
1044
HORÁRIO
às 11 horas eu passarei por lá
não sei se poderei voltar
mas vou passar
o corpo pede
vou me apresentar diante de você
e pedir sua atenção e seu amor
e todas as delicadezas profundas
exigidas pelo amor
o amor exigiu sempre muito de mim
de você não sei nem posso saber
sua alma é controversa
e eu sou apenas do verso
o amor é a causa
do poeta
é o que resta
é o que fica
às 11 horas estarei diante de você
DEBAIXO DA PELE
debaixo da pele
capto sua mão
no corpo
sensação
debaixo da pele
ouço sua voz
nos poros
tensão
debaixo da pele
sinto seu calor
pela alma
sei do amor
1045
QUANTO VALE?
dos versos nunca recebi o valor
deles eu tive apenas o retorno
da voz ecoando dias depois
em humano calor
o verso humaniza
o valor ai está
SAPATEIRO
o sapateiro raimundo no banquinho
colando o couro e o salto
diante da praça
naqueles tempos infantis
o aluguel na praça
era de graça
o banquinho do sapateiro era de couro
em tiras trançadas e pregadas
para sustentar seu peso
o sapateiro raimundo
estará para sempre
no cenário
da praça grande e alta
da infância lenta e calma
do interior
CHAPA
o chapa de caminhão estende a lona
ocupa a rua com sua arte de dobrar
a lona amarela e espessa do caminhão
carregado de mercadorias da capital
1046
o chapa de caminhão fica na rodoviária
esperando o tempo de ser contratado
o tempo à toa vigilância astuta
para o equilíbrio das contas de casa
MENINAS DA ROÇA
as meninas da roça
trabalham nas casas
as casas de família
para estudar
as meninas da roça
são retintas e belas
trabalham o dia todo
cultivando a vida
as meninas da roça
são exportadas
vão para a cidade
perder a inocência
as meninas da roça
são domésticas
e sabem a arte
da troca
DAS COISAS
o que revolta a água no copo
é o que vem de fora
o estado interior do vazio
é sempre equilíbrio
o que provoca o furacão
é o que vem do encontro
o estado dúbio das coisas
é sempre violência
1047
NÃO-SER
a luz atinge a retina
não sei da sombra
ela se foi
nunca
a luz retinge a memória
uma vez lá dentro
eternamente
fato
eu sou a luz da minha luz
não posso passar a vida
em função da escuridão
do não-ser
FENDA
a casa do carro é a garagem
a saudade da volta
é viagem
a cama do gado é pastagem
a saudade da gota
é estiagem
DIA DESSES
dia desses vou correr pela casa e encontrar os vazios do
cômodo e revesti-los de palavras tão gritadas que não haverá
átomo na estrutura que não vibre pessoa em volta que não se
incomode pensamento posterior que não sorria (no fundo eu
mesmo)
dia desses vou dar de cara comigo mesmo e soltar uma
gargalhada tão afetuosa que não vai restar dúvida da lucidez do
1048
momento eu diante do espelho e o espelho sendo o mesmo que a
ermo viveu tanto tempo procurando um dia desses
um dia desses
dia desses eu vou fazer coisas absurdas para rir depois
um dia desses
vou experimentar o equilíbrio da loucura e das asas
um dia desses
eu vou me descompor para aparecer livre do outro lado
MELANCOLIA
voltar eu não vou voltar
vou ficar olhando o tempo
ou o relógio a tagarelar
bem no alto da torre
voltar eu não vou voltar
vou me devotar apenas
ao de sempre de outro jeito
o modo de ser apenas
melancolia
TINTURARIA
vou jogar tintas nos versos
acabar com a clareza da rima
colocar na rua o bloco inteiro
das palavras vesgas do pensar
não quero versos claros e distintos
quero poesia multicolorida
sem anestesia no início
inícios onde apenas vem fim
1049
PULSOS
os meus dois pulsos cortados
por causa do seu silêncio mórbido
RASGO
o rasgo entre os viadutos
a gota da chuva agarrada
ela cai e nada acontece
o sofrimento é humano
VIOLÊNCIA
lá fora entre os carros
há um que de absurdo
no crime
lá fora entre os faróis
há um que de desumano
no filme
o humano está
violento demais
CANDURA
a ternura da manhã
ainda divagando
a noite passada
em neblina
a candura do sabiá
acordado pelo sol
cântico alegre
no fio de alta tensão
1050
SINTO MUITO
o que se passa entre o tempo do ontem entre as sombrias
esquinas da vida
o que se tornou e nunca mais será um sonho esse delírio de
realização em pleno processo de existência
o que ficou marcado nas horas idas e tidas e retidas na
inconsistência da memória fraca dos dias
fui eu passado
como o sol esfriando
entre o tempo da explosão
e o agora adormecendo no espaço
entre as coisas do passado e os gastos traços do presente eu
rasgo a carta da saudade
entre as palavras malditas da noite escura da alma eu nego
sobriamente que houve você
não houve você
sinto muito
não houve nós
sinto muito
ficarei eu apenas
na noite e sem drama
catando os pedaços
do tempo
E SERÁ?
a fogueira de milho verde e dos hippies em volta
queima e arde e fere ainda os olhos
mais que a loucura do que nunca foi
prefiro o delírio do que ainda não é
e será?
1051
VENTRÍLOQUO
o homem ainda está lá contando causos
no meio do dia e da praça
o homem com o boneco no colo
ventríloquo é marionete com mão dentro
por dentro do boneco vive marionete
o feminino do humano
ESPANTO
a humanidade está cansada
falta espaço para tanto sonho
ou há muito espaço para o espanto?
a humanidade caminha
cansada e sem modos
pelo espaço
BRINCADEIRA
depois da infância vem outra brincadeira
o confiar em si mesmo apesar do medo
depois da infância vem outra besteira
o desconfiar do passado que aqui me trouxe
depois de alguns anos passados
o tempo se esgota na noite
e a noite revira o tempo
da infância morta
1052
TIETA
tieta ainda vive no alto do botavira
exibindo das tetas o prazer
aos rapazes de família
tieta fez sua família com vários homens
e de cada um ela arrancou um nome
dos rapazes de família
tieta não tem filhos sem pai
tem filhos de mãe
mãe de família
ESCRITURÁRIO
ele não dá sua mão para ninguém
e se acontece socialmente
ele corre e lava
com sabonete
tempos do banco
o dinheiro sujo
ficou na memória
do escriturário
ele não oferece a mão para ninguém
só escuta música porque o som
não produz sujeira
que se possa lavar
SENHORA DO CARMO
quando eu voltar já velho para a cidade interior
vou encomendar uma imagem de
nossa senhora do carmo
para cláudio de joaquim soldado
só assim vou acreditar em deus só assim
1053
TRÊS
a árvore diante do chafariz sem água
bem em frente da escola infantil
quebrou seus galhos na tempestade
nunca mais foi a mesma
o chafariz um dia secou
a escola cresceu seus alunos
a árvore perdeu seus galhos
eu passei e sobrevivi aos três
ser humano
ser passado
ESTAR ENTRE
entre o silêncio da folha caindo
e do tempo em vento nas folhas
prefiro o torpor da hora chegando
silenciosa
pouco a pouco
sem demora
no tempo certo
depois de ser
realidade
entre o silêncio das horas deixando
a vida em total abandono e da morte
chegando em sua totalidade
prefiro a deferência
da sabedoria
construindo novos rumos
para os rumos desarrumados
da vida passageira
e necessária
1054
BEIJO QUENTE
não provoque a sede na boca
os beijos são quentes demais
e posso necessitar ainda mais
da sua presença aqui e agora
MÁQUINA DE ESCREVER
tenho saudades da máquina de escrever
da campainha anunciando sempre
faltam apenas 10 toques para o fim
tenho saudades do papel correndo
de um lado para outro e do mecanismo
do barulhento mecanismo das teclas
a máquina de escrever
fez parte do ontem
não ficou tecla sobre tecla
DAS MORTES
das mortes nas guerras
quantas terão sido por medo
da vida?
das mortes dos suicidas
quantas não deverão ocorrer
por medo da vida?
NOVA HUMANIDADE
uma nova humanidade
renovada em espírito
estará próxima
ou distante?
dos absurdos humanos
um cansaço se evidencia
a paciência se esgota
1055
entre uma e outra notícia
uma nova humanidade
remoçada nos objetivos
estará nascendo
ou repetindo erros?
COLETIVO
o coletivo é o mais difícil
o bem coletivo é o mais raro
ainda estamos nus na nossa escuridão
a solidariedade se espalha
mas ainda é frágil e pouca
ainda fazemos jus à nossa divisão
SERRO
vou passear no canto da praia mas antes vou passar por
debaixo da grande árvore da santa casa e depois vou lembrar do
necrotério que ali havia e que aterroriza a infância
vou sentir o frio da madrugada voltando da casa no
botavira entre mandalas coloridas e músicas e frases de jane entre
machu pichu e a patagônia
um dia eu ainda vou lá acompanhar o pôr-do-sol entre a
camada de gelo mais primitiva do planeta e entre razões pessoais
para acreditar na humanidade
um dia eu vou me abandonar sob a lua cheia – a segunda,
azul! – no gramado da igreja do rosário em milho verde e vou
perder a vergonha de dizer a verdade para mim mesmo
um dia eu farei o que quero mesmo que seja um erro
mesmo que seja desespero mesmo que seja inteiramente serro
1056
ENTRE DOIS PONTOS DA MESMA VIDA / 2011
A PARTIR DE UM PONTO
estou ainda paralisado pela beleza do
outro mundo
não o meu mundo inteiro e cotidiano da
vida interiorana
de um canto de minas gerais tão absurdamente
pequeno
que me caibo ainda nele
estou perplexo diante da beleza do
monumental
de outras construções dos metrôs na
rua e pedestres
desse mundo outro das
estações de trens gigantes
e da pequenez horripilante em que me encontrava
embarquei pela porta
da frente do sonho e
me dei
me dei o tempo de ser
outro estrangeiro e
incrédulo
desconfiado e
aterrorizado com a
inutilidade banal
da minha presença
naqueles lugares
um dia eu ingressei em outro mundo
e me saí sujo
como um poema gullariano nascido
da indignação
1057
mas a sujeira era essa lembrança
estonteante do grande
e do infinitamente pequeno
diante de si
esse eu que vive em mim
estrangeiro sem fim
de rotas confusas
de mapas perdidos
esse eu que se
confunde comigo
quando falo ou
quando pergunto
para achar resposta
para o silêncio
esse silêncio que é
meu próprio tudo
esse eu que
viajante em
terras outras
encontrou na
fissura da vida
um outro
perdido em
tempos tontos e
preteridos
que ouvia ainda
os sons que não
se ouvem mais
numa europa outra de outro tempo dado
o tempo é navegação
a ermo sempre
ou sempre determinado quando presente
porque achamos que
ele é determinação
1058
numa europa confusa dos
imigrantes confusos
dos indianos dos paquistaneses dos africanos
e de mim um brasileiro com olhar miúdo
diante de um mundo gigante para entender
quem era eu olhando para os monumentos
era apenas rememoração ou tolo sentimento
era um olhar novo ou redescoberta do dado
mudado no tempo das cidades eternas?
só sei que
pensamento
foi de um
ponto
a outro ponto
da mesma vida
em poucos
dias
dias de alma e
não de corpo
dias de
caminhada e
não de
repouso
eu precisava passar pelas ruas
pelos quarteirões tortos e pelas estátuas
ainda presentes entre uma
ponte e outra
e mirar as montanhas mesmo
dentro do trem
eu precisava acelerar a memória para reviver
e não pensar em nada em não sentir o porquê
1059
o porquê da vida é sempre uma
operação chata
e enfadonha é a saudade que trago
em mim
de um ponto ao outro ponto geográfico
fugindo do espaço apertado do cotidiano
eu fui para outro ponto da mesma
vida
para acalmar o tempo absoluto em
mim
de um ponto ao outro ponto da mesma vida
saí em busca do roteiro imaginado antes
e durante cada curva me revelou de
mim
o melhor de cada momento
eu essa companhia interessante quando junto
e companhia divergente quando luto
contra os medos que me atam
ao aqui e agora
eu essa bigamia de alma sem saber quem manda
e se sabe se orienta depois desdiz e se espanta
porque das horas sei da mutação essa
que vi
em forma de cidade civilizada em
monumentos
da minha alma tentei
curar a o tempo
1060
mas as nuvens da
europa me
devolveram o dado
em outros tempos
percorridos com
tantos lados
mas ao meu lado não
havia ninguém de
outro tempo
apenas eu mesmo
me procurando
que essa procura eu
sei e sinto é minha
que essa procura
alucinante eu faço
e tenho prazer em
despertar todo dia
querendo mais da
vida que de mim algo
querendo mais do
mundo que de mim
pouco
estou vazio e penso
pouco só lembro
da saudade condoída
de europa na alma
esse ponto em que me encontro é pouco
outro ponto em que me desloco é louco
e todos não chegam nem partem são tortos
porque sei que o certo é um destino
sem graça
eu fui e voltei para dentro
e de dentro me faço memória
e poesia que essa é companheira
1061
da alma repleta do grande monumento
o maior dos monumentos
o melhor dos monumentos
o mais estranho monumento
a saudade
essa que não se afasta e vem
e cola e cala e passa e tem
uma vida própria em mim
uma morte nunca realizada
a saudade é a outra
margem da viagem
essa que começa em
vazio de paisagem
e quando se vê há um
colossal registro
de datas e cheiros e
horas e medos
passados
eu passei de um ponto
ao outro da mesma
vida
e não me agito
interiormente por isso
sei que sempre
quando chega a hora
da partida é melhor
ceder
que relutar em beber a
mesma água dos dias
um ponto ao outro ponto da mesma vida
uma viagem interna dentro da mesma visão
dos olhos meus agora que são admiração
desse sonho interessante que é a memória
1062
os lugares continuam lá
mas eu me mudei de ponto
se quiser me encontrem longe
de mim mesmo
não sou mais o mesmo
estou há quilômetros de mim
perdido e achado aqui
no fundo do meu silêncio
BELO HORIZONTE
o bairro é pequeno
como eu sou pequeno
saio do bairro para
a rodoviária
da linha verde há uma
ligação
entre um ponto e outro da viagem
a conexão entre o chão e o ar
entre o plano e o alto
entre a terra e o céu
no aeroporto tancredo neves
as aeronaves chegavam e partiam
um ritmo frenético de pontos outros
de vidas tantas misturadas
no saguão do aeroporto
1063
eu peguei o vento oposto da imaginação
o caderno de poemas e me pus ali
meditando sobre o tempo que flui
não entre as coisas
mas entre os fatos
não entre mim e mim mesmo
mas os pontos de mim que se opõem
confins é um
aeroporto em
formato
círculo
mas do círculo
não se fecha a
curvatura
como o
universo que
depois de
aberto se fecha
para sempre
na antimatéria
do buraco
negro
em confins
começou a
viagem de um
ponto
para outro ponto
fora como se
dentro eu
me deslocasse
para não sei
onde
apesar do
mapa
1064
SÃO PAULO
entre belo horizonte e são paulo
não há uma turbulência sequer
nuvens que me levam para dentro
tão fundo em mim que pareço ser
apenas vácuo
entre são paulo e
mim
nada existe senão a
janela
do avião no alto e a
menina
lendo um mangá na
poltrona à frente
entre são paulo e mim
não existe empatia apenas pausa
para o estresse comum às grandes viagens
como se todos resolvessem num dia
viajar juntos
entre são paulo
e
mim
há um ponto de intercessão funesto
acabado em embarque demorado
ou free shopping de chocolate suíço
entre são paulo e
todos os outros
anônimos visto por
minha lente
nada há senão um relógio chegando
na hora de entrar pela imigração
hora de embarcar no
vôo da air france
hora de acomodar-se
entre poltronas
hora de escolher o silêncio chato
1065
da mente em turbina acelerado
e como não se espantar com
o âmbar
escorrendo entre as casas
paulistas
em amarelo sanguinário espanto
de ver que na rua o ar baila
e nas casas os moradores
parados
são invisíveis por causa dos
telhados avermelhados
em barroco sentimento guardados como se o tempo
no vôo fosse apenas tempo de esquecer o terreno
o âmbar do alto conectando
as casas
o escuro e o quase ouro
invisível
distribuindo na noite de partida
a riqueza que penso ser minha agora
não a riqueza dos tripulantes
servida em objetos de
plástico
nem do ravióli descongelado
tão insosso que pensei no Brasil
mas estava ainda no Brasil
me apontava o visor de vôo
mas como ainda no Brasil
se não sou ave do céu?
estava já em outro lugar
um ponto de outro ponto
deslocado como se houvesse
o avesso de mim dissipado
1066
a antilhesa em francês
estrangeiro
me serviu a noite como única
possibilidade
e degustei o momento em caderno aberto
em meio às emoções confusas de um longo vôo
PARIS
não sei como estou diante da cidade
mas ainda me vejo ali sempre
quando a saudade acompanha na noite
o ritmo do tempo adormecido em emoções inválidas
ou se valeram não posso
dizer apenas
da noite trago o fogo da
emoção
essa que se perde quando se
chega de novo
como se nunca dali tivessse
saído
a alma se sentiu em casa
e nunca estive tão bem
diante da cidade das luzes
das luzes
interiores
eu sei que não há conotação prévia para o acaso
nem entonação própria para a música que acompanha
mas sei que edith piaf
nunca foi tão real
1067
quando como cheguei
ao montmartre
do alto vendo paris
em céu azul
e do céu azul vendome livre
o vôo do tempo era a
alternativa para
mordaça
inquietante da rotina
da vida de trabalho
no montmartre as árvores altas de verde
claro
deixavam os ventos passarem em verão e
calor
e a música dos violinos da sacre coeur
ecoam forte
em moonlight serenade em fim de tarde
as praças fechadas em tantas grades
as fontes de água pura e os pombos
e sempre uma estátua a admirar petrificada
as pessoas passando
em tempo de flâneur
de manhã o vento frio ainda
adormecia a memória
do dia anterior de uma viagem às
pressas de sensações
eu nunca fui de correr sempre optei pela
contemplação
1068
mas a alma exigia revisitar os lugares os
monumentos
quando adentrando o cemitiére pére lachaise
a morte chegou pelo som dos corvos e pelos
mausoléus
cobertos de lembranças tristes e felizes de
outros tempos
quando nas árvores o tempo enviava
mensagens de boas vindas
como se aos vivos os mortos quisessem
roubar o tempo
das possibilidades e do porvir que parece
ser o futuro
quando de mapa nas mãos e o coração pulsando
adentrando a avenida dos combatentes da segunda guerra
e das diversas tragédias humanas em nome da paz
quando à esquerda me virei e
em esquina se deu o busto
em dólmen de allan kardec o
coração reviveu tempos de
druidas
dos druidas que um dia
resolveram erguer
stonehenge
e foram se achegando o ateu e a brasileira na manhã
que anunciava um dia de quarenta graus e de pés cansados
1069
e fui percorrendo em sensações de tempo passado as ruas e
alamedas
dos mortos famosos e anônimos ricos e miseráveis
a miséria da alma é uma lembrança para todo o
sempre
e fui me deixando envolver pela sensação de abandono
a sensação individualizante da morte à qual a resposta
é de cada um apenas no silêncio dos dias
e fui arrastado pela rua gambetta passando pelo crematório
onde as cinzas de tantos serão a única recordação
de um corpo que não resiste às emoções do futuro
a sombria visita não assombra quem medo da morte
não cultiva já que é bestial antecipar o que não
sabemos
se será ainda cedo ou tarde arrastado pela dor física
a manhã de paris é como uma
noite bem dormida ainda
as lojas ainda fechadas e
apenas os cafés recebendo
leitores
para um tempo
compartilhando das letras a
notícia
nunca saberei
o prazer de ler jornal
pela manhã
o dia em fresca bruma começa sempre em metrô
os jardins de verão ainda repletos de cores
e os pardais dançando nas gramas
1070
nunca saberei
o prazer de ler jornal
na praça
entre as ruas de
paris ou por sobre
a pont neuf
pouco sabia de
mim agora dado
em tempo
sabia de outro em
outro dado
momento
entre as faces
renovadas de homens
e mulheres
pouco nutria de
sensibilidade agora
meu tempo
pulsava outro em
outra vida perdida e
dada
entre os artistas do sacre coeur ou do quai antoine
não achei a face pintada de ontem apenas um retrato
na câmera digital revelando o dado do tempo
outro tempo
outra hora
outra eu
outra face
novidade em mim
em coração renovado
em corpo outro dado
eu sei sou apenas
um outro ponto
da eternidade
1071
mensuridade
a brevidade
sei da eternidade
vasta e infinita
mas em paris eu
queria apenas paz
a paz inacreditável
de sentar-se na praça
ver os pombos
se banhando
a paz inabalável da velhinha
em passeio de cachorro compondo
a manhã de verão e de
novidade
o vento que passa entre as
pontes do sena
daria da vida o muito
para sepultar os ventos
em face dados
outrora
mas o vento
volta outro
e sei do outro em mim
e do vento outro aqui
deixando para trás o
todo
de uma vida apenas
o vento vai prosseguir
em outros rostos ainda
mas ali não estarei sei bem
o vento que me consola é
mineiro
e frio no inverno e cheio de secura
e quente no verão e vazio de frescura
1072
e agitado na tempestade e estático
em julho
para desespero dos meninos
soltadores de pipas
o meu desespero é outro é saber
a sapiência dos ventos que não voltam
e dos meninos que voltarão
em mim
terão dúvida sobre o vento
que também retorna
o vento de paris é diverso do vento da montanha
o mesmo que ouvi quando nasci em outubro em tempestade
na minha cidade natal o
vento brinca de jogar as
longe
num jogo violento entre os
telhados
o vento de paris não anuncia a tempestade nem o frio
há uma ausência de comunicação sobre o que vem depois
e como não sou daquele
mundo me senti fora do
tempo
o que me adoçou cada manhã
os pardais da minha cidade morrem quando venta muito
caem dos telhados em
madeira velha o tempo cria
armadilha
para os corpos jovens e sem
maturidade
os pardais de paris vivem no chão tão campestres
que duvidei por um momento
que a grama verde tivesse
algo de seu interesse
na minha cidade os pardais gostam de invadir a rodoviária
1073
e mesmo nas casas de janelas abertas aos ventos da manhã
é costume das aves roubar os grãos de arroz
(isso quando o gato não roubou um pedaço de carne)
os pardais de paris gostam de semente de grama
e têm as penas claras e os olhos tristes
sem a esperteza dos pardais do Brasil
os pardais da minha
cidade vivem alegres
no verão
e no inverno são tão
poucos por causa da
mortalidade
que parecem
desaparecer das
manhãs de silêncio
os pardais estão
no mundo
eu jamais me
encontro
em todos os
pontos da mesma
vida
sou vários em
mosaico de
tempos
a hora em outro lugar é sempre hora nova
mas em paris a hora era uma dor de reencontro
com os nomes com os
lugares com as estátuas
eu as via novamente sem ter
estado lá agora
eu sei do vazio das horas ainda por viver
mas o que dizer das horas já vividas em outro tempo
1074
e agora refeitas em outro
ponto da mesma memória
cheia do cheiro e vento desse
lugar?
minha alma já esteve ali durante intenso tempo
outro do mesmo tempo – tempo eu - em outra carne
agora diverso em outro ponto
– ponto eu
a história é outra em dois
pontos da mesma vida
COLÔNIA
o trem atravessa ainda a europa vasta
leva e traz passageiros espalhando gente
nos trilhos há um eterno barulho
de trem vindo e trem partindo
eu pus meu ouvido no trilho e senti na alma
o menino acordando na manhã de férias
quisera que o ouvido nunca tivesse
partido
para não ter que voltar em outro
momento
quisera que dos trilhos na memória da alma
guardasse apenas a chegada mas os judeus se foram
como eu para o exílio de
outros lugares mas eles e eu
voltamos vivos para reviver
outras lembranças
eu sei que a morte
não mata a alma
nem que a alma se
perde no tempo
eu me achei entre
dois pontos
1075
no meio de um
novo trem
mas novo é o tempo da tecnologia
e inovo se sei chegar e partir bem
se renovo o olhar do tempo de dentro
percorro com paciência o tempo
eterno do além
a europa ainda se
percorre de trem
mesmo depois de
alberto santos dumont
mesmo depois do 14
bis renovar as asas
da imaginação do vôo
o trilho resgata o tempo
quantos giros um trem faz
para levar até colônia o corpo?
a hbf köln tem um cheiro de
deportação
os trilhos quando rangem
seus dentes nervosos
espalham um cheiro de óleo
insuportável
deixando a alma triste
os trilhos de colônia tem o fedor do nazismo
onde se conectam esses trilhos?
a alma não queria ouvir os gemidos das famílias
e se recusou a ouvir o passado das bagagens
o café da
manhã em
1076
hambúrguer e
canecão
de frente para
a catedral
onde os
triângulos
imperam
como se o
arquiteto do
universo
reproduzisse a
estrutura
de seu
pensamento no
cartão postal
da cidade
a grande arena a mulher jovem em mendicância
a tarde de sol repleto de pombos e pardais
e das compras para guardar no lar a memória
de um tempo calmo perto do Reno
AMSTERDAM
como se estivesse entre os
canais abertos da alma
de um lado o passado
sempre pronto para a
cobrança
do outro o futuro essa
margem sem
fim da vida
como se estivesse em pernas
de pau para dar conta da
1077
travessia entre o espaço de
dentro e de fora
a grandeza do ser ali em volta
da central
onde os destinos se cruzam e de detestam para sempre
como se estivesse oco por
dentro e cheio por fora
em prece de convento
beneditino aguardando o dia
ser o melhor dos dias daqueles outros dias tristes
em que era apenas uma presença sem mim mesmo dentro
em amsterdan eu não
quis nada mais que eu
mesmo
no reflexo pálido e
confuso no canal de
algas
entre casas barcos e barcos casas
entre o sol e nuvem espessa
em amsterdan eu não
quis nada mais que o
sopro
do espírito dentro
dizendo para o mundo
lá fora
estou pleno e centrado nesse momento eterno
sem vazio em nenhum dos lados
o canal corre fundo
separando as ruas
as pessoas não se
separam pelos canais
o olhar percorre longo caminho e encontra
1078
o amor mesmo do outro lado do rio
o canal frio sem vida
aparente se mar ou
doce
se gelatina ou azul em
transe não sei
debaixo dessa água não quero ficar
eu sou ser da superfície
e nas nuvens do dia
que se passa rápido
em viagem
não achei sentido para
a estação tão cheia de
corpos
não havia ali um corpo que dentro pudesse tirar amor
por mim e por isso de mãos abanando
a confusa vida de
quem entra e sai de
trens
e percorre os trilhos
como se caminhasse
pelas próprias pernas
e mede o tempo não pela maré ou pela nuvem má de agouro
mas apenas pelos destinos que chegam e partem da estação
nem van gogh me
salvou na inútil
paisagem interior
amnsterdam será
sempre bela porque
de mim não precisa
sua imortalidade não depende da minha presença
mas dela tirei a fotografia mais breve e forte de uma viagem
a fotografia desbotada
de uma alma em fim
de depuração
1079
em corpo cansado de
viagem em trem de
vago vagão
eu sei que a vida em amsterdan não é nada em mim
eu sou fim amsterdan é riso de tarde breve
a fotografia está nos porões da alma
essa que aprisiona o tempo bom ou ruim
e cata da existência dores e alegrias
essa alma obscura até
para si mesma
que se fosse nuvem
que vai e morre seria
mais fácil
mas as nuvens passam e se acabam e a alma
continua sua loucura em meio dos dias de viagem
quando começou a
viagem não sei
só sei que da alma as
paredes estão cheias
tão cheias que me perco em tantos calendários
e folhinhas marianas
(ah, dona sinhá de santo antônio do itambé lembrei do pote
de água fresca atrás da porta em estante de madeira e
lembrei da folhinha mariana como promessa paga
anualmente essa água ainda me sacia essa água ainda me
alimenta a memória)
as casas velhas tiram
seus móveis pelas
janelas
e dos canais se
atravessa para o mar
não o mar de banhar-se
o mar do medo de alagamento
na superfície de amsterdan o dia passou ligeiro
feito rodas de bicicleta perto do memorial
1080
no centro de um
ponto que não era o
centro era apenas uma
ficção de localização
no restaurante de lanche rápido
de garçon em holandês me abordando
eu sei até agora que
fui estranho
para quem me
quisesse parecido
o calor da cidade não incomodou a pele
nem a umidade dos canais invadiu os pulmões
quando em viagem há
uma secura por
descoberta
até agora acredito que
havia muito para
explorar
quisera que a tela de van gogh estivesse em três dimensões
pudesse eu entrar em seu quarto e sair no quintal
onde os girassóis se
desmancham de amor
ao sol
a qualquer hora do dia
BERNA
o dia do urso começa sonolento
eu também sou assim
dentro do trem
em grande velocidade
entre um ponto
de paris e outro ponto
da alsácia
1081
e outro ponto em
strasburgo
e outro em colman e mais um
aos pés dos alpes me saudando
com um nublado dia que a fotografia
se tornou preto e branco imediatamente
mas não me deixei cair em desespero
por causa do medo de não andar entre as casas
e rio aar com sua água verde clara de água de neve
que um dia foi
água de fundo
de terra
que um dia
resolveu
chover nos
alpes
mas sem saber
virou pingo
gelado
e hoje veio me
visitar na sua
vida cíclica
a água sabe dos pontos
dentro de um vida
mais que eu que nunca água
fui
mas tenho sede de vida em
cada canto
do meu céu e do meu inferno
e não importa dizer que a cobertura de vidro
temperado em neve sol escaldante
por sobre a estação que de lojas vive
1082
e de restaurantes de salsichas
sobrevive
tenha olhado para mim com frieza
sei que em berna os
olhares são quentes
no verão
e cheios de saudade e
melancolia no inverno
quando os alpes bravos dizem ventos fortes
esculpindo na pele a saudade do sol
em arrepios
longos e sem remédio
sei que em berna as crianças crescem felizes
e sabem brincar sua
infância debaixo das
fontes
numa brincadeira
arrebatadora ao olhar
em fim de tarde de mães e pais
berna não se fecha por
causa da chuva
antes suas marquises
levam movimento às
lojas
e nesse frenético ir e vir os postais expostos
mostram um tempo parado de ontem
não o meu tempo ali passando em vagar lento
a ponte sobre o rio aar tem um aviso
para impedir
que os loucos que os trapaceiros
tentem pular
para morrer afogados na água que é
pura vida
1083
a ponte é de altura
inimaginável e as
pernas
medrosas de outras
lembranças não
conseguiu
atravessar de um
ponto ao outro é o
medo
sempre o medo
impedindo a transição
o mau gosto das roupas e em especial das meias
em cores de arco-íris europeu
que no brasil sei bem
as cores são tropicais e
inegavelmente belas
as mais belas cores que revelam um outro olhar
as ruas largas de metrô em linhas embaixo
e por cima a energia para o trânsito
o transporte vai de um
ponto ao outro
do mesmo dia e
porque eu não
quem disse que eu não posso
na vida ter vários pontos de interseção
entre um ponto e outro da mesma trajetória
chamada por alguns destino?
eu fui guiado pela curiosidade e pelo prazer de vagar
1084
sem destino somente buscando ali algo de mim
que estava dentro
enfim e não sabia
esse calor que emito
na saudade da
felicidade
ficaria ali para sempre não fosse outros
pontos
de outros tantos lugares me aguardarem
e eu mesmo me esperar para mudar novamente
a vontade de ficar em outro ponto de ir embora
ficaria eternamente em
turismo se assim
possível fosse
mas sei que morar em
berna poderia ser um
tumulto
forte e desagradável
para a alma acostumada
a outro
outro ponto em outra
lugar que receio perder
prefiro passar por berna
como o rio aar
sem parada definitiva e
descer o morro
para dar em outros pontos
para de tantos olhares
fazer-se belo e inteiro
pena que só os rios sabem do inteiro
da fonte pequena e miúda
do trajeto
tortuoso até
chegar
1085
ao absoluto
mar que esse
não sei onde
dá
apenas imagino na
doçura da noite de dor
o que virá a ser
quando o tempo se
disser cansado
dos olhos que vem da
boca que fala
da minha fragilidade
imodesta
BRUXELAS
de paris a bruxelas é o tempo de um cochilo
ou de fotografia desbotada da
plantação distante
ou de um sanduíche de estação de
trem
daqueles cheios de noite mal dormida
o caminho que
leva a bruxelas
é curto
e a estação
principal é
pequena e
chata
sem o encanto de outros pontos da europa
sem o desencanto do cheiro de colônia
mas em bruxelas o
sorriso do domingo
de manhã
1086
foi de uma sutileza
e delicadeza tão
profundos
e os sinos da
catedral saint
michel tocaram tão
fundo
a alma triste de
tempo que se acaba
em passeio distante
os casais de velhinhos iam para a igreja rezar
no domingo bem
cedinho e eu sozinho
na praça
me sentia em casa já
que sou de passado do
interior
onde domingo de
manhã era dia de ir á
missa
sentir a tristeza das
imagens dos santos
estáticos
sem sair de um ponto
ao outro da mesma
vida
já que as suas vidas eram apenas memória e poeira
em bruxelas o
sol da manhã é
frágil que dá
pena
e as pessoas
são tão
silenciosas que
1087
as ruas são
conventos
como se a
idade média
estivesse ainda
na alma
dos homens e
mulheres dali
mas há em tudo uma monumentalidade
e as praças lembram que o espaço é do humano
para sentir-se miúdo diante da história
esse grande ponto entre vários pontos da humanidade
a praça da feira de artesanato tem senhoras de fibra
como as brasileiras trabalhadoras de minas novas
só que o charme da europa
não coloca fome
nem sede na vida dessas
outras mulheres do norte
bruxelas respira a vida de sua família real
nas praças nas casas no palais royal
e no grande museu da história da
bélgica
onde o nazismo aparece como a pior
memória
a ocupação da vida simples pelo totalitarismo
marcou a memória da cidade para sempre
e o rei exilado em seu heroísmo ambíguo
é homenageado por sua bravura e resistência
1088
os judeus agradecem em grandes placas o povo
que impediu a morte
de parte do povo
guardando em
segredo em seus
porões
os que sofriam o temor da morte bestial e sem sentido
as flores de bruxelas despertam cedo
como as crianças para fazer o passeio com os pais
e os cães não gostam do calor das ruas
e os pombos sofrem de tanto calor
mas eu me sentia em casa como sempre
minha alma precisa de um pouco de
beleza
e muita simpatia para se sentir humana
e feliz
como ao entrar na loja
de discos para comprar
maria callas em seu
esplendor e encontrei
com um cão amante de
música clássica
dormindo ao som de
mozart
o museu da música no
velho prédio inglês
levou os meus ouvidos a
todos os cantos do mundo
a música tem o poder de
conduzir a ama de um
ponto
a outro ponto da mesma
vida
e do terraço a europa pareceu
ser apenas um ponto
1089
miúdo e único numa grande
extensão de terra
assolado por guerras
históricas e povos
que convivem em franca oposição
os pontos belos e únicos são tantos
será que poderia elencar meus pontos
interiores com tanta nitidez como
um mapa de centro histórico?
RIO DE JANEIRO
o vôo de paris ao rio de janeiro
teve tão pouco espaço que
parecia
uma arca de noé humana a
voar
entre dois pontos do atlântico
o rio de janeiro amanhecia em sua beleza única
quando os
corpos exaustos por
doze horas de pouco
espaço
se esticaram em
fila de imigração e
mais uma vez eu me
soube cidadão do mais
belo país do mundo
eu me senti voltando ao ponto onde tudo
começou
como um ouroboros comendo a cauda
1090
em eterno retorno fui e voltei
mas faltava ainda me encontrar
entre as malas e as lembranças
entre a saudade do que ficava
aqui
e do deixava lá do outro lado
mas eu aprendi
que a tristeza é um ponto dentro da saudade
e que a alegria é outro ponto
dentro da realidade
essa exaustão em suspiro que
chamamos vida
vida que pulsa como um tempo longe e um tempo perto
mas sempre inquestionável
são vários pontos no mesmo rumo
a vida que sou eu
e eu que sou vários pontos
dentro da mesma viagem
que fim terá?
acabará em rio de janeiro
lindo em dia de sol?
INTERIOR DE MIM
eu estou em mim há algum tempo
entre pontos diferentes eu erro
sou errante por
isso vagante
sou fragilidade
por isso
felicidade
o tempo em
mim é confuso
1091
não se divide e
vive contínuo
mas sei que para quem me acompanha
sou muitos pontos em pontos diferentes
não repito o dia de ontem apesar da rotina
eu navego em mar tenso por dentro
e não pense que há
calmaria todos os dias
eu preciso me ajustar
em novo ponto no
espaço
a viagem ao interior
de si é breve
dura talvez alguns
instantes na vida
mas nesses instantes de autoternura
há uma voz dizendo de mim para mim
e perdoando os pontos cegos do vôo
os pontos passados sem contemplação
as viagens sem
empolgação
os desvios do rumo
das cidades que
embalaram meu sono
das luzes que
iluminaram meus
passos
não quero nada a não ser a lembrança
terna e fértil e que ilumina sempre
das estrelas não quero nada
mais que o enfeite
1092
em céu em dia de calor em
paris ou chuva rápida
fechando o tempo para
sempre em berna
do céu que se renova eu não
quero nada mais que o azul
me faz ver longe e trilhar na
imaginação outros caminhos
que se abrem e se fecham e
se cruzam nas horas dos dias
do grande amor eu quero apenas o sorriso do primeiro
o grande e maior primeiro sorriso de amor
que da
angústia de lhe
encontrar
muito sofri
das asas do
avião quero
para sempre
flexibilidade
para decolar na hora certa e mesmo no incerto
ter força para levar dentro de si a alegria da viagem
a viagem dela apenas o sopro
renovado sopro da novidade
a viagem dela apenas o breve
o breve momento de ir e voltar
e estar indo ainda não chegado
e estar voltando ainda não voltado
a viagem entre dois pontos da mesma vida
a vida passageira
1093
sempre passageira
passa ligeira
é da natureza da vida a passagem
de um ponto ao outro ponto
frio ou quente lento ou rápido
sempre dialético não sei dos pontos vários em cada ponto
diferenciado não, não sei nem mesmo qual ponto foi inicial
sei de agora essa vazio de outros pontos por costurar
de madrugadas por vier e esquecer
em especial aquelas madrugadas
onde seus braços longes não me alcançam
nem em sonho
o sonho é uma das melhores partes dos pontos
sonho que não se emenda que não se escreve
esse delírio da
razão que
sonha
em ser apenas
o prazer
realizado
mas nos pontos vazios do passado
o prazer quando ausente foi está
não quero a
memória do
esquecido
deixo o eterno
morto
repousando
no frio caixão do tempo
eu continuo a viagem de um ponto ao outro ponto
entre um eu que é e outro eu
que se faz
e vai ser mas não controlo
a viagem interior tem roteiro incerto
1094
perdas
inimagináveis
que se
adicionaram e
se adicionarão
sem que isso
comprometa o
mapa a seguir
e sigo e sigo e sigo
sempre em frente
tropicando em horas
ouvindo os sinos da santa rita
da minha eterna cidade do interior
que vejo em todos os lugares
como impressão digital da natureza de dentro
esse que se expõe nas
janelas do trem
eu estarei depois do
serro
entre uma janela e outra da alma
basta se abrir uma cidade nova para amar
a lembrança dos sinos
das palmeiras das praças
dos cachorros sem dono
dormindo nas calçadas
dos loucos da rodoviária sem
passagem
eles não querem ir embora de dentro de mim
mesmo que morram
a lembrança deles é eterna
eles estão no mesmo ponto de sempre
e sempre é um fim
e um começo
eterno retorno
1095
NOTÍCIA / 2011
PAISAGEM DO DESCASO
a cidade se perde
entre árvores casuais
mendigos casuais
e eu casual dentro do cenário
a cidade se veste
como se despida estivesse
a árvore retorcida é semelhante
ao velho encurvado mendigo solitário
a cidade tem paisagem
mas nada de planejado
é uma paisagem do descaso
onde casa um juntou seu caco
a cidade aquece as pernas
no asfalto tenso e quente
os carros poluem o ar
mais uma vez em descaso
a cidade se fecha aos olhos
numa paisagem de descaso
puro descaso
puro descaso
belo horizonte, 17-07-2010, sábado
SÃO PAULO I
na veia de são paulo
corre um âmbar luminoso
o único movimento
visto do alto no avião
1096
a cidade parece mosaico
emoldurado de amarelo
um âmbar tenso
nas ruas
SÃO PAULO II
os telhados escondem
as cenas eu daqui
nada vejo
o telhado dos invisíveis
esconde a ação
nada vejo
será que deus os vê?
GUARULHOS I
fila que dobra pra cá
depois retorce pra lá
e dá em outro lugar
onde a fila continuará
uma fila atrás da outra
passaporte na mão
bilhete na mão
cabeça quente
GUARULHOS II
como gado
vamos uns
atrás dos outros
quem à frente
1097
vai à frente
ou atrás
de quem?
quem foi o primeiro
dessa fila infindável?
TURBINA
zumbido de colméia
a turbina ligada
a rainha onde fica
na torre plugada?
POLTRONA
a poltrona à frente
tem painel eletrônico
eu sigo a rota
por terra
por mar
estamos agora a 9 mil metros
do chão entre a terra e o espaço
infinito presos na aeronave
por ar
via aérea
MAIS DE DEZ
mais de dez horas
o avião continua
zumbindo nos ares
vejo terra à vista
1098
mais de dez horas
entre a américa
e a europa
vejo o aeroporto
SENTADO
me senti em casa
não fosse pela posição
dormir sentado
é prostração
jantar
café da manhã
queria mesmo
hotel
vai demorar ainda?
GARE DU NORD I
os arcos flexionam verbos
ecos de vozes múltiplas
de todas as partes
do mundo
a estação qual nave
parada no meio da cidade
conduz aos túneis
e a outros lugares
as burcas os turbantes
os homens negros
as mulheres árabes
se misturam no domingo
1099
TURBANTE
as cores fortes
amarelo azul verde
vermelho preto branco
o turbante prolonga
o pensamento da africana
ao infinito
INDIANOS
em seus bigodes
em sua pele morena
em sua língua obscura
em seu terno de domingo
em sua vida de trabalhador
em sua habitação da periferia
os indianos estão no trem
sorrindo da vida passando
pela janela do RER
HIPOCRISIA
o taxista muçulmano ainda me leva
na sua ira até o aeroporto
os cristãos são hipócritas
a frase não me sai da cabeça
e ronda minha certeza até agora
MUÇULMANA
a muçulmana de rosto coberto
com um filho nos braços pede escola
no metrô de paris
1100
por detrás da câmera
um outro homem qualquer
nada vê na correria comum
de seu monitor
a fome continua
dos dois lados
CEMITÉRIO
os carros passam rápidos pela rua
no muro ainda bate o vento da morte
entre os vivos que passeiam por montmartre
bem na esquina do cemitério
há uma nuvem de vida em paris
mas um enorme número de corpos
mortos e sepultados em mausoléus de pedra
a vida e a morte
a alegria e a tristeza
são roupas tempo
ALTURA
do alto onde as pombas conhecem
melhor que eu a cidade lá em baixo
eu me posiciono
no alto depois das escadas
ou antes que o vento chegue
as pernas me colocam na montanha
de lá vejo uma cidade no por do sol
linda e jovem como sempre
1101
bela e monumental como nunca
esse olhar é só meu
do meu ponto de vista
até onde a vida alcança
nem os pombos
nem as aves mais fortes
sabem da força do passado
eu sei que o passado
me eleva mais alto
que a basílica sacré-coeur
PADROEIRO
saint-jean de montmartre
é o padroeiro de paris
na minha terra miudinha
do interior de minas
o padroeiro não tem
é uma santa conceição
que no dia oito de dezembro
felicita-se por seus devotos
ela não mora em paris
ela habita no interior
bem no altar-mor
da igreja matriz
saint-jean montmartre
não conhece conceição
mas ambos protegem
da mesma forma
1102
GRAVURA
na place du tertre
perto da vinha
antes da igreja
fica uma rua
de todos os lados
tem muro de pedra
e no meio passam
milhares de pessoas
e entre os milhares
há aqueles que se põem
no papel do desenhista
para lembrança eterna
meu rosto ficou apenas
na sombra passageira
da tarde bela de um sol
tão belo que custo acreditar
que a eternidade estava ali
efêmera como sempre
meu rosto passou em sombra
viva a sombra da tarde de montmartre
VISTA
eu não ouvi som
senão do vento
não ouvi o coração
senão do tempo
não entrei na missa
para não incomodar
não rezei baixinho
nem para ensaiar
1103
eu me pus apenas
como um visionário
no alto do templo
para mirar o tempo
o tempo que passa
em silêncio bom
feito pensamento
que rola dentro
CARACOL
andar pelo corpo do caracol
do mais interno do seu ser
para o mais externo de se perder
fui visitando os dezoito cantos
do caracol da urbanidade
por baixo da terra em metrô
cada arrondissement é um número
cada número me contou sua história
pitágoras vive no corpo do caracol
em solo da europa eternizado
TOUR EIFFEL
eiffel pegou uma linha de tricô
costurou em geometria o concreto
armou cada ponto mais alto do chão
para elevar o olhar para o alto
do alto se vê apenas a razão
a mente que pensa e constrói
no vazio do espaço arquitetônico
o cheio repleto de outros vazios
a torre eiffel não é bela
mas cabe muita matemática
1104
CARRO
prefiro as bicicletas
os namorados nelas
prefiro os corredores
o sol da tarde belo
prefiro as linhas de metrô
os músicos fazendo festa
os carros não gosto
não tem pureza
são impuros
SENA
lá embaixo eu vejo sua água
em alga verde feito clorofila
boiando na tarde de domingo
os barcos são desprovidos
do charme natural das águas
e sua grandeza lhes rouba o valor
o sena corre por debaixo de meus pés
levando a sua vida em dialética
heráclito estava ali comigo
BARBÈS
na rua da padaria havia também um restaurante
de comida exótica feito festa do rosário
a carne ali servida parecia estar há semanas
dependurada em um suporte
como conheço essa cena de alimentação
1105
desde pequeno não me assustei apenas pensei
na beleza do mundo em suas semelhanças
eu ali diante da mesma cena da infância no rosário
os turcos comiam com uma cara tão boa
não entendia uma palavra de seu vocabulário
mas a fome, essa fome de cidade em dia de festa
entendo bem desde pequeno no colo da minha mãe
KARDEC
estou aqui diante de mim
e me vejo diante do tempo que passa
e vai e vai como um dia veio e virá outro
sei das horas em tantas vidas
sei do tempo nas idas e vindas
e sua vida que foi
e sua morte em quem dói?
não vejo dor nem silêncio
sinto apenas aqui, diante de seu dólmen
uma paz incrível um silêncio comovido
e nem o frio matinal me faz desviar
os olhos lacrimejantes da memória afetiva
e dos tantos silêncio que fiz para chegar aqui
as palavras espirituais não se calam
antes agitam a razão para serem reais
eu desejo ao mundo a ciência
e todas as grandes vontades de progresso
efetivadas dentro do amor
que é tudo como deus
os druidas revivem o tempo revive
a nada é
cimetiére du père lachaise
18/07/2010, lundi
1106
O TEMPO RETORNA
memória que resta
quase sem pressa
os dias voltaram
como sempre
as coisas refeitas
no lugar das coisas
é o passado nas ruas
os homens
as mulheres
os monumentos
“les flanêurs”
agora sou eu, de novo
no novo tempo dado
eu sinto um frio na espinha
quando sei
do que vai e do que fica
e daquilo que é eterno
eternamente paris
nas escadas da dom / colônia, alemanha / 20 de julho de 2010
COLÔNIA
a severidade das palavras
os gestos carregados
corpos desajeitados
as melhores mães do mundo
os filhos mais autônomos
o tempo de família
em colônia no verão
os patos se escondem do sol
sobre a ponte do parque
eu me escondo de mim
1107
fingindo que me achei
eu nunca me achei
sei
colônia, alemanha
alemanha de arendt
alemanha de heidegger
DOM
triângulos do arquiteto
revelados por sob a escuridão
o escuro da guerra tingiu
as paredes de fuligem
quadrados do arquiteto
sustentando o peso
das pernas dos santos
cansados em estátuas
colônia, alemanha
20/07/2010
ALFÂNDEGA
qual o peso das palavras?
a alfândega vai deter meus versos?
DROGA
a miséria em colônia
estava ela presente
nos jovens drogados da escadaria?
essa é a miséria da europa
rica e poderosa de filhos
sem teto e pedindo esmolas?
1108
DINHEIRO
a bela jovem toca flauta
o rapaz simpático toca contrabaixo
ele olha para ela e o turista
deposita centavos de euro
a música prossegue e eu vou embora
não fosse a música bela aos ouvidos
não registraria a imagem triste
da pobreza que nunca se cala
TAMBOR
ele estava tocando o tambor
o seu rosto cansado não acreditava
no chapéu vazio no chão à sua frente
o tambor soou alto
mas não acordou
o seu tocador
HBF
são várias plataformas
na haupt banhof
são várias lojas no térreo
um relógio rolex de parede
rouba a cena
hbf köln
de estruturas fortes
concreto armado
uma cor de fim de dia
desde manhã bem cedo
1109
NEVE
não havia neve em nenhuma parada
nem próxima da estação nem longe
meus pés não pisaram na neve
nem o nariz sentiu o seu cheiro
em nice nada de neve
a neve estava nos rios
o verão europeu é sem graça
para quem gosta de montanha
VITRINE
as prostitutas estavam prontas para a noite
na rua rente à plataforma em bruxelas
os clientes se aglomeravam nas vitrines
para escolher o cardápio da noite
fim de tarde é começo de desejo
SOMBRA
a catedral de colônia não tinha sombra
por volta do meio dia e os turistas
não chegavam sequer à sombra de deus
no dia quente de verão
ao meio dia o sol tira deus de cena
para um descanso merecido
da miséria humana
ALTURA
elevaram as paredes ao máximo
mas deus estava para além
um pouco mais alto
dentro
1110
costuraram estruturas ao altíssimo
mas ele estava aquém
um pouco mais baixo
centro
os arquitetos fazem suas obras
deus faz suas metáforas
sempre
É...
a primeira vez
fiquei parado
o mundo em volta
são apenas os outros
eu nada sou
senão silêncio
para ouvir edith piaf
colônia, 20/07/2010
NUNCA MAIS
os guetos nunca mais
os campos nunca mais
eu preciso dizer
nunca mais
o cheiro da deportação
o medo da morte vaga
ainda está pelos ares
na Alemanha
nunca mais
1111
QUASE ATRASO
perdido na vida
como um passageiro mineiro
atrasado para o embarque
eu me senti sem destino
e mineiro
atrasado ou quase para o embarque
os alemães são mesmo surpreendentes
colônia, 20/07/2010
terça-feira, fim de tarde, horário de verão
ATRASO
bilhete? onde?
não sei... não pode
no bolso, na calça
esqueci no dom
não, está aqui
junto a mim
coração acelerado
-cheguei e sentei, que bom!
APITO
o apito de partida
doeu na alma
alma coletiva
de quem foi judeu
o apito obrigando
as portas fechadas
a escuridão
o campo de trabalho
o apito mexeu nos nervos
há coisas imbecis
na vida da gente
e de outros loucos
1112
CHEIRO DE ESTAÇÃO
a estação tem cheiro
um espantoso odor
de máquina sem gente
de máquina sem dor
colônia, alemanha
20/07/2010
VELA
as velas acesas como eu
de alma aberta
tudo se acaba
tudo acaba em fim
a sombria parede dos santos
e das imagens da morte
a morte é a fé sem recurso
ou o último recurso de sorte
a luz das velas
o escuro das salas
o medo é sombra sempre
mesmo dentro da catedral
DENTRO
agora escrevo de dentro
do trem
sobre os trilhos eu desando
os versos
(o sonho do poeta
é escrever poesia
num trem da europa)
thalys, entre colônia e aix-le-chapelle
20/07/2010
1113
BILHETE
não abuse da paciência
eu sei quem eu sou
só não lembrava
já que acordei é hora
de reabrir o diálogo
sobre o tempo autêntico
quero a alegria de volta
e retorno cheio de força
para dizer: basta!
para dizer: estou pronto!
para viver
para viver bem e melhor
TELHADO
telhado de escama de peixe
a neve precisa escorrer
de volta para o solo
o solo é depósito
de tudo o que flutua
LINHA
que pena
a linha do metrô daqui
não encontra a linha do metrô de lá
sinto saudade
da linha do metrô de lá
vendo a linha do metrô de cá
1114
GARE DU NORD II
a maior toca de pessoas
é a gare du nord
de seus ferros batidos
de suas linhas iniciais
onde cada trem chega de frente
e volta de ré sendo frente
para outro destino
toca de franceses
de cores e estilos vários
de movimento constante
organização sempre precária
para quem vem de fora
das estruturas subterrâneas
da vida parisiense
PROTESTANTES
amsterdam não tem católicos
não os vi em prédios grandes
há um cheiro de calvino no ar
mesmo entre os barcos não há
nem um pouco de imagens de maria
nem um tanto de imagens de santos
os pastores estão nas igrejas luteranas
ou nas antigas igrejas que viraram museus
max weber estaria em casa por aqui
1115
TREM E CHÃO
os trens de amsterdam
tem os pés no chão
como eles eu deveria ser
mas meus pés tem asas
quando me acento
em viagem boa
eu não seu jamais
do caminho certo
trilhado em mim
só sei que trilhei
o chão de dentro
até aqui
DEUS
você acredita em deus?
perguntou o pastor luterano
dentro da linda igreja
a primeira visitada em amsterdam
ele buscou um papel em português
e me deu a grata surpresa de ouvir
em belo português a passagem de joão
eu não sabe que sem deus
estaria perdido ainda por ai
entre um canal e outro
procurando um fim
1116
INÍCIO
um céu que não acorda
uma chuva que não vem
um sol que não se sabe
a manhã de amsterdam
floriu nos barcos a cor
da natureza esplendida
eu me apaguei entre as ruas
e entre os canais de algas tênues
já que não sei viver sem luminosidade
CASA
o tempo das casas centenares
é adverso
habitação de muitos tempos
há fachadas
cada uma com seu tempo
e sua face debochada
elas vivem ali há tempos
mascaradas de história
ALGA
alga
amalgamada
entre água
e mar
alga
molhada
entre mágoa
e lar
1117
passei
por cima
das algas
na ponte
alga
amalgamada
entre mar
e água
AMSTERDAM
um corpo irrigado
por canais veias
cheias de água
nós circulamos
é permitido
cortar os pulsos
sem dor
apenas
necessidade
os patos
marrecos
contam da vida
do corpo em canal
estirado no mapa
de uma cidade
hoje habitada
pelos olhos meus
admirados
21/07/10 - holanda, depois de bruxelas, depois de paris
1118
I’M FREE
as meninas da rua das luzes vermelhas
parecidas com as do cinema
na versão mais sensual
a permissão da maconha
nos coffee shops regados
a reggae e doença
eu no meio da multidão
sou apenas mais um
o único que me ama
amsterdam, 21/07/2010
PATO E MARRECO
qual a diferença do pato
para o marreco?
dúvida diante do canal
em amsterdam
RODA
as rodas giram
bicicletas
metrô
ônibus
as rodas giram
ventilador
turbina
vida
eu sei das voltas
do mundo em mim
somente isso
1119
CASA
as casas-barcos
as flores na varanda
dormir dentro da água
como na barriga da mãe
a vida suspensa do canal
sem atrito real
ÁGUA
a água deve ser gelada
ninguém nada no canal
comente os bichos
ninguém pesca por ali
ninguém mergulha
somente a imaginação
COMIDA
o mcdonalds fica de frente do kamper
nos dois há sanduíches grandes
num fiz o almoço noutro
café da manhã
colônia é uma cidade de sabores
repetidos
degustar é aprender evitar
o oposto
1120
QUASE
em colônia o dia foi quase
quase chuvoso
quase solar
a estação foi quase
quase passado
nunca futuro
MOINHO
a velocidade
sem fim
quantas voltas no moinho
da minha cidade mineira
são necessárias
para fazer uma viagem de trem
na europa?
VACA HOLANDESA
as vacas nos campos
pastam há dias
mas só hoje
eu as vi
as vacas nas relvas
bastam há dias
mas só por hoje
eu as vivi
1121
LIMITAÇÃO
uma ordem demais ordenada
em cada canto da cidade
entre canais e entre pessoas
há sinais de limitação
pare passe interrompa fique
aberto fechado pronto
inválido seco frio
há muitos sinais
frios como ontem
ativos como hoje
estou de férias
não quero limite
PRISÃO
a linha do trem prende
seu corpo ao chão
como eu no corpo
sou extensão
METRÔ E BICICLETA
entre a bicicleta e o metrô
apenas a linha em aberto
para as duas rodas
o metrô está em seu destino
a bicicleta brinca de menino
não sabe para onde vai dar a estrada
1122
MUSEU VAN GOGH
as linhas sérias da arte
no prédio do museu van gogh
me deram a luz do tempo
entre girassóis e sóis
quanta alegria na tela
expressando a tristeza da vida
a arte de fato subverte o tempo
de dentro e de fora
PONT NEUF
é preciso abrir espaço
para os barcos
mas é preciso criar o belo
para contemplar
a passagem
das velas
MOYEN-ÂGE
jesus sorri para maria
subvertendo a idade média
na sua escuridão
HEMISFÉRIO NORTE
precisei atravessar o atlântico
para conhecer o outro lado da lua
eu precisei sair de mim
para me conhecer um pouco mais
serei completo agora como a visão da lua
ou mais metade que não se encaixa?
1123
EUGÈNE DELACROIX I
o museu tem cheiro
de gente que foi embora
mas nos objetos fixou
sua tatuagem em odor
no quarto de delacroix
a roupa cheira tempo outro
entre quadros e bustos
e medalhas e homenagens
EUGÈNE DELACROIX II
em tudo a loucura dos últimos dias
em cada parede e em cada canto
a exagerada vida boêmia de paris
de outro tempo ainda vivo
a vida se espalha como lembrança
criando o eterno no finito
um dia os objetos serão apenas
um monte de obstáculos para as pernas
ALÉM DO QUAIS ST. AUGUSTIN
ainda não voltei do quais st. Augustin
onde os bouquinistes vendem livros
e além de livros gravuras da belle époque
ainda estou passando pelo cais onde as pedras
em concreto cercam o rio sena há séculos
e além do cerco conduzem-no ao mar
para como o sena
eu me perder
no absoluto
e além
1124
ESCOLA DE BELAS ARTES
a arte em paris chama quem passa
como o prédio das belas artes
em formato convexo
na entrada
falta uma parte diz ele
você que passa venha ver
a arte do tempo na tela
franca
QUARTIER LATIN
os universitários e as mesas cheias
espremidos entre becos e ruas
um teatro um sebo uma livraria
e eu
a sorbonne em algum lugar
diante do busto de Montaigne
o dia o sol e o verão
e eu
no quartier latin a inquietude
é de quem acorda cedo
ou de quem dormiu muito tarde
e eu estou vagando
ÉCOLE DE FRANCE
na école de france michel foucault fala
e seus verbos ecoam ainda pelo ar na noite
onde o pensamento encontrava encanto
entre os corredores da mente curiosa
1125
hoje o cartaz impede a visitação
não posso entrar na sala vazia
nem ver por onde as palavras
antes eram ditas em sabedoria
na frança há sempre um ar blasé
como se até os prédios dissessem
-sei de tudo há muito tempo
só faço de conta que não sei
DRAPEAU
azul
branco
vermelho
no alto do prédios públicos
não há verde
não há amarelo
não há ordem e progresso
no alto dos prédios públicos
SAMARITAINE
o samaritaine estava fechado
obras por todos os lados
do outro lado da pont neuf
entre arvores verdes de verão
o prédio fechado estava lá
distante e encoberto por andaimes
1126
BEIJO MATINAL
o casal se beija na estação de metrô
tão cedo que devem ter se amado
a noite inteira e agora se despedem
para a rotina do dia
terão se reconciliado?
vai ver que sim
terão se reencontrado nas férias
vai ver que talvez
a história deles
pra mim é apenas
um belo beijo
matinal
MUNDO PEQUENO
o le monde diminuiu de tamanho
o seu formato é mínimo
falando do mundo
eu não sou notícia no jornal
sou apenas no mundo
pensando em mim
CÉU
parece que o céu de paris
gostou de mim na manhã
céu azul tempo firme
parece que o sol de paris
incentiva a caminhada
em pleno verão
1127
parece que ontem foi bom
dormir ao som da sirene
no hotel em montmartre
PODER TEMPORAL
é diante das faces velhas
dos reis esculpidos
em pedra no museu
que vejo o poder passar
provisório e tolo
como todo poder
pequeno e medíocre
a longo prazo
o poder virá pó
como o rosto dos reis
incógnitos se desmanchando
um após o outro se sucedendo
a natureza renova
o tempo todo
o poder frágil
que passa
sempre passa
sempre passa
ANTIGUIDADE
em saint-germain as rosas
estão tão coloridas
em contraste fundo
com as esculturas
1128
antigas
os pardais comem semente
no gramado da praça bela
onde eu me encontrei
mais uma vez comigo mesmo
antigo
a fonte de água pura convida
à refrescância matinal para quem anda
água esculpida e ofertada pelas mãos
da mulher em ferro batido
antiga
UMA VIDA
se descartes dividiu o corpo e alma
vivo em paris num só dia várias vidas
enoveladas pelas ruas que se apertam
e se juntam para dar um destino
a quem caminha
FLUXO
no metrô os ratos saem rápido
e os pernilongos vivem também
no metrô achei a toca que dava
em outras várias tocas
eu não me achei no labirinto
mas despertei do medo de esquecer
é preciso seguir o fluxo
de vez em quando
1129
ATRÁS DO VIDRO
indiferente aos cafés de paris
entrei no mcdonalds e pedi
a promoção mais globalizada
avistei depois os transeuntes
por entre vidros de preços colados
na avenue richelieu
COMIDA CHINESA
a chinesa colocou no microondas
o arroz o camarão
rapidamente
o mundo anda pequeno demais
ela falava mandarim
freneticamente
a comida ficou com gosto
de coisa misturada
anacronicamente
EXPOSIÇÃO
willy ronis tem fotografias
em preto e branco
no monnaie de paris
o cotidiano de outro tempo
do pós guerra e da guerra
de viver feliz
1130
ROTINA
os franceses saíram de férias
e deixaram a cidade para nós
os estrangeiros
há pela cidade um ar de abandono
ocasional de uma longa rotina
dos moradores
DISTÂNCIA
em paris estou livre dos norte-americanos
há uma distância tão grande
que os ares são outros
diversos
em paris os estados unidos parecem
de fato uma américa distante
NEBLINA
entre paris e algum ponto depois
a neblina me acompanha
pelo vidro do trem
qual a temperatura lá fora?
o dia acordou lilás
e a blusa
os assentos
o carimbo do validateur
também
entre paris e algum ponto da europa
a neblina de faz parceria
pelo vidro que tem
a arte de me refletir
23/07/2010
1131
AFINAL
acordei com formigação no estômago
tomei um soco da vida estou desperto
atento às ciladas do destino
destino eu agora tenho um, afinal
entre paris e berna, 25/07/2010, sexta-feira, bem cedo
FONTE
o menino solto no mundo
brinca com a fonte
uma das tantas
na praça da paz
e a chuva alterando
a paisagem de fora
e de dentro (que bom)
cria outra realidade
os alpes encobertos
tem vergonha de mim
esperando outra estação
para me ver renovado
o menino brinca na fonte
de onde brota um outro mundo
lá de dentro do fundo
há sempre uma resposta
berna, suíça, sexta-feira, 25/07/2010
DONAS
as senhoras nos carrinhos
de salsicha são delicadas
sorriem para quem passa
eu não pude resistir
1132
é muita mineiridade
do outro lado do mundo
é muito saudade
no mesmo mundo meu
HORA
parece que não há medo
do outro em canto algum
em nenhum lugar
o verão espantou
a desconfiança
para outro ponto
as fontes despertaram
o melhor de dentro
de cada um
o relógio marcou a hora
da alegria de viver
para todos
ALPES
a montanha não nasce
mas faz os rios reviverem
em fontes
inesgotáveis
ou em berna como há muito
os alpes alimentam de água
o rio aar quando chove
suas nuvens
1133
a montanha não nasce
mas faz azul quase verde
as águas do rio aar
descendo do alto
um cheiro de ozônio puro
trazendo o céu para os pés
a neve derretida
é agora um vale verde
FUTURO
na volta de berna num trem
entre trilhos tantos e linhas
várias e contraditórias
um menino brinca
e joga cartas com a mãe
sorridente na sua infância
ainda sem sabedoria
do futuro
essa incógnita
do crescimento
NEVE
não houve neve
ela no chão
ficou
nos alpes
a neve não veio
era verão
calor
nos vales
1134
ALEMÃO
em berna o alemão é a língua
o francês é outra opção
entre uma compra
e outra
o difícil alemão é a língua
as placas são confusas
como descobrir
o que se escreve?
CHUVA
a madeira na estação
imita as montanhas
em seu movimento
ondulado
a chuva chegou comigo
mas a estação jogou
para outro lado o som
nublado
ORDEM
o ordenamento da cidade
é cerebral e tudo se encaixa
como um playmobil
os fios do metrô
as fontes em estilo medieval
seguem sua rotina séria
a cidade é uma regra exposta
no tempo de cada um passando
seu modo sistemático
1135
VISÃO ALPINA
na rua kolcher
atrás do parlamento
eu tentei ver
o invisível
entre as nuvens
os alpes
surgiram devagar
acordando em miragem
sofrível
entre as nuvens
nada de fotografias
o rosto estava sonolento
os alpes voltaram a dormir
assim que a chuva
deu o seu sinal
IGREJA
na igreja protestante
onde o órgão de tubos
vela em silêncio
os fiéis
o café é espaço breve
de mesas cheias
bem cedo
sagrado sabor
EINSTEIN HÄUS
albert einstein morou em berna
sua casa virou um singelo museu
dessas casas onde o cheiro de família
permanece apesar do tempo passando
1136
na einstein häus as fotografias
de família se misturam ao berço
da filha do casal e a lembrança
percorre cada cômodo
PARA ALÉM
quando as flores estão nas janelas
cada uma em sua cor mais plena
o sorriso saiu de casa e passou
a dar bom dia para todos que passam
quando a fonte não dá apenas água
mas de sua beleza esculpida há sete séculos
a ternura rompeu o limite da pela
e passou a ser em praça pública
EXÉRCITO SUÍÇO
no trem de volta para paris
saindo de berna havia dois
militares do exército
com suas metralhadoras
e tomaram o meu lugar
eu como bom mineiro
evitei perguntar sobre guerra
já que queria apenas a paz
um deles de cara amarrada
deu uma barra de cereais do exército suíço
para um menino que brincava no vagão
a guerra tem momentos de calma
1137
RETORNO DE BERNA
o som dos trilhos é intenso
mais uma vez um trem
mais uma vez a passagem
mais uma vez o sol
dizendo adeus
agora eu sei do caminho infinito
essa estrada ilimitada repleta
de estações diferentes
não sei onde estou
perto ou longe?
em strasbourg as plantações
são infinitas e dão noutro país
já na região da alsácia-lorena
as guerras adormecem
com seus mortos silenciados
SEPULTAMENTO
acho que em berna não há velório nem sepultamento triste
tudo termina em volta da mesa num sorriso de criança
o sonho de uma vida morrer nos alpes no mais alto
perto do céu físico e longe da civilização complicada
LEVEZA
o chocolate pareceu-me mais adequado
consumido entre ruas da capital suíça
as vacas estavam logo ali de perto
me dando seu leite prontamente
os relógios me davam a referência
1138
que eu não queria o meu tempo de estar
sem pressa acabava no tique taque
do relógio cuco por todos os lados
as fotografias não dizem da sensação
da emoção elas ficaram lá inscritas
para sempre numa linha de tempo
coletiva eu nós os outros
testemunhas de um tempo que nem a morte
a morte é frágil agora nos roubará
nem a memória que apaga a função da memória
é a mesma do sopro lampejos do foi
bom
belo
puro
singular
o caminho de volta é o que dói
o abandono do que não será e já foi
a dor do que se fez realidade
o prazer do sonho realizado
é estranho e silenciador a saudade
é sempre um silêncio numa estação
que não é não foi
e ainda está forte e real
para quem viaja a vida é suspensão
estou suspenso há vários dias
alguém em mim está ausente
e me faz feliz e sei que esse alguém adormecido
vai voltar menos denso e pesado
entre berna e paris, 23/07/2010
1139
CHEIRO
o barulho do trem me dá medo
muito mais medo que o navio
os gemidos dos deportados no ar
abafados pelas portas dos trens
o sofrimento dos judeus paira
sobre a cidade
como um abafado suspiro que diz
não devia ter sido e foi
BEM CEDO
acordei com vontade de metrô
de subterrâneo
de entrar na toda do coelho
no caminho do rato
entrar em lugares calmos
como vincennes de uma calma
insuportável
entrar na association des études espirites
onde a lembrança de kardec estacionou
palpável
entrar em ruas desertas do sábado
onde o verde dos jardins e parques dão fome
mais que as embalagens com seus letreiros
em amarelo e vermelho
paris, sábado, 24/07/2010
ARTE
em azul tom sobre tom
com o céu ao fundo
se ergue uma caixa
gigante caixa de arte
1140
a arte é o centro da vida
de cada turista
pelo menos
no centre georges pompidou
BICHO DE CIDADE
os pardais
os pombos
os corvos
sabem que somos
finitos
que depois do inverno
o frio
será necessário
paris sem ninguém
seria linda mesmo
com pardais
pombos
corvos é magistral
MAÇONARIA
no museu da maçonaria
na rue du cadet o cão
pequeno cão me esperava
para mostrar o grande oriente da frança
templo hi-tech
em cavernas milenares
informações da ordem
em quadrilongo
1141
SOZINHO
o ritual de alimentação francês
é social demais para quem
viaja como eu
sozinho
é um destrato constante
ver pessoas em grupos
diferentes de mim
sozinho
[mas a viagem sozinho é um contrato
de solidão planejada para refazer
a vida de dentro]
sozinho
DEPOIS
o carinho
o afeto
são fortes para o corpo
eu preciso de amor
como as flores
eu preciso de carinho
como as dores
QUEIJO SEM VINHO
paris tem gosto de vinho bom
ou de queijo camembert de noite
dentro do hotel em pernas cansadas
esqueci o saca rolhas
dormi sóbrio demais
1142
POESIA DE MANHÃ
em paris posso escrever
mil poemas por dia
até pela manhã
quando a poesia
nunca se acha
ao meu lado
nem dentro
nem fora
nem perto
nem longe
a poesia não rima
com acordar cedo
o verso acorda tarde
em mim
PONTO
eu? onde estou?
não sei... devo estar
entre um ponto e outro
da mesma vida
ou entre um lugar e
outro da mesma saída
ou depois do tido e
antes do prometido
eu? para onde vou?
não sei... vou indo
apenas gerundiando
como se houvesse amanhã
1143
deve haver pois hoje
hoje acordei de ontem
e hoje foi melhor que
melhor que tudo antes
eu? estaremos juntos
vida e eu
fundos
a caminho de bruxelas, bélgica, 25/07/2010
CONTEÚDO
a janela do trem
me contem
queria sair por ai
num vai sem vem
a bestial vida
das dores eternas
da vida terna
cheia de problemas
desnovelar o enredo
e fazer segredo
da dor vazia
que dói
[enquanto isso o bilheteiro fiscaliza
cada passagem de um ponto ao outro
da europa]
bruxelas, domingo, 25/07/2010
1144
REAL
a realeza se espalha por bruxelas
nos prédios de placas imortais
o rei está vivo nas obras monumentais
no palais royal ou museu belvu
não vi castelos feudais somente prédios altos
e monumentos aos mortos das guerras
a idiotia da morte por causa da política
entre a paisagem urbana medieval
reis e rainhas sem castelos
mas com museu e palácio
MÚSICA
maria callas me roubou a atenção
na vitrine da loja de discos
ao lado do museu da música
maria callas canta agora aqui
na casa depois da viagem
ao lado de dentro de mim
com ela brindei bruxelas
e ouvi sons de instrumentos
no old england o museu sonoro
na catedral saint-michel
os sinos dobravam e me chamavam
mas não pude entrar senão no passado
[na minha cidade eterna há um sino
singelo que quando toca meche
com todas as saudades]
1145
DEPOIS
por que o último dia existe?
quem criou o primeiro dia
não sabia que depois
o tempo se extinguiria
e vem uma saudade antes
do que sei inevitável
depois
por que o depois?
paris, depois de um passeio nostálgico na place du tertle
BANAL
o centro georges pompidou
é feio por fora
e retem em si
obras de arte
pureza é ambigüidade
o outro lado é sempre
o inverso banalizado
VIDA
vou deixar a sombra apagada
pelo sol que vadio levou a memória
quero apenas o relance da saudade
a brevidade das coisas que valem
uma vida
pequena vida
de estradas tantas
como metrô de paris
a cidade onde
cada dia é suspiro
do que sabemos
da finitude
1146
queria ser eterno
apenas
mas sou espírito
aprendendo
paris, 27/07/2010, segunda-feira
FIM DE VIAGEM
a tarde terminou de frente para paris
eu não senti estranheza
nem medo nem torpor
eu sei que o sentimento breve
foi de novo a falta
que as coisas belas fazem na vida
DEFINITIVO
quatro meninas louras
violinos a tocar a alma
a primeira lágrima caiu
leve e bela ao som de moonlight serenade
o tempo arde em brasa
em saudade do que é
intenso e belo
a vida é bela
só não sabia das horas
era um intenso momento
eu me perdi
definitivamente
e depois outras músicas
me fizeram voltar
retornar para o hotel
paris, sacré-coeur, 27/07/2010
1147
VINHO
o vinho aquece a saudade
esse silêncio que não acaba
entre os tempos tantos
da realidade
eu não posso dizer de mim
sem a falta que em mim há
do que foi e a abertura cruel
do que será sem ser inteiro
HOTEL
o que incomoda é o frio
no hotel Roma sacré-coeur
o frio é combatido
água quente
aquecedor
janelas fortes
e mais há pessoas
prontas de todo modo
para esquentar os lençóis
ROTEIRO
no hotel onde braque morou
eu tentei ir pelos corredores
mas sobrou dele apenas
suas telas coloridas
pelo mundo afora
as pinturas pelas paredes
pareciam dançar comigo
haveria então um roteiro
escrito previamente
para mim agora?
1148
VISTO
os paquistaneses entram sem visto
tentam burlar as leis de migração
mas o controlador de bilhetes
não deixa imigrante ilegal passar
não sei por que me deixaram entrar
pela europa afora e agora eu me perdi
já não sei quero mais voltar ao país
onde o verde é mais verde
VAGAÇÃO
a volta da frança terminou no domingo
era tarde e na avenue champs-elysées
as equipes chegavam em glória absoluta
como voltando de uma guerra vitoriosos
vagando pela avenida tomada de policiais
passei pela casa onde morou santos dumont
ali construindo o número 9 que chegaria
um dia ao 14 bis
poderia ter ido ao jardin de tuileries
comprar um exemplar de o pequeno príncipe
mas continuei vagando sem rumo o que em paris
é um rumo muito certo sempre
CAIXA ACÚSTICA
a caixa de música de manivela
toca la vie em rose
e agora está inerte
sob o som da sala
o mundo paralelo deixado para trás
é como uma gaveta que se fecha
para ser aberta posteriormente
1149
BRANCO
cansei de me debater
os versos não chegam
caí para o lado
estenuado com a folha
em branco
total
paris, 27/7/2010
RESTA UM EU MESMO / 2011
O QUE RESTA É O POEMA
restarão entre as coisas
os nomes de cada coisa
por entre os pensadores
ficarão entre as couves
o fertilizante de cada colheita
perpetuando a fraqueza
deixarão entre os sentimentos
as dores e sabores de cada boca
efetivando a paixão
resta um
eu mesmo
nas coisas
do mundo
FORNO DE PASTORA
para acelerar o coração
vento de forno de pastora
o sopro mais quente
aquece por dentro
1150
MEDIDA
o cachorro mede da ponta do nariz
à ponta do rabo um cumprimento
que se estende ao infinito de um lado
ao lado segundo a matemática
o cachorro não está nem aí
para a matemática
VENDA
“vendo essa esquina”
dizia o anúncio
na movimentada
rota do bairro
compraram a esquina
hoje há um prédio
na esquina
vendida
ABALO
um abalo sísmico em cada entranha da alma
como se debaixo de todos os porões ainda eu
sobrevivesse aos devaneios da terra marcada
pela transitoriedade abalada
eu estou abalado nas estruturas
não como uma árvore depois da chuva
a chuva depois passar por todas as árvores
se esconder vaga no rio encanado da cidade
1151
a cidade que me consome
e não me deixa ser eu mesmo
nem diante do espelho trago
cada imagem do dia há dias desfeita
estou tão puramente entregue ao entregue
esperando dele venha senão o sorriso
da novidade não me incomodaria
a novidade não cruza a rota da tristeza
ESTRELA
quando um grande amor
acaba
uma estrela morre no espaço
mas o universo não pára
por causa disso
bem sei
VIRADA
tirar a roupa do tempo
de cada molécula e me ver
outro depois do tempo
ao seu lado
virar a página do tempo
de revista no passado e me ver
todo depois do tempo
dado
acreditar que o tempo vário
do relógio interior
possa trazer o novo amor
claro
1152
CHUVA
a chuva na janela pequena
do banheiro
insiste em me banhar
eu não posso sair
a chuva bate forte e chama
para fora
mas a água quente é salutar
eu não posso brincar
CAMA VAZIA
quando eu me virei para o lado
não vi seu corpo
nem queria
preferi a solidão
nem de manhã quando me virei
e não vi seu corpo
não queria
menti a superação
SITUAÇÃO
enquanto a chuva cai eu me visto
por dentro como a flor
sem vento se abre
para o centro
não me importo com os sons externos
nesse momento sou apenas
o vento quebrado
remoendo
1153
VERÃO
no verão apenas exponho
o corpo
oco
de emoção
no verão apenas componho
o verso
torto
da sensação
MELODIA
a melodia da cidade da infância
é tão profunda que corta
a entranha da alma
até calada
a sinfonia da cidade da infância
é tão conjunta que entorta
o caminho dos pés
na escada
JURA
juro não escolhi
mexer tão fundamente
ainda mais agora
no silêncio
na proteção da cidade
onde os cantos
são conhecidos
tão intensos
juro não prometi
afundar as mãos
na tristeza de ontem
aqui é agora
1154
meu primeiro amor
foi no alto da santa rita
e por lá ficou
há tantos anos
perdi o sentido da escada
os passos se perdem
mas não se traem
aprendi mesmo
juro não entendi
a palpitação da memória
ainda buscando seu corpo
entre as andorinhas
mas algo do tempo se foi
para onde vão as pequenas memórias
essas que valem a pena lembrar
apesar de todas as juras
apesar de todas as maldições
de todos os esquecimentos propositais
de todas as horas afogando as mágoas
apesar das fotografias escondidas
não voltam mais as horas
elas se perderam nos ponteiros
do relógio amigo que levou
de mim você de você eu talvez
ficou a sensação do tempo
de um tempo breve
belíssimo
serro, 30 de janeiro de 2010
1155
VENTO DA PRAIA
o vento que passa na praia
onde pastora faz quitanda
não sopra nos coqueiros
da praça joão pinheiro
é outro vento levado
trazido e jungido pelas curvas
do paneleiro e das três bicas
cozido no tempo dos pobres
o vento é sempre frio
menino que entra e mergulha
depois sai e se liberta
do fundo do rio
rola feito pedra nas margens do lucas
pois não conhece limite do curso
a liberdade do vento da praia
levanta a saia das beatas
na festa do divino se faz antigo
por que o antigo é sempre frio
e os sons da banda são tão passados
que a folia se repete há três séculos
o vento da praia é devasso
não sopra na praça
tem medo da rua da cadeia
foge pela mata de claudionor
RITMO DA CHUVA
no ritmo da chuva
a lata bate tambor
a manhã se torna
festa de ritmos
cadenciados
a chuva de verão
não sai do ritmo
1156
LIÇÃO
bem cedo se aprende
com a chuva a lição
acordar é olhar a janela
para saber qual a estação
não adianta sentir frio
na época que faz verão
não adianta esperar sol
no dia em que chove assim
há na natureza algo para além
da lógica racional da mente
esperar da estação o certo
é o que se deve aprender
SAUDADE DE PEDRA
as pedras da escadaria de santa rita
na cidade do meu interior
saíram dos rios
bem do fundo dos rios
os mesmos rios que hoje correm
miúdos feito tempo bom
nos rios as pedras rolavam para o mar
o absoluto mar do tempo
mas hoje estão incrustradas
na história da cidade
uma a uma amordaçadas
como um colar para santa rita
as pedras estão com saudade
da viagem do fundo do rio
para o absoluto do mar
quando chove no verão
as pedras transpiram
saudade de marejar
serro 29-12-2010
1157
VASTO
o passado é marca eterna
gravado feito marreta
na pedra sabão
o passado não se esquece
deixado feito trombeta
é gravação
o passado é pasto
vasto
PRECISO
o futuro é jeito de corpo
que ainda não se deu
talvez nem se dê
impreciso
O TEMPLO DO MAR
quando o sol bate antes de quebrar
a onda em mosaico de gotas
eu ouço a voz
de dentro
o mar é um templo
onde o tempo
cala
a fala
quando o pé ainda não encontrou o solo
do mar em apoio forte e o tempo
gravita entre o bem e o mal estar
de sempre
1158
o mar é tempo
silêncio de templo
fala
e cala
arraial d’ajuda, 17-01-2011
HIBISCO
a abelha percorre suas veias
as formigas sobem e descem
o beija-flor apaixonado
jura volta breve
hibiscos de tantos cores
amarelo
vermelho
cor-de-rosa
flor de praia
SABIÁ
num canto de terra
entre o mar e outro mar
ele eleva sua voz
em alto tom
dissipa o som
por lados tantos
me perco em sua mensagem
musical
o sabiá canta
encanta
1159
PITINGA
recifes cercam as ondas
até ali perto
depois é mar aberto
em pitinga
há rastafári
voo de ultraleve
contemplo
apenas
o movimento da praia
é maré que doa vida
aos de dentro
aos de fora
QUILOMBO
o gato tem nome
de terra vasta
esconderijo
chama-se quilombo
e rola na areia da praia
arredio
RETIRANTES
quando a maré sobe
os retirantes sedentos
voltam para ver
o que veio
o mar traz água nova
apesar de ser o fim
dos rios
1160
CASA TRISTE
tudo era triste naquela casa
até o vento que passava pelos corredores
escorria pelas janelas sem graça
arrepiava os pelos do cachorro
em fim de tarde na escada inacabada
AGUARDO
enquanto a nuvem não arruma a chuva
esquento a memória que me trai
mas não atrai sua presença
enquanto o avião parado aguarda a hora
dependo do tempo para lhe rever
mas não posso sair por aí
desatinando
desatinado
destino
destinando
ATRAIÇÃO
ainda nem me recompunha
da perda
da vida
veio outra venda ocular
vedando
o olhar
não sei o motivo do amor
ser galopante
tão empolgante
1161
ainda não sei o que opunha
de fato
no ato
o amor simplesmente chegou
fraco e oco
bobo e tolo
era ele de novo
eu sabia
apenas não o queria
SILÊNCIO É RAZÃO
por certo não quero
mas meu querer está frágil
ando querendo que outros
queiram por mim
para que eu me deixe em paz
por medo quero apenas razões
para concordar e ser ágil
não quero controvérsia
deixem em mim
apenas eu em paz de mim
MISSÃO DO ABSOLUTO MAR
em trancoso o mar recebe o rio
deixa-o viver em paz na maré baixa
mas quando vem a volta da lua
o mar quer apenas invadir
1162
e se lança nos mangues
desperta os caranguejos
meche com as raízes
bem fundo
depois vai embora deixando o suor
salgado sabor pela margem do rio
recuando diante do todo poderoso
mar absoluto que tudo pode
pois mesmo na ira da invasão
leva vida que sobe pelo rio
depois se despede mansinho
cumpridor de sua missão
o absoluto tem missões
que só o mar expressa
COISAS
as coisas tem forma
estrutura
peso
norma
há nas coisas coisas tantas
significadas em instâncias
como a boa e doce melancia
tem sementes nas entrâncias
as coisas tem peso
caimento
subimento
elo
há nas coisas tantas coisas
1163
revestidas de palavras doidas
como o maluco que tem boina
para o vazio da cachola
as coisas tem cheiro
apodrecimento
florescimento
inteiro
há nas coisas tempos longos
enchidos de vida em pompa
como o talher de família santa
passa de bisavó para filha em lembrança
TEMPORADA
o tempo volta
a dar voltas
soltas
rodopios tontos
pontos prontos
tantos
o tempo
erra
parado
o tempo
vela
vagado
o tempo vai
em dor e ai
paz
1164
A QUALQUER CUSTO
hoje NÃO quis assistir ao jornal
a televisão estava carregada de outras coisas
preferi olhar para dentro e sentir o vento terno
do fim de tarde encontrando a noite inicial mais uma vez
hoje não quis me vestir de bem e mal
deixei a verdade da idade gritar e pronto
caído em algum canto da sensibilidade agradeci
o fim do dia precipitado em noite que o tempo me fez
hoje não quis o barulho brutal
esqueci-me da zueira do mundo em volta
optei por deixar as palavras soltas feito nuvens
no fim de tarde resgatando da noite sua insensatez
hoje não deixei o tempo passar
eu o prendi dentro da liberdade
de fazer o meu tempo na minha vida
mais uma vez a saída para me encontrar
[eu me encontro agora
dentro de mim e não me chamem
poderei evitar o ruído externo
a qualquer custo]
NATUREZA
jogar o chapéu
bem perto
de algo
que seja ao léu
deixar a onda
discreta
1165
apagar
quem me ronda
subir a montanha
rápido
afagar
a nuvem tamanha
ANTES
antes de mim
eu era distração
agora que sou
me faço invenção
antes de mim
eu fui percepção
agora que estou
me faço evolução
RASTRO DE CHUVA
a chuva passa pelo dia
deixa rastros fortes
na folha verde
em mim
a chuva não ultrapassa
a janela do quarto
apenas da mente
enfim
1166
ALÉM EXISTO
a alma pulsa para além
no sofrimento
não se contenta
deseja remédio
a alma sabe mais de tudo
que eu sabendo do pouco
cravado na memória
da vida curta
a alma não resolve
apenas recolhe do tempo
o necessário para se libertar
rapidamente
a alma deseja sair de mim
para ser eu mesmo
o mais profundo
resiste ali
a alma sabe de mim
mais que de mim o corpo
o corpo é um oco passageiro
a alma sabe do cheiro do todo
SOSSEGO
se sobra tempo
divago
se falta tempo
calo
o tempo some
entre uma olhada
e outra
atrapalhada
1167
o tempo não falta
se durmo
é que o corpo
dói estar no mundo
quero apenas ausência
mas ela está para além
muito para além de mim
no tempo
o tempo corre
não pego
o tempo morre
sossego
AZIA
o vulcão interior
ferve o humor
a fogueira queima
alastra dor
a garganta sofre
pede socorro
o estômago revolta
arregala o olho
azia
1168
GOTA DE TEMPO
dentro da gota d’água
o vapor
o calor
a nuvem inicial
na gota d’água
o passado
o futuro
o mundo primordial
a gota d’água
é memória
é história
do mar abismal
eu tenho gotas d’água em mim
por isso vivo em função da paixão
do tempo escorrido na mão
na história única da encarnação
DE NADA SERVIU
por entre as veias do corpo
há ainda um pouco do corte
do destino sangrando
por entre a brisa e o calor
há misturado um quê de sorte
do destino desatado
você não serviu para nada
nem para palpitar o coração
na varanda da saudade
[o que se foi foi tarde
na brisa fraca da saudade]
1169
EU SEI
o vento entre os dedos
não melhora o medo
tenho fome do segredo
não contado cedo
foi paixão, eu sei...
daquelas de sótão e porão, eu sei...
FUTILIDADE
o dia trouxe apenas fantasia
coisa inútil brota
depois desbrota sem raiz
ao fim das horas
o dia trouxe apenas ilusão
coisa fútil entorta
depois desentorta em mim
o orgulho de sobra
GRANDEZA
nunca tive em mim profundidade
mesmo no abismo infinito
da dor
nunca tive em mim romanticidade
mesmo no cinismo esquisito
do amor
sou apenas um vulto
sem sombra alongada
sou apenas um pouco
sem pretensão de imensidade
1170
INTERVALO
não sofro entre o banho
e o jantar
nem entre o almoço
e o voltar
para trabalhar
sofro quando a noite
vai afundar em saudade
num tempo tão amplo
que me perco
e perder-se é sofrer
me perco
sofro
entre dois horários certos
não há tormento
a certeza impede o tédio
O DEPOIS É SAUDADE
antes da saudade
apenas o beijo
a lembrança
dos lábios
é depois
o depois é saudade
multiplicação da ausência
dos lábios em memória
que se apaga
quer se renovar
não pode
o depois é saudade
1171
EQUILIBRADO
acordei e fui para o jardim
não encontrei nenhuma rejeição
na luta entre as flores e as formigas
joguei água sobre a terra
nem me paralisei diante da secura
necessária para uma nova era
o ar estava tão leve
o silêncio tão profundo e fértil
nasci no novo dia renovado
equilibrado entre o bem o mal
que há dentro e fora de mim
ainda sem luz para ser total
respeitando a fisionomia do mundo
repleto de acidentes de percurso
eu não quero ser bruto
o dia me devolveu o equilíbrio
em forma de som de passarinho
em mim escutei o roçar das asas
o dia amanhecei no outono iluminado
não por que o sol está mais claro e forte
mas simplesmente por que eu estou assim
equilibrado
na corda bamba
do sim ou do não
1172
RESTA UM
resta um
eu mesmo
na tarde
na noite
basta um
seu medo
corro longe
quase dor
fica um
remendo
na hora
do amor
o medo de desamar
me afasta de você
o medo de afastar
termina em mim
resta um
eu mesmo
amargo
vazio
resta um
eu mesmo
apenas
um
mesmo
JAZ?
o sopro de dentro
para o mundo é alento
a fúria de sempre
para o mundo é defeito
1173
o amor inspira
e o mundo respira
o ódio destrói
a frágil ponte entre nós
quanta diferença
entre cada um de nós
num mundo tão feroz
e você o que faz?
jaz?
vivaz?
TRANSIÇÃO
devagar o dia some
poeira de horas
varridas pela noite
outra coisa entre o dia
e outro dia
perpetuar o dia impossível
passa breve ou rápido
vira outra coisa sem sol
quando em lua a noite
fere o dia
POR CIMA
por cima das nuvens do dia pleno
por trás do branco fundo
um verso escondido prestes a cair
bem em cima da folha pálida em silêncio
1174
o verso não vai escorrer pelo telhado
nem vai chegar com barulho de tempestade
virá manso como os herdeiros da terra
para se colocar diante do antigo nada da folha
onde era nuvem
agora é poesia
onde restava eu
agora sou eu mesmo
vivo a poesia
dos dias belos
e dos dias feios
POR TODOS OS LADOS
ainda haja saudade
ainda na insistência da mágoa
prefiro o amor puro
de puro amar
ainda na fotografia velha
resta a emoção do instante
não vou procurar pelo não vivido
me contento agora com estar sendo
livre e para sempre
um passado escrito
repleto de futuros
à frente
por todos os lados
que cabem a sensibilidade
1175
VIOLAÇÃO
o coração não enxuga
ele não é areia de deserto
de amar vivo imundo
em água de paixão
não dou voltas na solidão
encaro-a de frente rebelde
de amar torturo os puros
meu amor é violação
VULCÃO
se querer é ausência em desejo
ardo em medo de arder mais
por causa da falta de seus braços
e nas horas vagas seus abraços
meu querer não faz o mundo girar
muito menos o corpo amado
como um móbile alienígena
diante de mim ficar
o querer é mais que sou
foge ás cadeias de dentro
explode feito vulcão
nas horas mais impróprias
como agora
como sempre
1176
FLORIDO
é no sorriso
me perco entre os dentes
da boca
é no florido
me deixo entre as rosas
da janela
é no conflito
me faço entre as dores
da alma
é no cochicho
me ouço entre os versos
da folha
vazio é antes
depois esvazio
REFLUXO
o suor rola nas costas do homem
para por ali mesmo
não vai longe
estaciona
ao mar vão apenas os grandes rios
vertem por si mesmos
para se represar
eternamente
serei eu fluxo
ou refluxo?
1177
COXIA
o som da palavra
nem antes depois também não
que havia?
sentido
depósito
frio de letras
em contraste?
além da palavra
nada há senão
vazio
além de mim
nada haverá
ido
conjuntos
infinitos
de idos
verbos e sujeitos
como eu...
IGUAL
o mundo me coube
não sei: até quando
há muito que me percebo
marginal
o mundo me ouve
não sei: até hoje?
há dias me sinto
igual
1178
HAJA CORAGEM
cansado de encontrar
no fim do dia o mesmo
eu mesmo há muito feito
refeito e recozido
frágil a cada dia
desperto para isso
eu serei morto
há pouco
sei bem para onde vão
os sins e nãos
para o fim tumular
do silêncio
ensaio todos os dias
para o encontro fundo
entre eu mesmo
outro bom lado de tudo
mas é hora cedo
de deixar de lado
a coragem
[haja coragem]
ALHEIO CHEIRO
das boas passagens da vida
a melhor de todas
é a que volta em cheiro
de sabonete de hotel
ou de perfume alheio
[alheio sempre ao meu interior]
1179
borbulhando em memória
de idos tempos outros
de tanto passado
que apenas sobrou
o que nem sabia que guardava
[alheio sempre ao meu baú]
ESPERANÇA É POESIA
acho linda a poesia
não muda nada
nem ninguém
mas enfeita a tarde
acho bela a mania
dos intelectuais de hoje
como alguém
ceifando a esperança
os artistas são necessários
para clarear a tarde
os intelectuais não são
boas companhias para o por do sol
A VIZINHA
a vizinha não gosta de roseiras
vai ver tem medo das besteiras
da juventude
a vizinha corta as floreiras
sei que ela tem saudade
dos amantes
1180
a vizinha não gosta
daquilo que incomoda
como antes
as flores
as rosas
são amorosas
ESPREME[DOR]
vou espremer até o último verso
disso que agora sou um resto
vou defender meu último suspiro
como quem luta com ferido de tiro
eu quero até o resto de mim
jogado no mundo enfim
OCULTISMO
ele me ensinou
cada palavra tem outras dentro
e afirmava – isso é sinal de talento
nunca acreditei na poesia das palavras ocultas
no remédio leio a caixa a receita e a bula
não confio no que vem em permuta
gosto da palavra exata
nem menos nem mais
abdico dos penduricalhos
que todo ocultismo traz
1181
SANTA DE BRONZE DA PRAÇA
a santa de bronze fica no alto da cidade
uns vão para um lado da praça
outros para o outro lado
a rua é mão e contramão
a praça destituída de beleza
incomum no bairro alto
tem cimento e pessoas
de fazer nada andando
uns fazem nome do pai
outros pedem um pai com nome
são meninos da periferia e do alto
eu os conheci desde sempre e agora
a praça é caminho para fora
as cidades em volta são outras
serviços vastos gentes tantas
asfalto até na porta
a praça tem uma santa de bronze
não tine nem retine sem badalo
está lá estacionada como a vida
das pessoas da praça morta
nossa senhora da conceição
toma seu bronze de manhã
e à tarde já dilatada
pede a deus o orvalho
o pardal de vez em quando virá
acredite, pois!
as asas abertas sobre seu manto
aliviará o sol na cabeça com asas de menino
1182
ASSIM, ASSIM...
depois da chuva
o pé-de-moleque amolece
mas não chega a escorregar
na boca da banguela
a cidade é calçada
contra os medos todos
mas não evita a assassina
calada da noite
a cidade tem crianças
tem velhos ainda infantes
gerações que de tão renovadas
reinventam o mesmo de antes
[eu nasci ali
e fiquei assim assim
com medo da verdade
em mim]
DE POUCO, PALAVRA
o retrato do rosto
sou eu descomposto
nem sei bem quem a foto
colocou no meu bolso
passo a vida em encosto
tiro uma janela e ponho encanto
na reforma de dentro outro
continua posto
eu sou esse mesmo
de vário, nada
de muito, cada
de pouco, palavra
1183
COMO ERA AMARELA
a casa amarela tem ninguém dentro
só de vez em quando quando em muito
vem um casal que já foi jovem e hoje
visita a velha casa como velhinhos bons
a casa conta de cada ruga e de cada rusga
os móveis juntam poeira para contar das estações
o quintal tem goiabeira que me viu menino
e o sagrado coração de jesus já enxerga pouco
BOI, BOIS, DEPOIS
quando caio em tarde
me levanto em relógio
é o tempo ele sempre
resgatando o sorriso
de quem viveu vários anos
os anos passam a cada segundo
mas não penso em frações
penso apenas o tempo todo
como o que passou e se foi
numa corrida de bois
dessa porção do que não volta
é que sinto falta agora basta
o relógio indica futuro nada
é estático e vai se renovar
depois
PINCEL
pincelado fui
sem poder opinar
na tela que ainda
sou eu e flui
1184
passando tinta
não sei se pinta
coloração nova
a tela está quase pronta
cheia de riscos
plena de vícios
coberta de ciscos
eu sei, eu vejo
onde vai pousar
em cor e descor
em dor e amor
essa tela de ousar?
vou pintando, apenas
cenas e duras penas
ZIGUEZAGUE
profundo o rio corre
nele não se morre à toa
rio é vida não morte
rio corre não corte
vai como vai o tempo
vai vai e volta
em chuva boa
da mata
o rio faz ziguezague
envolve o olho
fica no mapa
parado em disfarce
vai como o dia vai
vai vai e torna
em rua torta
da rota
1185
FOTOOLHO
de dentro capto
o de fora rapto
rápido
ligeiro
fração de segundos
olho no olho
cor sensação
roubo o mundo
fotografo o ato
a coisa o que passa
o que fala e gesticula
prendo para sempre o fato
olho
fotografia
sou eu brincando
magia
SEIS E TRINTA
seis e trinta
toca o despertador do celular
soneca de quinze minutos
seis e quarenta e cinco
toca o despertador do celular
soneca de dez minutos
seis e cinquenta e cinco
toca o despertador do celular
ainda bem que são seis e cinquenta e cinco
1186
NOTA TARDIA
pela janela do ônibus sobreponho
corredor interno e calçadas da rua
o relance mira o ambiente pleno
lá longe a nuvem esgota sua chance
de chover em fim de tarde seca
como se a vida dependesse dela
o bem te vi tentou roubar os olhos
no fio de alta tensão da cemig
mantive a concentração na poesia
de carlos drummond de andrade
sobre o colo com alguma poesia
SOPRO DE MAR
passa a hora em salvação
não há pecado aqui
nem em cima nem em baixo
nem além do equador
pudera o tempo calar
desviar da tolice o ato
o banal fica eterno
preso às coisas
num sopro de mar
num sopro de mar
GRITO DE INFERNO
a ordem terceira do carmo se reunia
no mês de julho para comemorar o dia
frio intenso de pessoas com medo da morte
nossa senhora ajudava quem cria
os santos gritam em suas imagens
gritam inferno e punição
mesmo durante a liturgia
1187
FIOS DE TRICÔ
o fio de cabelo cai e não vai
quem tem rota é o humano
cabelo é ser estranho
na natureza do mundo
quantos fios pelo chão
emendados em tricô de horas
a colcha de retalhos dos restos
invade a cidade em tapete fúnebre
o fio de cabelo cai e não sai
livre em grito de alforria
cabelo é escravo orgânico
não sabe viver em palmares
MÃO DE MÃE
como se não fosse quente sua mão
o tempo considerava
era quente e úmida e sentimental
como se não tivesse na mão
um bom dia uma boa noite
como se não existisse um laço
entre as mãos se afagando
o tempo esgota a sensação
mas não escreve a verdade
a verdade é mais funda
a verdade é nossa
1188
BEATICES
o melhor da procissão
era o bêbado em tentativa
de seguir a linha reta
das beatas
ou sussurrando em ré
o dobrado da banda
em dó
ou olhando para o chão
enquanto o padre
mostrava o céu
o melhor da procissão
era o bêbado
MENTIRA SALUTAR
rumino sensação para o verso
encadeado em linha
uma debaixo
da outra
não alimento a dor do mundo
oponho o verso
resistência
aderência
ao verso cabe o inverso
a mentira salutar
hospital
funeral
1189
ANTES FOSSE
antes fosse o vazio
na linha
não o caminho
de dentro
falindo
antes fosse a fé
no espírito
não o egoísmo
de sempre
surgindo
antes fosse a alegria
na vida
não a hemorragia
da dor
emergindo
antes fosse o encontro
na esquina
não a desistência
do amor
suprimindo
antes fosse
coisa e palavra
apenas
fosse
antes
DIA REPETIDO
dia repetido um depois do outro
tempo perdido?
ou aviso de mudança e destino
gritando no ouvido?
1190
POR SOBRE AS NUVENS
por sobre as nuvens há colinas
tantas e várias e vastas
recolho entre elas calma
miro um horizonte para baixo
entre branco total com fundo de quintal
o âmbar das ruas veicula silêncio
as fibras óticas enterradas emitem palidez
diante das veias abertas das ruas em incandescente
iluminação de poste eu apenas sei de mim
por sobre as nuvens há colinas
ORVALHO
de manhã o orvalho
ainda tem orgulho da noite
o sol decompõe a neblina
evapora o sentimento
o dia é calor de decisão
prefiro a noite
permanência de solidão
e orvalho
GUERRA
o livro na estante
soldado enfileirado
na guerra
o livro restante
depois da leitura
condecorado
o livro sem leitor
dói em passado
desonrado
1191
A BANDA ANDA
a banda dobra a esquina
som de procissão eterna
cruza a cidade em reza
tem bumbo pratos contrabaixo
tem maestro clarinete trombone
silencia fundo
mulher homem
a banda não se perde
vai junto do coral de dona vilma
não entra na igreja
dá meia volta e cai no mundo
os músicos do interior
são inteiros
não precisam de deus
BASTARDO
por hoje basta
emoção demais
desgasta
por agora fica
amor demais
irrita
para amanhã quero
mais do mesmo
inteiro
1192
O QUE SÃO PALAVRAS?
a puta pariu
pariu a puta
puta a pariu
a pura partiu
partiu a pura
pura a partiu
a cura saiu
saiu a cura
cura a saiu
NOITE EM SONHO
na extensa noite passada
perdi de mim um tempo
um vasto tempo outro
dado por inteiro em outro ponto
é o sonho
é o sono
adjetivos
de quem dorme
a noite passou válida
permaneço vivo ainda
sobre os escombros
das estruturas adormecidas
PAUSA
domingo é dia de pausa
não que sinta necessidade de pausar a vida para recomeçar
sei muito bem que intensa como se dá não para e estaciona
1193
domingo é dia de aula
outro tempo passando vago e divagado entre as pernas
ou o sol se imponto no outono como recurso de caminhada
domingo é dia de sair da jaula
a rotina não prende há uma permissão para ir e vir dentro
do meu dia lento ou rápido feito apenas para mim mesmo
domingo é dia bom
gosto de bombom em páscoa
A PRAÇA
a árvore emoldura a praça
debaixo uma menina com outra criança no colo
calada passa a hora em sol que espalha silêncio
o beija-flor bem sabe que é hora de roubar da menina
o cheiro dos cabelos ainda molhados da noite em amor
da criança o som da alma que acaba de chegar de outro mundo
o dia se mistura na praça
PERNAS DE LADEIRA
do outro lado da cidade a periferia
se esquenta no sol da manhã ainda de outono
quando em frio e inverno é mais difícil
as mães tem medo do vento cortando a alma
os pássaros ainda não sabem da duração dos dias
de seca e de desamparo para seus filhotes
comemoram as penas no corpo miúdo
não há nota dissonante no sino batendo missas na matriz
não fosse o homem de pernas tortas vencendo a ladeira
acreditaria na vida após a morte
1194
TERRA BOA
muitos bichos dormem dentro da terra
saíra é um deles
de cor verde e azul
brilhantes
as minhocas vivem no solo
quando chove forte
elas boiam
sedentas de aventura
os peixes vivem entre terras
as margens do rios e lagos
são apenas precipícios largos
para a vida se contorcer
dentro da terra há aconchego
e desassossego
o vulcão que cospe larva
sabe disso desde cedo
SE CHAMAR, EU VOU
se o amor tomar as mãos e guiar
mesmo pela escuridão
eu vou
se o amor roubar as horas
diante do relógio da santa rita
eu vou
se é amor não digo não
sim digo sim veloz
eu vou
se o amor me pedir silêncio do encontro
desde que haja gemidos noturnos
eu vou
se o amor quiser partir cedo demais
1195
abro o destino novamente outro virá
eu vou
para o amor nunca fecho as portas
o vento é sempre o mais puro
se soprou, eu vou
ANTERIOR[IDADE]
o antes nada é
senão possibilidade
de durante
e sempre depois
o antes da fotografia
é imagem na retina
foco interior
pois
o antes da música
é contagem de tempo
a linha de acerto
das notas
o antes do amor
é deserto de angústia
tempo perdido
nada
o antes da morte
é quando resta um
eu mesmo
pronto
FUNDO DA PRAIA
no contorno do fundo da praia
o bairro mais fundo do vale
encontro a casa velha
com muro de pedra sabão
1196
a dona velha na janela
se veste de fumaça de fogão a lenha
quase ausente em dissipação
se mistura ao cheiro do feijão
se ela soubesse para além da fumaça
há um mundo outro tolo e sem graça
ficaria ali estática como quem amolece
diante do tempo pedindo uma prece
no fundo da praia
há situações estranhas
RIO MIÚDO
os rios escorrem pelas montanhas
não se encontram antes do mar
há um alinhamento perfeito entre eles
para molhar cada parte da cidade
todos são miudinhos
nascem logo ali num desencanto de nuvem
agarrada de medo no pico do itambé
[ela precisa chover
sabe
prefere a aventura de se escurecer
em raios]
AUSÊNCIA
falta silêncio
entre as expressões do medo
falta palavra
muda em pensamento
falta promessa
certa para quem vem depois
1197
falta conversa
honesta sobre sentimento
ausência não compromete
apenas oferece tempo
para que o novo
se manifeste
SUJEIRA
ainda que torne o vento
eu não restarei incólume
a pele tem sujeiras
profundas
O QUE FICA RESTA
fica um corpo
depois do poema
um doido
depois da demência
resta um pobre
depois da doença
um amigo
depois da tristeza
fica o tempo
depois da ação
um flagelo
depois da usurpação
resta eu mesmo
depois da febre
um poema
depois da sede
1198
GRANDE ELEGIA DO MUNDO /2011
ONDE ESTOU? EXISTE MUNDO?
o mundo existe
mesmo triste?
deixo a rima de lado e passo
de lado para outro
de dentro para fora
de fora para dentro
sinto como senti no parto
a tristeza do que se foi e bom se foi
para nunca mais
onde vivo adormeço e choro
és tu, mundo de grande fascínio
de grande beleza
de grandes homens e mulheres
mas triste e trágico como agora se dá
só sei que é um mundo pouco para
tanto amor
cenas dantescas se destacam no dia
que sucede a noite fria
nas nos paralisa mais e mais que a imagem
do mundo sofrendo como eu em canto de tempo
do ontem do hoje do amanhã
sabemos que poderá não chegar
como uma obra incompleta e deixada de lado
pelo pintor em mãos cansadas de reparar a tela
recolocando o tema em seu lugar central
onde vivo adormeço e choro
és tu, mundo de grande delírio
de toda impureza
de homens-bichos e mulheres-monstros
triste e trágico como sempre
1199
agora mais demente e figurado
terá fim essa aflição de ver-te pior a cada dia
como um morto sem esperança
nu na cama do hospital?
vivo em ti e sofro em ti a saudade
da pipa cortando o céu em inocência
não pousará em mãos de esperança
senão no chão deserto da vida dura
os meninos nascidos hoje são velados
desde jovens em futuro incerto
a crueldade vem com a chupeta
a televisão ligada na enfermaria
nasce-se vendo a morte na tela sem espanto
chora-se sem saber se o choro ouvido
causará comoção nos ouvidos surdos
o mundo, tu mundo, de
coisas variadas
e múltiplas e sérias e tensas
ilude os sentidos ilude os sentimentos
passa por cada um de nós como obtuso
decerto por causa do dia caindo
em tarde final como em ópera de
callas
a voz do mundo, tu mundo, é
tragédia
estar no mundo, mundo aberto em chagas
faz refrear a esperança pausada na asa da borboleta
tão bela e presa no mundo sem cores
o farfalhar das asas não mudam os sons
1200
os tiros os crimes os massacres
existir no mundo sem ouvir as asas em cores
da borboleta faz a noite mariposa ser longa
como as tranças da menina do interior
centro do mundo agora em
televisão
ou jornal popularesco em sangue
manchando a vida
o mundo onde existo é torto
sinuoso e abismal
caber dentro de seus limites
claustrofobia ingênua demais
a culpa é da vida?
a culpa é da morte?
haverá culpa coletiva ou
culpa de poucos compartilhada?
o mundo vivido
dentro em mim
se perde em flor
despetalada
roseiras
bico de papagaio
margaridas
orquídeas
o vento passa
em pranto
nas cores da natureza
talvez ela pura
seja o mundo
a parte do mundo
meu mundo triste
horizonte sem linha
vórtice sem fim
1201
caindo em horas
o mundo existido
parto de não
chão extensivo
de morta plantação
frágil existir é o nosso
o criminoso belo
ou cínico
ou puro e religioso
pode estar
em canto
em esquina
em trem
em ônibus
em carro
em garagem
em nova york
world trade center
torre um
torre dois
pentágono
em madri
atocha
el pozo de tío raimundo
santa eugenia
nas embaixadas
nairobi
kenia
dar es salaam
tanzânia
1202
vestido para matar
explodindo o mundo
primeiro o seu se inteiro foi
depois dos inocentes
um por um
em cada estilhaço de ódio
disparado contra
contra
contra quem?
qualquer ser vivo
as borboletas
as orquídeas
as baratas
a arara azul
o que vive e respira
morra pelo ódio
ou do ódio se sinta
vítima privilegiada
os estilhaços caem
inertes contarão os versos
em sangue e vingança
rimados
o mundo é lugar difícil
e não me digam
há esperança...
se existe, virá do submundo
onde a força da novidade
jamais desaparece
não estará na superfície
de agora no tempo
1203
estará oculta em casulo
por revelar em tempo
de salvar dos destroços
o coração que pulsa
e se pulsa saudade
de outros tempos
saberá pulsar o tempo
renovado em cinzas
de tragédia
qual fênix morta
ressurgida em asa
e vento e chuva
e sol e lua e madrugada
pronta para ser nova
novidade
existirá novidade não essa?
mundo, tu mundo velho
de velhas unhas
de velhos cabelos grisalhos
de hábitos enraizados na alma
criança nascendo de sete meses
em dor de mãe e de si mesmo
de pés tortos
de mãos que não afagam
que fará agora decadente
jovem velho sem forças
1204
cansado em si mesmo
dentro e fora lamento
dentro e fora sedento
da renovação?
mundo, tu mundo
certeira insensatez trazemos
os ditadores estarão livres amanhã
depois da revolução outra
sem ditadura e roubada da noite
em democráticas luzes da lua?
mundo, tu mundo
não estás cansado dos ditadores
escritos em livros didáticos
história
geografia
sociologia
filosofia
e poesia?
são tantos nomes habitando
a vergonhosa lista dos
assassinos
e qual promessa trouxeram
em suas armas de minério de
ferro
com almas de ferro
com punhos de aço
com coração de pedra?
estamos cansados
da ditadura travestida
1205
de amor à pátria
e ao povo
tu mundo, violento mundo
entronaste assassinos em
massa
sobre os campos verdes dos continentes
em ruínas erguendo a esterilidade do poder
não pode haver poder no
sangue do outro
nem poesia na surdez alheia
nem felicidade nos túmulos
cheios
tu mundo, vazio mundo
depositaste nos ombros dos violentos
o fardo da geração do novo
sepultaste o novo sob pés radicais
debaixo das botas de couro de
dureza legítima
matando a semente no chão
fértil ou no deserto das miragens
tu mundo, estranho mundo
encenaste a tragédia onde sorriso
deveria cobrir os palcos
eles nasceram
cresceram
e de arma em punho
mataram os corpos
um a um
dois a dois
mil a mil
1206
quilômetros e quilômetros
de filas de insepultados cadáveres
os crânios espalhados e ocos
cobram a dignidade dos velórios
a última lágrima não viram
e nem verão
é tempo de continuar a vida
em sonho e fantasia
de novos corpos
os seus ditadores, mundo
revezaram-se nos continentes
arrancando do anonimato
os corpos de homens e mulheres
e milhões de crianças
esses corpos se contam hoje
nos relatórios de guerras
de genocídios tantos
e gritam sua existência
apesar da frieza das tabelas
a todos eles nosso pavor
a todos eles nosso espanto
de terem corpo e alma
como todos nós viventes
a todos os continentes
impuseram
o medo e o terror friamente
merecem ainda os livros?
vamos retirar seus nomes
hoje, agora, vamos esquecer deles
para pacificar o dia
pela última vez quero ver grafados os nomes
peço a todos os viventes que
seja última vez
1207
que lhes dedicamos o tempo
de uma leitura
que lhes ofertamos as letras de um verso
que seja a última vez
em verso e prosa
pela honra de quem vive
pela memória de quem morreu
stalin
hitler
mussolini
franco
salazar
ceaucescu
mao tsé-tung
sukarno
pol pot
hussein
tojo
marcos
trujillo
pinochet
papa doc
stroenner
vargas
bush
speight
idi amin
al-bashir
al-gaddafi
mubarak
tu mundo, mundo absurdo
criaste os monstros?
mas depois dos monstros
1208
virão os salvadores da alma?
ou deixarás, ainda, no frio chão
os corpos dos milhões sem paz?
não podemos acreditar
mundo, tu mundo dos absurdos
depois dos massacres
o sorriso dos malvados
será pleno...
nada pode ser assim
há depois da morte bestializada
a culpa acreditemos nisso
como consolo e como alternativa
haverá para os mortos e para quem viveu da guerra
outros reencontros de regeneração
senão a esperança no mundo
tu, mundo sem pé nem cabeça
apagada ficará para sempre
o tempo do mundo
ainda será para reencontros
desses de dor e tormento
mas também de explicação
o algoz não pode sair da vida
prenhe de mais sangue
recuso a acreditar em temor
algum
de novos encontros
haverá pais e mães futuros
prontos para recriar a vida
e serão pais e mães algozes
de outros tempos
o ditador de hoje
é a mãe redimida de amanhã
o assassino de hoje
é o pai amoroso de outro dia
o mundo terá conserto?
1209
quando em concerto tirarmos
dos didáticos livros os ditadores
remover seus nomes
apagá-los não em ódio
ou vingança sentimentos vis
dar manchetes para os pacifistas
acrescentar notas de rodapé aos amorosos
recuso-me a acreditar na morte escrita
perpetuada e sem fim
os livros
os jornais
os olhos verão ainda
sei, tu mundo, sei de futuro
haverá página outra
da de agora
haverá, creiamos
senão as mortes
serão em vão
o mundo
no mundo
do mundo
nada em vão
haja continuação nas vozes
silenciadas
haja dia novo aos atrozes
assassinos
volte a poesia
em rima e verso alegre
agora em elegia
canto o desencanto
da saudade da paz
nesse mundo, tu mundo,
algoz da alegria
1210
o mundo existe
mesmo triste?
o mundo insiste
como despiste?
o mundo, tu mundo
vivo está
não aceito a morte banalizada
as manhãs de mágoa e dor terão fim
apesar de agora
sentimento do mundo perverso
divisão entre bem e mal
bons e maus
guerra
paz
POEIRA DE VULCÃO
do vento de dentro do vulcão
surge a fumaça tóxica paralisa aviões
a europa os aeroportos
como um vulto de fundo
o ar das entranhas da terra renova
quisera a saudade da
profundidade
ser apenas um sopro noturno
ou brisa de vulcão incensando
a vida
quisera o mundo doce e livre
das dores e atrocidades
parece: somente a brisa ficará
o mal arrebentará do fundo das almas
atormentadas dos homens
presos ao passado
1211
quando criança aprendi
no passado não se deve parar
exceto na saudade do amor
quando criança aprendi
as fotografias são belas recordações
exceto na presença de quem amamos
o mundo gera imagens de
violência
no jornais e
revistas e televisão
quisera o mundo se calasse
e na manhã do dia seguinte fosse
fosse apenas um sopro de brisa
da calma brisa das praias nordestinas
as praias acalmando a ira dos
frequentadores
com o ritmo das ondas
arrumando a alma
silenciando as dores
é do tempo, mundo inexato,
passar as coisas
as pessoas
o ódio
por que não aprendes
e deixa cair da face
esse rancor pela vida feliz, ó
mundo?
até quando vulcão
praias ventos e tempestades
tentarão refrescar
sua sede de corpos mutilados?
até quando as praias salgadas
aplacarão a fúria de tua língua
a devorar vidas em tragédias?
quisera do fundo da terra
1212
o coração do mundo em lava
purificasse os corpos
o mundo enquanto planeta
está arrepiado de pavor
e as camadas de terra
agitadas consomem vidas
os mares elevados em tsunamis
constrangidos pela ira
lambem em plagas altas
as cidades costeiras
lameadas de violência
e saques e roubos e tédio
os açudes secaram no interior
as chuvas matam no exterior
e de dentro para fora
o homem se perde
no mundo caótico
da imprensa trágica
há pouco espaço
para o ar puro da emoção
a que sustenta
no mundo, o coração
a que amplia
no mundo, a visão
os ritmos da terra
onde tu, mundo, existes
(sei que és apenas uma convenção
minha convenção, nossa convenção
estar no mundo é criar
significados de forte ficção
válidos esquizofrênicos
temporários e etéreos
1213
mas digamos: reais, plenos de realidade)
existes em meio ao fim
a natureza sabe recomeçar
o trágico, é natural
eu nunca aprendi o trágico
é parcial
volúvel
estranho
injusto
os ritmos da terra
por onde estás no meio de nós
em palavras frases vocabulário
sopram morte e espanto
os ritmos da terra
quisera fossem acolhedores
mas nos impedem de criar o mundo
o mundo, ó mundo, é frágil
pois se apaga na tempestade
do deserto na chuva fora de época
em colheitas impedindo em
furacões que despejam na
superfície escombros e mortos
os ritmos da natureza
pensava até ontem: renovam
mas apenas consomem o velho
e do velho virá tradição?
os ritmos da natureza suspendem
a lógica do nosso mundo: constância
equilíbrio e repetição
1214
em tu, mundo, destruído mundo
a repetição é apenas memória
na natureza a repetição
é novidade
onde estará tua novidade, mundo
se cessa ao nascer o novo
e quando desapareces
é pálida lembrança?
onde estarei em ti
para não desparecer e virar
memória de palavra abalada
onde me fixar em ti
para depois da tempestade
da cinza do vulcão
não virar cinza também?
o mundo é esquecimento
lento gradual e belo esquecimento
CANSAÇO E FÚRIA
o cansaço vem de longe
talvez de trás do morro
como a chuva na minha
cidade
a do interior do brasil e da
alma
o cansaço vem há tempos
talvez de imagem inexata
televisão de mundo pequeno
o japão é ali
1215
a islândia parece tão perto
a fúria cansa tanto
ver através do mundo
a fúria do outro
do sequestrador
do ladrão galã
do corrupto elegante
o ar se mistura
cansaço e fúria
e tu, mundo
revela sua alma
lugar de contraditos
lugar do impreciso
lugar da angústia
imagem
és apenas uma imagem
miragem para os salvadores
os meditadores
os homens de boa vontade
terei eu boa vontade
diante de ti, mundo em fúria?
como poderei estacionar a emoção
calma e lenta e meditada
entre seus ossos expostos
em jornais matinais?
não sei o que queres
se me levar para longe de ti
como um desertor
do exército da salvação
um menino cansado de correr
em volta da própria sombra
a mulher gestando a bola de
carne
grande bola de renovação
1216
terei eu capacidade
diante de ti, para mudar?
tu, mundo
és maldito por que muda
ou por que não mudando
impede a esperança?
mundo tão vasto
me caiba mais um pouco
só mais um pouco
para envelhecer
com sabedoria
em corpo
e alma
mas se quiser me abandonar
à própria sorte
farei como os pássaros
em queda livre de noite
(os pássaros não morrem de dia...)
deixando seu ar
se vento
seu tufão
sua miséria
para trás
sei que as noites amontoadas
viram história eu não quereria
pudesse fugir dessa sina
historiar em seus muros
quereria estar fora
como quem vê de longe
apenas o céu azul
em abóbada convexa
espacial
barriga do universo
pudesse a tristeza
ser apenas contemplação
1217
de sua grandeza natural
não os sentidos dolorosos
de ser seu estando dentro
da sua alma orgânica
quantos reinos
reinam em conjunto
na sua massa?
a água corre pelos rios
até o absoluto mar
a terra cobre os corpos
até o absoluta estacionar
o fogo consome a vida
tirando seu oxigênio
o ar quando em último suspiro
é vida bailando em frêmito
dos reinos
reinando em suas leis
prefiro o divinal
a ausência de ti, mundo
quantos budas fazem
do mundo ausência de mundo
em posição de lótus
no alto da montanha?
como estar em ti
sem estar em ti?
buda, me dê a receita
para ultrapassar o tempo
e deixar no tempo
outro eu
outro eu tão antimundo
sem medo do tátil
do que fere
do que serve
para a dor
buda, me dê a pista
1218
livre para me guiar
até seu fim
para ficar assim
longe de mim
feito passarinho
quando constrói ninho
o mundo sabe
dos que lhe abandonam
e ri dos que não conseguem
e a se prendem ao seu corpo
o mundo sabe
dos sofredores
e ri e se alegra
feliz e observa
na dor sua essência
na flor sua dinâmica
(a flor precisa de solo
como nós no mundo
repletos de raízes
família
escola
igreja
estado)
a cada necessidade
adormeço em comoção
meu solo no mundo
agora frágil
pendula
antigo relógio da santa rita
gritando as horas desde
o século dezoito
no alto da cidade
o mundo sempre
começa badalando
1219
chamando para a correção
das horas
o tempo do mundo
me chama desde pequeno
no relógio da santa rita
de lá júlia e magda anunciavam
os mortos entregando seus corpos
para a sepultura
felizes deles
não verão as horas passando
o sino tocando
provocação espiritual
do alto da cidade
o relógio ecoa nos rios
do vale frio do lucas
quatro vinténs
e remexe a vida
com suas palpitações
e chama
e clama
e mostra
e impede
e deixa
e retoma
e mata
e faz nascer
são tantos verbos para dizer do tempo
pintando as paredes do mundo
como os pintores barrocos
escondendo a cara do tijolo
por sobre as tábuas
da igreja velha
mas há verdade
por trás das coisas
é a verdade de cada
1220
um que necessária
mostra quem somos
porque somos
porque nos fazemos
no mundo
e tu, mundo
de almas pintadas
de caras falsificadas
de corações ocultos
de falas que mais
parecem carros alegóricos
do carnaval em chuva
pedindo abre alas
e tu, mundo
esquisito em seu tronco
torto em seus frutos
vegetando suas mudanças
que dizer para mim, agora
da saudade da alegria?
que queres, mundo
senão ocultar por trás
das palavras
venha a poesia
para te revelar
em versos
pulsando
outro ritmo
outro destino
eu sem poesia
seria mais vazio
sei de ti, mundo, cheio
não cabe em si
1221
O QUE QUERO, ACABARÁ
no alto do montanha me despedia
do mundo vago dos mortais e nem assim
passou por mim a
andorinha da infância
ela se retirou pequena em
novos mundos
nem poderia ficar: eu não
sou o mesmo
no alto da cidade onde um dia
na infância se instalava o sentido
nas moléculas interiores
do tempo
compondo o corpo no
mundo
eu me perdia mais uma
vez
em despedida silenciosa do passado
às vezes no silêncio da montanha se ouve
o coração calado há tantos
anos e um suspiro
de renovação se faz sentir
forte e bruto
como um soco no
estômago liberando a dor
a montanha traz de volta o caminho de dentro
puro como nuvem se dissipando profunda
a montanha eleva a alma
para dentro de onde
nunca deveria ter saído
para o mundo
mas que seria sem o de fora
perdido em busco do seu interior?
a montanha devolve o
olhar distante
1222
obrigatório para a saudade
de si mesmo
a montanha não permite estranhamento
separa do mundo como um casal em velório
a montanha sabe dos
caminhos árduos
para compor sua trilha em
ziguezague
se não soubesse seria ser humano
não montanha
se não soubesse
seria mundo
arrogante no alto
e nem estrelas brilham ao longe
na montanha elas brilham dentro
em abóbada noturna inconfundível
contornando o espaço de existir
no alto para o alto
do alto
vejo o mundo
arrastado em mim
não o quero, desejo apartar-me
nada mais que isso apenas
mas a montanha
exige retorno
voltar para o
vale onde lama
dá em rio rio dá em peixe
peixe dá em mar
mar dá em
absoluto
contrário de mim
mas a montanha pede descida
como retornar para o vale em enchente
1223
estou precisando
do ar rarefeito
para encher os
pulmões
não quero a lama do vale
para atolar o pés
de realidade
mas a montanha pede asas
como árvore gigante pede harpia
como harpia pede
plumas
como plumas
pedem vento
e vento pede
silêncio
que não tenho
há palavras
há palavras
há palavras
as palavras não param de
refazer o mundo
nem por um instante, há
sons dentro
e fora de cada um e o mundo solta
verbos de provocação
de intensa provocação
há palavras demais
há verbos demais
há períodos demais
o mundo é feito de
sons emendados
perdi o seu sentido
(dona milude faleceu e não pode
remendar a colcha de retalhos
dentro de mim e a tradição se
1224
rompeu acabando
com o conserto
possível das
minhas ligações
internas em tecido
frágil
passando em tempo
o tempo no mundo faz acabar
o que quiser é uma lei
tudo passará apesar
da beleza
apesar da poesia
apesar da
montanha
da tarde bela
apesar da janela da moça da roça
aberta para o mundo e o sorriso
escrito na convivência
tudo vai passar
o que ficará não se sabe
é construção do mundo
do mundo que rasgou
meus retalhos
e dona milude falecida não pode
remendar já que não está no mundo
com mãos de fada
mãos de adoçar goiabada
de dar sabor ao café da tarde de
dar credibilidade ao terço entre
os dedos
de dar afago ao tempo na pele
em rugas ensaiando a morte)
o mundo é cozido em panelas tantas
que nem cozinheira serrana pode dar conta
(as cozinheiras da terra do meu coração
1225
são habilitadas para fazer mil coisas
ao mesmo tempo
mas não podem cozinhar nas panelas
o mundo em tantos sentidos
haja panela de pedra sabão
haja panela de
alumínio
haja gamela para o
angu
nem o maior fogão da terra natal
pode dar conta dos mundos em
cozimento
agora nesse momento fervendo
passando do ponto
prontos para comer
sem tempero
que dará só para cachorro
ou o lixo da segunda-feira
as cozinheiras tão santas
de bocas limpas e língua
de temperar a vida
não podem dar conta do mundo em
ebulição
melhor deixar
em banho maria
o mundo para que seja
algo depois bem depois)
enquanto a montanha me eleva
o mundo continua batendo à porta
como a música da banda de música
abrindo as portas da igreja
fazendo menino jesus bater
palmas e largar o peito de
maria
1226
ou o silêncio que empurra as portas
da alma em noite longa de
são joão da cruz
de noite de desejos impuros
de teresa de ávila
de amores proibidos
de heloisa e Abelardo
as portas se abrem
ao vento do silêncio
e por elas entra o mundo
poeira de vida
brisa de oceano
tempestade da mata
sorriso de papagaio
briga de vizinho
escapador de carro
pipoca explodindo no carrinho
menino caindo na rua calçada
mãe agradecendo flores
o último suspiro da vida
dentro do hospital
o primeiro choro da vida
dentro da maternidade
o espantoso abrir das portas
do mundo em fúria
ou em amor
as portas se abrem sem trancas
quando bate de leve a palavra suave
de garganta amorosa
um pai nosso em dor
uma ave-maria em promessa
a certeza da fé em terços
multiplicados pelos
dias em rosário pleno
maria de nazaré traz nas mãos
1227
o rosário de toda uma vida
e da eternidade longa
tão longa como a cegueira do mundo
que fazemos em ti, mundo
senão esperar redenção?
que esperamos de ti, mundo
senão que da dor surja nova arrebentação
não de carne e fel
mas de amor e eternidade?
as portas do mundo
se abrem e se fecham
qual o segredo combinado
para entrar e sair em paz?
haveria paz
se não fosse a contradição
das imagens anotadas na memória
os mortos gritam
quando passam em dor
os falecidos continuam a
gemer
reclamando salvação
haveria paz
se não fosse o desejo
máquina acelerada de tempo
moendo horas e horas em projeções
nem o engenho setecentista conseguiria
processar os desejos infinitos da alma humana
haveria paz
mas os mortos ensanguentados lamentam
de cada algoz em vitória o sangue
em cálice
o corpo lapidado não gerou
diamante
antes, erosões profundas na alma
haveria paz
1228
não fosse a dor
repetida a cada geração
NO FINAL, RESTA UM: EU MESMO
entre os escombros do mundo
passado em televisão
em cores
ou preto e branco
entre os tolos escombros do mundo
passado em revista
pelas tropas da imprensa
prontos para a tragédia
entre os vários óbitos do mundo
analisados pelos filósofos
sábios e supersticiosos
aptos para o caos
eu passo entre suas horas
quisera passar mais rápido
para não estacionar nos dramas
eu passo entre as flores
quisera passar bem lento
para passar sempre cores de rosa
eu passo como passam as andorinhas
em silêncio de meditação
em manhã de frio
em névoa densa
eu passo sabendo que passagem
é sua regra máxima
-não estacione! me dizes todos os dias
por isso, passo
pássaro voador
em meio aos
escombros
eu passo para ficar menos mundano
suas cores não me comovem
1229
suas dores apenas me desolam
são de outros que são humanos
humanamente fazendo mundo
eu passo pois sei ainda não sofrer
se soubesse teria sorrido todas as vezes
que o silêncio
se impusesse à alegria
respostas para o mundo
essa alma efêmera haverá?
respostas para a alma do mundo
esse mundo sem sentido terá?
quisera fosse a noite
seu único mistério
e como a noite dá em manhã
dará um dia seu rosto para
contemplação?
quisera fosse o mundo
aceitação simples
e como um doente terminal
existisse em mim a verdade
mas a verdade não está no mundo
fora
está no micromundo
dentro
no final, resta um sentido
o sentido da consciência
pensante
pobre pensante
paupérrima pensante
no final, resta a chave
para o sentido do todo
como absoluto é tudo que é grande
(como o mar em absoluto fluxo
de rios temporários em rumo certo)
no final, resta a clave
1230
de sol fazendo a sinfonia
como grande é a música
em uníssono
no final, fico extasiado
contemplação pura e simples
sei que resta um: eu mesmo
para onde ir?
para dentro e rir
o sorriso de si para o mundo
é homenagem do transitório
para o transitório
seremos perenes
quisera ser mar
absoluto
mas dele tenho o luto
dos rios puros
terminados em sal
no sal depositando
todo o doce recolhido
nas montanhas gerais
o absoluto é feito de
unicidade
o mar é sal e sal puro
sem lugar para a doçura
de quem viveu
correndo entre serras azuis
o absoluto para onde vamos
- eu e tu mundo!
nos fará perder
para depois em sentido
(o sal dá sabor)
reviver
reviver
reviver
1231
PASSATEMPO / 2011
PASSATEMPO
a poeira cansada
rua
avenida
entre carros
caminhões
uma hora descansa
a estação chuvosa
vento
raio
entre árvores
casarões
passa uma hora
o amor eterno
carta
encontro
entre cama e mesa
emoções
tem seu termo
por que passam
as boas coisas
são aéreas
por que marcam
as boas coisas
são etéreas
SÃO BELOS
são belos os poemas
meus poemas, também pudera
vieram de dentro de mim, quisera
jamais ser poema e, sim, verdade
1232
são belas mentiras
as letras saltitantes, eu me vesti
ontem para a festa , quis me ver
impresso no livro, enfim
são belos os poemas
meus poemas de mim
BEM QUE TENTEI
queria escrever uma carta
veio apenas patifaria
queria descrever a história
coube apenas filosofia
tentei entender o mundo
brotou poesia
QUANDO: HOJE
de quando em quando sei
sabendo desdenho da vida
ilusão pura
de ótica
de prática
de quando em quando rei
governo o desejo do corpo
percepção dura
de gemido
de frêmito
1233
QUADRO FELIZ
não calo nem calaria
como outro dia faria
a noite está silêncio
não desejo beijo
nem corpo
há um som
de dentro
invisível
dizendo
diz... diz... diz...
escreve em quadro com giz
barulho de professora feliz
cheiro de álcool de mimeógrafo
a folha do tempo se vira velha
não calo nem calaria
como outro dia queria
BRINCO AZUL
o vento passa por entre os cabelos
dela em vulto cruzando a avenida
nem percebe a saudade deixada
para trás de seu movimento afoito
a menina de brincos azuis vai linda
entre as árvores descompostas do outono
nela não se veem os galhos da idade longa
apenas a leveza da primavera imprensa na tarde
o vento vai cruzar a avenida novamente
todo dia é dia de brisa ou tempestade
1234
BANALIDADE
por trás da tarde
nada há
senão destino
existiria
não vi ninguém
nada mal
estou sozinho
banalmente
ESPERANÇA
desde revelação em profunda terra
no leito do rio vai rolando
o diamante cai um dia
desses dias de sorte
na bateia
do garimpeiro
nada diz do tempo
entre o fundo da terra
o rio rolando nas mãos
até a chegada aos olhos
do garimpeiro
em bateia aguardando
há tempos longos
como agora em sonho
de ser tempo outro
estranho em rio
e diamante
e garimpeiro
uns dirão: esperança
1235
SOU
das coisas idas
retratos em gavetas
não há um sinal
de saudade
agora já houve, sei
ontem, não, anteontem
debaixo da árvore
quando soube de mim outro
das coisas sumidas
cartas em pastas velhas
não tenho a menor
pena e pranto
já se ouve o tempo
tocando as letras
para reviver antigas
tristezas que não as quero
já fui saudade não mais
já fui pranto e pena não cabe
em mim há outros vazios correndo
nos cantos onde havia melancolia
já fui outro
agora sou
apenas
sou
DESPISTE
despistei a brisa
ela trazia memória
traria seu cheiro
1236
de sabonete de bebê
quem sabe o livro
cheiro de história
impregnasse todo eu
dei nega no vento
ele pedia saudade
daria um jeito
sempre deu eu sei
de falar do amor
enroscado no abismo
do tempo esquecido
não ouço a natureza
em medo interior
calo o sentimento
para não arder em febre
de saudade
de novo, não
de novo, por que?
ABANDONO
abandonar o verso
sob a árvore
o outono em folhas
adubará a rima
colher o verso
em raiz funda
a primavera em cores
dará seu brilho
1237
REPETIÇÃO
em volta
a realidade vista
nos convence
tão vivamente
criamos a verdade
o que repete
tantas vezes
eternamente
verdade se faz
de raiz e caule
verdade?
onde está
fora ou dentro
no inteiro e cheio
ou vazio e feio?
ÍNFIMO
lugar algum estou apenas em
em alguma proporção mínima
ínfima resolução de ser pouco
caibo em mim tão bem fico
não intrometo em outros
não gostaria de ser muito
nada sou
sou nada
1238
AVISO AOS DITADORES
gostaria de lembrar a quem de direito
das flores nascentes da manhã
rosa vermelho alaranjada
gostaria de registrar para a posteridade
o lindo nascer do sol de outono
nuvens brincaram de montanhas
gostaria de dedicar aos ditadores
o sorriso da criança o primeiro passo
o nascimento da barriga esperançosa
gostaria de escrever numa grande pedra
o mundo pulsa vida apesar da dor
de cotovelo de cabeça da política
ainda cabe mais um na insistente
mas digna tarefa de renovação
para algo que mesmo não sabido
já grande se apresenta
por que saiu de nós
essencialmente bondade
VERSOS PROIBIDOS
a folha de flamboyant no chão vista não é ainda poesia
a folha de flamboyant triturada em palavras em mim é ainda não
poesia
a folha de flamboyant na rua da amargura pisada pelo destino
solta no mundo como eu solto em ladeiras e ventos
talvez seja início de poesia
o que proíbe um verso?
1239
ENGENHO
sou engenho
moenda de cana
cana-doce
estrutura em dentes vários
grudados um no outro
movimento
extração de doçura
provocação de garapa
calor de aço contristado
resta do corpo
memória de suco
a vida é árdua
CANÇÃO DO ATRASO
vai dar tempo
sei que vai dar tempo
sai de casa sem relógio
certo agora corro
vai dar tempo
não vou perder a hora
ela, já perdida, virá boa
a boa hora chegará
apesar do atraso do tempo
corro, corro, corro
o vento sopra ainda
frio e quente e corre
vai como eu mesmo
1240
de um lado para outro
da cidade que atrasada
atrasou o meu tempo certo
vai dar tempo
ouso dizer que vai dar tempo
apesar do motorista
ouvir rádio
do trocador dormir
da menina do lado cochilar
do verde cair pela calçada
do sorveteiro contar dinheiro
vai dar tempo, eu sei
mesmo que haja manifestação
das prostitutas da praça da rodoviária
ou dos militares e dos civis
juntos até que enfim!
vai dar tempo
preciso parar de pensar
no relógio gritando
no sol mudando de lado
na lua crescendo
na maré enchendo
em osama bin ladem
em barack obama
vai dar tempo
preciso esquecer
a conta a pagar
o banco em visitar
o caderno para anotar
o amor por declamar
a ligação para contatar
(o motorista deve estar brincando
deu boa tarde para a velhinha
ajudou o moço a subir escada
buzinou para o colega
1241
elogiou a moça bonita
comprou jornal popular
pegou cada passageiro
desviou do canteiro de obras
cantou música popular
sorriu para o guarda
informou a rua certa
escutou reclamação
anotou telefone da amante
dispensou a pressa no sinal...
o motorista quer me enlouquecer?
combinou com tempo
me deixar sem tempo?
investigou meu atraso
quer tirar um sarro
da minha cara de espanto?)
mas vai dar tempo
se não houver chuva no caminho
nem bloqueio continental de bonaparte
nem alerta de segurança nos estados unidos
nem sinal de bomba em paris
nem sinal de vida em marte
ou fim dos dias em outdoor
vai ar tempo
o bem-te-vi contou ao sair
asas e pneus são para voar
apesar do relógio acelerado
da vida acelerada
do tempo curto para curtir a janela
vai dar tempo mesmo hoje
preferia dormir mas acordei tarde
o sonho melhor que a vida
o sono melhor que a lida
o silêncio melhor que tudo
tudo tudo tudo
1242
vazio melhor ficaria
mas vai dar tempo
o motorista resolveu
lembrar do coletivo
do coletivo cheio de atrasos
cheguei a acreditar
perderia o tempo
o tempo não vai embora
presente como guerra
batalha contra relógio
sei que vou chegar no horário
vai dar tempo
a velocidade das rodas
os pontos passando
todos anotados na memória
as árvores sorrindo sem graça
os pombos dando espaço
nas ruas cheias de lixo
as placas tristes para trás
o ponto de ônibus à frente
à frente é o meu
estou chegando
vai dar tempo
sabia que ia dar tempo
o tempo é meu amigo
de rugas marcando a face
de nós a garganta
de saudades a alma
vai dar tempo
vai sobrar tempo?
sim, vai dar tempo...
quero que dê tempo
para me olhar chegando
para me enxergar em quase atraso
obrigado bem-te-vi pelo aviso
1243
QUANDO OLHAR NÃO QUERO
a luz à frente mostra
não desejo ver
fecho os olhos
perco
a placa à frente indica
não quero saber
fecho
deixo
a vida à frente incita
prefiro temer
fecho
prazer
a rotina mostra
calar
acho
saber
RETIDO
o peso do corpo sei
variou pouco
estou no mesmo
vários anos
pelo caiu
saliva evaporou
cheiro partiu
pé doeu
variação pouca
entre um dia e noite
entre bem e mal
1244
corpo, afinal
corpo registra
sinais e sinal
não encabulo
corpo é normal
o corpo vai bem
vive para viver
morre para reter
o amor
nunca lhe tem
batida de coração
suor nas mãos
tudo bem
o amor passa
o corpo aliás
não durará
infinitamente
INÚTIL VIADUTO
a saudade
criou viaduto
entre meu muro
e seu silêncio
inútil viaduto
não transitamos
não caminhamos
entre nós
chamem o engenheiro
destruam o viaduto
joguem ao chão
o amor impossível
1245
PASSA, NUVEM
enquanto as nuvens
acima do mais alto
em mim
lutam por espaço
enquanto os ventos
jogam as sombras
em mim
sol omisso
enquanto no alto
a fluidez total
sem fim
passa tempo nevoeiro
enquanto me solto
das algemas de ti
enfim
as nuvens se calam
[o pico do Itambé agarrou a tempestade
para tomar um banho no calor do verão
saudade da cachoeira com cheiro de montanha
de sabão de nuvem espumando em banho]
TEMPERO
pudera exceder no tempo
o tempero despendido
pelas ervas
à comida
a memória do tempero
se eterniza
no paladar da fome
1246
essa vontade de ter entre os dentes
cozidos em tempo certo
em cheiro certo
em temperatura certa
o tempo passa
o tempero fica
MAIS QUE PALAVRAS
cumplicidade entre
coisas não pensantes
o cachorro em festa
o papagaio conversa
o pintassilgo espera a água para o banho
a roseira pede água em silêncio e agradece
em cores atraindo abelhas e beija-flores
cumplicidade entre
seres vivos
a natureza cheia de poesia
explodindo em domingo
ELEGIA DO PASSARINHO
caiu seu corpo em noite alta
não vi, pois dormia em solidão de impossibilidade
os bichos tem mania de morrer de madrugada
queria estender uma rede protetora para sua partida
mas o tempo dos humanos e o tempo dos bichos
é outro e eu dormia enquanto seu corpo falecia
pudera eu assistir seu último suspiro
o último olhar para o mundo dos vivos
mas eu dormia quieto no leito e seu leito de morte
1247
visito agora em amarelo tão vivo que parece dormir
ou em letargia tão profunda vai acordar em cantos renovados
seu canto vai ecoar pela casa por muitos anos
o amarelo de seu corpo tão puro continuará brilhando
nas fotografias do passado em lápide de saudade
agora livre seu canto se espalha por outro mundo
sua pequena alma se encanta com a liberdade
essa que perdemos ao fechar a porta em segurança
sentirei saudades de colocar água para seu banho
espalhando alegria: qual a necessidade do banho?
seu corpo tão livre de sujeiras e pecados
brincava em água agitada feito rio de verão
mas agora somente a terra vai banhar sua pequenez
ficou o alpiste sem uso triste na embalagem
ficou a gaiola vazia em revolta de silêncio
o passarinho voou como todos sabem
para fora da gaiola do tempo
para fora da gaiola da existência
TROCADILHO
se soubesse nunca mais
ficaria mesmo morto
ao seu lado
não vê meus olhos
quer saber de mim?
não sou outro
apenas distante
se soubesse para sempre
esperaria seu sorriso
1248
toda noite
não crê nos meus olhos?
não vê: são os mesmo ainda
olhando seu destino do meu
se perder
se soubesse de agora
calaria o tempo
da ausência
a dor extrema
quer dizer em mim
amor
POEMINHA VAZIO
nada mais a dizer
se nada a dizer é calar
nada mais a sofrer
se não sofrer é não amar
fica sempre o não
possibilidade vazia
do que passou
no coração
nada mais a dizer
em verbo intransitivo
nada mais a sentir
o mundo está sofrido
há dias assim
sem vontade
sem doçura
chatice pura
1249
ESTILINGUE ASTRAL
o asteroide entra na órbita da terá
em chamas de vermelho intenso
culpa do deus lá de cima
brincando de estilingue astral
ele cata pedra no cinturão de asteroides
ajeita o estilingue e dá uma risada
a terra gira rápida e escapa
da pedra na cabeça
quantas marcas esse deus de fora
deixou na lua tão miudinha
o rosto cheio de marcas
como espinhas depois da adolescência
se houvesse tempo lá no alto
para medir a brincadeira da divindade
jogando pedrinhas do big bang
na noite terrestre
vem mais uma
gira terra
translação
vem mais uma
corre terra
rotação
diminui a noite
deixa entrar
o verão
1250
OUTRO DIA
já é tarde da noite
o dia queria fosse assim
até agora
mas já é tarde
basta ficar parado
o relógio ultrapassa a lua
revira os ventos
muda as estações
já é tarde no apartamento
tarde demais para reviver
tarde demais para aproveitar
vou deixar o dia tardio
ser afinal ele mesmo
em fim de noite
já tarde
acabando-se em madrugada
outro dia virá?
DIA BOM
elástico dia
estilingue de horas
jogar-se na manhã
dormir à tarde
vigiar a noite
a lua está lá fora cheia
prático dia
feito de pequenezas
um bom livro
uma boa conversa
uma qualquer coisa
a vizinha está lá fora cheia
1251
PASSO A PASSO
enquanto o sol
prepara a noite
em orvalho
enquanto o mistério
encara a razão
de frente
passo
de passo
em passo
descaso total
sem orvalho
sem mistério
realidade
pura e banal
COM ELA
por debaixo do asfalto
entre as pedras
atrás das montanhas
vem e se espalha
pelas horas da manhã
pelas estações do ano
por entre os cabelos
e mais interior se faz
consciência
de desilusão
1252
CARTA
até breve, não houve
até mais, não coube
a palavra final foi
nunca nunca nunca
mais
era tarde, num café
depois a noite
depois a carta
recebida? lida? rasgada?
jamais
melhor assim: posso respirar
o ar da tarde em paz
apesar da saudade
SENSO PURO
incompleto estar no mundo
faltam ainda alguns litros
ausência de tantos quilos
apesar de ser
incompleto estou
sempre em falta
SER BOTEQUIM
o interior do ser visto por dentro
assemelha-se ao botequim
bêbados em silêncio, não muitos
cadência de velório e dor, muita dor
em cada canto das paredes azulejadas brancas
1253
nem a mulher da propaganda quase nua
alegra-se com os consumidores
há um jocoso tédio: é tarde demais
para recompor a vida e voltar a música
o espantoso momento em volta e nada de eco
apenas e apenas é muito agora um alívio
o tempo passa
preciso apenas somente apenas
por mais difícil que seja
soltá-lo de mim, deixá-lo reembarcar
em outros lugares
o tempo passa
a propaganda passa
a mulher passa
o bêbado passa
[deverei acreditar?]
SIMPLES
a noite recolhe silêncio
o vento passa frio
a lua é inverno
o tempo encolhe lento
é hora de pausar
para expandir
em cada silêncio
recolho meditação
em cada tempo
simplificação
1254
MISTURA
na flor
pronta, perfume
antes, odor
na dor
tanta, queixume
antes, posterior
as coisas
embolam, sempre
durante, ou eternamente
DOMINGO
o tempo passa leve
apenas no domingo
obrigação é peso
segunda-feira
antes da segunda-feira
o domingo se veste
de pouco em silêncio
a semana começa trotando
SILÊNCIO DE PEIXE
o peixe não ouve palavra
burburinho de mar nada vale
não avisa chegada
nem dispara o coração
o peixe não tem palavra
nem se preocupa com o alfabeto
as palavras do mar não calam
nem falam absolutamente nada
1255
VESTIDO DE BAILE
se não fosse o vestido
rodado em baile
não haveria mundo
girando no espaço
o círculo
a elipse
são os mesmo
no vestido
ou mente de deus
DO PROFUNDO NÃO SE DIZ
gostaria de falar no verso o que está por trás do verso mas já não
seria realidade, apenas, pobremente, mera descrição
gostaria de dizer do belo por trás de cada beleza mas já não seria
fidelidade, apenas, fracamente, sons partidos
gostaria de calar a lágrima que está para depois da música mas já
não seria emoção, apenas fragilmente, fuga
do profundo não se diz
vive-se
ELEGIA DA ESTRELA
seu dedo indicador
desenhou o cruzeiro do sul
desde aquele dia entendi
o céu foi criado por suas mãos
cada estrela do cruzeiro
recebeu o seu detalhe
eu nunca havia visto o céu
1256
por isso era ainda criança
o céu nunca mais foi escuro
as três marias se deram as mãos
o rosário de estrelas fez prece
pena que somente a saudade se revela agora
no tempo onde os desenhos se apagam
ainda brilham as estrelas no céu
é sua lembrança mais pura
entre as serras do serro
quisera se apagassem apenas as lágrimas
não as vidas que nos contornam para sempre
as estrelas brilham forte para lembrar
o amor não se apaga, existirá sempre
PONTE
a ponte inútil
no meio do caminho
solitária
estática
somente de vez em quando
entre seus corrimões
um veículo
de hora em hora
de dia em dia
de noite em noite
passará
não como o rio debaixo
em peixe alga e vida
a ponte só tem sentido
1257
na travessia ocasional
de alguém
que nem sabe de sua armação
em cimento
e metal nobre
ABANDONO
o abandono do primeiro gato
no bairro
pelo mundo
o abandono da primeira pomba
por sua conta
por seu risco
o abandono do primeiro cão
no asfalto
na roça
gerou essa necessidade
de seu abandono
de mim
a culpa não foi sua
bem sei...
a culpa é
do primeiro gato
da primeira pomba
do primeiro cão
deixados à própria sorte
sobrevivendo de saudade
mas resistindo e criando
resistência contra o desamor
vivam os abandonados!
1258
PAISAGEM QUASE ESQUECIMENTO
as nuvens no céu
tocadas pelo vento
sem rumo
ermo
um dia se cansaram
do voo sem parada
extenuadas resolveram
fixar morada
as nuvens cansaram de voar
ser nômades
errantes
e se fixaram no chão
perderam a alma das brisas
das evaporações e endurecidas
paralisadas como pedra bruta
tornaram-se imóveis e inflexíveis
a paisagem de minas
é quase um esquecimento
da alma nômade das pedras
cansadas do voo da vida
ROÇA
o remédio para a cidade
é a roça de milho
plantar
colher
comer
o remédio para a cidade
é a troça da vida
1259
rir cedo
dormir cedo
para controlar a idade
POR DEBAIXO DA NÉVOA
o horizonte em montanhas
vistas do alto
cobertas por névoa
é uma nuvem gigante
de esquecimento cobrindo a paisagem
(mas por debaixo há montanhas
de um azul real repletas
de saudades e caminhos
que dão em cidades)
FORMA DE NUVEM
não havia nuvem sequer
nem pra lá
nem pra cá
onde olhasse era vazio
de azul
em azul
puro
e como não houvessem nuvens no céu
eu as criei para dar forma ao sonho
IBITIRUY
o vento da terra do interior
a terra onde nasceu meu corpo
e vive minha alma
chama-se ibitiruy
o ibitiruy sopra de leste para oeste
1260
espalha sementes pelo ar
arqueia o capim
lança longe os grãos
catapulta medieval
no início da criação
o ibitiruy brinca
de agricultor
SEIO DE COPA
na fazenda grande
de casa branco com azul
a árvore desponta no meio
da paisagem rural
como um seio gigante e farto
a copiosa copa se avoluma
em redondo mamelonar
grudada à terra
que lhe segura e alimenta
VENTO DE INVERNO
o vento do ônibus
do avião
do carro
do menino vagando
não desperta a semente
para a vida
apenas o vento do inverno seco
anual
eterno
sabe a hora de jogar o grão na terra
antes da chegada da primavera
chuvosa
e cheia de mimos
1261
ESTAÇÃO
o inverno é estável
não há os revezes de outras estações
o verão é tempestade
há sempre renovação no vento e na chuva
que preferem os bichos
da terra
e de debaixo dela?
DISSIPAÇÃO
a névoa sobre a mata
ainda repousava em silêncio
costurada sobre o solo
em agulhas de orvalho
sob o olhar da lua branca
quando o sol invadiu sua intimidade
elevando da relva em dissipação
o dia nasceu sem névoa
tragada pelas nuvens
em desenho de criança
ANDORINHA
a andorinha acorda cedo
sacode as asas ao sol
observa no chão os insetos
sonolentos depois da noite
quem acorda
primeiro
vive mais
1262
ROSEIRA
a roseira da casa
abre pétala em sorriso
a cor é vermelho
veludo
a roseira da casa de
marlene miranda
fica na escadaria
da santa rita
há fotografias
correndo o mundo
em vermelho veludo
e pétala em sorriso
a rosa
dá boas vindas
para quem chega
e pede água
ANTENA
as pernas desengonçadas
das torres de televisão
de telefonia celular
de rádios
tramadas pelo engenheiro
suportam mensagens
tristes e alegres
a toda hora
sintonia
de peso
1263
PEDRA REDONDA
o por do sol é atrás da pedra redonda
sei que lá habitam seres especiais
os piratas de além-mar
o pequeno príncipe e sua rosa
as bruxas e suas vassouras
as fadas madrinhas carinhosas
no por do sol eles se reúnem
para o descanso merecido
o pirata ouve o papagaio
o pequeno príncipe beija s rosa
a bruxa pensa na receita
a fada madrinha cochila
na pedra redonda eles vivem
e no por do sol eles se encontram
para divertir a imaginação
e fazer o dia nascer feliz
FRIO DA MONTANHA
a letargia do frio da montanha
impõe ritmo lento a todos os seres
(como fica, então, minha mente apressada?)
GRAMADO
enquanto a grama do adro
da igreja de santa rita
enverdece
renovada
1264
enquanto o sol passa
a brisa convida
a semente a brotar
todo dia
as cores da grama
são várias
os verdes matizados
brotam a cada segundo
quantos anos se tecem
o gramado para os pés?
JANELA DE IGREJA
em cada janela da igreja
pequena ou grande
triangular ou quadrada
um mundo se fecha
outro se abre
qual dos dois preferir:
o de dentro
ou o de fora
o sagrado
ou o profano?
PLACA, ESTÁTUA
para as estátuas da praça
para os bustos de bronze
para as placas comemorativas
não há estações
tudo é estacionário
desde sua inauguração
1265
CHEIRO DE VIAGEM
cheiro de viagem
para a cidade do interior
fumaça de forno de pastora
temperado com lenha do pasto de claudionor
carne moída com pimenta
do pastel folhado de nondas da churrascaria
casa fechada no inverno
impregnada de café pela manhã
poeira abafada com água de mangueira
ao final da tarde na rua da cadeia
ônibus na rodoviária dentro ou fora
absurdamente repleto de substâncias inerentes
a cidade tem cheiro
de viagem para dentro
memória de infância
estacionada no mesmo ponto
ORVALHO
o orvalho renova a noite
mas não germina as sementes
espalhadas pelo vento do inverno
o orvalho não enferruja os bustos da praça
são caras de bronze eternizadas para o riso
quem gostaria de ficar ali parado na noite?
1266
PROBLEMA DO DESEJO
o desejo não envelhece
problema do tempo
não meu
o desejo não cessa
problema do termo
não seu
o desejo escapa ao controle
problema de cerca
não teu
o desejo prende a alma
problema de religião
coisas de deus
USINA EÓLICA
na usina eólica do camelinho
quatro hélices de 3 abas
formam quadrado
para pegar o vento
só vi poesia
na preguiça de vento
ao fim da tarde
bucólica
nenhuma hélice girava
nenhum vento passava
o céu era testemunha
da falta de energia
1267
ACORDAR
quando o corpo desperta
o frio acorda para a vida
o café reanima
a rosquinha fala de ciclos
ida e vinda
vida e morte
frio e calor
paz e guerra
quando o corpo desperta
a alma não sabe do frio
vagou pela noite
chegou tarde de volta
não gosta de café
não come rosquinha
evitaria os ciclos
não fosse sua imperfeição
PEDAÇO ERRADO
ainda na noite
perca-me entre estrelas
ou desfaça planos secretos
ainda no dia
deixe-me cair cansado
ou não queira sorrir breve
ainda no sonho
não haja sonho e apenas
o vazio se faça lembrança
1268
ainda com você
sinta saudade
de mim mesmo
ainda terei
grande amor
por cada pedaço
errado de mim
PERFUME CÍTRICO
o perfume cítrico
de limão
de combinados
ácidos
deixam-me
ameno
o banho
depois da água
sentir cheiro
de planta
de saúde
de vitamina c
deixar a noite
perfumada de limão
para esquecer o dia
passado em memória
do que não sou mais
e o medo
esse artifício da liberdade
de viver menos que mereceria
e mais do que devia
1269
INVISÍVEL VERSO
vou espalhar o verso
sem preocupação
ninguém o colha
nem o coloque no cesto
não o leve à praça pública
ao prelo das gráficas
o melhor do verso
é ser ele jogado
no tempo do papel
passando vagaroso
invisível vagalume
na noite escura
o invisível verso
surja do fundo da alma
contente por temporário
eterno por escrito
frágil por ser apenas
a parte pouca de mim
LENDA DA MEMÓRIA
o relógio mostra 19h13min
do dia perdido
em rosário
de dias
terei feito promessa
cumprido o pacto
rezado com alma?
o dia perdido
jamais verei
talvez na lenda
da memória
1270
BANHO
tsunamis
vendavais
corredeiras
inundações
gases
despoluição
banho de espuma
renovação
da pele
SUPEREGO
ao canto estou
de vez em quando falo
me ouço
me escuto
intrigante voz
ao canto fico
participo da ação
questiono
opino
perseverante voz
fala sem pedir
grita para libertar-se
superego
HORA
a hora passou
tirou da lua a metade
esfriou o sol
deixou inverno por
todos os lados
1271
a hora passou
como sempre
mas somente agora eu vi
o relógio vivo
das coisas do mundo
mudando sempre
RUGA DE CAMINHADA
a ruga dos pés
de tanto pisar o mundo
tornou-se flexível
(o que não flexiona
parte e quebra e acaba)
ALMA DO MUNDO
ouço a voz de dentro
que voz será essa à noite?
me encanta
me agrada
me diz coisas lindas
mas é rebelde
não fala a verdade
a verdade está para além
da voz de dentro
a voz da verdade
está na alma do mundo
puro
ou impuro
se coloca
sério
1272
a voz de dentro se cala
quando quero e fala
quando espero apenas
silêncio do mundo
não estou onde está minha voz
estou onde a voz indica algo para além
no caminho entre o mundo
e a alma de mim mesmo
cheia de cadentes abscessos de fúria
silêncio alma
não quero ouvir
vozes
silêncio alma
não quero o porvir
atroz
AMANHÃ: QUANDO
amanhã quando a noite se for
entre o lapso de tempo
da madrugada para o
nascer do sol
amanhã quando a noite for promessa
e restante da anterior apenas o orvalho
amanhã quando o bem te vi cantar
saudando marotamente a manhã
amanhã quando eu sorrir ao acordar
deixando a alma remotamente esquecida
da noite em conversas pelas ladeiras da noite
1273
amanhã quando a lua for apenas uma loucura
para os lobos e para os loucos
eu quero acordar livre
do sonho por tê-lo realizado
a lenda pessoal
(escuto a música no ar: marujada de joaquim bago-bago passando
na praça joão pinheiro som de mar no alto da montanha)
GARIMPEIRO DAS VOZES
a frenética voz das coisas
baila intensa no dia
eu escuto vozes
variadas tonalidades
confusas vozes
doces vozes
como garimpeiro
seleciono a joia
a da pedra inútil
as vozes são tantas
qual delas será santa?
HOSPEDO UMA ALMA
a alma está em hotel
frouxa de pernas para o ar
não haverá amanhã
não há preocupação
no porvir
a alma está hospedada
1274
água quente na banheira
champanhe na taça
estrelas no céu
lua cheia
a alma está ilhada
no silêncio do quarto
se frio: aquecedor
se quente: refrigeração
a alma está no alto
andar pelo mundo é bom
tem gosto de mel de abelha
na ponta do dedo
e se lambuza
e se acusa
e se perdoa
êta, alma hospedada
em mim!
aqui, profundamente
assim!
BANHO DE ALMA
a alma toma banho
parece estranho
mas já vi
a alma enxuga as gotas
parece absurdo
mas já senti
quando amo
ela sua
1275
quando amo
ela tua
e sai de mim e vai
solta no mundo
a alma é do mundo
e te encontrou
pra mim
e cansada tomou banho
enxugando as gotas
do suor da jornada
quando amo
ela lua
quando amo
ela rua
VÉU DA MENTE
o véu da mente
cérebro
impede a realidade
ébrio
a realidade está para além
das cortinas dos olhos
a fresta é pequena demais
para espiar a verdade
a verdade está para além
da parcial visão dos olhos
1276
TERNO TEMPO
o tempo passa
passa tempo
movimento
eterno
o tempo basta
basta tempo
intensamente
terno
FRENTE E VERSO
ainda parado em frente ao vento
(saber que o vento não tem costas é bom)
o que vindo do pico do itambé
me educa para a vida
há ensinamento na corrente
flutuante e invisível sobre a terra
como a alma: no influxo de coragem
vaga em corpo feito
o vento coloca as nuvens onde quer
o corpo coloca a alma onde deve
e se não deve vira tempestade
terminando em mutação
o vento sempre ensina
frente e verso
AMOR MESMO
abraço deveria dizer
saudade
mas em você nunca
era amor mesmo
1277
BICHOS PENSANTES
as pombas-rolinhas
miudinhas e roxas
empoleiradas na janela
tomava banho de sol
no inverno os bichos
de asas se aqueçam
os bichos pensantes
dormem
BRIGADEIRO
no inverno a alma tem sono
alma com sono dá em cama
tardes imensas em movimentos
pra lá pra cá
terminando em brigadeiro
no sofá: extensão da preguiça da alma
BACIA D’ÁGUA
água sanitária resseca a mão
parece mão de velho ou de
maria eremita antes de escrever
histórias no fim da vida
água de banheira resseca a mão
parece mão de criança ou de
bebê de poucos dias explorando
o ventre artificial: bacia
1278
SERENA REALIDADE
o casarão velho range o assoalho
memória de botas e fazendas
o telhado cai as telhas
como fios de cabelos ao vento
os pombos renovam os ninhos
os morcegos pegam as frutas
(eles não dormem no túnel da
chácara do barão como eu pensava)
os cachorros que vivem tão pouco
esquentam os corpos mirrados
no sol do meio dia: a única
refeição do dia
não há novidade
exceto o ônibus
não há novidade
exceto o repouso
das coisas e das
pessoas em volta
da cidade do interior:
serena realidade
CEMITÉRIO E CÉU
não devia haver ladeira
para subir aos céus
o céu da minha terra
encosta em cemitério
o que dá certo medo
da vida após a morte
o corpo inerte do morto
sobe pelas mãos suadas
1279
homenagem final
abrir a urna chorar
copiosamente
(ou nem tanto)
depois descer para o vale
onde o rio continua o rumo
incerto da vida entre morros
até chegar em gotas
ao absoluto distante
o mar
A CIDADE CANSA
a cidade grande cansa
não pelo horário fixo
da agenda
a cidade grande cansa
não pelo anonimato
do rosto
a cidade grande cansa
não pela meta de venda
no alto-falante
a cidade grande cansa
não pela velocidade
do carro
cansa pelo concreto
absoluto concreto
sem sonho
a cidade cansa
pela falta
de sono
1280
RETRATO DE 4ª SÉRIE
o retrato da infância sorri
(como não sorrir diante de imagem
singular: bandeira do brasil
livros de líder perfeitos
numa mesa de executivo
bem sucedido?)
o retrato da infância denuncia
(como não se sentir intimidado
ao olhar: placa indicativa
de 4ª série último ano
no grupo joão nepomuceno
avô de Kubitschek
nos idos de 1983?)
o retrato me inscreve no tempo
presença de outro no papel
não sou o mesmo: o tempo
passou profundamente
HISTÓRIA DE CALÇAMENTOS
o pé-de-moleque da ladeira
perde a rapadura na chuva
ficam apenas os amendoins
lascados poucos inteiros
a gengiva não segura os dentes
para sempre: história de calçamentos
1281
E PARA O JANTAR?
o melhor é saber
que nada se sabe sobre
a alimentação das andorinhas
o melhor é saber
que nada se sabe sobre
a alimentação dos morcegos
mas eles continuam voando
na tela da infância e sei
que isso será para sempre
para sempre
apesar do desconhecido método
de alimentação desses bichos
EQUILÍBRIO
o que dói é o equilíbrio
familiar, sempre familiar
das classes dos gêneros
do rural e do urbano
o que dói é o desperdício
familiar, sempre cautelar
mudar de cidade quando
se tem vontade de desequilibrar
(nunca vi gente da minha terra
brincando de equilibrista: só
no circo velho que foi embora
sem me levar para longe)
1282
LUAR E SOLAR
a lua é a mais discreta de todas
não emociona nem comove
apenas se dá em obrigação
de folhinha mariana
o sol não mata nem faz nascer
não vibra nem se espalha
apenas se faz há tantos anos
para repetir o ritual
todos acreditam
“lua e sol são nos mesmos”
todos afirmam
“lua e sol fazem a mesma rota”
nada disso: os olhos, sempre
os olhos, é que repetem o olhar
não é á toa que estrangeiro
sempre vê novidade
no luar
e no solar
O LOUCO E A MORTE
o louco mais louco da cidade
do interior mais profundo
do vale mais jequitinhonha
abandona a casa
e não volta
e some
a rua o absorve para sempre
até que num belo dia de domingo
o dia mais sossegado de todos
tocam-se os sinos do cemitério
e o louco volta para casa eterna
nos braços dos meninos sérios
1283
a morte não tem graça
nem para o louco mais louco
da cidade mais profunda
do vale mais jequitinhonha
do cemitério mais alto
da cidade mais interior
a morte é numa loucura
quase inaceitável
HOMEM DE RODOVIÁRIA
ele parece manequim no tempo
onde o paletó e o chapéu
eram peças de grande
elegância
(hoje ainda o é
nas cidades grandes
cheias de anonimato
e prédios altos)
ele parece estático no tempo
aonde ir à cidade era belo
para sentir as novidades
de perto
(hoje ainda o é
paris londres amsterdam
cheias de modas tantas
tidas como a última)
ele mora na roça
e vem de ônibus
para a cidade
ele vive na moda
de sentir-se no fim do mundo
e só na cidade sentir o afago do tempo
1284
PRAGA DE PADRE TROMBERT
nunca vi furacão
nem mesmo nevasca
mas contam de um padre
rogou uma praga tão grande
deus mandou um granizo tão forte
cobriu as ladeiras da cidade até o rio
que até os porcos pararam de roncar na lama
até as galinhas esqueceram a hora de dormir na árvore
e até o alto-falante da santa rita ficou mudo por causa do susto
a mitologia serrana
rola ladeira abaixo
se for padre e bispo
desce dos céus
NOTAS PARA SEPULTAMENTO
no dia do sepultamento quero:
(anotem bem na lista de papel)
flores barrocas do século dezoito
coral de dona vilma em te deum
banda de música em marcha fúnebre
e todos os loucos na primeira fila
e para completar:
(não deixem de cumprir senão eu volto)
caixão de maçom de zé rela
terço de pedrelina de nadir
visita de luiza de castelo
portas de comércio lacradas
e para celebrar a chegada ao céu:
(peçam para são pedro ou são miguel)
voz de glorinha dos correios
entoando o canto de verônica
-daí eu vou saber que morri mesmo
assim como jesus na sexta-feira santa
1285
TEMPO DA SAUDADE
voltar na saudade das ruas
é inclinar o pescoço para cima
cruzar os ouvidos para escutar
as horas na santa rita
o tempo havia onde saudade
essa, não, eu sei, não existia
nem pulava do peito
para o mundo em desejo
agora a frágil estrutura
do ser – alma que pensa
reza aos santos todos
para passar horas onde
o tempo da saudade
esse, não, eu sei, não existia!
BILHETE OBRIGATÓRIO
vou anotar no bilhete
depois de olhar o calendário
da loja primavera
depois de consultar a folhinha
mariana ou o do sagrado coração de jesus
vou anotar no bilhete
depois de sentir a temperatura do vento
do alto da santa rita
depois de olhar curioso a correição
das formigas ou o voo das andorinhas
“hora de ir para o serro, de férias”
1286
PASSAMENTO DE TEMPO
o tempo passa para o vento
passa para o pensamento
para o encantamento
para o momento
por que não passaria
para nós aqui dentro?
eu e eu mesmo
em diálogo lento!
o tempo tem rimas próprias
para seu passamento
DE DENTRO PRA FORA / 2012
DE DENTRO PRA FORA
hoje: dentro pra fora
um tempo antes
era o contrário
o caminho errado
hoje: de mim para o mundo
um tempo ontem
era o otário
o caminho equivocado
agora é isso:
acerto de contas
saber de dentro
pra fora sempre
1287
DEPOIS DAQUILO
depois de um dia diferente
a vida nunca mais foi a mesma
duendes
gnomos
silvos
salamandras
anjos
deus
todos ressurgiram na alma
virei uma catedral cátara
o mago
o ato
caminhos de dentro pra fora
viva o diverso
vivo em progresso
ENTRE CORPO E ALMA
um dia o corpo
vai deixar-se partir
de onde veio
depois de cruzar
palmital
pedro lessa
morro do paiol
morro de areia
ele voltará ao ponto inicial:
onde tudo começou
mais uma vez
1288
TEMPO-TORTURA
enquanto eu não me encontrar
o mundo será cadeia
as horas algemas:
tempo-tortura
ALTIVEZ
eu me vi
no alto do pico do itambé
nele a alma do mundo
em mim o mundo da alma
altivos: eu e ele
como tudo que veio das mãos de deus
PARA SEMPRE
não segurei a emoção
o chão pulsava
o coração ardia
a mente acelerada
de repente: lapso
o espírito disse
“quero ficar para sempre aqui”
OUTRA PARTE
você não sabe
mas posso ensinar
o amor escondido
por trás do olhar
1289
você não sabe
o que posso lhe dar
o amor é mistério
e sabe se ocultar
na lua ou no sol
espalho meu amor
para você sempre
se iluminar (e um dia me amar)
e mesmo que passem
dias em frio vagar
eu sei: você é minha outra parte
e vai um dia me amar
FLORAÇÃO
no lote vago da casa derrubada
a grande flor rosa vermelha
lembra a todos os distraídos
como lápide erguida na tarde
o tamanho do seu coração
IGREJINHA
a igrejinha de santo antônio
no alto da cidade tão miudinha
está em reforma
fizeram um grande ninho
estruturas de garranchos de paus
para os pedreiros subirem nas alturas
toda obra precisa de acolhida
1290
CASA DA CACHOEIRA
o tempo jogou tantas horas
pelo chão
o tempo passou rápido
a casa da cachoeira não resistiu
às estações: caiu de saudade
PONTE DE PEDRA
a ponte de pedra servia para as onças
hoje passam carros e completaram com cimento
o que faltava de certeza
(o homem sempre duvida da força oculta)
a ponte de pedra de tantos poços
pequenos e médios e grandes
e rasos e pouco rasos e muito fundos
(a profundidade depende de cada um)
o frio corta o pé na água
não há neve
nem gelo
apenas o vento frio do inverno
MAPA DO TESOURO
os sentimentos mais puros da infância
eu deixei entre os dois rios passando
em vale por seu povo nobre
onde está o mapa do tesouro
dessa pureza?
1291
PEREÇO RÁPIDO
o pico do itambé vigia
como velho bondoso a tradição dos dias
o hábito dos gaviões
de prender com as garras
os mocós distraídos
em banho de sol
o pico sorri dos corpos frágeis
a rocha cai tão devagar
até virar areia de rio
se foram milhares de anos
(eu não os tenho: pereço rápido)
MINIATURA
a cidade diminuiu de tamanho
o rio encurtou as margens
o pico do itambé aproximou-se
a cachoeira está mais rasa
o meu mundo cresceu tanto
na cidade grande
o que vejo é miniatura
absurda da infância
ESSE MENINO
esse menino das férias de janeiro
de cachoeira a qualquer hora
de banho em rio na tarde em fim
esse menino das caminhadas sem perguntas
das escaladas sem fim e sem preocupação
sem medo da tempestade em raio e trovão
1292
esse agora é outro
de partes tão diversas
esse agora é pouco
o outro era absoluto
esse agora não é o mesmo
o mesmo é a cachoeira
e o belo rio da tarde
esse agora
agora sei
se perdeu
nas fotografias
VENDA DE ANTÔNIO ALÍRIO
na venda de antônio alírio
cheiro de fumo em rolo
groselha em refresco
no copo americano
havia geladeira
azul feito céu de inverno
ou véu de maria de nazaré
em maio em coroação
na venda de antônio alírio
havia meninos e homens e mulheres
hoje o tempo levou a velha casa
-ficou o lote vago, pobre lote vago sem história
1293
QUITANDA DE MARICA
a quitanda de marica
na casa de sinhá de dirceu
saia o dia todo em fumaça
pausa apenas para o almoço
a fumaça da candeia
rodopiando anunciava
café da tarde
em crocantes confabulações de massas
marica limpou o forno
foi-se embora para a roça
mandou um aviso para mim:
na fumaça rodopiando no alto do pico
(tragam groselha de venda
para o café da tarde
bigode vermelho
tem sabor de família)
TROMBA D’ÁGUA
o rio desce do pico do itambé
com tanta fúria e cólera
o que era miudinho
fica gigantesco e dá medo
como tudo em nós, pequeno
um dia explode em tantas palavras
o rio explode em tromba d’água
tantos metros acima do normal
os garranchos ficam presos
no alto das árvores
a ira deixa marcas
por todos os lados
1294
VIBRAÇÃO
as antenas internas
viradas para o sol
sou pura energia
dentro e fora
ENERGIA
me viro
me mostro
me retiro
me pasto
pensamentos são energia
VELHICE
os velhos adoecidos
esperam a morte
futuro: ficou nos filhos
(como cria-los debilita)
ou será um amor
sem resposta
ou a fé tonta
sem aposta?
CALAR É SABER
o tempo passa
aprende-se: o silêncio
é sempre mais
1295
DIAMANTINA
as casas miúdas
são aparentadas
conversam entre si
fazem festa coloridas
nem rua larga
nem avenida
becos curtos
e pronto
a cidade tem casas
com almas dentro
e pulsam vibrantes
na montanha
MERCADO VELHO
os arcos de madeira
cento e oitenta graus
espaço interno para feirantes
no sábado de manhã se compra
e se venda alguma coisa
ao fundo em dois mil e
tantos metros de altitude
o pico do itambé espia
a tradição do mercado
e dos mercadores de terra
CALÇADA
o ambiente de dignidade
se espalha pelo almoço
a intensa dignidade
1296
de todos e todas
debaixo do céu azul
de um inverno a mais
entre as ruas miúdas
calçadas de vidas
SORRISO
diamantes antes enterrados
passaram por mim há pouco
travestidos em sorrisos
e bons dias honestos
há coisas que saem
somente do fundo da alma
CATEDRAL
a catedral é empecilho
o único na singeleza
quem pôs sem generosidade
a cadeira no meio da rua?
prefiro a simplicidade
do presépio natalino
nele reconheço o mestre
não nas catedrais arrogantes
TORRE ÚNICA
sem torres
gêmeas
apenas
uma torre
1297
e nada mais
e pouco mais
apenas uma
para evitar comparação
quem dera se a vida fosse
única como a igreja do bonfim
tem apenas uma torre
para evitar comparação
AS LUZES
os espíritos não olham os corpos
apenas e tão somente as luzes
não as luzes da tarde caindo
nossas luzes
nada lhes ilumina mais
que as luzes
nossas luzes
nada lhes causa mais temor
que as cruzes
nossas cruzes
eles sabem da treva e da luz
mais que o sol e alua
mais que todos os livros
os espíritos não olham os corpos
apenas e tão somente az luzes
nossas luzes
RECOLORIR
o azul em fim de tarde
colore a memória
quase sem cor do tempo
recordar é recolorir
o mesmo de outro tom
1298
LUA SUMIDA
a lua tímida e distante
do inverno quase sumida
ilumina o hemisfério norte
lá ela brinca de sol
em noites claras de verão
FRIO E CALCULISTA
o cobertor me traz
o calor de dentro
apagando se foi
com o tempo
pudera esse calor
me requentar
agora homem feito
frio e calculista
DIA NUBLADO
nem os cachorros ousam latir
o dia nublado de inverno
garoa fina
silencia
somente as andorinhas ousam
coar baixo no rio
catar insetos saídos
do silêncio da manhã
(elas ouvem a umidade
elas sentem a novidade
vinda dos céus)
1299
PONTO ALTO
o alto de um morro é sempre um ponto alto
da caminhada da subida: é chegada
quem chegou ao alto da santa rita
quem chegou ao alto do pico do itambé
nunca serão os mesmos
as manhãs são diferentes entre nuvens
a madrugada é elegante entre névoas da alma
CALOR
hoje não vou tomar banho
preciso reter todo calor do corpo
para queimar em renovação
amanhã eu me banharei
impulsionada pela novidade
que virá, eu sei
FOME DE BICHO
de tarde ainda há fome
entre os bichos cercados
no quintal da casa
apesar de novos moradores
velhos costume, velhos costumes
(cuidar dos bichos é matar a fome deles)
CARACOL
dar volta nas horas
para esquecer de mim
o caracol dá volta em si
mas sente o peso nas costas
que será de mim
caracol sem fim?
1300
GIRO DAS HORAS
o tempo passa para todos em volta
invisivelmente leva para o passado
os mais presentes os mais recentes
o tempo cala a voz de todo coração
incrivelmente só ele consegue e bem
acabar com o amor que parecia eterno
o tempo se alastra entre as vidas
e passa meninos e meninas e sara
feridas e feridos com o esquecimento
ah, o tempo
somente ele
sabe o que
sou ou tento
SILÊNCIO ABSOLUTO
o silêncio absoluto
nunca houve dentro
sempre o eco bruto
o pensamento
o silêncio definitivo
nunca se deu em mim
acho: única vez há tanto
partimos um do outro em fim
o silêncio bem queria
apagar a memória ou
quem sabe dizer: “chega”
mas não: me diz “fala e ouço”
tenho necessidade de som
sua voz criou ideia fixa
1301
ANTIGO AMOR
o sopro do vento
vindo do lado de fora
desperta a saudade
de dentro
quando foi a última vez
entre olhares purificados
nos acertamos no tempo
e no espaço?
o vento sussurra seu nome
e o domingo era tão suave
e a vida era tão doce
que será de mim?
o vento é a alma do mundo
o sopro divino pairando nas coisas
veio revirar no alfabeto interior
letras que insistem em escrever
seu nome
antigo amor
LAGARTIXA
a lagartixa bebe água
da mangueira de plástico
na manhã de domingo
mal sabe ela
da alegria de matar
sua sede de inverno
1302
logo ela tão atida
ao calor das pedras
precisa refrescar-se
(a natureza é sábia
jamais louca
loucura é morrer de sede
com água na boca)
CENÁRIO DA JANELA
as pombas rolinhas
pastam na grama
aquela, deitada
abre as asas para o sol
outra corre, acelerada
atrás do macho intruso
outra, amorosa, reproduz
a espécie
bichos de asas
como bois na grama
eu na janela com asas
cercada por quatro paredes
as rolinhas pastam
debaixo da janela
o mundo continua
seu giro absurdo
1303
DOS DIAS
no dia lento
demoro
no dia quente
evaporo
no dia sábio
aprendo
no dia frio
esquento
no dia puro
evoluo
no dia escuro
escuto
no dia rápido
espanto
no dia trágico
manto
no dia sonoro
ouço
no dia silêncio
cresço
O IDO É ALGO
das velhas coisas
livros
cartas
eternidades sentimentais
das velhas coisas
fotografias
1304
casos
intimidades banais
fica algo
fica algo
fica algo
talvez vida
talvez existência
sempre passado
PRESTA?
fico em ponto
não volta
vai chegar
-que resta?
a fresta
ontem
amanhã
-e presta?
JANELA FECHADA
enquanto a janela
fechada fica
bem te vi
sabiá
pica pau
meu olhar não habita
enquanto a janela
lacrada irrita
lá fora
1305
há festa
canto
sino que se agita
enquanto me fecho
em janela ferrenha
o mundo sorri
o sol brilha
a lua cresce
a vida se desenha
(preciso abrir a janela
deixar poeira e sol
entrarem sem medo
melhor um móvel
cheio de pó que
uma alma cheia de dó)
PASSADO SOCIAL CLUBE
medo, não, talvez vontade
do diferente sem saber ao certo
por onde como quem
medo, não, talvez saudade
da paixão nova do poema torto
sem eira nem beira
aventura sem limite
medo, não, talvez diferença
fazer o dia diferente à noite
mais quente que o próprio
abraço já costumeiro
medo, não, talvez retorno
1306
ao que vale a pena dentro
e deixar o verniz fora ser
apenas social passado clube
medo
acho que não há medo
há um vento forte renovando
o que antes era feio
SONHO
ainda da noite
o sonho
ainda da noite
esperança
nada mais
a vida
em sonho
sonha
vagamente
o sonho vem
o sonho vai
a noite cai
o dia sai
eu fico
sonho vivo nas horas
ROTA AÉREA
a nuvem não passa
sou eu: traduzo
sua mutação
em tempo
1307
a nuvem não muda
sou eu: induzo
sua flutuação
no vento
a nuvem não chove
sou eu: secura pura
implorando
renove
a nuvem não some
sou eu: céu azul
desenhando
linhas aéreas
para partir de mim
para outro lugar
como as nuvens
a vagar
DIÁRIO DOS SÉCULOS
puro feito um beato o pardal vaga pela cidade de geração em
geração enchendo os telhados de vida ninhos e muita esperança de
renovação
pura feita uma beata a andorinha abre suas asas ao sol desde cedo
para abrigar a força de sobrevivência no alto da montanha fria
os bichos voando são plenos de vida
habitam o diário dos séculos da natureza
dentro da cidade mais
fria do mundo
1308
DA PRÓXIMA VEZ
da próxima vez antes de dormir
talvez eu peça silêncio, não sonho
talvez eu queira ausência, não voz
da próxima vez antes de adormecer
eu tenha a sensação renovada
do novo antes do amanhecer
por agora fica o barulho das vozes
a incrível história dos sonhos
indo e vindo durante o dia
perdendo seu sentido
calando sua voz
em mim
DIA EMBAÇADO
o dia passa embaçado
nem neblina
nem fumaça
nem sinal de sol forte
lá fora seja lá fora o que for
passam as pessoas sozinhas
tão isoladas dentro de si mesmas
a clausura é a sociedade plena
o dia mais um dia
aflora
fora
afora
1309
TEMPO MENINO
o tempo fica grudado na pele das meninas
crescendo o desejo em fantasia de coito
não para de maquiar o rosto das mulheres
com a aflição do passado das meninas puras
o tempo sacode a árvore velha para colher o fruto
desde há tantas estações uma vez por ano
o tempo sabe: há necessidade urgente
de mudança nos adjetivos dependurados na vida
vi meninas tão puras
feito árvore nova
vi mulheres tão putas
feito fruto sem vida
o tempo desmente a fotografia inicial
de todos nós: quem somos, afinal?
TRAÇO
o corpo carregado
mundo caminhado
destino traçado
hora de mudança
cansaço de cobrança
destino na balança
a morte se vem
dirão: como convém
a todos de mal ou bem
1310
VIDA FÍSICA
ausência em saudade
o corpo lhe reteve
imagem e memória
o que ficou desce
fundo na alma
corta e fere e ferve
não sei se vive
ou se morreu embora
viva em meu corpo
[como tirar sua mancha da memória
ainda não inventaram para o amor esquecimento fácil)
FRONTEIRA
a fronteira entre a tarde e a noite
não traduz o limite interior
entre a vida sonhada
e a vivida
a fronteira entre a noite a manhã
não induz ao novo olhar
entre a vida esperada
e a realizada
estou em território de guerra
terra arrasada de um lado
soldados com medo do outro
uma brecha para o destino
o destino precisa da fronteira
para fazer-se pleno e inevitável
1311
AINDA BEM
ainda bem: o sol nasceu
e cruza o céu como ontem
ainda bem: estou de pé
e depuro a alma no dia
ainda bem: o sonho dissipou-se
e virou passado como as horas
ainda bem: mais uma vez ainda
estou diante do vazio a procura
ainda bem: tudo está no seu lugar
apenas eu dei voltas para descobrir
ainda bem: cheguei de novo ao ponto
-claro não podia ser outro: interrogação
SOMBRA
difícil compor de luz
o dia terminado em breu
dentro de mim a sombra
não permite iluminação
pobre de mim
não paguei a conta
de energia: sou sombra só
TEMPOS EM UM SEGUNDO
o fim de tarde apenas fecha o dia
nada mais se veda em mim continua
imperativo voz pedindo sentido
palavras para resolver o vazio
1312
o fim da tarde não dissipa a dúvida
o tempo da estação é certo mas o meu
o meu tempo nada de linear possui
o relógio corre por vários caminhos
nenhum deles me conclui assim sei
a natureza humana em mim se diz
verdadeiramente forte e intensa
não me larga nem para dormir
o fim de tarde apenas abre outras
outras tantas janelas da alma para a noite
a noite longa mais uma vez pressentida
de outro dia que nunca será o mesmo
o fim da tarde não me leva ao sono
nem ao esquecimento sou ainda
pensando em mim todo o tempo
de cada segundo que são muitos
muitos tempos
num segundo
TÚNEL DO TEMPO
pulo o incerto
caio no medo
fujo do certo
saio a ermo
há fuga possível
em mim morando
dentro assim
tão fundo?
1313
cuspo a palavra
pulso o sentido
culpo o mundo
salto e caio fundo
há tempo visível
no fim do túnel
ou tempo vário
falta enfim?
SECA DE DESERTO
pudera na solidão
retirar da nuvem
prenhe de chuva
a umidade para a língua
seca de tantos anos
dizendo seu nome
na aridez da noite
a noite, sempre ela,
o inútil deserto das horas
das lembranças secas
da vida sem futuro
das horas de miragem
o orvalho da madrugada
me salva mais uma vez
mais uma vez
uma vez mais
1314
TELEFONE
não vou ligar
o telefone
nem esperar
o telefone
não quero ouvir
o telefone
sua voz distante
ao telefone
falando perdão
por telefone
escondendo a intensão
ao telefone
vou desligar as linhas
do telefone
quero apenas ausência
do telefone
e de sua insistente mania
de distância
REVELAÇÃO
por trás das nuvens
a tarde se vai
entre montanhas
plenas e absolutas
vai mais um dia
um sol que trouxe o dia
1315
quisera a noite ser plena
mesmo sem montanhas
mas haverá a lua, bem sei
trará de volta a luz menor
mas sempre luz para os olhos
aquecimento da voz do coração
TEMPO QUE DURA
antes da noite basta
o beijo em tarde
desnudada
antes da lua basta
o corpo suado
em vermelhos tons
antes da vida basta
o silêncio que dura
eternidade
CONCORDO
em poesia passa o dia
a flor a pombinha o pardal
explodem em cores fortes
sonhar é colocar cor
e voz e feitos especiais
ao desejo submisso
no sonho sei da poesia vasta
feito chão de sertão em seca
anunciando depois da morte
a explosão de vida e cores
sonhar é fechar os olhos
concordar com a alma
1316
MOCÓ
a curva para os olhos
é reta plena para o mocó
eu preciso do caminho
ele precisa da toca
eu sem toca
ando
ele sem caminho
entoca
o mocó saiu para tomar sol
aflito de que amanhã chova
ou faça frio e precise olhar
para as paredes de terra
PENSAMENTO DEPOIS PALAVRA
a palavra antes é sopro
na parede de dentro
depois dita
bendita ou maldita
escreve sua própria história
dentro não há história
apenas arquitetura de linguagem
dentro não há diálogo
apenas egoísmo em círculos
1317
ABSOLUTO
quisera da borboleta
impressão bruta
da cor
quisera da noite
lua cheia
pra dor
quisera da vida
pedra bruta
esculpir
quisera de nós
cartas sérias
mentir
mas foi verdade
meu querer
nada impede
mas foi real
meu poder
nada decreta
nada, em absoluto
nada, de morte,
em luto
LINHA VAZIA
quando versos derramados
perco medo da rima
enfrento a linha
fria sem receio
1318
a linha por ditar
é apenas vazio
pronto para erguer
quem sou
quem sou?
a linha cheia diz
mais uma vez
MONITORIA
o rio líquido na tela
reflete o mundo
o monitor sabe
o inverso de tudo
a retina fina na mente
identifica nas coisas
a cor desejada
põe para dentro de mim
imagem se faz
na tela
imagem de trás
da vida bela
VERBO
digo frases para evitar o silêncio
escolho discos para dar um tom
leio poemas para crucificar a alma
verbalizo sempre
1319
DA ANTERIORIDADE, PERFEIÇÃO
antes desabasse o mundo
quando desisto
morre o absoluto
antes detestasse o muito
quando resisto
fico mudo
antes viesse a razão
quando amo
crio confusão
antes viesse o amor
quando penso
invento a dor
antes fosse pleno
quando falto
sou defeito
NA CARNE
fragmento o verso
não sou açougueiro
não passo de poucas palavras
o verso é sem gorduras, muxibas, tripas
pouco e pouco o verso
ele precisa do mínimo
para ser ele mesmo
ele sou eu ao contrário
ele é exercício de mim
quando curto revela
o vário
1320
ENTRE TEMPOS
vivemos muito mais que o brilho da noite única
vivemos muito para além do brilho da tarde
e ultrapassamos as andorinhas em corpos belos
e vagamos no mar da vida mais que as gaivotas
mas morremos depois de tantas luzes acesas
tantas borboletas indo e voltando para o casulo
tantas cigarras evocando a magia da primavera
morremos em silêncio como toda morte fria
que somos diante da vida
quem fomos diante da morte?
FUTURO
a rotina de ir desse para outro pensamento
cansa
como ficar parado em diálogo sem som
basta
fica a sensação de obra inacabada pensar
viver em fantasia
sem medida
infinitamente
do pensado que se fez realidade?
1321
DIÁLOGO ENTRE COISAS
o vento bate na janela
a natureza pede insistentemente
-desperte!
a nuvem chove na janela
a estação mede pacientemente
-até quando?
o retrato sobre a mesa
congela o passado francamente
-para sempre.
FLUIDO
as persianas filtram o vento
do vento sai o frio
e o quente
as grades da prisão tiram o sono
o pensamento não voa
está sempre preso
o fluido passa sempre
mesmo em demora
longa longa longa
ALMA E TEMPO
de passagem pelo tempo
passeio breve
de lavagem a alma
ensaboo sempre
que seria do tempo
sem a alma
dentro?
1322
que seria da alma
sem o tempo
centro?
passar como passam
as águas da cachoeira
de manhã tarde noite
sempre de dentro pra fora
HÁ FIM
perto do fim
se perdem
pedaços
do corpo
um órgão extraído
apêndice calejado
um órgão retirado
vesícula baleada
perdem-se os cabelos
as unhas crescem devagar
o corpo já cansado produz
a sombra translúcida
perto do fim
se perdem
os fios
do tempo
há o fim para mim
1323
INTERIOR: PARA ALÉM DA JANELA DA ALMA
dentro da geladeira
conservação
dentro do guarda roupa
estação
dentro da mente
arquivação
dentro da gente
inquietação
dentro do tempo
revolução
dentro do medo
perturbação
de fora todas as coisas
são de dentro
de dentro todas as coisas
são de sempre
de dentro pra fora
se passa a vida
de fora pra dentro
se tem realidade
VERSO CANSADO
final de ano
versos cansados
o tempo acaba
a linha da rima
final de ano
o banho é o mesmo
1324
o dia nasce o mesmo
na linha do horizonte
o poema está cansado
como eu de estar mais
mais e mais e mais um ano
no espelho d’água refletido
CASAMENTO
a vibração do amor
ultrapassou a parede
do seu e do meu coração
o universo virou casa
-casamento
EXPECTATIVA
espero para depois de amanhã
um sinal dizendo: é hora exata
fazer as malas e carregar nelas
o sentimento do mundo
espero para depois de amanhã
um final fazendo: é hora pura
construir alas e abastecer a alma
com o sentimento profundo
CAIXA QUENTE
o apartamento é caixa quente
lá fora as nuvens frias e úmidas
renascem as sementes do inverno
reflorescem as árvores da seca
1325
mas o apartamento quente
é dentro e o mundo de fora
chove em milhões de possibilidades
eu sei que uma gota de chuva basta
para renascer o melhor de cada semente
para colorir o mais belo de cada flor
em encontros entre o céu e a terra
em profunda sintonia entre os mundos
ESCAPE
buscar na memória o pingo
da chuva de domingo
enfrentar a realidade
acabou a religiosidade
o tempo basta
nada lhe escapa
enfim o silêncio
como no princípio
CISMA
sentado fico olhando
o movimento dos bichos
formiga desenfreada
borboleta enfeitada
pardal já tem ninho
beija flor já tem filho
rolinha de papo cheio
gato esperando recheio
1326
em volta há o céu
sempre no alto
sem vigiar
ele é de ar e etéreo
eu sou de carne
como os bichos
fico a cismar
um dia tudo vai acabar
MENTE FORTE TEM LUZ PRÓPRIA
faróis apagados
é noite sem lua
é lua sem são jorge
é são jorge sem lança
vejo apenas o imediato
o dado
o fado
da alma
ando pela estrada
sem placas
sem guia
sozinho
uma luz apenas
interior
a mais forte
sabe para onde vou
e vou
e vou
como sempre estou
1327
VIDA BESTA
a vida besta
da lesma
passa lenta
pelo chão
a vida besta
da aranha
tecida no desalinho
do tênue fio
a vida besta
da gente
forjada no tempo
das horas
a vida
sempre ela
pronta para ser
besta
MODO DE VIDA
ainda não sei se vou
a cidade do interior
tem vida própria
fora da minha
e quando me encaixo
subtraio
e quando por lá chego
rebaixo
1328
JOGO
palavra
autoridade máxima
de fora
pensamento
autoridade próxima
de dentro
CEREBRAL
pensando
coisas ficam
prensadas
no cérebro
há idas e voltas
na noz cerebral
há eterno retorno
na voz imortal
JANELA ABERTA
o sol abre a janela
a manhã desperta
os sentidos
de dentro pra fora
reconheço o mundo
nomes de coisas
coisas cheias de sentidos
o sol abre a janela
e os pássaros cantam
aqui dentro
1329
NECESSIDADE
a necessidade de ir
daqui para ali
mesmo sem asas
a necessidade de rir
de mim e de ti
mesmo sem razão
a necessidade de florir
a vida em atos belos
mesmo sem noção
aprender: necessidade básica
AÇÃO
o espaço entre as horas
preencho com o pensamento
flutuação sobre a realidade
pensar nunca é fazer
fazer nunca é pensar
SONHO
o mais difícil do sonho
é acordar
depois de acordado
o mas difícil é acreditar
o sonho é grandioso demais
para caber na vida
o sonho é inconstante demais
para ser realidade
1330
O DE FORA E O DE DENTRO
o mundo de fora está diminuído
a distância não mais existe
estamos emaranhados
em fibras óticas
o mundo de dentro está reprimido
infinito espaço entre desejo
e a realidade externa
em dramas caóticos
MEMÓRIA DE COISA
lá fora o mundo agitado
dentro de cada coisa
um sigilo pulsa:
a memória
em tudo fica um rastro
do que vivemos
em tudo é permitido:
a lembrança
ALMA
toque de leve a alma
ela é etérea
mas eterna
na alma não se mente
ela é canteiro
fértil
na alma nada se esconde
o que lá está um dia
retornará
em corpos
no tempo
lançados
1331
PROFUSÃO
da hora queria
o estático do segundo cravado
não a mobilidade do segundo
passado virando minuto e memória
da vida queria
o encontro que ainda não aconteceu
mas esse precisa de fé e nos dias de hoje
o passado é mais real que o futuro
da vida queria
a frase encaixada no coração
o ponto de mutação profundo
onde a alma encontra a matéria
A LENDA
para Paulo Coelho
a lenda da cidade
cresceu com os moradores
a venda nos olhos
impediu muitos sonhos
na juventude há um sol
de si para si que ilumina
na noite escura da vida
no entardecer das dores
tudo é possível
no tempo onde as ruas
ainda são caminhos possíveis
e ninguém nos impede de trafegar
a lenda de cada um
é apenas uma estrada
aonde somente os pés
do sonhador pode passar
e ser profundamente feliz
1332
Feiura
Ghetuliana
Sábado há noite
O relógio
Rotina
Ruas
Salto alto
Calmante
Gari
O poste e o bêbado
Esotérica
Rebordosa
Mictório
Perdas & danos
Polo oeste
Noite térmica
Trevo
H2 ó
2004
Hedon
Dual
A onda era preta
Intercâmbio
Spin
Wall
Volume
Arrumação
Em potência
Rosa
Elegia do tempo
I
II
III
A lição da chuva
Solidão
3-ORATÓRIO DE VERSOS, p.36
Tradução
Medo
Continuação
Modificação
Perdidos
Vivendo
Goles
Festa
Leves versos
Pater
Senão
ÍNDICE
1-IDENTIDADE / 1993, p.3
Prólogo
Eu sou
Identidade
Bocado
Linha do horizonte
Casulo
Indefinito
Cacografia
Temporal
Re-ação
Anônimo
Futurístico
Escalada
Sono
Cósmico
Notas
Despedida
Ressinto
Horas
After day
Passante
Meias palavras
Fascista
Visão
Toque
Saudade
Angustíade
Estático
Certeza
Negativo
Essência
Alusão
Porão
Falácia
Gelatinístico
Medo
Bússola
E
I
II
Recordação
2-TONEL DA MEMÓRIA, p.20
Passeio poético
21 -12 – 93
Bem ou mal
1333
Retorno
Convento
Tripalium
Tumulto
Flatus voces
Curativo
Mato
Voz e nós
Crescendo
Nada
O que é morrer?
O pássaro do Egito
Sinais
Eucaliptos
Mãe
Balada do confuso
Morte
Noturno
Esquecimento
Contrassenso
Mentiras
Varal das consoantes
Céu seu
Informação
Amor brejeiro
Passos da memória
Cenário
Memória de sons
Lágrima doce
Páre, agora
Poema de um velho
Confidência ao amor
Mar
Poeta
Vagando
Som
Tempo ao tempo
Meu poema
Amanhecer
Linhas da linha
Barca do sentido
Copo
Tinta fresca
Trajetória
Festa em mel
Demoníades ou balada do
convertido
Urnas e cantos
Luz
Poligamia das letras
Estatística
Seca dos tempos
Boiada de versos
O outro
Ingenuidade
Elegia da bola da infância
Soma et anima
Encontros
Oratório
Soneto da casa perdida
Poema sem brevidade
Balança do tempo
Papel das almas
Bojo do Barco
Lenitivo
Rosa, rosae
Escultura em capim
Visão noturna
Gaivota
Roleta
A mão
24º andar
Pobre homem, o tempo
Tempo longe
Controversos
Janela
Eterno retorno
Feixes
Rotina entre serras
Fruto
Mandins
Brevidades eternas
Caminho da manhã
Face antiga
À gaúcha
Imoral
Balada do néscio
À margem
Inocência estética
Cascata tinha
Dieta poética
Multicenário
Tatu galinha
Dança do Rosário
1334
Pau a pique
Ferida
Primeiro domingo
Buracos do tempo
Super modernidade
Carne
Milho Verde
Bromélia
Ao passado
Balé dos sérios
Maria, José e o sapato
Santa Rita
Pampulha
Botavira
4-300, p.110
Desatino
Será que Beth não vem?
Dúvida
Será que Beth não volta?
Boulevard Café
Será que Beth já foi?
Sobre a Pá(lavra)
O beijo
300
5-CHÃO DE POEMAS, p.117
Primeira estrada
Chegada
Pulsação
Sombras
Cotidiano
Em volta
Pinguela
Água
Visão
Ontem
Uma rima
Uma forma de chão
Rima sem sorte
Aquele ser
O outro lado
Salitre na alma
Reencontro
Manga
Teia
Tarde em Diamantina
Livro da alma
Mesa da vida
Capim queimado
Mínima cidade
Pescaria
Cenário do povoado
Fogão
Carpintaria
Ruga
Um outro quintal
Destino
Tempo-menino
Elegia do dia seguinte
Desdenhando
A fuga da poesia
Ai, memória!
Uma mesa
Festa de São Sebastião
Pretérito na alma
Antigo amor
Antagonismo
Queda
Pronome
exagero cotidiano
Sala e música
Perseguição
natural
Alma/rua
carma
Andorinha
16 de maio de 2003
Amor
Um chão
Olhar de viaduto
Varandeiro
Viva Maria Eremita de Souza
Curral na serra
Chão do interior
Restante
Rimação
Janela de ônibus
Sonhos de rua
1335
Cavalgada imaginária
Marianando
Montanhas
Céu e chão
Ouropretando
Museu
Varia poesia
Preto ouro
Re-pensamentos
Viagem ao interior de si
mesmo
6-DE TUDO E DE AMOR, p.180
Português culto
Crítica cínica
Remédio
Entre Milho Verde e São
Gonçalo
nota de roda pé
Pausa
Dagoberto: quando as
palavras não são necessárias
Incômodo
Noite em Diamantina
Tempo outro
Povo entre parentes(is)
Vaso
Ambiente de pousada
Objetos
Incenso
Lente de aumento
[barra de ferro]
Pena
Adão Ventura de volta
Virá o ser
Provocação
Contrário
Um detalhe
Membro superior
Presença
Desejo
Vou unir
Sentimento
Salivação
Corpo
Tropeço no amor
Pessoa
Da artéria e da estrada
O lápis e o apontador
Sobre o amor
Condado
Utensílio
Brincador
Cidade interior
Sermente
Desorientação
Via viagem
Previsão
Somatização
Luz (ia)
Outro fato em volta
Parto
Duplo
Sobretudo amor
Diz
Unilado
Tarde em fim
Coisas de amor
Sempre há
Novas palavras
Quando
Partida
Sartre
Luando
O! lhos
Devaneio
Visão
Papel em branco
Cupido
Curvado
Longe
Salvação
Sorrio
Grito
Vida e verso
Momento
In-decisão
Medida
Traço
Nariz
Floresta
Certeza
Gente
Volta, tempo
Apesar da noite
1336
Enguiço
Ingenuidade
Ilusão
Curva da tristeza
Dias de vazio
Vazio
7-O CHEIRO SEM CHEIRO DA
ROSA SOBRE A MESA, p.253
cheiro
cor
frieza
Trancoso
rédea
azul
onda
interrogação
Beth se casou
pau pedra
palavra
página
há dias
tao
efemeridades
esse vento
por causa
me ponho
esse Serro
é...
sim
relógio da alma
autocanibalismo
dedo
império do amor
consumo
animi
um ano
saudade
subo desço
horário
si
novembro
volta
salto
fim
sono
é quem diria...
elegia da memória imortal
dança de fita
força
alta magia
loucura
rezo dois terços
palavra
sou eu
ponteiro adiantado
ladeira
amor
contas
vou lavar
c(idade)
no lava-pés
santo
8-TRANSMUTAÇÃO, p.287
ar
e eu?
silvos
lixo
manha
passeio
reconexão
sono pesado
outro
poeira
gnomos
acima
dono
deserto
quando
vidro
templo
idade
estar-no-mundo
manhã
redação
medo
mistério
mutante
templário
palavra
herança
ação
tempo
de novo
bruma
1337
útero
identidade
dia
é assim
segredo
esoteria
momento
troca
cor
Existência
rima sem rima
aprendiz de um grau
pomba
cofre
ir
água
unidade
férias
bonfim
vida
lua
rua/lua
umbigo
mulher do condado
vê
serrania
lá trás
muda
cidade
não
variedade
página
futuro
falatório
retrato
dentro
menoridade
a boneca
mar
número
nome
cedo
texto
sabe
outro lugar
hora
eu não posso
O que vejo?
pé frio
saber
jardim
caracol
ondinas
simbora
cascalho
respostas
Tudo mudou
bagunça
dicionário serrano
boa visão
subliminar
salamandras
tempo
elemental
letra
eu
negativo
sonho
esquina
foi
esse apelo
Parêntesis
reza
loucura
9-MARESIA, p.338
estado espiritual
processo
rio e mar
tarô
purificação
camarão
frieza
cabana
pedra
relógio marítimo
rota da água
doce
sereia
onda pulsa
pecador
vassoura benta
mergulho
baiana do acarajé
som
1338
olho
rosa
tambor
outro ser
quem somos?
visto
caldo
farmácia
capoeirista
água doce
quiosque
recomeço
cabana amarela
bem vindo
carmosina
céu azul
mãe de tantos
prato
benta
dois óculos uma face
tromba
cacau
panela
menino
piscina
gaivota ausente
casual
frito
sururu
anzol
bichinho
bastião
arazul
mangustão
netuno
soberano
peso
livre
peixe
pé
flexível
motor de tudo
rabisco
dendê
azul açaí
nau
pedra mole
casa de litoral
tipo de mar
pescado matutino
barco frágil
nau frágil
quem?
cupuaçu
guia
espelho
hiato
casa
flor
suor
meninas de porto
seriedade
campo quântico
memória
jeito
dialética
poema do mar não
fruta
interior
vento
claro/escuro
maré baixa
maresia dentro
silêncio completo
mar completo
cor sem nome
cor revelada
sinuca
casa velha
moça
retorno
confissão
ruga
mundi
sonho de hotel
café de pousada
nome de praia
colonial
mariscar
farol
azul vesúvio
colônia
mercado
merci
1339
casca
família
viagem
cheio
cenário
castelo de areia
carnaval
algema
navegante
cilício
amarra
mar outro
poema de mar
verão
asa aberta
nome de santo
despedida
10-COTIDIANO, p.392
instantâneo
meio da cidade
gaiola e asfalto
coti dia ano
excerto urbano
os de menor idade
rotinário
revista
pão matinal
inútil poeira
prece do sono
muro
de um ponto ao outro
Janela da seriedade
azul
lanche rápido
tempo junto
fast food
vira-latação
o tempo louco da cidade
dono
flor
o tempo cotidiano
casa
desejo
ano passado
dedarata
usina
apartamento
banho
urbanidade teatral
serviço público
boca do lixo
pulsação cotidiana
eu identidade
estar-vivo-e-em-pé
trajeto breve
sacola de compra
silenciosidade
filosofia
leve
placa publicitária
manifesto da idade
bicicleta
jogo de palavras
iluminação
bairro
floração
cena de família
fechado para balanço
ruário
fim de mês
sonoro
cão
piscada
sirene
fluidez
11-MANHÃ, p.421
acordamento
despertador
ossificação
presença
sonho
milagre matinal
trinta minutos
bico de lacre
lição matutina
frio
brilho
esconderijo
alma pura
três minutos
devolução
sorriso pão-de-queijo
multiplicidade
friagem
1340
náusea
perguntar não ofende
salto
lara
obrigado à manhã
velório de dia
dia
sonho ruim
lágrima
energia
preferência
palavrã
gato
bicho matinal
chuva
dicionário: manhã
missa matinal
teatro da vida
ginásio/colégio
rodoviária
matina
banda de música
cor de sonho
molecular
solar[idade]
natural[mente]
estação
prisão
entre as folhas
rio ri
quarador
calor e desejo
para onde vão as lembranças
depois da vida?
tarde na praia
tardear
estrutura do olho
do latim: LIBERTAS
intermezzo
vento de papagaio
estrada da barragem
parada
fim de tarde
tarde boa vista
pai morto
tarde fria
tempo tarde
mulher da roça
temporal
eclipse
especiaria
palavra
dezoito horas
reza tardinha
banho de rio
pobreza
tarde louca
bicho de rua
mosaico
tarde maldita
para-raio
entre sol e lua
carta
esporte
amor tardio
fim de tarde
13-NOITE, p.476
chegada
órbita
atividade noturna
outro lado
fogo
fogueira
consolo
vitória
nada se perde tudo se
transforma
gravação
corpo matinal
final da manhã
12-TARDE, p.449
hora do angelus
sombra do meio dia
jogo de dados
suor e meio
piscina interior
[sol]ipsismo
asfalto
hora de almoço
paixão
vida na tarde
artéria quente
térmico
1341
chegada
pernas ao céu
que necessidade
noção
deus
dia com noite
dia/noite
folha morta
lição
cama
metáfora
travessia da noite
legado
infância
são jorge
frase de lua
orquídea
alma nova
fragilidade
última ceia
mistério da meia noite
gatos
madrugada operária
noite natural
desdobramento
travesseiro de letras
poste
véspera de feriado
ego
vida noturna
noites geminadas
mote
a cidade sabe de mim
bêbado
joão surubim
noite
ouvido
húmus
escada
AR
benzedeira
plenitude
último suspiro
14-OLHOS DE CONCRETO, p.505
A profecia
O discurso da profecia
A desconstrução
15-CEM MÓDULOS, p.549
instrução para montagem
laje
geometria urbana
dia
viaduto
liberdade
dois lados
Sem título
sonho
semáforo dos ventos
eu palavra
folha
redução
anotações
arma
tarde finda
fernando
brasileiro
moderno
água de vaso
todo
gerúndio
vento de amar
comida
between
sinal/farol
fio
fuga de palavra
tolices
cheiro
gota
algodão e tempo
segundo hiperativo
osso
real
mente
SEM TÍTULO
ritmo
fé
nome
trinta e seis
quando ainda amo sou eu
pouco amor
quinze minutos
passado para trás
1342
mesmo
metafísica
limite
telefone
grampeador
folha branca
pergunto, apenas
lágrima seca
som e mente
nada é o tempo
tudo de novo
movimento
cinco sentidos
não meta o nariz
exterioridade
frio
livro
mundo
indiferença
o de fora
língua áspera
contrário
biosfera
verso breve
binóculo
abacate
sono canino
banho
volta, mundo!
dentro e fora
fração de tempo
desejo
espírito
SEM TÍTULO
unha e barba
imitação
poema cansado
noite só
espelho
pergunta
movimento
estante
loucura
definição
hera
lírio
noite ida
quando
cama elástica
hora
oposto
sete palmos
achado
modulação
pedaço de sentido
ótimo
16-O VENTO DO TEMPO NO
RELÓGIO DO TEMPLO –
INFÂNCIA, p.599
1
2
3
4
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100
101
102
103
17- O VENTO DO TEMPO NO
RELÓGIO DO TEMPLO–
ADOLESCÊNCIA,p. 681
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2
3
4
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100
18- O VENTO DO TEMPO NO
RELÓGIO DO TEMPLO –
MATURIDADE, p.738
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138
139
140
141
142
143
144
145
19 – RESÍDUO ORGÂNICO, p.792
cuidado: resíduo orgânico
pisada
artimanha
sombra
som de osso
veias da cidade
relação
vejo
inerte
ainda vão
chegada
gemido noturno
sem saber
cadeira de balanço
folhagem de estrada
como o jequitinhonha
crença
poeira do tempo
corpo oco
prisão
preferência
vidro
o frasco
sua benção
baú noturno
de novo corpo e alma
morte orgânica
cabelo
pele
o corpo muda
unha
pelo
digital I
cedo demais
corpo denso
olhos fechados
eu ainda amo
pele outra
suor
hera sobre a era
dentro e fora
reino
fim do corpo
poeira
às vezes corpo
puro
o tempo cai
a mente mente?
sonho
líquido
arrepio
fixamente
dia
abraço
dedo
entre as pernas
nudez
voz
vida orgânica
terra
fundo
superego
idioma
voação
1347
motor
asa da letra
a fala da letra
tempo físico
pele
lento
oco outro
inteiro
dedo
amor cheio
doença
o outro morre
qual?
alguém vive
mentalidade
passa o tempo
espirro
poucura
achado
inacabado
sangue
roupa íntima
energia
exame clínico
veia
dente
verme
digital II
com ou sem
tempo do corpo
músculo
carne alheia
mente e olho
antinomia
eu sou dois?
narizim
correnteza
20 – PULSO TEMPO, p.842
À procura do tempo
O tempo é o intervalo
O tempo não acaba, apenas
muda
21 – GRÃO DE TEMPO, p.870
grão de tempo
tempo
descartáveis
múltiplo tempo
só
calçadão
vaga
passo
sempre
mundo chão
leque do absoluto
vida
duna
expectativa
amor, sim
preguiça
memória
pensamento
con[versação]
tema
perecível
resta o rosto
fuga
vento
tempestade
caco do temporal
travesti
luz
humano mundo
faber
coração permanente
ooops!
palavra
ninho
sonho
livro
inverno/verão
céu
quarto de pousada
vaga memória
portugal
35
sentido
pedra
bomba
correios
ímpar
para depois
inovação
surpresa
etapa
1348
entre
esvaziamento
consumo
clima interior
fio
coração partido
trânsito
desejo
papagaio
cerca: propriedade interior
do casulo à borboleta
libertação
ausência
ponteiro
grão
mão do tempo
re-tardar
tempo paulinho da viola
o que passa
temperatura
labirinto do sonho
convenção mundial
grão de fé
miragem de vida
estrela de avião
turbulência
saliência
falésia
pressão
cinto
trem de pouso
meninas de natal
turista
sol
fortaleza
tapioca
a moça
outrora
buggy de natal
severo, o motorista
magnatas
esse mar
ressaca marinha
cajueiro
pitanga
cajá
menina do baldinho
vendedor de peixes
grão de areia
mar alto
ligação
aceleração
equilíbrio
tolice
falésia
mais que eu
22 – VAZIO, p.928
O vazio é oposto do cheio
Antes de ser qualquer coisa
Depois de ser tanta coisa e de
amar
O cheio é oposto ao vazio e
vice-versa
23 – ESPELHO, p.961
espelho
situação de sono
pudera
chegada do trabalho
cor do que se foi
estouro
anti-espelho
coisa
mudança
altura
não
afloração
obra
o tempo no espelho
presença
todo
antes e depois
cercado
rompimento
chave
uma hora de sonho
tempo e espelho
resulta da poesia
sonoridade existencial
agora
mundão
delírio
frio na barriga
espelho de banheiro
esponja
1349
fronteira
miragem
reflexão
interpretação
ressonho
sentido
quatro
mudez
objeto de tempo
criação
rapidez
erro
inteiro
espelho de fome
dia
cansaço
fotografia
sala de espelhos
amor torto
o espelho e o vento
marca
infinito
vítima do tempo
vidro de loja
música
sísmico
não quero ver
infância
reflexo sem visão
memória espelho de mim
olhos do lago
o que
oposição
espelho fixo passado
reflexo interior
oposição
enquanto
sereia
monóculo
gato
asa
condição
durmo
hoje
pombo
sonhação
mosteiro
envelope
vaziooizav
lágrima
calma
renova
ajuntamento
relampejo
saída
visão
pensamento
po[ssibilidade]
do silêncio
vida
contagem
mãos
enfim
da morte
palavra mutante
tatoo
sempre
unidade
o verbo
o vento tem várias faces
24 – HUMANO, p.1010
anjo de[caído]
eternidade
o ser
corpo
tragédia
humanidade
dor
perdição
raça
criança
comichão
solenidade
toque
morro
silêncio interior
niterói
human
depois
repouso
rolação
lado
metade
número
1350
sobra
amor
filósofo
obstáculo
asa
verdade humana
[amar]rar-se
médico
luz
engenheiro
fim
fogo de saudade
folha
vida interior
obscuro
caminho
tanto
o padre
raso
memoriazinha
batida
pé no chão
comum
imagem
corpo
dia ido
espera
tempo cansado
estrela
plágio
luto
sorriso
memória e história
consolação
acordo
vida
dança das horas
questão
oráculo
enquanto der
aspereza
vazio como eu
resmungo
humanitas
fim
amor e dor
horário
debaixo da pele
quanto vale?
sapateiro
chapa
meninas da roça
das coisas
não-ser
fenda
dia desses
melancolia
tinturaria
pulsos
rasgo
violência
candura
sinto muito
e será?
ventríloquo
espanto
brincadeira
tieta
escriturário
senhora do carmo
três
estar entre
beijo quente
máquina de escrever
das mortes
nova humanidade
coletivo
serro
25 – ENTRE DOIS PONTOS DA
MESMA VIDA, p.1057
A partir de um ponto
Belo Horizonte
São Paulo
Paris
Colônia
Amsterdam
Berna
Bruxelas
Rio de Janeiro
Interior de mim
26 – NOTÍCIA, p.1096
paisagem do descaso
são paulo I
são paulo II
1351
guarulhos I
guarulhos II
turbina
poltrona
mais de dez
sentado
gare du nord I
turbante
indianos
hipocrisia
muçulmana
cemitério
altura
padroeiro
gravura
vista
caracol
tour eiffel
carro
sena
barbès
kardec
o tempo retorna
colônia
dom
alfândega
droga
dinheiro
tambor
hbf
neve
vitrine
sombra
altura
é...
nunca mais
quase atraso
atraso
apito
cheiro de estação
vela
dentro
bilhete
telhado
linha
gare du nord II
protestantes
trem e chão
deus
início
casa
alga
amsterdam
i’m free
pato e marreco
roda
casa
água
comida
quase
moinho
vaca holandesa
limitação
prisão
metrô e bicicleta
museu van gogh
pont neuf
moyen-âge
hemisfério norte
eugène delacroix I
eugène delacroix II
além do quais st. augustin
escola de belas artes
quartier latin
école de france
drapeau
samaritaine
beijo matinal
mundo pequeno
céu
poder temporal
antiguidade
uma vida
fluxo
atrás do vidro
comida chinesa
exposição
rotina
distância
neblina
afinal
fonte
donas
hora
1352
alpes
futuro
neve
alemão
chuva
ordem
visão alpina
igreja
einstein häus
para além
exército suíço
retorno de berna
sepultamento
leveza
cheiro
bem cedo
arte
bicho de cidade
maçonaria
sozinho
depois
queijo sem vinho
poesia de manhã
ponto
conteúdo
real
música
depois
banal
vida
fim de viagem
definitivo
vinho
hotel
roteiro
visto
vagação
caixa acústica
branco
27 – RESTA UM EU MESMO,
p.1150
o que resta é o poema
forno de pastora
medida
venda
abalo
estrela
virada
chuva
cama vazia
situação
verão
melodia
jura
vento da praia
ritmo da chuva
lição
saudade de pedra
vasto
preciso
o templo do mar
hibisco
sabiá
pitinga
quilombo
retirantes
casa triste
aguardo
atraição
silêncio é razão
missão do absoluto mar
coisas
temporada
a qualquer custo
natureza
antes
rastro de chuva
além existo
sossego
azia
gota de tempo
de nada serviu
eu sei
futilidade
grandeza
intervalo
o depois é saudade
equilibrado
resta um
jaz?
transição
por cima
por todos os lados
violação
1353
28 – GRANDE ELEGIA DO
MUNDO, p.1199
Ondes estou?
Existe mundo?
Poeira de vulcão
Cansaço e fúria
O que quero,
acabará
No final, resta
um: eu mesmo
29- PASSATEMPO, p.1232
passatempo
são belos
bem que tentei
quando: hoje
quadro feliz
brinco azul
banalidade
esperança
sou
despiste
abandono
repetição
ínfimo
aviso aos ditadores
versos proibidos
engenho
canção do atraso
quando olhar não quero
retido
inútil viaduto
passa, nuvem
tempero
mais que palavras
elegia do passarinho
trocadilho
poeminha vazio
estilingue astral
outro dia
dia bom
passo a passo
com ela
carta
senso puro
ser botequim
simples
mistura
vulcão
florido
refluxo
coxia
igual
haja coragem
alheio cheiro
esperança é poesia
a vizinha
espreme[dor]
ocultismo
santa de bronze da praça
assim, assim...
de pouco, palavra
boi, bois, depois
pincel
ziguezague
fotoolho
seis e trinta
nota tardia
sopro de mar
grito de inferno
fios de tricô
mão de mãe
beatices
mentira salutar
antes fosse
dia repetido
por sobre as nuvens
orvalho
guerra
a banda anda
bastardo
o que são palavras?
noite em sonho
pausa
a praça
pernas de ladeira
terra boa
se chamar, eu vou
anterior[idade]
fundo da praia
rio miúdo
ausência
sujeira
o que fica resta
1354
domingo
silêncio de peixe
vestido de baile
do profundo não se diz
elegia da estrela
ponte
abandono
paisagem quase esquecimento
roça
por debaixo da névoa
forma de nuvem
ibitiruy
seio de copa
vento de inverno
estação
dissipação
andorinha
roseira
antena
pedra redonda
frio da montanha
gramado
janela de igreja
placa, estátua
cheiro de viagem
orvalho
problema do desejo
usina eólica
acordar
pedaço errado
perfume cítrico
invisível verso
lenda da memória
banho
superego
hora
ruga de caminhada
alma do mundo
amanhã: quando
garimpeiro das vozes
hospedo uma alma
banho de alma
véu da mente
terno tempo
frente e verso
amor mesmo
bichos pensantes
brigadeiro
bacia d’água
serena realidade
cemitério e céu
a cidade cansa
retrato de 4ª série
história de calçamentos
e para o jantar?
equilíbrio
luar e solar
o louco e a morte
homem de rodoviária
praga de padre trombert
notas para sepultamento
tempo da saudade
bilhete obrigatório
passamento de tempo
30- DE DENTRO PRA FORA, p.1287
de dentro pra fora
depois daquilo
entre corpo e alma
tempo-tortura
altivez
para sempre
outra parte
floração
igrejinha
casa da cachoeira
ponte de pedra
mapa do tesouro
pereço rápido
miniatura
esse menino
venda de antônio alírio
quitanda de marica
tromba d’água
vibração
energia
velhice
calar é saber
diamantina
mercado velho
calçada
sorriso
catedral
torre única
as luzes
1355
recolorir
lua sumida
frio e calculista
dia nublado
ponto alto
calor
fome de bicho
caracol
giro das horas
silêncio absoluto
antigo amor
lagartixa
cenário da janela
dos dias
o ido é algo
presta?
janela fechada
passado social clube
sonho
rota aérea
diário dos séculos
da próxima vez
dia embaçado
tempo menino
traço
vida física
fronteira
ainda bem
sombra
tempos em um segundo
túnel do tempo
seca de deserto
telefone
revelação
tempo que dura
concordo
mocó
pensamento depois palavra
absoluto
linha vazia
monitoria
verbo
da anterioridade, perfeição
na carne
entre tempos
futuro
diálogo entre coisas
fluido
alma e tempo
há fim
interior: para além da janela
da alma
verso cansado
casamento
expectativa
caixa quente
escape
cisma
mente forte tem luz própria
vida besta
modo de vida
cerebral
janela aberta
necessidade
ação
sonho
o de fora e o de dentro
memória de coisa
alma
profusão
a lenda
1356
DANILO ARNALDO BRISKIEVICZ
nasceu em Serro, Minas Gerais, em 1972.
Filósofo, poeta, historiador e fotógrafo.
Vive em Belo Horizonte onde atua como
professor do Ensino Superior. publica livros
impressos e em formato e-book que podem
ser baixados gratuitamente no site do
autor.
1357
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distribuição, exibição, criação de obras derivadas desde que lhe
sejam atribuídos os devidos créditos do autor e da editora por escrito.
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