] ] ][] ] danilo arnaldo briskievicz CONEXIDADE danilo arnaldo briskievicz CONEXIDADE 30 obras completas 1993 a 2012 TIPOGRAPHIA SERRANA SERRO - MINAS GERAIS – BRASIL 2012 1 Apresentação Era uma vez em 1993. Naquele ano resolvi: já era hora de tornar público alguns versos. A poesia interior se revirava a procura de uma Identidade. Poderia dizer que a alma do mundo me impelia, o tempo todo, a me identificar com os símbolos interiores sejam eles de qual matriz tenham se originado (a família, a sociedade, a história, o amor). De 1993 até 2012 quando apareceu o trigésimo livro intitulado De dentro pra fora as viagens pelo Brasil e pelo mundo, o conhecimento de sentimentos novos, as mudanças de cidade, a leitura dos clássicos da poesia mundial, brasileira e mineira foram somando novos versos. Dos trinta livros publicados, alguns impressos, outros em formato digital, em cada um deles me sinto singular. A memória poética do momento ali se expressa de modo intenso, conturbado e necessitado de ajustamento. A poesia expressa nos trinta livros agora reunidos nessa Conexidade são apenas tentativas de purificação, de catarse, de memória, de resolução de conflitos internos, de saudades amorososas e dos amigos, de contar a história interior das cidades visitadas em sua unicidade. Os versos, tantos versos, são permeados da memória afetiva da existência. Em cada canto da poesia que se expressou é possível ver e sentir um pouco da linha do tempo da vida. E cada vida, assim como a poesia, é única. Isso não quer dizer que seja estanque e sem ajuntamentos. Toda a poesia é uma conexidade. Uma profunda conexidade entre os diversos tempos da vida em suas idades. Mas em cada verso, sei, fundo, que o aprendizado se deu. Acompanhe essa Conexidade e se torne mais um elo. 2 IDENTIDADE/1993 PRÓLOGO Para borrifar o papel com sentimentos e palavras o poeta de alma cortada declina o dia declina a noite percorrendo o mistério que o faz contemplar na vida no momento no tempo uma profundidade intensa que o leve a amar. Para borrifar o papel de risadas e realidade o poeta de alma penada purifica o dia mistifica a noite descrevendo os mistérios de sua indignação com a dor silêncio tormento um sentimento irrisório que o leve a calar. Um poeta no dia perscruta os atos idos na certeza própria convence-se da má sorte. EU SOU Coração sem identidade quebra-cabeça montado de dor e ardor e clamor um grito de desespero. 3 IDENTIDADE Identidade que se processo no ocaso de encontros e despedidas inversões e diversões de espantos e acolhidas contradições e paixões. Fiz-me na hora certa incerta manhã da existência difusa luz da história onde conto meus dias sem receio de ser feliz com anseio de ter aqui um momento alegre e contagiante escrito na tábua da minha razão contração de sonho e realidade. Identidade portátil fundada nas estruturas sólidas do ser, humano que é, a cada etapa tateando no escuro dos diálogos frutuosos calorosos. Descobri a ideia estreita de ser humano interessado em si só. BOCADO Da boca fiz poesia do sorriso hipocrisia de quem sorri e beijei só me resta melancolia. 4 LINHA DO HORIZONTE Na linha do cotidiano deslizo a caneta da vida. Inocentemente desvendo a solidão a cada ano. Na foz do destino corro em rios de lembranças. Incessantemente me desiludo com todo desatino. CASULO Envolvido em mim mesmo sou epiderme. Despido de mim mesmo sou expressão. INDEFINITO Se queres me definir mira a estrela mais distante e percebe seu brilho. Conta os olhares perdidos que mirei a lua, a praia, o infinito. ausculta meu peito em sol menor e entenda sua sinfonia. Se queres me definir descolore o azul de meus olhos e pinta um branco total. junta contigo o conhecimento de tudo Com o saber divino. e ausculta meu peito de-cadente perscruta minh’alma penitente. 5 CACOGRAFIA No questionário da vida achei poucas afirmações e não fostes exclamação decerto minhas reticências. TEMPORAL Doeu-me na pele de neve a chuva pálida de tua voz ecoando nas grutas de meu ser frases prontas de despedida. Onde tu estavas quando me traí? Onde estava eu quando te perdi? RE-AÇÃO Ao passado que é limite acrescento uma revisão anotando os seus erros no caderno da emoção. Errei por descrever quem era eu ao agir e anotei consciente: devo me redescobrir. Acertei vivendo as etapas da vida ano e meses e dias com intensidade. Anotei um acerto: a cada tempo uma realidade. No erro da noite nos acertos da tarde 6 descobri a ambiguidade: sinto a vida de verdade. ANÔNIMO Sério, eu?! Quero tempo tombo. Tédio, eu?! Tento canto minto. FUTURÍSTICO Para onde for acompanhar-me-ão recordações passadas e singelos amigos. Comigo virão as emoções da vida que insistem no atropelo e as mais belas despedidas. ESCALADA Suado de alegria subi a escadaria. Melancolia à parte noite vazia. Deitado na saudade desci ao abismo. 7 SONO Veia desatada em mil nós pulsão emocional vulcão na noite de desembaraço adormeço em meio ao verão. Desacordei de um sono leve pesado em seus contornos suave em seu declínio rude no seu reinício. Fui noite, agora sou dia paraíso, hoje sou profecia tentei um acordo, desacordei insone. procurei um atalho, caí na armadilha destino castigo estilo solitário. CÓSMICO A nuvem pálida o jato de luz a estrela apagada: tudo é madrugada. Algo do nada é tua lembrança. NOTAS Como quem toca uma guitarra e suspira um saxofone na noite de despedida não sou o mesmo já tenho os pressupostos que me compunham. 8 DESPEDIDA Ouvirei teus gemidos sem censurar mas na partida de teus passos permite-me chorar? Relerei tuas cartas sem pestanejar mas ao queimá-las concede-me duvidar? Sentirei tuas palavras sem lamentar mas ao pedir perdão deixa-me negar? Dispersei tuas lembranças sem hesitar mas quando te rever posso te convidar? REssINTO Tu não aceitaste desculpas na noite flagelada de dores nem mesmo sentistes a flâmula da minha incerteza que pairava. Incerto que estava acertei teu egoísmo e de tudo que assumimos me sobreveio ressentimento. 9 HORAS Desperta a noite já vem. Acorda a madrugada chegou. Dorme o dia caiu. Doce vampiro. AFTER DAY O que restou da noite foi a angústia a insônia e a solidão do açoite. O que restou do beijo foi o sabor a forma e a distração do ensejo. O que restou de ti foi o retrato a carta e a porção mais triste. PASSANTE Ondulei a curva já remota de teus pés na sala e não se encontram notícias dos jornais passados que tu lestes. (estão arquivados). 10 Não se acha a mesma mesa no canto da sala e a televisão preto e branco hoje é colorida. (tudo evolui). Desci as escadas da sorte e me veio a saudade da canção serena que compusestes na primavera. (mudam-se as estações). Limpei a viseira que meus olhos azuis possuem e vi no quarto de hóspede a sua marca arcaica. (reformaram as paredes). Peguei-me ultrapasado ligando fatos idos ao presente revivendo sentimentos sem sentidos ao luar. MEIAS PALAVRAS Na distância fixa tremenda desilusão tu não estás em comunhão com meu corpo. Digo ao relento ouves sem atenção e expresso por carta só entendes sofrimento. Palavras são instintos que distinguem 11 cada relação. Para ti usei amor ouvi amizade utilizei paixão ouvi estima. Usei palavras demais, castigo-me agora pela hora não consumada. FASCISTA No fim da tarde condeno o tudo ao meu nada na mancha negra da lagoa dourada desprendo um olhar de vertigem. Nas caldas vulgares da sereia atendo a insatisfação nas lembranças do passado doído e incerto encrenco a máquina sentimental. E concreto que sou torno-me semblante pesado escalando a tarde comigo apenas. Volte-se para o lado e não verás minha face. VISÃO Um corpo sentado recente visão nos sonhos te tenho 12 não sem obstáculos reais. O irrealismo de teus lábios nos meus impressiona e desfigura. TOQUE Entendi a caminhada da manhã rompendo a tarde aprofundando o sentido mágico dos afagos no corpo dos toques nostálgicos. SAUDADE Pensei em nada e tudo se vai rebuscando o papel chamuscado de saudade. Pensei remorso e encontrei esperança esverdeando o canal pintando-o de felicidade. ANGUSTÍADE Solidão é algo brando capricho de deuses produz amargura, uma dor danada resseca a garganta, impede a palavra. Machuca no fundo remói o passado. Corrói o meu mundo destrói o pecado. 13 Brisa que sopra na fronte da paixão é tesão recolhido de toque em noite de contração de beber a taça da libido. ESTÁTICO Estacionados estão os objetos ao meu redor plantas em silêncio jardim estático. Parados estão os objetos próximos mesa batida rádio estático. Calados estão os objetos ao meu redor colocados mesa em silêncio rádio estático. CERTEZA Distâncias separam pessoas ligadas por certas realidades: habitam o planeta Terra e pensam as mesmas verdades. Distâncias unem certezas de seres da mesma espécie sentem-se solitárias e choram de saudades. 14 Distâncias unem e separam os amantes da vida, com seus sentimentos e sentidos sensações e conflitos. NEGATIVO Na sombra de mim o sol se faz escuro como pele negra negativo obscuro. Com a sombra em mim nascida ando – negativo pela rua e na noite a lâmpada assombra se não, sou sombra da Lua. ESSÊNCIA Um desejo invade complacência. Um vento inspira demência. Uma música apavora carência. ALUSÃO Caminhonete pisoteando o asfalto marchando caminho adentro afora agora desbravando algo mais que uma ilusão passageira. 15 PORÃO O mar me traz algo esterno um sentimento eterno pós-moderno. Mar, corrente de emoções canções eruditas cristalizadas em seus cações. FALÁCIA Vendaval de esperança me vem ao contemplar na imensidade molhada desta terra a frieza do mar. Fala de calmaria fronteiras quebradas e limites instransponíveis sem utopia possíveis para quem ama. GELATINÍSTICO Na nata do mar escorre meu amor pela vida minhas crenças e realizações. Na dúvida de caracol me enrolo em conflitos nas curvas da sereia gorada estou pensativo. Cravo os dedos na areia pálida e estranha 16 escorre sangue espalhado em meu corpo. Céu e mar eu aqui incrédulo protesto silencioso de pensamento vaidoso bípede racional filósofo da solidão marginal. MEDO Na solidão do mar cravado de escuridão descobre-se que amar é absoluta contradição. No estar sobre as águas agitadas pelo vento percebe-se o nada que agora é meu sentimento. Na escuridão de meu céu brilha a estrela da saudade a lua de uma paixão revelando-me por inteiro: profundo obscuro exato a-mundo. BÚSSOLA Agarrei-me ao mastro do barco em meio a palavras de medo 17 descubro que bem cedo perdera meu zelo. Mastro que me aponta as estrelas astro, me fez perceber como é imensa a galáxia e minha possibilidade de ser. Mas o mastro é um astro sem lastro. O mastro me apontou na noite o Cruzeiro do Sul. E Cor és dor és Cor és dor Cor és dor... és! I Cansaço, malas, parada utopia, previsões, palavras. Pela janela avisto a caatinga já passando por Minas Gerais pela mente alucino Jiribatuba que não chega mais. Ao lado o padre ao lado os colegas de lado as senhoras 18 à frente das relvas. E passa rodovia e rodoviária chega Salvador cidade imaginada. Salvador, ferry-boat, mar conversa, Bom Despacho, calar. II O vento passa o tempo vento espanta o cansaço vento calmo “ainda é cedo”. Chegamos à casa paroquial descemos as malas ocupamos os quartos jantamos... repouso. Ondas calmas calmaria mental. RE COR DAÇÃO Teu nome escrevi na areia facilmente pensei em ti lembrança remota do que deixamos de fazer. Deitei-me na praia metade água ) (metade areia 19 meus braços abertos em contorno retrataram um coração. Coração de águas salgadas borbulha em recordações coração divino perdido em meditações. TONEL DA MEMÓRIA - 1994 PASSEIO POÉTICO As escadas de Santa Rita pararam no tempo os transeuntes diários são os mesmos. O tom do céu permanece inalterado o coqueiro intacto respira os anos. A seca cavalga todo ano pelos pastos mas a mão do lavrador esculpe o chão sob os olhos de Deus. As orações permanecem católicas e sonoras Apesar das seitas constituírem seus núcleos. Tudo em Serro cheira séculos e a vida é envelhecida em tonéis da memória. A moça (só isso mudou) ficou mais esperta de tantos alertas que a televisão vive a anunciar - decotou o vestido, largou o marido E quer se engravidar. O moço deixou a velha bicicleta andando de moutain bike pelo asfalto afora -tem na mente na imagem da família que o padre descreveu e não sabe se um dia a terá. Nada em Serro muda da noite para o dia e a vida é camuflada em selvas de cerveja. 20 IN LOCO Vasculho as gavetas da memória localizo a mão generosa deslizando sobre facas amoladas com má sorte. Se a pergunta – onde erramos? – encontra lugar Perco-me no tempo a recordar. 21 -12 – 93 Pena que da morte só sabemos o estado se ela traça horizontes só quem foi defunto sabe. Quem penumbra espessa invadiu a tarde com surrealismo bestial sombras e dúvidas? Sorte que da morte só sabemos o estado se desvendar mistérios só quem foi defunto sabe. Oito horas da noite encontro dos mortos cheios de medo e dor. BEM OU MAL Não me recordo de ver nas sombras vestígio de arrependimento por serem obscuras negras frias. 21 Não me recordo de ver na luz agradecimento que não seja iluminar clarear descobrir. Nas ondas pintadas da tela na sala surge a pergunta retratada: sou filho de uma luz transcendental ou de uma treva arrependida? FEIÚRA A bela vida consiste em antes mesmo Possuí-la, admirá-la. Ver no feio do dia-a-dia os opostos se completando. Não há plásticas para vidas tristes nem bisturis para remodelar o passado. GHETULIANA É preciso que o ser se faça carência de ser. Sartre Suas palavras me ensinam o que ter e fazer como ser feliz. Mas nessas palavras bem ditas vem calor do Saara angústia danada desejo de ter acertado na vida. De ter feito arruaça trapaça 22 tudo aquilo menos isso que agora me orienta a não fazer. De ter aproveitado a novidade toda ela sem medo medo desbotado magoado que agora me passa em conselho. Todo seu hálito recende para orientar-me dos entraves de errar na vida dos homens. Sua vida me indica a única saída – não ter entrada. Fomos aqui jogados feitos eu ele nós num jogo imperfeito que se fosse eu eleito não seria juiz. Sua boca amplifica vaidade tardia da taquicardia diária eternos gemidos emitidos. Boca de noite sofrida alegre mas vazia suave mas evasiva. Tons sobre tons boca sobre boca assim sou ouvinte de boca calada pelo tempo que leva palavras e corpos para o cemitério da memória. Faze o bem e serás perfeito. 23 SÁBADO há NOITE Desarrumando antigas gavetas perdia-me ainda mais vasculhando verdes ocasos sem nexo nem avais. Procurando arquivos secretos segredos banais revelando negros descasos encontrei-me sério demais. O RELÓGIO Ao Bonfim Subia as escadas rabiscadas de saudades das conversas a muito ocorridas a idade penetrava-me poucos desejos e o sino da Santa Rita não obrigava a partida. A voz de Júlia anunciando morte de pai assim velho assim gaúcho encheu de lacunas o garoto encheu o quarto de amigos. A voz de Magda pestanejando o microfone assim gasto assim antigo encheu meus ouvidos de 14:40 h encheu meus olhos de avisos. Deitado na noite a Lua sorria de madrugada ela me possuía descobrindo ninhos de andorinhas o futuro seria eternamente badaladas. 24 ROTINA Quando fico em fúnebre silêncio peito em feixes de rotina o mesmo Sol no azul celeste concluo o dia – semelhante ao de sempre. RUAS Passageiro de becos e sonhos embarco nas arruaças de pedras calçando a vida. Paredões caídos alterando a trilha perdões que reconstroem as noites pedras buscando sapatos. SALTO ALTO Equívoco auditivo na noite no ecoou no peito seu toque-toque na esquina nem palavras de reconciliação. Badalei-me – não sou o mesmo que há tempos desnudou seu corpo naturalizou seus atos relativizou sua culpa. Na noite de salto alto não dobro aos seus pés. CALMANTE De noite sou o que sou rápido de gole em gole. Perdendo a coerência entre uma frase e outra entendendo a decadência da Lua minguante. 25 Abastecendo ouvidos de sons e ruídos sugando da música bom lenitivo. Desfazendo sonho inútil e infértil achar-se em três notas musicais. Na noite sou o que sou goles luares pro c u r a GARI Teus restos joguei pela janela inúteis para reciclagem ocuparão a lata de lixo. Tantas reconciliações mas nada valeu tentativas frustradas – vai embora! deixe apenas o telefone da limpeza pública. O POSTE E O BÊBADO Ao Goleau Tenho sido apenas poste. Tentei ser calçada para o bêbado talvez seu aguardente fui apenas poste. Olhei com fineza e embriaguez alheia 26 - curvas na calçada – fui apenas braço de apoio na trajetória - fui poste. – Poderia ser pupila dilatada beijo baforado pernas trocadas - fui poste – Vão-se os sábados e nada muda mas mudar pra quê? O poste ilumina os passos do bêbado... ESOTÉRICA ...para Irene B. Dinis Filha ...livre, leve e solto. Se ao te beijar um significado rompia era noite enluarada era amor e fantasia. Se ao te olhar uma ilusão aparecia era o dia do reencontro era paixão e alegria. Foi beijando-te num lapso de infinito foi olhando-te num eterno espelho fixo que enchi o coração de desejo e alma de certeza: amei-te sem medo sem dúvida nem receio. 27 REBORDOSA Havia minha boca e um copo uma estranha sensação - não alcancei o ú l t i m o co(r)pos distantes gole distantes palavras ressaca MICTÓRIO Via-me ali, cheiro fétido mictório. A vida é um pouco glória e Urina. Via-me ali, água escoando gotas etílicas. O mictório da vida leva eles eu. Cheiro suburbano de sentimento noturno mijo recorda-me lixo paradoxo sem sombra feliz-infeliz em duas músicas ouvidas. PERDAS & DANOS Talvez estejas entre um cigarro e outro e tuas lembranças denotem nostalgia semblante triste sem consolo. Perdeste a agenda com ela um prefixo companhia. 28 PÓLO OESTE O gelo se debatia no copo em silêncio se desfaziam lágrimas NOITE TÉRMICA O copo de frio arrepiado em meio a sorrisos da cerveja fui assim degustando a noite num indigestivo sábado. TREVO Caí do alto relevo vertigem em forma de trevo cinco dez quinze pétalas sem porte cor nem sorte. H2 Ó Dói um amor que é plano papel esboço teoria. Não corrói um ácido que é neutro insosso inodoro frio. 2004 Em algum lugar do futuro meu caminho cortará o teu se chegarmos até lá saberemos quem sou eu. Em algum lugar desse universo meu sonho buscará o teu se nos conhecermos saberemos quem sou eu. 29 HEDON Não sou real nem quero ser sou um sonho eterno adeus apenas bom momento. Serei eterno ou não serei? Quem comprovará? Não sou real mas posso ser hedonice em noite de Lua cheia. DUAL Reflexivo espelho alma corpo depressivo receio calma porto. Distendido dualismo pensar agir partido sofrimento calar sorrir. A ONDA ERA PRETA As ondas não diziam nada embalei o céu e joguei no lixo as estrelas se foram de táxi emudecendo canções e notas. Há tédio – não me intrigam cores da orquídea na manhã balé de gaivotas – meu porto é solidão. 30 INTERCÂMBIO A flácida curva da estrada não me conduz a ti a cálida luz do dia não me eleva a ti. SPIN Há energia atômica nos poros rompidos -rompiam-se passado e presente – sonhar motiva a realidade? O pensamento rouba o diálogo se calo sonho se falo destruo o sonhado. WALL Beijar quebra muros unindAlemanhas. Mundo de muros silêncios e apuros. VOLUME Cavalguei em espantos saborosos sobre ondas de néctar e ouro tudo se fez aurora. Balbuciei números de mundos infindos com boca carimbada tudo se fez silêncio. 31 ARRUMAÇÃO Perda procura achados desenhos atropelados um nu um homem pelado calças nos varais sapatos no telhado. EM POTÊNCIA Ao Sérgio Vidal Quem se vê assim calmo frio pacífico não entendeu ainda o parêntese quase reticência penetrando a jornada da juventude quase vazia de um grande amor. ROSA A rosa foge do amor presente o passado é mais forte prendo-me à sua cor importa-me a distância que mantemos. Como, rosa, flor escarlate orientar-se para alcançares o que possuo dar-te-me sem freios doar-me sem te murchar? 32 ELEGIA DO TEMPO Tempo-rei, ensinai-me o que eu Ainda não sei. G. Gil I Éramos eu e Deus partimos de ônibus. A paisagem despia o céu da nova cidade contudo não largava o sonho ao vento. Estava decidido – era vocação um padre serrano assim branco assim jovem. Em poucos anos perdi meus passos no calabouço estruturado das palavras gaguejei sorrisos suspirei lágrimas. Como não contasse os tempo ele se foi em três calendários lentos calmos profundos -perdi-me em planos sucessivo desmaio cronológico. Criou-se entre a criança e o homem um hiato de três anos. II Quisera que as flores tão belas vissem meus olhos alegres no jardim gramado de esforço de ver muda fazer-se flor. Mas os olhos coloridos se foram da janela onde avistava as palmas - não houve regresso. Só as almas renascerão. 33 Da kombi branca velocidade nos olhos corria por entre casas mudas e tristes alegria no retorno às aulas em meio a solfejos de férias. O corredor tão amplo em seu passado esqueceu-se das palavras sábias bem como das nuvens que o tempo choveu. Em Serro a noite cai tão silenciosa que o tempo se fez realidade passei e sou passado. III O tempo tipografou na face rugas exangues e um olhar de angústia passou cada segundo das células jovens envelheceu a noite fez-se dia. Levou da boca as palavras definiu os culpados sorriu a alegria fez-se suspiro com anseio de infinito pelas duras marcas que o peito contraria. Tempo-perdido entre frios olhares hoje traz sombra dor melancolia de nada valem as fotos debocham das mãos trêmulas de nada valem remédios o pó quer se incorporar aos meus ossos. 34 A LIÇÃO DA CHUVA Não duvido que a sombra tenha medo da luz nem que o Sol tema chocar-se coma a Lua pois a luz contêm a treva -sorrio disso. Há noite em cada amanhecer – não interrompamos o ciclo ele se repete em nós hoje sou banho – amanhã chuveiro ontem fui cano – depois rio. Atenção à lição da chuva que sobre a terra deposita suas esperanças ver semente crescer árvores ter árvore para refazer o ciclo. Que eu chova água e amadureça árvore. SOLIDÃO É quando o peito desarrumado percebe a tempo- o desencanto é quando as noites perdem sua beleza sem desculpas – acalanto foi assim: peito partido noite fria que desatei os nós do sapato de uma insólita caminhada. Se sobraram pedras rolantes desejosas de contato se caíram lágrimas de mágoa rolantes desejosas de atenção a certeza do sorriso é que prevalece... 35 ORATÓRIO DE VERSOS/2002 TRADUÇÃO Então fui acometido pela Náusea, me deixei cair no banco, já nem sabia onde estava, via as cores girando, lentamente em torno de mim, sentia vontade de vomitar; e é isso: a partir daí a Náusea não me deixou, se apossou de mim. A náusea, Jean-Paul Sartre Traduzir-me parece difícil quanto mais me procuro, ousadia: me perco. Basta a angústia: sofrendo me reconheço vivo. Acordo: vem a memória nome, sobrenomes, objetos: onde estou? Não me acho fora de mim sou um espelho quebrado. Estou rompido em dois polos um que ama e é ousado, outro serei eu? frio e melancólico mas ambos cabem num só destino. Há muralhas dentro de mim: pedras no caminho da vida, vivo ou existo? Estou dividido em fragmentos de ação não há resposta, pairam dúvidas. MEDO É preciso não sentir medo. A náusea, Jean Paul Sartre Hoje é dia de suportar a luz enquanto no fundo do meu túnel é escuridão. 36 Hoje é dia de ver o sol, lua, brilho dentro de mim não há sombras há a maior sombra: medo. De mim ao mundo há um precipício de mim ao outro há mundos e fundos (pena de mim: entre eu e mim há um cosmo insuportável). CONTINUAÇÃO Embriagada manhã do silêncio frio suor pelo peito desce cores se foram para o branco não adianta correr: o trem já se foi. Parar nem pensar não se deve continuar, continuar se consegue. As pedras molhadas estagnadas a chuva pálida trazendo o sono entediada manhã da solidão amena pela manhã se sofre pouco – venha a madrugada. Parar nem pensar não se deve continuar, continuar quem consegue? MODIFICAÇÃO Venho notado mudanças no meu passado espanto cada dia me volto para trás e já modifico algo novos dias novas versões como recompor a verdade do real que havia quando me perdi pela primeira vez no amor? Voltados relógios, dias, pessoas já falecidas 37 nada senão a consciência sou passado o primeiro amor por tanto ódio e querer afastado dos dias se tornou névoa pálida. De manhã rezo alto para ver se adormeço o desejo ele me introduz na voz, na luz do dia renasço passado reformado em busca de êxtase, mas quê... sou um simples junco pensante sem realidade. PERDIDOS Perceba como voamos no pensamento há ventos tufões e lamentos mas também por que não afirmar numa fala quase terapia e divã a vida é assim confusa e na confusão a gente se acha e se perde mas pode se quiser se puder se der ser feliz. Nascemos para nos perder e de vez em quando (outono a outono) nos encontrar na cama das amarguras nas memórias nas mesas de bar em bar é perigoso se encontrar: não encontrei-me ali deixa o prazer da noite ser dissipação procure-se um dia: no coração. VIVENDO Sentia que começava a viver: sofria é assim mesmo: o primeiro sofrimento cria em nós a altivez e o estatuto provisório de seres criados para o amor. O amor acontecia em meio à juventude criança, não, jovem imaturo, já sofrido nem sabia que de lembranças pode-se viver e agora, homem maduro mesmo, quero voltar o tempo. 38 A ingenuidade da primeira vez , a pureza do primeiro toque, o calor, ânsia: primeiro desejo não, não há como tirar da memória o resíduo do primeiro momento: perdi a inocência. GOLES Olhos que se guiam pela praça nem árvore nem busto nem flor um bêbado cambaleante sem cor não há vergonha em mais um gole nem medo que o console nessa bebedeira hermética ele perde o para-outro que o compromete e por entre ruas e becos confuso esquece o olhar de alguém ao longe parado na praça roubada em sua graça pelo bêbado sem vergonha que passa. FESTA Os grilos solfejam seus cantos o brejo em concerto detona a noite partituras misturadas ao verde mato gargantas afinadas em tom natural no brejo das noites ouvinte feito a lua reforça os olhos dos sapos parecem expirar a vida dos homens insistentes em transitar pelo escuro. Na noite dos brejos em silêncio dos corais de insetos crepitantes o pensamento escoa feito água boa nas bicas da saudade feito vida. 39 LEVES VERSOS Dedos meus batam de leve a tecla mamãe é esperta e pode acordar: ela não ia gostar do gemido dos versos no fim da noite para sepultar palavras ingeridas a cada gole. Dedos meus batam de leve a tecla mamãe está alerta e pode concordar: em escrever sobre o amor ausente é tarefa decente espantar a dor. PATER Teus olhos me ensinaram que se deve saber a hora certa de abrir e fechar os olhos sem inocência mas consciência diante da vida tu sempre calmo sem tesouros ou fortunas cavaste aos poucos uma intensa presença a morte tira mas não esquecemos em nós está tua presença sempre assim noite de lua cheia em Milho Verde. SENÃO A estrada se desenha por sob meus pés um calçado trinta e nove com poucos anos pés-de-moleque na memória dos passos chão vermelho na retina dos tênis. Aos poucos a sombra vai-se curvando os anos e passos se sucedendo e enfim 40 anos e passos cessam e a cor vermelha se torna desbotada como a face em sepultura. Do tempo nada se leva senão a memória dos passos nada se leva senão a segurança da vida nada se leva senão o sopro eterno dos versos nada se diz senão inúteis. RETORNO Voltei a ser poeta a alma novamente rasgada em pedaços o lábio gemendo em dores insondáveis o peito fragmentado numa erosão incurável. Versos me aguardem de volta estou pois o ventre corroído ama novamente alguém. Voltei a ser poeta estou neste mundo dos relacionamentos doentios mundo das paixões desenfreadas dos ciúmes imediatos e irremediados. Voltei a ter a alma martirizada pelo amor minha garganta só pronuncia monossílabos a mente não se cansa de lembrar de um novo amor Voltei a estar vivo...ressuscitei. 41 CONVENTO Quero uma janela bem fechada nesta noite um quarto sem trancas não destrancável um abajur apagado a velar minha prisão interior vasos de violetas por sobre a mesa e nada mais que uma música dos bêbados a tocar quero nesta noite de clausura interior um porto para meditar a vida. Nesta noite importa-me o retiro das palavras a concessão pra dormir bem cedo mais cedo do que minha solidão. Nesta noite quero apenas um convento. TRIPALIUM E como caíssem horas dos cabelos de cor em cor se embranquecendo a vida expirou o último soluço. E como o tempo me amordaçasse tortura por tortura padecendo a vida estancou o último sofrimento. Da vida nada se leva senão a dúvida e se é bom perguntar por não saber melhor calar para entender. TUMULTO A borboleta se cansa de colorir o ar o peixe se cansa de perseguir a isca a minhoca se cansa de perfurar e fica parada o homem cria túmulos e vai para o céu? A orquídea mata seus ramos antigos 42 sobre eles constrói sua folhas tudo nasce e renasce aqui e nada ocorre para além desta vida. O homem parado diante da morte consciente retira da vida sua naturalidade e chora mas nada devolve a senha dos vivos e a dúvida das religiões prossegue insana. FLATUS VOCES Pensar na Maria e no José na flor: ontem se abriu deixar rolar palavras pelo ar ao sabor das tempestades aproximar-se da velhice com sabedoria dos viventes reler as cartas de tempos idos com emoção e recato expirar a vida devagar como deixar de pensar. CURATIVO Construo minhas lembranças com meu presente. Sou repelido para o presente, abandonado nele. Tento em vão ir ter com o passado: não posso fugir de mim mesmo. A náusea/J.-P.Sartre As nuvens em algodão prontas para estancar o corte das estradas fundo chão adentro em cada canto de mato uma abertura para olhar um trecho para espiar 43 o dia nascer quadrado. As chuvas depois da evaporação prontas para limpar a ferida dos anos profunda nas almas em cada coração partido uma oração para estancar uma litania para repetir durante a vida que passa. MATO No quintal as árvores se debruçam sobre as mãos da infância cercas que não cercam os pulos o roubo engraçado tramado nas rodas-gigantes da inocência decente furto sem preocupação. Árvores dando-nos os pés para subir um contato imediato com a seiva a selva é a cidade não o mato que cresce ordenadamente devagar sem acelerar a pulsação da horas sem amassar a terra que é de todos. VOZ E NÓS A horas se amontoam feito trouxa de roupas cada uma a seu modo amarrada feita de nós de nós de nós. Que te parece poeta do tempo mesmo amante parece hora de orar pela amada adormecida em sete palmos? 44 As horas rebuliçantes sobre os dias pesando cada uma a si mesmo trazendo feito de nós de voz de avós... Que te parece poeta do tempo em hiato passado parece hora de ora em ora: gritai ao tempo _ para! CRESCENDO Não sabia - ao me darem um nome eu me perderia. Nem esperava - depois do presente viesse a palmada. Não queria - depois dos pais surgisse o mundo. Nem contornava a igreja velha rezando para ser condenado. NADA O nada nadifica. M. Heidegger Ao heideggeriano Alfredo Dentro da casa moraria a escuridão mas lâmpadas artificiais recriam as cores casas velhas refletem os raios dos tempos a música suave convida a rever a vida o céu insulta meus olhos com estranho brilho repousa a treva de uma noite sem fim e mesmo criando lâmpadas não podem iluminar seus próprios passos na assombrosa guerra estranha de existir. Dentro de nós estão a luz e a treva as lamparinas lá não iluminam e nas trevas construímos nosso destino luz que ilumina, treva que nadifica. 45 O QUE É MORRER? Dedico-te meu corpo são ou fraco pois para vires ao mundo tu que não és em si mesma precisas de minha vida. Não sei tua hora nem tua cara mas já morri tantas vezes minha carne que há de se perder ressente o tempo de tristezas já ido. Dedico-te meus amores: com minha ida ferida quem sabe a alma chorem ferida quem sabe a saudade voltem para rever os lugares em que um dia vivi. Dedico-te os olhares transcendentais a vida perdida mais uma vez toma que é tua - minha vida é esmola para teus dias se perpetuarem. O PÁSSARO DO EGITO Morrer como um passarinho sem grandes suspiros nem ais apenas com a mão de meu amor a segurar minha carne que fica. Adormecer como um passarinho breve poema em fim de noite rolar nos braços do esquecimento do pretérito perfeito. Fechar os olhos sem lua há noites em que morri 46 pelas calçadas de pé-de-moleque mas no instante de meu desfalecimento repito: quero morrer sem ais apenas como um passarinho. Morrer numa noite de sábado repetindo a mesma rotina judia de sofrer e lamentar os pecados as culpas as dores. Morri tantas vezes no sábado que sou judeu por forças das circunstâncias. Permaneci imóvel pensando não creio que pensar seja pecado se for pecado tenho metros de culpa. Comi carnes diversas de um passado ao teu lado se for pecado comer carne neste dia culpa sua, meu desencanto! Morri tantas vezes no sábado que sou judeu praticante. SINAIS Versos caindo em gotas de palavras a noite vai se desfazendo em desejos e corpos de amantes se encontram entre sinais verdes vermelhos azuis o desejo sem medida em gotas de lua desfecho de procuras o momento se faz total porque tudo é apenas um momento felicidade é apenas um lapso do desencanto com a tristeza reinante nos dias frios. Há nesta noite casais sorrindo o mérito das ondas de luz iluminando os beijos são tão explícitos que confesso a Deus que todo poderoso me empreste o poder das letras 47 para declarar culpados os amantes que não amam brigando em vez de unirem seus mundos num eterno faz de conta de felicidade. Nestas noites em que a lua ilumina demais desconfio como bom mineiro que houve ontem hoje e quem sabe haverá amanhã momentos em que os amantes desafogados desabrigados desconsolados de seus ombros amigos digam não um ao outro mas a partir da dor sol e lua se encontrando luz e trevas se atrevendo haja o exato momento que vivo: complacência frieza e precocidade. EUCALIPTOS A cada quilômetro mais distante da casa dos móveis dos animais das flores perdia um tanto de quem sempre serei: meu passado. Aquele céu obscurecido pelos eucaliptos a piscina sempre azul, mera projeção de nossos corações orantes. No sítio dos seminaristas carmelitas sempre em comum se olhando saguis passeavam pelas árvores caindo ao sabor dos machados. Em cada metro de verde o silêncio se pintava e azuis eram as brisas que nos enlaçavam em recreios sem discussões. Pequeno córrego carregando para longe corações que se consagram no medo quase desencanto de amar. Quando se está no verde e no azul preto roxo incolor não existem mas basta um lapso de convivência 48 e o arco-íris perde seu brilho lua cheia se transforma em nova e nada reconstrói o tempo desgastado em dias de reuniões e reuniões. Aos poucos, poucos meses os olhares se tornam pesados a rotina sufoca e ser livre é transgredir normas leis regras estatutos e tudo se torna pesado nublado: e vão-se os corpos embora pois boa é a hora que nos afasta dos olhares de condenação. A cada quilômetro distante da antiga casa as asas voltam a crescer e o pássaro enclausurado alça seu voo baixo para a existência autêntica. MÃE O dia chegava pela tua boca os olhos tropeçando no clarão quando criança feita acordar é ninar a felicidade para no sonho possuir a realidade. BALADA DO CONFUSO Quem sabe em tempos remotos sem remotos controles na era da pré-imagem na selva de um tarzã eu fosse mais vivo pelo menos tinha motivo pra na humanidade acreditar. Depois de Exupéry dos controles das bombas 49 senti uma pena de ser é que por aqui um mata outro sorri um rouba outro ri é bastante confuso. Depois do Pequeno Príncipe dos detonadores atômicos desejei não ser biônico crescer o coração e sorrir mas se o pequeno suicidou-se o que é que restou pra executar pra fazer? MORTE E se agora fosse o momento de despedir-me da casa dos objetos da cama da música do dia da hora? E se agora fosse hora de expirar para sempre sonhos passados planos futuros amigos por vir dias por viver? E se agora alguém me dissesse meio sem querer é chegada a hora de partir, levanta-te! Como abrir os olhos diante de tudo o que fui como seria fechar os olhos para tudo que vivi? Se agora fosse hora de ir embora ficaria a saudade de não ter feito de cada hora a presença intensa da felicidade. 50 NOTURNO ...eu quero meu amor se derramando, não dá mais pra segurar explode coração. Gonzaguinha As pernas cansadas da caminhada noturna é que de repente a noite vai se tornando cega e vaga e já não mais cruzo e descruzo as paralelas é a vida que me acentua as curvas do caminho. As pernas cruzadas tantas buscas hoje quem sabe a morte deste momento lúcido traga a paz às cansadas veias que desatam o tempo que a memória apaga ao despertar do dia. Hoje como a noite está fria e o coração agitado prefiro o ócio dos lençóis ao frescor das mãos prefiro a insatisfação dos andarilhos que a certeza de tantos viajantes. Hoje como sempre faço diferente o fim de noite vou caminhar sobre os lençóis banhados de saudade e vou regurgitar sobre a dura madrugada os sons de minha infância que se foi há muito. Hoje queria ser apenas um violino em disparada uma canção em dó menor sem a menor culpa e amanhã cedo eu a culparia pelas lágrimas que nesta noite insistem em visitar meus olhos. Hoje apenas hoje queria deixar de ser poeta e tocar nas peles que o desejo encerra toda volúpia possível dos que querem fazer deste viver a sangria do desejo e de cada momento um tormento de lembrança em fotos. Hoje já não quero mais ser imortal: quero ser finito. 51 ESQUECIMENTO Sossego, até que enfim, não suportava mais ou se suportava, suportava esperando a alegria de novas aventuras desfez o engano esqueci teu rosto tua voz e teu sentido. Desapego, até que enfim, não demonstrava mais ou se demonstrava era por capricho e orgulho nosso amor se perdeu em dias de deslembranças esqueci teu corpo, tua face, teu sorriso. CONTRA-SENSO Tu te mandas esquecer-me e eu me mando lembrar-te não por que te amo nem porque me detestas só por que te esqueço e tu não me gostas. Tu te mandas esquecer-me e eu me mando lembrar-te não por que te amo nem porque me detestas somente a lembrança nos faz resistir vivendo em tempos diferentes um encontro passado. Tu te queres me ver esquecendo sua sombra tua luz se projeta por detrás da memória tu te queres distante de meu corpo a saudade se encarrega da lembrança. Como perder-nos se já perdidos estamos como esquecer se juntos já nos separamos porque repisamos ainda juntos e diferentes o mesmo tempo do amor passado? 52 MENTIRAS Não te preocupes te esqueci ( me minto mas é verdade) uma nova paixão te fez esquecer (mas demorei a me acostumar) é um ditado antigo e comprovei( que é mentira) que não vale a pena sofrer por amor (tu não queres repisar nosso amor?). Quem amou sentindo o tempo passando a fonte secando de leve em breves espaços correndo as horas fomos nos afastando hoje minto: ainda te amo. Minto, por que ainda te quero perto te quero junto. Te quero ao vivo mas por que isso agora: o tempo passou por que não percebi: tudo acabou. VARAL DAS CONSOANTES Vou compor poemas de portas abertas sentir a brisa da tarde nua seduzindo poros entre o frescor da brisa dos apaixonados. Abrir as janelas da alma cavalgar poemas desatinados nesta tarde eu mereço ser público quero a notoriedade. Hoje, só hoje, sem solidão quero comunicar a paz que entra pela janela sai pela porta poema: varal das consoantes. 53 CÉU SEU ... e foram se cobrir pois viram-se nus. Livro do Gênesis A hora não se consuma! a carne que fim procura sem cura a ermo vagamos em busca de um amor perdendo o ardor de pensar o destino se oculta pelas estradas desviadas a delícia do paraíso ofício do meio dia. A hora não desarruma a casa pelas visitas pelos fratricidas em busca da dor os fofoqueiros em busca da doença o destino não me leva o amor não se quebra pra eu ver passar a vida em pleno nascer do dia último de minha jornada. A hora não palpita o coração em alforria livre serei para ir mas para onde se a hora aprisiona e me quer viver ir para onde céu véu dos viventes ir para o além com ou sem alguém? Talvez seja melhor a hora parar deixando a vida mesmo esperar. 54 INFORMAÇÃO Se me dessem a certeza os livros se me dessem o retorno das idas e idas do ser pudesse eu querer relê-los mas é que o medo (os livros falam) é mais forte que os olhos (os livros se calam). Parece medo pode ser presságio mas muita informação - um contágio pra alma ferida de tanto amor - um estágio polui a mente pela divisão. Amor desinformado pretendo nem televisão jornais livros nada de ver feridos olhos novamente a história de um amor desenfreado com Freud do lado. Divide bem e governarás. AMOR BREJEIRO A lua radiando sombras pela mata de eucaliptos rãs cantando Elvis Presley no fundo de todos os sons pessoas dormindo e sonhando com seus futuros próximos. Morcegos ultrapassando nossa conversa zunindo pelos ouvidos a inquietude dos corpos noturnos duas mãos ocas que não se afagam nem se atraem. Minha alma estava distante de tudo 55 a lua queria me devorar só meu corpo, ouvidos e bocas e um frio cortante percebia a outra presença. Tu estavas nu diante de meus olhos não a nudez dos apaixonados mas dos enclausurados. Soaram os gongos de nossas angústias e na noite de piscina esverdeada sobrou muito pouco de mim para remontar nosso diálogo. Tua alma estava tão distante da minha passeavam por outros mundos naquela hora e mesmo librianos não pudemos justificar o porquê de tanta rispidez. Queria que minhalma estivesse ali para sentir-te total mas não. Ela estava distante medrosa de sofrer. Minhalma ao ouvir tua autossuficiência correu tanto que suei para me reencontrar. PASSOS DA MEMÓRIA Ao Luiz Carlos Os passos nos pastos gramados e por sobre árvores os pássaros se cantam e encantam com cores os frutos avermelhados do verão o céu refuta a lua e lança o sol sob nós a luz clara da vida se faz os sons da cidade abrigam silêncio nada interrompe o marasmo da cascata nem menino nem pai nem filho. Só as aves marias são pronunciadas 56 as tardes caídas se machucam nos olhos os transeuntes desaparecem como o ar por sobre a sombra do flamboyant o casal se perde no tempo constrói casa família história e a aliança nem sequer foi comprada o ourives se matou na madrugada sem lua e da minha rua ouvia a madeira queimando. Da memória rasguei meus panos a interpretação dos anos foi concorrida mas a batida do coração devolve-me o luar que diz: é bom parar e novamente se emocionar com o breve momento de olhar pela janela e ver a mais velha cidade que se possa contemplar. CENÁRIO Era eu mesmo quem te escutava? Ondas que o mar leva à praia dos amores quisera distância... Tu sempre vens na hora certa da angústia procurar confunde as horas da memória não posso querer teus lhos para todo sempre eles são de muita gente. Era eu mesmo quem te falava? O tempo nos encontra de mão vazias prontos e um e outro para se afagar e receber mas não recebemos nem nos damos fenecemos no paiol das promessas. O mar cenário por muito de fundo feito escuta os planos que fizemos há anos... Era eu mesmo quem te amava? A concha fechada das palavras omitidas 57 abre o leque dos dias do porvir. MEMÓRIA DE SONS A voz das horas gritou alto pulsando emoção desferi golpes profundas feridas se abriram: passado. Tua face reinvento-a a cada dia já não sei se a imagem confere os originais envelheceram. Tua voz a escuto acompanhada de um sorriso mas tuas risadas não ouço mais me traduzo na tua imagem: sofro. Teu corpo por onde meus olhos se confundiam se parece agora com uma borboleta o tempo tem asas que nos separam. Teu jeito tua maneira de ser teu cheiro nem a memória recupera nem o tempo revê fui-me para longe foste para nunca mais e entre anos dias de primavera e verão não te recomponho mais também pudera a memória da pele é sutil e já se confunde. LÁGRIMA DOCE Rola sem medo te esperei era tamanha a seca rola sem receio de me ferir esperei-te tanto leva contigo a mágoa a culpa e a dor exorciza meu passado. Esperei tanto por ti agora jorra de mim carrega meus olhos batizai meus planos enquanto te esperei estive seco 58 seco demais para chorar. PÁRE, AGORA Percebe que sofro olha bem nos meus olhos a dor está no azul e no branco por toda parte concede que te veja sempre assim: passageira por que se me descobre possa ofendê-la. Por que se me tocas e me amas e te amo de volta a dor um dia aparece e o encanto se quebra – para já de olhar como se fosse eu quem te amo: tenho pena de amar mais que teu próprio amor. Sou mesmo assim: passado aprisionando o presente não me consertes pra quê, não podes remendar o passado em cicatrizes pela alma: tens conserto para almas penadas? Desista: volte a ser feliz. POEMA DE UM VELHO Veio a hora avisando: deite-se levantei-me. Que nada: o tempo dormira junto de mim: não notara as rugas. E fui espalhando-me pela manhã e o tempo me rondando: corria de mim o caracol estava ali : meu passado. Choveu, mudou a estação e sentia adormecido no tempo o coração frio correr não dava: envelhecia. Músicas tocaram, tentei ouvir o peito o tempo sorria irônico: deitei-me cedo acordei novamente: estava velho. 59 Por onde corro por onde ando nasço tempo passado, correr não devo, cansaço. Paro, penso: o espelho não mente .O coração está repleto de muito espaço: jamais amei. CONFIDÊNCIA AO AMOR Encontrei-te novamente perdido atrás de uma árvore centenária estavas lá fertilizado pelo tempo pela chuva e pelo sol vieste ao meu encontro e novamente depois de alguns anos entrastes sorrateiro para dentro de meu lar e lá ficou. Fincaste nos meus pés o esterco da pureza e amei tu me forçastes a acreditar nos devaneios das noites de prazer e pensei moço demais para me afastar do destino , que era imagine só, depois de tantos corpos, o velho , o antigo amor. Amor, és uma imprecisa palavra roubada das virgens e abortada dos homens não tens receio de na minha vida poder sentir de tal maneira que apesar de desilusões e reencontros variados possa eu inculto peito no riso definir-te? E se te defino serás minha alegria ou te vivendo e sentindo lutando e gozando não estarei ainda mais me enganando? Hoje, amor, me sinto tão breve como a gota de água no deserto árido sinto-me tão frágil que sou folha rasgada sobre a mesa do falecido. Procuro respostas encontro meu passado e amor, meu amor que tenho e não encontro 60 tu estás tão imperceptível que não sei se vivi ou fiz da minha vida uma abstração de sentimentos. ...essa música, no mesmo quarto e tu estás comigo? MAR As pedras são ondas sem praia para desaguar cada rocha tem bromélias e orquídeas centenares todo céu é o fundo infinito da natureza virgem quando chove escorre das árvores a vitalidade a natureza ao redor da cidade dos homens inspira descansa e faz sonhar. As ondas de cada pedra altaneira sem medida não deságuam em lugar nenhum não há mar tem campinho de grama no meio do mato traves de pau de candeia da mata três ciclos se repetem a cada dia manhã tarde noite: a noite acaba em mar. Minas tem mar: mar de pedra e verde Minas tem onda: de pedras sem praia. POETA Ser poeta não é fácil depende do tempo e infelizmente o tempo é ausência de sentimento. Ser poeta não é fácil tem que ter coragem e preocupadamente coragem é falência de ingenuidade. 61 Ser poeta não é fácil tem que ter audácia e paulatinamente a audácia é demência da seriedade. Ser poeta não é fácil tem que ser prático e frequentemente a prática é indecência da teoria. Ser poeta não é fácil ainda mais que o tempo repetidamente na vida voa para nunca mais. VAGANDO Arrasto-me por entre dias selvas de existência e só. Vago-me pelas ruas entre noites selvas de concreto que dá dó. Dias e noites se debatendo: existo atos e culpas atados em nó. SOM O silêncio: tímpanos desocupados ou preocupados com vozes interiores há no tempo de se silenciar o desejo vontade de se ouvir calar. No tom leve do diálogo sem som 62 a voz aguda é o tempo interior voltando frisando projetando o ser diário tão desatento. Quando tudo é silêncio interior e fora do ser só o objeto inerte pareço pairar sobre a realidade abrigado no humano teto. TEMPO AO TEMPO Percorri caminhos de anos e cheguei a um momento : momentos são pausas breves para perder mais tempo. E percebi: como cego em tiroteio o som do destino como já havia traçado por mim a algum tempo. O destino não é invenção acreditem destino é coisa percebida por quem perde tempo em momentos. Perdendo tempo ganhei o momento de perceber que de tempo em tempo o destino acontece num breve sofrimento. MEU POEMA Meu poema dura uma nota e meia da escala do tempo passado. Em dias de sol dura um nascente nascidos na manhã de margarida na janela. 63 Meu poema dura a dureza do diamante pra cada verso um milênio de saudade. Meu poema não tem pai nem mãe é órfão feito por várias mãos. Meu poema é frio e calculista primeiro sofro depois angustio. Meu poema é a soma de vidas passadas no canal da emoção. AMANHECER O dia começa com um grito: existo nem pergunto quem sou até desisto de saber se hoje serei eu mesmo o que talvez seja muito triste. Eu me dou novamente o dia: insisto vivo porque não tenho coragem de partir se penso em existir o medo de projetar se funde ao medo de amar. Eu me dou novamente meu nome: identifico refaço o olhar sobre as coisas: frio e o dia vem calmo e lento se pronunciar sou em meio a todos que me injuriam. LINHAS DA LINHA O último verso ecoa bravo por entre alamedas e becos depois da chuva fina e fria veio o poema noturno. Expressivo o ônibus da palavra percorrendo as linhas da linha 64 as curvas revoltadas da mulata a tinta preta pintando o sentido. BARCA DO SENTIDO Os versos vêm de longe lá detrás da montanha azulada: toda vez que sem inspiração se encontra o poeta iludido é para lá que mira os olhos. Os versos vêm trotando a poeira subindo: avisando! eles chegam tipografando rimas remando o barco das letras conjugadas. COPO A noite não excomunga ninguém acolhe os bêbados e os fracos os desiludidos os tediosos a lua sacramenta toda dor iluminando o fim do túnel dos goles em copo americano. TINTA FRESCA Depois de acumular calendários dias e horas segundos vejo a noite e o dia sem graça parece pirraça de entediado mas não, é frieza intelectual. Depois de rever os projetos o quê, como, por que sinto sensações idênticas sem farsa parece tédio de pós-moderno mas não, é incredulidade. 65 TRAJETÓRIA A gente anda cabisbaixo felicidade parcas vezes tida entre um gole e outro da bebida. O tempo anda cabisbaixo não temos hora pra partida entre um amor e outro na vida. A lua anda cabisbaixa contemplação dos olhos ressentida entre uma morte e outra na avenida. FESTA EM MEL Afunda na pele teu ferrão dolorido coloca nas pernas a pressa dos dias quem sabe abaixados possamos fugir da dor da ferroada que levamos de ti. Zum zum zum no meio do cemitério zum zum zum no alto do cemitério. DEMONÍADES OU BALADA DO CONVERTIDO Creio em Deus pai... até quando Senhor? os homens se deixarão levar pelo discurso mais forte e nem a sorte os impedem de ganhar os céus qualquer um serve de guia homens mulheres marias 66 lotes no céu lua de mel vendem-se eternidades varrem-se liberdades e mesmo os de idade colocam a bíblia debaixo do braço e haja gritos para exorcizar o mundo mundo tão perdido bandido tão demoníaco e selvagem. Os homens se deixam levar pela cor da igreja pela dor sentida que se cura mas toda dor tem cura mesmo e mesmo os imortais sabem disso que adianta sofrer penando toda vida se sofrendo ou sorrindo morremos e nada garante o sossego nem mesmo bíblia nem mesmo pedir mais cedo. URNAS E CANTOS Passe o tempo amontoem-se os corpos ficaram as saudades as palmeiras os sabiás não tentem invocar os livros a vida é mais que letra não invoquem a memória ela sempre se engana e escapa passe o tempo amontoem-se as placas nós passaremos sem remédio ou mesmo remediados morreremos preparem as urnas e os cantos 67 não esperem com espanto a ressurreição se ela acontecer vai ser longe e longe é distante dos olhos fiquem os sabiás (que também se vão um dia) fiquem as palmeiras (que se quebram ao vento) nós iremos sei lá pra onde onde haja um canto indecifrável onde haja a novidade sem culpa. LUZ A tolice do crepúsculo é ser crise de iluminação se não fossem esses postes haveria apenas escuridão. Mas como o homem cria e a natureza sofre acostumados estamos à luz da noite se há perigo em iluminar a rua se há castigo em dormimos tarde ninguém poderá afirmar. Mas o crepúsculo está em crise quem sabe se saísse bem rápido sem ser pela vista notado quem sabe se inscreve em Vênus no calor dos graus mormaço poderia deixar de ser para nós. Que pena do crepúsculo finda o dia dos sérios e deixa o cemitério com cara de catedral. Se os anos voltassem gostaria de sentir medo do escuro dos olhos da noite. 68 POLIGAMIA DAS LETRAS Conhecer o que dizem as palavras decifrar o informe da boca aberta a linguagem sempre esperta dos homens decodifica o mundo o globo os jornais: entre figuras e estamos nus: garotos e garotas a linguagem das línguas presas prender o céu na boca expressar o peito em fria noite línguas que se dizem de si de mim de ti do outro reverenciar o discurso persuasivo tão discursivo que alguns dormem ouvir a boca da noite se abrindo ensinando o menino a se comunicar palavras verbos substantivos temos motivos de sobra pra amar a poligamia das letras me informa que no falar: que se abra uma porta estreita mais poderosa que entende e muito a porta dos homens sensíveis alguns chamam de incríveis mas prefiro enumerar e chamá-los imortais na arte de ouvir imortais na arte de amar. ESTATÍSTICA A vida não cabe em números em números não cabe a morte se nasce um homem nova sorte se morre um infeliz novos dados a vida não cabe em estatísticas 69 triste caminho da abstração cada um carrega em si muito mais ancestrais e histórias desnumeradas e sem tempo não há números pra aprisionar a vida um quilo um cento um milheiro cada um é um janeiro esperando carnaval faça bem ou faça mal é do homem rodar moinhos sem contar as voltas ir pelo mundo a cavalo sem medir o estrago das rugas a vida não cabe em números em fichas de dados corretos. SECA DOS TEMPOS O homem é uma paixão inútil.Sartre Os carrinhos de mão pelos becos na areia os gritos de guerra os meninos de olhos castanhos se misturam ao cenário do tempo incenso de missa em missa lavrada jogados estamos entre alturas mas não pensemos em cair podemos sair pela tangente. A infância na memória é viva apesar da seca dos tempos no chão dos poucos anos é tudo belo não há tempo ruim nem cemitério. BOIADA DE VERSOS Poderia versar a noite inteira rompeu a boiada da inspiração 70 e quero muito dizer estou bem: estou vivo. Nenhum poema é boi manso sai pelo mundo feito louco filho de pai taciturno. O poeta ou o poema em quem reside a loucura? o poeta morre o poema pra quem fica? Leiam meus versos pra que a boiada chegue ao fim da estrada. Leiam meus versos pra que a loucura seja completa e amada. Leiam meus versos e descubram que na vida só há entrada. O OUTRO Havia bem antes de mim outro indiviso humilde animado hoje depois de amar e ver-te sou pouco do meu passado. Não foram as luas nem as estrelas dizendo-me tu és passado 71 em apenas um segundo de medo perdi quem havia amado. Se o tempo moinho das horas recontar meus momentos pudesse deixaria ventos da juventude agitar bem menos a memória. Não posso recontar o tempo apenas revivê-lo triste como se em algum lugar a felicidade ali residisse. INGENUIDADE Foi mesmo a tanto tempo: já me esqueço a muitos anos nem bem me lembro as imagens turvam-se como rio verde na memória de nada valem as recordações: o tempo me levou. E levando foi descendo ladeira abaixo e eu imperícia em cascatas de acontecimentos nem percebi o tempo não passa a dor perdia os olhos ingênuos da infância. Eu, eu mesmo. Que falo. Sinto e choro eu, que me fiz em horas de tristes momentos eu, eu me condeno - quero sentir o calafrio do tempo injetando na veia passado. E me vou levado pelo relógio da emoção passei e sou passado e não me resta nada apenas frases perdidas de um tempo ido em que eu existia sem medo. 72 ELEGIA DA BOLA DA INFÂNCIA Veio o tempo em longas cabeleiras nem frio nem quente: angustiante veio a veia dilatada pedindo: ame! o tempo trouxe tuas cores e desvirginei as horas. O tempo me persegue por entre árvores os dias se perdem sem prazer prazer era o tempo escorrendo por entre um badalada e outra dos sinos serranos prazer era a bola da infância rolando sem tempo pelo campinho de terra. O tempo me jogou na face olhos tristes como quem olha do Pico do Itambé prazer era a carne fresca dos amores juvenis por entre paredões e becos prazer era a hora do recreio no pátio inundado de andorinhas brancas e azuis. Dos tempos escorrendo na memória cativou-se o bom tempo (parece eterno) dos projetos pensados na noite tu sabes dos projetos arquivados na emoção? Desses que falo com a boca salivando esses se foram nas horas da grande cidade. Bem aventurada a ingênua brandura dos meninos do interior bem dito o sermão do meu senhor sobre a montanha de gente bem sofrida a dor destes dias sem sol e sem chuva regados a desilusão bem.... mal acordei e já olho sem luz o dia herdado do sono. 73 O frio na espinha batendo de leve em dias sobressalto existencial é o tempo: ele te quer virgem para fecundar tua memória de passado é o tempo: ele te quer novo e jovem para projetares o futuro ilusório é o tempo: ele te quer velho como estilo colonial para te dar lições de vida. SOMA ET ANIMA O silêncio, escuta, alma penada de solidão o silêncio traz a amada, ouve o balé os passos no palco vazio, um tambor... O silêncio é teu amigo, senhora imortal recebe-o nos braços ao fundo dos sons cadentes parar o tempo e ouvir a morte penteando os cabelos te prepara para a noite das despedidas. Ouve, ó alma prudente, para estacionada na nuvem que chove vê embaixo dos pés há muitos amados parte rápido ouvindo os anjos chamando. Nascente em meio às serras azuis dos mangais não temeis o incógnito, vá em paz O silêncio brinda taças, ouve coração! Cada taça um sentimento nobre! ENCONTROS A alma leve feito fumaça que se eleva que se leve o amor bateu na porta e nem sequer esperou: 74 aportou na minha cama colocou o seu drama e por ele nos amamos a existência os planos já começam a rolar e quem vai nos impedir quem poderá nos controlar a existência justificada amando estamos contaminados pela paixão útil. Estou confuso mas estou agindo se medindo me pego os metros de vida escrevo cartas e pronto já nem me lembro do dia de amanhã da conta por pagar da vida por extinguir esta estrada do amor é mesmo sem fim e já justificado pelo outro não quero não podes não deves não quero pensar que há um final assim abro as válvulas para o fim desta água benta que cai sobre mim. ORATÓRIO As gotas de chuva agarradas às altas árvores suicidam-se sobre minha cabeça respingando umidade e verde. O chão trespassando seus corpos mutilados umedecia suas covas brotando flores em coroas multicores. A névoa fazia da mata um mistério os sons decompunham nossos pensamentos 75 e nas voltas pelo recanto dos saguis alimentei seus corpos saltitantes. Cada gota de chuva era cachoeira cada silêncio uma nova esperança. Toda a tarde se fez oração criativa de homens em sintonia com Deus. Belo Horizonte / 11.02.95 SONETO DA CASA PERDIDA “O que lá vai, lá vai, não o repises!” Cervantes A janela se fechou pelo vento sem tempo inteiro ainda ouvindo a música roçando o pensamento fecha-se o dia no barulho esculpindo. A antiga janela na infância se abrindo refazendo manhãs de sol e chuva retorcendo os dias de maturidade cobrindo a mão suada da sorte de leve luva. A janela áspera e inacabada ruindo tão jovem como eu desabando é no tempo que me vejo partindo para além da montanha azul calando a infância na casa dos pais traindo - volta chuva dos tempos de acalanto! 76 POEMA SEM BREVIDADE “Ó metade amputada de mim...” Chico Buarque No horizonte para além dos olhos tristes o coração está parado num ponto em que felicidade havia. Tu és as acácias roçando o vento flores abertas em cio fecundando a vida a noite dos gatos perdidos no meio do mato a lua desnudada em sua face obscura. Desde que amei teu olhar perdido em esperança como se a felicidade ali residisse desde que as moléculas do tempo nos aproximaram como se o tempo devolvesse o momento do parto. Não mais chorei por medo e sim por saudade Ah! Peito tamboroso anuncia a glória dos amantes onde reside a glória de amar senão sofrer? Não mais penei por trabalhar mas por esperar Ah! espera alegre que anuncia o reencontro dos olhos na hora dos pratos postos onde resiste a vitória de amar senão suportar? Desde que foste para o relicário da alma do pobre amante das lembranças impartilháveis nunca mais vi as estrelas como pontos luminosos espelhando nossos corpos elas eram cúmplices do amor que me consome tão forte que de vez em quando, de chorar me consolo. Tu és a bíblia aberta no Cântico dos Cânticos do pudor e misticismo exorcizando tua presença 77 pura feito túnica de batizado roubado de sua pureza anímica enfeitiçada pelo louvor dos deuses como uma sacerdotisa. Tu és minha ausência dolorida: ferida cancerosa do tempo no peito a aura fazendo arco-íris aos meus olhos tela sempiterna de cores incomunicáveis a vela acesa em noite de geradores desligados é a noite que te traz. A noite, tu te lembras, da noite escura dos corredores? Passeávamos entre uma e outra ave maria a noite, me digas, tu te lembras da lua vigiando nossa embriaguez assustada? a noite, te lembras da última palavra trazendo o silêncio à casa? tens a noite como esconderijo eu a tenho como lembrança pairando como flâmula das loucas torcidas organizadas. Tu és piano amordaçando a garganta aos poucos a cada nota, a lágrima acende imagens a lágrima revive a magia das imagens virtuais sem foco, sem sombra só trevas tu consolas meus dias sem saber e porque nem te dás conta me alegro alegria de poeta é repisar o tempo com palmilhas de saudade. Quando fores às verdes campinas do tempo de infância na porta da igreja me traga a semente de ipê nascido na praça dos seminaristas rezadores de terço busca mudas de flor exótica na casa pequena (que só ela cabe...) de dona Ubaldina mulher de olhos miúdos mas de coração pautado pela esperança. Quando repisares teu antigo quarto vê se não te esqueças - anotai num guardanapo! 78 olhai sem displicência para os tacos de lado a lado no chão encaixados imagina meus pés enroscados no labirinto dos pensamentos olhai a parede branca parece sem vida - branco é o deserto dos príncipes pequenos habitantes dos mitos lendas evangelhos olhai com o coração a janela para o pomar - medi a grandeza das árvores pelos frutos jorrados da seiva. Quando tua lembrança repassar os idos anos que não se vão sem dor ou espanto já me espantei com a atualidade de tua presença em minha vida dá para sobreviver! lembra-te dos cartões coloridos em noites escuras dos homens cansados de estudar espia com desejo as cartas revelando o poeta - enxuga as lágrimas que as selaram. Quando recolocares meu nome na gaveta da memória guarde o nome do arquivo deixa eu pensar no tempo passando o amor mas não apagando a memória deixa essa ilusão ser o ramo seco atravessando o inverno mas vingando na primavera deixa eu ditar ao passado o lema dos esquecidos que não se dão conta da dor - recordar é viver... Gritai alma de sete cores escurecida por melodiosa canção dos amigos feitos nas horas gritai alma solitária por tantas lanças atravessadas por algozes amores gritai nua pela avenida dos sorvetes das cervejas dos carnavais. gritai diante da água benta... aspergi-vos na igreja das nossas senhoras mães fertilíssimas. Tu és a inquietação duradoura e às vezes de tão amarga é breve 79 és o arrozal esperando o brejo renascer da chuva de prata, do orvalho da madrugada és a madrugada por onde repassas tua vida de liberdade vigiada és madrugada quente de verão, fechado o quarto, abertos os olhos em dúvidas. Tu, inspirador de flores e sementes a se abrirem sobre o altar e sobre o chão por onde plantas teus passos nos dias que se escapam dos olhos arregalados? tu não sabias compor músicas e me ensinaste a te reencontrar ao som de acordes suplicantes por onde ouves os passos dos gatos reinando na noite dos cios da terra? Tu és livro de poemas por sobre a cama - eu o deixo lá pois me consolo: livros de poemas são férteis feito virgem em lua de mel deixo-os fecundando... Tu és a singular infinitude de momentos entregues ao tempo em pequenos objetos sacramentos dos olhos que se vêm... tu te queres vendo o tempo como eu passado? perdoa os versos matutinos feito missa breve - pela manhã reza-se tão rápido, pela manhã precisamos ainda pouco de Deus o dia traz tormentos demais... Tu estás abrigado no tonel inconsútil da alma tu tens marcas na alma? São como tatuagem no braço... Estás na hora da despedida - tenho me ido tanto nos últimos tempos! A alma cansa-se de viajar por terra: viva o céu, se houver! Estás na bandeja das horas... já tive bons momentos diante das teclas que te apresentavam, belas cartas... Fostes do meu cotidiano confuso, de inconfessas pretensões depois do parto a mãe vê o filho crescendo se tornando outra carne livre 80 nem me despedir consegui... há partos estranhos em noites frias, sem graça ficaram as fotos desde lá as guardo como trunfo diante do tempo que não para. Poderei escrever mais versos com pés atolados na saudade? Recebe os versos nem meus nem teus nem nossos não nos pertencemos: os racionais os mundiais os globalizados. recebe os versos que poderiam ser do finito ao infinito, do breve ao Eterno, mas são do amante à amada recebe os versos breves em tantas letras escritas não te preocupes, ultimamente tenho estado muito à toa mesmo. Recebe os versos mais uma vez. Belo Horizonte / 05.02.96 BALANÇA DO TEMPO A luz atravessou o vaso sambambaiado por sobre a mesa em mármore esculpido o dia ressurgiu feito Lázaro das profundas covas do ser transcendente e nem bem acordava tua sede cegava meus lábios: te procurava. A noite arrastando correntes madrugada afora: estrelas, luas, céus mensagens chegavam por entre meteoros anímicos: esperança e nem bem recordava tua fúria embriagada os olhos choravam: é a tua lembrança. Amada madrugada dos homens miseráveis sem metáfora sem encanto noite causticante lançando ao pensar redes sem desembaraço sem fuga dia perpassado de luz: nasci abrindo do fundo do útero os olhos para a vida momentos urgentes de equilibrar as horas na balança infiel do tempo: urge ser feliz. 81 PAPEL DAS ALMAS A alma partida entre luar e amanhecer escreve, escreve rápido por entre a chuva a noite desvelando o rosto esfacelado em dor escreve, depressa, corre entre curvas significativas. Vai, poeta, homem impuro, desvirginando a hora prendendo-a ao papel vai, poeta, enlaça a palavra por entre promessas de seguridade afetiva atira na parede dos papéis indefesos a cor das paixões inconfessas mas não te esqueças: lava a alma depois do culto dançante das letras. Não há esperança do dia raiar orvalhando esquece, esquece lúcido dos dias felizes a lua nem bem chegará nem mal irrigará a pele (de chuva de prata) esquece, esquece escrevendo: não há dessentido na letra socorrendo a alegria esquece e encharca o papel das letras radiosas da alma humana. BOJO DO BARCO A areia se abrindo para o mar em tarde noivando a noite bela praia: olhos atravessando a maré que se enche - a lua cheia a lua, cheia, revoltando o mar: não temos culpa pela dor da noite a lua, enjoada, regurgitando ondas pela areia dos caranguejos infantis: a vida não anda só para frente. O belo regresso da noite clara, da água clara, do claro pensar os barcos pedindo partida: a noite é feita para navegar os astros quentes em tempo de estourar: máquina celeste embriagada peixes ninando a noite na rede capturados ainda sem saber: maré alta. Jiribatuba – BA / 1993 82 LENITIVO Tua praia impedida por faustos casarões de ministros (de guerra não eram...) teus eternos jovens universitários em férias ou à toa passando horas o carnaval balançando corpos presentes e espíritos dos partidos o sol desenhando nos olhos o panorama lenitivo das ondas cadenciadas. A Fonte da Bica restaurando a hidratação dos corpos agitados há o tempo escorrendo por entre mãos que se juntam dançando há os negros marcando a areia branca aos pulos da música em tambor tambores ecoando na memória das vidas seriadas ali vividas ou santificadas. Itaparica – BA / 1993 ROSA, ROSAE Ao Pe. Félix Obrzut Os teus postais guardados recriam tuas faces verdes em arco-íris se abrindo em cor a força do arrozal fertilizado pelo orvalho da lua melancólica e nem bem a noite escorre por entre a chuva quotidiana das enxurradas teu brilho resvala na manhã saudosa dos pés repisando o caminho. A igreja benzendo as vozes latinas das orações incorrigíveis e imortais os santos ouvindo clamores, suspiros, lamentações que se bastam no toque à imagem as velas acesas clamando Maria mãe das mães penosas mãe virgem de mãos acolhedoras, recolhendo pedidos incansáveis. 83 A lua que te fertilize por uma chuva e outra de vozes orantes a chuva que te inicie no mistério dos frutos nascidos em estações das verdes campinas a arara há de sofrer na retina a dor de ver preto e branco. Campina Verde / 04.03.96 ESCULTURA EM CAPIM A arara azul sobrevoando a estrada dos homens fazendeiros arara ou arco-íris em pleno dia de sol? nos coqueiros com cachos enfeitados em amarelo hipertenso há pousada o arco-íris gritante: é a arara ecoando na memória da retina. Podia passar as mão agigantadas pela virtual imaginação: confesso imaginei por sobre a verde campina esculpida pela terra, cultivada pela chuva verde claro, cachos de cabelo liso por entre os dedos do passado maqueta de florestas de capim: os olhos reduzem as imagens mais belas: percebe, temos belos quadros na memória. Plana como a régua dos secundaristas traçada em ruas, avenidas e praças como corria o Rio Verde entre tuas terras, desafio aos não geógrafos Rio Verde do rancho com nome de padre, de fonte feita por padres, de padres rezando missas vespertinas. Rio Verde corrente entre pontiagudas pedras rolando ladeira abaixo. Missas ecoando entre a torre e o chão geométrico da igreja (o sino roçando nos tímpanos as horas) 84 de hora em hora a vida se desenhava entre ipês amarelos e brancos da Praça São Vicente os seminaristas pestanejando aves e marias entre a alta grama dos canteiros ali a cidade começava: milagre de São Vicente, tela de Van Gogh sem corvos? VISÃO NOTURNA E como não existia Deus se tuas luzes eram espíritos boiando na lagoa... era o espírito luminoso brotando do poste (luzes artificiais): reflexos reflexivos pontos por sobre a nata do tempo se indo pelo ladrão das horas erga-se novamente noite: quero rever os espíritos, Deus não está morto. Lagoa insana sombra que tu serás dos postes te rodeando veja-te bela no espelho cósmico, ou na contemplação nem sempre justa do poeta que o olhar do poeta não tem espelho: só decomposição existencial que o olhar do poeta inveja a beleza etérea, efêmero nascer e morrer do dia. Lagoa da Pampulha / 03.03.96 GAIVOTA O Túnel Dois Irmãos descobrindo o mar incaptável de tão imenso e longínquo as favelas escarpando formações mamelonares: seios nas praias de brancas areias o olhar retilíneo buscando a gaivota por sobre a tarde pousando o fim do dia 85 onde sepultam os corpos das gaivotas: poderei visitar seus túmulos efêmeros como a luz? O Pão de Açúcar caindo sob e o chão retesando formas na imaginação a lua comprometida com o belo expõe a aula de estética a olhos vistos nem objetivas nem pintores nem poetas: a noite revelando nossos corpos é pura mais pura que o branco das penas perdidas pelo voo debochado da gaivota insepultável. Rio de Janeiro / 1995 ROLETA Rápido vamos de ponto em ponto ligeiro avançamos de sinal em sinal passageiro por passageiro a roleta girando as rodas do coletivo percorrem a poeira da cidade. Mãos estendidas acenando - Pare! são coletivos os movimentos são sincronizadas as reclamações cada momento ali dentro é muito confuso. Belo Horizonte / 04.06.95 A MÃO O motor ronca subindo a ladeira depredada os homens sobem suados por entre cansaços marcado é o passo das domésticas partindo a casa se torna o refúgio dos cansados a noite o abrigo dos operários incultos que esculpem no dia-a-dia dos casarões a história caseira refazendo o Serro. 86 24º ANDAR Nas asas de tantos andares vinte trinta quarenta daqui de cima onde os mortais se rebaixam lá embaixo tenho no horizonte concreto estruturas. É artificial: a imagem. o som, o luar. É artificial: a comida, o livro, o cantor. Belo Horizonte / 03.05.95 POBRE HOMEM, O TEMPO A parreira crescida de seus dedos suas veias largas jorrando tempo nem rivais nem descontentamento na sua vida lenta lembro bem o que mais aparecia era a humildade folhas caindo da árvore para o chão palavras que se esvaem como perfume de tua presença restou o sorriso meio bobo quem sabe infantil da eterna criança dentro de mim. TEMPO LONGE É hora de dobrar esquinas e chorar sem rimas a saudade das ruas de pé de moleque das luas de noites breves. Momento de ingressar no ônibus nos degraus da viagem lembrar Santa Rita em tantas subidas desci tanto para enxugar lágrimas. Quando fico muito tempo longe 87 das flores da Praça João Pinheiro colho muitas dores no peito e creio ter nascido onde não queria porque estou atado para sempre no solo duro puro no colo da natureza. Quando fico longe de tuas palmeiras a procissão do Rosário reza por mim por todos que vão e se perdem na saudade sem medida dos degraus da partida Serro dos amores alcoólicos... CONTROVERSOS ...as tristes redes de meu pai. Do filme O Carteiro e o poeta. É suado o papel do poeta nem sempre dor nem sempre sorte é suado pelas lembranças diante dos versos não há mentira só verdade desmedida dos sentidos por entre espessas florestas de letras buscar um sentido belo para a dor encontra a melhor palavra para o não fazer do acontecimento triste um verso é suado o papel do poeta se a alma está amando quem sabe menor o desencanto o papel já não sufoca mas quando entediado e morno como não se pode tentar em vão se procura no vazio a rima que não vem. É suado o papel do poeta de rimas às vezes sem clima de versos às vezes controversos. 88 JANELA Os sinos repicam entre andorinhas e a dor tão pequenina povoa o olhar da velha parada sob a janela aos poucos cai sua vida se reconstrói num gole de café. O que vê o que sente quem sabe só se percebe nas rugas aos poucos lapidadas anos que se vão deixando marcas tempo que se passa marcando o corpo. As músicas que nem mais se ouve, tocam os lábios que nem mais mastigam , cantam e no fim da tarde por entre serras a vida se esvai num caldo de cana. RUÍDO DE RADIOLA Parar bem na porta da igrejinha e gritar nem cantar nem orar nem pedir somente parar e gritar pelos mortos os vivos ficam desolados com os que se vão. Gritar de olhos esbugalhados quem sabe mais cedo ou mais tarde alguém venha explique-me onde se encontram os que foram autentique a vida após a vida. Gritar bem alto nossa indiferença com os que se partem porque se choramos é pelo medo de também nós não termos um dia a continuidade de nossa existência. 89 ETERNO RETORNO Os filhos se casando as casas se erigindo os móveis comprados as louças lapidadas os corpos se unindo nas noites frias do aconchego a cidade crescendo os lotes já sem espaço invadidos por cimento e areia aos poucos crianças correm bicos se enchem de lábios varais voando fraldas em pouco tempo novamente os filhos vão se casando as casas vão se erigindo... FEIXES Repassar-te a limpo recompor-te em versos missão composta de poeta acertada descontinuidade visual apostar-se em tuas igrejas possuir tua magia as almas dos sepultados em ti ganham o céu bem mais fácil que todo pecador confesso. Repassar-te no caderno de anotações em versos desconsideráveis não sem antes de colorir teus olhos pisar o pé do moleque passar o café pelo fogão de lenha 90 assistir a briga dos homens da roça. Repassar-te a claro e a limpo que desfrutável missão o poeta se rejubila com o céu mas se assusta com os amigos partidos redimidos de toda culpa dos nascidos, em Serro. ROTINA ENTRE SERRAS Entre serras um dia de descanso para os homens as mulheres aproveitam para lavar roupa na bica as crianças no rio tecem seus futuros molhados a televisão sempre ligada mostra um outro mundo. A missa das dezenove horas na igreja de Santa Rita mobiliza pais e filhos numa única missão possível é dia de mastro e dia de fogos de artifício. A festa do santo mártir ano com chuva ano sem traz o roceiro o boiadeiro e o peão é dia de levantar o mastro que vai sair do chão. Barulho anual borbulhando no átrio da cidade entre serras Serro se faz igreja barroca sinos badalando tempo meninos estourando bombas. O coral dos homens sóbrios e das mulheres bentas ecoam vozes por entre nossas vidas privadas o mastro invade a noite dos lares lacrados perfaz o ciclo das festas católicas uma a uma todo ano... 91 FRUTO Para Nathália, sobrinha. Chegou o tempo das goiabas no pomar travestido do amarelo sabiás fazem festa de gala dos bicos receber o outono da chuva receber o frescor do fruto... A goiabeira encurvada pelos frutos pisada nos galhos pelos pés do moleque na noite que recebe os homens dos sonhos refaz as forças da reprodução a noite refecunda homens e plantas. MANDINS Somente a lua me olhava fria metade noiva metade mulher e nem sequer um salmo cantado ela veio mais pura que o som mais rápida que piau na isca. Parou sobre o Rio Guanhães mostrando o caminho da isca cavando luz na água turva espantando mandis e mandarins deixando só o homem na margem companhia que fosse um peixe iscando devagar. BREVIDADES ETERNAS O casarão azul esconde dentro de si a idade as escadas da Santa Rita têm segredos do arco da velha os coqueiros da Praça João Pinheiro caem suas folhas as igrejas tocam seus sinos de bronze. O tempo parou e não esperem que a enxurrada por sobre o pé-de-moleque 92 traga depois do arco-íris sempre límpido a novidade de novas formas novas arquiteturas. Em Serro, tu transeunte de tantas vilas a vida é assim mesmo e não repita meu erro querer acrescentar em cada vírgula de descrição o inesperado, o incógnito, o breve. Em Serro, não há brevidade e sim a idade de tantas igrejas ultrapassam séculos deixe tudo como está e vá sem levantar murmúrio que não seja: foi-se um visitante, ficou o tempo. CAMINHO DA MANHÃ Todas as dores são suportáveis desde que não falte o pão. Cervantes Por entre a horta desarrumada o caminho às orquídeas passear por entre teias de aranha num dia que mal começou na noite que mal despediu onde se vê o orvalho ainda virgem os passos conduzem ao dia no florescer das orquídeas renovar as cores dos olhos inovar a imaginação já gasta ...de vez em quando nos esgotamos achamos tudo conhecer problemas do crescimento. As orquídeas refreando o tempo que urge recriando a cada ciclo a flor onde acabarão suas tranças restarão ainda tempo de vê-la envelhecida ou será que os cabelos cairão antes da flor? Passear por entre manhã e tempo 93 num vai e vem colorido do sol lá se vai o inexplicável cultuar a eternidade. FACE ANTIGA O sino badalando horas dias perdidos entre serras chão cultivado boa terra festas católicas marcam tempo temos respeito pela procissão vínculo entre terços e fila idade levando os sonhos varais estendidos em redes mensagens inconfessas dos mortos nas pedras que pisam o chão demoníades brincam ao sol quente é a estação do pensamento nem frio nem dor nem vento esfria a mania de olhar as horas a serra azul dos papagaios que ainda se vão pelas infâncias deficientes físicos subindo ladeiras homens sãos catando lixo na rua. Serras erros serros sonhar ser-te belo sempre apesar dos anos correndo dando idade à tua face. À GAÚCHA Acender o fogo bem cedo sem medo da fumaça chata tirar da lata a quitanda servindo o café preto depois do primeiro assalto 94 ferver a água na chaleira não é brincadeira o calor do fogão arroz torrando de um lado macarrão cozinhando do outro descascar legumes picar verduras e soa o segundo assalto fumar um cigarro esfriar a cabeça gelar a gelatina requentar a comida os pratos sob a mesa pedindo comida quente feita pela manhã o dia passa sem apetite há tantos anos se cozinha e o fogo continua brando o branco na memória o prato lavado ao meio dia esperar sem correria o resto do dia fumar mais um cigarro ver a vida fazendo estrago fim de luta início da telenovela. IMORAL A infância dos gols impossíveis dos atritos eternos das meninas pobres de frente de casa a infância da pobre casa da frente dos meninos sem dente sorrindo dos cavalos soltos no pasto tínhamos muito orgulho... A infância com sua turminha times viajando para Datas o gol agarrando os corpos 95 a chuva molhando a lembrança. Na infância cada um se descobre por entre bananeiras fálicas por entre fofocas de vizinhos intrigas interessantes. Nós pouco entendíamos de moral parece que ela nem existia. BALADA DO NÉSCIO “Sejam realistas, peçam o impossível” Sartre A juventude nas serras nascida sabe jogar futebol mas faz muito mal exercícios mentais. Ouvem um tal de Rap de onde veio para onde vai ninguém sabe... Fazem do sol seu brilho pois suas vidas opacas enferrujam-se ao sabor dos anos. Bicicletas coloridas verde limão rosa choque pedalando o marasmo premente de uma idade sem compasso. Vão pelas noites de sábado entre um passo e outro de uma música americana que serão sem estudo se tudo é isso hoje? Jovens percalços em ação contando as pedras do Serro - como renovar a idade sem pensar alternativas sem fazer o novo acontecer? 96 À MARGEM Ao Izidório, sobrinho. A mão ainda suja da minhoca o rio caudaloso quantos peixes o anzol esguio perfurando a água o céu plastificado dando sentido ao dia. Na margem de cá do rio escuro onde passam os peixes e as minhocas as recordações perfuram o tempo sinto-me despido de sentido. A manga pelo caminho tão amarela a infância lambuzando seus lábios a água ainda escorre pelas mãos mas o tempo já se vai rápido. INOCÊNCIA ESTÉTICA Ao Raphael O caldo escorre pelo canto da boca a laranja espremida contra as paredes do céu da boca da boca do sobrinho grita infante é fácil brincar com os objetos e por certo não há dor nem projetos futuro passado presente não é decente pisar vale a pena sorrir sem medida e sem atrito não há força que impeça nem poder que governe no tempo de infância a inocência é estética e se fazem atletas num piscar de olhos a energia dos altos dos gritos invade qualquer residência de avós. Infante sobrinho brincando de viver sem medo sem poder que governe sem cara vergonhosa que se envermelhe na cidade pequena que não há de cabê-lo. 97 CASCATA TINHA Nem onda nem mar apenas enxurrada de chuva água escura feito o tempo em que passávamos esperando dia tarde almoço na Cascatinha tão distante aos poucos descobri teu segredo nunca escondido porém inerte nunca distante mas sempre marcante projetas a cidade dos casarões nessa enxurrada que desce par o mar dos dias que vão para onde vão nossos fatos? projetas a cidade do tempo perdido nessa água turva que parece esconder o fundo claro das pedras. És como o Serro sempre sorrateira à espera do amante de tuas cores de tuas pedras de tua margem de tua sinuosidade. És como o Serro antiga demais à espreita da última linha que assinale sem data extinta... que assinale sem compaixão secaste... És como o Serro um poço escuro do passado. DIETA POÉTICA A chuva começa a rolar por entre pedras pontiagudas a dieta poética está terminando 98 o abajur já vai se apagando os sinos iniciam o repique as letras começam a brotar é fértil o caminho das recordações cada emoção um poema todo sofrimento um verso a toalha despe o papel e o véu sai da cabeça a procissão já passou o que sobrou foi a intenção escrever versando sobre a emoção missão difícil pra quem esteve de dieta poética dieta de dias iguais mas a chuva cai sobre o telhado amianto duro que protege a memória isenção impossível olhar para as igrejas sem escrever o passado presente os tênis já de lado e descalço piso novamente pedra por pedra dos moleques do tempo de brincar e a chuva despe a noite os versos já se amontoam e são perfeitamente compatíveis com o momento reescrever as memórias do coração. MULTICENÁRIO As canções ecoavam nos búfalos imóveis a ruminar pedras verdes as cordas rompiam os limites da viola decompondo tempos pela grama verde. As vozes blasfemavam cervejas quentes há de se dar frescor a dor da noite as cordas vocais rompiam a lembrança buscando no passado o fio existencial. 99 As estrelas se admiravam de nossas cores éramos verdes e azuis e lilases cantarolantes e bêbados e melancólicos cochilávamos nas paredes do bar... Mas namorávamos! Estrelas e solitários amando um no outro o brilho multicolorido e necessário de nossos fogos. Milho Verde / 02.01.95 TATU GALINHA Ao Goleau A lua sempre espelhada na água no rio Guanhães a noite veio nem percebi o tatu galinha só nadando por entre luas d’água num piscar de escuridão ali ele morto com alegria pelo caçador molhada experiência tatu nadando. A lua crescia dentro d’água parecia um parto parecia sons peixes uivando no fundo da lama eles ou nós bêbados não sabíamos exibíamos a presença da coragem entre uma cachaça e outra. DANÇA DO ROSÁRIO Místico bailado entre barracas enquanto uns rezam dançando outros dançam rezando instrumentos confusos na noite um mastro erguido uma mulher grávida 100 na flauta dos homens de boa linhagem os sons se repetem há séculos. Os olhos variando a orientação pular é preciso catopê velho não pare nem dance na vida beba mais uma branquinha: o dia raiou azul. PAU A PIQUE A casa velha abandonada na esquina do tempo caindo de pau-a-pique tantas dobras vidas e noites passadas tempestades frias lamparinas. Na rua movimentada que a perpetua ora escuro ora poste a vida foi se perdendo os dedos perderam as forças a família perdeu dinheiro. A casa velha já aos pedaços continua imemorial perdida em nosso tempo sem reforma nem forma estacionada nos olhos da história que aos poucos sepulta as vidas que ali habitaram. 101 FERIDA Os telhados erguidos pardais coloniais ninhos feitos na noite da chuva do mau tempo desde criança me lembro os filhotes caíam das calhas e os criávamos pacientes em caixas de papai noel coitados de nós não podíamos diagnosticar os danos da queda boa vontade não cura ferida e eles voavam para dentro de si e desde criança não sei bem para onde vamos todos depois que fechamos os olhos. PRIMEIRO DOMINGO Ao senhor Dirceu e Dona Sinhá. Portas das vendas abertas à espera de um comprador de primeiro domingo vindo à cidade procurar Deus encontrando preços novos e padre novo. As vendas abertas prateleiras cheias botas fubá havaianas bolinhas de gude um movimento eterno de anotar contas cobrar comportamentos cobrar pagamento. O vendedor passa as horas contando casos causando sensação de informação e atualidade. As ruas se vão com seu calçamento hermético prontas para receberem as águas da enchente em metros de medo cozinhando a madrugada casais revirando seus móveis assustados. 102 Venderia vendavais às vendas se suspiros valessem muito venderia varais de pensamento se eles se tornassem livros. BURACOS DO TEMPO Nas ruas reinventando os anos caminhar de pedra em pedra ao final da tarde relembrar as pisadas da vida. Nos becos assanhando os pés saltar os buracos do tempo ao final do dia pulsar os saltos da vida. SUPER MODERNIDADE Os becos camuflam os anos os meninos escondem a bola os lotes já vagos sem moradia a igreja velha nunca cai os moradores comendo quitanda nós da varanda olhando o pico dos dias se elevando alturas vergonhosos estamos - quem diria presos às pedras do tempo aos moleques dos ventos imemoriais não temos culpa de sermos modernos contrapor ao chão a aeronave nos dias que traduzem o passado somos vítimas confessas dos calendários. Levam os homens e deixam as histórias. 103 CARNE Os meninos saltando na noite nos pés latinhas de cerveja quem diria um dia eu menino depois de anos tomaria um gole sapateando a rua ao ritmo do samba os passistas quase de escola de samba atropelando copos sujando a rua goles de goles de goles pular bem alto sem se incomodar com o relógio avançando as horas. Os pés dos moleques quebrando nos becos como a noite aborta os embriagados! Redime as prostitutas de toda culpa a noite de carnaval abala os coloniais com a nudez dos rostos felizes. MILHO VERDE Hippies situados e rotos falando baixo ouvidos educados cuspindo fogo acendendo cigarros amassando a estrada dos carros com sorrisos engraçados. Hippies perdidos em pedreiras ensaiando pulseiras filmando o bolso transeunte participando da fogueira que suas mãos não acenderam. Comiam dor e soluçavam estrada feriam a cor de seus olhos pretos avermelhando suas visões fumaça de fumaça de fumaça 104 cheiravam o passado anos 70 Woodstock Guerra Fria. O que entendi entendi calado desatei meu calçado moderno caí na mesma água do lajeado nadei do mesmo modo bebi um pouco menos tive mais grana no bolso. Os hippies me olhavam e eu os olhava sem saber por quê só parei de soluçar adjetivos vendo parindo seus filhos de olhos em lagos mas de peito feliz. Esculpindo no chão algo mais que se devesse ocultar algo menos que eu devesse reter prender entender. Cuspiram na noite de Milho Verde maduras provas de existência uma essência diferente no ar fétido de um capital animal. Pariram seus filhos na lama que por ser muita era de casal. Aceitaram a paz de um mato crescente hippies de Milho Verde com seus lemas e suas teimosias mostraram-me algo mais que sexo drogas e disco voador. 105 BROMÉLIA As portas do céu operaram milagres nas vistas sentimentais. Alturas em metros perdidas subia e descia contemplação. Natureza simples e inédita longas tranças de nuvens sob nossas memórias. No Pico do Itambé descobri há de um horizonte a outro muitas casas e pessoas redescobri a tempestade: barulho o sentido das lágrimas e da chuva. Vejo horizontes se concatenando o Pico me disse muito e muito é sempre bastante porém, sempre estarei a 2044 metros de me encontrar. Santo Antônio do Itambé – MG / 20.01.95 AO PASSADO Se vai levado pela tinta das cartas: elas chegam anunciando passado se vai arguindo em conversas entre uma e outra batida intelectual se vai feito papel de parede pelos anos corroído sem reparos a fazer. Mais um amigo se sepulta entre uma hora e outra do dia interminável pretéritos perfeitos para quem das mãos rolaram pedras de sentimentos 106 e nem bem chorávamos as abelhas continuavam sua aventura entre os dias de que são feitos os homens que não se deixam morrer nem em mil anos? Se vai tragado pela terra da virgens mulheres grávidas de filhos telúricos aqui mesmo, entre uma e outra oração incontestável ficam os corpos achados pelas luas exibicionistas um dia virá (mesmo que sem glória) do reencontro encantado dos espíritos eternos. BALÉ DOS SÉRIOS ...embrenhar-se na cidade em busca de fortuna que, quando mudamos, sempre encontramos. Miguel de Cervantes, 1693. Do concreto nasce o dia assombrado por altos prédios aos olhos parece que a treva imedida travestida pelos postes o crepúsculo rompendo exorta sombras do passado plano das ruas encravadas no baixo chão e os homens altos nos arranha-céus cutucam a memória de Ícaros sonhadores. Tenho medo da altura mágica destes prédios pós góticos (perdi o sentido...) parece aproximar-se da lua, logo ela tão arredia em ser tocada, branca lua parece um mastro fecundando a sombra da lua virgem, olhem os véus da noite! Tenho medo da montanha de cimento por sobre a terra navegando balé confuso de homens descendo-subindo-chocando, há pares dançando na avenida São João! 107 era um balé coletivo a segunda - feira: porque não me disseram... tive medo desta desordenada dança entre sombras de altos prédios. O balé dos homens sérios: há homens arredios pelas praças: não sabem dançar. Quem sabe já cansados da garoa perene suor da lua fecundada porque pararam os meninos já chamados de rua: logo eles tão naturais São Paulo escuta o brado noturno da rua e abençoa os filhos da Lua. São Paulo – SP / 1993 MARIA, JOSÉ E O SAPATO Serro das marias e dos josés da sapataiada nos telhados telha por telha montado das moças banguelas da roça dos meninos sem resposta dos homens maduros de nada. Tuas casas têm telhados demais e maria e josé só querem se amar no chão dos moleques sem pecado no chão da humanidade sem dono. SANTA RITA A novidade vem do alto a morte de um matado é anunciada pelo alto falante ora Júlia ora Magda ora de manhã ora tarde o convite repetido uma fórmula “sairá o féretro de sua residência” 108 saem os sepultáveis anunciam-se recados a tarde de Quarta-feira sem reza não fica alto falante acordando andorinha pelas escadas da santa um padre se ergue e proclama a igreja tão forte nessas bandas ensina o catecismo fogos foguetes barracas a cada santo um festa a cada ano um pouco resta do espírito que ressuscita os mortos. PAMPULHA As luzes refletidas na água davam a impressão de duas substâncias uma concreta o poste outra volátil a alma da luz. Um sempre presente outra se apresenta apenas na noite como se em nós se repetisse esse fato passei a acreditar na alma que tudo sente mas se faz presente na noite dos corpos. Lagoa da Pampulha – Belo Horizonte – MG / 30 de maio de 1995 BOTAVIRA No campinho do lote vago na casa de Pedrelina as pedras caíram fora caímos então jogando bola. 109 Sábado Domingo feriado moleques lameados e a bola passando de família em família a gente se confundia com os pais nem pronunciavam nossos nomes apenas filho de fulano... a bola girando rolando o tempo marcando o gol o tiro de misericórdia crescemos e não coubemos mais ali fizeram as casas grandes desarrumaram o cenário da infância suja de poeira amarela. Restaram o tempo na face e o menino sem braço. 300/2003 DESATINO Um dia. Um dia daqueles iluminados. Era setembro. Era eternamente setembro. De que ano? Talvez a memória já apagou. Era setembro (e fazia um sol escaldante). E teu sorriso me veio confirmar o primeiro encontro havia sido há pouco numa dessas escadarias da Santa Rita havia pouco tempo que contemplara seu olhar lânguido e sua voz ousadamente calma e rouca. Tua encenação era tão real que eu acreditei nela não pude fazer nada calei-me. Tu eras muito mais que imaginas ou talvez nem imagines 110 minha grandeza é não saber dizer o que sinto. Longos anos à mercê de teus desejos ou meus? Já não sei. Eu estava lá ou tu eras tão enorme dentro de mim que me empurrei para o canto, enfadonho? Senti muito a ofensa das palavras mas nem as palavras adiantariam descobri que tens a alma cercada de altos muros e eu jamais conseguiria transgredi-los. 05 de Outubro de 2002 SERÁ QUE BETH NÃO VEM? Para Beth Guedes Será que Beth não vem? A rua lotada de frases de cada boca cheia de gentes. Uma rua lotada de falas a cada modo construções de sentido de existência. Será que Beth não vem? (Busca-se o sentido de estar ali mesmo sabendo que não o há). A música de cada um tocando alto uns escorregam para viver outros vivem se escorregando para ser. Será que Beth não vem? 111 Ela vindo a noite vai mudar de foco. Será ela sentada e nós sentados juntos com ela. Ela já estava ali. Grudada na nossa memória. Ela era vinda chegando na imaginação e a noite foi se mudando por causa dela - ou de nós com necessidade de outros? Será que Beth não vem? E se vier seremos os mesmos ou continuaremos ali sentados pacíficos vendo as pedras? E Beth veio. (As pedras juntas são calçamento A gente com outras gentes se faz existência). DÚVIDA Apareço: mas não sou eu quem estou fugi de minha corrupção ouvindo música dilatando as veias da memória como fuga do desvio de ser em meio a este fim de tudo. Tropeço em mim: mas não sou eu ali neguei minha finitude ambicionando eternidade mas quê! Tirar essa máscara perturbadora pode causar mais dor (horas por que horas?). 112 Estou aqui. Sou real. Sou esse ser não-ser ser-não-sei-quando-amar hiatos de viver já tenho muitos quero as reticências... o frescor de amar. Fúria de mim para este espelho opaco não há outro entre esse ar e esta mente tudo se é. Se vai. Se basta. Eu não: estou engasgado com sede de não-ser. Procuro entre os objetos meus cacos mas onde se vão: os eus de mim brotados? Porque os perdi entre as almofadas da noite? Porque só me resta a dúvida? Serro, 07 de Outubro de 2002 SERÁ QUE BETH NÃO VOLTA? A revolta da estrela É ser ela mesma Eterna, apesar de inútil. A revolta da noite É ser ela fria Eterna, apesar de fútil. A revolta da vida É ser toda Eterno retorno. E Beth voltou. Deu ré no carro E cessou nossa re(volta). 113 BOULEVARD CAFÉ Via teu vulto nos muros nas janelas nas casas altas teu sorriso impregnado em cada poste de luz tua palavra escorrendo feito enxurrada nas ruas este lugar trás tua alma nunca teu corpo. As folhas secas do caminho de casa o Boulevard Café continua fechado foi lá: meus olhos te viram pela última vez estou melhor agora. Mesmo de volta ao passado. Os telhados escondidos da cidade recebem o sol de um dia tão quente e porque se vão os amores da vida queria tua presença novamente. Mas só há saudade ou uma minúscula vontade de ter tua voz fugidia ao meu lado passou-se o tempo. Passei com minha antiga necessidade de ter-te eternamente. O tempo tirou-me muito desejo deu-me a satisfação de ver tudo agora lento avalio mais sofro menos entendo tudo. Pude ter-te mas nossos medos foram mais fortes. O tempo tirou-me muita alegria deu-me amigos verdadeiros falo mais minto menos entendo tudo. Pior seria não estar vivo. Belo Horizonte, 1-7-2002 114 SERÁ QUE BETH JÁ FOI? Partiu a voz e se foi o sentido terá sido ouvido do jeito pensado por quem o criou? Partiu um olhar ido de mim ponte feito para outro ouvido chegado. Partiu um carro no beco (será que Beth já foi?) se foi se foi se foi cortando o ar. Partimos nós ali feitos muitos confundindo sentidos idas e vindas. Será que Beth não vem será que Beth não volta será que Beth já foi (o tempo urge ser ponte de que valem os obstáculos?) SOBRE A PÁ(LAVRA) A pá lavra o pé cava o pi soma o pó coça o pú (blico). 115 O BEIJO O beijo foi falso mas estava eu ali sentindo. O beijo foi lapso mas sentia eu ali vivendo. O beijo foi fácil mas fugia eu ali mentindo. O beijo foi colapso mas desligava eu ali fugindo. O beijo te trouxe mas não quis tu. O beijo te lembrou mas não fiz nós. Fui sozinho. apenas eu. Belo Horizonte, 17 de outubro de 2002 300 A casa velha me deu sua sombra e fiz um olhar medíocre ao acordar. 116 A rua velha me deu o caminho e fiz pouco caso das pedras ao viver. A amiga antiga me deu a dica e fiz pouco caso do conselho ao aprender. A velha família me deu o lar e fiz pouco caso da proteção ao habitar. A velha cidade me deu a história e fiz pouco caso da tradição ao mudar. A antiga música me deu a saudade e fiz pouco caso das notas ao tocar. O antigo amor me deu o medo e fiz pouco caso desta dor ao amar (novamente). CHÃO DE POEMAS/2003 PRIMEIRA ESTRADA chão por onde rodas passam o carro suspende o atrito pé-na-estrada chão por onde se fazem caminhos de um ponto ao outro infinito pé-de-serra 117 chão por onde passo a vida de um ponto ao outro do tempo pé-de-vento chão estradas e outros caminhos de ponto aos pontos nos is pé-de-moleque chãos são tão bons condução pelo tempo do aqui e agora chãos são tão dons comichão da finitude do ali e além chãos são tão tons terra vermelha cor do coração CHEGADA a barragem sem ondas um mar para Chica da Silva na tarde de meninos pulando na verde grama na colorida bola chutando o tempo o tempo barrado na serra à vista parando o horizonte escondendo a lua nas ruas um total silêncio cortante traz o pôr-do-sol em Curralinho noite adentro caminha minha vida pelas curvas do Coroado desviando a atenção não há saída: da última à primeira rua o chão se faz realidade: existo! 118 PULSAÇÃO simplicidade é tarde em silêncio adormecendo os gritos do coração... ação... ação... ação... é ausência de ontem hoje agora amolecendo o duro chão da existência simples cidade cheia de serras... erras... erras... erras... orquídeas brotando na dureza da rocha ao lado do fogão de lenha do maxixe do quiabo do gengibre ser simples como a tarde silenciosa em busca da noite fria... ia... ia... ia... viver no chão da vida... ida... ida... ida... rastejando em volta de si SOMBRAS há sombras da tarde selando o destino do dia ah! noite das sombras cruéis nasça a luz da aurora! sombras da solidão cobrem a vida renascer o dia é preciso! COTIDIANO fogão a lenha no quintal fumaça de candeia na chaminé o dia acordando 119 os sentidos matar mosquito zombeteiro na perna levar à pia a xícara de café para batiza-la na água da fé no fogão há lenha há maria josé antônio há mãos pés braços nos feixes amarrados um abraço à natureza água terra fogo ar elementos da vida acordando EM VOLTA café da manhã na casa dos Guedes na rua dos Cruz na rua do Coroado com fé beber a inspiração cotidiana em pé manter o sonho de ser quem se é até sem querer... há fé na manhã do café quente da Chícara da Silva da Chica lenda viva fé nos mitos: em nós sonhos esperança de outros momentos no silêncio da individualidade fé no dia nascente na paz crescente da fuga em massa para dentro de si beber da própria luz 120 para ser sombra mesmo que dissipada do Eterno fé na fé pé no chão em frente juntos até que dê PINGUELA ao outro lado do rio à margem direita a pinguela conduz do outro lado da ponte o fim da travessia se avista do outro lado do nada a história é o fio que ata os nós de outro lado da alma o corpo é o elo necessário de um lado ao outro passa pela passarela e sem ela não há retorno possível de muitos lados se vê o objeto sob a mesa e sem ele não há realidade palpável 121 do outro lado de mim palpita o infinito e sem ele não vejo a mim mesmo de muitos lados se dorme mas há um sono apenas adormecendo de muita fúria se faz a tempestade mas há apenas um nome definindo de muitos olhares se ama mas é à primeira vista que apaixonamos de muitas quedas o rio mas é o mapa que alinha sua substância muitos são os modos de ver mas é com o sem olho coração que nos entregamos muitas são as formas de dizer do amor mas é com um gesto simples que o damos dos lados de si se chega ao todo pelos caminhos do chão interior se encontra a voz: PONTO FINAL. 122 ÁGUA a tarde derramando águas pelo vertedouro da barragem molhando nosso hálito seco sede de amor a barragem de cimento contendo a água somos peixes cercados buscando sentidos na água que envolve mas a água não nos cabe e como peixes pulamos para fora bem na hora em que não podemos - aprender a viver é resignar-se na água ferruginosa nos debatemos lutando contra a corrente para chegar a algum lugar ser humano VISÃO tocar-se por dentro na ferida íntima da dor mover-se por fora na fria manhã da vida conter-se parado na luta diária de ser 123 sofrer-se sozinho na dúvida longa de poder ser-se o que se é na busca horária de crer ONTEM em volta de tantos caracóis – esses resquícios de atos arrasto a concha frágil pelos dias de corpo finito pelas ruas do chão da existência busco o endereço do sentido de ser pretérito de ser imperfeito não há saída – se a missa começou, termina no amém não há retorno – causa efeito se entrelaçam, ainda bem puxo minha carroça de outros chãos pisados há tempos carregando malas e flores neste agora corpo nominável pelas estradas levando a lugares jamais pisados procurando heranças deixadas sob o céu agora azul não há saída – se a caminhada começou, termina em suor não há retorno – mesmo mar o rio continua água UMA RIMA nem nas nuvens senti medo de cair somente próximo de ti não consegui sair meu medo sempre maior foi pouco 124 diante de tua loucura fui mais louco enfrentei a dor como gente grande na tua presença a dor foi gigante remexi na alma feito líder espiritual ao lado de tua dor não vivi nada igual pensei encontrar no teu leito um pouco de paz mas sozinho acredito agora serei capaz revirei do avesso o que pensava fui obrigado a entender ao teu lado não me amava UMA FORMA DE CHÃO chão órbita dos pés trânsito constante de quem é pão fome alimento ingestão diária do homem 125 cão mordendo os vivos espantando curiosos com uivos mão acenando pra quem fica na estação final da vida não frases ditas com dor desfazendo o que seria grande amor RIMA SEM SORTE será certo sentir sem dizer? e o pior amar sem prazer? será certo escrever sem viver? e o pior confessar sem crer? será certo caminhar 126 sem querer? e pior chegar sem merecer? será certo se entregar sem se conter? e o pior esquecer sem poder? AQUELE SER via o que não vejo agora mim de mim a mesmo eu lia o que não tenho agora eu em mim ao mesmo tempo era um sonho ver-se a si ali só era um estranho eu a me ver em dó? quem era aquele ser parado dentro de mim qual eu mesmo outro dúvida sem fim? tinha o que não tenho mais eu ao mesmo tempo mim cria em inconfessas promessas para por no meu eu um fim 127 O OUTRO LADO palpitação na manhã do Coroado ligação telefônica preocupação contato imediato com os problemas da vida resolver uma bandeja de questões fatiando dezenas de dados ligado no mundo: CD, celular, mais o quê? tanta coisa e o vento sopra lá fora há anos como se a natureza fosse eterna e nós finitos o ibiti-rui sopra... sopra... sopra... muda as nuvens tampa o sol uma peneira de nuvens, que bom... sentir na pele o calor da vida vamos para a Gruta do Salitre rezar o tempo no corpo quente que a alma leve se vai sem espanto SALITRE NA ALMA O futuro não é mais como era antigamente. R. Russo sopro no topo da serra eu parado ali não ouvia o ruído da pedra água mole em pedra burra tanto bate que ensina cada um tem sua sina 128 sal corroendo paredões milenares e a nós venha o sal da terra pra quem acerta ou erra olhos buscando sentido na gruta mas era nosso diálogo lento que ainda se escuta tantas formas de dizer das bromélias das orquídeas procriando suas flores mas era um debate nossa miséria escadas conduzindo às pedras ruídas nós desmoronamos um pouco ali tentando sarar as feridas a água lave todo intenção boa ou má na tarde quente batizamos a amizade da gente... REENCONTRO ninho de ave escondido no alto sou fuga tardia despiste de vida um sobressalto sou assim mesmo: o mesmo sou assim todo: o tolo sou assim pouco: o oco sou assim alma: ou corpo? sou ou estou num plano muito plano um horizonte: destino 129 feito eu feito insano há música vária sobre a tarde variações sobre o mesmo tema quantos terão visto o pôr-do-sol deste jeito em Curralinho? cuide de ser seu seu olhar plantar e poderá ceifar MANGA os meninos brincaram a noite inteira pulando de galho em galho nas quatro mangueiras de manhã o chão estava amarelo, verde, maduro era só manga outros meninos acendiam brasas falando frases madrugada afora de manhã a vida estava alegre e dividida era só convivência mas há vários meninos travessos brincando nas nuvens fazendo chover para brotar manga e convivência TEIA hoje agora amanhã muito tarde para tecer teias entre mim e outros 130 hoje sem demora à tarde muito tarde para refazer atos entre si e todos hoje só por hora à noite muito longe para dizer coisas de mim para poucos hoje sem medo de dizer do dia abençoando mas efêmero TARDE EM DIAMANTINA porque me perdi num olhar se tua voz não ouvi teu desejo não percebi? meu coração quis me desacatar cenário música todos os minutos trazendo: reencontro porque se vão as vontades silenciadas assim numa tarde em Diamantina? é estranho teu tamanho dentro de mim 131 é confuso tua luz ser minha cruz miséria humana amar assim demais LIVRO DA ALMA abrir o livro da alma e reler fatos ouvi-los passar páginas mortas e reviver atos puni-los amassar páginas tortas e prescrever ações aprendizado MESA DA VIDA Killing me softly this his song... R. Flack juntei os cacos da memória na mesa da vida vi muitas luzes vi muitos amigos decolei a emoção num voo panorâmico sob a barragem do destino vi muitas vidas ouvi muitas músicas 132 fui eu para lugar estranho desses que a alma possui nas esquinas de seus silêncios ter comigo mesmo quanto mais pensava menos entendia quanto mais amava mais alegria vida estranha dada pelos dias a gente vai se cozinhando nas panelas da emoção e acorda pronto para ser vida longa dada pelos anos a gente vai morrendo se sepultando e renascendo das cinzas (o que sobrou de tudo foi isso: um sorriso ambíguo) CAPIM QUEIMADO o quintal canta a música mangas batucando vento saçaricando galinha ciscando cachorro uivando o quintal rola a vida capim queimado árvore podada raiz arrancada tronco tombado 133 o quintal imita a gente constrói reconstrói arranca planta o quintal limita a gente cerca lote espaço tempo o quintal implica a gente leis lados respeito ordem queria ser quintal um conjunto multilateral de sentidos de ações queria ser quintal um profundo continuar da casa do lar queria ser o tal que é só é se é indiviso 134 MÍNIMA CIDADE a alma acordou pequena vida mínima cidade um quintal a alma decorou a letra certa mágica alquimia da música alma sopro de incerteza na máquina alma areia movediça no corpo alma teia de sentidos no quarto PESCARIA mão no chão: um caminho no quintal (que tal pescar?) sim, pescar o tempo de si na barragem mão no chão: uma vasilha cheia de minhocas: buscar? sim, buscar a si mesmo lá na Barragem 135 mão no chão: uma enxada retorcida e velha: calar? sim, calar o amor aqui dentro na barragem barragem lá me vejo eu: inundado de mim barragem lá me vou eu: passado eu para mim mão no chão começo de pescaria unhas sujas como a vida essas mãos sujas pecado de existir CENÁRIO DO POVOADO a grama cobre o chão de terra pedras machucam a sola do pé verde tapete dando boas vindas para quem chega: ser natural é bom! a igreja, o cemitério, s ruas de chão o cruzeiro desvelando o horizonte lá longe eu me transcendia e pensava no Pico do Itambé a zeladora da igreja agitando a monotonia se enganando com os nomes dos santos eles são tão distantes de nós mesmos pra que saber seus nomes? 136 meninos jogando a bola verde no muro do cemitério que corpos sepulta – só corpos há no mercado imitação espíritos visitando a monotonia inesgotável da Extração a capela emoldurada na serra deu seu adro para o pé de manga e o pé dos moleques de boca amarela e um sorriso encabulado as negras meninas não entendiam a visita as casas tão miúdas: precisa-se de pouco espaço para aconchegar os corpos cansados do trabalho diário descansar os braços para arregaçar as mangas ganhar a vida no chão dos dias uma terna poesia percorre o horizonte deste lugar quase não-lugar um vento varre a saudade da vida corrida de nossas eternas preocupações cotidianas assim, tropeçando em mim o tempo todo o silêncio, o vento, a chuva, o sono dos cachorros na rua fui-me vendo parte desta ilusão passageira cidade dos deuses no chão do Distrito Diamantino pude virar minhas esquinas subir minhas ladeiras nadar minhas dúvidas em dias de ser paz subi minhas mangueiras desci meus degraus de salitre e reencontrei alguém perdido há muito: eu mesmo 137 FOGÃO na lenha do fogão se vai tanta natureza anos e anos de paciente exercício de crescer o último momento aquece a alquimia culinária de D. Maria e suas panelas de ferro cozendo maxixe ah! se ela soubesse da alquimia dos seres cheios de leis naturais: terra, água, fogo e ar ah! se ela quisesse chegar ao centro da certeza das misturas no fogão das lenhas centenares um fogão de lenha no quintal coberto de telhas próximo dos pratos quase prontos: chuchu, andu abóbora d’água, café em grão, cidreira, gengibre a proximidade entre o natural e o cozido é máxima ah! se ela pudesse se vestir de preto e colocar no caldeirão temperos colhidos no quintal com sabores, gostos e tal! ah! se D. Maria tivesse a arte das antigas feiticeiras abriria as tampas das panelas e ganharia o mundo mas D. Maria não gosta de lenha no fogão não quer cozinhar maxixe, abóbora e andu prefere o fogão a gás... prefere o gás artificial ah! se ela temperasse o caldeirão de bruxa na carpintaria culinária ah! se eu pudesse ouvir: terra, água, fogo e ar pedindo: me una! que pena: D. Maria não gosta de lenha no fogão 138 CARPINTARIA depois da visita à antiga carpintaria apesar do frio na espinha do tempo percebi como a matéria contem sentidos: um deles é a saudade quantas lágrimas derramadas entre uma lembrança e outra da batida do martelo tac, tac, tac: por que se vão os amados toc, toc, toc: pra onde vão os amados? pude ainda ouvir o serrote partindo a madeira entre um grito e outro de menino reclamando atenção em meio à poeira: cadeiras, armários, ferramentas e saudade a poeira do tempo cobria a plaina o torno só não escondia os olhos miúdos de D. Maria uma oficina no fundo de uma casa e muitas peças a vida vai pregando e o coração vai se assemelhando: caixote de amar ah! todos os tempos voltaram à infância e muitos sons ecoaram vivos como nunca e o cheiro de tempos idos encheu a tarde: de saudade 139 RUGA a ruga no rosto escadas de anos marcando a rota dos dias cada ruga um sonho construção de amor cicatrizadas na face dos anos a ruga no rosto serão oitenta e cinco? ou terão cada uma sua história? não há fuga há rugas sim demonstração viva da existência rugas na pele são tatuagens do tempo na matéria sonhadora nós elas são um pouco estalactites de horas na gruta inconsútil dos nossos desamores pudesse saber das horas edificadas em cada ruga como livro aberto ao conhecimento 140 sólidas rugas atrozes recordações maior a idade maior a saudade UM OUTRO QUINTAL tá tudo ali no quintal tá tudo lá mangueiral tá tudo posto hora do almoço tá tudo indo voltar ao ofício tá tudo vindo louvor ao divino tá tudo dado esmola a São Geraldo tá tudo amarrado Deus seja louvado tá tudo limpo bateia do garimpo tá tudo perfeito varanda e parapeito tá tudo cozido chuchu e palmito tá tudo no jeito vaso de amor perfeito tá tudo a cheirar anágua-de-sinhá tá tudo bom música sem tom tá tudo gostoso angu sem caroço tá bom poeta pare esta caneta! 141 DESTINO a manga caiu do pé ao chão (morte ou realização?) mais próxima de todos agora será amarelo de degustação o peixe fisgou o anzol no rio (morte ou revelação?) próximo do óleo quente será torrado pra digestão TEMPO-MENINO o tempo fez montaria nas serras desgastando suas pedras daí a gruta do Salitre ser assim tão bela o tempo adormeceu nas nuvens sem perceber se chovia daí os dias em Curralinho serem tão diversos o tempo cozinhou nas panelas do fogão à lenha e nem se deu conta das rugas de D. Maria daí a natureza da gente daqui ser eterna o tempo brinca de bola de gude nas ruas e nem quer parar é eterna criança daí as ruas daqui serem tão áridas para que o tempo possa continuar... o tempo se encosta nas mesas e adormece e nem percebe seu grave defeito 142 (devia encostar onde comeu!) sepulta pessoas e engravida moças o tempo soltou papagaio no cruzeiro e no seu corre-corre as pedras de seu caminho vão descendo a ladeira pra dar no rio êh! tempo-menino sem tempo de ser tempo-rei... ELEGIA DO DIA SEGUINTE quem virá depois de nós nesta casa rosada feio nossa pele depois da barragem? quem irá contemplar a chuva roçar os cabelos da mangueira espalhando frutos pelo quintal? quem? eu já me vou e isso basta mas é um bastante frio deixar este cenário único não verei os filhotes de Totoca crescendo e mordendo o tempo pior do vaso ontem plantado: quem elogiará suas flores? e a água descendo o nível da Barragem quem dirá de sua altura 143 atrapalhando o banho da tarde de verão de janeiro? recuso-me acreditar não veremos nada e nada é tudo esse frio sem coberta que é pensar a partida quem vai cuidar da grama esse calçamento que agrada os cachorros e chama pra sentar ela vai crescer mesmo ou vai parar no tempo? é triste e quase alegre e quase triste saber que a serra vai continuar dando de si o pôr-do-sol saber que o tempero de D. Maria vai continuar saboreando a almôndega que do prato da memória se vai... darão notícia das maritacas verdes os jornais da capital turbulenta e das orquídeas e bromélias e palmas farão noticiário os periódicos? triste e quase alegre e muito triste saber de passados e futuros há uma lágrima a escorrer por entre os dedos: néctar de anágua-de-sinhá dizer de Curralinho é divagar quase parando o tempo eis seu sentido 144 DESDENHANDO desdenho dessa manhã repetida desse céu nublado e sem graça dessa mesa de café sem brilho da luz que invade meus olhos das companhias que vão me deixar e dessa casa rosada rio da sua cor da sua forma de seu espaço de seu telhado colonial de seu piso que me pisa desdenho do sorriso matinal e desse acordar... acordar... acordar... como se cada coisa ou pessoa quisesse me tirar de dentro de mim como se eu fosse Lázaro e Jesus me chamasse desdenho desse sonho de família dessas cadeiras silenciosas da cachorra e seus filhotes das panelas sujas de ontem do cabelo desfeito no travesseiro de tudo ao meu redor desdenho... desdenho muito minha arte de desdenhar é assim: arte de ser eu mesmo no domingo de deixar oito dias de férias de descansar de si e voltar ao mundo e aos compromissos... lá, desdenho da segunda-feira... 145 A FUGA DA POESIA faço poemas para fugir não para me reencontrar faço para ir não para voltar escrevo para me ver escrito e depois de algum tempo olhar o dito e rir por dentro solto letras nas linhas à toa como quem ri ou chora depois saio recompondo aquela hora vou solto feito bicho do mato sem rumo impondo formas às letras que soltas não valem nelas descrevo todo ato toda poesia caberia no meu poema mas me encho de letras todo dia muito amor aqui passaria mas minha letra é morta feito sombra da gruta que não vê o dia AI, MEMÓRIA! fogão de lenha no chão do quintal panelas, temperos, sons 146 vozes cozinhando as horas e antes que me esqueça há os antepassados em volta do calor tentando loucamente voltar a sentir os cheiros e antes que eu me esqueça de novo, ai memória há o avental sobre a saia a banha de porco na panela anunciando o tutu e antes que eu parta há no ar uma fumaça que devolve às narinas os cheiros da infância as sensações de tempos idos e há esta força feminina andando pra lá e pra cá num balé de tempos tirar panela do fogo olhar o forno picar os legumes varrer a sala... será que ela se cansa de se cozinhar em meio a tudo isso? será que ela se cansa de se dar em forma de sabor para as visitas? Parece que ela mente pra si uma mentira sincera sabe que na segunda-feira o domingo foi valioso sabe que amanhã sua mentira 147 não me canso não me desgasto terá valido a pena... (há no ar um cheiro de ervas, plantas, grãos transformados) UMA MESA no chão da sala uma mesa me faz as vezes de poeta coloco-me de braços dados com todos os poetas anônimos mas tenho meu canto e quero expressá-lo ponho-me na função de ouvir as palavras anotando-as cheiro a inspiração no ar e transpiro versos no papel mas ouço um canto e quero mostrá-lo FESTA DE SÃO SEBASTIÃO a chuva sela o dia de rezar a São Sebastião de procissão pelas ruas e dentro de cada um na chuva somos batizados novamente e é tempo 148 de mudar de rumo: olhar-se, ter-se, ouvir-se as ruas molhadas germinando caminhos uns passam por Curralinho outros vários dentro de cada um as sementes se embriagam da vitamina celeste e brotam-se agarradas ao chão: um parto de verdes gramas, árvores, arbustos e é uma bênção de São Sebastião no chão por onde pisam os pés e destinos vidas e errantes a chuva sela a carta do chão ao céu todos vão brotando finitude para alcançar o Eterno na Extração o chão é pedregoso e as casas são disfarces humanos toda casa é cupinzeiro, formigueiro mascarados de propriedade privada PRETÉRITO NA ALMA o dia se vai como o pulsar lento do coração sem coragem para desfazer o desenho de futuros imaginados e não vividos o dia se vai feito eu aqui entre meus labirintos sondando o melhor modo de passar as horas sem medo de ser infeliz o dia, este amigo das revelações existenciais se vai para onde para que para quem... não sei se vai... lentamente para ontem 149 vou-me indo descendo a encosta do morro feito a chuva rolando a monotonia das horas lavando a alma nos acontecimentos vou-me (sendo se é mais fácil) será fácil percorrer este dia de silêncio sepulcros de pretérito na alma? ANTIGO AMOR acordei o sonho de dentro do fundo do poço eu ali vendo o fundo de tantos sonhos sonhos pequenos mas nossos mas meus? confundo-me com a profundidade da saudade olho por volta do sentimento que ficou e nada vejo senão as notas desta música palpitando feito eu no desacorde desta emoção tão febril e tola desfazendo os sonhos na noite escura posso olhar o passado mas é dor rever fatos fotos mistura de sentimentos o poço de amar é muito fundo nesta hora cavar o passado dói os braços do coração o mato nasceu em volta de tuas lembranças altas árvores posso avistar tampando o sol da tua presença e o sorriso fugas de tua alegria onde estava eu ao mergulhar tão fundo neste poço não posso, não posso, não posso escutar teus passos soltos e velozes pelos corredores da minha memória 150 fugiste de mim fugi de mim mesmo hoje é lá no fundo do poço da alma que nos encontramos saudade é palavra vaga na noite que se ergue tu no vazio da existência queria novamente nós mas é vaga memória o tempo e refazer o passado quem pode? devo buscar-te... mas já te perdi tanto! há medo nas curvas da vida revoltadas ondas de antigos afetos dados cobrem o poço fundo desta lembrança eras és serás ainda? quem és afinal antigo amor? ANTAGONISMO Pior de tudo que a gente ainda vai se ver ando em ruas que não sei o nome pra me perder. Ana Carolina as unhas afundei-as todas na saudade era ontem na minha alma ontem eternamente e o frio na barriga percorreu todo o corpo brotando nos olhos longas gotas pelo rosto escorrendo – chorar é tão triste estraguei as notas musicais com melancolia nada melhorava esta face deturpada de saudade nada mesmo – como são longas as margens da alma de um a outro lado nadando fui eu e eu mesmo não me achava 151 tens colocado em mim muito de si mesmo nas horas vagas de pensamento ou na imortal incandescente necessidade de tua presença floresces no meu jardim usando deste orvalho triste nas noites em que os muros são intransponíveis sonhei tantas coisas... dessas coisas irreais mas eu era verdade e tu mentira ou meia-verdade talvez éramos um sorriso e um lamento antíteses vivas remanescentes de vidas passadas em quais locais? eternidade sem tu é eu sem mim (voltar? não sei como...) a lua na janela descobriu no meu interior grutas eu era me perdendo entre quartos de lembranças tantas formas quis dizer deste amor – usei adeus e fomos virando a lua o sol o por da vida para caminhos antagônicos sobrou esta saudade em letras garrafais empossada nas artérias da alma sobrecaída na sarjeta da memória tropeço nela de vez em quando e sei jamais vou te esquecer QUEDA Nunca pensei ouvir dizer: não é por mal mas vou lhe fazer chorar...faz um tempo eu quis fazer uma canção pra você viver mais. Patu Fu a mentira c a i u por terra como nós um dia afastados 152 a máscara rolou pelo chão como eu um dia cansado a fantasia deixou-se cair como nós um dia entediados a verdade voou pelo ar como tudo um dia desvendado fomos nos despindo da mentira da máscara da fantasia da verdade sobrou passado PRONOME a noite traz-te mas não levas-te embrulho-me no lençol da tua lembrança a noite faz-te não desfaz-te adormeço no travesseiro da tua saudade a noite quer-te não podes-te cutuco os pés da dor a noite ouves-te não calas-te roo as unhas 153 dos sons a noite brilhas-te não ofuscas-te fecho os olhos da alma a noite faz-me trazer-te rebobino a fita do passado há noite face a face comigo agora sou cálice cheio de si ah noite, faz-me ter-te! agora agora na hora boa da memória... sim queria-te querendo-me. EXAGERO COTIDIANO engoli a noite acordei de ressaca almocei o dia levantei asiático jantei 154 a noite dormi horas devorei o dia cochilei confuso horário comi um trem perdi a linha aérea mastiguei o passado acordei atrasado mordi o presente encontrei só se(mente) acordei metafórico vivo poeta SALA E MÚSICA diga-me que não ouvi teus passos dentro de mim e direi bem alto estavas aqui 155 fale-me em desatino que muito prometi mas essa quase mentira desde cedo e tu sabes estava dentro de mim insulte-me guardando as caixas da memória essas que enchi de tua presença e relerei pra quem quiser ouvir nossa história pise-me afastando teu destino do meu mas não adianta negar teus olhos agora tão distantes e frios já foram meus arraste-me pelas ruas da saudade eu irei alegre ou triste recolhendo na memória a pureza que eu sei- ali persiste não separes minha vida da tua assim os laços são visíveis pelos menos pra mim não afastes tua voz do meu ouvido prefiro acreditar nesta bobagem voltarás um dia! ao meu abrigo sonhei todas as maneiras de render-lhe a saudade mas tu não queres mais ouvir-me nem por piedade (há um som no fundo da sala: sou eu ecoando saudade nos objetos desta casa) 156 PERSEGUIÇÃO queria um silêncio entre esse medo e essa certeza queria paradeiro entre essa manhã e essa estranheza queria não ter vivido todo esse medo nessa manhã de dor NATURAL o vento dos dias na alma fez frio a queimada ardente preparou o peito novo amor a chuva secou a lágrima do rosto a fonte saciou a sede do rio eu era tempo de ir e vir achar-se natural 157 ALMA/RUA a alma atravessada de ruas nas lamas da vida lavando o rosto pureza essa perdeu-se poeira essa deu-se a alma cortada de avenidas no suor dos dias transpirando o corpo por a mesa hábito cotidiano por a mesma alegria no dia a alma se vai atropelada enrugando a alegria passados passados há muito eternidade – novamente? CARMA da boca sai o coração do travesseiro brota consciência na mão surge a intenção é da noite a voz: existência no olhar mostra o que trai na pele aflora a sensação da fala diz não volta mais do pé corre aproximação 158 do cansaço se quer a indolência da alma tece encarnação da morte um fim da experiência voltar sempre é difícil expiação do dia rouba pouca paz da dor se aprende a essência é na paz e na ciência o equilíbrio mordaz ANDORINHA vagas horas caindo pelas ladeiras vou-me tiquetaqueando com os ponteiros desse relógio da Santa Rita da ladeira de degraus fazendo-me alto de fato falta a hora do início desse desatino chamado vida fui cavalgando pela grama verde do adro pelejando para chegar dentro de mim ao alto conhecimento feito andorinha voando o tempo migrando-se pretérito para ser existência na umidade nefasta da chuva de novembro queria ser-me sentado no alto da Santa Rita eternamente hora de contemplar a cidade mas que! eram verdadeiras as frases diziam de sofrimento ruptura crescimento diziam de mim sem saber e negar hoje não posso rolei escada abaixo (o sino anuncia as horas desde a infância e agora é hora de dormir feito andorinha cansada de voar tão alto) 159 16 DE MAIO DE 2003 Acabei com tudo.Escapei com vida.Tive as roupas e os sonhos rasgados na minha saída. Mas saí ferido sufocando meu gemido Fui o alvo perfeito...muitas vezes no peito atingido. R. Carlos eram horizonte plano e céu azul até um dia: caiu a realidade o céu tornou-se chumbo nas costas no coração dos lentos cinco calendários que restou senão uma carta aberta e a alma lacrada de lágrimas suspiros copiosos sem poesia na fria noite da memória cansado de tanta mentira caí para o lado derrotado tanta mesquinharia tanto abrir a boca para matar é agora difícil ressuscitar AMOR Tudo era apenas uma brincadeira que foi crescendo, crescendo me absorvendo... e de repente eu me vi assim: completamente seu. Peninha o amor não vem assim anunciando chuva feito nuvem de verão o amor nunca se põe andar por andar feito prédio construção o amor se dá como o ar ao dia 160 só é preciso ter pulmão o amor se faz acorde por acorde mas não tente repetir a canção o amor pode ser frio pobre na rua mas não tente dormi-lo num colchão o amor é vadio mas no peito é senhor de tudo o amor é vazio mas na alma preenche o mundo o amor é sozinho e precisa sempre de duas vidas para ser o amor é vício se vem com ele na veia na pele a cada início o amor é fruta quando colhê-lo perdê-lo quem quer sabê-lo quem pode? o amor é confuso feito carro abstrato 161 desgovernado sem parafuso o amor é rima por isso só poesia para dar sua cor na linha da vida queria não tê-lo mas sou dele e por ele me vou UM CHÃO é o chão piso asfalto sensação pelo chão busco muito paz sonhos emoção sai do chão o dia a noite faz tropeços encontrão chão sensa chão sensa fine sensachional ser do chão humano ser 162 OLHAR DE VIADUTO o Viaduto Santa Teresa derrama luzes pelo caminho e subo e desço e desço e subo o suor no chão preto se mistura aos suores todos de muitas gentes quantas pessoas suspensas no concreto abstraindo projetos de vidas ligando pontos de suas cidades das mais secretas sou eu ali caminhando tropeçando num outdoor ou num anúncio qualquer sou eu ali descaminhando o chão da metrópole interiorana sou no Viaduto Santa Teresa carro ônibus motocicleta roncando os motores do tempo e parar não se pode contemplar andando se quer se consegue (mesmo a pressa mais apressada funda novos olhares sobre o Viaduto) 163 VARANDEIRO vou me varandeando sem entrar de fato na minha casa lá, no sótão, há mais de mim um outro e de outros feitos muitos sós vou me percorrendo por fora o chão do coração é sem dono de muitos sentimentos calçado vou me espiando pelas janelas não posso invadir-me agora lá estão nossos restos pistas do passado vou me pisando de leve pelas beiradas sem hora nem dia de chegada somente espiando as cortinas bailando lá dentro sou medo de ser quero ficar aqui fora na ilusão do inteiro lá dentro vou fundo demais quero ficar por fora deste rio denso lá dentro quem sou pra que entrar quero hoje ficar fora só me vendo 164 afinal achar-se é perder-se duas vezes VIVA MARIA EREMITA DE SOUZA tua voz ouvi numa tarde experiências de tempos correndo pelas palavras caindo dos teus cabelos tuas histórias tão frágeis tua presença tão gigantesca ficaram na memória dos 90 anos de vida de vida de vida na Rua do Corte tua casa era um destino do passado ido próximo remoto tua sabedoria era tua marca maior belas palavras para dizer a gentileza de teus gestos a suavidade de tuas ações a vagareza de tuas decisões marcas de tua personalidade o chão do Serro foi teu ensinamento e por ele percorreu longos caminhos ensinando aprendendo contando os fatos não seriam os mesmos sem tua versão vão-se os corpos finitos e mutáveis ficam as palavras e a amizade precisamos não esquecer a história é mais que passado viva Maria Eremita! Belo Horizonte, 14 de julho de 2003 165 CURRAL NA SERRA o Othon Palace atravessando o horizonte o curral da serra onde estará? se foi? se vão tantas coisas e eu me venho de férias o movimento impiedoso de tudo comprar vender impede o que pode ver chãos interligados há linhas pela cidade muitas levam ao encontro outras nem tanto são saudade há tramas de chãos uma rede de motivos para ser-se em meio ao vertical de teus prédios os chãos são vários muitos nem têm sentido se perdem pra quem quer se perder outros são ilusão teus chãos são de todos por isso invado tudo com olhar de medo desejo de compreensão Belo Horizonte é sentido mão e contramão horizonte feito belo chão 166 CHÃO DO INTERIOR o chão de dentro é escorregadio sem placas seguras intuição por isso se prefere o de fora dado por outros situação mas quem consegue percorrer o escorregadio revelação vê-se vendo e é isso percorrer-se por dentro ambição mas quem segue o de fora o seguro já ido enganação vê-se revendo e pra que isso se o de dentro é si mesmo realização opte por desoptar ópio é ser opinado opte por desopilar as vias de si si mesmo é chão real essência e paixão (quando ligares os faróis esquece o chão dos outros 167 faça teu caminho ser teu ao invés de cópia quando tirares o sapato não tenha medo do chão se for teu feito destino será sempre muito bom) RESTANTE escadas acessos de resto eu na cama corredores portas de resto eu no drama tapetes móveis de resto eu de pijama televisão rádio de resto eu sem grana cachorro gato de resto eu na lama casa e gente 168 comida e enfeite por tudo eu só ele te ama RIMAÇÃO piso-me escala afora toque-se piano agora pisotear chãos pianotar ouvidos planejar versos sem linha ser sem verso na pauta JANELA DE ÔNIBUS dentro de um ônibus as árvores lá de fora espiam-me espiando pela janela do tempo as folhas verdes na beira do Arrudas os troncos pretos de poluição são árvores crescendo à margem de todos nós na margem do Arrudas há várias árvores não sei suas espécies mas sei somente desse tipo raro que invade minha alma desejo de viver 169 dessas árvores não sei o nome nem a origem sei que eu estou crescendo no chão da cidade arrastando pelas avenidas senões e porquês grilhões do tempo na veia da história Belo Horizonte é ambígua de um lado dá árvores de outro toma o tempo ido Arrudas abaixo... SONHOS DE RUA há vazios de sentido nos viadutos eu ou a arquitetura estão confusos das chaminés – narinas saem tufões de poeira asfáltica e gás carbônico há um indizível fiasco de existência sobrepondo-se à altura dos prédios mórbidos arranha-céus com desfiladeiros elevadores não chegam a deus subir descer amontoar-se feito lixo humano se ver não ver feito espelho opaco ruas de não-ruas de não-seres de não-nós Belo Horizonte de tudo e de nada uma cidade de ruas que terminam em sonhos de sonhos que regurgitam saudades das saudades dos tempos de outros tempos do lento tempo escorrendo devagar nos fios de cabelo Belo Horizonte perdeu o tempo de menina-moça hoje já madura demais para aceitar o improviso cai pesada sobre os olhos de quem a fita de soslaio pela avenida Brasil 170 Belo Horizonte teve um céu límpido e mágico mas as vértebras dos prédios ergueram calcificadas colunas estéreis cheias de pessoas apressadas em fazer o tempo ser dinheiro foi-se o tempo de menina nos olhos enrugados feito árvore no asfalto de casco preto de tempos de maus tratos vê-se a linha do tempo não pensada por Aarão Reis foi-se o tempo da inocência nas pernas repletas de varizes feito anciã parideira de tantas ruas avenidas e favelas não programadas vê-se a linha do tempo na testa da história: marcas insanas CAVALGADA IMAGINÁRIA ouço passos na estrada cavaleiros damas enforcados tiros e muitos gritos quem somos nós ali senão nós há muito vivido no ouro da terra cavando nossos buracos? quem somos nós ali vendo o visto mais uma vez dado porque passamos de ônibus pelo mesmo caminho já cantado? quem somos na estrada de asfalto feita terra feita picada feita descoberta encruzilhada sou eu o mesmo de tantos tempos idos? 171 MARIANANDO o chão torto é cobra na serra os olhos se equilibram no rosto o ônibus tomba a visão ora vejo um lado ora vejo o contrário brincadeira enfadonha visões se contrapondo mato bicho gente passando pelos olhos e o estômago já enjoado Mariana tem forte gravidade uma imantada beleza mineral pulsação e muitas casas miúdas as igrejas são severas de fé edificado o templo mas quê! colocaram um órgão de tubo para quebrar a monotonia um grande órgão alemão dessas engenhocas barrocas suavemente adocicando a vida nas montanhas Mariana é tradicional das ruas calçadas ao coreto da praça do bispo na basílica ao estudante de férias é um mágico suspiro de eternidade 172 MONTANHAS são tantas mas tantas as montanhas sobem descem as tantas as tantas montanhas e viram reviram as tantas as tantas montanhas e rios entrerios as tantas as tantas montanhas e céu e chão as tantas as tantas montanhas e nós no chão nas tantas tantas montanhas CÉU E CHÃO eu de olho no céu o céu de olho no chão o chão de olho no céu 173 eu de molho no tempo o tempo de molho no céu o céu de molho no anil eu de venda na alma a alma desvenda o chão o chão na venda de grãos eu cismando de ser o ser ciscando o chão o chão no mando da vida eu no chão sou gente gente na rua é pedestre pedestre na vida é aprendiz e é por isso que se diz de chão de caminho de trilho caminheiro é sempre feliz caminheiro cavaca seu chão faz seu destino nas curvas vagas da vida em construção OUROPRETANDO inconfidência gritam os monumentos nas praças nas ruas nas esquinas um gemido de liberdade ecoa no morro da forca e verde e flor e muita gente se confunde com este cenário de dor e amor ali o mistério é desvelado aos poucos lentamente em cada imagem setecentista e vivemos ali um dia ou somos novos visitantes por que trazemos essa liberdade na alma? 174 o calçamento finge de morto sob meus pés mas as pedras gritam história nas suas moléculas as mesmas há anos assentadas para compor o cenário de homens e mulheres as casas estão ali mas poderiam não estar esse ser mas não ser ou éramos mas não somos essa brincadeira de não saber se é o que vejo é um sentido para Ouro Preto MUSEU Et je fus trasnporté en esprit dans le temps anciens, et la terre etant belle et riché, et fecondé, et ses habitants vivaient heurreux, parce qu´ils vivaient en fréres. Lamennais, Paroles d´un croyant. a espada trespassou meu coração o bacamarte explodiu as artérias a palmatória zuniu no ar com aspereza e dormi no colchão de palha um museu não é um museu é casa de quem não vemos é vida que não vivemos silêncio um museu é parte do não-vivo mas dado para recordar dados para se informar vidas para se conformar morri torturado no calabouço senti a tontura da fome dos presos amarrados em correntes frias as espadas duelavam novamente a liteira encheu-se de damas escravos sangravam no tronco soldados feriam seus inimigos 175 no museu a vida se confunde com a morte quem morre: eu ou outro já ido quem vive: eu ou outros já vividos? no museu cada passo é uma releitura de si se nasce se ressuscita se refaz se fere se morre se ouve VARIA POESIA da muita poesia pouca vida das palavras pouca lida da muita poesia pouca saída das rimas pouco fica da muita poesia carrego pressa dos amores pouco resta poesia é chão sem pé toque sem mão braço sem fé da vária poesia pouca alegria da tíbia tristeza basta fantasia poesia quem te faz faz mal te fazer é para calar-se não te remeter 176 poesia quem te mostra faz troça dar-te é para duvidar não te afirmar poesia quem te vive faz chão de linhas é para errar-te não tê-la como guia poesia quem te aquece faz calor à toa quero esquecer-te mas és nobre coroa morrer-te posso viver-te devo? querer-me-te-longe se escrevo? (poder de poesia é ser chão da boemia frio na garganta voz no peito se levanta) PRETO OURO ouro para garimpar preto para trabalhar preto para cozinhar no tempo do ouro preto para batear ouro de sinhô e sinhá ouro para enriquecer mas preto quer se alforriar 177 ouro para guardar preto para amamentar preto para gerar os filhos para trabalhar preto para esculpir ouro em cada altar ouro para se achar em santo de pau oco o ouro preto ouro ouro preto o preto RE-PENSAMENTOS é tempo de pensar no tempo como pretérito perfeito aos poucos imperfeito aos poucos remoto do tempo se busca a alegria misteriosa daquelas: sonhos misturado com realidade ou um pouco disso tempo é flor desabrochando no chão da memória tanto chão tanta flor para ser isso o tempo é água de mina rolando para o rio tantas gotas formando um oceano às vezes vazio que é o tempo senão este istmo de sem-tempo-sendo-tempo essa brincadeira de passar o anel na mão-sem-dedos-do-espaço? 178 tempo é urgência de veias abastecendo o coração pulsar o chão das artérias no compasso da vida VIAGEM AO INTERIOR DE SI MESMO voltei nova(mente) eu fui ali e voltei já correndo com saudades de mim mesmo feito jabuticaba preta doida para ser arrancada na estação da chuva voltei rápida(mente) como quem vai mas volta muitas vezes enquanto está se partindo feito laranja da terra doida pra virar doce amargo na mesa da roça voltei trágica(mente) pois desse meu desatino de ir e vir várias vezes se encena uma peça teatral ora sou eu no palco ora é a vida com seus genéricos ditames divinos voltei eterna(mente) pois só me reconheço voltando ao paraíso de mim mesmo mesmo confuso mesmo eu mesmo num fim estranho que é isso tudo voltei doce(mente) vendo-me visto já ido e retornado buscado e agora recolhido como guarda-chuva no meio de uma tempestade voltei franca(mente) para ser eu sendo nesta busca frenética de frear o tempo para impedir que o relógio me leve de novo a me encontrar nova(mente) novam(ente) nov(ame)nte 179 DE TUDO E DE AMOR/2006 PORTUGUÊS CULTO , ... . nego o verso pontuado ! ? : coloque nele o sentido ou poesia é sentimento ou mero jogo de pontuação e se cada um tem um ponto tem também sua razão descubra o uso correto do ponto que lhe cabe bem eu te dou a palavra o sentido é teu CRÍTICA CÍNICA eu componho para mim mesmo não para o crítico de arte componho o sonho e desfaço a rima porque não preciso da crítica para ser poeta porque não quero a rima que me faz careta 180 eu componho para mim mesmo em noites de neblina baixa rascunho o verso e surge vida lambuzo o papel e surge um sentido eu componho para mim mesmo e não preciso ouvir suspiros componho meu riso e faço da letra humor componho minha música e laço da letra o amor esta que a crítica inculta dos sentimentos internos diz ser a crítica dos sentimentos eternos que diria o verso se visse o poeta que diria o poema se visse quem é seu crítico todos somos vazios com uma tampa enorme enchendo todos somos atores com um palco decente encenando (a melhor crítica é escrever um livro melhor que o lido) 181 REMÉDIO para o dia revolto palavra simples para a noite insone silêncio impecável para a música alta ouvido educado para a saudade fria cobertor antigo para a lágrima certa poesia concreta ENTRE MILHO VERDE E SÃO GONÇALO é que as flores diziam várias frases eu escrevia seus tons no pensamento é que os bichos fugiam bravios e eu sabia seus destinos mato adentro é que o sol aquecia muito a pele e eu suava seus raios pele afora 182 é que a areia abria o caminho e eu seguia a trilha para Milho Verde agora cheguei ao interior de mim passando atalhos amadurecendo (crescer é ser... espiga pronta) NOTA DE RODA PÉ _________ o pé me leva para onde... onde roda o pé, onde indica o nariz, onde perdi mais tempo? o pé roda por tantos caminhos por tantas observações ora extensas ora lentas ora estranhas ao meu próprio com texto... a planilha nada plana da vida é cheia de roda-pés... roda-pé roda o pé roda a pé... pedalo meu olhar para páginas ínfimas de sentido... lá embaixo sou baixo mesmo... lá em cima sou inconsciente... mas o pé roda tanto que estou tonto por tantas entrelinhas que explicam entrelinhas nos roda pés da existência... quero acabar com esse frio no estômago coloco muitas notas no meu roda pé e para me explicar explicar esse sentido despido de sentido, esse frio ausente de corpo, essa carne sem memória – preciso reler todas as notas anteriores... abaixo os roda pés... abaixo os rodapés abaixo... qualquer coisa de significado equívoco altamente explicativo 183 PAUSA sol e lua estrela e rua eu assim todo confuso horário dia e noite hora e tempo eu assim todo obtuso temerário DAGOBERTO: QUANDO AS PALAVRAS NÃO SÃO NECESSÁRIAS dizer sem falar pelo olhar se comunica o que implica quem não ouve a palavra vai e volta o pensamento vai e volta e fica (diálogo sem som do indivíduo) misturados no mesmo espaço ouvir e calar pensar e calar parece muito mas é o mais difícil silenciar sensações introjetar realidades psicodelicamente quando as palavras não são necessárias rompe-se o elo entre ser e estar 184 estará aqui quem não diz estará assim: feliz? quando as palavras não são necessárias há silêncio na sala e barulho na alma (Dagoberto é um rapaz esperto ouve-se ouvindo e pronto) INCÔMODO incomoda ver a ingenuidade dessa hora passando feito horas a fio há tempos há séculos por debaixo de minha ponte há dias que o dia se faz dia de fato há noites que a escuridão da lua ilumina os mais assombrosos pensamentos estou aqui neste momento denso entre o tempo de ontem e o de hoje presente estou aqui vazio por fora e cheio de mim por perto e por dentro há a dura certeza de existir e existir e existir há um anúncio na minha testa sou humano m´batam m´batam m´batam batman me atropelem para virar notícia mesmo que para mim mesmo mesmo que para minha toda eternidade todo o universo e fora dele haverá: a antiga ingenuidade 185 NOITE EM DIAMANTINA Para Bernardo Abraão um estrondo no céu se vai a luz para o passado pretérito de claridade e eu ruando becos ruas desertas ladeiras sem ninguém eu vendo o escuro sombrio cheio de pedras nos pés calçando a noite de trovões nos olhos o medo de ser sentido eu aqui tão miudinho é tão vasto o chão de pedras é uma cidade esta casa me abraça me amordaça me aloja mas era um estrondo se ouvindo se achegando do meu ouvido direito o esquerdo me ouvia ouvindo o medo todos os postes se calaram a noite se fez noite mesma: Diamantina os passos mudaram as percepções silenciosas mas verdadeiras a noite pulsa na terra e no céu pulsa saudade dos dias clara certeza de tudo: existir eu vendo JK brincando de estátua egolatria aos pés de São Francisco para que seu marco se ele é memória em cada sensação diamantina? eu chovendo palavras no pensamento (refrescar a secura da história é preciso) eu molhando jardim de horas (florescer vasos de sempre-vivo: é tudo). 186 TEMPO OUTRO invento um instante de silêncio mudo para o lado mudo do muro me perco me acho silêncio e barulho o vento gela a pele mas não acalma a mente viro a sintonia da memória e me vejo visto me acho no vento real sobre a pele arfando o som do pensamento é inconfundível por isso mesmo há um mesmo pensando –sou eu o mesmo posto no mundo pelo ato de ser toco-me por dentro são tantas formas de conquistar-se blocos de construção em anos de fazer-se parede sólida estou erguido no mundo e é só isso muito as ideias não são meras palavras soltas no ar sou eu me referindo ao mundo como ser deste mundo viro-me para o lado e sinto a presença sentimental da vida minha vida me percorre por completo me vejo nela mas será ela eu mesmo? minha vida me socorre nos momentos de amnésia me sinto eu mesmo nesta vida de cores próprias pressinto todo o tempo passando eu passo com um tempo diferente o tempo se vai outro quando amo o tempo se vai outro quando amo o tempo se vai todo quando amo (...) o tempo se vai 187 POVO ENTRE PARENTES(IS) (havia um povo religioso sem deus havia um povo político sem democracia havia um povo histórico sem história havia um povo festivo morrendo de depressão havia um queijo da roça sem as mãos do artesão (entre parêntesis) havia um povo havia um povo liberal sem liberdade havia uma imprensa livre sem jornalista havia uma paisagem verde onde hoje só há concreto (entre parêntesis) que povo é esse? sou desse povo estou nesse povo represento esse povo? coloco-me (entre parêntesis) e para sair dele(s)? fecha parêntesis) VASO o vaso tem flor dentro e fora rosada o vaso tem sede argila quente quer água o vaso tem limite o que cabe quer habite-se o vaso está cheio de terra nas bordas por dentro ar o vaso tem trinca três dimensões sob a mesa eu vejo o vaso dentro e fora rosado 188 AMBIENTE DE POUSADA a tábua range na gengiva do assoalho eu me olho mas quero ouvir passos de passos de passos na noite pousada da alma o silêncio o requinte é o tempo ensaboando a água rolando ladeira afora os móveis abrigam os móveis esses seres carentes de seres esses homens buscando outros diferentes saborear este cálice de noite o silêncio garganta abaixo e frio e necessário presentes pousar as mãos no papel para se ver por dentro poesia OBJETOS o engenho me enrola os olhos me puxa a janela me fecha os olhos me cega a mesa me dobra os olhos me nega 189 a vela me acende os olhos me vela a cadeira me acolhe os olhos me leva a noite me despe os olhos me pega a rua me expressa os olhos me acha a nuvem me molha os olhos me lava a cama me aquece os olhos me sara a hora me passa os olhos me aflora há olhos dentro e uns grandes olhos fora tem hora de olhar si mesmo tem hora de negar quem me olha (rima fraca é sonho bem dormido) 190 INCENSO abraço a fumaça do incenso eu abraço ela não se dá sem sentido sem limite sem motivo etérea me perfuma eu não me acho exala no meu quarto o perfume eu aspiro dou sentido ela não está nem aí... vou-me esvaziando da vida em volta mas no interior das lembranças é tão dura a realidade! sem fragrância vazia eu não me acho ela não se faz LENTE DE AUMENTO palavreio parafraseios freio palavra desço engrenado metamorfoseio metáforas paro a imagem rabisco no papel cremo 191 páginas para salvar a poesia ressuscito lágrimas para lavar a vida [BARRA DE FERRO] densidade é a noite deste mundo interior repleto de silêncio obscurecidamente caverna obtusamente pintura rupestre na alma / minhas marcas duram muito tempo na memória densa lenta que nada apaga sem o muro das lamentações / coloco barras na minha ideia para barrar os impropérios/torno denso o verso por não saber barrar o verso que sai dos poros em barras de sentido/densidade atravessa a loucura desse momento efêmero como a barra que nada barra por que seus olhos já estão no fim deste verso / em barras / densas como as ruas do serro com barras de ferro que não evitam a anemia do falso poder que brota dos currais cheios de barras/densas que não evitam os bois de pensar e ruminar sentidos / o serro tem barras de ferro na rua para que ninguém se esqueça / curral marca de ferro com as iniciais dos coronéis que tangem ainda o gado medíocre de seus latifúndios / vou barrar a densidade das palavras / / porque não posso hipostasiar / / barras de ferro no meu verso solto livre / desapegado de toda pertença à mediocridade sem poesia dessa cidade repleta de barras na língua no coração e na alma / barras de ferro não evitam a anemia que acaba com todo pensamento de vitalidade / que nasçam novos poderes sem barras paralelas /que o novo poder que nasce todo dia seja de fato novo / sem as iniciais do passado / seja novo com toda a densidade da vida 192 PENA O mundo não passa de mudança,a vida o que dela pensa. Demócrito ah! a pena sobre a mesa e eu sob mim mesmo que pena, bela pena sobre a mesa recostada eu de mim faço sonhos líricos de escrever apenas esse brindar o momento com o que sou sentindo vale a pena de morte da imortalidade estou frio olhando-me por dentro tentando mudar apenas sou esse infinitésimo desembaraço do destino escrevi sob pena de perder o tempo, meu tempo pequeno mas meu, relativo mas meu apenas irrepetível o ar que respiro me abre as ventas do ser e escrevo e escrevo e escrevo sem ar com ar sem rima apenas poesia e me atrevo a penalizar os papéis brancos com tintas de desencanto com linhas que vão e não voltam que pena 193 ADÃO VENTURA DE VOLTA Fosse a tua vida três mil anos e até mesmo dez mil, lembra-te sempre que ninguém perde outra vida que aquela que lhe tocou viver. Marco Aurélio, Pensamentos, Séc. II a poesia na veia no olhar distante versos compostos de estalo o curto verso no livro -falar muito para quê? vale o sentido o estado a cor da pele no ser refaz o olhar em volta o caracol do tempo é estável a letra sorri e pensa baila no fundo branco o papel de cada um é aceitável a simplicidade da sílaba embaraça a vista se vê longe o caminho da estrada baila, poeta, na tua poesia que roupa de caboclo não dança só na embaixada 194 gira, poeta, teu olhar que o mundo te invadiu belamente pela sensibilidade da palavra volta, poeta, ao reino maior que aqui é assim mesmo tudo passa e ensina de graça (teu canto se ouve: adormece nas mãos do criador-poeta) VIRÁ O SER o limite há entre mim e este ar o passo virá basta assim este par o luar será depois do dia e o solar a chuva cairá a seca vai molhar a nuvem passará e seu desenho vai borrar 195 a vida desencantará e sua dor acabará é neste vir-a-ser ser a vir: a vir a ser me vou virando isso ou aquiloutro escrevo-me por meus dedos entre mim e este fim e talvez me fui ou vou ser isto tudo de haver enfim e dito caminho à letra este nada é o medo PROVOCAÇÃO vou quebrar a algema do sentido na cabeça do martelo vou fazer o que bem entender com o entendimento vou rezar para ver o invisível com a palavra indizível vou roubar a atenção da letra com meu momento na vida de quem lê o lido 196 CONTRÁRIO se é tua voz e teu jeito e ser aqui, não posso saber sei que vem de manhã a tarde à noite para me perder vou ferido pelo atalho da memória revirando as letras do pobre passado este mesmo revivo em mim eu sou esta história sou eu: tu vives novamente seremos tudo ou eu mesmo esse denso nevoeiro – o pretérito more semente... eu revivo teu corpo tua alma para quê... não consigo o contrário tem algo que nunca possui o esquecimento de mim. de vez em quanto te vejo em mim te respiro te amo te vi mas estou só nunca aí um dia entre todos os dias será o dia de te perder mas me vou sozinho sempre: preciso ver para crer UM DETALHE minha vida é história passos 197 que passam passado que passa sozinho apenas cruzando o chão o coração parando brevemente desaceleração minha vida é um lago de marolas mar que evapora encontros repentinos emocionando os sentidos despedidas dolorosas magoando os amigos minha vida é pouco experiência que resta ciência que informa 198 MEMBRO SUPERIOR nos braços da noite deus travesseiro dormi o mundo nos braços da lua deus natureza vivi o profundo nos braços da vida deus realidade conheci o outro nos braços da morte deus fatalidade conheci o muro nas mãos estendidas deus fraternidade conheci amor nas mãos unidas deus amizade sou eternidade PRESENÇA preciso dormir esse sonho acordar novamente ilusão não quero a realidade dura e concreta do chão preciso da vida 199 esta de agora viva esta de tudo do todo emoção nunca precisei tanto deste deserto repleto de medos e fronteiras a sede me conforta estou vivo o oásis tão perto ali sou eu o mesmo em mim DESEJO encontrei o olhar num salão da minha emotividade era eu e teus olhos e teus olhos e eu perdição buscava-te dentro de mim e viestes envolvidos de vida contradição eu me vejo vendo-te e me vês procurando-te perseguição tens um olhar indecifrável tens um ficar apaixonável tens o que desejo 200 mas fechar a emoção esta dentro de mim para dar-te o melhor daqui é saber-se delirante quero teus olhos dentro dos meus e teu corpo e o meu quero teus sonhos dormindo com os meus e tua alma aqui e só eu viestes assombrando a luz da racionalidade quero-te comigo somente sen-si-bi-li-da-de VOU UNIR v o u u n i r v á r i a s p a l a v r a s p a r a s a b e r q u e s o u d o n o d e s s e ve r s o l i ga d o p o r s e n t i d o s q u e b r o t a m d a c a b e ç a de q u e m l ê o i n ve r s o SENTIMENTO tuas mãos passeiam pelo meu corpo: a memória de ontem já se apaga pego-te pelo olhar pelo beijo pela data de ontem de ontem de ontem 201 muito longe esse desejo se perde: renovo-te pelo suor nas mãos pela pele arrepiada ao lembra-te teu toque vem: lambuza meu presente de ontem e de hoje e de futuro despeja na minha orelha direita o direito de amar loucamente vem: sussurra obscenidades eternamente perdoáveis não temos pecado: somente somos o perdão. toma-me: sou teu como a chuva à terra como o lírio ao jarro decifra-me ou devoro-te: amo o mistério de tuas entrelinhas de tuas linhas de tuas reticências de tuas meias verdades de teu passado sem mim de teu futuro sem nós. preciso ouvir tua voz no meu coração e saber se o que sinto é isso ou outro sentimento sem capacidade de decifração ou rima ou confusão preciso ouvir tuas mãos sussurrarem na minha pele os enigmas do desejo que não passa que não basta que não se acha em outro lugar: aqui em mim. SALIVAÇÃO gostaria de saber se somos um ou vários espalhados por um destino gostaria de saber se somos tudo ou nada 202 encharcados de nossa saliva gostaria de saber se somos verdade ou mentira suados um sobre outro gostaria de saber se somos isso ou aquilo mas não há resposta somente futuro CORPO cadê teu peito no meu peito só minha mente na tua fala ouvindo-te? cadê teu sorriso no meu olhar minha frente no teu verso amando-te? cadê tua mão no meu silêncio meu prazer na tua cara gozando-te? 203 TROPEÇO NO AMOR Pra ficar no conforto dos teus braços qualquer coisa no mundo eu enfrento. R.Ribeiro a lembrança de ontem ontem mesmo: o ido você eu o tempo todos levados para onde vamos assim cantando reencontros sem letra nem tom sofrimento a saudade é dura pena para quem ama e teima sem promessa ou cumprimento se vai eu amo o tempo que traz sua pele ao deleite de minha língua roçando sua vida eu amo o relógio que goza na parede registros eternos de amor eu amo o ontem que traz a saudade agora pois sem ontem não teria eternamente nós eu engulo o futuro para transpirar nós juntos pois sem amanhã não teria justamente amor 204 eu interrompo o verso para fazer miragens de seu corpo pois sem imaginação não teria prontamente flor eu mastigo o passo pois vou sem rumo sem compasso amar eu infrinjo a lei para ter julgamento morte perpétua à mesmice eu crucifico a falsa fé para ressuscitar esperança tenho toda coragem para viver tudo ao lado seu não sou eu sou muitos felizes ao lado seu não sou teu sou intuito de deus ao lado seu não sou nós sou expulso do impulso ao lado seu quero muitos gozos gozozos 205 PESSOA Para Alfredo dez anos desenhando reencontros deu-se num mês de julho e juro somente quem não quis ver não viu éramos no tempo o tempo revivido éramos o ontem olho no olho vivendo os dias como uma longa tempestade depois da seca a seca dos tempos se desfez na saliva frases de explicações sobre o tempo que se foi e se vai e se irá como nuvem carregada feita para chorar nuvem abençoada feita para irrigar o tempo é feito passarinho sem ninho vai-se pelos quintais da memória e nem a história em livros pode anotar ele é ladrão de sensações solto por liminar limitar o tempo quem poderá imitar o ontem quem o fará? não se volta o sorriso: que se faça o Emerson não se volta o apartamento: que se faça Ouro Preto não se volta a brincadeira: que se faça Alfredo não se voltam os corredores: que se renovem os amores... (o que passou, passou, passou, sou sou sou pra frente é que se anda: Rita Ribeiro renova toda saudade). Belo Horizonte, 10 a 18 de julho de 2004 Reencontro da turma de Filosofia da PUC depois de 10 anos 206 DA ARTÉRIA E DA ESTRADA Para o historiador Leonardo Araújo Miranda preparar as m(alas) da alma e ir cortando o vento em re(cor)dações enxugando as lágrimas com o (algo)dão nuvem trilhando o c(eu) eu vou pelo caminho de dentro arenoso pedregoso mas meu perco-me em labirintos e estações sem problema: ap(rendo) um dia pego a estrada da memória e me guio por vidas de ontem e de outros não tem problema – a bagagem é enorme mas cabe no coração roubo da estrada o estar sempre em busca de chegar mas chegar nunca é chegar para a estrada artérias de caminhos tantos chegar é mero lapso para ir sempre quero ver o céu azul pela janela da alma sentir o vento frio da vida esfriando o desejo mas não acabando por completo com esta chama que me leva me consome me faz delirar respiro a paisagem desta janela imaginária e me abro e corro em trilhos e olho para a frente não tenho cortinas sou essência e natureza tenho um tudo de mim: minha vida carrego as mochilas e vou esvaziando o interior não posso carregar todo o peso de existir 207 nem conseguiria: só tenho meus quilos gravitando pela estrada da evolução quero levar muitos amigos e muitos amores mas poderei? A lembrança é maior homenagem ao amor vivido quero lavar a alma na cachoeira das lágrimas mas poderei? O córrego é maior que o leito eu maior que a dor quero amar esse momento eternizando o verso mas deverei? A poesia é maior que o poema eu mais que letra mais que letra que letra l a e r t t r e a l O LÁPIS E O APONTADOR o mastro do barco carrega a bandeira o mastro da festa indica o santo o mastro aponta para o céu com ou sem estrela o cometa viaja na galáxia o cometa brinca de rastro 208 o cometa invade o espaço com ou sem luneta o mastro viaja na galáxia o mastro brinca de rastro o mastro invade o espaço com ou sem festa o cometa carrega a bandeira o cometa indica o santo o cometa aponta o céu com ou sem planeta viaja na galáxia a bandeira brinca de rastro o santo invade o espaço o céu com ou sem anil carrega a bandeira na galáxia indica o santo de rastro aponta para o céu o espaço com ou sem astro com ou sem estrela o cometa viaja na galáxia com ou sem luneta o mastro viaja na galáxia com ou sem festa o cometa carrega a bandeira com ou sem planeta viaja na galáxia a bandeira o mastro aponta o cometa no lápis desenhado o santo no apontador gravado o cometa juntos se dão sentidos 209 SOBRE O AMOR preciso dizer de amar para calar o que há dentro e fora do ar preciso gritar o amar para poupar o medo esse outro lado do erro preciso falar do amar esse sentido azulado me faz sonhar quero me queimar neste fogo todo feito lenha que sempre dá a quitanda para provar quero me enfurecer de tentar feito jogador viciado que sempre está perdendo para da perda se livrar quero me esvaziar de tanto amar para vazio por dentro e fora entender o que é se doar CONDADO a mata cobrando encantamento a água rolando do útero da terra jorrava contemplação as folhas flutuando no céu azul o rio descendo da razão ao coração inundava o tempo 210 o cavalo trotando os minutos a rédea segurando a vida guiava o passeio as árvores falando ventos e brisas era a linguagem da natureza música para a alma eu afundava os dedos na vida com amor por todo cenário iluminado do Condado eu amarrava os olhos nos troncos com louvor por todo o espetáculo gratuito do Condado eu era como sou agora pleno de natureza por dentro essência eu era como fui a horas crente na humanidade por dentro divina UTENSÍLIO deixa-me sobre a mesa a mão vai me tocar como há muito tempo espero fere-me com o dente o vermelho vai aparecer na pele já cansada desejo abraça-me com o olhar 211 a memória vai guardar teu olho no meu pudor medo controla-me com tempo o relógio vai marcar a hora do encontro cedo faz-me ser eu mesmo a nudez vai mostrar eu como sou por dentro sendo BRINCADOR dor de amor é dor de frio na junta dor de pancada na cara dor de amor é dor de corte na veia dor de morte no forte dor de amor é dor de choque na volta(gem) dor de toque na medragem dor de amor é dor de todos na vida dor de ser sem saída dor de amor é qual flor 212 espinho sangue beleza na cor brincar de dor da dor de amar rir altas gargalhadas depois de se ferir CIDADE INTERIOR Para Onésio Moreira Gonçalves o céu azul em arco de tardinha se atira nos olhos de fundo branco o jato deixa fumaça na retina água no pára-brisa: olhos o passarinho distante chama sem pegar fogo (seria uma pena) seu canto desencanta o ruído da cidade interior a rua cruza dentro da imaginação quarteirões de seres sem sinal a árvore parada na sarjeta vegeta ação de abrir e fechar as folhas o vento frio congela o interior de graus da igreja da santa rica o relógio conta o tempo em tiques nervosos esse povo não pára de nascer e rezar... o cachorrinho deitado no caminho se perde em divagações de osso de açougueiro a carne é fraca e sustenta tanto sentimento revestido da palavra forte amor 213 SERMENTE Para Adão Ventura, na saudade de sua presença. a palavra se vai empurrada por multidão de poetas vai pegar no tranco enchendo de alegria o motorista a máquina de sentir é engenhosa potência da poesia o combustível é a alma o poeta o manobrista o verso é bicicleta de rodas cromadas ladeira abaixo o freio é o tempo: dá e tira sentimentos a poesia não cabe na palma da mão se espalha como semente no vento o leitor não passa de vaso para as rosas em buquê nele o poeta encontra além dos olhos seu porquê DESORIENTAÇÃO saudade do vento nos tocando juntos da música nos acariciando o tempo dos lençóis amassados envolvendo o encontro saudade de ultrapassar os limites das sensações passando de uma rua a outra na mesma direção estar juntos no mesmo espaço saudade de brincar com as nuvens e estrelas tocá-las na alucinante delícia de suas curvas estar unido ao mundo que envolve seu mundo saudade de apalpar sua mão desorientada nos caminhos e encruzilhadas do momento este tempo de estar colado no papel de parede 214 a vertigem dos corpos rolando por mundos insuspeitos a pulsação acelerada vulcão interior depois o silêncio encantador VIA VIAGEM verbalizar as palavras por entre as pedras tortas do cerrado do penteado das montanhas a brilhantina brilha no fim da tarde cheia de nuvens rosadas de frio encontrar as palavras no vento descabelando a orquídea ou nas entrelinhas da noite com lua grávida de fases no fim da vida a beleza se revela nas pequenas coisas cochichar no papel a beleza da alva areia irradiando o sol o gavião percorrendo o território do tempo de asas abertas no fim o vôo humano atinge o outro a poesia se esfrega pelo chão e tinge o asfalto de sensações as palavras se esparramam pelo caminho recolho as vogais traduzindo-me PREVISÃO não há destino sobre a mesa para fatiar a receita é incompleta e falsa é só pensar o destino não cabe na palma da mão para olhar a cigana é mentirosa e finge é só questionar 215 o destino não vem nas cartas para cortar a cartomante pensa que me engana mas isso vai passar o destino não se imprime no tempo para contar a vidente não viu foi isso que teimo gostar é teu passo em minha direção sem retorno sem razão é teu lábio na minha vida sem engodo ou previsão é tua rua no meu quarteirão loteamento proibido e ilegal espaço conquistado à força uns chamam isso: paixão (preciso compreender o momento de falar do que se vive sem medo e sentir o que se sente sem tempo) SOMATIZAÇÃO há braços há pernas e esse soco no estômago: saudade há troncos há árvores e esse embuste apático vontade 216 há sábados há domingos e essa fúria incontrolável calendário há ontens há tempos e essa dor interna miserável passado há músicas há robertos carlos e esse som incessável rádio há tantos há tantos há tantos e esse tanto solitário LUZ (IA) a luminosidade desse sentimento clareia os dias sem sol como farol mesmo de dia me guia reflexivo espelho de colorida superfície as cores de cada dor são densas mas passam com o tempo e o pincel de poeta as sombras necessárias pelo chão espalham o outro lado da luz é secreto o poder da mente revelo-me assombramento 217 o raio de sol cortou ao meio o quarto o poder da luz separa o espaço a velocidade da luz me conduz para seus braços a lua indiretamente se enche de luz ilumina o telhado da cabeça o sereno frio e invisível fertiliza ideias na noite caio sob a luz intensa levanto com sol na cabeça olho pelos lados do ontem e vivo intensamente (é preciso ir às Lages benzer o sol na cabeça com dona Almerinda) OUTRO FATO EM VOLTA não vejo a pétala cair mas vivo a queda dela em mim não vejo o pássaro partir mas sinto a morte dele em mim não vejo o rio no mar mas me molho de água salgada sem ti não vejo a linha do equador mas percorro linhas aéreas em ti 218 não sei das coisas inertes mas sinto o inerte aqui esse buraco na camada de ozônio de si não sei das coisas alegres mas sinto risadas em mim é que o circo armou-se hoje: te conheci não sei mais de mim nem de depois de hoje só sinto que os pequenos gestos se furtam à memória – peneira furada não coa farinha teu sentido não sei: poderia? PARTO há um mês me engravidei de vida de vida de vida queria não nascesse a despedida ida ida mas o parto de amor rima tanto com dor há um mês me embrenhei pelo mato do fato do tato queria não achasse o atalho vingativo do espelho compacto do pacto do lacto (a vida tem dessas coisas: parti e parto) 219 DUPLO Para Samantha Reis me molho na cachoeira como o lodo escorrega na pedra me nasço na árvore como o líquen vegeta na era me penteio no espelho como o fio escorrega no tempo me lavo no banheiro como o rio umedece o vento me debato na solidão como o sótão converge porão me elevo na procissão 220 como o vinho na missa tem pão me canto na emoção como tiro sem rumo tem direção me presenteio com a verdade como palavras mesmo sem sentido têm emoção SOBRETUDO AMOR Quando você deixou de me amar, aprendi a perdoar e a pedir perdão. R. Russo dedico este verso ao inverso do amor a situação é a seguinte: amor sem amor ou amor sem amantes sem um cem de emoção de um lado míope grega para não dizer platônica dedico este lado da vida para ser exemplar como novelas de Cervantes medievais sou um homem de vidro quando amo e quando não amado me quebro em mil cacos dedico esta seca sem irrigação sem solução ao desamor dos desamores aquele não vivido pensado tanto que fez chover no inverno mas não: o efeito estufa estufou meu peito dedico este momento para sepultar-te desamor não posso ficar dependurado no tempo 221 como azeitona em Atenas sagrada: preciso amar ser feliz ter verniz no coração ser feliz ter nariz empinado ser feliz ter Paris de cenário mesmo que eu só quero e mereço sobretudo amor realizável DIZ amor provocação intensidade perfeição carinho afeto demonstração mensagens camisinha paixão loucura admiração sensibilidade carícia afeição carta telefonema presente chaveiro fascinação briga ciúme discussão café almoço jantar casamento família motel travesseiro música lágrima encontro palavra mentira correio interurbano celular internet ônibus casinha 222 tenho palavras várias para amor mas prefiro ainda este frio no estômago tenho sentidos vários para amor mas prefiro ainda este mistério sombrio tenho palavras prefiro silêncio UNILADO o inverso do universo é o verso do macrocosmo o cosmo do chimpanzé o zé combina vida com ferida cirurgia com intervenção dor com pavor metáfora é outro lado fora da meta do não poeta o mesmo é o identificado o idem do ente repensado o outro não é outro sou eu mesmo desse lado o pouco é muito muito claramente modificado 223 o nada é algo senão essa palavra seria errado o vesgo não erra vê o mesmo de outro modo amor não é semente senão seria promessa amor não é besteira senão passaria depressa amor não é sofrimento senão o outro lado da curva de cada universo TARDE EM FIM a tarde revoou como passarinho a noite estreitou o laço da solidão não sem destino a vida passa melhor saber ou ficar dúvida... há parêntesis no olhar da vida coloco-me vendo e vejo o tempo descendo a ladeira feito estudante atrasado a tarde não se vai embora fica estacionada para sempre neste limiar tolo do meu olhar queria chuva veio o sol queria a nuvem veio o azul podia metáfora 224 serei metonímia. (o coração está tão pequeno feito folha amassada) COISAS DE AMOR o amor está amassado no lixo da casa -carta de amor! o amor está anotado na agenda de dias -diário de amor! o amor está cantado no vinil arranhado -canção de amor! o amor está envergonhado no espelho de hotel -lugar de amor! o amor está desgastado nas frases sem sinceridade -palavras de amor! o amor está suado na noite de intenso calor -fazer amor! o amor está meditando no verso composto na dor -poema de amor! o amor está por dentro e por fora habita-me os cômodos da alma -ser de amor! 225 SEMPRE HÁ há braço no sábado há noite na vida há vida após há morte há lembrança no domingo há relógio na vida há amor após há sorte há nota na agenda há letra na vida há fraco após há forte há de amor há de esquecer na vida há um dia após outro NOVAS PALAVRAS toque de leve a tecla elétrica toque de forte a tela energética toque de breve a pele amarélica 226 toque de sempre a paixão eternética toque me toque quetoque tóquico QUANDO quando disser eu te amo não que eu te ame mesmo é que errei na frase e tropecei no medo quando fizer amor não me digas que entreguei meu corpo e alma é que frisei o momento errado no desejo quando quiser prazer não digas que talvez ou que amanhã é que preciso mesmo do teu beijo quando vier adeus dizer só abaixe os olhos e enfrente o mundo depois da porta bater quando arrepender voltar não te metas na vida que já passou foste com ela para nunca mais 227 PARTIDA a poeira da porta sacudida a fechadura trocada o segredo morto como eu a noite tem estrelas demais o dia virou noite só um sol para mim a frase tem letras formais o diário ficou vazio sem um vogal de ti saudade da tua mão conduzindo o rumo da minha razão saudade da tua razão confundindo o pouco da minha noção saudade da tua vastidão ampliando o horizonte da minha dimensão saudade da poeira acumulada sob a porta quietinha há tantos anos anotando os passos de nossa relação bateste a porta tão desesperadamente não sobrou nem poeira de nós 228 SARTRE Para o cão existencialista companheiro de poemas e músicas. sonho de cachorro tem saudade do dono ele acorda tantas vezes afim de olhar sonho de cachorro tem carinho do dono ele acorda várias vezes afim de encontrar sonho de cachorro tem comida de dono na vasilha da noite vai procurar o cachorro sonha para vigiar o sono do dono o cachorro sonha para brincar na noite de dono LUANDO voz na garganta eu ouvidos imensos capturando teu som ruídos de amor miríades de desejo memorizando teu jeito 229 gemidos de prazer dispersos na noite imortalizando teu ser quero a lua cheia nos teus olhos pra eu ser sempre são jorge quero a lua meia nos teus óculos para eu ver sempre minha cara metade quero a lua feia crescendo teus pelos para eu ter sempre monte de vênus quero o desejo de perder o medo ser simplesmente eu tu inteiros O! LHOS os olhos abri que vi bem te vi teus olhos me vi bem me vi os olhos perdi 230 parti bem longe me vi nos olhos renasci bem junto de ti os olhos de ti perto de mim unidos assim quero de ti esse sim nunca fim DEVANEIO queria de amar tirar somente a essência basta de momento sem rapidez de tempo cansei de ousar parar a onda no alto ela desce sobre minha vida e me lava tão fundamente tão lacrimejante tão eu mesmo queria de amar somente o fruto mas tem tempo para crescer enraizar minha vida na tua e mesmo sem água devo beber-te tão solenemente tão frouxamente tão nós queria de amar somente o futuro mas o relógio não volta a inocência de quando eu era tão puro ao teu lado que cabíamos num só destino 231 VISÃO olhando teu olho me vejo tão perto me perco , olhando tua boca me ouço tão forte me marco olhando teu coração me sinto tão mesmo me toco olhando tua vida me parto tão junto me uno olhando teu hoje me acho tão eu me vivo olhando de amor me fujo tão fugaz me sou PAPEL EM BRANCO pedaços de vida se juntam para me desmontar 232 me perco neste amontoado tolo desejo de se unificar quero a perfeita imperfeição da busca eterna sem me mumificar preciso tocar minha alma por dentro da vida sem me justificar quero apenas essência neste mar revolto me navegar deixo a rédea da alma solta no tempo me atropelar passo dia e noite pensando como deve ser bom além desacordar escrevo de pena papel como é ruim vida em branco CUPIDO o anel dourado no dedo esquerdo ou de prata no direito casar-se razão e coração caminhar neste longo hiato 233 a noiva não sobe a escadinha com medo de se cansar é que a santa é rica só não cura amor desfeito de tempos em tempos se enlouquece a vida tem dessas coisas ocas cheias de sentido por dentro de lenços em lenços o amor acaba o destino tem dessas coisas loucas cheias de verdade no centro acabam-se os acabamentos a rotina derruba a sensibilidade murcha a margarida do bem-me-quis sobra a pétala do malmequer o encontro verdadeiro é um tiro no escuro cupido é um deus grego nisso especialista CURVADO o caminho afasta os destinos são tantos chãos entre eu e tu -nações o caminho brinca de saudades são tantos pântanos entre eu e eu -poções 234 o caminho disfarça mágoas são tantas lágrimas entre eu e tu -canções o caminho afeta as almas são tantas preces entre eu e eu -perdões o caminho decreta leis são tantas escritas na minha vida -sanções o caminho cheio de retas são tantas curvas na alma ando tanto para rever-te muito pouco para perder-me... LONGE por detrás da montanha azulada a nuvem continua seu ritual chovendo sempre muito pouco encontro eternamente distância e me vou guiado pela imaginação de nuvem compondo o céu interior para achar-te como que de surpresa entre as curvas do amor e me vou fechando os olhos na vertigem 235 as asas da imaginação enormes em busca do longe foi-se o tempo da saudade quero apenas transportar-me para bem perto da tua montanha onde por trás há enormes nuvens chovendo enormes gotas lavando a alma no reencontro SALVAÇÃO preparo o leito dormir sozinho é fútil rolar para o lado não sentir teu peso tua vida roçando meu destino tua pele caminhando meu desejo preparo o peito estar sozinho é inútil falar para dentro não sentir teu ouvido teu significado no rosto entendendo de mim mais que eu preparo o jeito ouvir sozinho é confuso acostumei as notas a ecoarem na tua emoção tua música soa pelas paredes descascando a alma em ruínas o que faço para tirar tua voz do meu sentido de ser 236 a quem recorro para elevar este amor à categoria felicidade a quem interrogo sobre esta insaciedade? o que é tudo isso na minha alma a encher a cisterna do desejo e verter em conta gotas o gozo necessário de cada encontro? o que é isso muito na minha vida repleta de rituais tão lindos e únicos depois de tua língua no céu da minha boca me salvei como não me salvar não há mandamento maior que esse que vivo - amar amar amar (deus é três em um somos três em dois santíssima trindade -amar amar amar) SORRIO eu acordei dentro de mim tirei da cama um novo rito eu acordei no fundo de mim meu próprio rio rio não passa existe com pouca ou muita água de sempre rio não se basta 237 depende do leito e da palavra rio não se cabe transborda quando cheio de si mesmo rio do rio da graça de graça da água molhada da lágrima ou enxurrada rio do obstáculo vão rio não pára quanto mais desafio maior a vitória venço a correnteza inundando-me de mais mais e mais e mais prazer de chegar ao mar GRITO vencer a letargia dessa história contendo o grito presente no pensamento mas ausente na garganta vencer a vitória da passividade controlando a mente e silenciando o grito ausente na garganta vencer de todas as formas a forma equívoca de ser coletivo de ser um ser sem sentir outro ser ausente do outro lado do querer 238 não dá para engolir sapos e sapos e sapos de tanto ano de quietude precisamos cismar a mudança não para regurgitar o tempo o tempo o tempo de tanta história errada precisamos escrever a história de um novo tempo VIDA E VERSO coloquei o dedo na ferida longe da dor saiu sentido é que o verso cura toda frescura é que o cego vê com a alma embotar a frase é engolir seco melhor engolir vida e cuspir poesia é que o verso desnuda toda alma pura é que o vesgo vê de outro ângulo entre a vida e o verso existe apenas o tempo entre a vida e o medo existe apenas o segredo silêncio é punição falar é construção 239 MOMENTO a euforia pelas veias oxigênio é ar para viver em cada momento gás! a alegria se faz taquicardia e pulsa e pulsa e pulsa em cada silêncio vida! a festa interior rende horas adiciono ao tempo meu tempo ser eu mesmo feliz ora! vivo o momento de ser feliz sem me importar a razão sempre diz! vivo o momento de ser eu mesmo unicidade de caminho sempre há... IN-DECISÃO São só dois lados da mesma viagem: o trem que chega é o mesmo trem da partida. M. Nascimento/F. Brant era o medo o medo sempre paralisante de decidir decidir decidir em várias vezes repetidos os sons desta palavra na alma... 240 decidir não decidir... deixar o acaso me guiar por atalhos de existência... mas será possível não ser decisão de decidir... quero parar o tempo num átimo entre ver o amanhã e pensar o agora, suspiro tantas palavras para fugir do relógio que me excita ao momento de decidir... preciso fugir para dentro de mim onde me escondo com meus medos e meus receios mais nobres e de tão nobres são eternos... me vejo vendo o visto e me assusto revolvendo a poeira do caminho anterior... onde estão as pegadas seguras do passado, apagadas entre um amor e outro entre um sonho e uma desilusão estou aqui agora e me vejo vendo o visto e me perturbo com tanta visão de visões que se vêem na minha vida breve e c h e i a d e a l u c i n a ç õ e s i n c o e r e n t e s . . . preciso fugir do medo de ter medo da dor em ter dor do prazer de buscar o prazer da vitória de perder o tempo em divagação sólida e válida...era o medo de me enrolar com o passado antes e o futuro depois e eu lacuna entre o medo e a decisão (ação: substantivo anti-filosófico antônimo de decisão) MEDIDA a voz viajou pelo ar como folha jogada na primavera era eu mesmo quem vivia isso: -eu te amo a voz ecoou pela gruta como eco do tempo na vida era eu mesmo quem ouvia isso: -eu te amo a voz soou pelo alto falante como notícia boa em dia de sol 241 era eu mesmo quem sentia isso: -eu te amo me interrogo das formas a vida entrega sonho e faz amor entre alma e corpo o amor integra toda dicotomia me exclamo das formas a vida dá amor e toma a paz entre as nações interiores o amor é guerra sem vencedor (do amor tomei a medida certa entre falar e ouvir morrer e viver lutar e vencer) TRAÇO tomo a manhã para começar o dia e concebo a tarde como vazia é que a noite parece conclusão da manhã tomada e da tarde vazia e a madrugada é terra de ninguém e nela me sinto desacampado de toda sociedade e nela me vejo vagando solitário pela noite escura sem fim sem traço sem finalidade a chuva caída é mar cheio de sentido a noite vazia é cheia de lua lugares e gentes a lente sem olhos é miopia sem problema impressa no papel da oftalmologia 242 preciso libertar o pensamento da forma oca do dia com fases frases libertação NARIZ o espaço entre minha vida e tua vida era mínimo o meu nariz no teu nariz acabaram-se as fronteiras entre os mundos quando quem te ama está na mira dos olhos na ponta do nariz o mundo perde a distância foi assim: teu nariz no meu nariz e razão e coração juntos não tive dúvida: amor é proximidade FLORESTA quando cai a tarde na floresta fecha-se um ciclo da vida durmo cansado acordo reflorestado quando o sol se põe na floresta o café na garrafa o pão sobre a mesa anunciam a hora de conversar na floresta o encanto dos cães passeando pelas ruas longas desembocando na contorno 243 é uma magia de bom viver é saudação à vida no fim de tarde da floresta pouco muito pouco me resta: desligar preguiçosamente da vida e ouvir as árvores ninando o sono dos moradores (quando a chuva cai na floresta os pássaros cantam em festa) CERTEZA medo de virar a esquina e perder teu sentido medo de revirar a memória e não encontrar teu jeito tenho medo de perder tua vida de vista tão distante que não saberia dizer se somos iguais tenho medo de confundir tua voz no meio da noite é que ando meio atribulado para não dizer solitário mesmo com teu amor na minha vida tenho medo de apagar os sonhos do futuro da lembrança acordar refeito de um vulto chamado felicidade é que os vultos felizes se apagam tão docemente dos dias... tenho pena de esquecer de nós dois pelas manhãs de Belo Horizonte ou pelas tardes da Pampulha afogando as luzes da emoção cultivei as flores da paixão nos canteiros da ilusão quero não colher o fruto da existência: essa cena se repete – uma vida longe da outra aos poucos e para sempre 244 a existência dilui a paixão em gotas homeopáticas aprende-se a ingerir a tristeza com facilidade (não há certeza de que não te amo há certeza de que me desconheço amando) GENTE reviro a volta reviravolta (perco-me na ida ou na volta?) reviro a vida revivida (perco-me na volta ou na ida?) revivo a volta revolta (perco-me na vida ou na sua saída?) revivo a saída retraída parêntesis revelam as entrelinhas da mente da gente 245 VOLTA, TEMPO quem pode voltar o tempo e refazer os segundos de cada hora? quem me deras o tempo todo de volta aquele mesmo: tu à porta pura ingenuidade de braços abertos de coração aberto para me amar pudera eu voltar ao tempo da infância aquele mesmo: descompromisso com o relógio brincadeira de dia sono lento de noite e de noite todo o tempo para imaginar o dia seguinte quem pode voltar o tempo e redizer as frases com exatidão? a juventude não é um sonho ela se foi tão cheia de conflitos que hoje vivo disso herança dos mal tratos da maturidade não importa: o tempo se vai para todo o sempre é belo ver-se passado como o dia de ontem com sua unicidade eu me fui para o calendário da vida sem tristeza não há somente alegria na vida eu posso afirmar: cresce-se na dor (na alegria se mede o crescimento interior) me vou hoje para a eternidade porque me faço eterno no sentir o mundo todo meu que me orgulho de ser eu só o dono de tudo que me cerca basta fechar os olhos e o mundo em volta desaparece 246 só eu permaneço pensando para espanto de mim mesmo não opero nenhum milagre em existir apenas sei que a vida é algo maior que voltar o tempo não há tempo para tentar voltar as horas é perder o tempo refazer o tempo de ontem APESAR DA NOITE a vida não pára no olhar a nuvem sobre a cabeça nem se ressente da gente olhando para a frente com melancolia a vida se basta a si mesma como o dia de ontem impresso no jornal de hoje sobre a mesa suja de poeira eu me guio por entre o tempo de ser alguma coisa na vida que me é dada entre os objetos colocados me vou percorrendo por dentro o longo caminho dado por fora como o suor é calor do corpo quente por dentro me basta este cenário de tempo-passado-tempo-presente me basto dentro do tempo da vida bastante a si mesma eu me vou enlouquecido pela hora de planejar as próximas horas como se isso fosse muito e é muito pouco para quem precisa viver eu não consigo me imaginar fora do lugar que habitam meus sonhos porque sorrio e sofro deste abismo chamado destino – mesmo utopia, mesmo real é que não adianta tropeçar nas horas como se fossem um acidente de percurso o destino caminha levando cada segundo para o fundo do poço e não basta fazer de conta que fazer de conta é viver não é assim: preciso fazer de conta que vivo e assim viver livre 247 quis sempre ser livre apesar da noite quis sempre ter saída apesar do dia minha liberdade entra pela minha garganta como o ar desta manhã fria não suporto esse cenário- toda liberdade será castigada não mereço este rompante: a dor cavalga para todos os lados de mim mesmo me perco me acho me escrevo me relato – isso parece tão levianamente chato quis sempre ser livre apesar da vida ENGUIÇO lá fora estão todos as cores o azul do céu o verde do jardim e muitas flores de cada tom lá fora encontro todas as dores de amar de amar muito de amar sem resposta lá do outro lado da rua o carro prata a mulher nervosa o cachorro rosnando para quem passa lá do outro lado do bairro há tantos destinos se cruzando se perdendo 248 tudo não passa de ilusão como um carro desgovernado os olhos captam rumores do interior meu interior é vasto meu distrito é único meu sonho é esquisito só permanece meu o que de mim saiu e voltou e se alojou aqui no mais é somente isso um enguiço completo INGENUIDADE a ingenuidade corre lenta pela vida quisera flor para nunca ser semente de discórdia ingenuidade ainda bate à porta da emoção quisera carta selada nunca carta a escrever rompimento o dia é ingênuo mas mutável sou tão ingênuo na tristeza a noite se faz certeza sou tão ingênuo na beleza não posso voltar os olhos para o lado acabou-se de desmoronar o último tronco da árvore da infantilidade espiritual 249 ILUSÃO os olhos cerrados o dia se vai estados a alma fechada a hora se foi guardada o sentimento morreu na entrelinha da linha com ele eu todo o pesar da hora incomoda fartamente agora estou amordaçado com um grito na garganta sufocado preciso dessa hora vaga entre uma ilusão e outra da minha história CURVA DA TRISTEZA a curva da lágrima é sem sinalização por isso me perco aflição sair para onde de alma lavada se a lágrima suja 250 a vida passada? fugir para onde de alma batizada se a lágrima impura é dissimulada? a curva da lágrima é sem retorno por isso choro sempre para ela não mais voltar mas ela sabe o caminho a percorrer sai da alma a sofrer... DIAS DE VAZIO a divisão me consome entre ontem e hoje eu homem atravesso as ruas luzes me fazem eu sombra viro para o lado a lua no céu eu poema é assim triste isso vazio este momento de solidão eu razão é assim fútil isso: fundo este lago onde me vejo eu vazão 251 tenho horas de ser vazio vagando por aí eu caminho tenho nódoas na alma desde muito cedo a mágoa eu destino vejo me vendo isso tudo luto por dentro árduas batalhas eu desafio é assim mesmo: vago amargo sabor de ontem eu existência VAZIO quando acabar este verso seja melhor sepultar o verbo quando acabar este texto seja melhor esvaziar o cesto quando fechar a palavra seja melhor amparar o poeta vazio do que preenchia seu interior vazio 252 O CHEIRO SEM CHEIRO DA ROSA SOBRE A MESA/2008 CHEIRO o cheiro sem cheiro d[a rosa sobre a mesa] é cena dantesca fala de todas as cores menos da essência da rosa cheiro sem cheiro do morto sobre o altar espera o cheiro com cheiro da cova o cheiro sem cheiro da vida retira da vida a essência o perfume é propriedade dos corpos poesia sem cheiro cheiro sem poesia palavra sem consciência consciência sem corpo o ambíguo é uma postura diante do cheiro da vida COR o azul a borboleta o amarelo o sol nomes e coisas paus e pedras canoas cais 253 o nublado que cor é essa? ausência de brado da cor? o verde a mata o vermelho a flor nomes e seres existência e essência rosa da rosa o escuro que cor é essa? ausência de cura da luz? FRIEZA esse momento sem futuro a dor de recomeçar por fora o que antes era tão lindo por dentro me deixe me ame me abandone mas não me faca saber da dor mais que o próprio amor essa lápide na alma frieza ao final do dia o amor tem caminhos estranhos viva a morte do amor vivacidade querer do tempo a eternidade 254 TRANCOSO trancar a alma dentro da nuvem passando fechar o corpo dentro da onda batendo me vou guiado pelo barulho dos pés na areia indiscreta daquele mar fechar os ouvidos para ouvir a pulsação do mangue sentir na alma a lama lavando o pecado um dia de sol ali é um mistério de viver queria o laço que me prende à terra daria de mim o melhor para morar nesse horizonte mas só tenho minha dor mineira para cantar a beleza baiana RÉDEA deixo a rédea da alma solta no tempo vou cavalgar liberto AZUL a bola azul sobre a onda azul jogando equilíbrio na retina azul me tornou estático a bola azul respingada de água salgada boiando na crista da onda da tarde me tomou de assalto a onda azul de moléculas multicoloridas sob o azul amarelo da Bahia me roubou o tempo 255 a retina azul dos olhos no azul da onda na bola azul semelhanças demais ONDA o caldo é medo antes e depois sensação de estar vivo é muito - a onda o peso o chão sem sentido o ar com tropeço o caldo é medo agora e suspiro de alívio depois é cruel – a onda pressão a gelatina movendo-se contra a parede do pulmão o caldo é fuga da praia dentro do mar somos renascidos das águas INTERROGAÇÃO porque vai dia e vem dia e Serro parece murchar? onde estão os rios caudalosos para fazer o novo germinar? por que Ventura é de Santo Antônio 256 e não do Serro? por que Francinha subiu para o céu em Monlevade e não no Morro do Paiol? porque Eremita lançou só um livro e não vários em toda a vida? por que Dario só fez memória única e não todos os textos que podia editar? porque as águias que um dia nasceram por lá não puderam ficar? porque até o hino que era belo virou serenata vulgar? por que milton cantou itamarandiba e não cantou Serro? por que o Clube da Esquina foi em Santa Tereza e não na Santa Rita? porque a novidade vem da periferia e não do centro histórico espetacular? porque Milho Verde e Gonçalo para poder se vangloriar? queremos o melhor e o melhor não pode ser demais para quem tem asas nos pés BETH SE CASOU ela viu a vida com outros olhos as lentes da mente se foram e o coração se abriu para a alegria da união ela se viu unida 257 sem separação ela quis uma vida sinceramente elo ela se permitiu criar laços mais fortes a força da vida é marca de cada um em chão de dias de horas de eternidade Beth resolveu se casar e calar a solidão de dentro gritando amor por fora PAU PEDRA por isso por aquilo por trás por frente me vingo e viro me choro me sorrio por tudo por nada por mim por ti me visto me saio me suo me sinto 258 por esse por aquela por vinte por trinta me passo me levo me basto me vou (não sei dizer o nome da rosa sem o espinho no caule da mesma rosa rosa rosae rosarum rosinha não sei dizer o nome da flor murcha sobre meu peito arfante rosário rita conceição do carmo tantas mães olhando do alto nossa baixeza de vocabulário) PALAVRA a palavra pingou na roupa o azul da frase o vermelho da crase a palavra respingou no chão o tédio da vírgula o exagero da exclamação a palavra manchou o cobertor a dor da frase morta a cruz do período longo a palavra deixou uma marca no ouvido 259 PÁGINA parece: o vidro embaçado mas esquece sou eu de novo parece: o choro na face mas esquece era eu muito moço parece: a tristeza na alma mas esquece era eu sem calma parece: a pergunta sem resposta mas esquece sou eu nessa página torta HÁ DIAS há dias tão curiosos de ser uma tristeza alegre por fora como uma manga quase madura fazendo hora de ser derrubada pelo vento da noite ou pela não do menino da rua de cima cheio de habilidade há dias tão profundos a gente acorda cheio de ideias prontas e eu não era assim ontem essas frases prontas essas vírgulas todas bem articuladas tenho resposta para tudo mas só havia questões a resolver que síntese estranha é esse sentimento bem resolvido há dias de acordar tão tarde e não faz falta para ninguém nem para mim mesmo por que não faz diferença estar dormindo ou acordado se tudo é apenas pensamento bailando apenas dentro de mim e não para ninguém em absoluto há dias frios e dias quentes e dias quentes por dentro e gelados por fora e outros gelados por dentro e quentes por fora e em outros pareço-me mais estranho são dias de frio por fora e frio por dentro e não consigo desligar esse ar condicionado há dias de muito furor de viver e dias de não viver para evitar qualquer furor ouço muito mais mas às vezes me calo para falar para mim depois isso é o livro dos dias avançando para as páginas finais há dias de sabedoria milenar mas nos dias de burrice existencial eu me perco por perder porque sei que no final do dia eu vou me achar de novo diferente divinamente diferente e essencialmente eu mesmo 260 TAO tão junto de si tão distante de ti não há resposta apenas o vento na janela tão dentro de mim tão fora de si não há aposta apenas a música no ouvido tão crente aqui tão morto ali não há proposta apenas a solidão no peito EFEMERIDADES Para Eduardo, o João efêmero como esse momento que passa escorre se vai se foi volátil como essa propriedade do ontem dentro de mim hoje volúvel querendo querer o mais querido pensamento e sentimento seria inútil me vou percebendo a luz do dia como se dela sobrevivesse agora mas agora é muito para perceber o sol é noite no meu peito e meu peito sou todo eu efêmero como o fermento que deixa se assar no pão e some volátil como o gás que respiro e já me fez viver e morre volúvel como a percepção fraca desse som que já vai longe eu estou parado diante de mim e todo o universo gira comovido 261 pois na sombra do universo grande feito um todo poderoso meu querer se faz a poderosa sabedoria única a me consolar agora essa agora é hora de saber-se poupando energia para ser mais efêmero volátil volúvel ESSE VENTO esse vento esse vento esse vento me leva para dentro desse nó na garganta esse vento esse vento me rodopia por todo o universo e o mundo meu se torna um mundo sem som para o ar balançando a realidade que é muita que é dura que sou eu nesse vento sem cachoeira sem ouvido para ouvir sem cabeça para filosofar sobre esse vento esse vento me comove me remexe me reinventa por que busco a tempestade mas a calmaria da brisa é muito graciosa é vento calmo demais e vento calmo demais é menos sofrimento posto que alma é suspiro espírito é sopro divino e eternidade é esse vento equilibrado dentro do todo eu eu vento ventania queira apenas agora nesse momento estar sem esse sopro da vida dentro e fora de mim e o tempo esse redemoinho de ontem e hoje e amanhã me apavora por que vento bom é vento passado vento bom é vento dissipado e assim me vou dissipando a realidade no vento que me carrega por que o diabo está no calor sem vento do sofrimento preocupado demais com o vento da paz que me arde por dentro sem fazer chama apenas tentando remediar esse início de turbulência vento vento esse vento esse vento esse vento me leva para dentro desse nó na garganta acordei... nossa! me vi vivendo acordando esse tempo mas que tempo louco a loucura das horas sumidas na ampulheta das vidas eu acordei para dentro de mim e o de fora se libertou de mim eu me fui para onde? 262 de relance me vejo agora e fico perplexo para onde me vou sem minha permissão não me permitiria perder a mim mesmo se fosse assim não deixaria acontecer o acontecido acordei... nossa levantei do túmulo da antiguidade feito múmia então esquecida me dispus a aprender e o aprendizado se deu com um mestre severo, rigoroso e cheio de outros adjetivos em vírgulas cercado, um mestre versátil, duro, reação, ação, cármico eu me acordei pela voz da vida e a vida tem um som de sereia e o mar me afogou em lágrimas por que trazemos dentro dos canais lacrimais o gosto das ondas do mar que de tempos em tempos inundam como tsunami nossa cara-praia essa mesma cara que o espelho reflete e desconheço (serei eu tipografado em miríades desconexas nessa tela narcísica?) eu me acordei vazio por dentro e por fora por que dentro e fora são a mesma coisa e o mesmo pensamento sobre a realidade e não há em cima e em baixo há tudo num todo real de observação possível pela parte do todo que sou eu esse mesmo eu dormindo acordando sendo algo diferente (o sono deixa o corpo lento e a boca amarga deixa a alma leve e a razão maluquecida) eu me acordei com essa nova mania de perguntar porque como o que... como se houvesse resposta possível a não ser uma mágica chamada pergunta não há dúvida maior que a pergunta feita por que toda pergunta traz um universo vazio cheio de possibilidades e eu mergulhei nesse fundo oceano da dúvida para achar um corpo inerte de frente para si mesmo eu me acordei de dentro pra fora mas num movimento de rastelar para dentro o mal feito dentro dentro feito dentro feito de tanto erro quero a verdade mas a verdade está cheia de provisoriedade que também é um erro prestes a ser desfeito a gente é assim uma incabada tela na parede de um pintor anônimo retraçando seus 263 projetos coloridos a gente sonha tanto colorido e acorda em preto e branco e cinza e pranto eu me acordei para essa vida que é só minha e minha e minha a vida é uma contagem progressiva ou se marcamos a hora de voltar é regressiva para onde vamos depois do bolor das células putrefatas a sete palmos? Para onde vamos com nossas dúvidas e com nossa incapacidade de mudar um hábito pequeno que vira e mexe mexe e vira acorda com a gente apegado a cada célula a cada molécula da nossa pobre matéria acordei pequeno feito micromolécula mas imenso em amor acordei miúdo feito um surdo mudo mas de mente repleta de desejos acordei chato querendo suando rompendo com meu medo cansei de ter medo da vida e quero voltar à vida acordada faço um acordo comigo mesmo que volte a sonhar mais depois de cada dia acordado POR CAUSA Para Samantha No medo do Serro não ser mais o que era antes. por causa das palavras me fiz existência por causa da existência me fiz o que sou essas palavras meio ditas meio pensadas no fim de algum período semanticamente tenso tenso tenso tenso tenso repenso e reexisto e redigo e reescrevo por causa das palavras me fiz verbo e o verbo habitou dentro de mim e o verbo se faz poesia e o verbo se faz novas palavras e o verbo se faz e desfaz fazendo novas palavras que calam as antigas palavras do início da existência tensa tensa tensa tensa tensa 264 por causa das palavras repito o medo repito a existência repito meu nome MEU NOME é essa palavra encarnada que dizem ser eu mesmo quando me ouço sendo falado por outro faça-se a luz faça-se a gênese de novas palavras novos sentidos novas retensões tensões tensões tensões tensões tensões releio a ficha das minhas aparições no mundo é meu passado pesando sobre os ombros sobre o CORPO que se move em gravidade pelo planeta sou lunático vendo a lua sou estrelático sonhando pisar nas estrelas essas luzes do nascer do dia em ressaca em Milho Verde preciso distender tender entender prescrever precaver querer por causa das palavras sou esses passos passando pelas ruas do Serro a mais misteriosa cidade do meu mundo por que ali nasci e não me nasço de novo por que não me reconheço estando ali por causa das palavras suadas nas noites nas infinitas noites da decomposição de ser serrano de ser essa tensão essa pretensão de ser melhor (por causa das palavras adormeci sassá e acordei raposão) ME PONHO me ponho no meio do problema e tenho medo do problema estar fora de mim o que vai se tornar um problema externo e se fosse interno seria mais fácil de entender mas como é extra-epidérmico não posso resolver acho que o mundo acordou muito complicado e eu não faço parte desse mundo externo que não muda mesmo eu mudando de dentro para fora de dentro para o mundo externo solução de mundo é palavra nova de dentro para fora de fora para dentro diálogo entre luz e sombra 265 ESSE SERRO Para Rogério Mota Pereira Hay ombres que luchan um dia e son buenos Hay otros que luchan um año y son mejores Hay quienes lucham muchos años e son muy buenos Esos son los imprescindibles. Bertold Brecht nas calçadas pisei fundo da lama saiu o sentido nas ladeiras escorreu o medo esse esse excessivo – quando surge o esse significa que não há apenas um substantivo há vários e vários tem esse esse esse de plural Serro tem esse no início e não cabe plural cabe pau e pedra cabe construção cabe beleza cabe muito sem excesso sem esse excesso de esses presente na fala de quem diz da cidade que me fez desconstruir meus esses e edificar meu esse inicial (SER) Serro tem esse no início por que é único é singular mesmo sendo decadente e sua decadência (sem esse) é o ciclo da renovação chegando ao ápice o fundo do poço tem lama feito a ladeira escorrendo chuva feito eu escorrendo medo do que vi nas minhas últimas férias (com todos os esses confusos que consegui falar) tenho medo desse medo expresso nas frases da madrugada chuvosa onde está essa cidade sem necessidades (com esse) de ser melhor? (não me caibo em mim quando falo desses esses) o ciclo vai chegar ao fim sou otimista o ciclo vai passar por mim por ti vai tenhamos esperança tenhamos sensibilidade tenhamos dignidade o ciclo vai passar e vai surgir um novo significado para o esse no início maiúsculo como os outeiros vigilantes que observam o tempo passando nas ladeiras com lama que o ciclo se abra para o resgate o singular mesmo que isso signifique incorporar mais um esse diamantis mineirus magrellus rogai por nós! toninhos maguinhos joãos surubins rogai por nós! venturas francinhas eremitas rogai por nós! 266 É... explosão variedade sou eu agora vivo multidão pluralidade sou eu agora único percussão musicalidade sou eu agora prático chuviscação pluviosidade sou eu agora poético SIM não me confundo há somente esse hora não me retorno há apenas contramão não me converte santo por santo sou antão não me ocasiono semeio apenas essa prova 267 RELÓGIO DA ALMA na hora da volta eu voltarei mas me pede gosto desse sorriso sem brilho buscando mais brilho depois do perdão na hora da partida vou me lembrar mas pede gosto dessa carta fosca implorando o retorno depois do verão na hora do novo amor vou me apiedar mas pede gosto desse sinismo maluco cogitando se houve o esquecimento de fato na hora da dor solitária do antigo amor vou chorar mas pede gosto dessa memória do prazer matutando o relógio da alma AUTOCANIBALISMO não sinto nada quando amo apenas amo e sinto pouco em volta por que a volta é um longo círculo em torno de si mesmo na eterna roda da fortuna da vida e a vida é muito para apenas uma volta são voltas que encenam voltas aos palcos do corpo e vários corpos encaram a encarnação desse ser em volta com seus próprios amores amor que será? que será? quê? Não posso pensar no amor amando amando amando é muito voltar a si mesmo dentro do amor e fora dele nada sou apenas esse dragão engolindo a própria calda e há uma variedade imensa nesse autocanibalismo autoantropofagia preciso entender o que é o amor sei apenas que é essa comichão nos pés pode ser indício de algo eterno chegando tomando posse do corpo finito com alma eterna é um mistério esse ouroboros do tempo 268 DEDO tocado por seus dedos sou mais nuvem brotada da umidade dos dias passageiros do tempo embriagado por suas palavras sou mais gota a gota no alambique litros de lágrimas do ser fulminado por seus olhos sou mais raio partido no céu energia da vida do todo IMPÉRIO DO AMOR não sei dizer como foi aquele encontro mas tento pois já tentei tanto descobrir o sentido dessa vida era uma tarde de um dia absurdamente outro por que os demais haviam sido iguais não sei dizer por que houve encontro mas lembro pois já guardei cada segundo desde sua chegada era tarde na alma e o dia se anunciava outro por que os anteriores haviam sido mortais sua luz eu vi dentro de mim refletida não a luz das sombras descobertas mas da sombra encoberta que um dia brilhou revelada em seu segredo sua luz me invadiu por dentro porque por fora já havia ocorrido tantos enganos por anos e anos 269 e não pude esconder a intrigante memória dos tempos no sorriso bobo de quem se vê amando novamente eu era um pouco de todas as vidas passadas e por todo passado me fiz todo inteiro ali me pus de pé de pronto de inteireza feito por que a inteireza é apenas um lapso havia me dividido tanto por amar sozinho me juntei ali por amar ao mesmo tempo porque o tempo de outros amores foram muito diferentes tempo de enganos variados de variada conjuração do peito esse mesmo que bate agora sentido por tua ida e vinda na minha vida tua chegada foi uma conjuração cósmica uma confusão cármica uma lesão por arma uma dor de prazer por dentro tua chegada foi o sonho realizado e um poema fraturado em versos dissonantes tantos versos meus para cantar isso vejo agora todo o horizonte abarca nosso encontro todo encontro é apenas um insignificante delírio de duas almas paralisadas na contemplação do lago pois Narciso vive procurando seu reflexo para se afogar de amor por si mesmo amar faz bem pra si por que esse si 270 é si mesmo completo num terceiro amar teu olhar tua fala tua bobagem são insignificâncias que as praias contarão um dia há registros de nossos pés em tantas areias e a natureza sabe quem fomos ali a natureza sabe de cada momento sobre as ondas de cada momento sob as árvores de cada grito por sob a chuva ah, quanta saudade de amar assim! hoje sei do encontro registrado em cada célula das diversas células que ainda virão com as vidas por que se chegastes agora agora é todo realizado mas sei e sei profundamente que o tempo traz e leva feito chuva e sol deserto e chuva terremoto e vulcão mas sei das eternas conquistas a fazer das bandeiras que ainda irão se levantar dentro do coração para hastear a memória desses amores tua voz é essa imposição de atenção amar é essa dor pecadora feita conversão dessas conversões de judeu para cristão de cristão para muçulmano tua voz é um delírio de obediência um silenciar a vontade de dentro 271 para fazer duas vontades ao mesmo tempo toma meu coração que ele é teu eu te pertenço por que te amo te amo por que me pertenço e me dou por que sou todo meu e esse momento me dá a certeza do ontem quando fui perdido pelas ruas procurar teu coração aberto e minha alma eterna subjugada pela ordem de amar toma meu coração que dou de espontânea vontade pois o império do amor é mais forte que o império da verdade por que o império da poesia é mais vasto que o monastério da filosofia CONSUMO fui me enfileirando na calçada quando me vi já meio não visto estava como todos: igual fui me voltando para os lados as calçadas cheias de vitrines já meio não visto estava como todos: consumidor eu me vou levado pelo tempo pela imagem e pelos sons pela fila de pessoas em busca de ser verdade em meio à mediocridade 272 ANIMI o vento na rua me chacoalha por dentro vejo muitos eus na rua e o vento é só um dado a mais na minha pequena realidade a ilusão de ser é maior que o vento lá fora e dentro de mim os temporais de consciência são fortes furacões macabros varrem o ontem distensio animi distensio animi distensio animi UM ANO eu me vou girando como o relógio embriagado de tempo SAUDADE é uma saudade esse som no fundo da alma ... som de passado passando como saci pererê pela mata ouço passos cruzando pernas dentro da alma varro o ontem e sinto o barulho dos ventos da escadaria alta uma cidade encantada lá embaixo as vozes de instrumentos musicais ecoando pelas ladeiras esse som de tambor em dia de festa de terços e rosários latente possante e ausente agora nesse ínfimo tempo em som exceto isso: o vazio da percepção imediata ouço o som da caneta beliscando o papel noite adentro no meio do vale e das árvores: jabuticabas, laranjas, pêssegos e de gambás colhendo o fruto no silêncio da madrugada 273 ouço minhas vozes gritando atrás de bolas, papagaios e brincadeiras eu era tão feliz naqueles dias sem futuro e a eterna necessidade de ser tempo adulto vasculho minhas gavetas canetas esquecidas tempo ido entulho o lixo da memória objetos esmaecidos tempo tido o silêncio da saudade é uma rosa se abrindo longe dos meus olhos SUBO DESÇO subo desço que descer e subir é esse? perco acho que perder e achar é esse? vejo não vejo que tipo de ver é meu vendo? que tipo de tipo é meu tipo? e seu tipo é um tipo daqueles ou daqueles nãotipos típicos de tamanha aversão atípica? queria ver na lágrima que cai a diferença de outra lágrima que cai mas não é a lágrima é o rosto que funde o mundo com o seu sentido a sua pele é o fundo da alma para a existência da lágrima brilhante correndo para a lei inevitável da gravidade newtoniana achei um sentido para esse despertar enaltecido que é a vida confusão entre o ido e o por vir vivo numa demência de sentidos que me acho despido de um tipo próprio, requisito básico de ser algo que se é sou eu mesmo agora, demente diante da tecla que me diz de mim me diz do agora sendo eu mesmo subo desço as escadarias da minha alma para achar no fundo do poço o posso posso ser o tipo mais ínfimo de tipo mas serei sempre um tipo propriamente eu 274 HORÁRIO tem horas de morrer e pôr-se a decompor no tempo tem horas de se derreter por dentro como imagem perfeita por fora tem horas de ser grande na vida e medíocre no quarto tem horas que dói ser a máscara não a frase bela ensaiada tem horas que o silêncio fala alto impondo-se cantos no ser tem horas de imortalidade e medo tem horas de finitude e esperança tem horas de ser muito e dormir sozinho tem horas de ser amor e não conseguir conviver tem horas de correr atrás e querer ter você nessas horas me lembro do ponto de partida levando seu corpo para longe de mim 275 SI sair de si para outra margem de mim de balsa de canoa no vento na noite sair de si para outro lado do lado na planta no desenho no tempo no hoje fugir de mim para algo de si distante da música para o silêncio da luta para vazio amar é estar onde se me perco voltar quando? amar é tráfego intenso de nós na alma? NOVEMBRO vou construir um telhado de quatro águas o meu coração é frágil pode não suportar a tempestade 276 VOLTA quero a vida de volta preciso de ar de amar de ser quero minha vida de volta longe de agora essa dor de se dar quero minha vida de volta desse delírio de juntar-se quero distância SALTO eu quero dar um salto mas sem asas não posso sair para o outro lado da vida FIM quando seu sorriso não disser nada mais que o sorriso deixa eu me calar e sentir o tempo nos levando morreu a paixão procuro só encanto quando sua presença interferir na minha alegria solta as rédeas da minha vida liberta essa alma da gaiola do destino 277 quando eu me cansar de correr atrás de seu sentido permita-me escrever muitos versos satânicos sobre as uniões eternas e divinas quero somente juízo de paz quando eu me cansar de sua voz solte as amarras dos meus lábios preciso falar que já chegou o dia do fim de nossos laços SONO não acordei: fiquei parado no sonho do sono buscando esquecer o sonhado mas veio a memória lembrando o que não era para ser exato É QUEM DIRIA... é quem diria... no fundo do fundo há um profundo estar só esse vento de dentro para fora de dentro para o tempo de dentro para o passado esse vento me leva me invade me varre me arremessa no chão me eleva nas nuvens da saudade esse sopro é o tempo marcando a pele do espírito é o não-dito dito de outra forma negar seu amor é negar o tempo negar ao vento a total invisibilidade é deixar-se ser ele mesmo na copa das árvores ELEGIA DA MEMÓRIA IMORTAL eu vou pela vida como quem vai à venda subindo o morro do Botavira a mãe aguardando o macarrão para o almoço mas a rua é sempre tão fascinante com acidente carro batido no poste no meio da cidade 278 eu vou pela vida sem levar o macarrão para a mãe pois a pressa é inimiga da poesia e aprendi desde cedo a retardar o prazer de casa contemplando a rua extensa da emoção do mundo eu vou pela vida derrapando rua abaixo aquela de terra vermelha com antibiótico próprio e sem os vermes de ciência contemporânea às vezes de patinete de rolimã da oficina de Nadir mas vou com pressa para chegar até à Igreja de Santa Rita eu vou cruzando o tempo da infância de um morro a outra morte de uma santa a outro santo de uma estação chuvosa a outra fria e sem graça de pêssego no quintal a manga no Patronato com pedrasabão polida no fundo do rio eu vou dissipando a névoa da madrugada no alto da Santa Rita por que o relógio que me acompanha até hoje toca fundo na alma e conta meus minutos sobre a terra que agora asfalto impede os antibióticos naturais de agir e me perco com dores de cotovelo eu vou parando de bar em bar para ver as sinucas as cervejas as cachaças para os santos e vou me percebendo fora da história dos transeuntes da rodoviária porque a vida é feito rodoviária com farnesis gritando a hora da partida e me fui e até hoje sou ido eu vou para dentro de mim achar essa porção mágica chamada elixir da eterna juventude ou elixir da eterna memória que não se apaga de uma infância emocionante mas sem explicação eu vou para dentro de mim para descobrir as imagens de alguém que não existe mais mas que adoraria viver novamente a inocência da terra vermelha com antibiótico com a experiência que a vida já deu ralando o joelho nas estradas tortuosas da existência avisem minha mãe que o macarrão vai demorar pois peguei a patinete e fui atrás do cometa Halley que passou ontem e me deixou assustado como o eclipse da infância na churrascaria de 279 Nondas essa cidade é mesmo uma terra de loucos apelidados por seus piores defeitos avisem minha mãe que o macarrão vai faltar na panela por que resolvi ir atrás da banda de música com seus dobrados e pratos rachados e homens de pernas tortas e sapateiros e mulatos e muita fé de que a procissão sem música agrada menos ao santo avisem minha mãe que o macarrão de Duduca aquele mesmo de papel azul e muito barato preços populares vai faltar no almoço pois resolvi dar uma olhada no relojoeiro consertador do relógio da santa rita e me perdi nas engrenagens estrangeiras avisem minha mãe usem a voz de Júlia ou Magda no alto falante com música que irritou o argentino petit e o fez pintar mandalas espiritualizantes e gerar um filho artista para acalmar sua alma psicodélica pois não volto não volto não volto minha mãe deve saber que depois do morro do paiol a vida é outra e depois daquelas curvas eu nunca mais seria o mesmo que um dia saiu de casa para comprar macarrão na venda de Duduca viu o cometa Halley e nunca mais voltou a vida sem infância seria muito chata mas a maturidade sem a terra vermelha com antibiótico natural é uma incredulidade (passem um e-mail para minha mãe... o tempo já passou demais) DANÇA DE FITA a efêmera alegria pena sobre a testa do catopê da festa do rosário voa voa voa pena leve feito vida breve 280 a eterna saudade batida de flecha de caboclo no barulho da multidão estala estala estala flecha de madeira feito vida matreira a mágica temporalidade luta de mentira entre marujos na praça velha tine tine tine espada dos mares feito relógio de santa rita nos ares FORÇA a nuvem não chove escorre a chuva não cai morre a planta não brota sofre a flor não cheira descolore ALTA MAGIA a água suja do rio o rio sujo de água dentro e fora? a vida limpa de dia o dia limpo da vida cima e baixo? a morte caduca de noite a noite caduca de morte longe e perto? 281 LOUCURA para o lado para dentro para fora onde fico melhor agora? para silêncio para outro para mim onde fico melhor assim? para atitude para indecisão para certeza onde tenho maior beleza? para trabalho para sono para vigília onde tenho maior insígnia? para banho para escrita para leitura onde pego minha loucura? REZO DOIS TERÇOS rezo dois terços no rosário para contemplar o inteiro 282 PALAVRA a palavra dita bendita caprichada caminha de boca para ouvido sem curva ou onda ou partícula ou partícula ou onda toda palavra caminha dentro a dentro ou dentro para fora ou fora para dentro mas persegue sempre infinitamente uma conexão a palavra explícita implícita desdenhada ensina sobre a carne que habita o significado cérebro mente espírito ex maquina que somos sem a palavra que encontro somo sem o verbo o verbo se fez carne o verbo se fez palavra o verbo fez ligar ações é propriedade do verbo SOU EU onde passa essa esfera mágica sou eu girando pelo mundo afora onde passa essa loucura cósmica sou eu pirando pelo mundo agora onde passa essa alegria cármica sou eu sorrindo da caixa de Pandora onde passa essa inocência bélica sou eu disparando ais pra quem me adora 283 PONTEIRO ADIANTADO adiantou pouco o ponteiro marcando as horas antes de ser a hora certa adiantou quase nada esse sorriso meia boca evitando a confissão evidente seu amor me sobra seu amor me transpira contar as horas para trás tentei mas nem permaneci no devaneio contar as horas só vale se o amor é para o futuro seu amor me cobra seu amor de inspira LADEIRA a gota rolou pelo rosto chuva suor lágrima pegou rapidez pela ladeira parou. a gota deixou uma avalanche neve nevoeiro nevasca pegou escuridão no tempo fechou AMOR estou no meio mim mesmo sem poder sair pela tangente por que a tangente é distante demais para ser percorrida em uma música fuga em dó menor fuga em dó maior não sei bem das notas que retratam esse momento sei que ferem e sei da dor sem bússola na mão sem bússola no peito sem bússola na alma vou perdido entre a solidez do ontem e embriaguez do amanhã e esse amanhã que 284 não chega na noite vesga sem direção sem armação sem coloração sem esse aumentativo dilatador das veias das artérias chamado amor o mesmo o mesmo o mesmo mostrador de direções tantas estou no meio do fim mesmo sem querer sair daqui posto que direção é coisa menor para quem perdido prefere se encontrar posto que o poste é muito denso para todo o tempo e todo o tempo é uma viagem para muitas almas várias que não eu agora perdido sem direção sem tangente sem batente sem essa incandescente vontade de superar o desequilíbrio que o não-norte me dá mas amanhã amanhã sim amanhã será um novo dia trazido pela esperança que chega chega e enche o coração de pressão a eterna pressão que de vez em quando eu reconheço como amor rompe as artérias cumpre seu papel desfrute seu ser em mim feito prazer vem amor me chove me seca me infesta vem vem vou vou CONTAS a barraca pronta para o cachorro-quente a poeira vermelha sobre o pé-de-moleque metros e metros de gente feia? 285 bonita? a maçã-do-amor servida pela dona infeliz a pescaria de peixes de mentirinha muita muita muita gente cheia? vazia? a igreja de pé-dentro-pé-fora azul dourado a mesa cheia de doces coloridos secos e molhados vária vária vária gentilidade velha novinha? (a festa do rosário é cheia de contas e cada conto é cheio de outros contos por dentro como um labirinto do fauno mantras de Hare Krishna) VOU LAVAR vou lavar meus pés vermelhos no vasa canudos para secar as varizes profundas do tempo oco antes de entrar na cidade pelo arraial de baixo C(IDADE) cidade não lugarzinho cidade tombada não esquecida cidade religiosa não falsa virgem cidade carnavalesca não pé-de-valsa existir ali como se chove muito 286 crescem raízes no calcanhar NO LAVA-PÉS no lava-pés as baratas d’água brincam de homem velho purificando os seus pés vermelhos no final da tarde fria SANTO vou liberar meu santo para subir rápido o céu fica vazio quando sofro vou exagerar na prece para fluir ágil o céu fica frio quando morro TRANSMUTAÇÃO/2009 AR suspiro e o que vai embora se vai não sei bem se eu ou o passado suspiro inspiro preciso ar para amar 287 E EU? não posso colocar nuvem dentro do mar o mar é maior que o ar que nuvem que céu e flui como todos os elementos e eu? não posso queixar do ontem já é tempo ido de longe mas colocar o que no lugar do agora nada flui mais ou menos por que eu? SILVOS magia é retornar por ruas tortas acertar o passo magia é uma lenda de frente para trás escutar o outro magia é tarde na alma cedo na existência desfrutar o pouco magia é cultivar roças de vento no rosto abraçar o incenso magia é o momento de mutação amar a si mesmo LIXO eu colocaria todo o sonho numa lata de lixo mas a lata de lixo está posta no mundo minha mente não eu depositaria o desejo para o caminhão pegar 288 mas o desejo sujou todo meu ser sou impuro feito chão eu sei das necessidades de equilíbrio por dentro de sorriso por fora mas sou lixo total MANHA na manhã de pura manha sou apenas esse vácuo de átomos perambulando pela casa ela ou eu está vazio de sentimento próprio aquele perdido ontem de noite no travesseiro hoje pela manhã o sol se escondeu a nuvem tampou toda claridade não poderia ser diferente eu sou fora o que tenho dentro o coração está apertado no cinturão da dor essa palavra vaga dizendo saudade quando acordo e meu espírito parece ainda vagar pela incerteza eu me deixo guiar pelas notas do dia e de dia me levo eu não me procuro me deixo perdido feito bilhete em gaveta velha não quero me encontrar agora: preciso de um tempo (contato somente à tarde) PASSEIO estive ontem só deus saberá onde não me lembro era noite e chovia e me debatia debaixo de um guarda chuva imenso como esse verso estive ontem só eu um dia lembrarei não me vejo vendo o que via sei que a noite caia letárgica feito o abismo do pretérito feito o verbo 289 estive ontem tão solitário juro que todo juramento nada valeria me ia para locais obscuros procurando na noite o termo RECONEXÃO preciso de ligação entre esse tempo agora e o de ontem preciso de conexão entre essa música e a nota preciso me ouvir baixinho para deixar límpida intenção de leitura quero me ler quero me ouvir quero ser apenas eu mesmo se alguém me encontrar cabisbaixo me deixe só assim eu me encontro mirando o chão porque se houvesse me achado olharia o horizonte amplo feito fato prestes à realização SONO PESADO o dia de hoje é como hora vaga na mente agora nada de mais nada de menos apenas esse tempo tic tac coração passando 290 não me vou pela vida como quem vaga pelo paraíso o paraíso não existe nem ali nem aqui fico parado esperando o céu abrir mas os pulmões são fracos para soprar a tristeza escorre por cada olhar pinto cada lágrima na tonalidade certa nem mais nem menos apenas esse vento refrigerando por dentro o calor da alma sonhei os planos mais elevados a vida veio amordaçando o sonho ele foi se reduzindo velho ficando nem mais nem menos sou apenas sono pesado OUTRO outra ideia outro tempo mas como sou mesmo outro corpo outra dimensão mas como sou idêntico outra era outro ser mas como sou prisioneiro queria significação mas não acho esse termo não vejo esse fim de tempo 291 POEIRA eu falo por mim mesmo e não levanto poeira a minha volta porque a poeira pode ocultar o passado me levo me lavo me escovo por dentro para ser melhor por fora eu me calço eu me cuido porque o cuidado é importante para viver muitos anos muitos anos para frente do que já foi para trás eu me vou eu me parto eu me esquadrinho para acertar o passo mas vou fundo em cada sentimento de estar bem ou de estar mal que são aristotelicamente parecidos eu me vou escrevendo por mim mesmo em letras vagas de vaga luz de vaga tonalidade eu vou aprendendo nada se perde tudo se transforma e na roda da fortuna eu estou bem no meio de mim mesmo GNOMOS o jardim era antes da escola de fato a flor vinha antes da dor o sorriso antes do livro o mato cresce na cidade campo montanha o mato cresce certo ermo cresce como gente se não cuidar morre cedo cresce como quer precisa aprender a se controlar 292 ACIMA sobre o chão o calçado acima o pé é sobre a borracha o carro acima o zé e o pé sobre a nuvem o avião acima a fé do zé DONO perdido não é a melhor expressão do sorriso sem graça fim de noite noite sem fim talvez um pouco sem conexão com o mundo meio sem prisão externa todo sem pretensão maior vida em mim não sei se me refiro assim ou de outro jeito tomei um jeito torto depois de ontem acordei com mania de tentar me achar dono enfim DESERTO na nuvem de dentro ar sopra chove muito é temporal mudo de rota não me acerto 293 no céu de dentro o chumbo pesa tufão sem fim me leva e leva e leva quero uma rota não me de[ser]to QUANDO na espinha passou pensei que era o amor estabilizado aquele de que falam os casados os sábios os comportamentais quando eu me vi diante de um corpo sem prazer sem fantasia sem contentamento eu me senti tão frágil que me embalei em novos pensamentos para fugir para dentro e não o mundo aqui fora quando eu me perdi totalmente numa desilusão que me guiou por vários e longos anos eu me crucifiquei porque não há como remediar o tempo perdido que se torna insano quando eu me retive diante da realidade essa fria realidade do clima quente por fora e uma geleira na alma eu não soube o que fazer porque não sabia que seria assim e assim é muita coisa quando eu me resolvi pensar o sentimento o sentimento virou um sentimento mais refinado e refinamento é uma bomba rompendo os tendões das pernas que me levavam para seus braços quando eu não mais suportei olhar seu corpo sentir seu cheiro tocar sua alma com meu espelho eu não sabia mais que eu não amava seu amor eu apenas soube de algo novo eu apenas me senti pesado na compreensão eu apenas me repeti por dentro o que por fora já era real quando eu deixei de amar você a vida ficou sem graça quando agora novo amor? 294 VIDRO o vidro me liberta da realidade cria uma imagem ficcional o vidro me embaça por dentro quem são eles elas aqueles aquelas quem sou eu afinal? o vidro me quebra o dia paisagem urbana racional o vidro me desvela o mundo quem são esses essas outras outros por que somente eu normal? o vidro é janela janela é parede entre o mundo e eu TEMPLO o mundo se abriu como uma possibilidade das muitas de dentro para fora do pensamento para o sentimento o mundo se abriu como ventre prenhe – está na hora! nascimento crescimento eu no mundo sou apenas um templo 295 IDADE a alegria da vida é fácil manhã vem o calor dos corpos tarde tem o café na mesa noite sem pesadelo a alegria aumentou com a idade sopra velas de experiência ESTAR-NO-MUNDO não vejo desse jeito que vêem talvez essa dificuldade de entender outro olhar seja da miopia que nasce e entorpece meu jeito de deformar a realidade não vejo dessa maneira exagerada agora nem antes talvez na idade remota do tempo ido no interior da casa pobre do interior de minas não sei o motivo mas o olhar se vai cheio de esperança pelo que foi mergulhado em saudade e pelo que vai ser cheio de devir filosófico não sei o motivo desse olhar míope me revelando cores que não via ontem mas que desejo ver amanhã pela manhã de cada renascimento eu afirmo a vida dentro de mim em cada novo projeto de estar-nomundo e se isso só não foi uma epopéia penso sobre o feito e o que será ainda perfeito 296 MANHÃ a manhã veio cheia de poesia por causa da chuva por causa do sol entre nuvens dizer não saberia (sei que não saber é muito interessante e poético porque se tudo soubesse seria um mistério vivo longe disso prefiro ser mistério por desvendar sei que não saber é muito ético) a manhã chegou feito clarão os olhos se abrem sem força de vontade apenas sãos REDAÇÃO há uma obrigação no ar poema saia há uma empolgação no lar poema caia há uma comoção ao par poema fala há uma intuição de mar poema nada 297 MEDO preto e branco luzes se espalham não vejo pressinto amarelo e azul luzes se apagam não creio desconfio o medo me envolve toda vez que busco a certeza MISTÉRIO mistério falta nesse átomo que me embala mistério fala nesse ato que agora me capta mistério sempre nessa voz interior e quente de dentro mistério solto nesse som quase oco (sou eu) outro 298 MUTANTE para Benedito Alves transmutação é o primata virado zé num ano de três mil gerações transmutação é o eu virado outra coisa depois de anos na encarnação transmutação é o dia virado noite no mesmo tempo da ação transmutação é morrer na câmara renascer na iluminação transmutação é passar pelas provas para a depuração transmutação é a física de dentro vibrando na mutação transmutação sou eu inteiro feito o iod da criação transmutação sou eu feito eu no eu do arquiteto grão 299 TEMPLÁRIO o templo se ergue no meio do mundo altura largura comprimento profundidade o templo se despe para ser vestido liberdade igualdade fraternidade mutação PALAVRA o hiato se faz nesse ato ato de ir não voltar caco de si no ar o idioma se faz palavra lavra de cortar pedacinho de si no falar eu quero ato palavra HERANÇA não solto a barriga da minha mãe lá há um cordão me amarra não largo a mão do meu pai lá há um imã me atrai 300 AÇÃO uma certa melancolia talvez por essa chuva caía no telhado de amianto hoje chove em outro lugar uma bela melancolia quem sabe por essa música rolava quando o álbum era visto hoje toca insignificante uma plena melancolia não sei se por hoje ou por ontem quem sabe pelos calendários todos juntos unidos como sempre para passar o tempo (melancolia é um estado de espírito anunciando a transmutação mutação ação) TEMPO mudança necessária mutação medida trans [forma] ação mudança à vista mutação concedida tempo (raliz) ação DE NOVO de manhã o sol aquece a vida feito cobertor de madrugada esquece o frio de manhã o dia nasce feito esperança feito herança herdada esquece a miséria 301 de manhã o pássaro pousa tão de leve feito notícia boa esquece o telejornal de manhã a mangueira está tão repleta de feito abundância gerada esquece o infortúnio manhã é começo feita para novo tropeço manhã é novo aconchego de si logo bem cedo BRUMA a bruma sopra forte de uma costela direita a outra esquerda quase tufão a bruma abala a estrutura do arco diafragma a respiração ofegante quase aflição a bruma treme as pernas de um lado ao outro o caminho fica longo quase comichão a bruma sacode a poeira da mente envelhecida o pensamento já enganado quase renovação a bruma esfria o coração aquecido demais para a situação é que acordei como se tivesse ido ao mar sentido a bruma soprar 302 frutos ÚTERO não posso me calar diante do globo azul de fora visto terra amiga mãe útero da vida não posso me furtar diante da cena de um satélite artificial o ponto de arquimedes de fora da terra não posso me deixar o mesmo depois da imagem da terra vista do espaço útero astralino IDENTIDADE no primeiro acorde já sei é hora de sair do casulo para o dia a vida no primeiro tom da manhã já sou a identidade de ontem a persona de agora a sociedade no primeiro bocejo já fui repetição da rotina as pessoas a saciedade no primeiro abrir de olhos o cenário não muda 303 mas hoje – o que foi isso? eu voltei outro (parece estranha a estranheza desse momento parece tanto a tanteza desse instante parece vária a variedade dessa variante mas sou outro) DIA o dia volta e revolta revolução o dia vai e volta devolução o dia vem e vai gratidão o dia pega e dá retribuição eu no dia sou transmutação É ASSIM acontece comigo toda vez que durmo não sei o motivo me mudo acontece comigo toda vez que soluço não sei o delito mas sofro acontece comigo toda vez que penso não sei o pedido mas projeto acontece comigo toda vez que escuto 304 não sei a música mas emociono acontece comigo toda vez que sou bruto não sei de mim ontem só sei que de novo não me aceito não acredito não me oculto SEGREDO segredo é esse entremeio entre o feito e o calado mais calado que feito – a imaginação de quem não sabe é fértil segredo é esse vazio medíocre entre o ato e o silêncio mais silêncio que discurso – a curiosidade de quem não entende é deserto ESOTERIA esotérico me levo para o centro do mistério salto linha para engolir o vazio cheio de sentido da linha vazia esotérico me passo para o outro lado do hemisfério pulo a linha do equador para entender capricórnio e volto para o norte do sul pleno esotérico me busco de um lado ao outro da obra meço o nível para ver se aprumo e volto para a medida correta esotérico me deixo guiar para a viagem que não chega a lugar nenhum repleto que é apenas de mistério 305 MOMENTO meu momento se situa entre esse esperar e o acabamento meu momento não vem de ontem nem de hoje é o próprio tempo meu momento está na chance de ser eu mesmo novamente meu momento se dá no instante do tendo vaga-lume não sabe que a luz é nada mais nada menos que seu termo TROCA trocaria o conceito pela poesia se poesia me desse a certeza sobre o medo trocaria a filosofia pelo teatro se o teatro me revelasse por inteiro trocaria as mãos pelos pés se os pés me informassem o toque do desejo trocaria essa voz que grita no deserto pelo silêncio se o silêncio fosse o fim do meu medo COR a cor do azul é um azul inteiro informando o azul que é parcial eu me informo o azul inteiro não me vejo vendo por partes 306 a cor desse vermelho é um vermelho de calor perigo de chegar-se próximo demais fome de menos estimulada não vejo o vermelho sinto a sua essência não me sinto sentindo apenas todo o meu todo é apenas isso isso sou eu posto no mundo plenamente EXISTÊNCIA sofro do mal de amar desde os olhos abertos até os olhos fechar peno a dor do desejo desde o peito receptivo até o peito machucar eu amo desde sempre muito antes de conta me dar só não sei se o tempo foi ontem ou hoje depois de beijar eu amo desde a eternidade como um sopro antes tem ar depois é só vendaval e essa mania nomear - E X I S T Ê N C I A RIMA SEM RIMA o medo é esse falar baixinho para si eu apenas vou me escutar o medo é esse bater as asas 307 correr mais que o outro para sozinho ficar o medo é essa rima sem rima medo de não rimar o medo é o que faço agora medo de enganar preciso transmutar o medo alegria de amar como dizia o profeta a profetizar ama e perfeito serás APRENDIZ DE UM GRAU para Dona Aparecida Clementino aprendizado letras e um dicionário ao contrário a vida é um letrário quem decifrar me informe – sou pobre coitado! eu aprendi que a vida é cheia de letras ao contrário quando percebi que o discurso de uns é exatamente o seu contrário e que a ação que vem de dentro é quase um anedotário eu aprendi que o olhar muitas vezes me mata mas pode ser engraçado já que as letras em discurso desmascaram o hipócrita como a letra do dicionário define a palavra eu aprendi com os fatos o que muitos dizem e relatam e é apenas uma grande mentira disfarçada de letrário chato 308 eu aprendi que mais vale uma ação bem praticada e calada que um discurso contrário ao ato realizado eu aprendi que há certas pessoas no mundo que não percebem o idiotário e na próxima vida – e elas virão, talvez! – deverão junto de cada ato ao lado decodificar com o seu próprio letrário eu aprendi que a palavra é muito forte na boca de quem ama e quem odeia como aristóteles ensinou o caminho do meio preciso aprender a amar e odiar na medida certa para não fazer feio eu aprendi que mais vale uma palavra calada que um monte de verbos voando sem significado agitando as mentes com palavrório eu aprendi, só não sei se vivi POMBA a pena caiu da pomba rolinha na minha janela roxo quase sem roxo se fez mais leve que o ar lembrei quatorze bis lembrei de volitar a pena ziguezagueou como semente de paineira envolta no algodão a leveza da vida é esse momento bela imprecisão a pomba rolinha vive prontamente vive sem dor nem medo existe a lição da pena voar mesmo triste asas no tempo de quem não desiste 309 COFRE guardarei o nascer do sol dentro da gaveta da memória embalarei o cometa viajante no papel alumínio da emoção depositarei a esperança de hoje no cofre forte do amor IR esperança no porvir herança por vir festa na alma fé com calma caridade no agir idade para ir longe com alma ÁGUA chuva rola pela calha - como cala a voz na fala? chuva vai e faz da semente broto -como o gosto é base do seu contragosto? chuva na sarjeta escorre para o rio mesmo subterrâneo -como do sorriso se despe o riso? 310 UNIDADE vou batear o cascalho do rio trazer de volta o brilho do diamante vou quebrar a esquina da casa trazer de volta a certeza da reta vou encharcar cada lado da face para trazer de volta a unidade do ser FÉRIAS ofuscação de sentido manhã inebriada folga de mim sono deixo-me deixado deitado na cama folga enfim férias BONFIM amarro a fita no braço a sorte no abraço prece para o senhor do bonfim desejo sem fim convoco o anjo da guarda ajude coração que aguarda 311 eu mereço a ajuda do mais alto para ligar os dois mundos micro macrocosmo VIDA vida esse barulho de chuva na onda quebrada de uma praia distante mas perto da memória que não ousa esquecer vida esse sussurro de noite gatos no quintal devassando o desejo da natureza de procriar como nós em dias de sol aquecendo a pele vida esse sopro de tempestade no fim da tarde de um mar total de azul de cor de terra de cor de lama de cor de amor e paixão vida essa canoa parada entre dimensões de tempo de maré que leva de maré que traz peixes sonhos rede cheia e vazia vida essa luz de uma igreja barroca de santo amaro de senhor do bonfim de fins tão bons para quem tem fé para arrumar as gavetas da sorte (hoje a vida amanheceu como sol nascente em praia de maré alta e lua cheia revoltada quero viver esse momento como se fosse a última maré para encher as redes de fartura e felicidade) LUA lua dorme sobre o sono dormido dos humanos na terra dorme, mas como, se revolta a maré? lua forja uma nova espada para são jorge forja ou faz que aumente o brilho da fé? lua dá meia volta e volta cheia de luz lua dá volta inteira e volta minguada de amor 312 RUA/LUA a rua é asfalto gato cinza e lixo na lua há um santo alto azulado e fixo a rua é de ninguém a lua é de meu bem a rua é do poste da luz da boemia na lua há sorte no eclipse de dia a rua e a lua a lua e a rua id (entidade) UMBIGO umbigo na barriga é cordão umbilical umbigo de nascido é mal de sete dias umbigo de crescido é sinal de partida para a vida umbigo de bananeira é sinal de abelha e beija-flor umbigo que se abre e vira cacho de verde umbigo cai e vira total amarelo para alimentar a vida nascimento tem umbigo rompido crescimento tem umbigo cicatrizado umbigo ambíguo 313 MULHER DO CONDADO a trança da mulher do condado me amarra no tempo da infância daquela escada eterna o balaio de taquara na cabeça me equilibra no tempo diverso de outros lugares tantos a cor da pele me ilumina fé em senhora do rosário o jeito de andar pelas ruas tortuosas me conduz pelo sabor eterno do pé-de-moleque a mulher do condado é cheia de sentido VÊ houve entre ontem e hoje um tanto de som houve entre o menino e o maduro um tanto de tom houve o barulho da cascatinha um tanto de flor houve o relâmpago no pico do itambé um tanto de cor houve ouve ou vê 314 SERRANIA o sino toca a procissão sai um homem reza uma banda dobra a música a velha canta a procissão vai um louco peca uma janela se abre como espírito a cidade pára para procissão a alma se comove move vê LÁ TRÁS de noite os moleques assoviam um assovio frio io io io io io io io de noite os moleques riam um riso dispara rá rá rá rá rá rá rá de novo os moleques vigiam a mexerica no pé do vizinho (o pé do vizinho dá árvore cheia de frutos por causa da terra vermelha vermelha vermelha na sola) 315 MUDA a mudança sobe o morro desce a beira do rio se eleva se vai a mudança percorre a cidade de um lado ao outro o caminhão se vai a mudança de dona ana vai pra lá vem pra cá percorre a cidade casa nova a mudança de dona ana é rápida é diária é vária CIDADE eu vou e volto para minha cidade apesar de minha é de muitos eu vou e volto por minha rua apesar de tortuosa encaminha eu vou e volto por minha escadinha apesar de elevada comisera eu vou e volto por meu botavira apesar de cascalho energiza eu vou e volto por minha cascatinha apesar de fria baliza 316 NÃO hoje vou dizer não porque quero dizer não e simplesmente pensar no não como não de fato eu preciso dizer não como quem vai e volta e recolhe a certeza de algum ponto do ontem eu vou lhe dizer não pois acredito que é hora de colocar um ponto final no sim em excesso de excessos feito eu prefiro hoje o não não e pronto pois que fique claro que hoje eu optei por dizer não ao mundo a mim mesmo e a todos que me escutarem se o mundo começou com um sim o casamento começou com um sim e todo amor começou com um sim digo não e nada desejo dar início apenas me permitam dizer não VARIEDADE esse sentimento pode ser o que quero pode ser o que deve ser mas pode ser um tanto de outros sentimentos guardados na miríade de espectros secretos da alma aprendiz essa certeza pode ser tola como a que quero pode dar em lugar nenhum mas pode me levar a tantos lugares diferentes prospectados na projeção de cores que se faz futuro a todo tempo esse momento pode ser vário mas pode ser um condutor para onde quiser 317 PÁGINA a página branca me convida me oferta o espaço a página branca me quer me permite a condução há linha no vazio há verso no oco da página a página branca me engana me faz acreditar no vazio a página branca me diverte me faz o tempo passar há letra e sílaba no vácuo há poema no todo da página FUTURO virá novidade um tempo outro virá perplexidade um canto pouco virá rompimento 318 uma versão louca virá contentamento uma tristeza frouxa irá silenciosamente corvo da madrugada irá pausadamente estorvo da gargalhada rá rá rá FALATÓRIO gostaria de dizer tudo termine em sorriso a flor que nasceu a dor que machucou o tempo perdido em frases diante do muro das lamentações gostaria de dizer tudo valeu a pena a manhã chuvosa a noite que não levou a nada o tempo herdado em canção dissonante no show do século gostaria de dizer tudo mereceu ser como foi a vida sem graça a morte na hora errada a existência partida entre a infância e a maturidade no teatro de arena gostaria de dizer tudo foi repleto de grandeza desde o campinho de terra e lama no verão à quadra de cimento e tabela e cesta 319 gostaria de dizer tudo foi intenso como a espiritualidade esotérica do incenso no quarto ilógico da adolescência gostaria apenas de dizer e o faço com a memória RETRATO no álbum de retratos distrato na fotografia escurecida vida no monóculo azul sul na imagem do tempo esclarecimento DENTRO o cenário de dentro é vasto como um mar alto mar o cenário da gente é amplo como um tempo temporal o cenário da vida é próprio como tatuagem escondida o cenário sou eu para mim mesmo um enigma grita -exponha-se! 320 MENORIDADE a primeira confissão foi quase uma dor entre o feito e a correção a primeira comunhão foi quase um parto entre alma e ação o primeiro amor foi quase eterno não fosse o tempo e a traição o primeiro livro foi quase o melhor não fosse a próxima edição a primeira vez foi muito a segunda vez foi repetição uns chamam isso de idade prefiro transmutação A BONECA vou colocar a boneca de minas novas na janela enquanto escrevo versos ouvindo música no dia em que ela envelhecer eu mando numa caixa para cláudio de joaquim soldado reformar suas tranças e seu humor MAR o mar na memória ocupa espaço passo o mar na história afunda o casco asco o mar sempre o mar 321 NÚMERO o número força a porta da vida ou a vida força o número àquilo? o número revela o destino na carta ou a carta põe no número sentido? o número me faz ou faço número? NOME titulação do homem da mulher profissão condecoração do soldado do voluntário coração remuneração operário chefe opressão 322 CEDO redemoinho no interior tempestade de imagens desarrumação fragmento de dor mosaico de vidas acomodação dia de ficar sozinho noite de dormir mais cedo expectativa TEXTO um texto religioso sobre a mesa olho perdido em algum ponto da iluminação um texto sábio diante do olho mente esvaziada diante do ponto de interrogação SABE dicionário para o significado fé para a vida renovação para o restante calendário para o tempo pé para a lida transmutação para a sobra eu me vou hoje como a bússola no bolso orientado mas sem saber crendo mas sem entender o porquê 323 OUTRO LUGAR a mala dentro do ônibus tempo de partida um som um tom um apontamento o verso escorre montanha abaixo a sala dentro da casa variação de lar uma menina um menino uma reza brava o verso descobre a sensibilidade HORA o mistério do tempo é o relógio que passa o que ninguém vê para outro tempo dado o mistério do relógio é o tempo existe mesmo sem eu o querer insiste mesmo sem eu poder passando o que não quero perder por linha dada no tempo me passo por linda tarde de hoje amanhã lembrança eu me fecho de tempo tem dó preciso de pouco tempo só 324 EU NÃO POSSO eu não posso voltar para a sua sombra na retina azul dos olhos eu não posso eu não posso ligar para sua voz no ouvido direito a me falar eu não devo há entre nós dois um longo tempo perdido ninguém pode explicar começou num calendário distante e nenhum fio mais nos ligou nenhuma linha mais nos tocou nossas vidas se afastaram de uma forma inadmissível para quem vive de amar eu não posso pedir perdão pois não é o caso quando o amor acaba eu não posso falar de saudade pois os meus pés se distanciaram com consciência de sua sombra há entre nós dois um terceiro elemento estranho ninguém pode me encontrar na sua vida pois ferida cicatriza tempo passa e amor amor amor não sei dizer só sei que me faz falta mas eu não posso eu não posso não posso posso? O QUE VEJO? na última noite do ano desejo na última hora do ano desejo na última cena do ano desejo o que vejo? (colocar uma frase entre parêntesis quer dizer que há sempre algo a dizer no último instante de algum fim que se dá como tal eu não entendo de final eu sei do desejo inicial de novo começo começo sem fim) 325 PÉ FRIO pé água fria cascatinha esfria cabeça SABER estou feliz como quem foi viu e aprendeu feliz como quem sabe sabedoria estou feliz como quem divisou o antes e o depois feliz como quem espera esperança JARDIM o jardim está de frente da janela abre e fecha flores o jardim está pequeno nasce e cresce cores o jardim está agradecido pela chuva muda e fruto noites CARACOL um ano vai outro ano vem a vida é pista de mão dupla estação de trem 326 um ano vai outro ano vem eu mergulho no todo onda mar tem o ano passado é um caracol o ano que será passado é um desenho ilusão do tempo ONDINAS eu cresci no meio do mato no beira do tanque na margem do rio na cachoeira eu cresci em meio às ondas da vida pra lá e pra cá eu chorei quando precisei acertar o ritmo de etapa em etapa pulando a lapa não afogar eu cresci em meio às marolas da vida pra cá e pra lá SIMBORA leve a vida a que lhe dei um dia em dias e anos e tantas outras lembranças leve os móveis os que nos contam a história em calendários imutáveis de tantas esperanças 327 leve as fotografias os registros de cada momento só não se esqueça de me perdoar quando bater a porta só não se esqueça de me levar como memória justa só não se esqueça de me doar um tempo de sua recordação leve-me levemente feito onda de piscina CASCALHO o pôr-do-sol me revelou por dentro fenômenos intensos de luz e cor por fora eu não sei dizer quantas cores no céu ou se um céu apenas ou vários eus o pôr-do-sol me levou para longe um tempo de se perceber totalidade RESPOSTAS eu não vou roubar de mim essa história escorre por entre os dedos feito massa de quitanda eu não dou a ninguém o direito de dizer o que é isso de fato eu procuro e eu mesmo encontro RESPOSTAS 328 TUDO MUDOU só sei que se foi numa mutação de cores de sons de nós de flores de muitos só sei que a luz convergia no seu caminho as vozes falavam de flores orquídeas matos só sei que a rosa o azul o azul escuro o branco o relâmpago e a chuva nos diziam textos só sei que não há como contar desse jeito tão diminutivo o que se passou ali só sei que quando me dei conta entre lages e vila do príncipe entre ontem e agora entre todos os que aqui viveram tudo mudou BAGUNÇA a bagunça das ruas tortas e o quintal é a mesma a bagunça das cabeças e o hospital é a mesma a bagunça entre quem é ou não e o pessoal é muita a bagunça entre todas as coisas e a moral é vária 329 (nesse canto de vida o tempo é breve mas de um breviário sagrado como se houvesse em cada linha da história um hinário de nossa senhora da conceição) salve rainha DICIONÁRIO SERRANO para Théo e Sassá ao verso somente o sentimento ao rio apenas o peixe pequeno ao menino a muleta e o barulho a mim eu mesmo ao pé-de-moleque a enxurrada à árvore de copa eterna o ninho à dona que escreve quitandas o forno a mim eu basto à igreja de santa a opa e a fita à procissão coral de vilma e banda ao mato verde e alto semente tanta a mim os olhos à terra vermelha o sapato branco à música alta na praça o sino das horas às festas eternas o último gole a mim a boca à moça pura na frente a família à lente de aumento a moral aos poucos sinceros a distância a mim o silêncio aos nomes sem nome aos importantes sem título aos moradores dos altos aos indecisos da vida a todos os que amam demais a todas as mulheres sofredoras a todos os balaios de bananas eu desejo [t r a n s m u t a ç ã o] 330 BOA VISÃO para André, Rogério e Frida boa vista de lages sou eu olhos boa vista de lages desce e sobe vai e volta imagem boa vista de lages de rua única de escola pública de moça pura de diamante eterno de cruzeiro sem cristo de sempre viva e coroa boa vista de lages de vasto olhar de todo vagar de carro parado cachorro zangado de rio e cascalho de gruta e passado na tarde de boa vista o olho se perde no vasto das lages e as lages se entrecruzam com as cores do entardecer eu não posso me calar diante desse espetáculo incontornável de uma tarde tipicamente serrana porque tipicamente mineira 331 SUBLIMINAR a rosca da rainha é uma frase oculta em português antigo nas mãos da quitandeira analfabeta o círculo fechado e incompreensível da moral serrana prende a fera de cada um para domá-la SALAMANDRAS eu queimei cada carta escrevi tantas muitas uma mais louca que a outra a queimada no mato anuncia renovação a alma educada queima de amor paixão a queimada na mata declara devastação a alma penada arde por se dar caixão eu queimei o amor e acendi de novo e passei esse fogo vida afora devastando a interna flora TEMPO vou furar a orelha do tempo para ficar novo sempre 332 vou inseminar o tempo para ficar prenhe ventre vou ler fábulas para o tempo para sonhar mundo outro vou abrir a gaiola do tempo para voar liberdade total ELEMENTAL o escravo cantava baixinho para os elementos da natureza [humana] [puritana] LETRA minha letra percorre o sentido da linha devaneio por sobre a certeza do ponto final eu me busco em cada traço de letra cada traço de eternidade afinal EU eu sou a brisa da tarde puramente posta horizonte 333 eu sou o não da negação supostamente fechando questão eu sou o pulso forte da vida início ao fim cardíaco eu sou esse sim de certeza talvez mentira ou não temporal eu sou o ventre da noite grávido de lua rua NEGATIVO o preto e branco da fotografia me explica cor negada o preto e branco é tempo outro de dentro cor mascarada SONHO o sonho posto no tempo eu envolto em lençol sou fraco mas livre o sonho frouxo na noite eu inerte no enxoval sou frágil mas ágil o sonho colorido na mente eu pairando no quarto sou ave mas preso 334 ESQUINA na rua a cor da tarde as aves tolas o pipoqueiro o carreteiro a menina pense na rua que corta outra rua os rostos tolos o mal cheiro a má vida a mulher sente na rua de esquina tanta o céu de nuvens a cega pedinte a vida vazia a qualquer mente FOI esquecimento não sei se foi se foi não foi esqueci esquecimento não tem ou se tem não tem se tem perdi esquecimento isso busco e se busco esqueci perdi chi 335 ESSE APELO esse apelo vem de dentro me diga me pronuncie me fale me dê notação me explicite me jogue no mundo eu sou apenas uma letra frágil esse gesto de dar ajuntamento às palavras interceptar o encantamento das esquinas das vogais sem acelerar sem se perverter se revelar essa vontade de agrupar letras de onde vem? por que vem? PARÊNTESIS me dê um parêntesis para decodificar a palavra nascendo da palavra me dê um parêntesis para tirar a palavra da estante parêntesis pare par are ar rente ente sis 336 REZA cada conta do terço é um pouco da verdade da mulher no banco da frente da igreja do rosário cada imagem é um reflexo projetado da necessidade do homem com a fita na mão beijo e bênção leva santo leva santa libera ouve santo ouve santa reza LOUCURA os loucos com suas manias uma escreve outro grita outra tem desejos ocultos pelos meninos da rua uma persegue outro agita os loucos da minha cidade são esforçados em mostrar a loucura sã da vida quem nunca enlouqueceu jogue pedra quem nunca se enfraqueceu dê três pulinhos 337 quem nunca sofreu beba a birita a loucura na minha cidade é saudável desperta os meninos e as meninas desde cedo para as dores da vida aprende quem quiser louco? eu não sou louco MARESIA/2009 ESTADO ESPIRITUAL eu me vi entre o mar e a terra entre a areia e a era de um tempo vulgar eu me vi pleno mas diante do mar fui apenas simples eu me vi completo pois de frente para o mar era apenas o de antes eu me vi entre o todo e o vir-a-ser me perdi entre tantas pancadas de onda na cara para acordar o mar fala sempre a verdade 338 PROCESSO eu peguei o trem na estação eu fui de avião fui eu coloquei o trem no coração eu fui rápido trem bala eu fui para ver para crer para mudar maré alta eu fui para achar me perdi onda boa salta eu fui para sempre de todo feito de pouco mudado abstrato RIO E MAR o rio cururupe entra no mar pela porta da frente sem medo da maré ele envolve engana difama o sal ele interage 339 flui dilui o doce quem são os peixes nesse encontro de mar ou de doce de paz ou de guerra do abismo ou da montanha? TARÔ o tarô do mar roda da fortuna gira roda é outro agora cada carta um segredo ciclo repetido vira roda é outro por fora o mar joga as cartas sobre a praia eu leio apenas PURIFICAÇÃO ouvi dizer de baianas na escadaria água-de-cheiro dos orixás eu fui me lavar vida nova ouvi falar de nova sorte em ilhéus água-de-cheiro da mãe-de-santo 340 eu quis lavar toda vida ouvi os tambores repicando na praça água-de-cheiro na cabeça eu me lavei nova trilha CAMARÃO a cor vermelha pegou fogo bronze miudinho pernas e pernas crocante camarão sabor de sol FRIEZA só entendi o mar na certeza da totalidade sofri o mal do mar na angústia da finitude sofri de maresia na frieza da carência 341 CABANA a cabana pequena de dona maria vende acarajé abará a cabana rústica da dona vigia o casal a maré o mal a cabana recebe as bênçãos da maré cheia cheia de palavras produtos preços a cabana de mar se abre se fecha manutenção PEDRA pedra corta onda meio pedacinhos pedra corta maré feio pontinhos pedra no meio da praia lugar para se sentar no fim de tarde ver o mar morrer 342 RELÓGIO MARÍTIMO a emoção do mar engolindo o rio sensação de fim de linha de percurso absoluto a emoção de mar tragando rio espinha em frio susto de muito vida passada o relógio do mar é de tempo vário outra dimensão ROTA DA ÁGUA a água nasce na montanha para o leito estreito a água cresce no limite para o mundo fundo a água morre no mar para a nuvem voltar sempre voltar sempre água mar 343 DOCE o doce do mar o movimento o doce do mar eu dentro o doce do mar rio o doce do mar frio o doce do mar fútil o doce do mar inútil SEREIA a sereia meio peixe meiumano ensinou a lição somos muitos a sereia de dois mundos mundúnico decifrou o código somos vários sereia canta muito forte para desvirar o vento daqui de dentro 344 ONDA PULSA a onda se aproxima dos pés mar adentro a onda me causa medo mar tem tempo a onda me expulsa de mim mar me toma a onda me devolve outro além mar PECADOR os pescadores sabem do mar mais que eu -nada sei os pecadores sabem do mar como eu -tudo sei VASSOURA BENTA vassoura na escada da igreja laço branco na cabeça vassoura para limpar o chão tirar o velho a doença eu ouvi um coronel gritando -não me expulsem 345 eu ouvi um antigo morador -não me excomunguem a baiana usa fita de senhor do bonfim na alma invisível aos olhos terrenos MERGULHO eu não sabia de outro mundo sem o som de fora eu me assustei silêncio puro eu não queria outro fundo mais que eu barulho mudo eu vi o peixe a pedra a cor eu pequeno mergulho BAIANA DO ACARAJÉ a baiana do acarajé debaixo da árvore espia a fome minha fome de dendê a baiana vai ao fundo da panela espia o que resta abundância já foi 346 a baiana de óculos garrafais faz acarajé gigante tempero elementar apimentado a baiana se mexe se vira e altera panela vazia bolso cheio SOM saudade de la vie en rose piaf me leva me tira a paz saudade de le temps aznavour me pega me tira o sono OLHO o olho não vê a água doce dentro do mar salgado eles andam juntos ou separados? o olho não vê quase nada do mar cheio ele é só daqui ou do mundo inteiro? o olho não vê o imenso há outra luz no intenso ROSA a baiana tirou o espinho da rosa não furar o pé-do-santo ela que é tão cuidadosa revelou da rosa o melhor perfume da mão-de-santa 347 TAMBOR o tambor toca cantiga de além mar onda de orixás invade a praça é hora de iluminar a alma o tambor convoca auxílio do além barco de santos aporta na massa é tempo de renovar com calma OUTRO SER a mãe-de-santo convoca o santo para a consulta cabelo solto voz rouca a dona vira caboclo da mata o terreiro é pura cachoeira bicho solto água outra saudação presença desce sobe fala INCORPORAÇÃO QUEM SOMOS? somos um no som puro e claro das ondas somos muitos na praia sem silêncio interior estamos em outro planeta por causa da sonda somos quem pisando na areia volúvel da praia? 348 VISTO eu me vi perdido no olhar profundo fundo do mar eu me vi passageiro temporário obscuro sisudo no mar eu me vi outro diante do mundo aberto discreto de além mar CALDO a dona na onda pulo sem calma caldo de onda se faz no fim da tarde (quem deseja pular a onda se torna vítima da força contrária de si mesmo) FARMÁCIA o segundo mais fecundo não na farmácia foi de pé na areia remédio de vida toda 349 CAPOEIRISTA o menino da capoeira pula pula pula vai longe o cabelo encaracolado salta salta salta cai na fronte o menino rouba a cena pulo salto algo próprio de gente forte ÁGUA DOCE da água doce no mar quem saberá sabor ido da água doce dentro do mar quem contará gotas idas da água doce de todo mar quem encontrará rios idos da água doce do mar salgado eu apenas sei da tarde em areia fina a areia me diz do tempo 350 QUIOSQUE na beira da praia o quiosque enroscado no seu eixo disco voador no calçadão o quiosque se arma armação de madeira tenda popular o quiosque move os olhos para o côco dependurado preço barato RECOMEÇO me leve me amasse me aperte me suporte me desperte que o mar seja sempre tempo de recomeçar CABANA AMARELA o sol não penetra nas casas amarelas espalhadas pela areia serve-se o prato do dia não há luz solar debaixo do amarelo o garçom atrapalhado dá seu prato do dia 351 debaixo da sombrinha amarela minha pele se defende do amarelo maior o sol BEM VINDO chegar às alturas ver a praia lá em baixo no seu fluxo e refluxo de águas leves pedras pesadas pessoas microscopicamente projetadas na areia chegar de avião sobrevoando rio e mata e mar ferrugem e verde bandeira e verde mar cores na retina cansadas prontas para descansar chegar nas asas de motores possantes pousar os olhos sobre a sua estrutura urbana sobre seu projeto de civilização me trouxe de volta o menino das montanhas eu cheguei ao solo ao chão guardando do sobrevôo uma imagem iluminada do lugar iluminado em todos os seus cantos e recantos welcome Ilhéus CARMOSINA o terreiro de carmosina fica no malhado um lugar afastado perto da antiga mata o sagrado precisa de tempo para ser compreendido carmosina tem 92 anos e veste branco e vermelho a guia azul é charme de baiana mãe-de-santo a vaidade não tem idade vai idade 352 o terreiro abriga fome na barriga o terreiro assina sultão das matas CÉU AZUL o céu abre-se de um jeito tão puro visto branco para manter o ritual ser puro é sempre a busca nunca final o céu pleno de ar azul vagando na atmosfera o mar é aquarela de azul pintada pelo olhar eu vejo o azul do céu na água cristalina quase etérea da onda MÃE DE TANTOS mãe-de-santo e seus tantos tantos desejos de se libertar dos tantos tantos pedidos a mãe tem no santo outros tantos tantos desejos de se escutar depois de tantos 353 e tantos bocejos a mãe tem santos e tantos cantos chamar despedir PRATO os pratos de beira-mar mexem com a imaginação molhos tantos nomes outros moqueca feijão de corda vatapá os pratos de todo mar celebram uma língua outra tipos tantos formas outras casadinho baião de dois abará BENTA arrebentação: limite do mar da ação da caminhada da vegetação arrebentação: saudade de horizonte de fonte de monte de ponte 354 DOIS ÓCULOS UMA FACE os óculos escuros escondem o mar interior revolto mentem sobre o que há lá dentro fundo do mar escuro as lentes tampam o sentido do olhar refletem somente onda e mar absurdo TROMBA aguardo a trombeta da maré alta soar no ouvido de dentro chamando-me espero o ruído dos tambores da maré tocar nos meus sentido internos convocando-me vou para o mar arrebentar a tristeza vou para o mar argumentar comigo mesmo 355 CACAU cacau amarelo no pé pé vermelho de sol escadaria de fé cacau escuro no fogo fogo apaga na água chocolate logo cacau gera coronel coronel gira economia casamento e lua-de-mel o cacau é fruta bendita adoça a saliva PANELA quanto remelexo das ancas para sair uma cocada baiana quanto rebolado nas ruas para vender no tabuleiro quitanda quanto sol na testa para o acarajé pimenta quanto braço forte para o abará bananeira 356 MENINO o menino em mergulho ao fundo do mundo no mar a menina com orgulho no olhar distante admirar a dignidade é profunda mundo fundo mar PISCINA o cheiro da água na narina intenso azul o odor de cada produto químico bruto piscina de hotel GAIVOTA AUSENTE no mar de ontem não havia gaivota de cor alguma no mar de anteontem também não vi asas sobre a areia onde a gaivota ? ela se colou à minha imagem de mar sem ela o mar não tem asas 357 CASUAL me deixo quieto para o destino feito onda me levar me deixo pronto para o sensível feito cais me embarcar me deixo pacato para o transcendente feito guia me destinar FRITO quanto tempo da rede até o óleo quente quanto tempo de liberdade à morte sempre quanto tempo da carne trêmula à imobilidade peixe frito SURURU dos nomes nada guardei a não ser o cheiro 358 sururu quem é? dos tipos pouco sei a não ser o gosto sururu de onde vem? ANZOL o anzol no seu arco bate na água afunda o anzol no seu destino carrega a isca morta o anzol na sua intenção rasga a carne viva o anzol arqueia a linha arco do triunfo pescado BICHINHO os pequenos bichos da areia da praia se escondem de mim há medo os bichinhos se enterram na areia se defendem de mim receio 359 eu os vejo tão naturais escavando túneis de minuto eu os tenho em boa conta não preciso deles agora deixo-os brincando de esconde-esconde meu olhar não consegue ir tão longe meu mundo é outro BASTIÃO na minha terra são sebastião protege da fome da peste da guerra (da guerra nunca entendi por quê) na terra de Ilhéus são sebastião prefere baianas lavando a escadaria de sua igreja (da lavagem nunca entendi o quem) ARAZUL o bico da arara azul é imenso como volta ao mundo de colombo a arara precisa de bico grande para proteger a cor de dentro o coração o bico é preto e afiado como espada de jorge na lua 360 a arara azul espalha cor no ar para espantar a monocromia repetição MANGUSTÃO uma flor feita enfeitada pronta mangustão uma fruta de rua na rua vendida saborosa mangustinho uma cor de vermelho um cheiro de litoral lambuzar a boca de mar NETUNO no fundo do mar netuno acorda maré alta dispara dardos de furar onda e encher de água o olhar netuno acordou no fundo do mar seus dardos atravessam a tarde profundamente contemplação 361 SOBERANO o mar não precisa de mim inteiro como ele só me abandona pequenez o mar não deseja me ouvir completo que dá dó não dele puro de mim sujo PESO pedra e mar leveza e peso onde está meu interior no fundo ou na superfície? o interior do mar é vivo como eu no fundo sou frio por que será? LIVRE os peixinhos presos nas pedras depois da maré vazando que querem da vida -descanso? eles gostam da água muito quente pedra de calor quase carinho que querem mais que isso -remanso? os peixinhos brincam de prisão 362 chego a ter dor de seus corpos encarcerados a maré enche liberdade PEIXE o peixe não se importa sem pressa vai e vem a insuportável lerdeza do peixe me desacelera a insustentável leveza da onda me lava o peixe vê longe quando quer vem e vai o peixe não tem pressa deixa a onda levar o mar é limite seguro PÉ o pé remexe na areia cresce o pé ferve na areia sua 363 o pé limpa na areia suja eu coloco os pés no chão do mar para me edificar por dentro FLEXÍVEL a onda dobra sobre seu peso como o bambu na mata a flexibilidade é lição da natureza MOTOR DE TUDO fico pensando no primeiro vento no primeiro sopro no início do mar fico pensando no negócio do tempo a onda inerte no ócio no princípio do mar qual a causa de todas as causas da física do pensamento? RABISCO de cada mar visto o marisco de cada onda vista o rabisco 364 desenho mares na eternidade do olhar nada apaga a marca do mar DENDÊ quente na boca dendê forte ao nariz me dê acarajé na mão abará na folha eu preciso de dendê eu quero me benzer pelas mãos da baiana AZUL AÇAÍ a cor do açaí é forte como eu na provação como maré alta no calçadão a cor do açaí diz de interiores da terra a força da raiz do tronco da copa a força oculta dos seres vivos que habitam as profundezas açaí me mostra a força da terra da areia juntinha que ergue árvores frondosas a força da unidade é sabedoria do mar 365 NAU o equilíbrio do navio onda agitada me leva o perfeito equilíbrio nada abala me pega eu não sei do navio engenharia de vida eu não sei do vazio cheio de partida só sei do navio guiando só sei do vazio angustiando não quero navio preciso desgovernar não quero vazio necessito mar PEDRA MOLE o índio põe nome de pedra pedra mole itacaré o índio brinca de pedreiro ele sabe de deuses compondo a praia que hoje dura é itacaré é pedra mole 366 CASA DE LITORAL casinha vermelha e branco casinha amarela e tanto casa de litoral alegre por fora por dentro floral casinha verde e branco casinha azul e pronto casa de litoral janela no mar entre e sente tramela não há TIPO DE MAR mar de água quente mar de frio tenso mar de naufrágio mar de passatempo o tipo do mar é o tipo de cada um como eu faço tipo para cada situação 367 PESCADO MATUTINO não me tragam notícia de além mar demorada frágil desgastada pelo tempo tragam-me notícia feito peixe pescado de manhã pronto para servir de bom alimento BARCO FRÁGIL o barco não se preocupa com o equilíbrio o mestre artesão mediu suas possibilidades antes de lhe dar a vida o barco não se ocupa com a sua íntima fragilidade o mestre artesão calafetou todo sua estrutura antes de lhe lançar no mar NAU FRÁGIL o navio não chegou ao porto se perdeu morreu na praia o navio não ficou no porto não verá navios outros desceu no fundo o navio morreu na maresia ou no sal de dentro do mar se conserva intacto mar morto 368 QUEM? quem vai secar as pedras depois da maré... -eu não estarei ali para ver a secura chegar quem vai recolher os presentes de iemanjá... -eu não sei como trocar os presentes que ela rejeitar as baronesas que o mar trará quem poderá tirar... -eu não vou ver a praia verde de ondas a clarear os brincos de pena da morena vão voar para longe... -eu não estarei ali para vê-los plainar o queijo de leite de cabra da vendedora esperta vai se perder... -eu não sei apascentar as cabras para do leite queijo virar o pôr-do-sol nos óculos escuros refletirá o mar... -não sei se a praia da tiririca ainda estará por lá elegia de mar eu não vou despertar iemanjá com meus presentes com meus sabonetes com meus espelhinhos vou deixá-la no fundo do mar o fundo de mim sou eu agora lembrança de algo que não tenho mais nem nos olhos em frente nem na alma por dentro eu não vou subir na pedra que dá para a maré alta porque não estarei ali para me lembrar qual passo é mais adequado às pedras do caminho e da vida estou seco por dentro como mar sem onda sem maré areia plena de corpos mortos 369 cemitério litoral eu tenho inveja dos peixes aprisionados nos recifes coloridos pois têm a quem voltar a maré subirá e vai salvar seus corpos minha alma está perdida para sempre no mar estou maresia por dentro ressaca de altas ondas por fora eu não vou ancorar no cais o navio naufragou fundo eu não verei os golfinhos na praia bailando no ritual de alimentação eu sinto fome desses momentos imortais na sua inconsciência eu volto para o mundo dos sérios odô miô, iemanjá CUPUAÇU o gosto amargo da fruta de mar eu confundo se de mar ou de mata é tão unificado esse espaço entre água e terra o gosto amargo do cupuaçu vem me libera do doce o doce puro prefiro um pouco de amargo para aprender o gosto forte do cupuaçu tem me torce o hálito sem doce puro opto pelo amargo do branco para me entender 370 GUIA a guia azul da mãe-de-santo azul branco vermelho tantas cores para tanta fé me guie santo de outro mundo a guia é uma coroa no pescoço veste as armas de santo invisível opera milagres de voz rouca de voz pouca mas sábia a guia beijada por carmosina é azul de um azul sem precedentes ESPELHO o mar se sustenta peso estruturas nos ombros de netuno o mar suporta leveza corpos no espelho de iemanjá HIATO a vida no litoral sobe e desce não as ladeiras do tempo mas as alegrias do dia o dia no litoral é ondulado vai e volta e se dá e se perde como alergia de mulher grávida o dia no litoral é cheio de hiatos 371 CASA a casa de cor frágil (precisa de veraneio) a igreja de cor violeta (precisa do natal) a esquina fica cheia (precisa de novidade) a vida do litoral em cidade miúda é vida curta dezembro janeiro carnaval (grande parêntesis) FLOR o hibisco no jardim belisca a língua do beija-flor a bromélia perfumada morde os lábios do zangão o coqueiro-da-bahia seduz o olhar da formiga a orquídea do litoral fica prenhe de umidade 372 SUOR o suor do corpo é muito o cheiro da praia é surto necessidade de coito o suor no rosto é broto de cada desejo feito saciedade de corpo MENINAS DE PORTO no bataclan meninas de porto abertas como barra enchem o cais as meninas de ilusões compostas e descompostas novas e velhas falam demais as meninas de respeito no quarto trabalham para financiar uma vida fora do bataclan não há realidade SERIEDADE acordei são paulo adormeci itacaré isso é ruim ou bom não sei como é 373 CAMPO QUÂNTICO o mar quando imerso nele é meu campo quântico campo quântico do meu magnetismo natural campo quântico da minha emoção MEMÓRIA minha alma sabe do mar do impulso de arrebentação do querer invadir novos mundos trazer novidade de outros todos minha alma sabe do mar da lágrima salgada alívio imediato da maresia corroendo como tempo a relação sei da vida e tantos prantos JEITO navio pesado longe da praia navio levado motor e ronco navio de porto não sabe da praia apenas os pequenos resistem ao encalho eu vi uma chalana tão pequenina na praia me identifiquei com ela -precisa-se de jeito para navegar 374 DIALÉTICA a corrosão do moinho é semente a revelação da arquitetura é o vazio a redenção da música é o silêncio a negação do mar é gente POEMA DO MAR NÃO o mar é completo não precisa de mim sentidos tato onda visão horizonte paladar sal e doce olfato maresia audição arrebentação o mar é pleno não depende de mim existe antes existirá depois o mar é todo flutua denso medita tenso eu não FRUTA frutas de mar são cheirosas coloridas e vivas energia frutas de mar são prazerosas 375 cheias de história vitalidade frutas de mar caem no chão frutas de mar enchem a mão INTERIOR dos lugares de paz um se torna eficaz dos poentes de luz um se põe para mais dos sonhos que traz ali é sonho demais um lugar especial meu mar um lugar essencial mar interior VENTO há um sopro no coração vento litoral me tira da rota me levanta me joga na pedra me põe no caminho 376 me devolve o sentido de tudo me revolta me tranqüiliza me confunde tão fundamente não sei se é vento ou apenas eu em redemoinho interior eu me arrebento em cada pedra da vida rio de cada movimento de maré interior CLARO/ESCURO búzios brancos búzios escuros a sorte dois lados o claro o escuro a vida a morte os dedos jogam búzios viram e me viam por dentro os dedos jogam búzios caem de tantos lados eu todo búzios dedos dos deuses na vida eu me perdi no mar no mar de dentro revolto feita brisa mal resolvida 377 MARÉ BAIXA eu me perdi no estar no mar de sempre envolto feito criança prestes a perder o colo eu me perdi no mar no mar da mente consciente feito alucinado pelo corpo eu me perdi quero me achar maresia se vai eu me perdi volto eu prometo vou voltar pra mim eu me reencontro no mar de fora completo como eu quando quero ser pleno basta deixar a maré baixar levemente constantemente MARESIA DENTRO agradeço ao vento litoral a maresia dentro frescor que ultrapassa a tarde a noite a madrugada agradeço ao vento litoral cada hora de mar na pele 378 nas lentes dos óculos me ensina me educa me obriga olhar para dentro felicidade SILÊNCIO COMPLETO silêncio: ele é completo demais para algo dizer calem-se as vozes as preces as músicas silêncio: ele é total para algo pretender façam reverência olho fixo totalidade MAR COMPLETO o completo é delicado mas inteiro o completo é purificado mas cheio o completo é mar eu sou beirada COR SEM NOME de todas as cores do mar uma delas não sei indefinida permanece aquela: sobressai num estágio de calmaria aquela: sobrevai num período de maresia 379 COR REVELADA fim de tarde meu olho fixo na onda ensolarada o sol rouba a cor do mar me leva junto e fico sem saber a cor da cor pôr-do-sol eu me ponho no pôr-do-sol não sei colorir SINUCA o movimento de onda indo onda vindo uma sinuca de bico o taco o taco o taco quem acionou? o movimento começa de um outro movimento qual o outro movimento se somou ao já existido nesse tempo diverso do que eu ali dei por visto? CASA VELHA a casinha na ladeira tem data de fabricação ou o tempo estampado na sua face denunciando a idade a casinha tem delicado contorno de linha reta ou a retidão da família na sua planta denunciando a moral 380 MOÇA a moça brinca de vender frutas de litoral ou um litoral de frutas cada cor cada preço a moça de fé robusta vende sem desconto o preço da feira longa é descanso à noite RETORNO voltarei apesar do tempo urgente de retornar ao lugar de onde vim para cá voltarei apesar da vida acontecendo lá num ritmo alucinante de bem estar – será? voltarei apesar do tempo ser dos deuses e eu ser apenas uma onda perdida de mar voltarei apesar das pessoas que o destino dará e eu ser apenas a monotonia de uma onda que não pode parar voltarei apesar de mim 381 CONFISSÃO para Manoel Bonfim confesso: não sei de mim tanto quanto deveria esforço-me para conquistar território meu em algum lugar confesso: poderia ser melhor maior mais represo-me em água de passado sujo de tempo parado confesso: eu não deveria estar onde estou liberto-me somente em presença do mar aqui sou RUGA a ruga no rosto o rosto no sol o tempo passou a fuga do posto a isca do anzol o tempo matou a velha é livre mostra sua face 382 MUNDI o mundo cabe onde se sabe dele o mundo vale onde se cale ele SONHO DE HOTEL o sonho no quarto de hotel é cheio colorido e pleno a onda invade a imaginação o sonho no quarto de hotel é tanto versátil e sábio a onda penetra a emoção CAFÉ DE POUSADA eu quero dizer do café da pousada é tão variado visual eu quero dizer do hibisco sobre o bolo de chocolate ou da banana assada amarela feito sol de praia como se ela saísse do quintal agora eu quero dizer das fatias cortadas milimetricamente ou do suco de fruta espremida na hora como se o pé fosse bem na janela eu quero dizer da manhã o alimento casual 383 NOME DE PRAIA a praia da concha sem concha alguma a coroa vermelha sem rainha nenhuma o cabo frio de frio eterno praias reais COLONIAL o colonial veste a casa o chapéu de século antigo protege do sol o colonial reveste a fachada roupa colorida para ver nosso senhor dita a moda litoral MARISCAR ao mar a palavra ao mar a letra a mim casco de marisco eu me entrego nos braços do mar eu me revelo nos braços do rio eu sou quem sou se me arrisco viva o mar mariscar me arriscar 384 FAROL a luz no fim do mundo o farol eu preciso me orientar luz interior o farol se acende eu me guio volto ao meu colo AZUL VESÚVIO na praça da cidade o azul de vesúvio se destaca como se destaca de corpo inteiro Jorge Amado na praça da cidade do cacau há um monte de mesas na calçada como se destacam as pessoas se alimentando de palavras soltas no ar bar vesúvio de cor azul como céu de litoral em janeiro puro janeiro sonho COLÔNIA o chão de pedra calça meu pé de calor o chão do tempo informa quem é de valor cidade colonial 385 MERCADO o mercado de artesanato caótico prático o mercado de artesanato fabricação própria (cada um contribui com seu papel para que o mercado seja a cara de cidade litoral) MERCI obrigado pela mata obrigado pelo litoral a todos os santos de cada mata a todos os santos de cada onda obrigado pelo pecado obrigado pela absolvição a todos os santos de toda hora a todos os santos de cada praia obrigado CASCA o tempo veste a bromélia de sempre tira a pele troca a cor verde amarelo o tempo despe a velha do nunca fica a obra acabada sentimento sincero 386 FAMÍLIA a família faz plano depende do ovário são a família quer crescer depende do menino grão a família vai aumentar depende de papai-mamãe chão VIAGEM se eu me indispuser no balanço do navio enjoei de mim mesmo não do balanço do mar se eu não suportar a viagem pelo mundo cansei desse corpo meu não da alma de amar CHEIO estou cheio como vento forte ressaca maré alta maresia tudo em excesso de mar estou cheio eu creio chegou a hora de cais antes de mais e mais tudo em processo de vida estou cheio o balaio que não encontrou comprador tudo remexe e é dor estou cheio preciso renovar o estoque para todo toque tudo aquece e é furor 387 CENÁRIO a força do quadro a louca de um troço o menino do jambo a menina do jongo vi a cena puramente janeiro mar e praia CASTELO DE AREIA ela constrói um castelo tão perde a noção do tempo de estar na beira do mar ela edifica uma torre para a eternidade alta que cabe uma rapunzel e um príncipe mas o encanto se acaba castelo de areia CARNAVAL amor de mar é para sempre ou até a próxima onda amor de mar é eterno ou até a outra estação amor de mar é imortal ou até outro batuque CARNAVAL 388 ALGEMA soltei as algemas liberei os pulsos corri mar adentro a criança armou o circo dentro da alma ou se pôs para fora sem amarras a criança livre feito gaivota em vôo idiota tempo perdido é que as gaivotas não voam apenas observam a lerdeza dos peixes e se divertem serrei as algemas da cidade grande sou pequeno como nasci NAVEGANTE o navegante doma a onda cavalo bravo solto do mar o navegante sonha o peixe anônimo alimento a fisgar o navegante rompe a matéria flui sobre a onda mãe o navegante aperta o leme na água 389 o ritmo do mar necessita equilíbrio viva a vida do navegante precisa como barco elegante CILÍCIO edifico a arquitetura do navio como um arco triunfo mortifico o peixe com cilício como um condenado à fogueira AMARRA o silêncio do pensamento é pleno diante do mar o silêncio do tempo é total perante a maré difícil fugir dessa amarra os tímpanos não funcionam o pensamento não se concatena estou preso no barulho do oceano MAR OUTRO o mar é um só ou muitos como eu? o mar é totalmente feliz porque não chora não ama não ora o mar é plenamente feliz porque não envelhece não nasce não diz 390 POEMA DE MAR consulta a linha falta pouco para o mar virar poema outro vário meu seu VERÃO na cabeça há cérebro noz recheio da alma cabeça é cérebro mente sou eu o movimento do rio foz final de linha inverno é frio verão sou eu ASA ABERTA o destino carrega para o mar eu me destino para o chão a asa quer saber de voar eu vôo quando sei amar o destino é intenso comensurável no chão pisado na asa aberta 391 NOME DE SANTO de santo não entendo é poder demais de outro lado de santo não compreendo é saber demais depois de morto de santo não sei nem a data de nascimento eles estão vivos na boca do povo DESPEDIDA preciso ir embora levarei o verso na garganta vou libertá-lo na tela depois sem cela o verso livre voltará em boa hora COTIDIANO/2009 INSTANTÂNEO meu peito tá que tá cheio de poesia se espalha me empala eu no meu peito que tá cheio de alegria se extravasa me gargalha 392 MEIO DA CIDADE o dia é cheio de plenitude oculta por trás de postes de pastelarias lotadas de ar e vozes e queijos será que há nesse pastel de vento um pouco de tempo? Haverá! o dia me recebe bem no meio de seu centro da cidade de ruas escuras da madrugada em horário de verão será que há nesse relógio da vida um todo de tempo? Quem viver, verá! GAIOLA E ASFALTO a gaiola no chão um passarinho de bico aberto de branco intenso morre de medo o moço fumando seu cigarro sem se preocupar com o objeto de asas de falas de tanta diferença eu quis libertar as asas do passarinho mas me permiti apenas contemplar tenho inveja da liberdade das asas que se recusam a voar tenho inveja da caducidade dos homens sérios que usam a cidade para se amofinar 393 COTI DIA ANO dentro do cotidiano cabe dia cabe ano centro do dia-a-dia salve o ido salve o ia EXCERTO URBANO a menina brinca de tempo futuro roçando a face morena na janela do coletivo azul de céu o homem xinga em pensamento o ontem olhando um jornal abundante em violência da vida coletiva da cidade a mulher pinta o rosto preparando o sorriso já dentro de um escritório antes de nele estar a vida é aflitiva em toda idade OS DE MENOR IDADE algo foge quando corre o menino de rua espanto geral espalhado no ar o menino sem casa mora na casa toda a sua cidade ou seu presídio a sua possibilidade ou seu exílio 394 a sua menoridade ou seu sacrifício algo morre quando o menino de rua sofre eu me canso de persegui-lo ROTINÁRIO eu me envolvo na rotina de cabeça como fumaça de incenso no corpo abraço eu me devolvo à rotina diariamente como nuvem num ciclo eterno de chuva secura eu vou para o meu trabalho como um obstinado no tempo preso vivo a rotina sou da rotina REVISTA abro a revista colorida por dentro e por fora domingo dia bom de fazer leitura rever o tempo do ontem passado fecho a revista e possuo o dado da realidade domingo é fruto de uma semana árdua fecho os olhos e me volto amassado 395 o sono depois da notícia amassa a cor da revista a notícia de leve fragmentada PÃO MATINAL o pão quente da padaria no domingo é mais mais tempo para si o pão pronto da calmaria no domingo é tal muito sal purgação INÚTIL POEIRA a poeira por sobre o prédio parada estática está a poeira no andar último ninguém limpa ninguém percebe sujeira a poeira se consome no vento o vento percebe sua existência eu também navegando os olhos pelo cotidiano do dia na cidade 396 PRECE DO SONO eu me descubro no acordar cedo tão cedo que os santos se espantam com a prece pouca eu me percebo pleno no amanhecer forçado quase enforcado por um relógio imaginário estou pleno no trabalho de dormir e pegar o serviço pelo chifre eu estou cheio de trabalho ao dormir e preciso me refazer para mais trabalhar meu tempo de descanso é pouco o corpo reclama a alma reza tola MURO o muro divide a rua entre quem está na rua ou no lote noto no muro o invisível do porte vejo no muro a mensagem do óbvio o muro fecha a rua feito margem de rio 397 DE UM PONTO AO OUTRO a cabeça balança na curva se curva debate pra frente pra trás a cabeça ginga na parada se turva batida em toc toc no encosto a cabeça com boné lenço ou outro apetrecho se liga novamente ponto final JANELA DA SERIEDADE o homem na janela viaja a cor do lado de fora é muita a mulher na janela dispara a dor para fora de si que é vária os sérios se sentam sozinhos na janela do coletivo AZUL a conversa fácil o detalhe breve a viagem ágil o trocador serve 398 o ônibus azul vai ponto a ponto enche o coletivo sai carro tonto vende eu tenho lugar cativo nesse mexe remexe da coletividade urbana LANCHE RÁPIDO a lanchonete rápida serve e serve e serve não se pode demorar o tempo está quase passado mas se ainda vai passar por que não deixar o tempo esfriar feito café no lar? a lanchonete tem caixa ficha salgado prato não se pode esperar o relógio agride o pulso mas se o relógio não para por que não desfrutar do tempo como aquele de colher manga madura no quintal? TEMPO JUNTO o tempo do coletivo é de porta aberta porta fechada roleta rodada grávida sentada 399 o tempo do coletivo é de ponto cheio ponto vazio trocador sonolento idoso identificado FAST FOOD o tempo de um fast food é rápido como uma fecundação indevida o tempo da comida rápida é sinal de eficiência do sistema pague-pegue o tempo é ligeiro na lanchonete de vermelho letreiro VIRA-LATAÇÃO cachorro na madrugada da cidade deixe o lixo para o vira-lata caridade pomba na manhã do centro jogue a pipoca para a vira-lata asa quebrada rato na última hora da noite caia o resto de comida ao vira-lata da boite 400 O TEMPO LOUCO DA CIDADE enquanto a vida passa lentamente na cidade interiorana o tempo foge aqui enquanto a moral permanece na cidade conservadora o tempo muda daqui enquanto os homens são apenas da cidade ou da roça na cidade do interior aqui a vida é outra enquanto as mulheres são tolas na gravidez ou no parto na maternidade do interior aqui o tempo gera a louca enquanto eu procuro me encontrar no interior de mim mesmo aqui nessa cidade grande eu me perco em território ermo DONO descompostura na praça pública sou de outro tempo do tempo de ser sou de muito 401 tempo do tempo de crescer sou de longo tempo do tempo de permanecer sou de pouco tempo do tempo de se perder a praça é publica eu sou apenas dono de mim FLOR morrer de amor não quero prefiro a flor mesmo sem cor morrer de dor não posso opto pela cor branco gelo O TEMPO COTIDIANO o tempo dia mês ano calendários fundidos jungidos unidos devassados em rugas amontoadas na face o tempo se traduz em ação perdida em comoção vendida em aparência pobre de sentimento 402 o tempo me rouba a paz como faz com folhas secas em estações variadas há tantos e tantos e tantos dias varrendo da face da terra o velho o ido o passado o tempo me angustia nesse vai e vem de onda sem fim rasgando o sentido em mim de mim pra mim em contentamento de ser e estar no mundo mesmo vazio o tempo me roda em seu ciclo puramente insólito e vou girando em transe único em constante desavença entre as três dimensões do ontem do hoje e do amanhã o tempo me leva para lugares reais e lugares que somente a mente saberá dizer para si mesma onde foi o que viu o que aprendeu o que sofreu o tempo sofre em mim a angústia de ser o tempo morre comigo quando se faz perder o tempo ferve em brasa para depois desaparecer o fogo do tempo é passageiro a alma do tempo é ligeira a dor do tempo é cotidiano CASA para Mariângela Pena Andrade a casa casou-se com todos do cão no quintal ao sapatinho de metal a casa abrigou a todos da artista de fases várias ao engenheiro de poucas falas a casa adormeceu a todos de noite a menina de cabelos longos de dia o casal no sofá em sonhos 403 a casa cresceu árvores no quintal passarim de tons psicodélicos deu bougainville goiaba flor para o natal a casa tem arte de cima em baixo do teto ao tato a casa tem paz de céu e família construção fugaz (a arte mexe na casa pela manhã e de tarde já há outra obra vivendo pronta para ser apreciada a arte ali faz parte) DESEJO queria que fosse verdadeiro o sopro do pulmão eternamente pronto queria que houvesse eternidade na mão sobre o coração fluentemente sonoro queria que nada me retirasse daqui os olhos buscam o por-do-sol calmamente colorido queria que fossem as aves em árvores o roçar de suas penas me deslumbram esvoaçadamente ventania 404 queria que o tempo estivesse oculto nada de suas leis reveladas como as rugas na face como eu feito estrada queria apenas que o tempo me contivesse sem me expurgar de sua roda da fortuna ANO PASSADO o ano foi tão breve feito forno de quitandeira transformando massa em biscoito de goma o ano foi tão leve feito papagaio de menino alterando a rotina dos dias voando no alto da santa rita o ano se foi muito de mim trouxe de volta o ano se foi um outro em mim foi-se embora o ano tem 365 dias ou 366 noites eu tenho uma vida agora 405 DEDARATA no jornal ele passa de um dia para outro a notícia envelhece como nós na revista ele cansa de ser um dado morto a revista tem dedarata como nós ele feito 14 bis voa hoje volta irrequieto Dumont inventa outra máquina de parar as asas do tempo USINA divido o dia em três turnos como um operário da indústria de manhã é hora de pegar no batente a estiva do porto – acordar de tarde é fuga da manhã com sono ou sem sono o dia prossegue – estar alerta de noite já penso no dia seguinte e me deixo levar pelo som do futuro – reinício da tarefa divido a vida em três turnos como um joão-ninguém diante da vida na infância – já foi! – peguei o mal de viver na maturidade – está aqui! – resolvo o mal de querer na velhice – virá? – vou pedir para renascer sou operário da indústria a vida é um existir que se desenha 406 APARTAMENTO os blocos se deslocam pela janela de vidro o ônibus consome grande atenção para o urbano as cores são intensas e vão de um azul tolo ao salmão não grelhado os apartamentos sobem um sobre o outro sobrepondo histórias de vida de muitas vidas paralelas o apartamento fecha o cerco ali dentro se é o que se é de fato a voz a música o fogão a gás o espaço é feito gente de cimento BANHO o banho perfumou o banheiro eu saí da fumaça repleto de outro cheiro o banho consumou o dia inteiro eu me refiz ali dentro para outro feito o banho enxugou o suadeiro eu fechei os poros vou dormir refeito URBANIDADE TEATRAL a fumaça xamânica do trânsito a pomba de pernas tortas na calçada a árvore seca em pleno dia de chuva eu perdido como todos na rua 407 o anúncio de venda de lote no poste sem data a mensagem no muro de um grupo sem identidade o prédio fechado para reforma sem nenhum operário eu identificado com o vazio no meio da rua o policial obsoleto no seu posto de trabalho o ninho do pardal dentro do poste de cimento o alarme da motocicleta acionado por ninguém eu presentificado diante de fatos mudos a cidade dorme cenários eu os revelo para mim a cidade fornece cenários eu os guardo sem fim cenário inútil de urbanidade SERVIÇO PÚBLICO o que se passa ali dentro quem faz o quê em cima de um móvel qualquer naquele espaço condenado a ser algo na minha imaginação (interrogação) quem conquista quem o homem ou a mulher a mulher ou a mulher ou o homem ou o outro homem naquele espaço minúsculo de sexualização (interrogação) o dinheiro sai do cartão da bolsa em viva moeda em morta civilidade o casal é carinhoso rancoroso será um amante será uma experiência nova (interrogação) eu me pergunto diante da placa em vermelho MOTEL 408 BOCA DO LIXO a chuva escorre para a boca-de-lobo já com azia de tanta impureza engolida na tarde de verão da cidade o bicho ‘tá solto as moças e meninos dos lugares escuros e altos já com ardência nas partes pudentas na noite de verão da cidade corpo de delito PULSAÇÃO COTIDIANA o cotidiano traz tristeza alegria variada e incolor o cotidiano pulsa melancolia existência falseada na sombra da dor a vida pulsa forte no amor na alegria ou dor EU IDENTIDADE a mente não apaga a identidade não a perco por um segundo sequer eu a tenho como eu todo repleto de mim a mente não decifra o mistério interior eu possuo luzes que ainda não iluminaram insights que não se decifraram foco de mim 409 ESTAR-VIVO-E-EM-PÉ gostaria de evitar o assunto mas não posso aparece sem querer não posso dele sair gostaria de provocar outra expressão mas não ouso surge sem de mim depender um fosso fundo é esse detalhe é essa mancha é essa falha existência TRAJETO BREVE estou na superfície do dia pairando por sobre o sentido entre o prédio gigante demais e minha pequenez de sombra estou puramente sem paciência o trânsito caótico de pessoas despóticas o carro amassado pelo moço sem referência e meu trajeto breve no mundo SACOLA DE COMPRA a sacola sacode toda seu polímero a caixa lá dentro encobre o objeto tirado da vitrine de uma loja real 410 a sacola pula na mão suada a fruta lá dentro pede pra virar salada gelada engolida às pressas no fim de tarde nutricional a sacola pede mão a mão pede água a água pede rio o rio pede fim SILENCIOSIDADE esse silêncio prenunciando o seco na boca na garganta na voz na trama da vida esse silêncio absurdo suplica sentido esse silêncio me fere silêncio eu FILOSOFIA a filosofia não desmente o tiro no pé antes sabe muito bem de quem veio e pra quem é a filosofia não mata ninguém antes esclarece - morrer é muito bom! (na hora certa!) e convence o desavisado a melhor hora aquela não é a filosofia não tem nada de complicado 411 antes é o leitor de teses ousando dizer da complicação como hipótese complicado é o filósofo distante da fé a filosofia alivia o fardo da existência não coloca mais peso e mais dor só quem tem medo de viver faz da filosofia seu horror viva a filosofia sem o suicídio banalizado de amor viva a filosofia sem o precipício estigmatizado do sofredor eu sou feliz porque penso eu sou feliz porque ajo eu sou feliz porque sinto plenamente LEVE leveza quero ser leve ao andar mais leve ao me retratar leveza essa pureza interior ausência plena de dor 412 leveza esse estômago vazio da fome saciada de amor leveza essa pena voando pela janela despreocupada do pouso forçado leveza esse sorriso breve e verdadeiro desocupado da rotina do obrigado PLACA PUBLICITÁRIA a placa enferrujada na parede no segundo andar do prédio demolido por dentro vazio de paredes a placa verde branco preto de número do telefone apagado por que não tiraram ela de lá se puderam arrancar sua memória? a placa morre sem sentido no alto do segundo andar do prédio vazia como ele vazio devolvam a sua dignidade! MANIFESTO DA IDADE quando o tempo passa por todo o corpo e desacelera e por causa desse tempo passado a vida fica mais bela eu preciso dizer que o tempo na pele é tatuagem indomável eu necessito dizer que o tempo é uma herança glandular 413 manifesto minha inquietação contra todos negadores do tempo na carne e no osso e no rosto o tempo é deixado de lado como se cada célula fosse culpada pela grandeza da experiência da existência acumulada manifesto minha repulsa contra as rugas despistadas como se fossem piadas as frases de amor eterno passageiro uma vez que o que é eterno se guarda na alma não no corpo esse poço sem fundo de tantas necessidades temporais eu nego a negação do finito o rosto eternamente belo sem as curvas do tempo com versos e prosas eu me recuso a acreditar que somos um tempo sem idade a idade é a roupa do tempo no corpo e a beleza da alma posta no mundo para todos verem a idade é um cartão postal a idade é tempo vivido como água de mar tem sal como comida boa tem tempero que agrada e dá paz a idade não pode ser um feio a idade é sonho inteiro feito eu manifesto contra a prepotência dos anos que não passam os dias os anos as eras passem no corpo e na alma marquem esse meu objeto no mundo todo agora preciso sentir em mim o tempo pleno eu não suportaria me equivocar diante do espelho prefiro assumir cada ano vivido pois só assim sou autêntico diante de cada sonho realizado uma miragem contrária a isso me faria outro me dêem a idade merecida não tenho vergonha 414 somente alegria de ser meu tempo me levem na lembrança com minhas rugas com meu pouco cabelo com minha voz rouca eu digo ao mundo inteiro nada valeu mais a pena do que o cotidiano me recriando deixem-me na idade que eu tenho pois não me surpreendo sei bem! daqui a alguns anos terei outro corpo outro corpo outra idade outro tempo pra contar deixem-me com meu espelho com minha idade com meus anos e meus dias eles serão sempre meus, eu manifestamente assumo isso BICICLETA a bicicleta vermelha de aro de alumínio desce a ladeira a bicicleta inteira é geometria equilíbrio a bicicleta sente a condução do ente 415 JOGO DE PALAVRAS eu escrevo sentidos muito sentidos eu descrevo imperativos muito imperativos eu sinto sentimentos muito sentidos eu minto palavras para dizer nada quando eu quero a palavra me mostra quando eu não quero a palavra é ostra quando eu preciso a palavra é sentido quando eu despisto a palavra é mentido a palavra é chave de significados procure meu jogo de esconde-esconde ILUMINAÇÃO o dia revela à cidade seu rosto puro suas esquinas nuas seus postes feios suas feiúras o dia dá à cidade seu corpo todo suas árvores de tronco escuro seu ar fétido ou puro no alto sua chuva suja na sarjeta o dia deseja à cidade a sua verdade a luz do dia desse ano é puro a luz desse momento é dia pronto BAIRRO o bairro tem vidas paralelas como a minha a sua e aquela o bairro tem ruas convergentes como eu você e essa gente 416 o bairro tem aves em todas as árvores como eu tenho ninho na mente para dar em asas o bairro tem cachorros atrás do portão como eu sou fera para defender meu coração o bairro abriga muitas histórias como eu me carrego na memória FLORAÇÃO a flor do jardim está tão apagada não suporta mais o peso da cor já caída pedindo que a terra consuma sua seiva e cor a flor se despede do mundo quase feliz pela vida em volta abelha formiga besouro o olhar de alguém na janela CENA DE FAMÍLIA será que a menina no colo da mãe enrolada no pescoço vê o que eu vejo pela janela de vidro do ônibus? será que mãe atada ao corpo da filha preocupada com o horário crê no que vê no mundo cão fora do coletivo chão? 417 FECHADO PARA BALANÇO estou agora como o bar do bairro na segunda-feira não me incomode não bata à porta hoje estou fechado para qualquer situação estou agora como a árvore cortada pelo corpo de bombeiros depois da tempestade sem graça e podado para qualquer conversação estou agora como o ônibus de portas fechadas passando a mil quilômetros por hora no ponto repleto de pessoas estou em outro mundo estou agora nutrindo raízes no cotidiano RUÁRIO a rua vazia demais para ser eu um transeunte estava eu parado dentro de um espaço coletivo observando a miséria humano do trabalho de um dia exaustivo daqueles a rua parecia um cadáver solto e sem ninguém para chorar seu defuntamento sem cheiro sem cor sem nenhum significado daqueles a rua estava tão magra como a moça anoréxica mas ainda forte como o rapaz vigoréxico saindo da academia com os braços cheios de músculo e vazio de significado a rua me apertou por dentro me jogou num mundo obscuro a rua me fez silenciado na noite de retorno para casa FIM DE MÊS fechar o mês abrir novos códigos de barra a vida é cheia de pretos e brancos 418 finalizar o Mês abrir uma nova conta no banco a vida é feita de faz de conta reinventar o mês que parece vai se repetir fugir da rotina de acordar e levantar a vida é feita de cotidiano SONORO o telefone toca e me desperta da acomodação da novela nada revela o telefone treme e me chama me remove das pernas para cima sempre acelera o telefone fala por alguém longe eu de perto vivo também distante CÃO o portão se abre o barulho das chaves na mão despertam os ouvidos latidos o portão se fecha o som dos passos na escada aceleram o coração batidas o cachorro reconhece o cheiro do dono de longe 419 PISCADA o som do olho espiando a vida a voz da mãe chamando para a comida estranho som do dia-a-dia a voz rouca da louca da rua a verruga dolorida na volta da lua pequeno ciclo de mão e pua SIRENE a sirene dos operários espanta as aves avisa do tempo pressagia a rotina a sirene oca por dentro roda as horas maltrata o corpo quando demora a sirene puxa uma força estranha de dentro a mente necessita de um som mais puro que o dia duro FLUIDEZ o cotidiano flui apesar da hora gasta inútil o cotidiano vai apesar do tempo perdido fútil o cotidiano continuará apesar de todo verso lúdico o cotidiano é mar laborioso de ir e de voltar 420 MANHÃ/2009 ACORDAMENTO eu acordo das trevas da noite pronto para a novidade uma noite feita um dia a mais no calendário suporto a manhã devagarzinho eu decifro a luz do dia ressurgente tonto da suavidade o corpo abandonado na cama para refazimento sustento a manhã divagando sozinho DESPERTADOR o despertador tocou tão alto o primeiro som espantou as aves do sonho o despertador afundou as notas no tímpano esquerdo direito me levantei o despertador me roubou da noite do sono do sonho do repouso eu revivo nesse toque forte OSSIFICAÇÃO os ossos rangem dentro da estrutura de músculos os operários erguem meu corpo construção no mundo os ossos deslizam um sobre o outro para não se partir os engenheiros calcularam meu todo edificação sem fundo 421 eu sou feito de ossos concretos um prédio de carne e dor de manhã a edificação sobe de dia quero construir amor PRESENÇA quando meu olho direito mira seu olho esquerdo a manhã se dá sem medo quando eu amo bem cedinho o dia se torna eterno a manhã me sacia cedo quando eu tenho seu corpo aquecendo minha frieza a manhã me faz nascer o sol quando eu toco sua pele fertilizada pela noite a manhã se faz moldura perfeita SONHO lembro-me dos vultos dos nomes talvez quem sabe da cor mas é vago no final das contas a manhã roubou a certeza do sonho lembro-me pouco tão pouquinho que fico com pena da minha mente não conseguiu identificar por um segundo o cenário múltiplo a manhã levou para sempre meu sonho quando a manhã chega com ela a luz com ela a sede 422 quando a manhã rompe com ela vou com ela me perco o sonho vai junto ladeira abaixo sem medo do passado MILAGRE MATINAL sou o sacerdote da manhã diante da cozinha a água quente pronta para a mutação café em pó virando bebida reparto o pão em vários pedaços e me dou o sabor é que na manhã o pão solitário parece comunhão do corpo com a alma na janela o sol vai aparecendo como milagre a retina não se acostuma à visita sagrada do astro deus em minha vida recolho todos os utensílios do início do dia lavo cada objeto com água quase benta da rua começo o dia de fato TRINTA MINUTOS o intervalo entre o acordamento de todos os sentidos inclusive o mais importante da minha inteireza é de meia hora exatos trinta minutos entre acordar de fato 423 sair no exato tempo de um coletivo azul passando solto com seus pneus pesados girando o meu mundo trinta minutos me separam da casa do mundo do trabalho esse mundo fosco da rotina trinta minutos me deixaram para trás da casa abrigo eu me vou para o dia BICO DE LACRE o bico de lacre é uma ave pequena de tão pequena cabe no vermelho da lembrança seu bico forte seu vôo curto sua pena cinza seu topete bonina o bico de lacre voa baixo no capim come semente cata minhoca voa em bandos miúdos tem medo de gente o bico de lacre me anuncia a manhã leve como pena de passarinho denso como chuva de outubro eu nesse cenário sou apenas eu mesmo 424 LIÇÃO MATUTINA a manhã me toma para si dentro de si para sempre e eu não me importo amanheço em sorriso ou em angústia feito mas feito e isso é o que me basta ao amanhecer do dia a manhã me consome as primeiras energias e eu deliro com esse dar-se da noite em manhã em manhã feito dia em dia feito imortalidade da alma cativa de um corpo temporário a manhã me ama de um jeito tão próprio e eu me dou como quem se dá a deus o absoluto no momento da morte mas nasci pela manhã repleto de absurdo eu no mundo com todos os astros girando sobre minha cabeça a manhã me digere levemente e me dá sua acidez para aprender a digerir as pessoas as situações as nobres situações de quem vive a ponto de pressão máxima a manhã me acostumou tão mal não sei sair de casa sem a náusea de sartre na bolsa com a distância entre o coração a mente de thomas merton não sei viver sem o início do dia chamado manhã eu não posso existir sem o começo do dia ensolarado aqui dentro feito sorriso lá fora o sorriso do mundo para o mundo para fora para os outros do qual eu faço parte a todo momento a manhã me dá o melhor de mim me toma de mim para o mundo me põe onde gostaria de estar mesmo sem saber e para quê saber se o silêncio impõe a verdade... eu sou manhã hoje eu sou manhã agora sem eclipse solar eu sou o que sou sem negação de ser e estar nessa manhã de dia ensolarado e de vida propriamente dita a manhã me trouxe novamente para dentro de mim e de lá não quero que ninguém nem nada nem eu mesmo possa me tirar hoje eu comecei em mim um novo tempo uma nova fase de rotina eu sou o dono de mim mesmo na manhã da minha alma mundana 425 FRIO o vento encontra ainda o frio da madrugada como eu encontro ainda o resto de mim dado ontem a brisa invade a noite ida com o calor do dia como eu vou e venho numa maresia constante ressaca o dia se dá da noite o frio se dá no calor como eu me dou apenas de mim BRILHO o passarinho cantou na árvore a pomba rolinha busca comida desde cedo o mundo é voz é fome o cachorro procura o dono a sacola de plástico o lixo desde cedo o mundo é abandono é cansaço a namorada deseja o namorado o noivo foge desde ontem do casamento desde cedo o mundo é traição é sofrimento até quando a manhã será sem brilho para quem está sem brilho? 426 ESCONDERIJO a manhã me abriga no seio da terra eu corpo inteiro alma nem tanto eu massa matéria ego eu sou apenas manhã queria me esconder no alto da árvore como faz um passarinho quando vem o medo ou o cansaço da vida de vôos baixos ou a vida rasteira do pouso na cidade queria estacionar no último galho da árvore não no mais distante precisaria ainda de um pouco de folhas para me proteger na meditação do dia que começa queria apenas um pouco do isolamento que a manhã me rouba no dia de trabalho no dia de rotina começa de novo ALMA PURA roubo dessa manhã o ar puro pureza é a expressão mais forte de fora para dentro de dentro para o todo o ar frio o ar saudável o ar essa dose de purificação esse dom de quem procura no de fora o de sempre dessa manhã com chuva fria eu quero me deleitar na cama sentindo o cheiro puro do ar pela janela da alma 427 TRÊS MINUTOS três minutos para expressar a saudade da manhã de neblina três minutos para rememorar a pluralidade da manhã de morro acima três minutos para reatar minha alma cansada da magreza da cidade grande com a fartura do meu interior (minha cidade tem manhã singela tem padre e capela menina e menino na porta da escola) DEVOLUÇÃO o rosto enxuto na toalha da verdade o dia no espelho começo com saudade do tempo ido escoado perdido na pia batismal dos dias as mãos cada vez mais envelhecidas lavam e se lavam e se levantam em prece já não sei onde andam as fantasias de ontem talvez na gaveta do quarto esquecido da memória acordo concordo resgato esse eu mesmo de dias atrás de manhãs atrás de mim feito eu me perco nessa manhã de novidade pulsa em cada célula um novo sonho preciso me encontrar 428 SORRISO PÃO-DE-QUEIJO ela me sorri em meio ao trânsito de pessoas ela me dá bom dia no meio da rua na manhã sem graça da cidade grande ela me vende pão-de-queijo mas me sorri tão suavemente compro saudade do povo de ontem de ontem de ontem MULTIPLICIDADE é que no céu ainda havia lua e ao mesmo tempo no tempo de um único olhar o sol brotava feito novidade é que os pássaros começaram a acordar e ao mesmo tempo os seus predadores de um lado ao outro da mata morte e vida se anunciavam é que eu me dissipava feito névoa por dentro para me fazer tempo bom por fora de um modo inequívoco eu me procurava multiplicidade de mi mesmo 429 FRIAGEM na luz do dia eu me vejo refletido na flor colorida eu me reflito reflexão na volta da terra eu me vomito na volta da lua eu me transmuto ovulação na velocidade da vida eu me acelero não sei se me encontro ou me deixo motivação na manhã quando eu me acordo um outro lá dentro se dorme maturação eu sou feito de ciclos como o vento faz frios NÁUSEA saio cedo não acordo ninguém saio cedo não provoco alguém eu me vou como outros vão 430 eu me parto como outros dão o dia se faz e me desfaz o dia é capaz de dar a paz amanhecer é suportar-se PERGUNTAR NÃO OFENDE onde as árvores cobertura da rua agora asfalto? foram parar onde senão no movimento da locomotiva? onde o gás carbônico exalado pelo cansaço agora meu corpo? se sacrificou à toa para dar meu gás na vida? onde a agenda desenho infantil agora maturidade? se desbotou na memória para dar mais cor à idade? 431 SALTO pulei da cama com saudade aquela saudade inexplicável de um tempo ido bastado em si pulei da cama hoje pela manhã carregando a cruz do condenado atacado pelo remorso do sono sonhado em mim LARA para Verlaine Goulart ela veio ao meu mundo antes da entrada dos homens e mulheres no trabalho ela veio tão cedo feito notícia boa de incomum e muito forte parto natural ela chegou cedo ao ouvido ouvi seu choro longe iniciando sua vida repleta de sonho para realizar ela chegou lindamente pela manhã aos ouvidos de seus expectadores ela começou sua trajetória no mundo 432 dando um show de alegria a todos bem-vinda ao mundo novo mais novo por sua presença nascimento de Lara, filha da Verlaine, na noite de 23 de março de 2009, comunicado no dia seguinte pela manhã OBRIGADO À MANHÃ eu conheci seus olhos na manhã de um lindo dia de sol e não me esqueci mais do sofrimento que a noite de solidão pode trazer para os corpos amantes separados eu conheci sua face seus olhos sua boca numa manhã eterna que dura aqui dentro como uma tatuagem na alma reforçada em seu contorno nos dias nas horas repassados eu jamais esquecerei do seu sorriso pronunciando o bom dia a boa chegada a boa vinda àquela cidade de campos verdes e planícies vastas por meus pés pisados o sol da manhã trouxe a figuração de seu corpo e sou grato à essa luminosidade reveladora da sua alma ingênua para meus olhos juvenis abertos aos amores renovados obrigado à manhã por sua revelação no diafragma da minha lente interior obrigado à manhã por trazer seu corpo para minha vida memória da anterior 433 VELÓRIO DE DIA quero morrer de manhã para ter o dia inteiro para recordar quem sou quem fui que fiz das horas dos dias do tempo quero morrer ao raiar do dia para ter a manhã toda para me iluminar por dentro com o que sobrou de uma vida inteira vivida para fora quero morrer na virada da madrugada para dar uma alta gargalhada ouvida só por mim do lado de lá ao lembrar da idiotia dos materialistas quero morrer bem cedinho para dar tempo de rezar por mim junto aos meus que rezarão por mim junto ao corpo inerte deixado como prova do fato quero morrer na hora do acordar dos pássaros para renovar a esperança de reencontrar novamente uma semente para me alimentar por dentro quero morrer de manhã cedinho ainda ao cheiro do café para não assustar ninguém e ficar pouco tempo no velório sem sentido quero morrer de cedinho bem cedinho miudinho mas vamos mudar de assunto para deixar a natureza agir por si só DIA o dia quando inicia o alarme me anuncia o dia quando morre a cama me socorre 434 o dia quando chove guarda-chuva me recobre o dia quando sol minha alma é girassol o dia quando música ouvido de boa astúcia o dia quando cedo tempo muito para ser cego dia dia dia venha suave ave ave ave SONHO RUIM eu me deitei ontem à noite para renovar meu corpo mas o sonho me roubou a paz eu me fechei na cama para inspirar a célula mas o sonho desesperou o dia premonição existe? LÁGRIMA a lágrima de manhã é difícil a alma acorda pronta 435 a lágrima de manhã é inútil a alma não repara a lágrima na manhã é fútil a alma não melhora a lágrima é coisa noturna a lágrima é fruto tardio ENERGIA eu revirei a noite toda na cama mas me encontrei pela manhã eu inventei bobagens a noite toda mas resolvi a insanidade de manhã na noite há má vontade manhã é decisão tomada 220 volts PREFERÊNCIA prefiro a hora de sair chegar é pouco acredito na hora de ir voltar é fosco 436 quando o sol nasce no ponto móvel eu mobilizo o olhar para dentro quando o sol se põe no lugar escuro eu começo de novo a me tatear no mundo prefiro a flora a sair que a flor a retrair quero o sol de rir que a noite de se ferir PALAVRÃ para a manhã chuva calma céu rosa claro ave na janela pão quente manteiga mole para a manhã eu mesmo para a manhã o vento frio o ônibus atrasado a menina e a mãe o pai e o trabalho óculos escuros na manhã a esmo manhã palavra sã manhã acorda divã manhã consoante manhã como antes desejo a manhã como palavra 437 GATO o gato na rua na esquina para dentro de casa vai prontamente a noite acabou o gato pula pela rua molhada para a casa seca vai displicentemente a noite findou o gato sabe das horas como sabe dos cios de noite uivou feito louco de manhã ressaca moral BICHO MATINAL os bichos matinais são cheios cheios e plenos de sinais do bem-te-vi vendo quem não devia do gato preto em pleno dia de sexta-feira treze dá medo do joão-de-barro refazendo o teto depois do alagamento do bairro do urubu pegando sol para voar alto a morte vem da noite como melodia os bichos matinais são cheios cheios e plenos de sinais ai de mim que os vejo 438 CHUVA quando a chuva bate na janela eu a deixo entrar no meu sono quando a chuva cai lá fora eu adormece no leito em paz quando a chuva aumenta eu cubro o rosto para desligar quando o relógio desperta eu tomo o guarda-chuva para o dia enfrentar (quando acordo com chuva forte eu me ressinto a natureza com suas peripécias quando acordo com chuva leve eu me desminto a natureza faz da chuva flor e festa) DICIONÁRIO: MANHÃ manhã do latim maneana de mim mané e ana de si a fé e cama manhã do latino anglo saxônico feito verbo substantivo adjetivo quando a boca do povo se abre 439 MISSA MATINAL quando o sino tocava eu era acordado pela fé na missa de padre gusmão o mesmo que virou bispo de uma prelazia distante tão distante que esqueci o seu nome quando o sino atacava meus nervos para encontrar deus – nesse momento achei que ele estivesse naquela hóstia sobre o altar – a manhã era plena de fé quando bem antes de terminar a missa a cidade acautelada dormia ainda plena de sonho ou pesadelo eu me virava comigo mesmo para me encontrar quando a igreja fechava as portas ao bater do trinco eu me cegava para o cotidiano e esperava outro momento como aquele para ser eu mesmo quando a vida se faz um fato frouxo como o roubo da alma pela força de uma fé já composta robusta e instituída feito aquela vivida por mim ali quando a vida é roubada na ilusão da religião ritualística como solução para a conspiração interior de outras vidas quando o menino vai virando outro homem outro ser já cheio de perguntas incomunicáveis a igreja foi ficando pequena demais para caber a interrogação eu me excomunguei diante da igreja quando suas paredes não mais me suportavam nem suas estruturas me podiam controlar eu me pus do lado de fora do edifício gigante para encontrar nas pedras de cada caminho longo ou curto um sentido próprio 440 o sentido estava não impresso nas páginas do missal nem confesso nas palavras de um cardeal elas estavam ali dentro do que pensava o sentido estava não autorizado pela volta e meia ajoelhado cabeça baixa voz alta pela palavra frágil do ágil sacerdote sagrado porque homem o sentido estava não proposto no contrato de mediação entre minha alma e a alma de alguém que tem alma como eu e eu admitia ser dessemelhante o sentido era outro mas eu não via eu não previa eu não me escutava mas cria cria e cria como creem os incrédulos que confiam numa força estranha o sentido era tanto mas eu não prosseguia na iluminação porque de cada vela acesa em frente ao altar do sacerdote eu me apagava e me perdia o sentido era a vastidão de outra palavra articulada no calabouço da minha razão que de frágil era senso comum mas era minha somente minha e me afligia o sentido eu o fui encontrar do lado de fora de costas para o altar de frente para o espelho do meu quarto ou do lago de narciso dos gregos filósofos gerados na mitologia abissal o sentido era o bater a porta e ingressar no universo vasto das vidas vividas e encadeadas e jungidas e unificadas e significativas para as quais eu me sentia completamente prontificado o sentido não era o edifício erguido por mãos de homens jovens velhos passados e renascidos pois esta é a lei o sentido era eu mesmo quando mesmo eu era ele feito antes e depois no jocoso movimento incessante da temporalidade 441 o templo sou eu mesmo erguido em bases próprias o templo sou eu mesmo ressurgido em asas de fênix TEATRO DA VIDA na minha cidade natal manhã é chaminé fumaça feito incenso de fé na minha cidade pequena manhã é pão-de-doce adocicado feito páscoa ovo de chocolate na minha cidade inexplicável manhã é uma rotina tirar a cortina do rosto teatro da vida GINÁSIO/COLÉGIO a sirene da escola no ouvido ainda me comanda me faz aluno fogão de lenha caderno caneta me anoto me noto o dia era frio 442 o dia era quente o dia era sirene sireneternidade RODOVIÁRIA a rodoviária cheia de pobres adormecidos sem lar ou lares sem adormecidos é sempre muito confuso a manhã no inverno é de dar dó para quem fica na rodoviária dormindo no banco de cimento isso é a manhã do interior a rodoviária o papel queimado o louco já louco cedo o ônibus das 5 da manhã MATINA a matina da festa do rosário é uma prova de fogo foguete bebida e um padre aprovando o esforço para quê mesmo: serve? a matina da festa é muito muito muito cedo ou tarde para quem fica vidrado na lua da noite para quê mesmo: um teste? 443 BANDA DE MÚSICA a banda nas ruas alegra os corpos quentes debaixo do cobertor espesso nas casas de telhado colonial folia do divino um divino acorde um acorde para quem dorme folia do divino divina música quente para orelha gelada de quem dorme a banda passa tremendo o telhado mais (que ele vive rangendo de frio ou calor) com seu dobrado aceso ou apagado a banda nas ruas de sobe e desce vibra a fé no coração de jovens e velhos vivendo uma vida no cobertor do tempo COR DE SONHO acordar é um trabalho trabalhar é tarefa dobrada para o acordado prefiro o sono meu atalho farfalhar as asas na noite passo vidrado acordar é muito pouco opto pela noite de cor sonho lembrado 444 MOLECULAR sua lembrança se vai apagada pelas horas pelas manhãs pelas tardes pelas noite preciso de suas mãos em minhas mãos para reavivar a memória de minhas moléculas sua lembrança se vai desbotada feito vestido de noiva guardado no armário no porão em um lugar secreto acompanhando a fotografia em preto e branco sem nitrato de prata o tempo não estabelece a hora de esquecimento sua lembrança se rompeu feito elo de correntes enferrujadas e forças opostas seu corpo para um lado minha alma para outro e não há o encontro há tantos e tantos anos por que sua saudade me toca agora feito essa chuva escorrendo para o nada? por que sua saudade me tropeça as pernas das cores de sua lembrança? sua lembrança se apaga em mim mas o sentimento primeiro esse permanece livre de minha e de sua vontade e me tomou agora SOLAR[IDADE] o sol nasceu breve passou o sol se move bastou o sol mexe minha sombra revela a face do outro não eu o sol faz calor suor 445 o sol tem quentura vapor o sol me transfere do oriente para ocidente ponto de mutação NATURAL[MENTE] há uma ligação entre a árvore acordando e a mente pensando eu sou da natureza há uma permuta entre a ave cantando e o ouvido pulsando eu sou biológico há uma relação entre a tempestade esbravejando e o corpo assustando eu sou meteorológico ESTAÇÃO com a manhã chega o outono o céu se altera desacelera com a manhã chega o inverno o sol se distancia amarela com a manhã chega a primavera a flor se plenifica rica com a manhã chega o verão a chuva se intensifica recria 446 VITÓRIA vencer a noite é manhã como a frase ao final da linha vira outra linha para outra frase e assim por diante deixar a noite na manhã como depois do banho cada célula morta sepultada está nas águas quentes de março voltar da noite pela manhã como depois do primeiro amor as moléculas sábias fazem tremer as pernas no primeiro estágio de uma nova/velha paixão a manhã sempre a manhã NADA SE PERDE TUDO SE TRANSFORMA o queijo branco sobre a mesa envelhece a idade chega em forma de escuras bactérias o café esfria dentro da garrafa e cede ao calor do início de sua vida a fruta amarela vai perdendo sua cor intensa o tempo passa pela casca e pelo interior a flor no jarro perde a graça diante do espelho e morre desbotando descolorindo de manhã o tempo continua a passar para mim que sou vivo e sofro de tempo para os objetos e vivos seres sobre a mesa a espera da troca adequada pela nov[idade] 447 GRAVAÇÃO o corpo está gravado na cama uma noite daquelas de sonho de cara amassada o corpo se levanta lento da cama os braços de morfeu gravados no lençol são prova de que não estive só na noite que a manhã acorda o corpo inerte a alma solta o corpo pouco a alma tanto CORPO MATINAL a pele sente a manhã o olho pede a cor do dia o cérebro volta da noite pede serenidade ao dia a vida retoma seu ciclo desejo de rotina no dia o dia é o vício do corpo a noite é edifício da alma FINAL DA MANHÃ a manhã termina ao meio dia quando o sol ultrapassa a retina informa outra seqüência da jornada 448 do tempo em ciclo eu vivo cada etapa do dia escalando seu tempo para ser mais intenso cada degrau do ciclo a manhã entrega seu turno à tarde os deuses da manhã descansam cada parte tem felicidade e tormento a cada um conforme suas obras a deusa aurora já fez seu galope é hora de repousar a si e aos cavalos os deuses abrem e fecham as cortinas da minha da sua da nossa retina que venha a tarde onde o tempo arde TARDE/2009 HORA DO ANGELUS na igrejinha colonial no alto do morro -e por estar lá nem da corneta precisaria o padre anuncia ainda na minha memória a hora do ângelus hora de por deus no meio do dia -e dar a deus a manhã passada boa ou ruim bem ou mal vivida é de deus a graça da vida a prece sonora divide ainda hoje meu dia ao meio como sou corpo como sou alma como sou razão como sou sentimento os anjos anunciam um novo tempo a tarde começa com deus na boca 449 uma prece reticente nos ouvidos ainda escuto as palavras lavras do colonialismo SOMBRA DO MEIO DIA a tarde se abre no calor da sombra sem inclinação eu marco o tempo da tarde no meu corpo não inclinado na estrada da vida a tarde me aperta o diafragma vazia barriga a tarde de ar quente começa no almoço rápido ou lento familiar ou de rua a tarde se dá na impaciência do dia ainda uma parte na rotina o segundo turno cortante a tarde arde vária JOGO DE DADOS a tarde diminui a névoa interior mas dissipa meu eu para longe demoro para me encontrar a tarde flui a impaciência do dia o problema maior já foi dado resta agora o jogador a tarde conduz para o caminho do fim é o dia com suas regras próprias propostas a mim 450 SUOR E MEIO suor de meio dia é muito pesado como estivador no porto faz água sair de si e volver ao mar suor de dia pela metade é árduo como churrasqueiro diante do fogo faz a água da carne se evaporar suor é fruto do calor envolto no corpo ardendo em brasas feito alma na paixão sedenta por calor sem fim do abraço PISCINA INTERIOR a piscina azul me convida aprofundar os olhos no fundo abismo a piscina refrescante me incita olho por dentro da água me vejo centro a água no corpo o frio no osso relevo o suor a piscina me deixa pronto para a tarde no azul da água vejo o azul do céu mergulho em mim mesmo 451 [SOL]IPSISMO o sol na pele alimenta o sonho inerte na alma sem saber ou já sabendo sem certeza persigo a realização do brilho solar na vida presente é que o sol de dentro ofusca a dúvida pouca me visto do sol da tarde para enxergar longe a tarde tem horizonte pleno feito praia grande brilhar depende da força de dentro para ser luz incandescente para se acender na vida eu me dou o sol totalizado na tarde de verão para ver de dentro o que meu mundo por fora exige que eu seja mesmo no sonho ora vago ora cheio de luz como guru indiano na chuva ASFALTO o asfalto queima a sola do pé dentro do calçado mole é o asfalto deixa claro sua fala o calor é mudança dança há o asfalto permite ida e vinda quente ou frio rio lá o asfalto é quadra de futebol de jogo e de briga bola olá 452 HORA DE ALMOÇO quando chove na hora do almoço vejo da janela do ônibus o moço oco quando corre a moça entre os carros vejo pela janela do carro o tombo bobo quando o menino se perde da mãe na praça paro o tempo do almoço sinto saudade da mão da mãe na minha vida PAIXÃO paixão na tarde é de olhar cansado sem esperança de contato paixão na hora do almoço acontece tão pouco já saciamos a fome paixão é coisa de fim de tarde de mesa na pracinha de gente em à toa sendo paixão é fruto do fim do dia quando o dia já não dá nada e a noite já chama a alma 453 VIDA NA TARDE o interior é sempre esse olhar vago no furacão do tempo fluido diluído desmanchado em horas passadas em outras horas jamais ultrapassadas a vida no interior essa vidinha minúscula por isso de beleza nunca vulgar me volta para dentro quando ainda sonhava com terras sem donos donos de quintais não havia ainda na vida dos meninos roubadores de jabuticaba de mexerica e de qualquer fruta cobiçada por ser alheia a vida na tarde passava tão defronte da rodoviária e os meninos vendiam chup-chup em caixas de isopor para refrescar o calor alheio em casa a tarde era o momento de parar a vida para olhar fixamente para a jarra vermelha laranja ou de qualquer cor com o seu suco tirado de dentro do fantástico saquinho químico a vida na tarde era café suco suco ou café e pão ou cará na casa de pedrelina colhido no quintal lá da pedra redonda e transformado em energia para o corpo necessitado de vitalidade a vida de tarde era esperar pelo sol mesmo em tempo de frio para poder se jogar na água da piscina da praça de esportes vazia vazia vazia a tarde da minha cidade lá do interior lá da montanha era hora de vida em família tão em família que todos faziam o mesmo ritual no mesmo horário igual a cidade onde nasci era eternamente culinária e saciava minha fome de correr livre por ruas minhas tão minhas que por elas caía e levantava com a maior dignidade a cada tropeço 454 a cidade do interior é de gente da roça que usa a tarde para se fantasiar de consumidor e de turista voltando para casa de ônibus com sacolas imensamente cheias das coisas da cidade ah, minha cidade, dorme agora na memória como as professoras em descanso depois de uma manhã exaustiva diante do quadro cheio de giz dorme como eu depois do almoço digerindo o tempo em doses homeopáticas ARTÉRIA QUENTE tarde de cidade enlouquecida buzinas alucinantes correria inútil meia verdade cidade tresloucada no calor da vida a pulsação se percebe na excitação pressão alta artéria frágil a tarde sentencia o veredicto da cidade condenação em 40 graus ardendo cada um carrega a carga térmica no corpo repleto de calor TÉRMICO o ar frio do shopping center o ar quente da rua artificial natural eu passo por dentro do shopping center para me reconhecer na rua 455 PRISÃO prendam o ladrão que passa e leva meu sonho na mão veloz da agilidade marginal prendam o cachorro na carrocinha que late e leva meu ouvido para o lugar do medo prendam a natureza no parque municipal que fechado e aberto me dá a tônica do à toa prendam minha sombra em casa não quero mais esse calor de centro de cidade ENTRE AS FOLHAS o sol se coloca dentro da mangueira na janela eu avisto a tarde verdejante partida os raios dourados no meio do verde e amarelo a janela da alma se abre para o cenário pacífico poente a tarde vai perdendo sua força entre o verde é que a noite precisa de nossa fraqueza para se fazer totalidade a mangueira deixa cair a manga preciso arregaçá-la preciso prová-la preciso... 456 RIO RI o rio está poluído na tarde morto inerte ido o rio está fraco de tarde torto triste caído chove entre sol e lua tempestade é sopro de vida o rio ri QUARADOR a fonte de água bica é seu nome a dona preta lava roupa anil feito céu roupa branca quarador cheio tela solar quem não tem quarador põe o lençol na grama verde para a tarde quarar o branco exprimi-lo - intensidade 457 CALOR E DESEJO no inverno o dia é tão curto por isso a lembrança do sol do meio dia ser o melhor para o corpo gelado os pardais os pombos e nós tirando da tarde sua essência bater as asas do frio para viver melhor o telhado colonial grita frases quentes quando o sol tempera sua estrutura de barro queimado/resfriado o calor é desejo da vida PARA ONDE VÃO AS LEMBRANÇAS DEPOIS DA VIDA? a criança dentro de mim ainda brinca no quintal de pedrelina catando a vida infante que era dos girinos dos lambaris o tempo sacode ainda a poeira da queda e chão no morro do botavira que dá para o centro centro? o centro agora sou eu falando do ontem dos meninos das meninas eu ainda estou em algum lugar do campinho a lama ainda percorre meu corpo agora a bola ainda produz seu movimento entre as traves 458 do goleiro do boleiro eu não me acostumo com a maturidade presente ainda há um mundo de fantasia vivido em cada poro da existência dessa vida repleta de memória do corpo da carne da alma e da infância passada TARDE NA PRAIA a tarde na praia é costas avermelhadas maré sobe maré baixa olhar no horizonte de areia é como miragem o navio eu me queria partir mas fico no aqui é como tatuagem o sol eu me queria pálido mas prefiro a cor praia e tarde casamento pleno como olhar e miragem TARDEAR o desdobramento da manhã essa corda vibrando esse acordar-se tão tarde tão tardemente feito que me despeço da metade do dia ao avesso 459 esse momento de revelar-se de cara amassada mas refeito prontamente para a vida exigindo energia vitalidade vibração acordar tardemente de mente vazia mas de corpo restaurado como a árvore depois da hibernação ressurge suas folhas viçosas e prontas para o sol esse estar tardemente acordado me é muito satisfatório me é extremamente mágico ESTRUTURA DO OLHO Viva el señor don Cristóbal / Que viva la patria mía Vivan las tres carabelas / La Pinta, la Niña y la Santa María Las tres carabelas. Alguero e Moreo. Na voz de Caetano Veloso. o arco do triunfo é o olho direito erguido a aurora boreal é o olho esquerdo preciso vejo e vendo me olho no mundo em sombra como a nuvem para mim deve ser nobre mesmo escura no chão a estrutura do olhar é gigantesca a curvatura do enxergar é vesga olho o mundo em volta feito colombo em teoria volto o grande olho para o interior onde busco apenas sabedoria DO LATIM: LIBERTAS de manhã sou entediado saudade da noite de tarde sou enfadonho compromisso e rotina de noite sou libertado do dia que vivia libertas quæ sera tamem 460 INTERMEZZO a tarde se rasga ao meio dia mesmo que eu esteja inteiro em mim me parto ao meio a vida se cumpre no exato termo de cada hora e no início de outra desde que seja um contínuo o dia não me deseja nem leve nem pesado apenas me passa em horas como em sol e lua vai a tarde pouco se importa de meu cansaço de meu enfadonho existir a tarde é um dado do tempo com ela me faço mormaço com ela me faço metade de mim pois a outra metade é manhã a outra parte de mim é a lua ao nascer e esperarei pela noite como quem espera a água na sede a tarde me rouba de mim e nada põe no lugar senão o sol quente diante dos olhos amiudados a tarde é esse furto de tempo não posso gostar desse estar no meio de algo sem saber o seu fim a tarde me invade apenas isso vale VENTO DE PAPAGAIO se é para lembrar da tarde me volto no tempo posso quero se é para focar o dado 461 me enrolo no vento forte fraco como papagaio no alto vejo a máquina na mão do menino e rio da cena antológica como avião no alto deixo lá no chão a sombra da asa é frio o tempo de ontem a tarde da infância é leve livre louvável a tarde da meninice é volúvel volátil voadora há o vento no alto do morro levando o papagaio há a mão guiando a linha pela altura da cidade saudade da máquina de soltar papagaio essa sedosa recordação da hora vaga ESTRADA DA BARRAGEM em memória de Beto de Nadir foi no fim da tarde eu me lembro eu me lembro muito não chovia nem fazia frio não fazia nada além de nada fazer era durante a semana um dia de homens sérios os homens de compromissos mas eu era menino e sujava a roupa a máquina com o pneu gigantesco com uma pá do tamanho da rua 462 alargou a subida de terra e argila amarela era amarela aquela terra muito amarela o ronco do motor diesel e uma largura aberta eu me pus a olhar aquela rua antes picada quando a máquina rompeu seu destino o manobrista voltou a pitar seu cigarro de palha a máquina grande como nenhum brinquedo forte como herói da televisão em preto e branco barulhenta como nenhuma banda de música ou batedeira da minha mãe fazendo bolo eu peguei meu carrinho de plástico coloquei a cordinha na ponta do pára-choque e fui o primeiro o primeiro ser vivo a percorrer a nova estrada do botavira ela dava na barragem ela me ligava ao morro dos meninos pobres mas eu era pobre e tinha medo deles porque o medo era da miséria eu fui o primeiro a deslizar pela estrada e era fim de tarde e o fim de um dia novo e o menino percorreu a estrada e o menino escorregou pela argila o amarelo ainda me suja a memória o carrinho ainda me guia pela estrada eu me vejo no cenário do lugar imortal da estrada da vida há uma força oculta na abertura da estrada um caminho novo é sempre uma nov[idade] uma tarde finalizada com um novo horizonte é sempre uma tarde abençoada 463 PARADA a nuvem murcha no horizonte o pneu do tempo furou hora de olhar a tarde cair a nuvem evapora no céu o algodão do tempo fluiu hora de parar do mundo rir FIM DE TARDE quando a tarde se despede eu tenho a sensação de morte quando a tarde se enviúva eu choro pela escuridão que desce quando a tarde se vai eu paro no tempo da saudade quando a tarde suspira eu encho o pulmão para a noite de lua TARDE BOA VISTA não há entardecer mais belo nem lusco-fusco tão nobre do que aquele que sobe boa vista de lages 464 chuva de um lado talvez milho verde sol no outro talvez pico do itambé raios ao norte um jato ao sul estrelas ao leste eu sem rumo o pôr-do-sol na estrada anuncia a estrela a estrada me leva ao extremo da tarde eu me vou puxado pelo tempo da natureza tão vasta nada nada nada posso dizer - ali me falta PAI MORTO foi de tarde acho que por isso me dói o meio-dia foi no meio da tarde identifico ali o choque que arde a notícia de sua partida do corpo que desce para a cova da alma que vai para o invisível 465 me chegou friamente com a morte não se brinca mesmo na meninice a morte o tempo explica mas a dor o tempo complica o olho interno sabe jamais nos separamos nem aqui agora nem por causa do pranto TARDE FRIA o frio bate na lagoa afugenta o peixe é que o fundo protege a tarde de frio na pele arrepia todo o corpo é que o tempo enrijece TEMPO TARDE o tempo passa mais doloroso na tarde o corpo percebe o cansaço o caminho se alonga a ruga sobressai o tempo dói na tarde da vida por causa disso já sei aproveito a manhã para saber-me vivo 466 a tarde corrói a vitalidade por causa disso aprendi uso a noite como escudo contra o tempo que trai MULHER DA ROÇA ela não tem vergonha da ruga no rosto do rosto de um longo tempo passado ela não mede a vida pelo cansado da pele mas pela memória do afeto ela não deixa a ruga ser seu cartão de visitas a sua luz brilha mais forte que a ruga gasta a sua luz é o tempo brilhando na vida sem medo de ser tardia as mulheres da roça quando na idade longa sabem que é hora de vestir-se de sabedoria TEMPORAL escurece e a tarde se perde não identificada obscurece o sol e a tarde alarde chuva e granizo e feio a nuvem é a sombra da tarde a tarde sem luz é vazia 467 ECLIPSE eclipse a tarde se enrola na noite clipes solar o sol some para dar lugar ao vazio lunar ESPECIARIA o corpo estendido na cama músculo e carne e silêncio a tarde passa em sua pele leve como seda chinesa é impressionante seu sono o suor o revirar dos olhos a tarde tempera seu sonho com especiarias indianas PALAVRA faço minhas as palavras da tarde adormecer sem noite acordar ainda de dia repito a frase dessa fase do tempo mendigar pela noite remediar a manhã DEZOITO HORAS são 17:56h e a noite se aproxima outono como estou a fim do outono a cada doze horas uma noite ou dia passando nos olhos 468 são 17:58h e a noite é lua dentro da casa o incenso anuncia o vento pouco da nova estação são 18:00h e passou por mim a hora do ponteiro breve como leve é a tecla que me leva noite afora REZA TARDINHA a procissão saía sempre à tardinha mais ou menos num horário entre a chegada da banda e o coral de dona vilma fim de tarde com procissão arrastada e sem música é um pecado grave a ponto de agudo a procissão de santo ou santa de gesso com seu cabelo fixo e imóvel apesar do sacode pra cá pra lá do andor queria alguém vivo ali em cima mas ainda não vi santo ou santa em vida apesar de alguns se quererem como tal mesmo e sempre irreal 469 BANHO DE RIO o rio me lava leva a sujeira do corpo nada o rio purifica carma da alma na água passa eu me banho no rio de santo antônio do itambé cheio de fé POBREZA o menino enxuga o rosto o goleiro pega a bola no mato eu vejo esse cenário abstrato a moça com a leiteira o menino na jabuticabeira eu vivo essa realidade ladeira a tarde consome a vida no alto ou em baixo a cena da pobreza lida 470 TARDE LOUCA nunca me esqueço da mulher louca pela cidade afora em tarde de lua cheia ou de sol vazio do calor das mãos necessárias para acabar com toda a nossa loucura só o amor trata quando os loucos pulavam no meu caminho eu não assustava eu me acostumei com eles porque não sei o que acontece com os meninos do interior do brasil a gente nasce esperto os doidos com seus apelidos feitos para irritar mais a loucura feitos para incendiar ainda mais o semblante do pobre coitado a língua do interior é afiada feito punhal de matador de porco cada louca com sua mania cada louca com seu saco de tralhas nas costas sem rumo ou fazendo de conta que rumo não há e eu me lembro dessa cena maluca eu sou normal BICHO DE RUA abandonado não se sabe por quem e nem por que deixado de lado como se nada fosse a não ser um corpo de quatro patas no mundo indesejado como um atrevimento feito carne o cão o gato o bicho vai se fazendo rua de rua pra rua de lata vira lata tenho pena do bicho da lata na tarde quente sem refresco da rua quente sem dono porque se a rua cuida a rua é de ninguém tenho pena de quem abandona pena da ex-dona triste pelo abandonado bando relegado 471 MOSAICO de tarde minha vida pulsa freneticamente o som da alma parece fábrica em movimento operário proletariado industrial de tarde minha existência ferve densamente a chaleira da vida parece apitar em casa na rua no trabalho de tarde sou um mundo em mosaico espero a noite para me rejuntar TARDE MALDITA a tarde me roubou a sua presença para sempre por toda a eternidade dessa existência não desejo mais ver sua sombra no meu caminho a tarde no bairro floresta me deu o veredicto a distância do antigo amor é sabedoria de se preservar no espaço interior para manter a vida a tarde no boulevard café era quente tão quente que de repente eu fervi as turbinas e me perdi a tarde de descompasso entre meu e seu passo ligeiro lento dois corpos no acaso quando a vida desata o nó o tempo se altera choveu depois acho que não vai se lembrar 472 choveu aqui dentro eu me recordo bem vai embora que o mundo lhe espera eu serei o mesmo a lhe aguardar PÁRA-RAIO mirante do anos 50 vejo ainda a nuvem pronta diante dos olhos o fluxo úmido o chão quente a química da tempestade o raio dentro da nuvem homem chão espaço vendaval a chuva rola na ladeira eu corri com medo de ser apenas ali pára-raio ENTRE SOL E LUA quando a onda para na praia quando o sol afunda no mar quando eu me volto para traz e não vejo a sombra é hora de se despedir da tarde no horizonte a noite cavalga rédeas eletrizantes 473 seres da novidade quando os orixás da noite amarram o dia quando os peixes esbarram na maré alta quando eu me olho para dentro e me noto é fase outra essa da noite essa da lua cheia ou nova não importa a tarde fecha suas portas tortas rotas outras CARTA o carteiro de bolsa azul passa de tarde na rua seu suor transpira mensagem longa a carta vem de longe batida corrida amassada mas vem com palavras lavam a alma a carta é um depósito de consoantes nas linhas vagas do sentimento eu me sinto vivo quando leio letra e linha e sentido 474 ESPORTE o corpo baila dança bela o jogo clama resultado o corpo paira crava o braço o jogo deseja pontuação o corpo nada desliza n’água o nadador bóia batida de braço o corpo fala linguagem vasta o esporte é suor energia gasta AMOR TARDIO queria seu corpo suado na tarde deitado comigo mas mas mas é tarde muito digo vazio sua memória é tarde infinita como dado jogo perdido sua sombra é fraca 475 deixada de lado esquerdo acho sua nobreza é muito pobre não deixou em mim nada para ser eu mesmo FIM DE TARDE a tarde acaba sem ressentimento sinto pouco sua falta perdoe-me a sinceridade a tarde se vai em boa hora sinto muito pela manhã me alegro nos braços da noite a tarde é apenas esse intervalo entre o que penso e falo entre a moça virgem e a velha de lua NOITE/2009 CHEGADA a noite chega como notícia boa anunciada pelo silêncio dos pássaros acomodados em árvores e postes a noite chega na temperatura ideal nem mais nem menos apenas minha noite ser feliz plenamente de asas abertas no tempo ela vem como um véu sobre o dia mas longe de me esconder é na noite 476 revelo-me mais de mim ao mundo chega e fica para sempre escura como outro lado da lua a vida agora é rua e sonho ÓRBITA a lua serena desperta esperta e cheia devagar a liberdade está plena a lua rege o livre-arbítrio a lua vai chegando e acerta a órbita do sentimento a noite é porta aberta ATIVIDADE NOTURNA os bichos da noite saem para a rotina de asas grandes e brancas a coruja mira de longe os gambás de ritmo lento sobem em árvores fruto fresco os morcegos nem precisam de luz a noite é feita de som a fruta de sabor os homens procuram outros corpos a noite tem um tempero próprio aquece a vontade de amar 477 OUTRO LADO de um lado sou plena luz outro lado sou luz que ainda não reluz de um lado sou plano que conduz outro lado sou abismo que ainda não seduz de um lado sou são jorge masculino outro lado sou mulher que ainda não reproduz de um lado sou clareza e distinção outro lado sou obscuro que ainda não deduz a lua me é homônima multifônica FOGO o asteróide feriu a terra fez uma vesga de luz é novidade em fogo espermatozóide astral desfez-se tão breve luz na boca da noite roçou fez o giro torto e caiu brilhou na boca do céu asteróide ana boli z ante 478 FOGUEIRA nada combina melhor com a noite do que a fogueira em volta dela nós cantando amando a fogueira liga o século de agora com um século inimaginável do tempo da pedra lascada rudimentar mas iluminado a primeira fogueira ainda queima outra agora e nós em volta teima o tempo se repete na noite reflete CONSOLO a noite esse farfalhar de lençol sobre o corpo se dois farfalhar duplo se um farfalhar puro a noite nesse leva e traz nas asas do morcego ou no brilho predominante da lua revirando as marés a noite nessa tríade do dia fechando o ciclo abrindo a boca em estrelas tantas me perco no universo interior a noite me inquieta para ser eu mesmo me salva para ser outro parado não se chega a noite me consola desde sempre 479 CHEGADA a chegada em casa é som de cachorro latido lambida alegria plena a casa se ilumina trazer o mundo em casa objeto deixá-los quietos a casa recebe o dia acabado a casa percebe outro horário a noite enche cada casa novidade dia de trabalho PERNAS AO CÉU as pernas para o alto depois do banho levar sangue ao cérebro as pernas para o ar esquecer o dia passos idos imagens as pernas para o céu pensar na lua lá fora cozinhar a noite na panela 480 QUE NECESSIDADE da noite dessa noite eu necessito mais que o ar que respiro que é cheio de sol do dia que passou e morto apodrece nas células mortas do corpo que agora vegeta e sente saudade de um ido tempo lindo da noite desse momento depois das dezoito horas eu preciso como abrigo que abrigue a paz dessa solidão e a ternura desse dizer ao mundo estou cansado de tudo que vai passando diante dos olhos em desesperança da noite meu espelho onírico eu desejo eu me perverto de tanto desejo em sumir dentro da face obscura da noite sem lua sem artifícios de luminosidade eu estou sem sela montado no cavalo da vida que corre corre corre na noite eu consigo encarar cara a cara meu espelho na artificialidade da luz elétrica que ilumina meu banheiro onde banho meu corpo cansado desse dia dia dia que se repete como que que que em frases que parecem que nada querem eu preciso dessa noite como ela se dá agora e não me roubem essa noite do jeito que ela está sem ligação telefônica sem televisão ligada sem ventilador no teto para amenizar minha mente girando girando girando a noite me devolvam a noite como ela é como ela se faz límpida pura como poema de alma poema de rima sentimental daqueles que a compreensão de séculos nada dirão pois o silêncio fechou o verso em sete palmos dou-me a noite pobre rota sem destino posta no meio de um caminho vago como onda fraca desabando no mar sem ninguém para lhe dar sentido que venha um mar de novidade para romper o dique dessa desencanto 481 a noite eu me quero na noite desvairado como os lobos sem trégua diante de sua caça pequena e frágil e contagiados pela ferocidade da noite como sempre a natureza se mostra eu que sou natural me seja natural noite amada a noite eu deslizo por entre seus dedos e me amasse e me repasse em seus tempos de ontem de hoje de amanhã e me projete para o futuro distante de tão distante que seja agora como eu queria que a noite fosse apenas essa hipocrisia em dizer e nada falar em ouvir e nada entender em pestanejar os olhos e cair minha face pronta para mim mesmo onde está meu rosto próprio? onde está minha face de antes agora desfeita? a noite me rouba a noite me diz para calar a voz e mesmo assim roubo o silêncio infinito das linhas para deixar a saudade do som de um verso mesmo pobre caindo como chuva na linha aérea da poesia a noite sabe de mim mais que todos os olhos em meus olhos mais que as bocas em minha boca mais que eu mesmo sei de mim e nada sei sei que nada sei meu amigo sócrates me consola desde infinitos calendários a noite me dá o que tenho mais escondido se encontra é essa frieza na alma que se rompe de tempos em tempos e se torna se torna se torna isso isso isso dado sou um dado na noite jogado pelo destino sou um asno na noite amarrado e domesticado pela vida sou a página do livro já lido e relido e posto de lado preciso ser a próxima página que emoção ser a próxima linha na alça de mira eu preciso desatar os laços da prisão interior e deixar de lado o lado que me deixa sem lado e me põe em evidência eu preciso 482 respirar os gases da noite para explodir em temperatura tanta que me faça fragmentos de novos sentidos eu preciso dessa noite como ela se dá agora para nunca esquecer dessa noite sem telefone sem televisão sem ventilador já estou resfriado demais já estou pleno demais já estou nauseado demais já sou muito no mundo eu preciso da noite como nunca pensei eu desejo a noite em libido existencial eu apenas preciso dessa noite e que ninguém nem eu mesmo me roube essa noite (por favor) NOÇÃO caiu a máscara o ás da manga inexiste saiu a lua uivo na rua persiste floriu o vaso às nove horas assiste choveu a nuvem ladeira abaixo desiste DEUS se deus criou a partir da noite criou de fato o ato na noite 483 vasto largo o tato da noite casto vário se deus criou na noite sonhou universo per[feito] DIA COM NOITE de dia fecho os olhos para fazer noite esperança de dia a sombra larga memória da noite refrescância de dia óculos escuros opor à luz a noite lembrança de dia perco de noite acho de dia morro de noite nasço DIA/NOITE não adianta acertar o passo benzer o sol na cabeça a lua desvira sentido o corpo atrapalhado 484 desencontro da alma e corpo lua e sol a vida vai bem vai mal FOLHA MORTA o vento bate forte a noite se revolta a face gira e gira norte? a janela bate torta a noite acena chuva o pensamento cai folha morta? LIÇÃO de repente a noite somente ela me serve agora não somente a noite talvez o melhor dela me teste embora sei do sorriso disfarçado da hipocrisia deliberada me dói mas é sei da mentira escancarada da pouca fragilidade 485 que é dada sei da noite para me encontrar apesar da face triste do outro que fere certo CAMA a cama se desorganiza para abrigar o corpo volta à sua rotina de manhã a cama se ajusta ao corpo para refletir calor ou frio depois levemente es[vazia] METÁFORA escondo debaixo do cobertor da noite defronto com o inimigo oculto no sonho a noite é deveras divertida metafórica TRAVESSIA DA NOITE o travesseiro aconselha acredito nisso especialmente depois do dia longamente vivido 486 o travesseiro desdenha permito isso cruelmente após o dia orgulhosamente tido a travessia da noite começa por ele travesseiro LEGADO deixo a noite para quem vive pois a noite é vida plena de plenitude iluminada eu não deixo a noite como herança pois a noite é um grande baú repleto de surpresas eu não deixo a noite por memória pois a noite é nada mais que a totalidade eu não INFÂNCIA das noites vividas agarro-me no galho da infância para ser das noites várias 487 ato-me aos primeiros dias da cidade velha para crer de lá me vejo por todas as outras noites vastas da vida vivenciando de lá reflito em toda noite dada na rota da vida feito roda da fortuna a infância é a noite mais bela da vida SÃO JORGE a guia me guia da bahia a minas carmosina mãe de mim me guia de noite estrela no olho brilha 488 a escuridão faz do grão estrela constelação a guia azul da bahia ilumina FRASE DE LUA a lua tem santo impresso cada montanha e abismo apresenta são jorge e dragão em mensagem de lua cheia a mensagem da lua é de fé e de pé leio a frase universal ORQUÍDEA a moça entrou no ônibus era noite e chovia era estranho mas trazia um embrulho celofane a orquídea agarrada ao vaso pedia a proteção das mãos a flor alta sabia do ditado medo de queda no ar a orquídea branca e rosa no vaso verde e preto no colo da moça morena a fragilidade está em toda parte 489 ALMA NOVA a lua nasce no morro do bicentenário corrige o rumo do tempo ido infância tola interior a lua cresce entre a montanha e os olhos se cheia clareia a mata se nova inspira a seiva se minguante me leva ao alto da santa rita a lua leva para o alto de lá sinto a cidade as pedras tantas as casas prontas refazimento da alma FRAGILIDADE é na lua cheia somente nela o olho preso no céu tela é na lua nova por que dela? saio no sono pela janela é na lua crescente contrário da vela derreto a vida loucura repleta 490 é na lua minguante a lua se deixa não sê-la olho a fotografia antiga vontade de refazê-la quando a lua se mexe em fases o movimento da vida é comum sempre frágil ÚLTIMA CEIA a mesa ou o sofá ou um canto da casa a noite é hora da última ceia que seja a ceia pouca ou vária ou sem graça a noite é posta em xeque a última ceia um quadro retórico na parede MISTÉRIO DA MEIA NOITE quando acordo de madrugada o silêncio invade os tímpanos o misterioso silêncio noturno do medo e da possibilidade 491 quando acordo de madrugada tropeço em móveis pesados o misterioso objeto de tropeço está onde não deveria ficar quando acordo de madrugada sinto um arrepio na pele me lembro o universo humano é o dia dos homens sérios GATOS a janela dá para o quintal os gatos se dão na calada da madrugada uivos arranhões gemidos impaciência será? a lua fertiliza mais que o sol será? a madrugada é mais pura será? os gatos sabem do amor mais que nós? MADRUGADA OPERÁRIA não sei quem de fato dorme no mundo de hoje ou de muito tempo ido os homens fizeram da luz artificial um tempo outro um tempo tão outro madrugada é dia 492 dia é dia mesmo hora é hora de qualquer coisa não sei se se dorme ou se se acorda quando os galos cantam no escuro só sei de um tempo outro dado olho vermelho no trabalho NOITE NATURAL a noite é da natureza o dia da impureza de noite o corpo nu de dia enclausurado na noite a vida é plena de dia é feia de noite o corpo saciado de dia rotinizado DESDOBRAMENTO saio do corpo quando durmo percorro outro mundo sem muro saio do corpo porque fujo do corpo em descanso mudo saio do corpo em plenitude as cores são mais vivas do alto 493 ou de dentro da cor maior ou porque vejo melhor sem tato ou por fora da órbita física ou porque caminho mais sem pés saio do corpo quando durmo o mundo de cabeça para baixo no escuro TRAVESSEIRO DE LETRAS as letras prenunciam o sonho abre-lhes caminho cada letra devagar compõe o divagar a leitura antes do sonho fertiliza a terra do nunca toda letra pulsa retórica cada frase rouba a lógica dormir sobre o livro é abençoado o travesseiro de letras é imaginário POSTE o poste solitário segura centenas de velas braços forte e tesos estrutura de fios ligando a cidade 494 o poste incansável abre os olhos na noite equilíbrio perfeito corpo de cimento pés no chão o poste vê quem perde a cabeça o poste vê quem desce a ladeira o poste é o vigia sóbrio da noite VÉSPERA DE FERIADO noite de véspera de feriado é vasta pois tem horizonte descanso de corpo e mente por vinte e quatro horas noite para dormir sem despertador programado nada perturbe! noite para fugir sem medo para o à toa nada marcado! EGO não sei da folha lançada ao chão nem mesmo do bicho falecido eu apenas sei do que vive dentro do mundo submerso do ego não sei da chuva fria saída da nuvem nem mesmo do vento que a janela abriu eu apenas sei do que se passa no interior do mundo próprio do eu 495 VIDA NOTURNA enquanto durmo outra cidade acorda enquanto descanso outra idade passa vivaz feito o fogo sobre a brasa noite da música alta a música alta acorda as moléculas vibração em caixa acústica na noite alta o zumbido do ouvido se faz vida noturna NOITES GEMINADAS entre uma noite e outra era melhor ter ficado adormecido o dia com suas necessidades o seu apelo à atividade neg[ócio] o dia é exposição forçada dos motivos de viver im[posição] hoje era melhor duas noites uma seguida da outra emendadas hoje é daquelas noites preferia geminadas dia terrível 496 MOTE noite fria ia noturno quente ente noite mote oi noturno rígido turno A CIDADE SABE DE MIM as pedras do pé-de-moleque sabem de mim mais que eu mesmo as marcas no caminho são tantas e as pisadas do chão da vida são vários a pedra no chão é lição de dois lados as ruas íngremes as ladeiras incontornáveis os caminhos para o alto da cidade sabem de mim mais que eu mesmo por isso é bom repisar o passado para tirar do rumo incerto o certo rumo as andorinhas da igreja de santa rita guardam em suas asas os sinais do tempo ido passado tido no alto da cidade montanhosa e traduzem o elevado melhor que os padres obcecados pelo pecado a noite indevassável da cidade perdida no tempo ensinou que o tempo perdido também é útil para a vida a renovação é uma tela em branco esperando a tinta o pincel e o pintor 497 os muros de pedra-sabão úmidos feito mulher em concepção sabem dos limites mais do que simbólico sonho de jung da psicanálise de freud ou do socialismo de marx a minha cidade é noite acolhedora na alma e dia frenético de perder a calma de perder a paz de perder a si mesmo a minha cidade me devolveu a mim mesmo na noite e de noite eu entendi a lição da cidade de interior lá se fazem almas prontas para o mundo tecidas por dona milude abençoadas por dona ermelinda das lages sem pedras no caminho por causa de luiz paletó e sua mania requintada de afastar as pedras para o canto da rua sem a sanidade infértil por causa dos loucos e das loucas mais divertidos do caminho de vida no interior o medo da loucura cura sem a fome bravia por causa da festa do rosário de mesa farta de almoço jantar e sobremesa de doces aprovados pelo ministério da saudade a cidade sabe de mim e me deu a vida BÊBADO de um lado para o outro da rua vai ziguezague da alta hora da noite ponto cruz quase via sacra o bêbado costura os pés dão passos de dança clássica o equilíbrio é lição de vida toda 498 a dança não acaba no chão passo em falso ele sabe de um rumo imaginário o bêbado tem bússola na alma norte no fundo do copo forte dom de rumo em casa a porta se abre no interior a tranca é só na alma não na casa JOÃO SURUBIM ele subia na árvore com frutas sempre de madrugada um homem de quintal dos outros ele calava os cachorros com sua simpatia (no interior os cachorros conhecem a todos) as galinhas confundiam dedo com puleiro (no interior as galinhas são fáceis) joão surubim era uma figura de quintal de carnaval de rodoviária joão surubim morreu tão sem graça voltou a ser ninguém no interior o diverso é belo se controverso 499 NOITE a noite fria de lua cheia as torres demarcam o território em cada ponto da cidade é de noite que os gatos saem assim como os gambás e nós é de noite que o sonho basta assim como o cobertor para nós a lua se encaixa em cada forma da cidade bela erguida nos morros a noite se esquadrinha em todo momento de uma amizade toda surgida no tempo a noite fria congela os vegetais refrigera os peixes as aves os marsupiais devolve a vaga lembrança do uniforme vestido na noite anterior para a manhã seguinte de aula a noite se põe estática nós caminhamos entre sombra e luz o quadro é amplo feito a vida toda OUVIDO vivo puramente em lágrima convertida minto cada palavra pecaminosa 500 crio esse sentido insignificante estou partido como ontem estou remexido como sempre estou parado para me enxergar HÚMUS estou cansado de me perseguir húmus a folha sobre o chão pode ficar murchando eu me vou passeando para dentro onde o húmus jamais aumenta ou diminui inexiste a chuva sobre os carros pode escorrer para os rios eu me vou buscando na vida onde a correria pode existir mas não leva a nada a lua pode mudar suas formas aos olhos eu me vou refazendo fases onde bisturis não operam as horas que se passam em rugas várias 501 ESCADA não desço a escada para subir de novo não sou mais criança e o fôlego acabou bem no meio da subida como a escada de jacó que sobe eternamente para outras dimensões fora da realidade física dos sem-fôlegos como deve ser viver sem o físico o corpo os sentidos numa esfera para acima da corporal? como deve ser respirar o ar rarefeito da quinta dimensão livre das amarras de um corpo gravitando em volta de si mesmo que se abram as prisões dos sentidos que se cortem os cordões da percepção violada que se cruzem as fronteiras da nova vida sempre renovada das outras percepções quero partir de vez em quando mas tenho medo de em outra dimensão o medo ainda fazer parte da mente sem corpo físico porque a prisão é um corpo cheio de sentido e cada sentido é uma cela própria pronta para ser aberta mas como abrir cada cela se estou violado por elas? como fazer essa volta essa viagem essa renovação essa despropositada volta ao que era antes? deus me criou para ser eterno e por isso cada estação menor é um suplício de novas escadas para subir para subir para subir! AR preciso da vida em cada célula para viver todo o tempo de cada molécula preciso de sonho na mente para reviver todo o ontem no imaginário do agora eu preciso de ar para aromatizar de gás para borbulhar célula e molécula mente e imaginário 502 BENZEDEIRA eu virei meu vento ontem à noite ou foi ano passado não me lembro passei pela esquina de um beco ou numa encruzilhada do tempo eu virei meu vento como papagaio solto no alto da santa rita por meninos de máquinas possantes e não mais deixei de sonhar eu virei meu vento por causa das placas novas da estrada indicam rota diversa obrigam parada provisória e eu não sei torcer meu livre arbítrio eu virei meu vento onde o vento faz curva deve ser no alto do morro da páscoa onde jesus anuncia seu novo tempo eu virei meu vento e agora só mesmo benzedeira para terminar a obra do destino nas vias de dentro preciso me benzer com dona almerinda lá nas lajes ela conhece a rota dos ventos semeia brasas apagadas nos rios ela sabe que todo vento virado é destino que se faz lado a lado 503 PLENITUDE não vou esperar a noite já sou dia tarde todo não vou esperar o duplo já sou guia caminho pleno não vou guardar as lembranças já sou futuro fé realizado ÚLTIMO SUSPIRO o último suspiro da noite sou eu acordado o último escuro da noite sou eu abrindo os olhos a noite se vai sonho delírio sono a noite se foi com lua com luz com paz o último lapso da noite sou eu revigorado 504 OLHOS DE CONCRETO / 2009 A PROFECIA quando a cidade se revelou como estrutura verbal substantiva metafórica (nome próprio) de sintaxe complexa de leitura abstrata algo - uma profecia brilhou no outdoor e eu vi como num sonho acordado eu vi como num pesadelo macabro o pensamento da cidade no outdoor sobre o viaduto desde aquele dia a cidade é outra coisa por dentro e por fora O DISCURSO DA PROFECIA a cidade consome todas as minhas energias vão para o asfalto dependente sempre de calor e se vão para o rio imundo e fétido descendo barriga abaixo cultivando em seu leito verminoses nas populações ribeirinhas 505 (a cidade faz sujeira em todo o seu dejeto em todo o seu jeito de ser e de se estruturar) a cidade me abate feito boi à moda antiga me amarra nos seus obstáculos e desfere o golpe de pau sentido em todo o corpo a cidade limpa ou suja é vida e é morte não sinto paz –sou incapaz de sentir alguma coisa nesse mundo quente – nas mãos e contramãos não sinto alegria nas curvas emendando no viaduto apesar de dar em seu eixo redondo a volta no mundo quando giro no viaduto eu sinto minha mente mais pura - mas só ali! (queria tanto dar uma volta inteira no mundo feito imaginário de júlio verne!) a cidade me pisa e me soterra e sou ninguém nessa terra pobre e bestial de homens trafegando sem sentido em cada e muito e vário sinal os sinais são tantos que a mente se perde em tantas tantas tantas vozes gritando 506 mudamente em cada placa em cada guarda municipal em cada homem do exército a cidade me zanga tanto! quando chego em casa sou um cachorro bravio esquecido das asas da alma das asas do tempo o tempo na cidade é tão furioso diminuto magro o tempo na cidade é mordaça na alma na alma na alma na alma para onde ir depois de um dia de cão? não tenho para onde ir a cidade é um vazio sobre o concreto o concreto mais vazio da humanidade a humanidade mais cansada do mundo o mundo está cansado eu estou cansado quem não está cansado? o mundo a cidade a rotina andam cansados de si mesmos de seu ciclo de seu espaço de tempo corrosivo a cidade me consome todas as alegrias preciso dormir para esquecer esses versos e voltar à engrenagem da cidade acordar 507 trabalhar cansar voltar para casa casa casa com engrenagem nervos à flor da pele as flores morrem nos canteiros da cidade! televisão e sem asas onde andam as asas da cidade? comecei a ter pavor da cidade hoje pela manhã o céu era azul com nuvens de um vermelho quase rosa o mesmo quase rosa que me minha mãe ensinou “é sinal de frio” e a manhã amanheceu em frio breve sem pavor até então o pavor se deu quando o poste se apagou e tirou da noite seu véu de lirismo ah, o lirismo de fernando pessoa me fez falta nessa manhã um sentimento me pegou pelos pés pelas mãos pelo umbigo fui levado pelo avesso dos ponteiros que indicam felicidade ao longo da vida e me vi diante da cidade 508 a cidade se fez sem poste e de repente o céu virou apenas um grande sinal marcas de pneus de carro derrapados soltos no espaço a me informar a cidade amanheceu estamos todos preparados para a vida urbana a vida urbana é sua condenação no ônibus lotado já cedo como se nenhum ser vivo houvesse dormido bem (deve ser por causa do dia anterior nos desvarios da ci da de deve ter sido porque todos sonharam o mesmo pesadelo que narro e minha poesia agora é narrativa de um encontro entre a cidade e meu pavor pela cidade) no ônibus com mau humor nas rodas na cor desbotada no número 666 impresso na sua lataria corroída pela agitação dos pensamentos de seus usuários no ônibus o motorista olhava nos meus olhos como a dizer “porque você existe, usuário?!” a me desejar um bom dia entre os dentes no ônibus havia filósofos existencialistas sentados e em pé a pensarem de mim “porque você parou meu ônibus, ingrato?” como se sartre estivesse ali dentro a expor suas ideias engajadas sobre o ser-para-o-outro 509 e sartre me apontava o dedo e dizia “você é meu inferno!” a rua já não era a mesma de ontem (quando eu ainda achava bonita a cidade) a rua pôs-se como um limite sujeitando a liberdade de todos nós é que a rua é feita de linhas demarcadas em branco e que de noite são reflexivas (um filósofo inventou o reflexo das luzes! iluministas!) e de um lado e de outro para passar é preciso piscar luzes indicar a decisão e decidir dói muito –como dói pensar sobre a cidade! a rua é um limite ingrato de quem está prestes a perder o limite da própria liberdade não firam o limite da rua que a cidade se vinga com suas garras e lança corpos ao chão e sangue nos pára-brisas dos carros e nos pneus gordos e velozes dos ônibus a cidade amanheceu feia como há muito tempo eu não percebia a cidade não desceu bem nessa manhã e dela fui me distanciando subvertendo desapegando quando dei por mim estava eu com as mãos sujas de tanta cidade com as veias 510 aprisionadas e hipertensas com a mente nublada a ponto de chover e o verso se faz agora nesse exato momento a única forma possível de impedir o colapso definitivo eu ainda preciso da cidade enquanto coisa melhor não é criada (como posso ouvir isso vindo de mim mesmo agora... a cidade está impressa na minha alma... preciso de uma grande borracha) chamem os descobridores anunciem nos outdoors denunciem à polícia federal precisamos criar algo novo a cidade abre suas pernas para qualquer um de qualquer lugar de qualquer nacionalidade de qualquer naturalidade os carros são doenças venéreas de todos os tipos de todas as qualidades de todos os países ford chevrolet fiat chrysler volkswagen 511 lada gurgel renault os carros comem a cidade lotam suas vias de uma velocidade insuportável de tão rápida passa a ser engarrafamento venéreo os médicos já denunciaram mas de nada adianta... a cidade só goza com os carros os carros buzinam para irem mais rápido mas para onde vão os carros mais rápidos se tudo está parado se nada anda nessa cidade absurda? os carros sinalizam em alerta mas ninguém liga nem a cidade se faz ouvir nos gritos nos gemidos na pele queimada da criança na mãe de braço fraturado no motoqueiro imprudente em pedaços sob o olhar passivo de todos os motoristas de quem morre dentro das ambulâncias (carros que precisam andar rápidos para salvar vidas) os carros são ódios petrificados sobre quatro rodas as motocicletas são ódios mumificados sobre duas rodas 512 todos sobre o controle de um louco oficialmente reconhecido pelo estado e apto a matar a buzinar a pagar multa (que essa sei: é a grande ordem da ordem precisamos de dinheiro para manter o poder do estado em ordem e progresso) a cidade mata gente mas mata mais que gente mata árvore não há uma árvore em contato com a outra são isoladas na sua vergonha são isoladas na sua tentativa de limpar os pulmões da cidade fumante as árvores morrem soterradas em calçadas de cimento envergonhadas de tal maneira que cobrem seus galhos de preto para camuflarem sua existência inútil e perdida no tempo diante da voracidade da cidade para que árvores na cidade nas ruas nas calçadas? não há sentido algum para troncos altos no meio de uma selva mórbida de cimento e gente que não sabe porque vive (quem descobriu o sentido da vida na cidade sobre a sombra de uma árvore?) 513 as árvores não precisam da cidade nem a cidade delas dentro dos carros o ar condicionado faz papel de sombra basta que seja assim a cidade evoluiu tanto que a natureza precisa se calar o pensamento precisa se calar o ser humano precisa se calar o poeta precisa se calar (esse sempre se cala porque escreve e seu grito quase nunca se ouve a cidade tem medo da poesia!) o eco da cidade é um eco de coração parado a cidade não é mãe não dá colo não há calor em suas mãos e seus pés não aproximam são apenas multidão perdida na geometria urbana levem a cidade para a ecoultrassonografia somos filhos das estruturas de concreto nos apartam nos apertam nos mentem nos sentem friamente o diagnóstico da cidade: acefalia ou muitos cérebros para controle dos outros cérebros descontrolados a cidade tem alma ou apenas cabeça? a cidade tem apenas corpo ou sede de veias? eu vi um coração batendo na mão do médico na televisão esse aparelho quase outdoor 514 a televisão é intrusa reflete o pensamento da cidade dentro do lar os cabos levam o pensamento ao meu ouvido a tv é um grande outdoor interno em cada olho de concreto a cidade acaba na porta da minha casa (a rua é suplício) a gravidez da cidade não existe criança chuta a barriga e nasce (vida) manhã tarde noite será viva ou acéfala: conheci a cidade já pronta já pronta já pronta por que pronta? por que não me abortou? me faz necessário cidade enganosa... ninguém pode desviver no império sombrio da cidade a lei existe para ser cumprida a realidade existe para ser cumprida a cidade é um fogo queimando com corpos reais sendo tragados para dentro de seu inferno a cidade é um inferno e não me refiro ao inferno 515 dos prazeres dos bêbados dos viciados dos assassinos falo do inferno medieval ao qual somos condenados eternamente absolvam-me da cidade eu preciso sair da cidade desse tipo de caos desse profundo lixo cultural me retirem enquanto respiro desse cenário medíocre que as palavras fracassam em definir o outdoor me agride com suas mensagens para o dia das mães e com suas letrinhas miúdas no final da promoção imperdível o outdoor lança sobre mim suas garras e me pega pela linguagem quando paro sobre o viaduto (a outra parte da cidade suspensa não isenta de seu tédio) e me vende um produto que eu não quero eu não quero por favor: eu não quero! apaguem o outdoor descontratem o publicitário por traz do outdoor prendam esses marqueteiros em casa e não os deixem sair para fazer isso comigo o outdoor com seu papel de quinta categoria agarrado à madeira de quinta categoria por uma cola de quinta categoria 516 o outdoor é o pensamento da cidade eu não quero saber o que se passa na sua cabeça por favor não dialogue comigo eu me recuso a conversar com sua provocação eu não desejo entender sua dinâmica eu me recuso a me orientar pela propaganda gasta estampada na sua testa me abandone me deixe de fora da promoção atual o outdoor me olha de todos os lados (porque um dia fui alfabetizado? para conversar com a cidade! que ironia!) o outdoor me subjuga e fala tão alto... acabo por ouvi-lo e por traz dele a cidade fala bravia compre me faça viver me faça existir me faça ser o pior de mim me faça ser o pior do pior de todos os piores que houver a cidade me asfixia seus gases dos exaustores na chapa fritam hambúrgueres gordurosos para sustentar tantos como eu na fome da cidade das chaminés mesmo distantes mas vistas do alto 517 tragando a vida das árvores em carvão feitas e entregues às siderurgias por caminhoneiros sem sonho sem ilusão de uma praticidade incrível (as estradas da cidade alimentam a cidade) dos ares condicionados puxando para dentro dos prédios o ar fresco da manhã e nos devolvendo o ar quente das bocas cansadas nas ligações de telemarketing nas operações da bolsa de valores nas decisões tomadas nos prédios do governo os gases da cidade me apodrecem por dentro aceleram minha morte e a cidade não reconhece minha necessidade de ar puro de ar real de ar apenas que seja a cidade me apavora com seus bordéis de felicidade rápida de orgasmo seguido de uma nota de dez reais (o orgasmo está no corpo ou na carteira com o dinheiro para circular livre pela cidade?) a cidade com suas putas e travestis no alto do morro (bem no alto fica o prazer, diz a cidade!) bem de frente à delegacia de polícia para maior proteção da alegria da civilização culta ocidental e charmosa o sexo na cidade é fácil para distrair a cidade com seus orfanatos lotados de filhos irrecuperáveis para a noite ou para o dia 518 que o dia e a noite são mais felizes quando a família dá bom dia ou boa noite cada criança de rua é uma provocação ou um exemplo? (a cidade mostra que não se deve ser como eles a cidade nos ensina como seguir o rumo certo como ser livre em suas leis por causa de suas leis por traz de suas leis) a família de rua é um grito no escuro ou uma missão? (a cidade mostra o absurdo para que nos contentemos com o mínimo e não reclamemos da vida na cidade que é difícil mas não impossível) a cidade me toma de mim com sua geometria esquálida com sua sombra pouca com sua pobreza farta com seu casario de mal gosto a cidade com suas casas mortas de vida curta de lote tomado por muro de muro tomado por pichadores os pichadores sabem da cidade melhor do que eu os pichadores dão à cidade o que ela merece o feio o tripudiado da linguagem o embaraçado do traço gráfico 519 o pichador sabe da cidade mais que eu porque enfeita o caixão da cidade com ornamentos em preto sobre o fundo branco das casas –fechem o caixão dessa maravilha grotesca! o pichador quando picha bate na cara da cidade e hoje eu me deleito com essa ação nobre que os pichadores sejam elevados à categoria de heróis nacionais tirem seus nomes dos anais do crime eles merecem bustos nas praças nomes nas ruas máscaras mortuárias nos museus suas lições devem ser ensinadas nas escolas de todas as classes de todos os níveis o pichador é o verdadeiro herói nacional vamos distribuir spray de graça nas esquinas (a esquina é lugar onde se vê a cidade de dois ângulos e se pode dar conta da sua traição) vamos pedir um empréstimo ao fmi para financiar o caixão da cidade em melhor estilo kitsch eu idolatro os pichadores e seus seguidores como eu que eles sejam eternos enquanto não morre a cidade os bustos da cidade nada me lembram 520 a maioria deles está cheio de cocô de pardais de pombos e muitos deles são caminhos de ratos na noite sem sentido dos bichos urbanos os bustos nada me dizem um monte de cimento com ferragens por dentro um tanto de mármore a envelhecer no tempo quente ou seco ou sempre instável da cidade os bustos dos heróis nada traduzem à minha alma agora são apenas seres fora do tempo e do espaço e dentro da cidade que deseja me ensinar o que ela preza mas eu não estou nem um pouco interessado nas lições da cidade os bustos não profetizam nada nem me devolvem a fé na cidade e não me venham com placas comemorativas para dizer do tempo apodrecendo cadáveres nos cemitérios (o herói dele nada resta senão um osso cruzado sobre o outro que lhe foi corpo um dia como eu vivo agora em meu corpo magro mas meu 521 e que só meu pode virar algo da cidade) a cidade com suas placas (a única verdade da cidade está nas placas de trânsito) elas não mentem elas nunca mentem porque fogem à ditadura da morte na cidade elas previnem a morte mas tolos são os que não ouvem as placas de trânsito morrem atropelados morrem esmagados nas ferragens dos carros a cidade tem um olhar cáustico a cidade tem olhos de concreto ferrugem por dentro da estrutura de seus significados a cidade pulsa elemento químico o ferro sustenta sua estrutura ele pode cair a qualquer momento a cidade delira sem anemia a cidade delira sem seu oposto a cidade se faz carne e osso e come sua própria carne sem se importar a cidade arranca a terra de seu lugar gruda no chão os 522 carrapatos sanguinários arranha-céus de pé-de-chumbo interferindo na vida interna do leito dos rios cada prédio cada casa é uma conquista de espaço e a cidade sabe de seu poder ESPAÇO E PODER quando se avista do alto com seus tentáculos sobre o antes verde sobre o antes ar puro não há equívoco: a missão da cidade é governar o solo prender cada um de nós dentro de suas garras altas ou baixas e desfazer o sossego de nossas vidas pequenas e tornar nosso ar quase que um sufocamento feito com nossa própria ajuda a cidade sabe que a poluição é seu pulmão mais sórdido dentro do qual cada um de nós procura viver mais e melhor mas o ar se esgota como se esgota o ar do mergulhador em alto e profundo mar onde as profundezas da cidade vão nos levar? 523 onde as suas loucuras vão nos conduzir? para onde iremos nesse choque entre a liberdade de se viver e de se achar que vive com a estrutura de concreto da cidade erguida para nosso cômodo modo de vida contemporâneo? a cidade caminha para o mar e toma do mar o vento litoral seus cinco andares seus quinze andares sua necessidade de acomodação sua investida em conforto a cidade toma do mar o frescor da tarde no atlântico e não se respira ar puro se respira ar de concreto se respira ar de carro em alta velocidade pelas ruas não se acham mais lugares que não sejam cidade para onde fugir dos olhos de concreto? para onde ir além do pensamento da cidade: os outdoors? não vejo fuga possível a vida é essa civilização correndo atrás de si mesma sem saber que ela é a criadora da própria necessidade parar o mundo e viajar em outro caminho... qual? voltar aos campos verdes à natureza acho pouco deixem a natureza como está! a natureza não precisa de nossa dor nem de nossa angústia a natureza é si mesma é si própria e suas leis são altamente eficazes diferentes da cidade onde o caos predomina o papel jornal com notícias populares foi esquecido 524 sobre um abrigo de ônibus e o vento levou a notícia para o chão e falava na manchete: enchentes matam e o papel sentiu na cara os pingos da chuva encharcado suado corpo todo molhado foi se deixando morrer e foi se deixando levar para a boca de lobo se somando a tantos e tantos outros restos da cidade plásticos copos de plásticos copos imensos de plásticos do mcdonalds caixas de pizza do pizzahut maços de cigarros souza cruz pedaços de um brinquedo era um brinquedo diferente dos outros era um homem forte de braços musculosos e segurou a boca de lobo para não ser tragado pela água e fazendo força fechou a boca do lobo e inundou em vômito na tarde toda a avenida um brinquedo forte e cheio de vida segurou a garganta da cidade 525 e fez a enchente virar outra notícia outro jornal outra enchente a cidade tem ciclos infinitos de destruição a cidade não pára de matar pela água por terra de carro por arma por fala por taquicardia por excesso de civilização a cidade mata porque repõe suas peças muito rapidamente a cidade mata porque novos corpos são gerados na manhã na tarde na noite em motéis de esquina em motéis de luxo em hotel barato sem plural (o s é um espaço ausente ali!) crianças viram fumaça em becos escuros nascem e morrem sem certidão de nascimento sem cpf são almas sem identificação o nome não vale nada para o registros oficiais a cidade não deseja construir memória de seus infelizes a face alegre prevalece sobre a 526 lou cu ra nascer para viver pouco é viver inutilmente viver para reproduzir e aumentar a cidade em seu exército de homens tristes o mendigo na rua na sua cama de jornal se envolve na alma da cidade – a notícia é a linguagem obscena da cidade fria fria fria nada lhe dá senão a noite e o sereno que nem a lágrima de seus iguais ela as tem por ser caridade demais para um homem civilizado nada lhe permite senão um pedaço de chão onde a lua faz da sua sombra um fantasma na rua mas esse homem é uma vida e uma vida única jamais vivida será por qualquer outro deixem ele viver uma vida digna... deixem ele ser um sofredor por opção não por sujeição... deixem ele ser si mesmo por ter opção de ser si mesmo do jeito querido e gostado um homem (mendigo feito na cidade) 527 é um coração no peito como todo coração tem necessidade de outros peitos para se fazer um som pleno um homem pequeno em bolso é um outro outro não eu outro mais que eu porque vive no mundo mas roubado de si mesmo na cidade quem não é mendigo de si? eu sou mendigo de mim a cidade colabora com minha pobreza... às vidas roubadas pela cidade manifestemo-nos! um dia de silêncio total para não ler o que a cidade anuncia vamos queimar os outdoors deixando a cidade sem pensamento fria congelada desabastecida de realismo de significado o outdoor é o pensamento da cidade... calemos o seu verbo o seu substantivo a sua sintaxe paremos a roda viva do consumo de si mesmo 528 não coloquemos mais lenha na fogueira da cidade inquiridora havia uma pomba de asa quebrada na rua da cidade ela como tantos na modernidade quando morrer ninguém cuidará de seus vermes nem um gato para lhe roubar a dor sentida deitada no cimento frio da calçada nem um ato de compaixão trazer a morte antes da percepção da morte em cada olhar de quem passa friamente já trazendo a morte em cada boca assustada a cidade às vezes deixa de matar para fazer sofrer mais... por que será? um dia vi um bem-te-vi agonizando na esquina de duas ruas movimentadas ele ficou no canto à espera da morte por três dias consecutivos ninguém lhe tocou a dor a dor lhe veio pelo olhar os olhos de concreto de cada um passando diante de seus olhos o bem-te-vi me saudou tantas manhãs mas no chão ele era nada ninguém 529 reduzido a objeto indesejado o que fazer com seu corpo insepultável? suas asas são para voar meus olhos de olhar... somente de olhar! meus olhos de concreto, também? a cidade me roubou o coração nem dos bichos sei gostar um dia vi um cão morto no asfalto logo de manhã era uma segunda-feira e o trânsito continuava o mesmo como sempre a cidade exige o que permanece o mesmo o sorriso da mente matinal se foi na contemplação do corpo estirado depois de pneus roçando sua vida breve ele roubou o meu dia a cidade permaneceu intacta no absurdo silêncio da morte que não dura um instante breve a cidade de alma monitorada por cabos de fibra ótica a cidade tem alma! a cidade de alma penada... o sistema é alma da cidade o satélite vigiando nossas vidas lá na órbita a rede de computadores controlando as máquinas 530 os telefones tocando quando o sistema quer a televisão nos informando quando o sistema quer a vida se tornando vida quando a alma da cidade deseja o sistema é uma alma que não pára quando pára o mundo pára quando desliga o sistema a cidade é cataléptica e seu cadáver desligado se decompõe quando fora do ar o sistema é uma alma complexa sem poesia interior o sistema é apenas exterioridade fria como uma tomada plugada a cidade de sistema complexo pensa e somos controlados pelo pensamento dela em insights de consumo outro dia me dei conta da cidade em devaneio sua mente foi longe e seu sonho criou asas o avião foi inventado para dar sonho à cidade fria no seu sonho os aviões viajam por cima dela mesma e lá de cima ela se vê organizada em estruturas esculpidas no solo 531 a viagem da cidade é ela do alto se vendo e quando os aviões carregam bombas nas guerras sem fim (parecem matar a cidade) é o pesadelo da estrutura sentimento de destruir-se completamente (como a morte destrói o corpo mas a alma sobrevive) a cidade morre de medo de desligar seu sistema na guerra a cidade sofre a perda de suas ruas e a mobilidade de sua velocidade constante na guerra a cidade se mata (suicidarse!) para depois renascer mais forte vítima de seu próprio sonho de grandeza é que quando o sonho de grandeza impera o império do sonho é pesadelo de perseguição por megalomania os aviões projetam suas sombras no solo o sistema vive completo solo e céu a cidade é uma estrutura rápida aprende com os próprios erros (como todo sistema tem seus erros nossa alma humana também os tem) a cidade tira de cada vida a eternidade 532 somos breves de brevidade inútil e de reposição rápida somos um produto na estante do tempo da metrópole somos nada roçando em nada-outros nada-vivos um dia vi um homem no chão morto sem cabeça apenas um corpo e nada mais apenas um morto e nada mais somente um homem acidentado pela cidade que acidente terá sido ele para si mesmo? não se deve perguntar por si mesmo na cidade corre-se o risco de achar-se vazio de poeira cósmica imerso a cidade mata o corpo e tenta matar a alma a cidade é o que é a alma o que sobra não da cidade mas da cidade morta no corpo a memória do tem po a alma exista! 533 preciso de alma para desacreditar a cidade com seu corpo monstruoso de tantos corpos composta a alma insista! coloque-se de pé diante do viaduto contemple, por favor, o pensamento da cidade o outdoor a alma persista! quero lhe apresentar ao mundo inteiro e dizer do prazer de ser mais que um produto na estante a alma ressurja! entre as ferragens carcomidas entre o tempo morto de cada rua torta de cada encanamento vago de cada sonho roubado a alma! acorda alma! que a cidade veja a alma de cada um e lhe lance um olhar de respeito a alma! sacode a poeira, alma! que a cidade receba a transcendência de quem a habita a alma! revele-se agora! de alma é minha poesia e não de 534 concreto meus olhos são de carne e de matéria etérea e pela alma eu vejo mais que concreto caiam as vendas dos olhos de concreto da cidade retiremos, com urgência, as marcas do tempo perdido na cidade assassina na cidade abortiva os olhos de concreto precisam de tom azul os olhos de concreto precisam de um colírio os olhos de concreto precisam de renovação os olhos de concreto somos nós esquecidos memória para um novo concreto de tempo desperto memória de tempo ressurgido da alma de cada um história nova tempo novo outro fundamento para o concreto erguido alma rebatizada na água da vida um novo útero para a cidade 535 um novo parto para outro tempo cidade prenhe de criatividade e de poesia e de poesia e de poesia A DESCONSTRUÇÃO a cidade subverteu diante da tarde chuvosa os olhos de concreto se revelaram em sua beleza sadia o efeito fotográfico da chuva escorrendo no asfalto encheu o chão de luzes de néon impressionistas e algo de novo ressuscitou dentro dos olhos de carne era eu bebendo a cidade através da garganta da alma livre a cidade se deu para meu olhar desconstrutivo a alma da cidade é da cor do arco-íris sobre a montanha a cidade de feia bela ficou poeticamente bela na tarde de um segunda-feira eu não suportei a chama dentro de mim e colori a cidade com os olhos de dentro OS OLHOS DE DENTRO COLOREM OS OLHOS DE CONCRETO sim, a criança corre sobre o asfalto, docemente aquecida pelas mãos da estrada percorrendo sua trajetória na vida 536 sim, o carro passa de leve com sua sombra de sonoridade vibrante como vibram as artérias da cidade por debaixo do carro colorido de tão colorido me roubou a visão sim, a tarde na cidade ressurge em luz de poste luz amarela luz atraindo mariposas seres da noite e projetando para além do horizonte as luzes piscantes da colméia humana sim, a cidade se parece, agora como ontem, apenas minha casa casa desgastada por emoções rápidas (as emoções ligeiras sobressaem no horizonte emocional da cidade) mas a rapidez é da personalidade da cidade eu vivo na cidade e ela abriga minha pobreza de ser sou nada mais: sopro de vida por sobre a cidade assustada creio na sinceridade de sua geometria urbana na devoção de seus templos escondidos em esquinas e átrios misteriosos e não sei se mente a cidade como pensava talvez a cidade tenha na sua carne a verdade de tantas gerações de seres vivos e humanos talvez ela saiba mais que eu dos encontros e desencontros do amor em seus jardins públicos em suas praças de árvores de vida curta em espaços onde o vazio de um encontra o vazio do outro e se fazem cheios de vazio puramente há uma doce alegria nos homens vazios 537 em cada esquina há uma cruel versatilidade em todas as casas comerciais eu não vejo a cidade escura ela brilha como sonho bom agora que os olhos de dentro se abriram para a expressão correta de suas artérias dilatadas pela necessidade de vida eu fiz a cidade como ela é urgente rápida e trôpega eu fiz a cidade como ela está pronta para o coito pronta para o embate dos corpos das vozes e das vidas a cidade é o que é porque eu a crio em mim em sua plenitude de corpo e alma no corpo a cidade é cicatriz de transeuntes desesperados na alma uma virgem que não conhece a verdade a cidade é um quadro artificial como a tela de um pintor é sempre um artifício de vida para ser mais plena a cidade não fala nada, eu me enganei, ela apenas contempla a vida pouca a vida besta que se passa em seus viadutos a cidade está cansada e envelhecida porque eu envelheci o olhar 538 preciso reformar a retina para aprofundar a dor da cidade preciso rever a cidade e deixar a poesia limpar a sujeira da rotina a miséria do espírito a cidade não tem religião por isso abriga todas todas todas (a religião na cidade é uma escadaria de igreja ou um pastor a sussurrar no microfone frases para espíritos surdos os espíritos se ensurdeceram nas cidades mas não é culpa dela é culpa da mente que habita o corpo ou da alma que se confunde com corpo... isso pode acontecer com qualquer um) atire a primeira pedra quem não tiver pecado já dizia o nazareno que deus abençoe a cidade em sua missão de nos abrigar preciso de sua sombra de sua estrada de sua distância para me achar para me fazer eu mesmo eu preciso das árvores retorcidas da cidade as árvores entrelaçadas em galhos retorcidos cena de pura magia fadas gnomos silvos nunca havia visto uma árvore abraçando a outra só as tinha visto de mãos dadas unidas nas alturas até que o vento as separe até que a morte resseque o sentimento 539 (o tempo passa para árvores e humanos) nunca antes a cidade é paisagem inesperada nenhuma reprodução acontecerá se o homem não quiser (semente não é amor?) semente tem suor de prazer? a semente se machuca quando cai e quando voa a liberdade está nas suas asas? as árvores abraçadas na tarde me lembram a cidade une apesar das distâncias a cidade é relacionamento mesmo vago a cidade quando dorme sonha o desenvolvimento de uma ideia fixa sempre em busca dela ou de outra ideia menos fixa mas mutável a cidade sabe sonhar e apertar os cintos da noite para criar a ilusão do progresso e o progresso é ilusão para os olhos de concreto mas vivemos bem nessa ilusão pura quando a cidade sonha e ela sonha muito nós somos os agentes secretos reunidos em delírio de cidade em divagação entretemos a noite no seu sonho a cidade sonha tão forte que agora sei das tempestades da madrugada é o suspiro da cidade sonhadora em travesseiro de nuvens em céu revolto prestes a mudar de lado o sonho da cidade é sempre um fim de tempo que os tempos sejam outros depois do sonho 540 que a cidade precisa dormir mais para ser que a cidade precisa acertar mais para crescer a cidade quando acorda apavorada fuma e suas chaminés contaminam a natureza façamos para a cidade uma noite tranqüila para acordar atenuada em sua existência eu preciso me redimir diante da cidade ela sou eu em objetos posto no mundo ela é meu mundo feito outro dado de mundo em esquadrinhamento a cidade tem sua doçura em colméias de gente feita eu sei do doce da noite na boca de lobo eu sei da madrugada fria é apenas uma necessidade de corpo repensando a vida num transe de mendicância a cidade é revoltada porque jovem quando a idade chegar ela vai se redimir lançando livros de memória de tempos outros em que a morte era o outro lado da vida (a morte é uma necessidade para o renascimento e a cidade sabe das necessidades mais que eu que sei apenas 541 da imanência do aqui e agora a cidade sabe do tempo mais que eu que sei apenas de ontem e o resto se torna esquivo e embaçado na memória frouxa) quando a cidade corre a velocidade me comove o transporte é uma forma de generosidade nas mãos da cidade eu ando e corro seguro se quiser a segurança a cidade precisa da minha decisão e diz isso através do arco-íris no horizonte em fim de tarde a cidade me faz decidir a todo momento e diz isso na chuva antes do arco-íris mesmo tempestade a cidade fala através de símbolos tão vastos minha hermenêutica é frágil e não-iniciada somente os iniciados na arte da urbanidade podem entender os mistérios dos viadutos somente os batizados no orvalho da madrugada 542 podem render graças aos encantos do concreto as montanhas emolduram o horizonte e nada foge ao dia de luz e à noite a montanha some diante do altar com velas são os postes velas para a promessa da cidade não há vento que apague os postes eles suportam toda adversidade a cidade é fé em cada viaduto erguido em altura tanta que tonto fico nem a tempestade mais forte (geradora de arco-íris) apaga os postes com sua intencionalidade é que a alma da cidade vibra mais de noite quando a alma dos humanos pede sossego os postes são escalados pelos homens de macacão cor de trânsito aquela cor de quem precisa ser visto no meio do acidente e ser identificado como salvador da situação isso de elevação é próprio da fé e a cidade tem fé tão plena que invejo a luz sempre ardente dos postes aquecendo 543 a rua fria da madrugada cavalgada pelos animais das carroças pobres os animais usam viseiras para não olhar a cidade e desvendar sua estrutura dialética obscura para quem vive em outra dimensão que não a transcendência nas cidades do interior ainda há carroças para coletar o lixo eu me lembro de um carroceiro que limpava a cidade de dia e de noite dormia em paz enquanto o burro só via o escuro da viseira sombria para sempre eu sei que há lixo na cidade mas o lixo é proveniente de mim mesmo alma impura e séria feita para a purificação o lixo da alma é pior que o lixo do corpo e mais eterno e pode ser que um dia seja reciclado a vida é mesmo uma escola! a cidade fala através de mim eu transpiro para ser sério a seriedade é a linguagem dos verdadeiros iniciados 544 o sorriso é deboche de quem bebe a cidade e não suporta o potente elixir da eterna juventude o sorriso dos bêbados não é provocação da cidade é a cidade vista por outro ângulo que agora rejeito a cidade é minha mãe meu abrigo minha sombra meu tempo a cidade é pouca por isso me resta pouco tempo para dizer das curvas das esquinas das larguras da profundidade da extensão eu sou cogitação eu sou cartesiano a cidade é pascal a cidade me trata bem 545 bem me dá bem me toma eu preciso enviar um pedido para minha iniciação... urgente! poderá iniciar-me o tempo? poderá iniciar-me a solidão? poderá iniciar-me o arco-íris? a cidade sabe de mim mais que eu dela eu sei pouco dela e ela muito de tudo que se passa dentro e por dentro corre esse rio da vida é pleno para nós dois mas o tempo da cidade é vazio quando cheio é arquitetura o tempo da cidade é cio quando fertilizada é periferia a cidade me tem no colo sem ela eu seria nada ou ela sem mim seria plena das estruturas do planeta a cidade supera as estruturas da linguagem de oculta em mistérios de profunda em semântica 546 a linguagem da cidade é um código subliminar em cada esquina e há tantos e tantos que me perco nessa babel de tempos diversos feita cada esquina uma linguagem em cada ponto outro fator de identidade eu não sei se a cidade se reconhece no múltiplo ou se a divisão é de fato sua es tru tu ra ninguém consegue a plenitude na vastidão mas se enterrando no próprio e curto a cidade consegue atingir o enorme sendo de base só li da o arco-íris quando surge é o coroamento da cidade uma coroa efêmera feita de sete cores próprias assim é a cidade: arco-íris sete cores em uma re du zi da o nome da cidade pode ser qualquer um o nome não é a cidade a cidade é para além do nome de uma letra após a outra o sentido da cidade é sempre para além da estrada 547 no final do poema já exala um cheiro de dialética no ar teima em polarizar a cidade é um antagonismo de guerra e paz de sonho e vigília de vida e morte mas é também de arco-íris e de outdoor ou se quiserem: do natural e do artificial a cidade é essa confissão de temporalidade de dois lados da mesma moeda os olhos de concreto a cidade é essa loucura porque não se porta como eu ela é um objeto de objetos feita eu sou apenas ao pensamento dado 548 e nada mais que isso: sinto muito a profecia estava errada ou certa já polarizada e nada mais insisto: deixo o verso para afundar a antinomia já relatada a cidade é um cérebro precisa de dois lados CEM MÓDULOS / 2009 INSTRUÇÃO PARA MONTAGEM encaixe cada módulo poético na caixa sonora do pensamento encaixe cada módulo frenético na parede instável do sentimento LAJE a laje da casa invade o passeio o sol não entra pela janela o lençol com mata virgem não realiza sua fotossíntese 549 o lençol que era alegre perde suas folhas o sol não brinca com a química da mata a marquise é um tabu intransponível entre o sol e as altas árvores GEOMETRIA URBANA eu odeio as retas da cidade os ângulos esquadrinhados a certeza da esquina o resto de rua torta eu nego à sombra do arco a proteção que me deseja dar eu prefiro a sombra da árvore incerta em broto de qualquer lugar eu abomino a geometria urbana seguir os passos no traço do arquiteto pisar no solo de um projeto pronto minha memória é da árvore livre DIA quando o sol rouba das estrelas o brilho a manhã acontece quando a humanidade tira do sol o calor a tarde desfalece quando o cansaço deixa o corpo inerte a noite floresce VIADUTO o viaduto da floresta é leque de cimento se abre 550 se fecha sua sombra sua fresta me revela no vento da tarde LIBERDADE grito de liberdade na paisagem urbana sou eu diante da bandeira vermelho e branca de tiradentes e companhia limitada eu preciso de liberdade essa liberdade que me faz eu mesmo de nin guém de ninguém mes mo mesmo apenas de mim por favor comuniquem aos qua tro ven tos preciso de liberdade para abrir as asas mesmo não sendo pássaro quero o vento no rosto e apenas isso o rosto o vento 551 EU SOZINHO noticiem minha necessidade de alforria da vida dessa vida miserável de escravo das coisas banais não suporto mais essa algema na alma esse aperto na garganta feito espinha de peixe que não desce nem sobre mas está ali atrapalhando o trânsito estomacal tirem o prato diante dos meus olhos e deixem o vazio para me achar dentro dele não quero mais essa vida estacionada na esquina não dobra não dá seta não reivindica espaço não por favor publiquem meu grito de desespero não quero relógio não quero horário não quero você eu apenas gostaria de estar ple na men te LIVRE LIVRE LIVRE 552 DOIS LADOS o coletivo ora tem sombra de um lado ora tem sombra do outro lado como um rio em duas margens como a vida sempre a vida com lições profundas o sol ora tem calor de meio dia ora tem um frio na espinha como seus braços que para fazer um arco precisam se fechar sobre minha vida sufocando minha liberdade SEM TÍTULO me abrace liberte-me passe por aqui sem apertar sem pensar SONHO o sonho se abre olho na fresta outro mundo sonho profundo 553 pouco mundo sonho absurdo pesadelo oba pelado sem roupa o sonho se fecha olho na testa SEMÁFORO DOS VENTOS o vento manobra entre os semáforos a mão do engenheiro de tráfego controla a brisa nunca o homem logo o homem criatura da natureza o vento segue as normas do trânsito da cidade e vai e pára e nós nós nós a garganta tem nós quando ar passa sem ar há silêncio quem somos nós? o vento sabe e se cala nunca paramos para tomar um ar o ar trafega no ritmo do engenheiro de trânsito maldito semáforo dos ventos 554 EU PALAVRA tudo eu é verbo tudo eu é palavra tudo eu é letra tudo eu é substância sonora não há nada no eu realidade não seja eu palavra viva ou eu morta o passado é eu letra morta pronta para eu ressurreição minha eu carne é palavra minha eu consciência palavra eu sou eu inteiro eu palavra nada no mundo é sem eu palavra eu mundo FOLHA eu sou sombra de folha na janela balançando viva eu sou folha caída na janela sumida saudade 555 REDUÇÃO motocicleta bicicleta roda óculos de gandhi carro carruagem roda óculos de lennon ANOTAÇÕES a escada desce e sobe e sobe e desce a voz rouca ecoa ainda no concreto plena como a tarde é plena no dia é professora desejando o tempo infinito entre diários eternizando a aula ou entre alunos dinamizando a vida a sua passou entre um intervalo e outro entre uma re[união] e sorrisos múltiplos ela se vai escada acima acima do nível do mar sim, o mar resolve a dor da vida dos rios cheios a vida se vai no clima quente e frio e múltiplo as estações se foram aqui parte com a pasta debaixo do braço 16.05.2009 / Despedida de Cláudia Rajão de seu trabalho na E. E. Paulo das Graças da Silva 556 ARMA quem produz armas no mundo? quem coloca a arma na vitrine? se ninguém arma ninguém mata se ninguém morre ninguém chora quem produz sonho no mundo? quem coloca o sonho no dia? TARDE FINDA a tarde, não, a tarde não me abraçou seu colo, seu colo não me deu abrigo a tarde se vai e dentro dela o tempo meu tempo, de ser a tarde, não a tarde não me libertou seu calor, seu calor não me reviveu a tarde se foi e perdido nela eu: eu mesmo, frio FERNANDO ah, fernando pessoa queria tanto entender o quanto sua poesia se faz espanto recheado de encanto em rima declamando a vida em seu lamento às vezes denso 557 mas sempre tento esquecer que dentro do meu peito o senso de viver bate lento feito a vida sensata BRASILEIRO eu sou brasileiro? porque sou brasileiro? por causa de quê? dessa poesia sem nexo ou de um tapa-sexo de carnaval? MODERNO invejo profundamente oswald de andrade e o seu ser moderno ser moderno para ser inteiro no mundo a modernidade nas artérias pulsando tempo novo mesmo já ido e reinventado quem criou a pós-modernidade é vazio de modernidade interior quero primeiro ser moderno para revolucionar meu mundo e fazer novos os mundos à minha volta quero ser moderno invejo oswald de souza invejo tarsila do amaral invejo a poesia pau-brasil no melhor sentido antropofágico 558 quero ser moderno apenas moderno viva a modernidade ÁGUA DE VASO o passarinho toma banho no aparador do vaso roubando toda atenção da mente o passarinho não sabe mas a água do vaso é para ele mesmo fazer a festa o passarinho acredita ser esperto mas antes dele eu pensei no banho nas penas molhadas no bico saciado o passarinho molhado leva a água do vaso para a natureza do bairro sedenta de umidade TODO todo o pensar é sofrer antes todo o sofrer é pensar durante 559 todo o amar é prazer antes todo o prazer é gozar durante a vida é todo ser pleno bastar a vida é plena ser total estar Belo Horizonte, 19/05/2009 a tarde caiu triste, pena dela GERÚNDIO do gerúndio necessito para o rio continuar passando sem meus olhos do gerúndio preciso para o mar ficar vagando sem meus barcos VENTO DE AMAR medo de abrir a janela e receber o frio de fora para dentro 560 a vida é pura demais para abrir janela tão tarde agora para outro vento o amor quando se vai deixai ir sem medo COMIDA o show vai começar as portas se abrem em preto os funcionários se agitam a boca saliva o restaurante se abre SELF SERVICE BETWEEN entre o passado e o futuro me vou levado pelo tempo burro entre a vida e morte ou ando ou perco o trem da sorte entre o reflexo e a reflexão vou lutando como no xadrez o peão 561 SINAL/FAROL vermelho amarelo verde o semáforo para o carro o tempo, não ousaria! o semáforo detem o pedestre a morte, não poderia! o semáforo prevê os olhos a dor, não suportaria! o semáforo triste me olha saber de mim, não caberia! FIO a pomba pesada no fio de aço equilibra a tarde o pardal sério no meio fio delimita o lado eu que eu no frio persigo a vida 562 FUGA DE PALAVRA a estante o instante casa eu o passarinho a passarela rua ela há constante há passante mundo nós TOLICES a tarde parou para me olhar nada nada nada foi apenas um breve pensar pouco pouco pouco a fila deixou de andar ora ora ora foi apenas dor de amar tola tola tola o fogo fechou sua chama não não não foi apenas o ar que reclama sim sim sim 563 CHEIRO seu cheiro me veio novamente pelo vento, não sei apenas ou talvez pelo tempo longo de dez anos sem ver seus olhos sua mão apalpou meu rosto e eu retribuí a lembrança dedicando alguns minutos ao amor passado seu cheiro me comoveu na manhã um domingo sombrio até então e você veio levemente tocar o afeto existente no vento quente GOTA o orvalho é a fonte de água da planta no inverno o frio corta o frio queima inferno a enchente é o excesso de umidade no verão o calor muito o calor plúvio inundação 564 ALGODÃO E TEMPO no fundo do tempo do tempo do mundo o algodão tingido de imundo a limpo a cada segundo tic tac tingido limpo resgate SEGUNDO HIPERATIVO o relógio de pulso no pulso do homem mede o impulso do segundo repetidas vezes o relógio na parede passa hora e minuto mas é o segundo o primeiro e vário impulso OSSO o osso na boca do cachorro é gosto de decomposto mesa posta não tem osso osso é posto de lado 565 o osso na lata de lixo se fecha para acabar já acabara antes na morte de seu todo o osso é parte do todo na boca do cão partido REAL realidade palavra difícil quando o mundo parece inverdade verdade palavra inútil quando a mente parece irrealidade MENTE a fotografia sobre a mesa a mente sobre a cabeça nada há senão imagem a melodia no som da sala o ouvido mede a nota antes então silêncio a mente mente a gente sente 566 SEM TÍTULO fundação buraco linha fundo chão minhoca canhão linha toda mão quente pulsação linha fundação buraco RITMO depois da tarde a noite parte a hora depois da noite o dia arde a sola dias e noite ora bolas 567 FÉ vou com pé volto na fé se parto a pé se fico de pé se rezo fé duvido não é fé sou eu de pé NOME o músculo da língua a contração do lábio o céu da boca em lua seu nome é palavra a batida do coração o sangue rápido o peito em tambor seu nome é emoção meu corpo sabe cada sílaba tônica do seu nome na alma 568 TRINTA E SEIS eu me senti hoje com 36 anos trinta e seis anos nos braços nas mãos os pés todo trinta e seis anos na cabeça sim! na cabeça me senti com tempo passado e o dia se iluminou e o espelho parou de mentir: a verdade veio forte trinta e seis anos sem nenhuma culpa culpa? a culpa não cabe nas rugas nem nos cabelos que se perdem belamente nas horas e no vento trinta e seis anos repletos de tempo hoje eu me presenteie com a idade real, fundamente real, tanto que a alma soube mais de mim trinta e seis anos o começo é agora QUANDO AINDA AMO SOU EU sobrou... uma dor passada em kilômetros nas ruas eu me desfaço ainda do seu ser sepultado mas vivo dentro de mim todo por todos os poros em que sinto a vida faltou... informar-lhe das horas à toa diante do tempo passando o filme velho das horas diante de mim através de sua velha e sempre velha capacidade de negação 569 não posso deixar esse verso sem término de nós não houve o fim apenas o deixar passar o tempo das cartas de amor e dos bilhetes de juras eternas de amor infinito não acredito ainda nisso: lhe vejo dentro em profundidade partindo minha noite e de vazio enchendo a manhã fria de agora não sei se desejar seu corpo é algo real não posso deixar de dizer: ainda lhe amo em todas as ridículas tramas da vida e mesmo no desenrolar dos fios frágeis eu sou seu com toda minha verdade eu sou seu e isso me basta no frio espaço entre lembrar e esquecer de novo para continuar vivendo a vida: resto da sobra de nós POUCO AMOR o seu corpo é outro me abraça me beija é pouco por ser isso torto o seu pouco é corpo feito outro me deixa é torto por ser isso pouco o ser torto é tudo a sobra e a queixa 570 do pouco desse seu corpo me ame como puder se sobra tempo ou pouco corpo eu sofro QUINZE MINUTOS quinze minutos para escrever um poema talvez se eu dividisse cada verso em uma centena desse a conta exata dos ponteiros em cada trema mas o trema nem existe mais e o tempo passa o verso se enche no papel de uma vontade crua é que às vezes eu esperava o verso solto na rua agora eu tenho apenas quinze minutos e por isso o tempo é uma corrente que me segura o tempo dispara o coração pulsando meu no peito o tempo é pouco e a alma é relógio em despeito dos quinze restam tão poucos segundos e vejo no papel o tempo consumido de qualquer jeito passaram-se quinze minutos? não sei... apenas sei da pressa PASSADO PARA TRÁS o passado é a imagem feita eu de frente para um espelho apenas breu não sei se o quero agora 571 dentro de mim total apesar de outra hora o tempo de juntos nunca mais o passado ficou no ontem não volta jamais MESMO a folha caiu do alto o vento desarrumou a vida a folha partiu abaixo encontrou viva folha e colo mas veio o vento de novo (o vento é novo no sopro) e jogou no chão de terra o corpo da folha morta mesmo mortos temos colos mesmo no tempo sopra o vento mesmo no dia há calor e frio mesmo eu há outro ouvindo METAFÍSICA acima do sentido opaco do objeto o sentido agradável do animal se faz diante dos olhos acima do brilho fosco da mesa os olhos vivos do cachorro me faz pensar em mim 572 sou acima em mente mas nem isso faz da mente apenas pensamento estou pensando o objeto e o animal irracional e há vida na palavra de cada um deles LIMITE o vaso limita a planta para baixo e para cima na raiz se faz a altura na extensão do vaso o corpo cheio ou feio o vaso imita a vida não se pensa fora da mente dentro não se sente longe do peito ardente TELEFONE o telefone se arrepia e toca para dizer da alegria de ser ele o telefone em calafrio pede para ser o seu motivo de estar aqui tocando 573 GRAMPEADOR o grampeador sobre a mesa tensionado em dois pólos um deseja o outro precisa da mão eu dou a mão para os opostos e o grampo fura a folha e realiza o seu ser unindo o separado o grampeador precisa da mão para apertar sua vida e dar oportunidade realização o grampeador me pede folha mas além da folha mão além da mão atenção FOLHA BRANCA uma folha em branco é pensamento do lado de cá sem necessidade de escrever-se a folha escrita é nome atrás de nome fila indiana de letras unindo a frase quando no papel o pensamento é a roupa da folha um dia branca 574 PERGUNTO, APENAS o estágio em que me encontro? não sei se me encontro antes ou depois do ontem feito longe o ponto de equilíbrio já chegou? não sei se me permito viver entre treva e brilho a vida é foi ou é bela? pode ser pouco desejo só abrir janela LÁGRIMA SECA a lágrima secou na lente dos óculos o tempo apaga a memória sempre eu não sei se ontem chorava ou apenas lembrava a lágrima deixou sua parte mineral bem na lente que me faz ver melhor a água da lágrima se foi para sempre como eu não sei de ontem a lente o passado brinca com meu humor deixa estar sempre assim: mudar o passado rima com todo o fim faz passar o indo para o findo SOM E MENTE o espaço entre a música no alto-falante e meu ouvido ligado à mente é ondulação (minha mão não pode evitar a sonorização) o que há entre o som se expandindo e meu ouvido vibrando em mente é auscultação (minha mão só pode desligar a emissão) 575 NADA É O TEMPO o tempo é um nada se fosse algo seria água o tempo é nada se fosse todo seria lodo o tempo é nada se fosse eu seria riso o tempo é nada se fosse meu seria isso o tempo é nada se fosse hoje seria céu o tempo é nada se fosse noite seria véu o tempo nada é se fosse mar seria maré o tempo nada é se fosse lar seria café 576 TUDO DE NOVO o próximo poema esse sim, é o necessário o poema feito é outro tempo vário o próximo verso esse vai me tornar feliz o verso realizado é duro feito cicatriz MOVIMENTO eu me reviro na cama para um lado para outro na mesma base de estrados eu me banho no chuveiro de cima para baixo de baixo para cima na mesma posição inteiro eu levo a xícara à boca num vai num vem para acabar à toa CINCO SENTIDOS o tato me diz do frio mas do trato me diz o costume o olfato me diz do cheiro mas do fato me diz a história 577 a audição me diz do som mas do silêncio me diz a música o paladar me diz do gosto mas do dar-se me diz o amor a visão me diz do fundo mas do coração me diz o mundo NÃO META O NARIZ o copo verde de borda longa sobre a mesa cabe o nariz o nariz vai antes da boca que depois beija o copo o nariz permanece dentro do copo para que boca prove o suco o canudo quando em uso não deixa meter o nariz o canudo quando junto deixa o nariz de fora 578 EXTERIORIDADE o que nasce de dentro para fora eu sei: o espelho me mostra o que nasce de fora para dentro nunca sei: fica em lugar estranho eu quando penso penso cores além de cores penso sons além de sons penso se posso guardar o que de fora vem FRIO nem a noite nem o dia empolga-me pouco o frio do inverno o corpo fica lento e lento tudo em volta e rodo pela casa em transe LIVRO viro a página do livro e outra página vem a poeira deixada para trás vai a melhor é a próxima ou a que foi já lida? se para frente se pensa para trás se valoriza se para trás se dispensa para a frente com a vida 579 MUNDO alergia ao mundo tem gente com isso alegria no fundo tem gente sem isso o mundo irrita como o chato o erro não é do mundo o que falta é tato no fundo o mundo é quente como gente INDIFERENÇA enquanto a grama cresce em tons de verde enquanto a lama seca no brejo plano eu fico entre planta e terra olhando depois do sol quente na pele eu viro a página com um banho quente para receber a lua mas ela fica grande e pequena e não sei abrir a porta é muito para a noite fria enquanto a coruja caça o rato na alta noite enquanto os pássaros viram a cabeça sob a asa eu tiro um tempo para prosseguir olhando O DE FORA coço os olhos e o mundo some resta algo dentro e tem nome sou eu mesmo 580 durmo o corpo e o mundo coube inteiro na mente sonolenta eu sonho lento passo a mão sobre a cabeça e dentro há processos de dois mundos eu interior e fundo o mundo de fora o mundo de dentro se despisto o tempo resta sempre eu mesmo LÍNGUA ÁSPERA eu encosto na palavra de leve a abstração da letra me faz cair eu recosto no verbo devagar a ação da sílaba me faz declinar eu suporto o substantivo calado o nome é símbolo me faz pensar eu detesto o adjetivo pejorativo o outro é defeito me faz tropeçar as palavras vibram em mim eu vibro com o som delas na língua áspera 581 CONTRÁRIO quem errou o sentido do conceito eu mesmo ou outro enganado? às vezes penso na infância com mentiras enormes às vezes me delicio com a mentira desvendada mas se é possível a mentira por que não pensei ao contrário? o oposto nem sempre é verdade a aposta nem sempre é vitória sempre acho cruel pensar porque pouco se sabe real BIOSFERA sobre a terra eu vivo nada mais que livre muito menos tive outra pretensão sei do espaço: existe é onde respiro e sinto o peso e sensação na esfera eu me caibo e se o ar acabar a vida se vai esgotar 582 VERSO BREVE o verso breve fala leve quase neve o verso curto fala puro salta muro o verso mínimo fala cínico assassino frio BINÓCULO olho para baixo há muitos anos desde pequeno ereto olho para longe há poucos anos desde com amor repleto ABACATE o pica-pau no chão come o abacate junto com o sabiá eu pensava que ele fosse apenas de larvas de tronco podre 583 o pica-pau gosta da moleza assim como o sabiá o sabiá não tenta a dureza eu pensava que sabiá fosse apenas de abacates mas é amigo do pica-pau a moleza do abacate agrada o malandro pica-pau SONO CANINO o som toca de leve os ouvidos dele e se entrega o bigode recolhido as orelhas murchas a calda caída os olhos revirados o focinho seco o pensamento longe tão longe que ressona debaixo do cobertor de listras em marrom o som toca de leve e leva o cachorro até à praia de itacaré nos braços da canção de nana caymmi dorme sossegado no som da maré dorme confortável no leve som 584 BANHO no banho a água se espalha por dentro e por fora sou o que se molha no banho eu apanho do quente ou do frio inconsistente do início no banho eu fico de bem de pé sentado só quando sofro e penso que chove ou água é maré no banho eu me calo se canto o momento é estranho no banho eu não sou nada apenas um corpo e espuma na pele me perfuma o banho muda a rota como roupa suja lavada limpa mas sempre desbota VOLTA, MUNDO! a volta ao mundo girando pelo eixo num rodopio frio ou no equador como voltar ao mundo depois do giro completo sobre o eixo da bola viva 585 a terra de baixo ou de cima? a volta ao mundo é rápida nos pólos eu quero um pólo para me entender DENTRO E FORA o alimento sacia por dentro o corpo com saídas pra fora o vento espalha o cabelo por fora com raízes presas por dentro a chuva molha os poros da pele cheios de sangue por dentro o sol queima o rosto pela manhã e de tarde a febre queima por dentro o mundo é de dentro o mundo é de fora eu sou de mim mesmo (parece... até agora) FRAÇÃO DE TEMPO dos tempos diversos faço a vida não de tempos eternos mas de frações o tempo é vasto demais para ser toda a vida dos tempos dispersos faço a vida não de fases definitivas 586 mas de períodos o tempo é casto demais para ser gerador de tudo DESEJO a pele sente a outra pele o desejo é pele e pelo o desejo é pela pele o olho prende o outro olho o desejo é olho no olho o desejo é pelo olho a mão toca a outra mão o desejo é mão na mão o desejo é mão no chão o corpo entra em outro corpo o desejo é penetração o desejo é sensação ESPÍRITO o de dentro mais profundo esse sim sou eu puramente eu mesmo no labirinto vivo de vidas e vidas e vidas o espírito é a medida do eu arquivo de si para o seu nada mais que si mesmo o tempo todo inteiro o de sempre e outro o de nunca e vário 587 pode ser agora e é o seu contrário eu sou a essência do que ele é e dentro dele a vida é toda nada lhe escapa na memória sempre é parcial o tempo o espírito não é frio ou quente é apenas e nada mais que isso o de dentro mais dentro e fundo da gente SEM TÍTULO o satélite artificial depois da órbita caiu no chão 588 UNHA E BARBA a unha corto e ela cresce o crescimento é total enquanto na vida animal há o que interesse o pelo no rosto não para de nascer desbasto e ele insiste em permanecer não sei se devo parar de pensar para a vida parar de aumentar IMITAÇÃO o barulho em tudo se assemelha contudo, a abelha sabe que não é ela as gotas em tudo imitam os sons entretanto, o grilo sabe que não é aquilo o artifício pouco remedia a seca do chão no inverno é tempo de estiagem [água de mangueira no jardim] POEMA CANSADO o cansaço veio como um abraço de urso nunca vi um urso de perto mas se assemelha o cansaço me veio sem seus braços a água do chuveiro era quente mas sem sua presença o dia acabou cedo, bem cedo! mas continuei nele tão ativamente atado e ele me sugando as energias que dia cansado desde o início, meu deus... meu deus, eu preciso de uma nova filosofia 589 NOITE SÓ na noite vejo sua ausência em cada canto da cidade no cata-vento do jardim na hora parada do sinal na noite a sombra do ontem é diversa em todo meu ser torço para surgir a aurora para a inteireza voltar quando passo rápido o olho veloz sua saudade me pega noite voraz ESPELHO no espelho eu vejo mais de mim ao avesso inverto no espelho eu teço linhas de mim no tear mental no espelho eu meço pontos sem fim a geometria mentirosa PERGUNTA a pergunta de hoje é simples tão simples que a guardo 590 no fundo das horas do dia a pergunta agora é jocosa talvez por isso necessária me ronda há dias a fio a pergunta interior é própria de tempo vago de vagar-se sem nenhuma nitidez no frio a pergunta não se faz alta baixa baixinha pouca o tom questionador angustia MOVIMENTO eu subo a ladeira se desço é fácil prefiro o alto não o baixo eu fervo no carnaval se fico em prece o tempo é vago nada acontece eu cruzo o caminho se estaciono é pouco movimento total risco fatal 591 ESTANTE na estante o livro cala toda palavra ele se fecha silêncio como antes o livro é palavra vagante ele se abre diálogo o livro aberto é palavra viva na estante há corpos letárgicos aptos comunicação LOUCURA dos loucos nada sei como não sei se razão é louco vagando sem emoção pouco sei da loucura se elogio ou frescura sinto admiração pela divagação nada sei dos loucos nem da loucura pura do puro louco simples outro de brilho pouco 592 DEFINIÇÃO dicionário não sou mas significo muito para mim mesmo imaginário não sou pois existo diverso e não a esmo inquebrável eu sou curvo quando sofro minha estrutura me segura questionável eu sou a dúvida me dobra é minha fratura me cobra HERA o muro exposto ao tempo do grafiteiro do pichador da cidade o muro tapou o rosto e nunca mais se deu ao grafiteiro ao pichador nem mesmo à correria da cidade a hera cresceu nas suas pernas escondeu a nudez para sempre ninguém jamais vai abusar do branco de sua pele a hera escondeu para sempre a memória do muro urbano 593 LÍRIO o lírio cresce no vale longe dos olhos sempre pronto o lírio desce raízes distante das mãos eterno ficar NOITE IDA o ônibus bocejou comigo o último resquício da noite passada a frio a fio a fino trato a manhã engoliu a saudade da noite em cada minuto ido para onde é que se vão os sonhos depois do dia nascido? QUANDO quando sacudi a poeira nas costas do tempo me fui com ela efêmera quando subi a ladeira com o mundo nas costas me fui com ele pesado 594 quando eu lavo as mãos de um jeito tão belo me dei a pureza espiritual CAMA ELÁSTICA o trapezista roda o ar em volta de cada movimento circular se ele desce e sobe e vai e ergue há proteção: cama elástica HORA não há hora pronta ela vem aos poucos início meio fim no fim a hora é tonta passada para trás passado presente futuro não há hora santa o tempo é pecado válido inferno purgatório céu 595 OPOSTO eu vou para um lado eu venho para outro não paro na maré fico em pé a vida leva o pouco erra a vida traz o muito era não sei se fico no claro ou se o escuro me ocupa se a vida é um ambíguo texto sem nota de rodapé SETE PALMOS acima da nuvem o céu se abre menos véu e mais intenso debaixo da nuvem eu me fecho mais meu e mais tenso acima do chão os pés abrem caminhos próprios debaixo do chão se é dos sóbrios o menos ACHADO se vai mais um tempo diante diante da vida que se faz tempo 596 de tempos em tempos me vejo vendo o ido tempo de se ir eu me perco no tempo e me acho vendo no tempo o perdido achado e é assim nessa marcha para o todo ou o breve achado que sigo e me perco não me ocupo do perdido apenas do achado não me preocupa a hora ida finita em passado me busco na hora vaga que ainda não se projetou nem se fez hora ida que abandonou meu relógio eu me perco e me acho no tempo e no vago MODULAÇÃO a vida é um módulo junto ou separado que se separou ou vai se juntar a vida é um móvel dentro ou fora que se fez dentro ou se perdeu fora PEDAÇO DE SENTIDO a rotina me ensina na retina 597 a menina me fascina e nina a bicicleta me enrola discreta o pássaro me eleva rápido a vida é passageira ida ÓTIMO otimismo diante de cada gesto mesmo o inútil carregado de matéria otimismo diante de cada festa mesmo a fútil carregada de hipocrisia otimismo perante o dia e a noite mesmo com um peso entre os dois otimismo perante a vida e a morte mesmo com o medo mais forte otimismo na vida a vida é sempre lição de fazer-se ótimo 598 O SOPRO DO TEMPO NO RELÓGIO DO TEMPO INFÂNCIA – 2010 1 eu me via ali naquele lugar de verde morro vivo quando lá vi vo no plano espiritual havia um si nal um lugar do alto na tela posto na boca de mulher feito projeto de vi da no plano material fez-se na tal serro é lugar ambíguo difícil de viver bom de aprender duro de es que cer minha terra natal é simples demais para ser grandiosa ou te a tral 599 2 desci para uma barriga que até hoje até agora me guia o umbigo do mundo no útero feito caverna esqueci do tempo vidas outras passadas o tempo se renovou nove meses de 1972 de fevereiro a outubro o corpo se plasmando no oleiro da criação 3 quem terá acariciado meu corpo pequeno feto na barriga da gaúcha? sinto os dedos do cotidiano fazendo de mim realidade a roupa lavando o fogão com panelas eu fui levado para lá e para cá fui chegando a vida se liga entre céu e terra quem terá falado de vidas passadas no ouvido direito de minha mãe? 600 4 a família já era grande cinco pratos postos na mesa cinco bocas para alimentar eu para chegar a família quase completa dos filhos o último ainda feto no útero o casal mais cinco filhos sete destinos entrepostos debaixo do mesmo teto de amianto quente ou frio 5 a casa de caridade recebeu a barriga nove meses após para esvaziar-se fez-se o parto fez-se a luz mesmo na noite a lua de outubro são jorge a espada um fruto dia de são lucas 601 dia do médico dia de alma ligada ao corpo 6 nascer é atividade terrena de corpo ligando alma e ter na tornar-se ser-no-mundo é muito para um feto posto no mun do nascer abrir os olhos descobrir o muro entre o finito e o in fi ni to nascer é dar-se outra chance para fazer-se novo depois do an tes 7 o médico faz nascer do útero a nov[idade] para o mundo as mãos arrancam do fundo o menino para o tudo o médico sopra na alma anuncia o princípio acorda! venha para fora! 602 o mundo surgiu em duas mãos no primeiro abraço o tempo e o compasso no primeiro tato a medicina da vida medicina ensina a vida a cuidar de si mesma 8 casa de caridade santa tereza das irmãs de são vicente de paulo no corredor das barrigadas angelina espera a hora o corredor de clarabóia no teto anuncia a salvação pelo alto deus está onde senão no céu? deus se fez luz nos olhos azuis o hospital de pobres e ricos o único para todos e todas abriu o quarto para angelina ela deu ao mundo um corpo no mesmo espaço de nascimento a morte espera no leito dor no peito ou mesmo dor de vida triste no mesmo espaço do surgimento a morte é a triste sombra da noite melhora repentina traz o velório pausa para rever a vida passada 603 9 infância se mostra no espelho retrovisor me vejo no tempo ido para sempre infância se coloca no espelho d’água eu afundo o corpo na memória não há medo de perder-se a infância é porto seguro 10 colo e peito poesia leito afago e cheiro filosofia feito mãe é sonho bom sempre 11 o leite quente na boca como promessa de tempo farto 604 o leite é investimento na bolsa de valores do tempo o leite me alimenta ainda hoje quando dá sede de vida 12 a pinta grande no pescoço eu a vejo como um amuleto de toda sorte na vida é que a foco num ponto do espaço faz da mente um alvo fácil para o conhecimento a pinta pintou o sete a semana era peito e pinta a pinta grande ainda a mexo no pescoço da minha mãe como recordação do ritual de colo peito atenção e tempo de saudade da infância antes da ladeira da vida 13 não havia a cidade nem o medo nem o tempo não havia o outro nem o amor nem o sempre no colo ainda se é apenas pro mes sa 605 14 agarrei-me ao colo da minha mãe como quem sabe que um dia virá a porta aberta da vida a passagem para o ônibus a vida que vai empurrar para a lágrima primeira a lágrima de fome não dói a lágrima de amor essa não sai se soubesse da vida do amor e do sofrimento pediria para imantarme ao colo quente ao peito farto ao momento puro para dele jamais sair a saída da vida é pelo caminho do meio meio, equilíbrio? ainda não sei o que é isso... 15 o primeiro passo de criança é saudade de colo o primeiro passo sozinho é retorno ao peito saudade do primeiro passo aquele que a memória encobriu de orgulho saudade do primeiro chão aquele que a história revelou vão o primeiro passo de criança 606 me criou o medo claro de sair e nunca nunca nunca voltar ao colo de mãe 16 o caminho entre o quarto e a sala entre o brinquedo e a área era muito grande o caminho entre a vida e o amor entre a existência e a dor era óbvio instante o caminho se deu na vida pelo primeiro passo dele nunca mais me libertei alguns chamam isso existência liberdade destino ou finitude 17 cada quarto e cada cômodo uma cor diferente é que meu pai tinha alma multicolorida cada passo e cada tombo numa cor irreverente verde vermelhão tinha lição esclarecida 607 18 eu quero o chão da infância frio como alma de morto posto sobre a ca ma para se vestir eu quero o chão da infância frio feito alma sem amor deposto na vida que se vai per dendo eu quero de volta o chão nele me reconheço mais sou mais de m i m que hoje 19 as meias sujas o bico imundo o brinquedo barulho o berço rouba o colo o travesseiro o ombro a cozinha atenção crescer é ser roubado ou roubar de si o tempo que se vai para a frente mata quem está dentro 608 20 quando vejo o tempo dos primeiros dias nas lembranças quase em preto e branco sem cor da vi da passada em montanhas outras e tantas e vastas quando sinto o tempo no espelho negando a imperícia da caminhada o rosto que se ia fazer para outro se tornar a delícia da vida tola vem uma vontade de amordaçar o relógio e asfixiar seus pulmões e quebrar as pernas dos pon tei ros para não andarem como eu um dia aprendi eu me arrependo de não saber na infância que era a infância ali presente se soubesse não a teria deixado ir tão sem memória e sem nitidez como agora vejo que se passou quando me vejo agora sou apenas um pálido reflexo do tempo ido que se expressa apenas nas imagens vagas do primeiro passo e da pretensão de ganhar o mundo mundo? como assim, mundo? o mundo era apenas eu e minha mãe num tempo fundo porão de chumbo 609 21 as flores, quais eram as cores? não registrei a paleta não sei onde estive sem cor para nomear as cores, quais eram as flores? não dei conta de sua graça não soube nada de sua raça nem cheiro para cheirar 22 roupa quente para o inverno corpo nu para o calor não sabia de corpo sabiam para mim temperatura corporal febre ou não doença a pele da mãe sabe o que destoa o chá na mamadeira para dentro a tradição do tempo barroco afasta toda inquietação o corpo esse que sou eu dentro me era tão distante de mim não podia formular ideia concreta sobre a existência hoje, somente hoje, o calor é indício de febre ou de amor eterno ou paixão leve 610 23 corpo sem regras prisão de ventre doença certa corpo de criança urina que excede doença ou peste eu quando criança não sabia dos controles de esfíncteres e da bexiga e devia ser muito di ver ti do não se controlar borrar nas calças ou mixar em público coisas tão feias para os adultos e que a vida da civilização proíbe ainda bem que a infância permite experiência de li ber da de total 24 ser servido fartar-se a vida na adaptar-se ao mundo após o choro para descansar infância é útil pelos prantos fútil 25 pelos não havia pelos em nenhuma parte do corpo cabelo só cabelo ralo e curto e pouco no couro 611 a vida biológica indica o desejo prazer não havia prazer em nenhum lugar além da boca fazer o quê? o mundo cabia na ponta da língua a vida biológica muda o sabor do beijo 26 a cidade em volta era abstrata necessidade nenhuma de rua ladeira beco a cidade grande ou pequena podia ser o que fosse eu em mim cabia que desse o beco na rua a rua na estrada longa eu não estava nem ai para os caminhos importava-se o trajeto único e possível do chão ao peito do peito ao leito 612 27 o chocalho vibra seus agudos sons nos tímpanos provisórios ele se foi mas me deu sua sonoridade para ser o que era aos brinquedos quebrados, perdão, pela dor da destruição a infância quer construir um novo mundo sob os escombros tinha eu culpa por não saber das mãos fazendo arte na madeira podia me condenar quem fosse pelo prejuízo à ciência dos costumes infantis de destruírem para crescerem? mordi os bicos e chupetas devolvendo sua borracha ao inútil cada caco de carrinho feito era eu aprendendo o mundo a lição da destruição infantil bem sei dela agora ser adulto é construir muros INDESTRUTÍVEIS entre si e o mundo 28 tristeza não sentia se sentia passava entre um colo e outro tristeza não curtia se curtia chorava e ria novamente e pronto a madureza da vida não é como da fruta fruta pronta se revela eu pronto me reservo 613 29 ausência do que hoje sobra é o tempo na janela agitando a copa da árvore bela o que poderia faltar se o peito e a mãe eram o sagrado mineiro altar? 30 a infância vista de longe como fim de tarde triste é mosaico tento juntá-la ela em mim se sou eu que se avista meu olhar talvez insista reconstrução preciso fazê-la por mim mosaico do tempo reforma da vida edificação eu me juntando em cacos sem fim 614 31 o que do seu leite me veio não posso afirmar ao certo a idade passou a vida também o que de sua voz se eternizou não posso sussurrar como em solfejo o calendário avançou a estação é outra o que de seu aconchego eu tenho não posso ninar em palavras pois meu colo é vazio os móveis saíram da moda e não me sento no mesmo tempo 32 será que as mães se cansam em algum lapso de tempo do ido tempo cuidando? será que as mães se lançam em devaneio e se fosse... tenho medo seria eu vivo? 615 33 templo eu edificado tempo eu presente futuro passado a arquitetura do corpo erguida no meio do mundo que se dá como raiz de fundo a vida é plena de estruturas eu sou um templo sagrado para mim uma oração sem fim eu sou um templo céu ou teto um coração partido o templo se ergue frágil frágil porque dado de mundo ágil eu me quero templo trinta e três vezes perdoado reerguido 616 joguem-me no chão que a lição da infância me fará reerguer pedra pedra pedra por pedra pedra pedra 34 a música de ninar esmorecendo eu criança o gato a casa a música de sonhar tirando-me do chão a canção mais bela vem da infância ple na 35 a visão de céu nunca infinito no colo da mãe o céu é pouco o mundo em volta é tonto eu preferia o rosto de mulher 617 não avistava longe o avião passando nem o cruzeiro do sul me guiando a visão limitada da realidade me fez apaixonar mais fácil quando o mundo se abre a visão se dispersa para achar o amor nada guia pudera voltar ao tempo de olho no olho daquela sinceridade ingênua de filho e mãe mas o tempo renova as telas da cidade entendi: o tempo passa para casas e gentes 36 o choro avisa e consola desorienta e apavora por isso até hoje choro com medo e o feio se faz desde pequeno a lágrima é receio de dor ou de doença para a mãe um aviso ao universo 618 o choro de ontem me banha a face sem vergonha apesar das frases de vergonha impostas de fora o choro é um batismo é a primeira e única identidade da alma 37 a água fria na testa nas mãos de cônego júlio homem tão alto meu batismo foi uma cascatinha nascer em espírito através da água benta que arrebenta o umbigo espiritual a carne é pecado a igreja sempre alta eu pequeno ser renascido quanto mais alta a parede maior a liberdade de quem está do lado de fora a primeira lição do pecado é que o pecado vem de fora 619 38 o batismo me deu uma madrinha e dois padrinhos acima de qualquer mas de qualquer suspeita zico era um padeiro negro do botavira suas mãos até hoje me dão uma moeda para comprar balas seu nadir um mecânico católico do botavira de olhar honesto e de família grande boa para tomar café da tarde pedrelina senhora de fé de filhos e de única filha de casa cheia de mesa farta de porco no chiqueiro e de quintal com campinho e chup chup o batismo me ligou para sempre ao botavira onde quem vive se vira quem morre sobe o morro para o rosário a benção até hoje ouço “benção madrinha” “deus lhe abençoe” zico morreu muito novo 620 39 a crisma foi no mesmo dia antes o padre salvava a alma de uma e única vez a crisma terá sido válida como saber se dela posso me usar para o c é u ? 40 as igrejas da minha cidade tiveram cemitério dentro a do rosário hoje tem fora todas encomendam almas fazem missa de sétimo dia pedem e nunca dão esmola as igrejas são tão antigas que os jovens preferem o lado de fora 621 41 eu não usei tampão nos olhos ou em um ou no outro de cada vez nasci de nove meses inteiros e mirei corretamente o médico eu não usei tampão nos olhos por isso tenho mania de equilíbrio por isso tenho raiva do dia perdido por isso fico sem graça diante da pouca visão eu não usei tampão nos olhos por isso tenho loucura pela to ta li da de 42 meu umbigo foi enterrado no quintal da casa de dona odília a mesma casada com mário o motorista gordo que de tão gordo tinha uma enorme alegria de viver meu umbigo foi plantado no quintal bem debaixo do sabugueiro de flores brancas 622 ao lado da nascente de águas claras que abastece a cidade inteira na falta de água nos canos meu umbigo foi abandonado na terra para se decompor e fertilizar a vida em volta do quintal e nenhum bicho ousou retirar dele a vida que dele saía é por isso – acho que talvez seja por isso – da minha paixão pela água que nasce da terra pelas flores que tem raízes no solo e pelos quintais com frutas maduras é por isso – acho que ao invés disso tudo – que eu amo o solo do meu primeiro sepultamento dos meus primeiros tombos dos meus primeiros passos e dos meus primeiros erros o umbigo enterrado no quintal de dona odília deu o norte na vida e o sul na família 43 tive sorte na minha cidade muitas das crianças morrem muito cedo tive muita sorte na minha pequena cidade centenas de crianças miudinhas morrem tão cedo que o caixão é de abraçar tive muita e grande sorte na minha ilustre e pequena cidade centenas de crianças desprotegidas e mirradinhas batem as asas cedo que nem se ouve o vento na maternidade 623 44 eu pulei em seus braços (a expressão é forte e atual porque me peguei escrevendo agora) eu chorei de alegria quando o vi (eu teria chorado de qualquer maneira mas é que me achei mexendo na gaveta da memória) um homem magro de bigode de vida curta seu abraço me falta e me falta por causa do tempo que passa as vidas entre si como viagem de trem e paisagem eu sinto o coração forte quando penso em seus braços eu sinto a vida sem morte quando penso no seu colo 45 os braços de homem seguram para não deixar cair não para abrigar 624 os braços de pai asseguram for ça extra ordinária na vida longa os braços do meu pai revestem todo o perigo de graça é um não-abrigo necessário hoje ainda 46 a paternidade é de fora para dentro a maternidade de dentro para fora seja isso o que for eu só me lembro disso quando a memória do pai aflora o que há de fora para dentro é o mundo por isso no mundo a filiação é mais forte menos íntima na carne mais explícita no pensamento quando a paternidade se revela na alma a admiração é como flor na janela jamais se abandona por fora se faz de dentro e agora meu pai vive tão fundamente na alma como fonte jorrando da terra o tempo dá a margem e o leito o amor é abundante 625 47 fim de tarde ou começo da noite eu e berenice sempre na cozinha perto do fogão de lenha meu pai nos coloca no colo e rimos em alucinante ritmo somos a sanfona nos dedos dele gargalhadas no ar como notas dissonantes o momento do colo é eterno assim como o cheiro da sopa de macarrão de duduca número zero ou de letrinhas no prato fundo 48 em companhia de meu pai a tarde caía mais sóbria mais segura terna em companhia de meu pai a noite vinha em lição cruzeiro do sul três marias três marias três marias em cada estrela da noite apontado está seu dedo indicador dando nome e significado pleno aos astros estelares 626 49 quando meus passos acompanhavam os seus quando o fim da tarde de domingo esclarecia a nossa ligação ultrapassando o tempo de agora eu berenice e você o trio pai e filhos íamos até a famosa churrascaria de nondas cada um tinha o direito de pedir salgados refrigerante e sorvete eu me enrolava em cada volta do pastel folhado de queijo eu me plenificava na perna sempre cambeta da galinha da qual surgia a coxinha das melhores lembranças da vida ao seu lado mirando seus olhos sempre estarão presentes em mim sua voz cheia de decisão seu conhecimento pleno de razão e seus livros em latim em francês idiomas que evocam sua lembrança sua presença na minha vida é fim de tarde agora e sempre 50 o papel seda da gráfica de pai o grude de trigo da mãe a vareta da chácara do barão 627 a linha da loja de seu antônio eu subia aos céus na tarde pelas asas imaginárias do papagaio eu descia ao mundo real no fim de tarde hora do banho máquina sobre o armário por mim o papagaio teria luzes como as estrelas para levar ao céu pai e mãe por mim o objeto voador seria cheio de cometas para guiar ao universo eu pai mãe 51 a morte me atravessa me joga para dentro de mim onde sou apenas finito como quem amo a morte é sempre esse gosto ruim na boca dia que passa lento mês que fica inerte ano obscuro eu me perco diante da força da morte por isso amo mais quando o pai se vai e o amor é muito a dor é infinita ... ... ... ... ... ... ... ... 628 52 o olho de dentro atravessa o tem po o olho de fora confunde o pen sa men to o olho da alma aprofunda o sen ti do o olho de fora mesmo vendo é per di do o tempo da infância é olho de dentro na es sên cia 629 53 o pé na bacia no banquinho assentado fim do dia a água morna pés cansados o dia acaba pé no chão meu pai vive na toalha fina da memória sempre livre 54 quando seu jair da serra chegava no jipe americano com sua barriga imensa e sua muleta ornamentada quando eu via meu pai negociando o saco de laranja com todas misturadas sabia: o dia não seria mais o mesmo o sorriso de meu pai adoçava a laranja e o canivete da bainha anunciava o gomo primeiro a ser provado e eu era o escolhido era um despertar do dia para momentos familiares em volta do saco de laranjas de jair da serra a vida familiar era festa ácida 630 55 ouro fino é um lugar longe da cidade um povoado de casas tão distantes uma das outras por causa das cercas das grandes fazendas no meio do lugar há um rio largo tão largo que os peixes crescem fortes e robustos e pesados atraindo os anzóis meu pai sempre me levava na kombi velha caindo aos pedaços para a pescaria que começava no quintal de casa quando as minhocas eram desenterradas para a morte a pescaria era no lusco fusco dia quase noite a água de rio na noite é uma serpente sem olhos não fosse a estopa queimando no meio do mato não haveria outra referência a não ser sua mão amiga os peixes sabem dos homens mais que os homens deles trocar a fartura do rio pela miséria do anzol nunca foi um comportamento dos seres do fundo do ouro fino mania de grandeza do século dezoito nas minas gerais 56 a família toda em santo antônio do itambé bóias de caminhão dona sinhá e seu dirceu a cachoeira no domingo de manhã era nossa 631 de mais ninguém de mais ninguém tronco de árvore boiando girando afundando a água escura descendo do pico do itambé até hoje não sei para onde foram de mim rio abaixo – pois sim! – as horas n’água o sorriso da família alegre ecoa na caverna da alma sou eternamente grato ao rio à montanha à memória ao sol pelo cenário imortal 57 pinhão no natal era panela no fogão pega o pinhão descasca e come leva o pinhão para dentro fome pinhão no natal era pai e mãe juntos pinhão no natal era eu e a vida prontos 632 58 na minha casa ninguém foi ao jardim não o jardim de flores esse não que falo de outro: a escola antes da escola de fato na minha casa brincávamos de ler e escrever com os que já estavam na escola de fato e era muito: brincar sem o castigo de não aprender na minha casa ninguém gostava do jardim por causa da merenda, não sei, ou porque na vida: mais vale a família que as letras na minha casa ninguém foi ao jardim mas todos sabem ler e escrever 59 a fumaça do fogão a lenha não fogão a lenha de barro e tijolo era o fogão a lenha à moda sulista ligava a alma ao corpo bem cedo a casa se enchia de um cheiro de árvore morta sem alma 633 roubada de sua vida ainda na plenitude da vitalidade o cheiro de árvore anunciava a hora de levantar o café na mesa início do dia o café-pó de tão morto a árvore seca de tão morta as vidas cruzadas na porta da co zi nha 60 o pé de mexerica do quintal de dona odília sempre me deu água na boca acho que por isso havia uma fonte de água pura bem no pé da grande árvore quando do subimento do muro para separar nossa casa do quintal de dona odília – como se fosse possível erguer muro de berlim entre a mexerica e minhas mãos habilidosas para o furto infantil cheio de desejo proibido e ácido – aprendi do limite entre a propriedade e a necessidade 634 esse pé de mexerica me faz salivar ainda hoje quando olho no relógio da alma aquele tempo discreto da infância de interior esse pé de mexerica envolve suas raízes no fundo de meu chão interior e espalha ventos de saudade nos olhos azuis esse pé de mexerica me devolve a ingenuidade perdida como se fosse o passado um ninho de pomba rolinha bem no topo da copa do pé de mexerica com sua acidez inequívoca 61 atou-se aos pés a poeira da infância a poeira vermelha da minha cidade a poeira amarela do botavira a poeira ainda sobe quando a memória abana o tempo a poeira do campinho de terra agora morta revela o negativo do retrato dos pés é que a fotografia da infância se dá não no papel mas nos dedos amassando poeira ou lama amarela ou vermelha do chão da cidade velha a poeira-terra-poeira cobrindo o corpo de meu pai 635 debaixo de sete palmos de saudade – e que saudade desumana! – o corpo do meu irmão fechado na terra úmida a poeira da vida e da morte são faces da mesma terra 62 quando o olho de dentro persegue o passado –que vejo, será real ou apenas um desejo? – não sei se o passado se descobre ou se fixa na cadeia da causalidade quando percorro o panorama da infância – que caminho, será possível ou imaginário? – o chão é areia movediça onde enterro o verbo cada história é um substantivo [im]próprio 63 antes da rodoviária havia um posto de gasolina e os carros criavam asas e decolavam botavira abaixo era um jeep americano – era sim, um jeep descolorido na memória – marcado de bala por causa da segunda guerra mundial e o povo da minha terra tem verdadeira fixação pelos carros que enfrentam com bravura o chão das roças duro poeira ou lama 636 a intransponibilidade é um desafio real para o povo daquele lugar quem seria o motorista do jeep voador? era o maravilha em sua juventude (diziam que o pai dele era lobisomem e eu tinha verdadeiro pavor em subir o alto do botavira especialmente em época de quaresma quando os demônios de dentro parecem dormir depois do carnaval, apenas parecem pois segundo contavam era nessa época que eles despertavam para assustar os incrédulos... haja fé na mitologia serrana!) o maravilha homem escuro feito a noite decolou o jeep americano e causou novidade na cidade de homens analfabetos que sempre precisavam de fatos reais para se tornarem reais (se ele soubesse do racismo norte-americano ele não se sentaria na arma de guerra... mas ele desconhece martin luther king... isso são atualidades! volta, poeta, à infância!) antes da rodoviária havia ali um posto de gasolina e havia um homem de perna torta (não sei se ele tocava na banda de música) antes da rodoviária (o prédio mais feio do mundo barroco serrano construído pelos pedreiros do morro do bicentenário) 637 havia um posto de gasolina e dentro dele eu passava para ir para a casa no botavira mas num belo dia de verão o posto fechou e o lote ficou vago e apto para a obra mais feia da cidade tudo por causa dos grandes ônibus grandes ônibus (necessários mais necessários que um lote vago como se o vago fosse ausência de sentido) preferia o posto preferia o vago preferia o vôo de maravilha no jeep prefereria... se a infância não tivesse ocorrido para trás daquela nuvem passageira roçando o pico do itambé já dissipada já ida já chovida já morta 64 o vento passa na copa das árvores frutíferas ou não floríferas ou não que eu não sei dessas somente os beija-flores miudinhos e verdes e rápidos o vento corre sem cheiro pela ladeira do rosário em época de calmaria para aquelas bandas porque quando a matina anuncia caboclo catopé marujo o cheiro de urina domina a vida é feita de contrastes e de cheiros repudiantes 638 o vento na minha terra se chama ibiti-ruy – esse nome lindo dos índios que num passado que se perde nas folhinhas marianas detrás das portas de dona milude (irmã de vicente de bela) – morro dos ventos gelados os índios perdiam o olfato no frio do monte de terra o nariz esfriando no inverno escorrendo sobre as penas sobre a pele vermelha sobre a floresta intocável ainda virgem que os portugueses defloraram nossas terras para arrancar o coração da terra que ouro é o espírito das antigas terras do ibitiruy ah! os portugueses não sabem nada dos ventos dos índios eles sabem dos ventos dos mares das índias dos mares de salvador dos mares de paraty de cabral de caminha de sardinha os portugueses roubaram o nome e os ventos dos índios e nenhuma pena mais se agita no morro dos ventos gelados nem no inverno nem no verão os índios se foram porque roubaram das terras o espírito da terra o ouro que dura mais que o roubo os portugueses não sabem dos ventos das montanhas sabem dos ventos dos mares e onde posso buscar a herança dos índios senão na memória perdida dos dias? ah, os portugueses nos deram a civilização! tola resposta ao vento que não mais sopra os portugueses levaram o sentido dos ventos dos morros da minha cidade para sempre nas suas caravelas – que as caravelas 639 precisavam de muito vento quente ou frio – para sair dos portos com todo a alma da terra o ouro o ouro o ouro de tolo de tolo de tolo a europa hoje fala de sustentabilidade cadê o vento que sustentava a alegria dos índios serranos? para onde levaram o ibiti-ruy? devolvam o vento que sobre as copas das árvores frutíferas ou floríferas agita hoje sem identidade eram o motivo (as penas dos índios de existir do vento) 65 o sol se foi fechado pelas nuvens e era tão cedo ainda mas ele se foi e com ele se foi também a janela da vida para a manhã coberta de fuligem infância é esse mito lírico perfeito e tímido de todos que chegam até à maturidade será a melhor fase da vida? quem saberá... 640 chegar ao outro tempo dela afastado me agrada me agradou sou grato à vida pelo tempo corrido e agora feito outra coisa para além do tempo de bolas de gude e bola dente de leite na garagem de dona pedrelina avistar a infância do alto do pico do itambé ou do morro bicentenário bem de madrugada para não assustar a cidade lá em baixo no vale que vale um centro histórico encarar esse tempo de calendários outros e fartos como peitos de vaca das fazendas do condado ou rápidos como seriema na estrada de milho verde indo para são gonçalo que dá em diamantina que dá no google earth o sol lacrou sua luz bem cedinho entre as nuvens escuras da tempestade e nem fazia calor e nem fazia outra coisa senão memória cheia de nostalgia 66 era um dia comum de uma manhã comum e foi depois da escola marlene miranda alfabetizando o caderno e de vez em quando a mim mesmo no grupo joão nepomuceno kubitschek quando eu aprendi meu sobrenome achava mais fácil que escrever ku –bi –ts –chek 641 era um dia bravio no sopro acho que pelos papagaios no céu era agosto e não havia tanta comida para os passarinhos curió tisil pardal sabiá a seca na minha cidade chega por esses tempos e as pessoas costumavam morrer de maneira súbita e os cachorros zangavam e sumiam de casa era um dia sem maiores surpresas aparentes porque a infância é um dia feito pela mão divina e não pela agenda de compromissos na infância da minha cidade criança era um ser jogado no destino da família da igreja da escola e etc que é bom não enumerar que o verso fica muito grande era um dia vago como vaga é a sua anotação no calendário e alguns passarinhos resolveram ir morar dentro de quatro paredes ou de quatro telas porque se cansaram da vida dura de nascer crescer e multiplicar e por cima se alimentar meu pai resolveu fazer um condomínio para passarinhos em depressão (é que os passarinhos sabem quando vão cair no alçapão bobo de quem acha que eles são iludidos pela comida!) e cansados da vida (eu sempre achei que o asilo dos velhinhos era porque eles – e não os filhos deles! – se cansaram da vida) meu pai abriu as portas de um viveiro um grande caixote na parede da cozinha que tinha água potável chão de cimento e um galho de jabuticabeira 642 bem no centro e uma tela para que eles não pudessem sair antes de sua recuperação completa do tédio da vida os passarinhos caiam no alçapão e iam morar no condomínio fechado longe dos gatos (que só caminhavam na tela com permissão do cachorro que ficava ao lado e de vez em quando sonhava em ser livre) os bichinhos de corpos grandes ou pequenos se abrigavam da vida na natureza para serem apreciados por todos da casa um ritual macabro de olhar a vida alheia sem ser convidado (os passarinhos não assinavam contrato e se assinavam meu pai os enganava com letras miudinhas na última página) o viveiro era cheio de canarinhos pombinhas fogo-pagô sabiás de peito roxo macho e fêmea (a tristeza na minha cidade afeta os dois sexos indistintamente) e havia codorninhas de cocô espumante azulão curió-coleira curió-da-cabeça-preta melro tico-tico e sanhaço (viviam tão pouco que sempre desconfiei que já chegavam em estágio terminal) o viveiro de cores obtusas de porta fechada 643 para evitar fugas (a fuga da vida é uma constante no alto da montanha) servia refeição variada de fruta colhida no próprio quintal de mamão à laranja de folhas verdes a jiló que esse não dava na cerca dava no sacolão lá do alto da cidade o viveiro me dava medo durante o sono eu acordava depois de sonho ruim eu acordava isso até hoje se repete repetidas vezes como um presságio achando que a porta estava aberta feito caixinha de pandora e nossa... é bom nem pensar... os passarinhos tristes e deprimidos soltos pela cidade e nem me lembro se o último que ficava – porta fechada na correria da madrugada– era verdinho da cor da esperança (o mito de pandora aconteceu dentro da cabeça na minha infância e eu nem sabia que ele existia) o viveiro saiu da cabeça do meu pai e virou tela quadrada na porta da cozinha vigiado por um cachorro e no final de tarde depois de retirada toda a sujeira eu ligava a mangueira vermelha e fazia chover sobre as aves que se deliciavam com a água de cloro que não fazia a dor aumentar feito a chuva real que tem adubo para o desespero (é por isso que quando chove as plantas se enlouquecem e começam a brotar nas hortas nos canteiros nas roças) o viveiro era tão comunitário e as nossas vidas paralelas giraram durantes vários anos até que um dia eu me cansei do atendimento privilegiado aos pássaros 644 (isso se deu naquela fase em que as percepções de tempo e espaço se mudam e os hormônios enfurecem a face a ponto de pegar fogo e explodir em furacões de pus) eu deixei de lado a vida paralela da não-natureza hoje o viveiro só se abre aqui dentro na bola de cristal da fantasia 67 cheiro de cachorro filhote é diferente de cachorro grande não sei se acerto no sentido mas é que a vida no início exala perfume e já para o final o odor se perde a vida não é fácil para homens e cachorros o cheirinho de infância canina pela casa ele chegou numa caixinha de sapato (será de um bamba ou de um kichute não me lembro...) nos braços de meu pai ele veio sem raça definida como os homens que precisam hoje de exame de dna para saber a conjugação entre espermatozóide e óvulo ah! se tivesse dna na minha infância a gente ia descobrir as moças do morro com filhos dos ricos do centro histórico... ah, se ia... 645 pior se fossem os filhos das tias do alto do cemitério filho de um mistério sombrio heranças que não serão jamais repartidas! ele veio revelando uma cor de marrom com preto e focinho de raça brava mal ele sabia que a corrente estaria para sempre no seu pescoço como brinde por nascer um dia filho de cachorra de rua rex esse era o nome do filho da rua com pai indeterminado para ele nunca fez falta mesmo e o nome foi dado por meu pai que conhecia latim de traz para frente e queria a grandeza num código lingüístico que invertia a origem do pobre coitado miudinho rex era um cachorro estranho nem podia sonhar com liberdade dada em curtos passeios quando arrebentava suas correntes e saia correndo pelo bairro até ser pego de novo ainda bem que em agosto ele nunca fugiu senão ficava louco e ia para a estrada de diamantina ser comido pelas onças rex era um cachorro que gritava meu nome para tirar seu corpo magro da reta das correções de formiga sempre de madrugada sempre na alta noite as formigas sabem o que fazem (na minha casa não havia dedetização havia correção de formiga matando todos os insetos que a imaginação pode criar na calada da noite) as formigas enfileiradas comiam todo tipo de carne todo tipo de vida num ritual macabro sempre antes das chuvas que as chuvas matam formiga na correnteza das ladeiras e elas sabem disso – quem terá ensinado para elas? 646 quem terá colocado isso na cabeça das formigas? rex gritava e ia eu quintal afora soltar suas correntes (será que ele combinava com as formigas um ataque noturno?) para libertar sua vida supérflua da supérflua necessidade natural das formigas em correção mas queria falar do rex e as formigas cort ram os v rs s 68 minha mãe pegava o pintinho dentro do ninho e pedia licença para a galinha já cansada de ficar sentada vinte e um dias para colocar dentro da caixa de papelão com fundo de papel picado da gráfica que ficava do lado oposto da casa o pintinho de corpo mole saiu da casca tão dura do ovo – será que lá dentro é gostoso como barriga de mãe em que a gente ri e fica de cabeça para baixo e se espreguiça a hora que quer? – eu gostava de sentir o calor do corpo da pequena ave na época de frio sempre tive essa mania infantil de querer salvar o mundo quando chovia eu colocava os pintinhos na caixa grande e pertinho do fogão de lenha eles ficavam adormecendo o corpo em crescimento 647 corpo que eu nomeava e um dia no futuro me apossaria nutrientes em canja depois do hospital que por lá eu fui várias vezes por causa da asma minha mãe por ser mãe entendia da maternidade da galinha e respeitava o ciclo sem interromper a natureza em mensagem explícita sobrevivência 69 chamem guido retratista invejo ainda hoje a arte do render o tempo no papel que hoje é dia de festa e tem churrasco improvisado no fundo de casa perto do canteiro da horta ou no porão da gráfica e se ele não puder vir jogue uma praga nele tipo aquela que sua casa vai cair com todo mundo lá dentro num dia de chuva chamem guido retratista admiro ainda hoje as fotografias na caixa de biscoitos pois ele mora lá em cima na cidade – vai que ele acaba demorando ao descer as ladeiras – para registrar a família em convulsão sulina pode chamar um ou outro vizinho que vizinho mineiro é muito chato e desconfiado e parece que o ritual de churrasco gaúcho não comporta esse desconfiança menor chamem os rapazes amigos de cirineu aqueles do ginásio que jogam xadrez depois do almoço meu pai agrada muito desse jogo de estratégia que evita a guerra real em fazendo a guerra imaginária 648 chamem helena de dona azulina e de padrinho zico pois vai ter cachaça lá da roça de fulano de tal (não importa de onde desde que seja cachaça e para quem bebe não importa a origem desde que seja frio ou quente o dia e que haja clima na pele para inventar o motivo) chamem os meninos curiosos serve aquele mesmo que se dependura na janela para ver televisão e pegar um pedacinho de carne todo envergonhado acho que o filho da dona lá do paucomeu que me esqueci o nome a memória está a serviço do esquecimento chamem também seu dirceu e dona sinhá lá do itambé ela desengonçada ele que chama a gente de “coronel” como se estivesse no século dezoito se a estrada não estiver ruim por causa da chuva chamem, que ver quem mais... chamem as nuvens para tapar o sol na hora de servir o churrasco pois o amianto esquenta ainda mais a brasa que queima no chão cercada de tijolo de construção (minha casa sempre esteve inacabada e por terminar e por isso amo essa lembrança do que está por fazer) chamem a chuva no final de tarde para a casa ficar em silêncio absoluto (exceto pelo som das gotas no amianto) onde cada um possa sofrer calado ou rir sossegado no domingo que se expressa em família reunida chamem o tempo para se revelar na fotografia em preto-e-branco eu sobre a mesa dando jóia para guido retratista para a vida que de fato era ali totalmente alegre chamem o pisca-pisca de cleuza os músculos arredondados de irineu o vestidinho caseiro de letícia o chimarrão de angelina e izidoro e as barbas longas de cirineu 649 avisem que vai haver música daquela coleção de vinis regionais que meu pai trouxe do sul na sua última viagem pelo brasil meu pai comprou pilha caso a luz vá embora e a radiola funciona por causa de otávio consertador de rádios a alegria está garantida chamem o nitrato de prata para deixar no papel esse dia revelado no quarto escuro de guido retratista que a sombra bem aproveitada se torna sonho no futuro ou lembrança do passado chamem os personagens da fotografia de novo talvez mãe tenha feito chico balançado de sobremesa (que não apareceu no álbum... não sei bem o motivo) a fotografia pulsa na minha mão tic-tac toc-toc 70 o cabelo duro e verde efeitos do cloro da piscina a mutação ocorre dentro e fora da água para brancos e negros a piscina com água azul nada, cloro em profusão cabelo endurecido pele amarelada um ser de outro planeta a piscina da praça de esportes quando era eu ainda criança não me afogava porque no raso se tem muito ar e se pode e se deve manter a vida fora de perigo 650 71 seria a mesma janela a mesma abertura para a contemplação do mundo do menino no século XVIII e eu? o menino – aquele mesmo de família portuguesa ou de escravos em senzala feito e parido ou na mata debaixo de árvore– o que via através das nuvens no mesmo por-do-sol de um dia meu próprio pela janela de vista para a mesma igreja de santa rita? o brinquedo de madeira pelo chão de terra sujava-se como o meu depois de tantos anos mas no mesmo cenário? o menino do século XVIII terá sido mais feliz ao contemplar a chuva se formando na cabeceira do rio quatro vinténs ou naquela época o rio era sem sentido e desfigurado na sua nos tal gia? sei apenas da sede dos tempos enchendo o copo da vida seja lá ou seja cá pois a necessidade de se explicar vivo é a mesma em qualquer tempo e sob qualquer teto se bem que uns se protegem mais que outros por causa da espessura do telhado não tenho objeção quando à construção de cada existência que o respirar é o mesmo para os corpos mas o pensar esse em que me detenho agora é vário para os corpos presos ao tempo e presos aos costumes e preso de si em figuras de tempos outros o menino correndo no século XVIII não sou eu correndo no século XX as pedras são outras e foram outras dadas ao pisar dos pés calçados diferentes para sentir o mundo ao chão o sentido da vida 651 muda feito líquen na pedra ou árvore em calor ou seca só sei da cas ca ti nha passando no meio do fundo sem graça em outros tempos que a água era farta na porta de casa no centro antigo o menino antigo (a antiguidade é tão distante que fica para além da serra do gavião e vai ter na serra do raio) não se media como eu me meço não se perdia como eu me perco os motivos eram outros e tantos e vários e tontos e vazados de uma absurdidade que só a comparação estranha agora pode ousar o menino de mim nada tem mas se inscreve na história da generalidade INFÂNCIA ou se quiser nesse conceito que agora significa um olhar de comparação serei eu feliz comparando minha vida pequena diante da vida outra do menino de tempos imemoriais terá sonhado o menino na mesma desesperança que eu? do mundo sei tão pouco, saberia ele mais que eu afeito às letras mas também ao vazio dessa era niilista pelo menos nele havia a certeza a crença e a esperança da redenção em mim pouco há de futuro que só o que se passou é certo que vivido nada mais 652 o menino terá ele visto os pássaros em gerações primeiras que eu as vi em décimas décimas quintas vigésimas os pardais terão se entristecido mais com o avanço dos dias ou apenas o povo habitante dessas longitudes? (judas perdeu as botas entre o arraial de baixo e o botavira e jadir canela bate nele todo domingo de páscoa para fazer justiça à sua indelicadeza esquecer seus passos errados pela cidade barroca) o menino esse que se fez antes de mim o que tem de mim e o que tenho eu dele? somos a continuidade um do outro ou apenas cada um no seu mundo isolados? o menino do século XVIII veio antes de mim sofreu antes de mim gozou do mundo antes de mim e esse antes é apenas o que dele eu posso dizer de mim ele nada pode dizer que sua voz já se calou entre as pedrinhas que rolam para o rio para o frio para o mar 653 72 a primeira encenação no grupo joão nepomuceno foi um poema ora, vejam, um poema um poema adaptado de o pequeno príncipe aquele mesmo de saint-exupéry o francês voador a primeira encenação foi a pedido de dona sussuca a diretora me vestiu de príncipe e me pôs no pátio devia ser uma festa para as mães (a minha nunca ia lá) dona sussuca não deve ter lido o livro como eu depois de quase vinte anos é que para quem não sabe o pequeno príncipe é desapontado com o mundo triste melancólico e se deixa matar por uma serpente além de não ter um chão seguro no mundo para pousar seus pés e além disso foi escrito depois da segunda grande guerra eu me acostumei com o papel até hoje é meio assim me disfarço de príncipe que inicia coisas e termina a si mesmo enquanto faz o início ser algo eu na infância era inteiro hoje sou esfacelado é como se depois do vôo no avião eu nunca 654 nunca mais pudesse ter um chão uma calçada para colocar minha existência como o personagem existencialista de exupéry eu não tenho lugar no mundo por ser ele frágil eu não reivindico um posto definitivo entre as coisas o mundo é repleto de não sentido não amor não paixão não poesia não música e por mais que declame poemas dona sussuca me perdoe mas eu nunca me inteirei das coisas do mundo mesmo lendo – e talvez por isso! textos vazados de amor ao mundo à vida e à existência o pequeno príncipe se deixou matar eu por enquanto vivo e já e um grande feito pois a vida quando não se vai cedo provisoriamente vai dando certo mesmo entre os torpes baobás e a fúria da civilização – ser gente é deixar-se viver 73 o vento bate na face frio o corpo morto é frio o vento só leva a morte cidade afora a morte se expande friamente na ladeira 655 não tapem o rosto deixe a morte bater de frente de lado no corpo vivo um dia esfriado o calor cessará a criança morta morta estará o frio é morto nada nasce dele esquentem-se enquanto podem a morte avisa: inverno 74 quando eu ficava de mãos postas sobre o altar o medo do céu era muito grande sempre tive medo de altura e o céu é muito alto me desculpe dona terezinha de naina mas a senhora causou pânico em mim várias vezes me colocando no alto do altar para homenagear nossa senhora no mês de maio mesmo anjo que fosse não queria o céu alto e de lá como descer sem medo a altura celestial sempre me foi impossível por isso criei raízes e não asas 656 75 marlene miranda me ensinou a ler a escrever a somar a ter admiração pelas letras no quadro verde as raízes da infância são quadro e giz nunca soube onde ela morava (acho que na escadaria da santa rita) nunca soube se ela gostava de poesia (acho que ela é muito séria para isso) as letras juntaram como eu na vida as sílabas viraram representações do pensamento as letras encardiram a memória em livros e nem o anil de pedrelina poderia tirar esse feitiço marlene miranda de letra de bolinhas fez girar a lua na minha cabeça é que a lua real é apenas um fato que passa a lua de palavra é eterna apropriação da alma quando o mundo gira em torno das palavras a palavra vida passa a ter carne e osso e significado e nunca mais desvinculei meu nome do corpo que agora ao mundo trago as palavras me salvaram de mim mesmo sou mais por causa das oxítonas paroxítonas proparoxítonas e algum tempo depois veio dona vilma colocar acento definitivo em quem sou agora marlene miranda da letra de bolinha 657 76 sempre gostei do isolamento nunca do recreio no grupo a convivência alargada na infância é vaga 77 a fila um atrás do outro por ordem de tamanho antecedia o hino nacional e has tea men to de ban dei ra não havia ditadura (será que um dia ela vai voltar? e agora que eu sei o que ela é?) na minha vida nem poderia eles os homens do poder não habitavam a minha mente isso se deu tantos anos depois as pombas brancas voavam livres no céu azul de outono da minha cidade e não havia tortura nem pau-de-arara nem morte por sufocamento nem confissão forçada nem vôo para a morte essas coisas da vida política adulta a fila se organizava por série e passei por quatro delas da primeira à última antes de ir para o ginásio antes de descer a ladeira eu que via o ginásio da porta da cozinha da minha casa não havia formas de governo nem ciência política na minha infância eu 658 era alienado ou a alienação é um estágio primeiro da consciência de ser-no-mundo para mudar-o-mundo? não havia ditadura e nós de uniformes azul-e-branco íamos em sete de setembro um atrás do outro como soldados saudar e reverenciar a revolução de 1964 (será que eu me tornaria um ditador se não fosse a filosofia? será que eu me tornaria um soldado raso se não fosse a poesia profunda?) a fila se organizava no pátio e depois de todo o ritual odete (que morava lá em cima no gambá) ou maria de lourdes (da voz rouca rouca rouca) ou seja lá quem for apertava a sirene até ela virar aluno em sala de aula para inicio das aulas a fila era a ordem e as palavras – mal sabiam os ditadores lá do alto do poder – eram a desordem geral pois libertava as almas de quem quisesse ser livre a fila do grupo me ensinou a ser correto com quem manda (e os professores quando mandam pedem quando pedem sussurram e quando sussurram nos amam) e abstrato quando penso a fila era uma grande brincadeira infantil seguida de desenho de paisagem serrana no caderno a fila do grupo era mais engraçada que todas do mundo quando dona conceição de cici da padaria cantava em português 659 come si pianta la bella polenta la bella polenta si pianta così - si pianta così, [ah! ah! ah! la bella polenta così! tcha, tcha, bum, tcha, tcha, bum, bum-bum-bum-bum come... s’innaffia.. come si cresce... come si fiore... come si taglia... come si cuoce... come si serve... come si mangia... come si gusta... si pianta così, s’innaffia così, poi cresce così... ecc, la bella polenta così! que dizer desses sons que a fila me faz lembrar… tem cheiro de meninice – apenas isso por que o tempo envelhece? 78 o sopro do tempo no relógio do templo fazendo a vida girar ou se enquadrar depende do formato do relógio no pulso o sopro no templo do tempo se dá em cor apagada parede rabiscada de bola dente de leite em pé virado para a lua em sorte o sopro do tempo no coração é batida forte ou fraca de emoção perdida ou acabada essa mania de viver ainda vai me levar longe de mim o tempo explode o tempo na face 660 qual mãe não acredita no futuro do filho? o tempo de promessas é a infância nada mais que a infância o sopro do tempo no relógio do templo sopro de coração partido por isso o relógio tem hora e minuto para ser exato eu não! a vida sou eu inexato tic inexato tac inexato tic 79 morderia o pé-de-moleque se houvesse a mão da mãe nele há mão e pé de escravo tomaria a água do quatro vinténs se fosse limpa feito alma de neném nele há esgoto e lixo macabro 80 bebê gente grande em miniatura qual palavra me constituía se tudo que sou agora é palavra grande ou pequena na alma? bebê de palavra pouca na boca qual palavra fazia de mim ser eu se a mente era vaga como a onda 661 sem pensamento? a palavra é a certidão de nascimento da memória na mente só assim se é de si mesmo 81 o olho de fora me vendo pequeno eu de dentro vendo tão grande o que de fora se avistava na frente dos olhos o olho enganando a realidade de dentro falsificada pela mente miúda que de miudez a mudez se dá na consciência eu via e se via era visto mas não me recordo não havia espaço-tempo nem memória para calar fundo o medo o medo cria a memória mais rapidamente que a necessidade a necessidade é também memória do tempo depender é ser-não-ser entender é crescer para dentro onde as palavras nos escrevem mais que os olhos de fora 662 82 cidade? não não havia brasilidade? não não cabia nacionalidade? não não sabia personalidade? onde estaria? 83 na infância não foi o mar a me levar para longe de mim nem o avião a embarcar meus sonhos muito menos o trem a esquentar os pés em apito pelos trilhos foi apenas a ladeira dando no céu foi a ladeira dando em eu 84 o vento sopra no relógio sopra forte em tempestade se anunciando ao longe a chuva na minha cidade tem lado para acontecer e todos sabem o caminho que traz a gota adubante ela vem dos lados da fazenda de dr. walter pelas bandas do tanque de paulo levy a chuva vai pela trilha e a poeira do caminho antes alta se acalma e vira a lama vermelha adubo de vida é o cenário da chuva 663 as lembranças melhores são férteis das tardes acabadas em nuvem negra gotas de suor da natureza escrava do homem 85 o fórum era no início do século XX uma cadeia nova ela caiu e sumiu dentro do tempo como tanta coisa cai na minha cidade o fórum ficava onde terminava a cidade lá no alto do gambá que hoje vai até ao limite no morro de areia onde as pessoas constroem castelos o fórum foi reinaugurado quando eu estudava no grupo e depois da aula eu e um bando de meninos íamos visitar os sanitários nobres dos juizes aquele banheiro era tão bonito... de uma nobreza pública de um riqueza dúbia eu e mais um bando de meninos depois da aula com merendeiras íamos ao fórum aprender o juízo 86 eu brinquei na obra do clube ivituruy tão rico tão rico que era preciso ser sócio sócio de que? nunca houve piscina... nunca houve quadra... 664 eu pu lei do muro de arrimo para dar de cara na areia e sonhava ser batman para voar hoje o prédio é tão feio minha infância se sepultou na areia do concreto em cada pare de meu tempo está para sempre e di fi ca do 87 o sonho era um bolinho frito com goiabada dentro escondido atrás da caixa lá no alto da estante o sonho da minha mãe era doce o meu também e do meu pai também quando meus braços cresceram eu peguei o sonho que me cabia 665 88 no porão da gráfica havia uma rede uma rede nordestina bem r m d t a a a nós descobrimos que o seu balanço acordava o riso dentro da alma intoxicados pela trama risonha fizemos a rede u a l o p l r a t para rir mais e mais e mais a infância é um ar dentro da alegria o porão da gráfica me fez ver o riso como fonte de conexão entre as vidas de todas as regiões do país que eu não podia n e d r e t n e 89 kátia foi o primeiro amor infantil de urso de pelúcia dado em presente com cheiro de perfume forte o amor infantil faz curva pela esquina da praça não se efetiva nunca só em letras de carta escrever o amor na carta 666 fez dele um amor real mesmo que apenas por alguns minutos o amor infantil passa rapidamente 90 os dentes caem o corpo expulsa a infância pela boca os dentes saem o corpo sepulta a infância com boca oca os dentes voltam o corpo convulsa a fase nova pelo céu da boca oca a boca e as fases na boca oca céu da boca há frases 91 de dentro do corpo os pelos saem em matéria desconhecida nas axilas no rosto 667 nas partes de prazer ainda adormecidas os pelos mudam a pele e o mundo o ar fica confuso e toca diverso até o arrepio passa a ter outro som o corpo muda a sua voltagem os pelos dormiam dentro de mim veio o vento do tempo no relógio o pulso ficou violento os vulcões de hormônios iniciaram sua história 92 quando eu era criança o carteiro conhecia a todos pelo nome ele me entregava as cartas no meio da rua para adiantar o expediente o carteiro sabia do peso de cada mensagem decerto conhecia os sentimentos em cada envelope as mortes chegavam do sul pelos correios os telegramas eram tiros certos minha mãe chorava meu pai saudava o tempo triste 668 o sul era tão longe de mim e assim ainda o é somente uma carta incerta para dar notícia das montanhas distantes 93 eu minha mãe e berenice fomos ao sul eu tinha apenas seis anos devo ter dormido muito pois a memória adormeceu junto com meu sono passado só recordo de ficar preso num banheiro na rodoviária de sarandi minha vó era uma senhora de uma austeridade chocante parece um cenário de filme francês a casa o rio ao fundo o morro verde e tudo muito muito escuro e polenta no café da manhã estrada chão e caminho de roça eu apenas me lembro de mim e de parentes tão impressionantes distantes sem nenhuma cor de amor do sul ficou apenas o sono o ônibus 669 e um pacote de sagu que minha mãe consumiu numa tarde fria refletida na panela pintada de vermelho 94 final de ano dá jabuticaba na chá ca ra do ba rão época de ensaiar a invasão perfeita para saciar a fome dos frutos doces levemente acariciados pelas abelhas e formigas amigas das flores final de ano é época de jabuticaba em todos os pés e de longe a chácara do barão pa re ce um im pé ri o cercada de mortos e vivos por todos os lados missão de coragem adentrar pelo f u ro da c er ca 670 guido da chácara toma conta dos bichos e das árvores sempre de mal humor ou de humor sem graça como se quisesse dizer não dizendo sim ou dizendo sim como dissesse volte mais tarde e pode achar ruim se me encontrar colado ao corpo da dona jabuticabeira sempre uma sacola ou um balde para levar para casa e deixar depois de limpa cada grão se resfriar na geladeira para potencializar o trabalho da doçura do tempo em cada grão nascido nos braços abertos da árvo re gi gantes ca 95 quantas vezes eu cai no chão pé-de-moleque para me fazer gente? não sei do tempo abstrato sei apenas do tempo em cicatriz como essa que tenho nas costas da cerca da cachoeira do itambé ou dessa que tenho na mão quando fui apontar o lápis 671 esse tempo me cabe dentro dele do tempo dos ponteiros abstratos pouco sei e não poderia ser diferente a alma dissipa a lembrança o corpo guarda 96 as casas sem cor sempre sem cor a infância o caderno sem linhas sempre sem linha a dor a família sem graça sempre sem farsa o tempo a escola sem alegria sempre sem fantasia aprender a infância mente para mim até hoje eu minto para mim a todo tempo 97 o carrinho o revólver a mão pesada da mãe a areia a piscina o café da tarde em groselha o mercadinho de osvaldino a caderneta o macarrão de duduca e seu jeep verde a barragem o jacaré que eu nunca vi (o lago ness da minha 672 cidade tem jacaré) o posto de seu walderes com ar para pneu (o ar da novidade da minha cidade saía do botavira) pequeno cenário se soubesse dele tão caro hoje teria impresso em clichês na gráfica cada grito cada fenda cada vida engraçada toda fala irrepetível a infância sabe que se perderá por isso faz de conta que outro tempo não há minha mãe guarda fotografia em preto e branco da minha infância até quando elas estarão entre nós? 98 fizeram um esgoto canalizado deve ter sido o prefeito waldemir mesquita 673 para jogar todo a imundície da cidade no lucas bem no meio do botavira 20 metros de cimento para bicicleta verde para patinete de rolimã dos meninos de nadir da oficina eu me ralei todo certa vez descendo o canal de cimento mas não caí no rio sujo o chão me abraçou antes 99 durmo ainda... sei que durmo em calendário de há muito esquecido na parede ora azul ora verde minha casa de felicidade em cada tijolo durmo ainda... no colo quente e fértil em temporalidade da minha mãe no sofá diante da televisão em preto e branco passando as horas que o corpo precisa de tempo para estar à altura da alma que o abriga durmo ainda... sob o impacto da voz dos meus pais sobre os meus ouvidos roçando a mente por fora e fazendo o coração esquecer da vida com suas lições árduas e fortes e duras durmo ainda... 674 berço de madeira com manta de poliéster lá da loja de seu antônio com calor em cada fio com esperança de vida longa entre sua trama durmo ainda... de mão e pernas miudinhas cabendo num abraço de pai e mãe e sei que as unhas que cresceram e que foram cortadas não foram em vão cheguei aqui e agora... dormindo e acordando revirando dias e noites primavera verão outono inverno a história do meu corpo é a história de uma alma a se revelar no espelho do tempo cheguei aqui... de bagagem cheia por dentro e por fora (corpo e alma são atados como cheio e vazio de uma mala) com as mãos sujas e limpas e limpas e sujas a vida dá banho de purificação a cada hora a vida começa na infância a alegria começa quando a infância é feliz na memória 100 o marreco desceu pelo rio lucas parou para olhar o tempo no botavira virou notícia mauro de castelo pulou no rio 675 pegou o verde corpo levou para casa eu como criança pedi com tristeza no olhar natural para meu pai comprar o marreco salvá-lo da morte que apagaria sua cor de grilo cintilante eu comprei o marreco levei-o debaixo do braço como um troféu vivo para o galinheiro da minha casa salvando o quadro verde bandeira do brasil daquela manhã de inverno 101 não me faltou nada a infância me deu o necessário da necessidade não me ocultou nada a infância me fez pleno na minha 676 insaciedade não me mentiu nada a infância me foi a verdade da possibilidade 102 o mato me protegeu da tristeza o verde é chá de sumiço para a lágrima nova o mato rasteiro de capim cidreira deixa o sofrimento adocicado o tempo é doce o mato verde me abrigou na admiração dos fatos tristes da vida de criança daí as raízes não se perderem a terra onde nascemos espalha seu cheiro sua vitalidade em todo nosso corpo somos blindados pela natureza minha raízes são fundas no chão do serro porque eu quero assim e me sacio nisso mais que perder o corpo e a alma em degredo minha raiz ultrapassa meu sapato 677 é vida bem vivida em sua falta e na sua admirável amplidão o portão da vida se abriu no serro e o caminho se fez tão vasto por causa das dobradiças fortes que sempre resistem ao meu retorno quando preciso de novas forças para continuar a vida o mato o chão a raiz eu sou natureza em aprendizado constante 103 quando eu me for para outro tempo que os deuses da infância me socorram anjo da guarda inominável (mas para que seu nome impresso aqui nessa folha?) mas farfalhando suas asas na escuridão do meu quarto em noite de estrela no céu e amianto no teto terezinha de naína ela me ensinou preces de grande utilidade para as horas de medo da minha infância e quando o pesadelo fazia-se presente para o crescimento da alma 678 padre trombert ele me ensinou que o tempo passa diferente em diversas partes do mundo e dentro de si também com seus três relógios no braço meu pai quando me levava à missa para purificar minha alma ingênua das ingenuidades do passado de outras vidas e me fazia acender uma vela de seriedade e uma luz cheia de energias positivas quando em sorriso nos seus braços quando eu passar para outra página da vida que os loucos me consolem pela seriedade maria sem braço na sua distração quanto à origem social de seus zombadores e no braço faltando diminuindo o peso do corpo maria três pulinhos cabocla em festa do rosário diária em pedra na mão armada para a grande batalha contra os palavrões da cidade (quem são os loucos? quem são os loucos?) maria mirrinha com sua voz estridente fazendo a vida passar devagar nos seus gemidos lancinantes aumentando nosso medo da noite que traz a dor no alto do morro expedito preto com seu saco de plástico nas costas carregando um mundo que só ele e mais ninguém saberá contar de seus personagens (ele 679 me carregava também? eu era um peso para esse pobre homem de casa singela perto do cruzeiro?) pinto pelado homem de quarto na casa da vila naninha sempre pronto a correr atrás de nós para nossa alegria a imaginação aumentava suas pernas e seu tamanho logo ele tão velhinho como o tempo barroco da rua direita quando eu passar as páginas do caderno minhas professoras do primário irão comigo marlene miranda de tãozinho soldado com seus quadros do pato totó abertos a cada semana com uma história que envolvia a descoberta de um novo mundo ela colocou dentro de mim as letras e elas nunca mais saíram (alguém pode medir o que é isso?) dona zélia de lázaro do banco do brasil a mulher mais gentil que conheci na minha vida (além das serranas dona milude e maria eremita e dona júlia da santa rita) com seus lenços coloridos e uma lágrima pronta para cair dos olhos e ela que me levou para o banco do brasil meu primeiro emprego sério iara de maurício do banco do brasil com suas filhas lindas (por onde estarão? na minha memória elas são crianças como eu quando as conheci) e suas pulseiras brilhantes e sua pele morena e cabelo bem cuidado dona conceição de cici da padaria 680 com seu rosto vermelho como a bandeira do japão quando nervosa fazendo brincadeiras pelo grupo rato e gato e ensaiando a quadrilha para nos enfeitar de povo da roça que eu conhecia bem pois morava pertinho da rodoviária quando eu sair do colo da minha mãe o mundo vai mostrar outro chão estou pronto para o que der e vier o bom do tempo é o dia seguinte O SOPRO DO TEMPO NO RELÓGIO DO TEMPO ADOLESCÊNCIA – 2010 1 o meio fio na minha cidade é de pedra-sabão (nem em todos os lugares especialmente na ladeira que dá no cemitério perto da oficina de zé dias) o meio fio separa um lado do outro a rua e a calçada a cidade e a vida eu e o tempo no meio fio caminhei tantas vezes sem saber que ali ensaiava os passos para a vida que exige sempre e qui lí bri o constante 681 um jeito de corpo o meio fio dá um jeito de corpo meio fio faz 2 eu desci pela última vez do grupo para casa quando completei o quarto ano eu desci para não voltar mais apenas anos depois para visitar apenas para visitar a praça da árvore de xixi-de-macaco a praça com um lindo chafariz de pedra-sabão temperando a água com o que há de melhor a mão do homem construtor de escadas entre o passado e o presente eu desci pela última vez porque passou-se o tempo quatro anos inteiros como a lua em fase cheia 3 eu chutei lata do grupo até minha casa do gambá ao botavira a vida possibilita caminhar sempre 682 eu chutei a lata de óleo do posto asa branca (esse nem existe mais e era um lugar de passeio na minha infância no domingo à tarde) a lata rolou em hora cheia alterei a natureza da idade a idade tem várias formas e cada época uma trilha sonora mesmo barulho de lata você já chutou lata? 4 o banquinho de pedra-sabão ficava... além da minha mente agora essa lembrança que se apaga ...junto a casa velha da rua fernando vasconcelos era um banquinho solitário como quem nele sentava para ver a rua sem movimento depois que os meninos subiam para o grupo com merendeiras um banquinho eu saltei esse banquinho tantas vezes 683 nunca nele me assentei não me cansava na subida e para descer todo santo ajuda 5 a casa tem uma lira no portão o vento quando assopra muito forte de outubro até fevereiro faz música de dia e de noite a lira foi feita em ferro fundido os anjos usam de suas cordas para despertar nos meninos o gosto pela banda de música quando a banda santíssimo sacramento sobe em dobrado na procissão a lira angelical se incorpora o dobrado fica divino oi lira oi lira oi lira 6 ela velhinha eu e berenice novinhos ela na janela com sua boneca na mão eu e berenice na rua indo para o grupo a velhinha não era louca de rua (na minha cidade há loucos de rua e loucos de casa que ficam escondidos) 684 a velhinha era de uma pele tão alva que a manhã quando nascia pedia licença para se refletir no seu rosto a velhinha era de mãos tão frágeis que a boneca quando chorava fria pedia colo para sentir a vida em seus dedos 7 minha cidade se satisfaz em jogar as casas antigas no chão não, sei que não é medo da casa é do tempo o medo da cidade é do tempo fixado nos tijolos desse tempo a cidade tem medo por isso quando era pequeno e o tempo não doía tinha medo de ser casa velha é do tempo soprando no relógio desse tempo a cidade teme por isso quando era pequeno e o tempo não ia tinha medo de ser velho feito essa gente 8 fui obrigado a aprender outro tempo o tempo da quinta série chegou em fevereiro ao som do bloco rela e seus ensaios na praça ao som de um carnaval do bloco vai-quem-quer (dona laura e zé rela me mandaram para a escola outra escola de outro tempo de outro ritmo 685 mesmo sem saber a trilha sonora da adolescência foi carnavalesca) fevereiro é mês de volta às aulas até hoje o ginásio fica no largo do pelourinho mas quando ali entrei o tempo já havia destruído quase toda lembrança de grandeza um lugar de tempo outro e de tempo destruído 9 o primeiro dia de aula no ginásio foi um dia de imensidão eu não via eu mesmo ali dentro daquela obra grande via os outros e os outros eram muitos e muitas salas até hoje me perco entre as portas do ginásio como alguém poderia viver bem ali dentro? até hoje me deixo perder em memória de ana maria a diretora assentada na maior sala do mundo DIRETORIA 10 a quinta série é um vai e vem de professores um vem com giz e voz outro livro e voz um tem caso para contar outro vira caso para esquecer a quinta série é uma fase fora da lua a lua não tem cinco fases apenas quatro saudades do cometa halley passando 686 na imaginação na voz de socorrinha saudades de elza falcão com suas garras imensas de dona aparecida com seus números infinitos de isabel almeida com argüição na segunda-feira o dia mais triste de todos os estudantes saudades dos medos hoje tão tolos de caderneta com falta um carimbo azul desbotado emília recolhia nossa ausência 11 quando penso no ginásio penso com medo minha quinta série foi num prédio em ruínas metade do prédio o tempo já havia paralisado outra metade nos abortava as paredes não se sustentavam mais o tempo havia deixado marcas fundas as tábuas não rangiam novidades a cor se apagava a cada aula a nobreza era um tempo distante talvez uma placa velha anunciando “aqui nasceu o barão de diamantina mas quem era esse barão? eu nunca soube... sonho até hoje com uma aula interrompida por tábuas mortas e paredes apagadas caindo em nossas cabeças no final da conjugação do verbo MORRER (eu tu eles nós vós eles) 687 sonho até hoje com uma aula destruída pelo tempo desmedido em estruturas gastas como explicar o medo de morrer soterrado imaginando o descumprimento dos dez mandamentos? antes do tempo cair sobre nossas cabeças mudamos de prédio mas o medo do ginásio velho nunca saiu da memória 12 o novo prédio era a casa de joão pinheiro (até então outro ilustre desconhecido) foi a casa de nhô costa também o senhor da tipographia e dos jornais serranos a escadaria de madeira fortalecia as pernas nada mais que isso... o tempo passava entre recreio de merenda gostosa e uma aula indigesta o recreio era um momento de liberdade as serventes (esse era o nome das senhoras cozinheiras) faziam a comida mais gostosa do mundo feijão tropeiro sopa de macarrão mingau arroz doce o recreio era um momento de comprar bala bala soft de caramelo na casa de toninho o recreio é um tempo gasto para si por isso sempre de extrema liberdade 688 13 o tempo sai no corpo de dentro para fora apesar de verem em nós o tempo de fora para dentro o tempo sai em cada um na versão familiar a altura o tamanho a musculatura hoje falam em dna 14 a adolescência começou no abacateiro lá no quintal da casa de amianto meu pai plantou ele só pra mim nele fiz meu lugar de meditação via a cidade e me via dentro dela e já muito fora de mim é que quando o tempo surge na vida é preciso traduzir a idade em si o abacateiro cresceu como eu no galho de formato banquinho ele dava seu colo para meu repouso da vida chata das espinhas sérias o abacateiro cresceu comigo e eu cresci dentro dele no mesmo tempo mas hoje ele não está mais lá no quintal eu sobrevivo ao tempo ele se foi cortaram com ele um braço amigo mas suas raízes secas devem estar sob a terra meu umbigo da adolescência estará para sempre no chão à sombra imaginária do abacateiro amigo 689 15 a fotografia de hoje é real em faltas falta a casa velha da rua tal falta a árvore bela do quintal falta o tempo mantido o tempo ido me diz do que fui não do que sou 16 na oficina de afonso estopa além de carros em frente o dedo brincava de tapar olho d’água no botavira o chão era frio e de cada buraquinho a água brotava potável olho d’água o olho d’água não tem cor de saudade é seu tom apenas de saudade seu bom e alto som olho d’água eterno aprofundei-me cada vez mais no mistério das possibilidades 690 17 walter de seu dirceu do itambé morou lá em casa para fazer ensino médio ele construía rodas d’água moinho e cidade imaginária nas fontes do botavira walter pintava quadros para a aula de área terciária eu acompanhava com arte o silêncio de suas criações 18 a fotografia de hoje é o que não havia o que não estava ali não existia a fotografia de agora mente tão fundo não posso acreditar apagaram meu tempo que faço agora sem a realidade do ontem vivo somente dentro? 691 19 o tempo me fecha no mundo por todos os lados estou pronto: sou eu mesmo? o tempo me cala por dentro a cada passo dado estou tonto: serei eu mesmo? em cada vento do tempo no relógio do templo estou mais pronto: edifício lento! 20 a aroeira no fundo do quintal entre o pessegueiro e o muro perto de onde minha mãe queimava lixo ou entre a cerca do quintal da infância minha e a cerca do quintal da infância dos filhos do barão (que o tempo passa para todos e ficam os nomes para eu rir deles... os filhos do barão sofriam da dor do tempo como eu? o título lhes tirou as espinhas do rosto? o charme monárquico tirou da vida a cicatriz da queda da árvore? vai o tempo e ficamos nós com nosso dizer sobre ele) a aroeira de frutinhas tão pequenas e sem sabor para mim e sem sabor para quem quer que fosse atrás de sua sombra 692 com galhos fortes e um tronco esguio quase imponente recebia minha visita e de berenice para escrever na sua pele tatuamos nossos nomes na pele da aroeira nem sabíamos do tempo levando o tronco para dentro dos fogões de lenha da cidade ou para a fogueira de são joão no botavira a aroeira dizia de nós nascer crescer dar frutos nós não dizíamos dela a natureza não se quer eterna um dia descobri sua queda sua morte por mão humana um dia descobri que a aroeira tem mais sorte que nós morreu sem pensar na morte dói antes de ser de fato 21 o tempo leva mais mais muito mais de mim eu não posso colocar nada no lugar da memória apagada da linha fria das saudades da alma qual a mais forte? não, não há resposta... o tempo me esquece eu não posso retornar ao ido sem a fúria da nostalgia mera inteligência do esquecido para sempre no tempo o tempo apaga eu de mim mesmo sem perdão e não há outra maneira a vida é amadurecer o sentimento outro de nova versão desbotada do vivido real 693 22 o botavira é lugar do século XVIII de botar e virar cascalho de botar a vida e virar esperança nova todo dia o botavira desbotou-se na memória feito retrato velho daqueles sempre puritanos e familiares nas paredes das casas miúdas o botavira se apaga da memória eu sobrevivo dentro dele ainda na vida breve dos girinos sapos na vida longa do calçamento de pedra o botavira descobriu mais de mim que eu mesmo e sua argila amarela me conta mais de mim que o sol de agora o botavira de campo grande num lote vago e de meninos descobrindo no tempo a bola girando o botavira amanheceu certo dia com calçamento de pedra por todos os lados por baixo dele meus passos e um pouco de mim se foi: avisa se sepulta em todo lugar o botavira adormeceu aberto e acordou amordaçado por grandes manilhas de cimento para drenar seu suor os olhos d’água se calaram para sempre e uns dizem que até o chafariz da chácara do barão calou sua voz o botavira virou lugar de casa amontoada de pouco quintal porque as famílias crescem para cima e para os lados e a história se faz berço cheio de filhos como ninho de pardal um dia calaram a voz da adolescência com manilhas de cimento e pedras de calçamento frio 694 23 a loja de samuel (um homem aristocrático com uma rural verde e branco sempre estacionada no lugar onde ficava a igreja da purificação – na minha cidade o povo vive derrubando o sagrado) a loja de samuel funcionou no sábado eu e berenice fomos até lá (era no alto da cidade) para adquirir uma máquina fotográfica tão pequena tão pequena que cabia minha face a loja de samuel me deu a primeira fotografia saída do meu próprio olhar e ele não sabe (contem para ele, binha, augusto, ele precisa saber disso!) mas mudou minha forma de ver o mundo e de pensar o que vinha de fora para me fazer por dentro é que o mundo cabe no clique de uma máquina fotográfica o mundo cabe na mão quando se está prestes a registrar a face do dia da tarde a face da vida alheia se soubesse teria fotografado o tempo correndo nos cabelos passando ligeiro entre os dedos 24 eu não sabia era pobre mas sabia a pobreza é espírito não a materialidade das coisas a pobreza de interior é fecunda ensina não pela falta das coisas mas pela necessidade de pensar o mundo pela forma e fundo eu via os meninos ricos com miséria de espírito 695 nenhum escreveu poemas minha cidade separa ricos (serão ricos os que se dizem ricos?) dos pobres na praça joão pinheiro (serão pobres os que se acham pobres?) prefiro ainda hoje a pobreza das coisas com a oportunidade do sentido útil 25 curei a asma da infância na quadra da praça de esportes nem dr. walter indicou mas meu anjo da guarda orientou - vai, corre, nada, pula, deixa a palavra soltar-se dos pulmões asma é prisão da palavra de outras vidas na garganta se a coragem vem e a palavra sai a asma vai embora se a covardia chega morre-se cedo de peito sufocado a asma não suporta a liberdade da palavra pelo vento só sinto saudade da maçã posterior à injeção benzetacil lá na farmácia a dor da injeção superada pela cor vermelha do fruto em papel violeta - vai, escolhe a maçã, deixa a dor na caixa de madeira vazia 696 26 tenente nonato era um sujeito entre o sério e o ridículo mas sempre um homem roubando a cena musical meu pai tinha um respeito muito grande por ele o que conversavam? filosofia? ditadura? partitura? ignoro o som o tom a voz de cada um em diálogo mas sei que um dia eu me dei conta que ele tocava um piston dourado tirado de uma caixa preta e ensaiava a banda de música para um dobrado tenente nonato era um homem tarado por mulheres e foi assim até a morte o sexo era uma porta de entrada para a vida dele na vida dos outros e sei muito dele pois quase nos afogamos no barco furado da lagoa num passeio até a distante (a estrada de terra é um carma!) alvorada de minas com rio largo e campo longe e fazenda com lagoa funda eu me arrependo até hoje de entrar na canoa furada: sobreviver é lição adolescente 27 apesar do medo de morcego sempre gostei da noite apesar de não ter asas fortes sempre voei no sonho o morcego assusta de dia de noite se dependura na lua 28 entre a poeira e a lama entre o gol e a linha fiquei no limite 697 entre a quadra e o campo entre a família e o bando fiquei menos triste 29 um dia a barriga estava cheia um dia a vida estava vazia as letras começaram a fazer falta um dia a cabeça estava miúda sei: é normal entre as nuvens a palavra me pegou pelo pé um novo caminho silma de benilde tomava conta da biblioteca ao lado bem ao lado do ginásio improvisado e ela me olhou (ela nem deve se lembrar: a memória é fraca para todos) mas meu primeiro retirado da poeira foi diálogos de platão pouco entendi daquela barbudo corruptor da juventude mas só de ser barbudo (meu irmão mais velho era barbudo e usava camisa do solidarność, lá da polônia) simpatizei por seu ato de bravura: morrer pela filosofia a bravura de viver nunca me abandonou se sócrates morria pelas palavras ditas eu queria viver muito para ouvir a voz da vida com cartazes na biblioteca silma de benilde me benzeu a vida no empréstimo de livros de adulto se ela soubesse o que pode a filosofia o que fazia sócrates ali na minha cidade interior? 698 30 dona laura com caderno de canções de pastorinha em época de natal a vida é divertida quando se canta a vida é muito boa na voz de dona laura seu livro de canções deve ser colocado na estante imortal da nossa cidade (que apesar de grande coração joga tanta saudade no chão) 31 zé nunes nas suas lojas unidas uniu a vontade de escrever com uma máquina usada por quem terá sido? nunca soube só sentia as teclas já vibradas já com passado sobre a fita ora preta ora vermelha máquina de escrever portátil companheira das primeiras letras em papéis da gráfica não consigo formular devido ao tempo avançado o alcance dessa aquisição a vida nunca mais voltou 699 sempre foi para a frente em versos em palavras em ensaio de vida que a vida é sempre uma palavra por ser escrita a máquina foi companheira durante quatro longos anos e até outro dia eu a via numa gaveta da casa de berenice mas ela se foi com sua arquitetura para o lugar que sempre quis do silêncio das teclas a vida é feito de silêncio zé nunes vendeu muito mais que uma simples máquina vendeu poesia 32 ela, dona vilma, de nome tão forte ainda na memória de todos e todas passageiros do ginásio ela, dona vilma, forte no dizer e magnânima na gramática me deu à palavra escrita em casamento no final de cada bimestre a maior nota era sempre apreciada um bloco de notas com frases de grandes pensadores da ediouro (um nome muito apropriado para as palavras) era entregue num ritual de homenagem ao esforço na língua língua que aprendi a amar bem cedo tão cedo quanto acordar no inverno e ouvir exemplos de frases para fixar a forma como o verbo o adjetivo e o substantivo se juntam para expressar de nós, nós mesmos 700 do mundo, o nosso jeito de ver o mundo da manhã o sol nascendo da vida o canto das horas dona vilma sempre usou um salto alto para senhoras no alto de seus saltos equilibrava o fundo e a forma nas palavras honestas nas brincadeiras maduras nas letras inequivocamente manuscritas folhas e folhas rodadas no mimeógrafo o dia começava com cheiro de álcool para acordar dentro da alma o plural o incrível plural de cada vida dona vilma me ensinou a amar as letras e deu às letras um contorno de sentido 33 quando os vi não acreditava quando os ouvi o coração palpitava fora a rima involuntária oswaldo frança júnior adão ventura encheram minha oitava série de um brilho especial ainda mais que oswaldo foi o paraninfo da formatura de um ciclo que nos retirava dona vilma e dona aparecida do currículo das manhãs do caderno dos livros e levava-as para a vida 701 a conversa com eles foi no auditório do ginásio reformado e ana maria lins sabia dos livros de oswaldo e queria uma pergunta de nós para ele mas como entender esse autor no cafundó do mundo serrano? como entender ventura no calor de novembro? o conselho de oswaldo claro e jamais esquecido: leiam o que puder, a todo tempo a toda hora, mas sempre leiam (será que todos ali ouviram da mesma forma que eu? acho que sim tenho certeza que não) 34 o barroco se apresentou na adolescência tudo demais tudo muito por ter nascido numa cidade de barroco contínuo no comércio na vida no eficaz controle da vida alheia na política provinciana na atitude irresponsável nas famílias jungidas como casa geminadas 702 entendi bem cedo o que significa o tempo dado aos construtores das igrejas e ainda forte no meu tempo ali percebi claramente a continuidade do barroco na cidade do interior com seus fingimentos com suas paredes de dois lados incrível ser barroco ter dois lados e oco por dentro francamente o barroco é a expressão da alma dos serranos a adolescência é um despiste como igreja barroco sem pregos ajustada à situação do morro ajustamento é o termo certo mas nunca me dei bem com a face oculta sempre preferi a face certa a real por isso a poesia em mim coube o fingimento o barroco o tempo estruturas fundamentais de meu oco tempo adolescente 703 35 ana maria lins de dona leonor de lili sales não foi minha professora lá no grupo e nunca soube o motivo acho que por causa do turno ou do a do b ou do c encontrei sua alma alegre no ginásio reformado como cada caso contado seios grandes por causa do leite de mamão a alegria dela ecoa pelos corredores do tempo de ginásio 36 a igreja no natal fazia presépio diminuto mundo bíblico sempre gostei de resumos o lugar de jesus ficava vazio até dia 25 dia de peru minha mãe fazia um peru assado com uma novidade um sinalizador vermelho para indicar o ponto certo 704 a vida podia ter esse recurso manjedoura vazia peru no ponto 37 os campeonatos do campinho de pedrelina nunca tiveram fim ou se tiveram eu nunca eu nunca soube do fim porque para mim só existia o apito inicial e uma tensão grande eles devem se arrastar até hoje sem troféu ou volta olímpica ninguém me avisou nem sei se eu perguntei para saber deve ter sido tudo invenção um campeonato envolvendo os meninos do leiteiro do machadinho do pau comeu nunca soube da classificação se primeiro ou o último (pedrelina deve ter interrompido) não sei se o campeonato acabou ou não só sei da bola rolando dentro da alma de um ponto ao outro dos ponteiros verdadeiras traves do mundo 38 meu deus, estou dentro de um aero willis cor azul claro em direção à várzea nem asfalto havia me acompanham sem carteira de motorista ailton de dona zulina ao volante e dona odília quer aprender a dirigir 705 meu deus, isso não pode dar certo pois começou errado com mentira para mário que dormia depois de um porre daqueles de domingo meu deus, os anjos da guarda protegem mesmo sem saber da proteção divina se não fossem eles a batida seria pior a asa do anjo bom diminuiu o impacto as aventuras adolescentes na minha cidade sempre tiveram cheiro de coisa errada a certeza é uma experiência chata da maturidade 39 o ford barata de levi leôncio ficava estacionado graciosamente diante de sua casa pertinho do rio o ford preto caía aos pedaços a alma era intacta é que no botavira os carros foram sempre idolatrados tinha medo de entrar na baratinha vai que me levasse para o rio vai que me deixasse noutro mundo e sem contar a voz rouca do dono valda teco e ninha filhas de levi leôncio brincavam no posto de seu walderes 706 a vida no botavira era uma descoberta de sentidos profundos 40 só não lembro seu nome mas era um mulato de pernas tortas bem tortas e tocava pratos na banda de música o som dos pratos permanecem os pés tortos corrigiram-se 41 a cidade de muros de pedra-sabão e de almas altas a cidade de entulhos nas ruas e de vidas banais a cidade era escola casa campinho e praça de esportes para ricos eu seria tão pobre assim nem a praça de esportes poderia pagar? mas ela não era do povo? minha cidade é pão e ovo 707 42 a chácara sempre me pareceu um furto sem dono sem dona sem nada dentro a chácara do barão nunca teve vida menos no verão das jabuticabeiras a chácara só teve vida no dia em que o patrimônio nacional ingressou pela porta da frente eu ia ali de vez em quando ver slides sentado no assoalho e contar casos de túneis secretos quem viveu a curiosidade dos túneis sabe dos morcegos de asas grandes e da saída misteriosa para outro mundo (quando cresci e caminhei pelo túnel os morcegos se apagaram da imaginação o segredo se desfez em água de mina e túnel desabado... amadurecer é endurecer a fantasia) 43 na minha cidade sempre houve pessoas consideradas artistas ou artistas considerados pessoas 708 eudes lá do jacu morou lá em casa e seu desenho vinha com uma leveza lá do fundo da alma magno zeó de sebastião cirilo e dona dodô (pelo nome dos pais se percebe que morava no centro histórico) fazia até exposição no ceará carlinhos dumont sempre cantava com violão e gaita numa estranha engenharia musical minha cidade sempre teve artistas e eu nunca soube de suas artes antepassadas 44 nunca soube de belmiro de almeida nem dos sons do maestro cardoso e dos versos ocultos do pai de dona milude e dos escritores anônimos com seus livros queimados depois de sua morte pelos parentes vivos (se o oposto fosse, seria melhor para a cidade?) a arte sempre esteve e ainda está nas pedras na ladeira que sobe no beco que desce no caderno do ginásio oculto o verso no livro de cecília meireles lido na santa rita a arte reveste as pedras de pedra-sabão e ouço os sons de fernando victor fourreaux criador da banda santíssimo sacramento e suas filhas em coral na matriz 709 ouço os tambores da festa do rosário espantando os maus espíritos da cidade para trazer a novidade depois do frio e da matina sem fim na alma a arte está nas paredes descobertas das igrejas das imagens restauradas e as palmeiras da praça joão pinheiro sabem das artes barrocas do tempo 45 a cidade da minha adolescência tinha vida artística (as pessoas cultivavam a música e a pintura) intelectual (eu ouvi palestras de maria eremita a maior artista da história em cadernos guardados no quarto de hóspedes – quem vivia ali estava bem alojado!) noturna (para conversar sobre o tempo das diretas já, para os tempos de uma nova nação ao som de caetano veloso no bar diamantis) hoje não sei como andam as pessoas afastei-me do tempo por causa do relógio 46 no ateliê de magno zeó as horas eram alegres e o sorriso tingia as telas de cores e a ironia enfeitava ainda mais o céu (o céu dos quadros dele eram os mais bonitos de todos os bonitos quadros que já vi) magno zeó vendeu artesanato de minas novas e tinha uma amiga museóloga que cuidava da chácara do barão 710 dona dodô era sua mãe e sempre estava na janela esperando o tempo passar (o chuchu cozinha rápido na época do frio... corre dona dodô senão queima e seu sebastião cirilo depois que voltar da comemoração do dia da pátria vai ficar bravo e mostrar a cicatriz da segunda guerra para todo mundo ver e a senhora vai pedir para morrer!) quantas ruas terá visto os olhos de dona dodô? quantas mulheres de balaio terão vendido bananas dedo-de-moça para enfeitar a fruteira sobre a mesa? quantas pessoas conversaram com ela antes de maguinho e guará voltarem para o almoço? 47 a igreja era um ritual social as irmãs seabras sempre fiéis julinha glorinha ceição rosinha mas não cometamos um desvio de conduta havia um irmão zé de singela estatura por isso mesmo zé a igreja no domingo se enchia com coral de vilma e sua voz de espantar insônia e de pessoas bem vestidas depois da missa vinha o passeio na praça joão pinheiro não a única mas a que dividia socialmente 711 ricos e pobres feios e belos a igreja matriz mudou alguma vida depois dos sermões de barriga cheia? quem terá decidido ser mais humano depois da hóstia negada pelo pecado? quem terá decidido se matar depois de pisar em campas? 48 eu ia para a igreja como coroinha e sempre dormia eu ia de noite e sonhava com anjos e sempre acordava santo eu ia para fazer a primeira ou segunda leitura para esquecer todos os versículos após o pânico eu ia cheiroso com perfume da água de cheiro da loja de leandro de dona lucinha (absinto, sim...) mas nunca senti com ele a sensação dos poetas europeus eu ia para a igreja me perder nunca me achei entre as palavras sem verdade e sem ciência eu ia por que não tinha outro lugar para deixar a alma solta devido ao sono do corpo e era tão bom ouvir as asas dos anjos roçarem meus cabelos 712 eu ia fazer a obrigação aprendida no ensino religioso mas nunca soube se isso dava resultado nunca fiz planilha de custo-benefício nem se falava nisso ainda eu era jovem jovem demais para saber de roma e suas almas perdidas adolescer dentro da igreja é cindir-se mais ainda entre bem e mal entre verdade e mentira entre religião e pecado entre hormônio e castidade adolescer dentro da igreja é um tiro no pé não se sabe o certo não se sabe quem se é ou se se é, é outro feito como sombra de vela agradeço ao anjo pelo sopro de liberdade ao pé do ouvido 49 sempre difícil o inglês minha alma sempre foi de francês desde vidas passadas e na semântica francamente era uma expressão de tê, professora de inglês antes dela era iara 713 que um dia usou colírio vencido e feriu seu ollhos (mesmo assim ela nunca me viu francês) quando conheci irmã maria do carmo já no colégio das irmãs minha alma se reencontrou ela falava vários idiomas entendia alma francesa dos alunos poetas mas só ela as demais nunca ouviam nada nem eco nem voz 50 o professor de educação física era benício e morava na casa da praça de esportes na praia a primeira vez da bola de basquete foi difícil a forma gigantesca diferente do futebol e aderente borraca apitei vários jogos as mãos sempre as mãos usadas para ser do esporte quando a adolescência tem linhas rígidas a liberdade brota 714 a bola sempre rodou o tempo na quadra e o basquete foi sempre a maior paixão 51 a turma se reunia para jogar basquete em horários alternativos cinco da manhã era divertido sem técnica alguma 52 um dia lalado prefeito chegou à cidade um técnico para fazer da técnica o jogo o esporte tomou o tempo da tarde da manhã as linhas são importantes sérgio era o nome dele e dediquei meu tempo para fazer a bola ir onde o querer deseja 715 um tempo próprio de grande propriedade um tempo nobre de grandes possibilidades viagens jogos atividade a vida passava dentro da quadra e fora dela o amor sempre forte a vitória no esporte é um grito no final do jogo a vitória no tempo é lembrar com saudade 53 a bola roda no alto e cai na mão o olho atrai movimento a bola gira feito mundo e a lua marca a fase do amor a bola se converte em relógio o amor se diverte no corpo 54 colégio: três anos ali dentro entre irmãs de são vicente missas na santa rita e retiros no sítio 716 uma diretora era tão séria que me roubou tempo para entendê-la outra era tão personagem que me deixou marcas teatrais todas de azul e branco e nós de azul e branco mas sem pecado mortal 55 karine e rosana sempre em risos a adolescência é riso sem fim (até hoje não sei bem o motivo mas deve ser por causa de um hormônio ainda desconhecido) a sala com sheila amélia e raquel e tantas outras personalidades a sala era um tempero forte e eu espirrava crescimento as conversas e as brincadeiras fazem crescer rapidamente (até hoje me encabulo com a falta de seriedade de mim para comigo) 56 nunca levei a sério o ensino médio o tempo era outro, não de cadernos era de barzinho na sexta e sábado de teatro no diamantis 717 a vida girava feito disco de caetano ou uma fita cassete de vinícius não havia ideologia a não ser cazuza nem questionamentos até ouvir legião a vida era uma espinha prestes a secar por isso a intensidade das experiências todas: a última vez todas: a primeira vez 57 o primeiro grande amor foi no alto da santa rita preciso parar um pouco para lembrar com alegria a cidade resolveu criar o cenário perfeito apagou as luzes não tive aula a cidade estava entregue ao amor nas casas nos becos e no alto da santa rita era eu e outro corpo um outro corpo com cheiro mãos de arrepiar o desejo e fazer erguer as estruturas da alma o amor durou o tempo que o tempo permite a inocência é um tédio 718 a sabedoria é um medo o beijo, o primeiro grande o beijo, o mais real de todos o beijo, seguido de desejo esse sem luz no alto da montanha ah, o divino mestre dirigiu o roteiro na porta da igreja (fora dela, oba!) um cenário único setecentista trovões sem chuva: o amor molha 58 o carnaval na adolescência é outro: há bebida e pulos e ressaca com vômito o carnaval é outro atrás do bloco eu tô doidão (joão surubim levava o estandarte á frente a sua calda se arrastava pela praça) tempos bons de minhocão de uma cidade em brincadeira sem o tédio da quaresma o primeiro som pedras rolantes uma praça toda para diversão e a luz sumia bem na segunda-feira o carnaval é a melhor festa do mundo libera o fantasma do tempo e desmente as espinhas 719 59 no carnaval o grande amor pulava diante dos olhos e no coração no carnaval eu era o amor na avenida principal no carnaval eu era a paixão em cada copo vazio 60 música? não me lembro talvez houvesse a alegria de tempos novos no brasil ah, sim! chico buarque era ouvido com naturalidade “Vai passar nessa avenida um samba popular Cada paralelepípedo da velha cidade essa noite vai se arrepiar Ao lembrar que aqui passaram sambas imortais Que aqui sangraram pelos nossos pés Que aqui sambaram nossos ancestrais” o samba mais correto para as pedras da cidade feita em liberdade 720 61 a procissão de cinzas com cônego júlio ao alto-falante tantos santos na praça onde ontem eu descia ao inferno dos sons ecoantes o s santos na praça colocam a moral em dia entre os santos algum era o padroeiro do carnaval? não sei... a memória se foi na última marchinha 62 para cada casa sem cor por fora (culpa do patrimônio?) uma parede de cada cor na casa dentro a vida é mais alegre colorida a borboleta sem cor é mariposa apenas 721 63 o corpo quando corpo de fato é torto como torto é o espelho eu nele sou outro de frente não posso ser o mesmo daqui o corpo é deveras torto visto de cima para baixo como assim? totalidade? isso não existe aos 14... 64 minha alma adolescente é feita de letras de música hoje quando ouço a trilha sonora do meu tempo ressurgem pessoas e situações e vozes -não posso desmenti-las! a música é a voz do tempo na janela da alma e na alma imortal roda um vinil em chiado na vitrola amarela sobre a mesa da sala -o cheiro de cigarro vem do quarto de pai! calar essa voz não posso fechar essa boca não ouso ela sou eu a gritar -o tempo é ritmo bom! 65 a trilha sonora da consciência a se formar música a música poema a poema veio da bahia de santo amaro da província por isso acho a descoberta do mundo se pareceu 722 caetano com sua filosofia com sua poesia com sua trama própria a cada poema descoberto um novo som do mundo até a última música sempre um momento de autoconhecimento 66 antes do estatuto da criança e do adolescente e mesmo dentro dele sempre acessei o mundo dos adultos a noite terminada em madrugada a segurança sempre houve a casa sempre próxima do mundo à casa se ia a pé 67 garajão era o nome o globo espelhado as primeiras sensações de perder-se depois o club som do nilceu dentro das escolas forró rock balada a descoberta do ritmo o gole de bebida um mundo interior girando 723 68 o trabalho era entre escola e treino de basquete o trabalho para receber o dinheiro no fim do mês o banco do brasil em dois momentos diversos um na rua rio branco depois no centro quatro anos em maturação 69 a aabb ficava longe, longe íamos a pé para jogar ping-pong ou mesmo inaugurar a sauna na quadra de areia algo de mar grudou no corpo nunca mais esqueceria aquela sensação sol e areia suor e água 70 o mar se revelou na abertura da ladeira de pedras quentes o ano já não sei só sei da visão jamais passada eu era uma criança saindo de si 724 para o mundo tão vasto e de horizonte amplo o maior horizonte era físico mas era também eu mesmo dentro de cada possibilidade nunca deixei de amar o mar e o sal na pele me preparou para temperar a existência 71 a onda me puxou o pé para dar boas vindas mais que isso me banhou como em batismo no mundo outro diverso e vasto mas verdadeiro o mundo se dá como onda o mar se dá como absoluto 72 faltou alguma lição da natureza para completar o destino? faltou a voz de um conselheiro para reatar a realidade? 725 73 pedrinho recebia espíritos na sala preparada velas e cachimbo pedrinho inicia pessoas na arte de conversar com os mortos eu achava tão bela a cena de preto velho revivido e de gente rodando e de benção de outro mundo na noite católica do interior de todos nós 74 o primeiro relógio de pulso era de várias cores de várias pulseiras o tempo tem uma cor para cada dia o tempo tem uma face para cada hora o primeiro relógio colorido mostrou horas fortes acorrentadas 75 as revistas chegavam do outro lado do mundo traziam notícias tão interessantes quando me dei por conta 726 vivia na cidade grande o modo de viver já não cabia no quarto na igreja no colégio algo metafísico ocorria o tempo passou a ser outro a matéria sobre os roqueiros de brasília os programas sobre os punks de são paulo revistas revelavam outro olhar não meu mas querido por mim identificar-se com o mundo autoconhecer-se no mundo fomar-se sobre as próprias bases sempre em erguimento contínuo 76 estranhamento: quem era eu? talvez nessa hora viesse de fora a resposta... mas não! o tempo é uma artéria funda estranhamento: eu era eu? a fotografia talvez me desse o chão e a postura... mas que vão! o tempo é desbotamento 77 revistas impróprias debaixo da cama como um outro corpo por debaixo 727 a vida é impulso de toque e de interpenetração quem é a imagem dentro da mente senão o todo desejo de si na tela de papel em convulsão de sexo e fantasia? 78 sou ainda o mesmo do sofá deitado em sábado à tarde ou outro levantado e saído pela porta nunca retornado? um pouco resta do passado corpo a memória do ido corpo sentindo feito emoção gravada no interior da casa que me abriga: eu mesmo 79 nunca me confessei sem temor nem pedi perdão sem vergonha essa lição de pecado céu e inferno é um tique do medievo no tempo libertar-se do sacramento quando a dor se faz real não é possível: deus ali era quase um obstáculo a religião é um livro que nos abre ou nos fecha para sempre 728 80 a alma se liberta ou se perde ainda mais no tempo? não sei apenas sei de um deus que foi ampliando sua exigência quando me vi estava diante da opção profissional futura ser ou não ser um sacerdote para encarar a vida de frente 81 um dia acordei com sede de estrada ou sede de mar missionário marinheiro nunca soube quem me trouxe a voz interior sussurrante vai! sai! ganhe o mundo! um dia dormi antes da hora acordei cedo demais para uma vida leve e o peso das horas fez-se uma opção de vida ou de vida sem opção para quem sonho com mundo além das montanhas 82 os passos não estão lá nenhuma pedra sabe como eu sei delas de mim 729 os gritos não alertam como eco na várzea eu sei das vozes em mim 83 o colégio estava decadente minha turma de contabilidade foi uma das ultimas o colégio estava descrente como materialista depois da igreja 84 dos últimos dias antes de sair pela rodoviária ao som de farnesi dos últimos instantes na cama da família só lembro da alegria nem pouco nem muito uma sinceridade diante da vida 85 pindeco e eu fomos conhecer uma casa no trevo na br 262 indicação de uma irmã do hospital quando cheguei pareceu uma revelação a felicidade estava na opção aprofundar a vocação no seminário lazarista 730 86 no terceiro ano do colégio no dia da formatura deixei um recado para cada um com endereço novo em campina verde cidade desconhecida passaria um ano apostando em deus 87 o vento soprou forte no alto da santa rita fechava, como podia? os olhos para o mundo não via senão o sacerdócio meses de enclausuramento antes da clausura real antes do tempo certo 88 meu coração estava livre antes como pude levar meu próprio eu para um lugar não meu e de ninguém? não posso entender dos hormônios espirituais não consigo compreender essa força incrível das coisas reais acontecendo na vida eu trouxe para mim essa realidade ou ela veio pelo destino ou pelo acaso? 731 quem era eu antes da fuga para o triângulo mineiro nunca mais saberei...nem poderia: o tempo se foi a memória da fé tola me envergonha acreditar nos homens de batina tenho medo de todos eles mas cria em mim a fé era eu com fé nada mais que isso um pouco além seria retórica 89 fui juntando roupas fui fazendo compras fui enchendo malas me perdendo fui doando discos fui levando a sério fui louvando anjos me esquecendo 90 ninguém ninguém mesmo para impedir nenhum sinal divino para me despertar do sono de mudar o mundo nem o som da banda de música nenhum amigo verdadeiro para dizer: pare! nada me tirou da rota de colisão e os pneus do ônibus assinaram no asfalto a sentença -liberdade para aprender com a vida! 732 91 se a manhã tivesse amanhecido outra vária e sem sol e sem frio e feroz se o dia tivesse perdido a sua graça na montanha e eu soubesse que não podia removê-la de dentro de mim se ao menos a tempestade tivesse levado o telhado de amianto da casa eu poderia supor que algo estava errado e que seria nada feliz longe do vento no relógio do tempo passado na santa rita se ao menos a banda de música tivesse desafinado se ao menos os loucos deixassem por um dia um dia apenas sua loucura de tempos tantos eu saberia do meu engano de maneira inequívoca mas nada alterou-se: eu tive a certeza o tempo me jogou para fora dos muros da família o vento balançou os cabelos para nunca mais e as palmeiras da praça riam de minha decisão pois sabiam da saudade que se leva na alma de uma cidade escrita no interior de si 92 a vida é o que dela se pensa mas o que dela se dispensa também é vida outra, mas vida a não vivida a deixada de lado para ser outro dado da realidade 733 93 o relógio da santa rita tocou uma hora da tarde tão alto o relógio da santa rita esgotou furiosamente o tempo serrano o relógio recebeu um sopro forte e indicou a hora de ir embora o relógio da santa rita comunicou a todos os relógios do serro a hora de eu ir-me embora o motor ligado a mala pronta nunca mais (ou seria até breve) ouviria o som do relógio nobre na alta madrugada serrana quando os galos ainda dormem quando as mulheres não procriam e o hospital recebe os anjos o relógio da santa rita ultimou e fui de ouvido em pé e nada ouvi senão o barulho de uma lágrima gotejando sobre o coração a cidade de vermelha terra soube se despedir de mim os dezoito anos se foram rápidos como patinete no botavira 734 ou como bola em direção ao gol no campinho de pedrelina o tempo passou rápido demais eu sabia disso e o relógio da santa rita só me fez ver a realidade das horas na alma em muro derrubado 94 deixei para traz algo que merecia ver? nunca saberei: sei do tempo interior do tempo de outros ali jamais captarei sua essência o tempo é o lugar onde se vive a realidade é um fato de alma não se deve julgar a necessidade alheia se há uma distância grande entre o vivido e o que viveram o que viveram sem mim será sempre e para sempre a memória de outros relógios enlouquecidos 95 o vazio do quarto vazio ficou sem a angústia dos meus sonhos vários e insignificantes o vazio da mesa vazio calou os pratos de comida os talheres levados à boca 735 o vazio na gráfica vazio escreveu nos livros do tempo o silêncio dos passos um vazio é sempre oportunidade de rever o espaço ocupado no mundo 96 a bola não quicou mais na quadra nem a matina da festa do rosário acordou-me no frio mortal do junho irremediável os sinos não dobraram dissonâncias o vento estava para sempre dentro da minha alma embrulhado no envelope das irmãs seabras a saudade dessa eu me lembro limpou o terreno para grandes amores e um novo eu saindo do casulo ou se perdendo para nunca mais 97 o sol da tarde me acompanhou (por isso a tarde ainda me é inimiga) até me lançar em belo horizonte onde os viadutos me confundiam ainda mais: eu vinha das ladeiras onde se descia ou subia nunca se passava para ir a muitos lugares sempre para o alto ou botavira a última tarde pelo morro do paiol brilhou tão forte: o ônibus era um 736 cavalo de são paulo diante do cristo levava a notícia de outra vida 98 o rio quatro vinténs encontra o rio lucas lucas é um homem muito rico tem quatro vinténs em ouro desde que a terra os fez ligados quatro vinténs para lucas para levar suas água ao rio santo antônio e de lá à liberdade: o infinito mar quatro vinténs se joga nos braços do amigo lucas e o faz rico mas o mar é mais rico ainda recebe a eternidade do ouro eternidade: haverá em cada ladeira ou ao subí-la se perde como cabelo em trança desfeita antes de dormir? 99 o sopro do tempo no relógio do templo me fez templo distante e frio na espinha o sopro do tempo no corpo expulsou do corpo o prazer de ser corpo apenas e mundo o sopro do tempo na alma fez dela uma cega dúbia sem corpo o que seria? o sopro no coração é doença de tempo na alma triste 737 100 um terço da minha alma reza outro terço se desespera o pouco que resta é festa um terço da minha alma canta outro terço cedo se levanta desobedece o pouco que manda a minha alma é um rosário três terços é um inteiro nossa senhora do rosário é lua cheia completa visivelmente discreta na escuridão pouca de um lado toda para a multidão O SOPRO DO TEMPO NO RELÓGIO DO TEMPO MATURIDADE – 2010 1 a maturidade não é só idade é uma soma de dois lados o de dentro e o de fora a maturidade me ocorreu dentro do ônibus indo dentro do ônibus chegando indo de serro chegando a campina verde no triângulo mineiro 738 a maturidade não é idade é uma passagem para o novo de três lados 2 de noite o ônibus desceu e subiu serras? não sei, dormia... o tempo estava em óbito o passado era apenas o tido uma parada em uberlândia para tomar um café e mais alguns tantos quilômetros para chegar à campina verde no caminho plano (a memória é reta) via não montanhas já idas longe via apenas um planalto e bem longe minha vida nova a se projetar 3 o amor não veio a galope veio de carro é que os cavalos do motor ardiam em brasas como eu quando diante do grande amor o amor veio me buscar e nunca me entregou em lugar nenhum (poderia ter me deixado, mas não!) 4 o grandioso da vida é sempre o novo o repetido não traz angústia a não ser se for ruim os armários desmontados sem roupas 739 as camas desagrupadas um quarto coletivo e uma casa nova o seminário é um espaço oculto um corre mais depressa que outro para ser o mais obscuro na realidade falta realidade ela ficou em outro lugar ali é o frágil 5 de cada um carrego uma lembrança a primeira lembrança me vem em prece e desencanto dos mais piedosos dos mais falsos dos mais corajosos todos enfim no mesmo teto repousando o sonho não estado ali em outro lugar num tempo futuro ali na casa grande de sonho apenas o futuro podia contar de cada um seminarista não tem passado deus leva o passado em erro para o limbo o preço óbvio se paga não demora muito 740 e o tempo retorna com o tempo voltando o erro não desiste e sempre permanece não tenho dúvida hoje a vida de seminário é fuga para um sentido menor 6 o dia-a-dia era prece matinal a prece de manhã sempre tão pouca os santos duvidam da necessidade sempre gostei de prece noturna de um dia passado na angústia para a alma se revelar nunca gostei da prece matinal o mau humor não permite a revelação quando o dia começa antes do nascer do sol e a prece antes do fazer-se o sofrer vaga-se na luz da dúvida 7 o café da manhã com pão do interior o pão de cidade pequena tem um gosto diferente e parece ser outro é o tamanho da vida refletido no sabor da fábrica eu via na mesa grandes garrafas de café 741 uma vasilha gigantesca de leite e sempre sempre os peixes lá embaixo no canal de cimento o canal dava para a barragem eu sempre tive a mania de alimentar os bichos mesmo que eles nunca me pedissem os peixes pulavam no miolo de pão o corpo do peixe fora da água me lembrava o ouro fino rio e peixe da infância 8 todos os dias da semana era feito de aulas logo pela manhã filosofia e depois se o dia se abrisse latim e francês os estudos de história para vestibular os estudos de teologia para enganar a vida nunca acreditei na ciência: ela me tornou cético diante de mim mesmo 9 havia o intervalo para o café hora de ver-se à toa no tempo e diante da fazenda os bichos me lembravam do serro o intervalo era hora de nada como o nada é intervalo da vida 742 10 o quintal da fazenda ou da casa paroquial que era fazenda mesmo cidade era um mundo à parte eu fui menino de quintal quantas vezes me perdi entre o cajueiro pleno e o pé de carambola e a cisterna com peixe o fundo do poço sempre próximo as frutas grandes de encher os olhos e as mãos o fruto pleno de suco e massa a boca sedenta por novidade o quintal com cajá-manga mexerica de todo tipo horta com extensão nunca vista e eu ali no universo mais interior a mim no quintal eu me encontrava em casa não entre os livros que me tiravam do lugar eu sempre preferi o ritmo da natureza pura me dizendo da vida que vale a pena 11 os bichos do quintal sempre muitos os pássaros outros os porcos o peru 743 os bichos da fazenda são divertidos guardam risadas tantas em gritos e gemidos ecoando na tarde 12 o almoço de seminário é formalidade prece para começar prece para acabar uma conversa sempre sem graça o almoço com gosto de interior eu me fortalecia no medo enquanto o corpo perdia os músculos herdados do serro o almoço sempre generoso de sabores tão honestos de panelas tão grandes sempre havia uma festa a ser feita eu acreditava na humildade (ainda) deixava para almoçar por último quem era eu ali: o menino mirando uma santidade de brincadeira 13 no seminário são justino de jacobis havia um banquinho bem em frente que dava para igreja de nossa senhora a mesma das graças do colégio do serro o banquinho nos abrigava depois do almoço 744 crianças jovens e os padres sempre a conversa inútil de um dia bastardo a conversa sem rumo ecoando no sino da torre 14 eu fui várias vezes até a praça são vicente conversar com algum amigo sobre a vida e os ipês antigos me observavam com desdém ele no alto eu nos primeiros passos da vida a praça são vicente é muito grande como o coração do santo da caridade com banquinhos de cimento e chão quebrado por raiz corajosa na praça são vicente eu rezei o terço o terço mesmo o terço sempre o terço da cabeceira de cama da infância 15 o sono, sempre o sono, na ordem do dia mais correto possível o sono me fazia acreditar numa vida melhor depois do almoço antes da limpeza a limpeza era feita todos os dias para gastar um tempo da tarde às vezes eu estudava às vezes eu jogava vôlei sempre eu queria o ócio nunca queria a rotina 745 16 eu morei num antigo colégio desativado com salas grandes e duas quadras para esportes nelas eu me fiz esportivo os gritos de vitória sempre vencer a si mesmo a vida é um convite intenso 17 a limpeza encerrava com café o café com pão de doce e peixe comendo miolo na varanda sempre estava olhando para o galinheiro espiado por um cachorro grande tomando água no poço dos patos sempre em festa na tarde 18 no final da tarde era hora de tomar banho preparar-se para a missa diária na capela com cantos e textos e sempre uma equipe preparando a liturgia a missa no final da tarde me fazia pensar mais e mais na vida e nunca pude dizer que o dia assim era perfeito: terminava diante do altar 19 a capela era simples e dava no quintal de um lado e de outro dava no jardim o mesmo jardim tinha um poço de água com um jacaré dentro na capela o piso era vermelho 746 quantas e quantas vezes comi hóstia durante a limpeza para sentir o gosto sem a santidade do sagrado 20 o jantar era um momento sagrado e dividia a minha percepção do dia na noite alguém ressurgia era eu mesmo de outra forma vendo a vida a noite de janelas com luzes acesas e de leitura psicológica da existência a noite de seminário é vasta e muito é a maior noite do mundo 21 de noite eu me sentia à vontade para conversar sobre o quer que fosse eu me sentia liberto das amarras da luz e podia transitar entre luz e fogo de noite eu era eu mesmo livre para enfeitar o diálogo com ironia a mesma que cria no interior a simpatia da convivência entre verdade e mentira 22 de vez em quando eu saia para a cidade dentro de um carro de padre visitar alguém a cidade plana de postes tantos e asfalto de asfalto tanto fazer sempre o bem 747 23 a lua sempre dormia depois de mim eu nunca desafiei a madrugada nem precisava: estar ali era o desafio a lua sempre soube e sabe mais de mim pois me enxerga na maré alta ou baixa eu sei dela quando ela quer se mostrar é preciso de olhos fortes para encarar frente a frente a lua em suas fases 24 o sono coletivo é mistura de roncos viradas para um lado para outro perder-se entre as horas tardes o sono coletivo é frio para quem assiste cada um em seu sonho de vida outra o desejo de saber-se outro sendo um 25 final de semana: o sábado de manhã em quadra com futebol ou em campo de terra com futebol de poeira e grama quase nenhuma o sábado de manhã com esporte eu sempre correndo atrás da sombra da bola eu poderia chutar o tempo para as redes da maré alta eu perco o sentido da vida quando em jogo 748 26 o sábado à tarde era vago tão vago que ia até à vila um lugar onde os pobres se abrigam do dia de trabalho (se há trabalho na cidade) o sábado de caminhada popular indo ao ponto extremo da cidade perto da rodovia de terra e areia eu me via sempre melhor ali (o povo sabe a verdade da vida) 27 no sábado à noite o sorvete na avenida (a avenida é vasta) foi na avenida que amei seus olhos pela primeira vez de fato até ali havia sido apenas intuição de amor mas o corpo todo é sempre alma plena eu tentei e ainda tento entender porque minha alma se perde na busca da sua na avenida de asfalto e jovens de sábado eu me vi diante de um corpo com alma antiga essa alma eu sei que já conheci em outro corpo mas não me pergunto: apenas sei perguntar-se é amar tolamente afirmar o amor é deixar o tempo rolar ladeira abaixo eu sempre soube dos altos e baixos 28 quantos sábados acabaram em pizza ou em sorvete e cerveja e caminhada? 749 não sei... o calendário mudou minha face e desfez a passada num corpo mais jovem só me lembro do pouco que precisava para sorrir da vida e fazer alegre o fim de noite que hoje se espalha longamente... a insônia, que bom! 29 no domingo de manhã era dia de missa lá no alto da cidade eu passava pela praça com fonte luminosa e árvores sempre floridas a cidade era um grande jardim depois da missa em igreja moderna eu me dava o direito de fazer nada andando pela cidade plana ou de vez em quando o nada vinha quando descia em direção à casa cheia de pessoas desconhecidas 30 o domingo de tarde era de passeio a fazenda era sempre um convite feito pelas árvores e riachos pelas trilhas e eucaliptos nunca me deixei perder pelas raízes elas me abraçavam tanto que por vezes amei a terra com sua gravidade nunca me abandonei no por do sol 750 eu sempre voltei para casa a loucura nunca me foi um lugar comum o domingo na fazenda é lento os animais descansam ou eu penso no descanso para eles os pastos grandiosos as árvores de frutas nunca me soltaram o domingo era eu e deus no meio da natureza de tempo lento se me dói algo de passado é esse tempo parado e visto pela emoção da saudade eu não sei se vivi bem sei que vivi tudo que pude viver de bom a natureza é sempre generosa em ensinar lições gratuitas de sobrevivência 31 os votos nunca foram feitos no entanto eles pairavam no ar como uma condenação antecipada pobreza castidade obediência 751 só são vicente de paulo os conseguiu viver pois ali dentro pouco vi da intenção feita realidade 32 no primeiro retorno de férias meu quarto era outro minha família era outra a cidade era outra nada parecia me revelar antes a saudade de campina verde era a única verdade pulsando dentro da alma o estágio de um ano chegava ao meio o estágio de meio ano chegava aos poucos ao final se eu soubesse antes dos planos errados que são antes de se fazerem um dado do mundo interior se eu tivesse a ousadia de sair desse cenário pela porta da frente teria sido quem sabe mais feliz 33 as cartas recebidas eram sempre uma reafirmação da tal vocação eram quase um sinal da fé colocada em mim pelos outros 752 alguém entendeu esse gesto? não sei... ainda me dispenso pensar quando em outubro uma caixa vinda da minha cidade trouxe doce cartas lembranças de família eu não pude conter minha alegria quando eu senti a vida pulsando ainda em outra cidade distante eu me senti constrangido a ser um membro desgarrado da família 34 o telefone um dia chegou e sua instalação fez tocar o coração mais forte o telefone chamou-me de manhã e minha irmã anunciou que a linha era um contato direto entre o interior e eu 35 o calor do triângulo mineiro é de toda hora e de dia inteiro o calor refresca com suco natural ou mexerica ou caju ou carambola o calor triangular manhã tarde noite levava o coração a sentir saudades da montanha 753 36 dona nair foi minha madrinha deu-me uma camisa azul e uma bíblia de jerusalém fora isso deu-me a simpatia e uma filha preciosa guardada no seu quarto como uma pérola a filha não sabia seu nome nem mesmo sentia sua presença mas gostava de rádio e só isso mas o coração de mãe amava como o amor enfeita os altares ela levava para deus sua arte materna quando soube depois de alguns anos da morte de dona nair eu pude entender que seus braços estariam prontos para receber novamente do outro lado da vida sua filha 37 dona ubaldina era uma simpatia talvez de família antiga como seu lenço dona ubaldina era cheia de plantas na cabeça e em casa e em vasos fazia sua arte de florista 38 margarida fazia quitandas morava perto do seminário eu e a quitanda nos entendemos desde cedo muito bem 754 margarida era católica e sabia da história dos padres dali muitas delas estranhas (isso é era apenas um detalhe) 39 a roupa era lavada com água quente nunca entendi bem o motivo deve ser para evitar mal maior catarina e mercedes cuidavam delas e de cada um de nós lavavam a roupa suja no pátio da fazenda 40 mercedes era uma alma sublime quando em nostalgia noturna bebia uma bebida secreta ouvia músicas profanas e cantava alto e chorava para quem gemia sua alma para quem tremia seu desejo? mercedes era uma alma gaguejante sabia da vida da casa mais que todos e tinha impresso na sua existência a vida de muitos padres secretamente 41 o ano acabou em campina verde que bom que ele acabou muitos foram embora 755 bem antes de seu final a rotatividade é grande a vida muito difícil suportar a rotina e aprendê-la o ano acabou com uma boa notícia os sobreviventes passariam três anos em belo horizonte cursando filosofia era preciso ainda o mais difícil passar no vestibular para ser um estudante de sócrates platão e tantos outros sábios 42 belo horizonte sempre foi casa de novidade como toda casa e casamento entre necessidade e tempo passando leve um horizonte novo uma nova oportunidade é que o tempo em livros se faz mais prazeroso 43 a casa seminário abrigou dois anos de estudos a casa seminário de jardim grande como a minha alma a casa pronta para ser de muitos como a vida que se faz no plural 756 44 a sala de estudos com livros tantos e mesas tantas de ano para ano cheias eu sempre estive inteiramente ali seja na manhã de estudos fora seja na tarde e noite de estudos de dentro quando o almoço convidava ao ajuntamento a prece abria o ritual que se fechava com banana amarela de tão amarela nutritiva e cheia de vida um ping-pong depois do almoço ou qualquer coisa para fazer do dia de estudos algo para além do mundo de pedra de dentro 45 em 1992 o brasil não era o mesmo e fernando collor de melo insistia no teatro a política de brasília me fez pensar o mundo em caras pintadas na praça sete da capital em 1992 o brasil buscava a sua identidade e fui crescendo em ação em meio ao novo mundo de política na praça e de protestos pela avenida afonso pena como se pudéssemos com caetano escrever uma nova ordem 46 a orquídea um dia foi deixada do caraça à casca da árvore grande de frente da minha janela as flores nunca vi as flores são sempre promessa como o tempo é sempre depressa quando a alegria se faz presente queria ter visto as flores da orquídea 757 retirada da serra em frio de julho mas o frio de dentro foi maior e não gerou flor alguma 47 a primeira noite de sábado (uma noite de sábado era diferente quando primeira por causa da mesada que todos recebiam para passar a vida) a primeira noite de sábado (uma noite de comer batata frita às vezes pizza mas sempre o sabor de final de noite era solidão) 48 a periferia de belo horizonte ainda era apenas uma ingênua violência a periferia da cidade fazia medo pela pobreza e serranos ali morando a periferia era visitada nos sábados à tarde numa caminhada épica 49 beira linha era uma estrada inacabada onde um trem passaria no lugar ao invés das casas pobres beira linha era um vale de argila fria e sombria com esgoto a céu aberto 758 e casas pequenas de gente vibrante beira linha era uma linha sem trem apenas de gente sem lugar no mundo morando em terra invadida 50 ao domingo no bairro paulo XVI era intenso feito trabalho de fábrica reuniões sem fim encontros eternos à noite a missa terminava o dia ao lado do povo do lugar jovens velhos crianças fase de novidade o domingo era um dia desgastante não pelo salmo pronunciado com fé mas pelo corpo desejoso de descanso para os pés cansados de manter a existência 51 eu vi o shopping del rey se fazer concreto em concreto erguendo estruturas no lote vago eu me comovi com o vento forte na janela da kombi durante dois anos indo e vindo para a faculdade 52 era um padre engraçado uns falavam do avc outros falavam da timidez cabelos brancos voz rouca 759 mãos enrugadas apetite voraz ele sorria sem nada dizer seu mundo era interior se me entendia não sei a recíproca é verdadeira 53 outro padre lia dicionário no corredor com os olhos carregados de colírios um para cada mal e eu o ajudava a embaralhar as letras do papel na lágrima salgada do medicamento ele falava mais que as tábuas da lei e sua palavra era a lei do mundo nunca entendi como o dizer na boca desse padre podia ser tão infantil num corpo velho 54 o padre supervisor tomava conta da vida de cada um em detalhes singelos é que cada um falava do outro e assim ele sabia de todos quantas vezes me perguntou coisas saídas da imaginação de outros a palavra ali dentro era mentira ou interpretação maldosa dos fatos 55 um padre velhinho usava aparelhos auditivos e sua voz era tão gritada como alarme de perigo fiquei sabendo depois de muitos anos 760 que a rodovia barulhenta lhe ceifara a vida as vozes do mundo nem sempre são tão altas para escutarmos com a devida precisão às vezes as vozes do mundo se calam para continuar nos ouvindo 56 o coração se desgrudou da rotina eu libriano vivia em fantasia a vida não podia ser apenas planejamento o coração se permitiu liberdade quando me percebi em outros braços a casa fechou suas portas temporais para um novo ciclo na vida 57 ao me ver fora do seminário voltei para dentro de mim fui obrigado a sobreviver com o próprio ar ao me ver fora da redoma de vidro senti o vento do tempo no relógio do templo e lembrei das badaladas horas da juventude no vai e vem das ladeiras 58 depois de três anos imerso no estrangeiro eu estrangeiro de mim mesmo fiz um longo percurso para me achar 761 três longos anos em sensações de presídio a alma não suporta algemas estranhas feitas de fora para dentro eu me libertei 59 arrumei as malas com lágrimas nada melhor que a alma presente para o tempo ser forte selei três anos em choro para dizer para mim mesmo eu cresci eu venci sou forte 60 voltei para em 1994 e o aquário pequeno trouxe um beta azul azul azul o retorno é sempre frágil os laços da prisão anterior eram maiores que eu ainda saudade saudade saudade 61 a casa de antes não era a casa de antes era apenas a casa do passado não me achei ali eu era outro a casa não me aconchegava e o quintal não tinha o mesmo gosto e tamanho da infância inocente eu voltara tolo 762 62 a vida é negar o passado para abrir o presente ou deixar-se contente no tempo chato eu voltara de corpo a alma ainda perdida procurava por si mesma em meio ao tempo 63 olhar esse tempo agora é aflição no peito não há certeza da necessidade desse sofrimento mas volto com coragem sei apenas que o ontem meu é para sempre dado não posso mudar os ponteiros mundo apenas a duras penas a poesia daquilo (se é que havia poesia) 64 o verdadeiro amor não passa nas tardes de sábado eu era agitado pelo tempo de dentro 763 o amor de sempre não cala suas vozes gritam na alma como fantasmas a enviarem mensagens secretas eu amo até hoje a saudade do grande amor deixado nos calendários do tempo morto nas agendas seu amor não sai da vida às vezes mais forte às vezes menos sorte eu lhe vejo eternamente 65 a gráfica funcionava em casa o trabalho entre os papéis tão gasto eu passava o tempo querendo voltar para belo horizonte tão longe a cidade nunca foi tão sem graça o tempo parecia perdido tão morto 66 hoje sei do tempo na alma e no corpo intenso feito chama e lenha unidade hoje eu sei do tempo na célula e na mente incenso perfumando o ambiente privacidade 764 67 não me lembro da alegria sobre o teto nem da novela nem do filme a poesia foi minha parceira um ano de solidão (quando se deve parar a vida para pensar?) não me esqueço desse vazio de tonalidade o olhar perdido numa cidade morta porque eu morto sem vida permaneceria até o retorno (quando se deve pegar o ônibus de volta?) 68 a vida sem graça do interior foi muito sem graça ao redor sentia uma vontade de ir-me mas o corpo era imóvel o telefone me ligava ao de fora e o de fora era uma fuga do dentro amordaçando os minutos frios da vida ali passada 69 as cachoeiras da serra do espinhaço são frias e batem na pele em alerta cada minuto para a natureza é questão de vida ou morte as águas dos rios dão pouco peixe são poucas as chances de abundância a natureza se pauta pela comodidade do instinto de preservação 765 70 a rotina de 1994 foi um intervalo entre chegar do que era delirante e ir para o que seria interessante nada mais a viver que o retorno a fuga de si começa pela negação do entorno geográfico 71 voltei para belo horizonte para um convento e assim o medo de permanecer como igreja velha no serro se foi voltei para a cidade nova para um convento e enfim entendi o coração batendo forte como vibração nova que é 72 a filosofia voltou à pauta dos dias e a faculdade retomada era um prenúncio de novidade na mente e no coração 1995 foi um ano de revisão do passado e depois de seis meses no convento eu me retirei para um apartamento no vigésimo quarto andar do prédio em companhia do medo de altura apesar de negar sempre a baixeza a pior qualidade dos prédios e também das pessoas a meu redor 766 73 o último período da filosofia foi um misto de casa aberta aos amigos e coração renovado para o amor os últimos dias do curso anunciavam mudança dos ventos e algo novo crescia na alma uma grama nova em orvalho 1995 passou ligeiro e em meio às aulas numa escola estadual iniciava o magistério 1995 deixou marcas para sempre na alma conheci mais de mim e de mim fiz vários 74 os amigos se reuniam no fim de tarde e era tão bom conversar sobre a vida lenta vida passada em contraponto à cidade ligeira as conversas eram sobre o fundo de nós do nó na garganta e às vezes da falta de esperança que a vida de cada um contém no seu íntimo à beira dos caminhos conjuntos 75 eu tinha medo da janela e da altura do chão sempre o medo 767 rondando eu temia pular do alto e saber da morte bem no meio do vôo cego por isso sempre me preveni fechando as cortinas para evitar que o desejo do vento me atraísse 76 eu investi na leitura de sartre a ele dediquei algumas horas tentando entender a carência do ser em busca de ser o existencialismo era uma fuga do corpo para o corpo apenas a alma do meu ser se esvaia no vazio da liberdade 77 eu não me encontrei na filosofia antes ela era tão sistemática e eu tão fragmentário eu não me dei por inteiro com os sistemas me dei em partes em poucas partes eu sempre fui imaginário 78 a formatura da turma teve uma festa tão própria do mundo profano com samba no final e cerveja 768 a formatura com família e tudo mais com direito a discurso de paraninfo e sempre uma saudade de mim mesmo 79 o ano de 1995 acabou sem apartamento o ano de 1995 acabou sem escola não conseguia me manter em belo horizonte como se a vida dissesse: volta para sua cidade arrumei as malas mais uma vez dessa vez para ficar inerte no aprendizado renovador de quase dez anos 80 o final de ano na minha cidade natal é confuso chove sempre mas faz calor quando o sol abre uma janela por entre as nuvens espessas paradas sobre o pico do itambé o final de ano me recebeu ainda na ilusão do retorno não se daria tão cedo e sei das horas de projetos novos para permanecer na cidade com um olhar mais crítico mas a alma renovada pela novidade 81 o retorno de um novo professor se deu sem aulas na escola e nem mesmo a casa velha pode abrir suas portas 769 a casa sempre em litígio houvera sido perdida para sempre na justiça o telhado de amianto o quintal de pessegueiro e de mangueira e de chácara do barão foi como o tempo embora como a novidade de dentro muda sempre o cenário de fora 82 fui para um canto da praia morar com minha irmã numa casa digna porém nunca minha a minha cidade tem frio nas espinhas dos morros e os rios são veias de sangue gelado dentro da geometria urbana 83 foi a primeira vez que morei em casa de telhado colonial com telhas que brincam de sino na época da primeira chuva de outubro as telhas sorriem para a chuva imitando o toque de josé olimpio nos sinos da igreja matriz que ficava de frente para a casa quase minha 770 84 a praça de esportes sempre vazia com espaço para correr e pular mas sem pessoas para isso um vazio sempre a ocupar vontade de voltar o tempo e fazer girar a bola da vida 85 é na ladeira que me vejo subindo e descendo no tempo em 1996 pouco muito pouco lembro talvez um ano a mais juntado aos outros idos é na ladeira que me sei vigiando o novo do vento 86 a cidade sempre parada ou quando em movimento eu fora dele: eu sempre por fora por gosto de estar fora é que estar dentro dessa onda social custa muito e eu sempre medi fins e meios a cidade envolta em sua rotina se apresentava como uma história a ser contada primeiro para mim mesmo (estar ali: por que?) a história tem o poder de justificar a existência de cd um em cada lugar do mundo 771 87 eu ia às missas no sábado à noite na igreja do Carmo sentia sempre um preço por aquela igreja grande cheia de espaços vazios por dentro eu na missa sempre divagava olhando para os santos estáticos em seus altares de chumbo com olhos irreais e uma vida sempre heróica sempre me parecendo falsa eu ia à missa para despistar o alma sedenta de sentido e colocava a hóstia na boca para me alimentar por dentro daquilo que a vida me negava por fora 88 devo ter passado por carnaval na praça joão pinheiro sempre sem graça com corpos suados pulando e bebendo o carnaval no serro nunca foi para mim irreal demais para ser pleno nunca o carnaval da adolescência esse nunca mais a intensidade das descobertas do corpo nunca mais eu sei que em tudo o tempo é outro e eu vários depois de uma vida em calendários sucessivos 89 a aproximação da história serrana foi lenta mas altamente enriquecedora um tesouro desvendado em visitas à casa de maria eremita a mulher mais livre da cidade a história foi se dando comigo e as pesquisas mostraram muito de mim e mais do entorno é que o tempo desvendado e como mina aberta flui em letras e textos e fotografias 772 90 peguei um gosto pelo curioso e o fausto da cidade setecentista contraditório em comparação com a pequenez da vida dos dias atuais a história com suas personagens e até os rios ganhavam uma fisionomia diferente e a dignidade passou a acompanhar casarões e famílias becos e ruas direitas 91 por esse tempo ia até belo horizonte para mudar de ares tocar outros corpos e amar a vida na cidade miúda a vida era enfadonha para o amor como sempre o amor é sempre outro no lugar mesmo 92 o tempo passado é vasto feito pasto na montanha de lados feito o do esquecimento o não visto é o mais perfeito posto que não exato nem cheio nem inteiro mas presente o tempo ido para lugares estranhos de hoje na mente se foram tão levemente saídos de mim como quitanda a mesma quitanda de pastora saída para lata do forno onde a candeia queima sem parar há vários anos 773 93 decerto que tudo na minha cidade poderia ficar como estava eu sei que a realidade é sempre uma composição no plural mas nem por isso deixei de lado e isso é o adolescente em mim a necessidade de afirmação da vida em meio ás montanhas a cidade ainda continuava pronta e eu ainda a fazer nas horas é que o relógio da santa rita nem sempre tocou dentro de mim é que às vezes o conserto demorava e eu me desinteressava do tempo mas ainda creio no tempo como existindo somente quando pensado 94 o rio lucas correu durante um ano inteiro sem eu notar assim como as andorinhas se reproduziram e morreram sem me dar conta o tempo devastou os pastos e as paisagens e construiu casas eu me habitei de mais passado e a vida foi se fazendo um experiência sempre interessante o tempo passa ainda entre as nuvens do inverno mas hoje diferente não sou mais o que vive entre essas casas soturnas e tristes sou aquele que saiu de si viu outro mundo e quando voltou decompusera o olhar e olhar se fez outra forma de verdade 95 o amor quando chega muda o tempo as árvores sopram lentamente para avisar o tempo não para em qualquer momento o amor quando vem é para deixar marcas sonoras marcas que o silêncio sabe ouvir em noites infinitas de discussão entre mente e razão 774 eu vi o amor tão próximo como o anunciar de uma nova era eu vi o amor tão intenso como o provocar do nascimento da hera eu sofri por saber desde o início do silêncio oculto das palavras por trás de cada ato e os atos foram muitos numa peça de cinco anos 96 a casa da banda ficava no beco do carmo e a chuva soltava as pedras sempre até que um prefeito resolveu colar as pedras no cimento a casa da banda sempre foi ali para mim desde muito cedo eu queria entrar nas fileiras da música mas não pude quando ainda criança o tenente nonato não gostou da ideia de eu aprender a música por certo me achava franzino demais levei muitos anos até que um dia entre um programa cultural na FM e uma descida para minha casa eu me vi diante do quadro de partituras solfejando notas e aprendendo música numa tarde de redenção do passado a cada nota aprendida eu me orgulhava por fazer do sonho a palpável realidade e das notas uma forma de cantar o sentimento aprendi muito rapidamente o valor da mínimas semínimas colcheias e semicolcheias fusas e semifusas e o clarinete passou a guiar a curiosidade 775 o primeiro som ainda estéril saía devagar e medroso e sem intenção de ser grandioso com outros pares para fazer uma orquestração pelas ruas da cidade na banda de música eu aprendi o verdadeiro sentido de ser e estar como mais um tijolo na construção sem solo apenas em uníssono 97 a história e a música estavam tão fortes no dia-a-dia não pude separar partituras e palavras a vida amalgamou a novidade entre linhas e linhas e linhas entre uma pesquisa e outra entre um ensaio e outro a vida passou célere como dobrado 98 o primeiro dia em que toquei meu instrumento musical foi na festa do rosário de sabinópolis e devo ter errado metade das notas do dobrado já que a execução era sim prova de fogo no meio do calçamento esburacado a primeira vez... um desafio como sempre a vida permite o aprendizado mediante um preço alto 99 a música passa pela alma e deixa notas o etéreo se comunica aos sentidos interiores a alma sabe da música mais que o ouvido a porta de entrada precária do sexto sentido 776 a música coça a sensibilidade de dentro desperta os sentidos para a vida faz da alma presença no corpo objeto do mundo 100 1998 é o ano que nunca acabou e ainda vivo pulso dentro da alma o tempo quando intenso rebate nas paredes sempre coloridas da memória eu trabalhava na chácara do barão de túneis para água e lendas para o turista desavisado as jabuticabeiras com esquilos as goiabeiras com bem-te-vis para o menino agora crescido 101 aprender é lição da vida que passa como o rio descendo para o mar eu nunca soube onde daria o rio lucas se chegaria ao mar aprender é ambição de vida frágil rolando ladeira abaixo no inverno ouvir e obedecer pode não ser bom mas faz bem para a maturidade 102 a seresta na praça era uma espetáculo lindo as palmeiras aplaudiam com suas folhas e mesmo a lua saia tímida rapidamente por detrás da nuvem para apreciar as notas 777 a seresta com vozes femininas e vozes de brilho masculino com clarineta de maestro com violão de zulu 103 a banda de música na chácara do barão reunia crianças no pátio gramado e a alma ficava cheia de vida no final o lanche para os músicos nas pedras do pátio interno em flor o tempo vigiava os dobrados eternizando-os na memória 104 os primeiros condutores para os turistas em horas e horas de apostilas históricas e palavras sobre o tempo passado na antiga vila do príncipe os alunos do ginásio ingressados no curso sabiam que o tempo passa e que um dia talvez hoje, não sei! almas nobres visitariam a nobreza serrana 105 abrir a cidade aos de fora deixar pronto o café na sala permanecer atento ao movimento de quem entra e sai no perímetro o turismo começou como um ato generoso de olhar os de fora com olhar de bondade 778 106 as reuniões na chácara do barão eram eternas num solitário embrenhar-se entre os vivos para descobrir se valeria a pena o evento as reuniões de palavras hoje perdidas o tempo apaga a voz nas paredes e deixa apenas o sentido geral da conversação 107 viajar para belo horizonte era uma aventura aprender a fazer projetos aprender a executar projetos descobrir o caminho das pedras do recursos acreditar talvez tenha sido o aprendizado a fé em dias melhores em vitória no final se o final se dá apenas no decesso das horas mortas no relógio da santa rita – aprendi muito 108 ainda ficou no paladar da língua o vinho lá de são gonçalo tão rústico ou o queijo tão nobre das fazendas ainda permanece a noite de início da secretaria aquela mesma de turismo e cultura com presenças tão fortes na memória 779 ainda escuto a clarineta do maestro da banda na noite sem fim de uma inauguração os dias de minha vida nunca mais seriam os mesmo depois dali 109 as fontes da saudade escorrem ainda na noite a lembrança é desapropriação do tempo no tempo que fica ainda latente nas estruturas do ser não sei como o tempo vai morrer mas morro quando desço em mim aos porões da memória apagável escrita em carvão na alma 110 quando 1999 começou eu era um secretário de um prefeito distante como tudo na política a distancia entre o sonho o delírio e a realidade quando em 1999 resolvi ser mais feliz a vida foi anunciando suas obrigações aprendizado constante cortante necessário 111 comecei o ano nos braços imaginários do grande amor aquele abandonado na quase maturidade dos calendários quando ainda havia uma ilusão diante da vida em aberto como livro de folhas em branco a preencher comecei imaginando que a hora do amor se fizera real mas a realidade para mim nunca foi um cenário fixo antes mutável pelas forças exteriores não sujeitas ao impulso interno do meu querer 780 112 nas viagens a belo horizonte o grande amor diante dos olhos em promessa sempre em promessa nunca ato nas conversas parecia um entender-se na distancia eu me via sozinho como um macho na natureza na época do cio das fêmeas 113 fui apagando do muro da vida a ilusão (o tempo passa e ensina!) deixei de lado o grande amor para virar apenas lembrança mas como foi doloroso escrever a última carta aquela pedindo nunca mais nunca mais quero ouvir seu som aquela dizendo de mim a dor toda feito eu mesmo aquela que gostaria de esquecer mas sei: foi a mais importante a carta mais madura da vida saiu na madrugada em horas vagas a memória apaga o calendário mas guardei a cópia no arquivo 114 para retirar da vida o grande amor surgiu um câncer de pele como resultado de um longo processo de dor sem remédio 781 para expurgar a dor da vida a medicina criou o bisturi para cortar na carne o passado instalado no peito feito coisa ruim 115 antes de ir para a cirurgia me dei de presente um cão com um mês de nascido para cuidar dele cuidei de mim para saber dele soube de mim 116 voltei para casa sem o câncer sem o grande amor mas comigo e um cão a vida precisou se refazer ser escrita novamente com novo capítulo imediatamente 117 a chuva de outubro no serro limpa o telhado e faz as telhas de argila cantarem sem parar em festa assim como os pássaros a chuva lava a cidade por inteiro e devolve a promessa de vida à natureza sempre necessitada de conservação 782 118 o grande amor quando se vai para nunca mais não deixa nada em seu lugar a não ser a certeza de que alguma coisa no passar lento ou rápido das horas deu errado o relógio do grande amor é descontrolado e não importa o tempo da folhinha velha o sentimento não se apaga jamais de dentro como uma imortalidade de amor lamento o grande amor mas o grande amor é apenas passado vivo 119 o primeiro encontro de bandas de música deixou o coração na boca do estômago durante dias e dias e dias fazer a música tocar na praça joão pinheiro para uma multidão de ouvintes e músicos de várias partes do estado fazer ecoar no tempo os dobrados e hinos especialmente o hino da cidade fez o coração vibrar forte 120 maria eremita de souza lançou seu primeiro livro para não fugir à tradição dos historiadores serranos um livro durante a vida e nada mais 783 ela ensinava calada o que devíamos fazer falando e o silêncio sábio de sua cada na rua do corte era motivo de alegria enquanto ela vivia 121 a feira livre começou bem de frente do ginásio num sábado de manhã de setembro com barracas espalhadas no largo do pelourinho e eu descobri como o serrano tem medo da rua e vai a ela apenas por necessidade absoluta a rua na minha cidade é lugar de exposição a casa é lugar de contenção de si mesmo mostrar-se em público com sua fraqueza é sempre muito para o povo tímido do alto da montanha 122 maria eremita lançou seu livro no serro no salão do colégio lá no alto da santa rita e cada livro serviu para ajudar o hospital sempre necessitado de recursos a feijoada servida aos convidados presença da banda de música e eu sempre achando o sorriso de maria eremita um enigma 123 o último ano na prefeitura foi marcado por uma certeza de que o tempo deixa marcas profundas na pele do corpo e na epiderme do espírito 784 eu me achava até então essencial mas o tempo queria dizer outra coisa e foi muito bom ouvi-lo um dia gritar bem alto para eu ouvir: tudo passa 124 a casa da música foi inaugurada em janeiro de 2000 no dia 29 de janeiro por ocasião do aniversário da minha cidade: 286 anos de vila do príncipe a casa da música fica ainda hoje no botavira e os dobrados ainda se ouvem no ensaio da banda inaugurar uma casa é atividade digna e fecha um grande ciclo em obra póstuma 125 a vida passava pela música e ensaiava o saxofone à noite no quarto para afinar os dobrados da banda sempre em agenda lotada durante o ano por causa dos santos e suas festas que nunca cessam pedra redonda mato grosso alvorada de minas pedro lessa chácara do barão igreja do carmo igreja matriz casa dos ottoni a banda nunca parava e eu sempre junto para tocar e ser tocado pela música ecoando no tempo das montanhas elevadas a música sempre altera a mente de quem ouve 785 126 o brasil completou 500 anos de conquista e ajudei a plantar árvore de pau-brasil na entrada da cidade e expus as primeiras fotografias em preto e branco como retratos da negritude serrana o rosto da minha cidade é misturado não como o morro que é apartado 127 mudei de casa duas vezes em 2000 até chegar à praia numa casa apertada onde a poeira entrava por todos os lados e meu cachorro ficava sem graça enchia garrafas de licor para vender na cidade para garantir sustento no ano seguinte 128 as mudanças de casa foram muito engraçadas e o cachorro filósofo era sempre o último a chegar noticiando sua aprovação ou não do lugar novo e ele sempre tinha razão no seu focinho premeditador a loja primavera levava o caminhão e os homens desciam e subiam os móveis e as caixas de livros livros sempre acompanhando meus passos como quem sabe que a letra é uma boa companhia 786 129 o ano de 2001 iniciou uma nova era na vida que passa lenta nas montanhas e o tempo encarregou-se de ensinar que ninguém é insubstituível 130 associei-me à minha irmã para reinaugurar a gráfica da família e fazer obras de reestruturação do espaço e descobri no meio da obra que eu me reconstruía e fazia de cada tijolo erguido um sentido novo e farto para permanecer de pé 131 o tempo arrastou para dentro de mim o medo de não ser feliz a idealização da felicidade é uma loucura que trago o tempo não retira nem dá nada é o ser que se faz carência de ser e nada mais diante da vida esse dado biológico 132 o artesanato foi uma lição forte negociar com quem tem arte e sempre uma pitada de má vontade para entender o que de fato é arte 787 nesses tempos me lembrei da estética ah, se a estética fosse ensinada como se deve desde o berço os artesãos seriam mais justos em seus pesos e medidas 133 a loja na frente a gráfica atrás o memorial da imprensa junto com todos nós uma lugar misturado de turista visitando e funcionários operando as máquinas de impressão 134 as escolas visitavam o memorial depois iam para a casa da música ouvir dobrados e músicas tantas dos meninos do maestro 135 a viagem até minas novas rendeu boas conversas e muito fantasia sobre um vale do jequitinhonha que do serro é tão pequeno nunca soube nunca me vi do vale sempre achei o rio jequitinhonha tão pequeno nascendo na serra feito criança desnutrida ainda eu sempre me achei na minha cidade a mesma da revolução liberal de 1842 e de tantos serranos incríveis não pela história 788 sobre eles contada mas do que deles restou a coragem dos idealistas está no rosto de quem sobe e desce as ladeiras viver na montanha em constante inverno é tarefa árdua para pessoas evoluídas 136 ia e vinha com a banda de música por onde pudesse ir e vir numa alegria forte levar a música em conjunto para longe era uma forma de exportar a arte toda da minha cidade além de seus limites 137 voltei á chácara do barão dessa vez para o supletivo lecionar para os meninos e meninas da zona rural de lugares tão distantes que passei a considerar minha cidade o centro do mundo 138 o jornal livre pensador depois de o serro hoje foi uma construção de proporções absurdas livre pensar numa cidade onde penar livre é se acostumar com a vida dura de cada dia o jornal livre pensador passou por fases da mais absorta tentativa de revolução até a mais espiritualizada concepção de notícia e artigo 139 senti das coisas vividas um novo mundo pulsando fora de mim e me chamando 789 senti num dia de 2004 um profundo mal estar quase uma náusea sartriana entre as montanhas não pude mais me prender entre as grades da civilização serrana e pedi as chaves soltei as asas para um vôo novo em outro lugar foi quando a janela da alma mostrou a novidade 140 o grande amor brotou num julho de 2004 bem no meio da cidade grande entre carros e barulho prédios e saudades foram dias e dias pensando sentido a volta para belo horizonte e criando motivos para ficar por lá eternamente ao lado do grande amor 141 viajei incessantemente para belo horizonte até criar a coragem de pedir a ana célia que abrigasse em sua casa um serrano por um tempo de um ano tempo suficiente para ajustar a vida nova e fazer novas as coisas velhas e criar novas asas para voar mais alto que antes 142 a poesia ressurgiu na vida em frases emocionadas em versos apaixonados era o amor jovial 790 143 aos poucos fui esvaziando a casa velha e me desfazendo de uma história passada na casa do botavira aos poucos fui tirando a roupa antiga para colocar uma nova persona fora essa chamada destino feito 144 vendi os móveis doei livros e fotografias os jornais para o museu eu me fui deixando para trás sem medo e com esperança da novidade gratificante em cada caixa ida para belo horizonte a certeza de que o a vida jamais seria o mesmo vento no relógio do tempo 145 as paredes da velha casa o chalé da praça restaurado os sons da banda de música ficaram onde ainda estão na memória afetiva imutável e eterna do tempo em tica tac na alma 2005 é um ano de reinício para sempre lembrado assim os ponteiros do relógio da emoção marcando fundo na existência 791 RESÍDUO ORGÂNICO / 2010 CUIDADO: RESÍDUO ORGÂNICO o que sobrou de mim das horas o que ficou em mim do tempo expulsei em versos como a brisa joga fora o mau tempo o que restou de mim agora o que quebrou em mim do vento excomunguei em versos como a fé é certeza do bilhete lido tome cuidado ao ler os versos são o que sobrou da vida em regresso ou do tempo fazendo uma novela clara na existência frágil em gesso PISADA eu piso de leve a sola do sapato ele leve que leve-me eu piso em breve o chão do mundo ele deve deter-me eu piso sempre meu eu interno ele cabe o eu que sabe 792 ARTIMANHA a árvore na cidade nasce sempre como eu de manhã os bichos com idade vivem sempre como eu de manha eu sei do tempo agora quando tento embora ser artimanha SOMBRA hoje a manhã não trouxe a sombra do corpo no asfalto não me vi no espelho opaco do chão da cidade hoje bem cedo não se revelou o outro lado, o escuro, da alma na face clara do dia nascido da cidade decorada hoje eu não me vi no chão outro, como outro feito, dado eu me dei no silêncio do dia sem sol logo ao nascer da vida (o dia surgiu ainda escuro escuso-me de revelar-me) 793 SOM DE OSSO os ossos do corpo se rejuntam ainda cato os sentidos de ontem e o corpo emite sons impuros de reconexão entre os pólos não me lembro do comando apenas sei do osso frio e sempre unido um ao outro para erguer a estrutura orgânica no mundo sei apenas da máquina ligada o dia é sempre uma eterna abertura para os silêncios prestes a se calarem VEIAS DA CIDADE por debaixo da terra uma cidade submersa versa sobre o nada por dentro da terra a cidade perversa cessa o seu ruído por entre as casas a veia submersa expõe o sepultado a cidade de dentro flui nas casas afora seu líquido urbano canalização 794 RELAÇÃO o corpo suado trabalho de dois de lados a alma distante sensação a dois estados o corpo aperta a alma se cerca de alerta calor suor êxtase VEJO entre nuvens entre os dedos entre os dentes eu vejo o vazio no meio da casa no meio da frase no meio da vida eu vejo o vazio dentro de cada dentro do todo dentro do tudo eu vejo o vazio 795 INERTE antes da chuva silenciosa no telhado antes do sonho cadencioso na mente antes da mentira absurda na frase antes da verdade desengraçada na vida eu me preparo no acaso inerte no tempo AINDA VÃO da vida sei o que falta da falta se faz a vida inteira ainda não mesmo sim da vida sei o que tarda das altas horas do dia inteiro ainda vão mesmo tão 796 CHEGADA já, já a pista de pouso da várzea do rio do peixe avistada do morro do paiol anunciará o perímetro urbano já, já a última curva abrirá meus olhos para uma cidade em meio à natureza humana e animal da urbanidade vejo dentro de mim o espelho mirando fora a cidade viva de dentro GEMIDO NOTURNO os gemidos da noite se não há filhos são ouvidos pelos bois e vacas pastando sob a árvore os gemidos sexuais se há filhos são ouvidos pelos filhos e animais corujas e marsupiais da noite em tudo gemido de prazer e dor a natureza se faz confidente a noite se faz depositária SEM SABER eu não sei de mim quando vagando entre casas velhas casas do tempo ido de outras vidas dadas na cidade onde minha alma renasceu para aprender novamente do tempo eu não sei de mim quando olhando para a montanha azul percebo eu mesmo crescendo entre os matos enormes das horas da vastidão que o sentido interno representa como se as nuvens fossem as mesmas de antes eu não sei o que me dizem as mesmas pessoas encontradas depois de muitos anos distante de suas rotinas só sei que há um mistério de tempo se fazendo o mesmo para todos ao mesmo tempo e separando vidas 797 CADEIRA DE BALANÇO vovó quando velhinha na cadeira de balanço ficava calma na vida por causa do vai e vem se vai se vem virá talvez ou não pode ser no balanço da cadeira a vida ficava mais leve como amortecida no ritmo lento FOLHAGEM DE ESTRADA a folhagem coberta de poeira espessa guarda dentro de si a natureza sempre selvagem e por ela vive a folhagem da estrada coberta de poeira preserva dentro de si o verde para a primavera e a chuva purificadoras COMO O JEQUITINHONHA assim como o rio jequitinhonha nasce pequeno e frio e tímido no alto da minha cidade assim como o rio jequitinhonha corre sem graça feito menino miúdo na ladeira abaixo até o mar eu me sinto agora percorrendo a vida 798 CRENÇA se fechar os olhos e nada se fechar terei vivido sem esperar mas se fechar as vistas e outra maior sinalizar terei tido muita fé nisso acredito a vida não cessa no fechar dos olhos POEIRA DO TEMPO a poeira rola leve sobre as coisas no tempo dela no peso dela suavemente a faxineira tola pega os panos embebe de lustra móvel sela impiedosamente a poeira se apaga das coisas o tempo se leva embora limpidamente CORPO OCO o corpo de dentro é outro vestido porque é pouco se o médico abre e vê o vestido despe o corpo outro interior feito de osso 799 ou de osso cheio de nervos ou de nervos com artérias ou de artérias com sangue o corpo interior feito de carne apodrece e passa e vai embora rejuntar-se aos elementos orgânicos da terra geradora da tarde o corpo de dentro é outro despido porque é oco o corpo é oco o corpo oco oco corpo morto PRISÃO nada me prende nem o muro da casa nem a grade da alma nem a mente nada me sente sem o pulso do corpo nem a face ao vento nem a morte eu me soltei da realidade plenamente fora de mim sem passado sem futuro e essencialmente sem presente estou distante de mim e nada me prende estou partido de mim e nada me sente (o relógio continua seu delírio eu não eu não eu não) 800 PREFERÊNCIA o dia é fato consumado o amanhecer é dia por fazer prefiro a manhã sempre o dia poluído termina cansado o amanhecer é pista livre prefiro a manhã leve VIDRO o vidro segura o pensamento dentro de leve passa longe da janela do coletivo azul o vidro assegura o pensamento dentro da mente e do corpo longe a alma se projeta o vidro impede o pensamento de fugir pelo mundo e fazer do momento outra coisa que apenas momento O FRASCO vou guardar em frascos como aqueles de perfumes raros frascos de eternidade frágeis frascos de passado eu bem poderia conseguir guardar em frascos o cheiro das boas lembranças 801 toda lembrança é acompanhada sempre acompanhada de cheiro imortalizado pela visão e audição vou guardar em frascos para abrir quando estiver triste vou consertar minha alma com o perfume bom do tempo SUA BENÇÃO o sorriso é uma imagem límpida e forte veio pelo telefone na notícia de sua morte não acredito na morte nem na imobilidade depois acredito na continuação do trabalho de existir o sorriso anunciou seu estado de libertação mas a tristeza é semente adubada do tempo na alma seu corpo trêmulo se foi volta, então, à veste espiritual e manda do espaço sua alegria da vitória sobre o tempo passado falecimento de Nadir de Souza, meu padrinho, no Serro, dia 25 de agosto de 2009 802 BAÚ NOTURNO a noite me protege não posso sair a noite me veste não posso ficar nu a noite, sempre a noite... me devolve a mim entre o barulho do mundo lá fora e barulhos intensos do pensamento a noite me devolve a sonoridade da alma batendo como se fosse coração a noite me dá o significado da vida tenho procurado por ele entre os dias mas o sol ilumina demais preciso do obscuro para abrir o baú da alma com sinceridade entre o mundo de todos lá fora e o som da alma aqui dentro a noite me devolve frágil como sempre fui e serei a noite, sempre a noite... DE NOVO CORPO E ALMA o corpo tem sombra a alma tem cores o corpo tem contra a alma tem sonho a alma sou eu num todo só meu o corpo é história de uma parte só teu a alma é verdade do que sou eu o corpo é memória do pouco que fui teu 803 MORTE ORGÂNICA meu corpo é esse pedaço de tempo partido entre tantos outros tempos de outros de outras de tantos que já nem sei se me emendo ou se devo me emendar para saber quem sou meu corpo passou de tempos em tempos por outros tempos que para mim foram outros a vida é uma colcha de retalhos tecida de dia de noite de madrugada e de sonhos inúteis meu corpo é apenas esse isolado conjunto de órgãos funcionam sem eu ordenar e se ordeno não obedece a morte é o descontrole absoluto do de dentro mas operado pelo de fora: o mundo me devolve a mim a alma sobra de todo o tempo de corpo e de nome imposto ao corpo encarnado quando quando quando será meu deus o momento de ser apenas eu dentro de mim partir para mim mesmo sem corpo apenas alma sem tempo apenas calma partir em mim mesmo CABELO o cabelo caiu e vai com ele o tempo o tempo de vida passado sob o sol e a lua o cabelo nasce cada dia mais fraco e pouco o pouco de vida ainda resta sem eu saber o cabelo muda de cor e fica mais leve o leve da vida é esperar pelo absurdo no dia seguinte haverá o cabelo? 804 PELE o reflexo da pele no olho sob o fundo azul é belo e sob a lua a pele brilha espiritualmente por fora o creme revitaliza a pele a doença empalidece a cor o bronzeador queima melanina a escuridão revela o toque a pele pede amor em poros de cor O CORPO MUDA eu voltarei para mim quando meu corpo enfim for apenas um passado inerte sem futuro à frente eu voltarei para mim quando a alma for apenas eu e o futuro estiver mais claro que o tempo de um corpo fraco eu voltarei para mim depois do espelho partido após a cama da manhã outra há um paraíso além do tempo eu voltarei para sempre várias e várias e várias vezes para ser tempo e depois sem tempo para seu eu e ao mesmo tempo muitos 805 UNHA a unha cresce dia a dia sábado ou outro dia eu pego o cortador e aparo o tempo a unha desce para o chão some no sábado de cuidados o cortador volta para a estante eu volto com a mão refeita a unha foge do tempo eu aparo sua fuga e jogo a memória no lixo PELO o pelo sai da pele e preso no solo do corpo vivo floresce arrepio o pelo cai se morre mas outro surge dos poros abertos pela vida o pelo vai se expor o mundo interior é pouco diante do vento lá fora 806 DIGITAL I a digital na identidade é minha mesmo mas ainda duvido se eu sou apenas sensação a digital é pura vaidade registro de um corpo provisório e frágil sou apenas recordação a digital não muda a vida toda é a mesma mas ela me nega sou uma mistura de identidades CEDO DEMAIS quando eu souber do tempo eu lhe contarei, espere! por enquanto o segredo é apenas eu com medo medo do tempo cedo no tempo CORPO DENSO me sinto lindo se paro e penso mas a lembrança é piso oco do tempo já desfeito e pouco me sinto indo se falo e ajo mas a memória é teto baixo do tempo apertando o frágil 807 sinto eu mesmo se me penso mas sou outro se me adenso OLHOS FECHADOS fecho os olhos no quarto escuro a noite me fecha em sua história o dia se vier vai ser diverso demais a note e o escuro me roubam de mim os olhos fechados me sepultam o pesadelo é fuga para dentro mais e mais dentro do interior onde o escuro vira pensamento EU AINDA AMO não sei onde deixei esse rastro de mim no vento passando no peito ardendo em cada canto de seu corpo eu me fui para um lugar não mais meu nunca seu, eu sei eu sei... o amor não é o vento na árvore pela manhã nem apenas essa carta escrita no espanto da dor eu sei... o amor não é apenas um tempo ido é desejo de tempo eterno mas seu corpo se foi, se foi se foi para tão longe que as lágrimas tecidas uma atrás da outra em anos de saudade não podem jamais poderão dizer do amor perdido na noite tão distante que o calendário apagou, para sempre 808 para sempre eu sei nunca mais teremos o tempo fresco da descoberta do toque do beijo do roçar da mãos como a dor de não tocar seu corpo me lança para fora do tempo de todos os tempos que hoje vivo, tudo passa mas a saudade de sua voz no meu ouvido acelerando todas as moléculas do meu sentimento ainda me perco na suave ternura de sua voz distante longe demais para correr para junto de seu abraço, quanta história quanta história por detrás da saudade e somente eu somente eu posso contar sobre quem foi seu corpo o todo seu diante dos meus olhos desatinados de paixão sei que devo voltar ao choque cotidiano dos corpos, vou eu vou para junto do dia para me perder de novo sempre um renovar de ausência sem fim e sua falta mutila o futuro roubando de dentro o que se vai fora meu sorriso se emudece a cada dia quando o sol, o sol me permite dizer entre o trânsito caótico da cidade mais um crepúsculo distante de seus olhos pequenos o tempo vegeta estéril nos calendários idos, perdidos eu me perdi de mim e não sei o caminho de volta, ora ora oração coração eu me deixo no corpo eu me fecho no pouco da distante emoção 809 PELE OUTRA a pele sai do corpo não preciso dela quando amo outra coisa envolve interior se revela quando amo a pele cai do corpo não me acho nela quando amo outra chuva umedece flor na janela me visto e amo SUOR o suor é resultado de água no corpo de lado a lado atravessando a água me conheceu mais que eu mesmo por dentro de mim devassando agora vai embora para o mundo e pinga no chão do tempo para refazer o ciclo em outro 810 HERA SOBRE A ERA a hera cobriu o muro onde o revolucionário anônimo e idealista saudava a revolução a hera matou a mensagem de um novo governo e quem sabe talvez de uma nova era a hera cobriu a tinta como o tempo descobre o bem e o mal das eras DENTRO E FORA continuo crescendo por fora a unha e crescendo muito por fora o cabelo continuo perdendo por fora a juventude e perdendo junto por fora o tempo eu cresço ainda perco por fora acumulo por dentro 811 REINO se fosse vegetal teria ainda seiva pelas veias feito sangue animal se fosse animal teria ainda mente por dentro feito tempo passional se fosse eu mesmo o tempo todo apenas teria a vaga razão do que se chama inteireza FIM DO CORPO o mundo é mesmo estranho aqui se nasce em corpo mas na hora da morte pouco sobra do todo o mundo do nós é osso e acaba numa cova de sete palmos abertas em frio fosso POEIRA o corpo diferentemente dos móveis da minha casa e do meu quarto não junta poeira em algum canto 812 o corpo espontaneamente se lava na água do suor escorrendo meu corpo não junta poeira sou mais que um objeto sou um corpo sabendo-se corpo e nenhuma poeira sobra ÀS VEZES CORPO às vezes me acho no meu corpo quase sempre estou vagando em estados físicos misturados com estados puramente lindos de sentimentos eu sou apenas isso um corpo cansado um sentimento passado às vezes eu me toco no meu corpo quase sempre estou longe da pele em estados líricos amalgamados com estados meramente fixos de fingimentos eu estou apenas nisso meu corpo apagado um revestimento borrado 813 PURO o pé assenta o corpo no chão inteiro sou eu de pé pronto para ir ou voltar o pé me leva pelo mundo afora inteiro sou o que se espera um corpo falante alma que está o pé me eleva a mente vai junto me misturo na realidade puro puro puro O TEMPO CAI o cabelo voou no vento a minha história se espalha de um lado ao outro de um longo tempo a respiração ofegou outro dia quase parou de um jeito ou de outro eu sou o que foi é e passou A MENTE MENTE? na mente encontro conteúdo mais que no mundo ou é apenas o mundo interior que é o mundo de fora e exterior? 814 na mente brilham o sol e a lua e as cores intensas deixam marcas indeléveis na memória do tempo interior na mente eu sei que processos breves e lentos belos tantos acontecem desde meu nascimento quando a luz se fez nos olhos de dentro a mente é uma lente de aumento do estar-no-mundo pensando o mundo a mente está no cérebro? o cérebro é pequeno para o meu eu o cérebro é do tamanho de um grão eu sei que para além do orgânico algo intenso pulsa fazendo meu ser ser mais que agora meu corpo no chão a mente não é apenas cérebro mas será a mente apenas mistério eu amo o mistério e por causa dele me interrogo por dentro e por fora SONHO o sonho acordou meu corpo não pude mais descansar depois de viver a realidade paranormal o sonho delirou meu mundo não posso ficar parado na cama depois de ver a realidade anormal 815 o sonho me cutucou a curiosidade não quero menos do desejo real depois de estar na realidade desigual o sonho me roubou a paz não vou dormir nunca mais LÍQUIDO líquido nos olhos permite o movimento pra lá e pra cá eu vejo líquido entre ossos consolida o movimento estou aqui e lá eu ando líquido nas mãos acorda a manhã no rosto dormia e não já eu vivo ARREPIO o arrepio orgânico dos pés à cabeça foi por causa do medo o arrepio semântico da letra ao sei que é foi por toda a linguagem 816 FIXAMENTE não chove dentro só fora quando a mente chove no mundo chove é tão simples não move está tudo parado quando a mente move o mundo roda é tão exato quem nos engana a mente ou o mundo em volta? DIA o dia raiou o olho sabe de dentro abre à vida o dia brotou o olho pisca de dentro brilha ao dia ABRAÇO o abraço só tem sentido se há pouco espaço entre os corpos atados 817 quando distantes o abraço é saudade de contato entre os poros arrepiados o abraço significa muito mais dentro que o espaço fora ligação de almas DEDO entre os dedos passa o ar se abertos para o vento entre os dedos passa água se dentro do mar me agito entre os dedos há moléculas soltas orbitando entre o nada os dedos são abertos sempre mesmo juntos em prece os dedos são abertos entre si para passar o vento ENTRE AS PERNAS absurdo a bola passando entre as pernas do jogador de futebol como pode uma bola tão grande passar entre pernas tão fechadas de modo tão descomposto? 818 as pernas abertas grandes ou pequenas deixam passar a bola entre si - mas como? uma bola gigante entre pernas miúdas o espaço é a mente NUDEZ a nudez do corpo é natureza no mundo exposta em total sensibilidade a nudez dos bichos é sempre real eles não se vestem naturalidade VOZ a voz sai de dentro do corpo através da boca e ganha o espaço o pensamento é interior a palavra é feita para ecoar a mudança de lugar é palavra exterior a permanência dentro é pensamento para fora o eco para dentro o seco 819 VIDA ORGÂNICA a vida orgânica é semântica nada mais nada mais a vida orgânica é quântica move tudo move tudo a vida orgânica é inexata acaba rápido acaba rápido a vida orgânica é chata prende gente prende gente TERRA é é ar é arte EARTH FUNDO o mundo é fundo muito profundo subterrâneo subcutâneo sublingual submundo 820 SUPEREGO dentro de mim mora outro de casa edificada no topo me rouba a atenção pede troco dentro de mim tem um oco espaço para crescimento por dentro se cresce mesmo pouco dentro de mim há uma reserva oxigênio para fôlego por dentro se afunda no todo dentro de mim o tolo há outro com sua antena ligada me inspeciona com dolo IDIOMA iu ui you we we ui you iu we you iu ui aujourd’hui 821 VOAÇÃO pego de leve levo e pego pego leve leve pego a pena no ar sem peso sem corpo ainda voa o corpo sem pena com peso ainda voa? MOTOR o motor no corpo o pé a mão o conjunto o corpo gera aceleração rotação ação o corpo é motor ventilador resfriador temperatura o corpo é motor corpomotor cortor 822 ASA DA LETRA palavra boca afora e por dentro ficou o quê? palavra perdida e o que me deixou não conta? palavra jogada fora e o que me marcou é risco? palavra são apenas letras voando voando voando voando A FALA DA LETRA a letra persegue seu olho seu olho persegue a letra bailam na folha em branco as letras em preto escritas o cérebro dança a música da leitura de letras em papel em papel feitas letras surdas em cérebro fazendo barulho a letra no papel é muda 823 ela lhe muda a curva do olhar no fundo branco da folha preenchida a letra persegue seu olho seu olho persegue a letra minúsculas curvas são letras maiúsculas letras são início a letra persegue o decodificador você decodifica e a letra insiste em dar ao papel um som na mente o vazio da palavra é branco a letra persegue a letra sabe ser som a letra escreve a letra cabe na voz do papel TEMPO FÍSICO o estômago ingere o alimento ferve desaparece depois sai o sangue oxigena o glóbulo branco aquece depois vai 824 o corpo funciona vive um tempo curto ou longo depois cai PELE o outro é sensação por fora arrepio na pele o outro é pulsação da hora frio de neve o outro é apenas outra pele se me toca revele LENTO o tempo afina os ossos o cotovelo o joelho velho o tempo refina os olhos o sentimento o pensamento lento OCO OUTRO o bom do pensamento é o silêncio por fora não quero falar ninguém me conhece o pensamento é bom quando preso 825 se solto faz vento o pensamento é oco quando dentro se falado faz outro o pensamento é bom quando somente meu INTEIRO o extremo do corpo é o vazio do mundo do vazio para o corpo o mundo é cheio o inteiro é início meio fim o inteiro do corpo é sempre meio o fim do corpo é sempre início DEDO pego o ar entre os dedos no invisível do tato não há recheio no meio o ar é ausência de corpo o mar cheio é nada se entre os dedos não o tenho 826 AMOR CHEIO o corpo mais corpo é no amor sensação matéria o corpo é corpo no amor secreção hormônio o corpo é próprio no amor expansão contrário sem outro corpo o amor é vazio DOENÇA haverá algum segredo ainda não revelado dentro do meu corpo ainda vivo? as doenças genéticas dentro o coração baterá lento o distúrbio frenético a glândula terá dor haverá algum segredo mascarado dentro do meu corpo ainda em risco? O OUTRO MORRE o outro morreu o medo espalhou o corpo morto é morte no ar 827 o outro se foi o corpo podre a terra comeu é sorte ficar o outro parou o corpo inerte a roupa última é corte sem ai o outro morre antes de mim pedagogica mente QUAL? o mineral o sal o líquido qual? química há leis dentro de mim física há leis fora assim o vegetal faz mal o remédio qual? 828 ALGUÉM VIVE eu parei mas o corpo continuou vivo eu calei mas a mente confessou vivo mesmo morto por dentro o corpo luta um tempo morto-vivo sou de noite na solidão de mim mesmo MENTALIDADE eu penso sem parar eu penso até cansar o pensamento contínuo muda muda muda não devia ser assim luta luta luta eu penso até dormindo quando o sonho é ruim eu acordo e volto de novo para mim 829 eu não paro de pensar há sempre esse vagar em si mesmo toda hora dormir ou acordar eu penso sem parar eu penso até cansar PASSA O TEMPO o tempo passa em mim o corpo fala que sim mas alguém permanece intacto e inteirinho o tempo pesa nas pernas sonho e leve passo o tempo cessa se amo durmo e o amor passa o tempo passa em mim o corpo fala que sim sim eu sei que o tempo vive numa luta sem fim ESPIRRO o sofrimento devia passar feito atchim 830 não gripe longa uma coceira espirro fim POUCURA o poema curto fala absurdos o poema claro canta escuros ACHADO achei depois de outro a mim o outro era eu sem fim apenas começo e meio sem inteiro assim achei um outro esse sim sou eu mesmo inteiro até que enfim estou de volta em mim INACABADO o corpo pequeno era outro um outro que agora está aqui infância é tempo estranho de ser ainda sem fim hoje sei do corpo pronto em mim mas não tenho para onde ir 831 fugir para o futuro as rugas a idade a doença fugir não dá mais o tempo é absurdo me deu a infância para encontrar a dor para onde irei pronto em corpo feito e em necessidades ainda inacabado? SANGUE tirei o sangue para exame a agulha penetrou a veia e eu me pus no frasco como um tipo sanguíneo eu sou aquele sangue na mão da mulher de unhas azuis sorridente? o sangue retirado depois de fragmentado e todo analisado vai para onde? tirei sangue sem entender se era eu mesmo no frasco quente 832 ROUPA ÍNTIMA o nu do corpo sou eu apenas sem roupa o nu do corpo não revela o que penso lá dentro sou feio sem roupa me defendo eu não tiro a roupa interior tenho medo da nudez maior eu não firo o eu superior tenho medo dessa nudez o nu do corpo sou eu apenas sem roupa eu sem traje sou trajado por dentro ENERGIA o almoço convida energia no corpo dentro do poço estomacal 833 o lanche servido moléculas no corpo regurgitando energia vibracional o sono calado ou sonhado o corpo parado neuronal EXAME CLÍNICO pouco sei do corpo o meu corpo dado intuitivamente nada sei de suas leis ele não me informa rapidamente não posso diagnosticar os processos do sangue sabiamente o cientista coleta uma gota do sangue em veia minha descobre doenças acha insuficiências várias anemia leucemia hiperglicemia a gota de sangue em mãos alheias falam mais de mim que o sangue em litros dentro de mim correndo 834 não sei absolutamente do meu corpo por mim preciso de um outro o outro usa uma gota e de mim tira várias conclusões eu não sei nada de meu corpo VEIA a veia dilatada na mão anuncia o calor a veia sumida no corpo anuncia o frio para onde o sangue vai no inverno se no verão ele tem o mesmo volume de antes? DENTE o dente amassa a comida dentro da boca úmida desce triturada a massa para o estômago o dente precisa de outro outro dente de outro dente para fazer a trituração permanente o dente sozinho não morde um dente sozinho não pode 835 VERME o verme lá dentro da barriga alimentando sua brancura chupando o sangue via intestino o verme cresce e reproduz quanto tempo vive lá não sei mas sei que meu corpo abriga seres vivos demais além de mim há outros vírus bactérias vermes os vermes são os piores os vermes são os piores DIGITAL II a digital está cobrindo os dedos sou eu na carteira de identidade com uma marca até minha morte a digital vai me acompanhar a digital é silenciosa e policial quando houver um crime o homem de arma na mão obrigará a dar o sinal a digital é uma marca duradoura e material ela não muda se lavada ela tem a minha cara 836 COM OU SEM o corpo sem banho fede o corpo com banho leve o corpo sem brilho fosco o corpo com brilho fofo o corpo sem fome gordo o corpo com fome magro o corpo sem vida morto o corpo com vida doido o corpo vivo o corpo morto eu vivo eu torto TEMPO DO CORPO queria o tempo longe do corpo distante dele bem distante mas ele se cola nas células se passa em mim e eu vejo o tempo passa no espelho e eu sou chamado a controlar 837 a esperança de viver mais ou menos já não sei o tempo me confunde o tempo passa em mim não me deixa fugir por quê? o que ganha com essa cena difícil para eu ver? o tempo acorda em mim sai pelos dejetos entra comida eu alimento para morrer eu vivo para morrer o tempo me passa as horas eu não posso parar eu não sei se quero parar já me acostumei ao lamento o tempo vai me arrastando e sinto que vai chegando a hora do tempo ser outro o tempo se morro vai me deixando o tempo um dia vai me deixar MÚSCULO o músculo cresce o moço pega o peso sobe desce o músculo intumesce o moço rola 838 a barra peso dobra o músculo esquece o moço olha o relógio músculo moço envelhecem o músculo envelhece o moço envelhece CARNE ALHEIA sinto pena do boi cortado em tiras no açougue sinto pena do porco vendido no peso um troco sinto pena da carne morta e vermelha na vitrine sinto pena da fome que come a carne de sangue sinto pena de mim eu como a carne por fome 839 MENTE E OLHO o olho vê excita a imaginação registra o olho capta a cena a imaginação redesenha o olho acha a mente mancha tamanha o olho sabe ir aonde a mente cabe ANTINOMIA o corpo desce sete palmos a alma sobe altiplanos o corpo mexe irritado a alma cede devotada o corpo vive a alma ferve 840 EU SOU DOIS? a dor no corpo é músculo cansado é osso trincado pancada na mesa a dor na alma é promessa desfeita é amor acabado é morte chegando os dois são apenas eu NARIZIM o nariz pede bis cheiro bom no ar feliz o nariz faz atchim cheiro ruim no ar infeliz o nariz sabe o cheiro que lhe faz feliz o nariz sabe o cheiro que me aperta o rim 841 CORRENTEZA mandem buscar as lembranças de mim no rio que vai longe mandem recuperar o corpo que eu mantive intacto em mim até aqui ele se foi em pele cabelo saliva água abaixo rio abaixo se foi para o fim PULSO TEMPO / 2010 À PROCURA DO TEMPO não sei de onde me veio essa ilusão forte nem esse sentimento tão nobre e besta de colocar o tempo o tempo dentro dele como se fosse possível emoldurar nas cenas o relógio tiquetaqueando a matraca das horas na alma fervorosa por mais tempo de tempos idos de tempos findos 842 a vida passa em tempo e o tempo tem tempo dentro de si mesmo e se faz ele próprio no próprio ato de tornar eterno na memória o si de si mesmo o sempre si mesmo tempo não me acuse de querer devotar ao tempo o verso pois dentro do verso já se consome de tempo o tempo entre o pensar o verso e sentir o verso na folha já foi o tempo preencher a lacuna entre o nada e o todo entre as intermitências da realidade frágil que de fragilidade se compõem as estruturas da alma do senhor tempo esse que passa por mim desde vivo e morto será sempre eu tempo feito na vida no mundo que o mundo nada mais é que tempo ido para fazer do futuro tentativa de tempo passado esse mesmo tempo vagabundo roçando na minha vida para tirar de mim 843 sua razão de ser e estar dentro da natureza de cada um o tempo se faz bem dentro de si mesmo e nas categorias de mim eu me dou a ele e ele se dá a mim sem metáforas apenas real o tempo não conhece a poesia mas sem ele a poesia seria fria o poeta procura no tempo a si mesmo e os versos puxam para si o pecado da vida sacramentada em lugares passageiros e mãos que hoje são fortes amanhã serão serão... talvez nem serão o tempo leva a força a coragem a verdade e a história por isso a poesia é frágil mas precisa ser para o mundo compor-se de mais brilho que a cor realçada no verso é a eternidade do rosto do tempo nas folhas eu me arrisco em aprisionar o tempo em verso para me libertar de sua trajetória nas minhas moléculas estou à procura do tempo 844 no verso no inverso no controverso estou à procura do tempo na vida e no mundo e no relógio interior O TEMPO É O INTERVALO eu procuro o tempo entre as diversas fases da vida nascimento crescimento morte o inteiro não é o tempo o inteiro início meio é a vida o tempo está no in ter va lo nas reticências do que está para ocorrer o tempo é um in tro 845 fim me ti do eu procuro o tempo entre o sêmen jorrando na estrutura quente correndo atrás de seu deus intenso o óvulo quem poderá saber desse tempo oculto nas entranhas da mu lher? quem não contou no relógio nem nos calendários o tem pó? ela sabia apenas da presença de um encontro no mais fundo de si mesma mas o tempo o tempo estava lá calculado para o milagre quem conta a vida nesse intermédio de tempo? eu conto minha vida no dia do nas ci men to mas o tempo em que eu era dois prestes a ser um no encontro? e o tempo da expectativa de óvulo fecundado, 846 não era eu já? quem eu era ainda feito não feito mas já tempo? eu procuro o tempo entre os hormônios latentes da infância e a adolescência sempre pronta para ser outra coisa negando o passado do corpo simplificado na existência infantil não me perco nessa busca eu sei que o corpo é um depositário de tempos em expectativa de vida em expectativa de expectativa de vida se tornar mais vida e sobretudo vida madura o tempo entre os hormônios é tempo prestes a ser outra coisa que será desse tempo? por que o tempo aí se esconde, ocultando sua face? o tempo está nas veias do corpo e faz das veias cor viva e não sei o motivo pelos quais as veias se abrem e se fecham como ponteiro fechando e abrindo horas no relógio o tempo está no pelo que nasce e que antes era tempo de esperar o nascimento e maturação e sei que o tempo aí escorre pois o vejo em outros corpos infantis como o meu infantil um dia foi o tempo entre a infância e a juventude pulsa entre dois momentos e o vejo preparando o 847 terreno para ser diferente em dois momentos da mesma existência é o tempo... é o tempo... é o tempo... eu procuro o tempo entre uma árvore de frutas vermelhas e coloridas e cheia de graça da infância pronta e a mesma árvore em outro tempo com as mesmas frutas sem graça por causa do tempo que se passou na mente que vê a fruta no galho no tronco sob o fundo azul do céu não sei o que muda mas muda algo e esse algo é o tempo alterando as cores da alegria de viver e as tristezas sentem mais prósperas no coração de quem começa a entender a passagem do tempo na boca do estômago eu vejo o tempo no céu de quatro estações fazendo seu ro do pio entre as pi pas entre as aves migratórias que vão para todos os lados à procura de tempo bom para ser feliz eu vejo o tempo brotando do chão na raiz da árvore aparente levantando a calçada lentamente para fazer a destruição ser uma realidade no caminho de cada um porque o tempo sabe fazer-se vida e morte e 848 infância e adolescência e tarde e noite o cha fa riz deixou um dia de rolar água foi a obra do tempo depondo contra si mesma no intervalo entre uma geração e outra a criança que antes be bia á gua agora não poderá mais se embebedar da água da montanha o tempo passou para a velocidade da água jor ran do o tem po levou a vontade da natureza de expor suas entranhas dos fundos possantes das veias do solo eu sei muito bem onde se esconde o tempo da infância ( ) ele está entre o movimento das sombras das casas antigas há tempos desvendando o lado do sol e da lua porque o tempo se faz sombra e claridade no chão das cidades e dali brota o pulso forte do tempo em temperatura quase corporal o tempo é esse intervalo ( ) 849 vadio entre a manhã e a tarde e entre a tarde e a noite e mais acentuadamente na madrugada dormida velando o corpo do pai frio e sem graça imóvel porque seu tempo já passou sobre a terra eu sei da vida sendo arrastada no tempo mas sei também da morte abafando o tempo passando para o pretérito as falas as saudades as verdades há uma grande verdade há uma grande verdade há uma grande verdade o tempo está em toda parte o tempo é toda parte sem ele não há espaço nem memória as crianças crescem dentro de um tempo pre) (estabelecido seja pela medicina seja pela mãe ainda menina seja pelo calendário as crianças crescem dentro do tempo e partem dentro de um tempo eu sei que no interior do tempo ainda há o hábito o velho hábito de no sétimo dia deixar a criança longe de todos do mun do escondida para passar por uma nova etapa de tempo sete dias perfeitos para criar coragem de amamentar no peito encher os pulmões bem fundos e deixar o tem po prosseguir em sua jornada sua jornada sua jornada 850 intermitente entre filho e mãe e pai e a sociedade sempre insaciável de ver o corpo alterado pelo tem po o tempo é o intervalo entre a casa e) (a escola entre a meninice e) (a burrice entre o colo e) (o solo entre a mão da mãe e) (a mão do coleguinha o coleguinha que ensina a dor de longe da mãe aprender que o tempo machuca mais quando solitário o tempo é o intervalo entre as fraldas o cueiro e a mamadeira e o prato cheio obrigatório com jiló e alface e mostarda e para variar um tempo para adaptação entre o prato na mesa e paciência curta da mãe sempre atenta ao mundo que espera o filho o tempo é o intervalo entre os intervalos das aulas primeiras no pátio correndo arranhando os joelhos a queda o levantar 851 e o medo de voltar para casa e estar tudo diferente esse medo da alteração das coisas inevitável passar das horas sempre tive medo de chegar em casa e descobrir que todos todos sem exceção haviam me abandonado para traz deixando-me sozinho para viver um tempo sem limite quando se é criança o tempo existe mas muito do lado de fora o tempo é o estar-entre-duas-coisas sem saber o que é a segunda coisa que virá depois da primeira que não se sabe se é a primeira o tempo é causalidade demais para ser correto o tempo é incerto demais para ser verdade o tempo é incompleto demais para ser inteiro o tempo sou eu demais para ser eu mesmo o tempo é o intervalo entre coisas completas e coisas quebradas do carrinho da loja e do carrinho do porão da casa 852 do carrinho limpo com cheiro de loja de samuel e o carrinho cheio de lama da barragem de claudionor do carrinho com rodinhas inteiras e do carrinho de rodinha solta sem remendo sem conserto o tempo não tem conserto o tempo é concerto com certo certo o tempo é a certeza de que as coisas vão passar mesmo eu fora delas e fora delas vendo o tempo vai passar sem se preocupar se o vejo ele é indiferente ao meu desejo de parada para descanso o tempo não levanta cedo nem acorda ele é o cedo ele é o tarde ele é o todo em minha volta e nada mais que isso o tempo é o intervalo entre os medos medo de cair e não conseguir se levantar depois do tombo de bicicleta de patinete de corrida de um ponto ao outro para nada ou na brincadeira de pegador ou esconde-esconde ou rouba-bandeira ou rouba meu tempo eu sei dos medos de cair e não se levantar pois a queda do corpo 853 é o prenúncio da queda de dentro que a vida vai trazer inevitavelmente e sem avisos prévios apenas imposição o tempo é uma imposição da vida o tempo é uma imposição da vida o tempo é uma imposição da vida eu bem sei do tempo imposto nas horas de morte o intervalo entre a vida e a morte de um ser amado é muito estranho não se sabe a hora da sua morte sabe-se que ele é para a morte como eu-sou-para-a-morte mas quando o pai morre é como se o tempo parasse e parasse porque não precisa prosseguir na ausência de quem fazia o tempo ou os intervalos do tempo serem tão alegres e tão felizes que não houvesse e sinto que não havia tempo para pensar na morte e na despedida o tempo tem lenços brancos estendidos no mundo o tempo tem lenços lindos espalhados pela infância o tempo tem lenços amassados e rotos pisados pelas ladeiras a novidade da vida é o intervalo entre o ontem e o agora esse agora pulsando em moléculas na alma (unida presa amarrada) 854 ao corpo o meu corpo tempo de tanto passado templo de tanta emoção e tanta saudade a novidade da vida é o intervalo entre a fogueira e a árvore ainda em pé lá na mata no mato na floresta eu caminhei dentro de outros tempos me fiz fogo antes do fogo real me fiz real antes do fogo fictício a novidade da vida é o intervalo entre a saudade e o fato os fatos tantos criados pela junção de tempo e palavra as palavras são habitações do tempo na alma eu as quero longe de mim e não posso removê-las o tempo pulsa dentro de mim como o rio dentro do mar virando mar(e) sia eu sou essa poesia acabada e sem fim sem fim e ultrapassada antes que eu queira o fim eu sou essa poesia inóspita habitante do tempo as palavras são arcadas dentárias da boca da noite eu sou apenas o tempo 855 eu sou apenas um templo eu sou apenas o ido nada por vir não, nada por acontecer, é muito sou apenas o tempo pulsado pulso tempo pulso lento pulso vento pulso tanto pulso pronto pulso leve pulso sério pulso eu pulso seu pulso meu 856 eu procuro o tempo entre o sinal aberto e o acelerador do carro pedindo passagem para algo além do paradeiro o tempo é o movimento e sem ele as coisas pairam num intervalo entre ser e não-ser entre viver e não-viver o tempo é uma pulsação lenta ou rápida mas é uma pulsação bela pulsação em mim sinto pulso eu pulso o tempo de todo o mundo no pulso do meu tempo dentro de mim e fora de mim não há outro tempo o tempo é único o mais subjetivo fenômeno do humano ser não há como traduzir não há como catalogar há apenas indício de descontinuidade de continuidade de longevidade de curta duração de breves notas pulsadas o prazer 857 esse intervalo entre o desprazer depois e algo sem palavras durante a frase EU TE AMO dita com significado de alma de pura alma que tempo é esse? o prazer do prazer do peso da amada o prazer do prazer do vazio do dia seguinte os corpos e suas sensações de vazio de tempo onde estava o tempo no momento do sexo pleno? não sei onde estava eu quando amei de fato era eu mesmo ou outro tempo se fazendo? não sei... apenas me lembro de uma pulsação nobre entre o presente e o futuro o futuro é pleno quando amado e quando amando a vida é junta e junta são dois pulsos em tempos feitos são vibrações de tic tac unidas numa eternidade bestial eu sou fraco quando lembro do tempo do prazer dado e escorrido e passado eu sou fraco mas eterno quando do tempo faço memória e palavra a dor nego o tempo da dor eu quero esquecer o tempo da dor 858 mas ele insiste em ser ausência de tempo de prazer há no tempo uma mistura de dois pólos a polaridade do tempo é o rosto do tempo a máscara teatral do tempo em dois momentos a dor e o prazer eu não suporto o tempo da dor eu não gosto do tempo da dor eu abomino o tempo da dor qual dor doeu mais? a dor da morte ou do desamor... tão parecidas! a dor da perda é tempo de solidão e solidão é tempo perdido mas tempo perdido é prazer do reencontro há tantas contradições no tempo e na dor por dentro desse tempo eu me dou a saudade a eterna fome de ingestão da presença quantas dores eu senti no tempo do afastamento mas o tempo ensina na saudade a lição professor tempo ensina a lição na vida parece cômico a visão do tempo abstrato 859 sendo um professor do fato o fato é apenas fato contra eles não há argumentos apenas tempo eles se fazem no tempo e o tempo é o fato todo eu quero não ler para saber da dor eu preciso fugir para o não-tempo o não-tempo é não-dor é prazer maior é amor no amor eu sou não-dor no amor eu sou apenas todo tolo no amor o tempo para não sei se para ou se altera-se em seu fundamento mas algo de inovador acontece e aí me percebo fora do tempo normal um outro tempo pulsa marginal feito padrão não-identificado 860 a correnteza da existência flui devagar o prazer aumenta a pressão de existir se extingue o mundo não reprime o mundo é condição de possibilidade (no amor) (um grande intervalo de tempo) no amor o prazer é condicionamento de felicidade no amor sei que o tempo é outro o tempo se desfigura se altera na forma o tempo se apresenta de outro modo a lentidão do mundo em câmara lenta esse slowmotion me faz tão bem porque no amor o tempo pulsa ritmada com os transcendentais o céu o infinito o harmonioso o absoluto o eterno o indizível o absolutamente humano e divino casados em pulso único 861 no amor sei que saber é nada que o prazer é tudo e que esquecer-se de si é cair nos braços de outro ser totalmente enlaçado numa ligação justificadora de estar-no-mundo no amor eu sei que sou outro no amor eu sei que faço coisas que não faria em tempo comum no amor eu sofro porque gosto e gosto para evitar a dor no amor a polaridade dos corpos é imã que coliga num destino comum e até as palavras os versos o poema são apenas conjunções bestiais de um sentimento de tempo outro embriagado de outro o outro é o prazer do amor o outro é prazer sem espaço de dor o outro é junto e junto é destino de prazer a dois mas da natureza sei tão pouco há um tempo na natureza que sou eu pensando a própria natureza em mim e fora de mim juntos 862 eu sei pouco da natureza queria saber o tempo pulsando dentro dela mas sou apenas eu mesmo pensando dentro o que fora está tão belo procuro o intervalo entre o movimento original do vento e os cabelos acenando tempo para quem vê meu rosto o vento impulsionado por forças sobrenaturais fazendo dos cabelos um cacho de tempo partido procuro o tempo entre a semente germinando e o tempo do fruto caindo da árvore e os pássaros pousando freneticamente entre os galhos para saber das sementes para saber dos frutos para saber dos ventos migratórios ventos que levam e trazem asas perfeitas voando em busca de tempos melhores a natureza sabe do melhor tempo eu confundo ainda velho o tempo certo o certeiro tempo de parar para pensar de pensar para parar de parar apenas por parar 863 estagnação a natureza reconhece as leis do universo mais que eu racional que sou passo horas diante do tempo para saber se há tempo e nada me diz do tempo senão a natureza inteiramente tempo de ser si mesma eu sei da natureza tão pouco por isso ouço os sons pulsando o tempo dentro de si em cada ser vivo o tempo é vida em cada ser e ser é muito na natureza de competição pela sobrevivência quem viverá mais? eu ou a natureza? o eu ou o tempo? o tempo existe mais que eu mesmo fora de mim em outro? o tempo está fora do mundo ou preso às rédeas da loucura? o tempo é a natureza não tenho dúvida sei apenas que a dúvida é tempo perdido as aves não perdem tempo os bichos não perdem tempo e mesmo quando deitados é para economizar o tempo 864 para viver mais os vírus não perdem tempo as bactérias não perdem tempo e mesmo quando vagarosas é para não matar seu hospedeiro eu sei do tempo da natureza fora de mim mas dentro sou vazio eu sei do tempo ali fora mas em mim pulso tempo outro difuso confuso absurdo taciturno eu queria um tempo para ser fora de meu tempo mas não posso: para existir preciso de espaço-tempo não se separam espaço-tempo não se separam passado-presente futuro futuro futuro haverá futuro? o futuro na natureza é um poço sem fundo leis leis leis o futuro é uma lei 865 de sobrevivência morte eu procuro o tempo entre a arma e a morte chegando ao corpo alheio o disparo rápido em lentidão feito o rápido é o tempo não visto todo tempo é lento pois é vasto eu sou tão miúdo que sei nada do tempo a morte é um tempo oculto desfolhamento na árvore corpo frio dos bichos asas frias das borboletas a morte é tempo secreto de espírito vivo mesmo corpo morto ou de morto morto e vozes em volta absurdo sentir-se sem corpo e vivo mas o absurdo é o outro lado do tempo eu sei que a morte não existe é apenas um chiste do tempo eu sei que o tempo sobrevive mesmo dentro de mim na alma e fora do cérebro por dentro eu sei que a morte não interrompe nada 866 apenas acrescenta silêncio às palavras no passado para sempre cimentadas eu sei que o tempo da morte é breve e longo é o tempo para quem fica por que fica a ver o outro sem voz sem reação sem sensibilidade na morte o tempo despulsa expulso para outra dimensão de outro tempo vago para quem vai admirável para quem fica na morte o corpo explode mas a alma implode outra pulsação novo ar no pulmão novo mar outro calçadão eu sei da morte na natureza e dentro de mim mas quero da morte apenas outro pulso outro tempo sou descobridor sou explorador eu quero outro pulso outro tempo 867 as imagens humanas são breves como a folha da árvore nascendo crescendo caindo destelhando ou ainda como o muro novo deixando-se cair com a chuva com o sol com as estações pixações entre a alma e o corpo há um muro um alto muro chamado tempo a natureza levou nove meses de gestação para me fazer pronto para a vida orgânica e no parto a lágrima da maternidade caiu por causa da dor do tempo novo saindo o tempo novo é sempre bem vindo o recém nascido é apenas outro tempo a começar outra história outra lendária existência eu procuro os tempos vários que formam o mundo (os tempos que vários formam o mundo) os tempos vários formam o mundo eu sei dessa deformação eu sei dessa formação eu sei de algum tempo pulsando em mim no aqui e agora 868 O TEMPO NÃO ACABA, APENAS MUDA o tempo nunca acaba desloca-se dentro de si mesmo para outras coisas menos perceptíveis que ali já estavam o tempo nunca acaba ele rola de uma geração para outra geração a fim de conviver com todos os seres em todas as eras o tempo não acaba ele modifica o mundo para se inserir novamente como o tempo de alteração o tempo não acaba ele envelhece os novos e dos novos faz mortos para renascer renovado e começar novamente em mentes novas o tempo não acaba o tempo renova o mundo os seres 869 a si mesmo o mais mutante dos universais o mais consistente dos ancestrais o tempo é definitivamente ele mesmo ele mesmo ele mesmo não se procura se basta GRÃO DE TEMPO / 2010 GRÃO DE TEMPO os grãos de terra rolam ladeira abaixo o fim da terra solta é o rio levando para o oceano absoluto oceano o resto da construção das ruas das avenidas do casarão os grãos de terra deixam o alto da cidade se integram ao fundo do córrego desde novo dando no oceano como os portugueses desde sempre ligados pela estrada real à opressão total da colonização 870 TEMPO demora quanto tempo dia mês ano estão em uma hora? DESCARTÁVEIS enquanto eu fico parado o mundo gira enquanto o encanto cessa o infinito eu passo horas dias meses anos enquanto eu fico atado ao seu mundo enquanto o desencanto cresce ao limite eu falo palavras frases verbos adjetivos enquanto eu fico chateado o mundo continua o ciclo rápido o giro perfeito dos descartáveis 871 MÚLTIPLO TEMPO o múltiplo tempo de cada ser da lesma correndo na folha do gavião coçando as penas da coruja pensando filosofia há tempos tantos espalhados não posso juntar seus pedaços a fragilidade é o conjunto deixa o tempo de cada ser ser apenas um tempo SÓ eu queria apenas desatar os nós tão sabiamente enovelados pela vida só sei que o nó dói mais quando fico só o nó dobrado é nó apertado do estar só CALÇADÃO o calçadão da praia segue seu ritmo uns caminham para si mesmos outros procuram um olhar aquele mesmo que signifique amor no calçadão há uma estrutura de vida um tempo diverso do tempo da praia no calçadão a diversão é ver e sempre, acima de tudo, ser visto [mesmo que por si mesmo ali] 872 VAGA a chuva cai caio vou escorro em ai saio sou a chuva é apenas é é eu não sou não sou ou sou não sei se chovo não sou a chuva sei que sou ou não sei se caio PASSO passo pelo rosto as mãos o tempo está dentro da face oculta do dia inteiro feito eu agora o corpo pede apenas um banho o tempo está no corpo afora explícito no seu cheiro feito eu afora 873 SEMPRE o pingo de chuva o canto da ave o sopro do vento sonoridade a tarde se perde entre som água a tarde me prende dentro tempo sempre MUNDO CHÃO debaixo da sola do sapato o mundo é nada poeira do chão debaixo da sola da sandália o mundo é pouco sentido que não LEQUE DO ABSOLUTO o mar quando espalha em onda na praia abre um leque de água na areia o mar dá opções como a vida molhar se dentro secar se fora não é possível ficar incólume diante do tambor marítimo chamando para o ritual sagrado banhar-se no mar 874 refazer a vida o destino rio jordão sou eu agora batizado quero andar sobre as águas do mar para entender de um outro ponto de vista o leque do absoluto VIDA a vida se reserva ao direito de ser ela inteira dentro de si e ponto final a vida não detesta nem ama apenas ensina o que tiver que ser e sempre é a vida não é plena é apenas aresta de teia longa retecida a vida não é pouca é em si talvez oca cheia de verbos ecoada a vida é apenas o pouco o muito dado DUNA os grãos de areia nas dunas são tantos tempos geológicos varridos dia e noite na formação do deserto 875 EXPECTATIVA dar tempo ao tempo esperar que o vento sopre por dentro da fruta dar tempo ao vento aguardar que o tempo passe por fora do fruto AMOR, SIM o amor ah o amor está ainda em mim e rola pelo chão da cidade o amor pois bem o amor está pleno longe do fim e brota no dom da idade o amor se mistura ao cotidiano frágil ágil o amor me censura se cotidiano mutante antes o amor está o amor se dá do nascer ao pôr-do-sol 876 PREGUIÇA sonho leve longe breve sonho deve longe leve sonho agora refaz vida MEMÓRIA ainda me vejo parado no tempo ainda contemplo o momento do amor aquele momento ótimo onde o vento passa tão perfumado que marca a memória eu sei das horas passadas ao seu lado e das noites dormidas em sono comum acho mesmo que os sonhos eram os mesmos para que o amor pudesse ser imortal eu me lembro do primeiro beijo não esqueci a primeira música e como poderia esquecer-me da carta a mais amorosa carta de amor escrita não eu sei que não foi apenas uma ilusão o tempo destruiu as comportas da alma eu sei que não foi apenas bestial sentimento algo em mim não sou eu mesmo eu sei 877 mudamos e o tempo mudou-nos o tempo dançou a sua valsa em torno e seduzidos pelo som da orquestra esquecemos de renovar o repertório o tempo passou muito rápido já não sei se lhe amo já não sei não sei PENSAMENTO por debaixo do chão havia escondido um sentido para além do meu umbigo nasceu hoje entre a tarde e a noite uma revelação como açoite por entre a nuvem e a lua havia aparecido uma palavra muita densa para ser entendida hoje eu vi uma chuva de significados fortes cortando o céu de sul ao norte há palavra bela por toda a face terna e no fundo da terra há palavra cova entre as fases da lua que velha ou nova na flor se renova há palavra plena entre o vento e o tempo se faço pensamento 878 CON[VERSAÇÃO] se o vento do poema sopra belo como o firmamento eterno eu me dou um tempo singelo para ser apenas verbo se a hora soa nos quatro ventos o sentimento expulso velo entre palavras e o desejo sei o poema me encontrou frágil o poema me escolhe como parceiro de um tempo de outro olhar dado o tempo se casa comigo e o verbo se engata nos trilhos da emoção o poema sabe de mim como o tempo rouba em mim o verbo do verso TEMA entre as pernas da tarde sopra o vento do dia de verão longo como futuro do subjuntivo entre as tetas da noite deleita o tempo de vida feita em verões como quem paga para ver e vê entre mim e a vida eu me ponho sutil o dia é longo e vário variação sobre o mesmo tema 879 PERECÍVEL descartável a hora sem o futuro mesmo prisão do tempo descartável sou eu sem a loucura mesma paixão do sempre descartável a música sem a doçura mesmo afinação do ente descartável o momento é apenas perecível RESTA O ROSTO o rosto me arrasta dentro de si o espelho me vê e sou outro outro tanto variado da forma e do conteúdo nunca quis a idade apenas novidade nunca quis o tempo apenas a eternidade o rosto me mostra por fora sei que assim não sou por dentro o tempo é um modificador atento me faz acreditar que minto muito 880 FUGA das coisas que passam fica um pouco do vago a imagem repassada deixa um tolo sem ego das coisas que bastam fica o todo do laço a figura mascarada mostra o logo do dado do que se vai pouco atrai deixa ir fugir VENTO o vento é filho do ar quente do ar frio em luta na atmosfera o ar se move originado pelos opostos o vento é filho do caótico girando nos trópicos 881 na hora da chuva o ar se comove as árvores reviram suas emoções o vento é filho da dialética [mas quem criou os contrários?] TEMPESTADE a tempestade no fim de tarde revirou o ponto de vista eu que era apenas interior abri a janela para ver a paisagem a natureza modifica o ponto de vista nova janela se abre aos olhos a natureza sempre altera nós, os artificiais CACO DO TEMPORAL poeira cósmica na sola do pé de onde viemos para onde vamos porque aqui permanecemos poeira cômica da eternidade na sola da vida de quem é ou de quem passa o tempo o único que merecemos poeira universal caco do temporal 882 TRAVESTI ele é outra pessoa fora querendo ser o de dentro o de dentro quando sai é resultado estranho a roupa a voz o jeito revela outra pessoa fora com desejo de ser o de dentro enclausurado LUZ a luz da noite revela o dia eterno a luz da fábrica desperta o sono terno a luz do sol esconde a estrela bela a luz dos olhos acerta no alvo tela a luz foi feita num dia de treva início das eras 883 HUMANO MUNDO o mundo o artefato de sentidos espalhados em vidas em nomes sobrenomes e identidades em retratos três por quatro em documentos em vozes diversas elevando-se na multidão eu vejo o mundo estando nele e dele sinto a existência transcorrer em antenas parabólicas em tentativas de sintonização com o todo mas o todo não existe o mundo é fragmento pedaços cacos restos de outros dias passados o mundo é sempre jovem e renascido pois basta apenas palavra nova para significado sempre renovado para ser sempre o mundo o mundo de carros estradas aviões e ônibus espacial especiarias conduziram encontros de mundos a rota da seda foi uma estrada para a novidade rara de mundos de marco pólo mundos de europa e oriente sempre o diferente somos mundos alheios até a palavra revelar quem somos por dentro há tempo outro no tempo fora há tempo todo dentro fora é apenas o mundo o belo mundo nosso redes virtuais em torno da palavra do ser e do ente e da filosofia de vida o mundo não se restringe amplia-se o mundo não se capta é a captação as coisas a extensão a finitude a multiplicidade a opacidade o característico o fugidio o vazio o mundo é também uma angústia eterna 884 dessas de acordar cedo e ter de se vestir do nome do tipo sanguíneo da fala do gênero do idioma de si mesmo eu queria perder meu mundo durante o sono os mundos parecem não sonhar nem sono parece ter o mundo lá fora se fosse dormir o travesseiro seria apenas a modificação o mundo não é alterado o tempo todo antes permanece intacto em suas estruturas pesadas como as curvas de niemeyer precisam de profundidade para sustentar-se o mundo esse é o artefato o grande artefato do homem deus não está nas coisas do mundo nem poderia: ele deixou o mundo para o mundano o mundano somos nós o nós que o censo demográfico conta de tempos em tempos nós somos corpos apenas corpos significativos sentidos desprotegidos se hão houver sempre o mundo o mundo é o humano o mundo é o humano o mundo é o humano 885 FABER o que fica? nada fica tudo move chove o que passa? nada passa tudo arquiva espaço-nave o que será? nada será tudo está por fazer o que somos? nada fomos apenas homem homo faber CORAÇÃO PERMANENTE o coração antes de ser órgão é o local onde eu me faço amor o coração antes de ser frágil é o mais forte dentro do espaço fácil o coração antes de ser sofredor é o mais verdadeiro eu acho diante da dor o coração antes de ser volátil é o mais constante em mim batida ágil 886 o coração antes de ser órgão é o endereço do eterno seja o que for amor OOOPS! surpresa abrir os olhos a vida como mesa banquete servir os molhos do dia como festa PALAVRA a palavra roda ônibus e fala a palavra cola tinta e folha a palavra esconde silêncio do homem a palavra revela cai de pára-quedas a palavra abre alas abre alas a palavra 887 NINHO o ninho cabe vários corpos e o vôo também lá habita para uns é realidade e alimento para outros é questão de tempo o ninho fica no alto da árvore e defende uma família grande de pai e mãe e filhos pequenos em pouco tempo será ninho somente SONHO o sonho me permite ir longe em desejo em outros lugares em outras vidas o sonho me deixa leve passo a noite em cenas várias quando acordo sou apenas eu mesmo o sonho é um convite para a fuga de mim para outros de outros para mim é sempre divertido LIVRO o livro na estante me vê são olhos gigantes são vozes altas frases tantas 888 de lá ele me pede o olhar a leitura de quem se faz só diante do tempo da hora eu se preciso pego na obra os arcos do entendimento se curvam diante das letras os lagos nos olhos inundam as retinas de sentidos o livro na estante me dá de si o todo a mim o necessário INVERNO/VERÃO quando venho no inverno a poeira vermelha da estrada quando venho no verão a lama vermelha e serração quando no inverno seco e azul quando no verão fresco e nublado eu vou e venho a estrada é o desenho o grande desenho na linha do mapa 889 CÉU o céu de olhos fechados chove de olhos abertos azul com ave QUARTO DE POUSADA eu num quarto padre rolim nomeia o espaço dele o patrono logo ele padre torto dele o nome logo ele inconfidente fugido eu num quarto histórias várias eu num ato vitória cara dormir o tempo acordar saudade 890 VAGA MEMÓRIA vejo-me aí sabe como um pouco tudo e tudo muito vazio é assim: um som traz a dor se esparrama pelo sepulcro caiado de tantas vidas existidas neste sonho quase pesadelo velo o medo inconsútil de decidir esse frio na barriga sou eu essa dor na espinha sou eu esse ser-não-ser sou eu e é vaga a memória da pele afoga a ternura do ontem em minutos de congestão emocional preciso voltar daí, sabe como atar-me ontem com hoje ser-me novamente o mesmo mas mesmo é sempre muito do medo... PORTUGAL vou-me antes de partir na imaginação ofegante no contorcionismo da pré-imagem passando slides de não vivência cumpro o ritual de sonhar pisar o chão de além mar mar além da alma quero voltar sóbrio de lá mas encantado pela sombra de outro continente sob meus pés 891 35 faz um ano faz talvez quatro eu me fiz quatro anos somente para mim foram quatro anos cheios de pequenos períodos longos imensos foram quatro anos repletos de uma intensidade verbal interna eterna não sei se fui em mesmo lá trás que fiz isso que chamam amor nem posso dizer que ontem fui eu a jurar amor eterno faz um ano talvez eu não sei... aqueles sonhos ainda existem agarrados aos calendários da parede? meu deus, as horas voaram pelas janelas e acho que você foi junto... quatro anos! assim não posso me perceber olhando os objetos fixos rígidos objetos sobre os moeis fixos sobre o tempo fixo da imobilidade eu me mudo tanto por dentro que por fora parece uma miragem mas sou eu mesmo contando as horas sepultadas em seu entorno faz um ano talvez quatro nem sei se muito ficou o quê, mesmo? 892 SENTIDO deixa eu de lado dormindo para acordar de frente para a vida me revire por dentro para desvirar por fora abro a boca da noite para cantar o coração partido PEDRA em volta o pensamento dá voltas espirais caracóis túneis em volta o pensamento dá notas aos sons aos tons aos dons o pensamento sai de mim e volta e volta frio quente puro impuro passeia pela vida e recolhe do dia a sensação a emoção a estação o pensamento me faz inteiro por fora pequeno por dentro intenso na vida o pensamento me traz as vidas da vida as ruas da vila pedras rolantes do tempo 893 BOMBA eu vou provocar uma catástrofe com meus sons internos eles depredam muros picham personalidades riem da realidade eu vou provocar uma hecatombe com minhas palavras elas vão cheias calor aos ouvidos de quem não está preparado eu vou provocar um desastre com meus atropelos eles se dão de dia de noite de sempre e me perco da rota eu vou procurar a cura em algum lugar longe de toda provocação CORREIOS inverno é frio na pele e som na alma fondue na mesa e amor na cama vou remeter uma carta bomba por sedex para desfazer os erros de uma entrega total ÍMPAR olho no olho me vejo aceso sol no fim do dia seus olhos no meu corpo sou por do sol por de mim por de ti é por isso que amo: vivo percebendo. olho o que olho por que acredito no terceiro olho que fundo dois olhares em algo mais holístico que dois planos que haja três três três porque assim se faz a vida: de ímpar pluralidade 894 olho por olho dente por dente vida por vida quanto mais vivo mais admiro as cores de cada manha quando a intuição brilha num ponto entre os dois olhos físicos minha alma me diz: veja para além de si mesmo (ao amar sinto que um novo olhar me funde com toda a realidade cósmica de cada momento) PARA DEPOIS vou me perder na próxima esquina essa já foi vou me romper na próxima estação essa já foi vou me corrigir na próxima encarnação essa já foi INOVAÇÃO prefiro olhar com olhos de dentro para que o fora seja sempre essa mistura de mim e de todo o universo pois melancolia não cabe quando o universo e a mente se cruzam e novas realidades se fazem tão profusamente que se fazem novas e novas ondas e partículas e por isso vejo o que vejo para me ver vendo o olhado sempre e eternamente para olhar o visto não quero fechar os olhos de dentro para ampliar os olhos de fora por que fora e dentro são realidades idênticas uma voltada para o outro e outra para o outro que sou eu vário a cada nova reconstrução não paro no sinal da vida que a vida mande novas mensagens psiquicamente graváveis para virar memória de um olhar sempre em inovação 895 SURPRESA a vida não surpresa é o que vivo agora sem medo de ser existência sem medo de ser apenas vida a vida não suspeita é o que sinto agora florida como jardim em inverno no serro do frio eterno na alma bem como gavião pousado na torre do cruzeiro olhando do alto mais alto de toda altitude de minha infância o mundo lá em baixo e aos poucos eu dentro dele colado ideoplasmado criptografado jungido a cada ato do outro dos outros da teia de relações da alma eu me sinto sobrevoando o ato e de cada fato retirando a lição própria do silêncio que ao final quer significar nada mais nada menos aprendizado saber calar-se saber ouvir as batidas da vida no oco da mente é lição de maturidade lição de jovialidade para quem nunca envelhece porque se renova a cada sobrevôo sobre os atos e os fatos a vida me é dada de maneira tão corriqueira que vegeto às vezes e de vegetação rasteira me faço mas não me iludo a vida é feita para as alturas dos vôos dos céus dos arranhacéus de cada asa composta de cada sonho brotada sim a vida é para os sem medo de altura sem medo de ternura sem medo de experimentar a vida é assim mesmo um grande laboratório de árvores envelhecendo a vida se faz pelo tempo cada tempo cada sentimento registrando arrastando uma caneta sobre a superfície lisa do tempo eu me marco no chão da vida para me fazer história e você o que tem feito com as marcas que o bisturi da eternidade jamais poderá arrancar eu me pego pensando e sentindo a vida por que só me posso pensar dentro dela e preenchido por cada espaço vazio de mim mesmo 896 ETAPA de frente para tuas portas me abri em várias formas flor de lótus no pântano de cada vida por baixo podre sim, havia ali entre teus quintais infernais um deus cego o ego de cada um derretendo as pedras de cada tempo nunca me detive na contemplação das horas que esfogueavam de teus relógios daqueles relógios bem colocados no pulso tic-tac da alma devolva minha alma eu preciso prosseguir entre as novas palmeiras não aquelas de tempestades imensas vistas do botavira preciso retornar para dentro para reinventar o meu mundo afora me devolva o voucher de cada tempo perdido como escamas do piau apanhado no rio fui tantos tempos ido e agora preciso de tantos tempos para ir novamente em paz devolva-me o sabor da infância para inspirar a reforma predial do entendimento essa chuva que me revira retira do telhado as passagens do ontem deslocando-me no teu tempo me vejo amparado por mãos familiares subindo descendo me dando me pedindo estou aqui agora dizendo -deixa-me ser sem teu tempo de portas abertas deixe-me fechar uma etapa! ENTRE entre uma música e outra eu me faço outro porque não sei deve ser essa nota nova a cada forma tempo-espaço 897 entre um feijão cozinhando e arroz torrando em me vario porque não sei deve ser esse sabor novo a cada desejo satisfeito entre uma notícia velha e a mesma notícia refeita eu me revisito porque não sei deve ser essa mania de novidade em cada célula entre um livro e um e-mail eu me releio porque não sei são muitas histórias para se contar numa vida ESVAZIAMENTO a nuvem em cima do jardim novo florido verdejante arrumado me fala o sol sobre todas as cabeças da terra amarelinho quentinho bom me fala só não me falam as palavras cheias de silêncios em cada sílaba só não me falam os vazios da arquitetura humana de cada dia o jardim floresce o sol brilha a palavra emudece a razão o vazio é cheio de sentido 898 CONSUMO eu imagem eu notícia eu quatro portas eu dinheiro eu a todo vapor ou a seco (compre) eu rótulo eu etiqueta eu promoção eu financiamento eu a todo calor ou ar condicionado (ligue) eu mensagem eu mala direta eu desconto eu faixa com telefone eu de todo dia ou comprador agora(invista) CLIMA INTERIOR nas pedras do rio eu rio nas pedras do chão eu brilho nas sombras das casas eu sonho ser apenas realidade na chuva da serra eu subo o nível na chuva inesperada eu tromba d’água nas águas correntes da vida eu sonho ser apenas tempestade 899 nos olhos do furacão eu rodopio (a mente é furiosa) no vento de cada dia eu me esfrio por dentro no alto do pico eu me faço acima do mar quero apenas controlar meu clima interior FIO as células sabem do tempo mas eu que tenho células pelo corpo e dentro delas moléculas não sei do tempo e vazio fico olhando o ponteiro do relógio que tic-tac me leva não, ele não me leva sou eu que me levo de leve e livremente dentro do tempo que pulsa ardendo em cada célula que morre e renasce nos pés ao último fio de cabelo 900 CORAÇÃO PARTIDO partido coração me leve para dentro da vida me traga para dentro da rota da felicidade partido coração me faça mais real me parta mas igualmente entre mim e mim mesmo partido coração me leve no barco me deixe ao encargo da obra de ser eu arquiteto o tempo TRÂNSITO do alto da cidade na mente apenas carros mão farol contramão lanterna vermelha transito pelo trânsito DESEJO olho no olho boca na boca semente broto do desejo 901 PAPAGAIO paralelo paralelepípedo epíteto e elo papagaio papa-légua régua e galho parafuso paracetamol amor e uso CERCA: PROPRIEDADE INTERIOR há cerca de todos os tipos por dentro dela se prendem galinha galo vaca boi mula burro pato pata marreco marreca há cerca de vários formatos arame farpado é muito comum quando subo a serra do cipó o arame me acompanha pela estrada e os bichos lá dentro estão felizes mais que eu que estou solto pelo mundo 902 há também cerca galvanizada de um arame que não corta apenas prende e separa quem está dentro quem está fora até mesmo na estrada eu sei que há um limite entre as propriedades em minas gerais há fazendas grandes e pequenas latifúndios e sítios mas sem a cerca nada seriam a cerca é o certificado nítido e claro e óbvio da propriedade como se a cerca trouxesse em si o lembrete exato afaste-se! eu sou o dono! há cerca impedindo o gado de chegar até outra parte do pasto o manejo é cuidadoso não há liberdade alguma tudo é vigiado por isso certas cercas confluem em mata-burros para evitar que os bichos entrem e saiam quando quiserem 903 as cercas se espalham pela serra do cipó e se podem ver placas com alertas PROPRIEDADE PARTICULAR NÃO ENTRE mas se eu entrar terei sido comprado como o gado que pasta na forragem eu terei virado bicho a liberdade é fora da cerca ou pelo menos é a possibilidade de viver fora dela os arames são atrelados aos paus de madeira para não saírem por aí como linhas de papagaio pelo céu azul da serra puxadas pelas mãos dos meninos sonhadores ou permitindo que poetas escrevam em linhas tortas do tempo a poesia bela fluida no passeio pela alta montanha há dentro das cercas uma comunidade pode ser rural ou apenas de passeio de subsistência ou apenas de meia até mesmo os grãos produzidos ali estão cercados para sempre e têm sempre um dono que se diz o proprietário as cercas podem ser quadradas retangulares ou mesmo e essa predomina ali 904 arredondadas como se um compasso passasse no chão do planeta dando a cada um porção de terra mas sei que a fragmentação das terras é resultado das partilhas centenárias feitas desde os portugueses há mais de trezentos anos as cercas não choram nem sorriem estão estacionadas à mercê do tempo não produzem outras cercas não conversam entre si pelo contrário as cercas são sempre sérias e fleumáticas e nunca permitem que se passem por dentro de si sem fazer com o corpo uma inclinação como que para uma majestade as cercas reinam absolutas na terra dos homens e dividem a humanidade por todos os lados os de dentro e os de fora os produtores e os consumidores os pobres e ricos os vivos e os mortos as plantas e as árvores há sempre uma divisão em cada cerca e a multiplicação das cercas é resultado do coração pequeno do homem 905 no coração não há cerca há muros quais fortalezas no coração não há perda há sentimentos pastando em tempo eterno de tantas vidas de vidas tantas no coração não cabe a placa de proprietário eterno tudo passa é a existência que deixa sua marca como o rio que não tem cerca porque livre escorre pelo mundo levando sua vida a todos os cantos bem queriam os homens cercar os rios mas eles dão no absoluto o oceano eu vi a chuva caindo sobre a cerca e na frieza de suas estruturas pensei um pouco em mim e nas cercas da alma le van ta das preciso refazer a propriedade interior sou do mundo e do mundo eu sou 906 DO CASULO À BORBOLETA até que a borboleta surja do casulo o mundo girou diversas vezes e trouxe a primavera e levou o outono e trouxe a floração e levou as folhas mortas até que a borboleta sossegadamente apareça num mágico dia de sol depois da noite de luar é preciso que o tempo escorra na vida gerando filhos e fazendo-os morrer porque no tempo entre o casulo e a borboleta entre o abominável invólucro e a cor que paralisa os olhos há uma imensidade de pequenas obras acontecendo no mundo até que a borboleta resolva sair do útero as janelas terão se aberto e fechado trazendo para dentro de casa o calor do sol o frio do vento de julho e o beija-flor de rabo branco trazendo a notícia de boa sorte lá de longe de onde suas asas frágeis conseguem buscar a informação divina quem diria que entre o casulo e a borboleta o planeta iria girar centenas de vezes e os dias 907 verão as noites e as noites verão as madrugadas e as camas verão os corpos e serão abandonadas no dia seguinte já que os corpos humanos trabalham para seu sustento e para seu nervosismo diário não, a borboleta no casulo não pensa, nem sabe que sua demora agita ainda mais o mundo que bombas se fazem nos túneis da faixa de gaza que crianças perdem seus pais em guerras civis na áfrica na ásia ou no rio de janeiro se o farfalhar de suas asas faltam ao mundo o mundo escurece em fuligem bravia o mundo se deixa morrer sem cor e brilho mal sabe a borboleta dentro do casulo das horas de terror sem suas cores belas nem poderia imaginar que entre os intervalos de sua gestação a morte cavalga rápida entre vidas jovens entre jovens mulheres ah, se a morte tivesse uma borboleta para admirar pousada nas suas costas será que deixaria de aparecer nos telejornais? a borboleta dorme dentro do casulo e naquele escuro silencioso e mudo o milagre vai acontecendo como o tecer do fio do bicho-da-seda forte e o laço entre o nascimento e a vida se fortalece nas paredes da casa mãe 908 a borboleta bem poderia romper o casulo e deixar suas asas crescerem límpidas no cenário da floresta ou da cidade precisamos de sua cor para enfeitar a vida que passa des co lo ri da men te entre os grãos de tempo da existência vem, borboleta, espalhar um pouco de cor e vida ao mundo sem cor ao mundo onde a dor se mistura com o dia-a-dia até que a borboleta surja do casulo eu espero o milagre acreditando nele até que a borboleta transmute a vida eu aguardo o novo estado de um novo mundo mais fraterno mais colorido mais simplesmente humano 909 LIBERTAÇÃO a noite me entregou a manhã puramente sem nenhuma culpa puritanamente a noite me lavou por dentro igualmente e por fora me deu de volta o sorriso externamente a noite me libertou dos medos AUSÊNCIA outros lados da mesma vida não vejo sei que não consigo ver os vários lados da mesma vida é tarefa do absoluto que só ele sabe do todo do pleno da totalidade outros lados da mesma vida há sempre uma parcialidade no meu modo de ver de conduzir a mente diante do espelho que o outro me fornece outros lados tantos e muitos e múltiplos e eu múltiplo pouco sei do todo fazendo dele apenas uma constante forma de fugir para o transcendental outros lados da vida de quem vejo de quem percebo de quem me toca os sentidos do corpo eu sei que jamais poderei saber do todo jamais saberei do conjunto da obra a obra é vasta demais e perpassa vidas tantas múltiplos corpos e tantos tempos isso que dói os tempos dados a cada um de nós para sermos sempre parciais 910 sempre pequenos diante do absoluto como o rio diante do mar é apenas uma contribuição para o conjunto eu sou apenas um lado das vidas dos outros e dos outros sei apenas um lado o tempo é vastidão eu sou apenas uma pedra que se tornará grão e quando miúda saberá mais do absoluto que o concreto muro do absurdo espero me tornar apenas um grão de tempo pequeno por isso complexo mínimo por isso participante do todo espero me tornar um grão de tempo PONTEIRO o tempo não se acumula é apenas um em tudo em mim o tempo não engana é verdadeiro na face na vida o tempo não anula é realização está em tudo está no fim o tempo não abana é o vento no ponteiro no inteiro 911 GRÃO o mistério do grão é ser em todo um resto de razão o sacrilégio do pão é faltar à mesa mesmo pouco em grão o profético do grão é ser memória da poeira do chão MÃO DO TEMPO a mão sobre a cabeça ainda está pousada ela nunca sairá daí está atada ao passado o passado das lembranças das grandes e infinitas daquelas sem fim que deixam marcas o momento único eterno não apenas pela mão mas acima de tudo pela mão falando pelo coração 912 RE-TARDAR a tarde quando acaba morta feita bêbado de cidade pequena abandonada e sem jeito quase sem graça eu me volto para o interior é na tarde silenciada em noite me vejo parado diante do tempo o grande tempo que trago dentro um longo tempo meu e de mais ninguém a tarde se deixa jogada resignada e não insiste não clama diz nada não pode se furtar ao desejo de voltar ela sabe assim como o tempo que um dia [re]tardará TEMPO PAULINHO DA VIOLA Silêncio por favor, Enquanto esqueço um pouco a dor no peito. Paulinho da Viola a emoção da vida no corpo e do corpo com alma é assim um samba de paulinho da viola manso e calmo em fim de tarde a sutileza da vida passageira e do corpo-passado se fazendo é assim como um sambinha leve em caixa de fósforo de paulinho da viola o samba dele parece anunciar outro tempo na vida será verdade ou mentira? 913 O QUE PASSA debaixo da ponte passa a água limpa ou suja não pára debaixo dos pés gruda o pó de onde vem? ninguém saberá TEMPERATURA inútil pensar o tempo foge pelos ralos da realidade fútil falar o tempo arde na pele da sensibilidade LABIRINTO DO SONHO o labirinto das imagens perdidas entre vozes e situações absurdas que comovem o labirinto dos arquétipos misturados entre nós e vidas estranhas que lembro 914 a lembrança é frágil como o vento da noite na face é quase inexistente para quem dorme o sonho sempre o sonho CONVENÇÃO MUNDIAL o calendário amassado na parede ou no relógio folheado a ouro passa os dias um a um devagar sem perguntar se autorizo o calendário na agenda anual ou pior: permanente feita para lembrar o tempo convencional pula rápido entre o sol que nasce lua que se apaga o calendário me rouba a vida e eu me calo há uma convenção mundial contra mim GRÃO DE FÉ grão de café moído na hora como o tempo quando visto seja no papel ou na parede tem cheiro tem sabor tem vida grão de fé usada na morte como o tempo quando perdido seja na vida bestial ou heróica tem efeito tem cura tem sorte 915 MIRAGEM DE VIDA apesar de descer dos mundos desconhecidos apesar de contemporâneos somos estranhos apesar de querer-te a fundo descabido apesar de ser eu apaixonado somos inabitados eu não coube na tua vida tua vida muita sobrou na minha descer novamente novos mundos para conhecer-te no profundo ESTRELA DE AVIÃO no avião a lua estava próxima poderia tocar sua brancura do distante chão no avião as estrelas estavam perto como luzes na ponta da asa invadindo a imaginação dentro do avião as estrelas mais próximas que todo o real chão 916 TURBULÊNCIA no espaço sem chão não há rodas apenas avião a turbulência é o barulho dos 810 km/h rápidos sem chão SALIÊNCIA ar sem chão turbulência de avião ar com chão saliência desaceleração FALÉSIA gostaria de saber do tempo das falésias mas a miséria é muita elas subsistirão à minha procura pela tempo absoluto PRESSÃO o ouvido não ouve cheio de pressão explode em bolhas de congestão sinto a cabeça tonta dentro da aeronave apenas sei que lá fora há um ar puro 917 um ar puro feito o mundo sem pressão CINTO o cinto de segurança aperta no meio o corpo sente a mão visível de outro tentando paralisar o movimento contrário do acidente o cinto de segurança prende sinto muito TREM DE POUSO o trem de pouso não tem trilho segue a pista do aeroporto apenas suporta a todos a altura foi vencida MENINAS DE NATAL as meninas pobres do subúrbio correm uma atrás da outra e se escondem atrás das árvores o dia passa para elas normal para mim o dia é outro diferente de outro dia por isso me perco na singeleza da cena a brisa do mar as meninas a brincadeira algo de frágil no ar 918 TURISTA o turista em passeio não muda a vida de ninguém nem das árvores nem das praias nem dos rios nem dos pássaros o turista é apenas um passageiro rápido tão apressado que sua chegada é retorno em sete dias ou oito noites sempre eu, turista, não mudo suas vidas nem poderia para elas sou ninguém a vida vai continuar a mesma depois que eu for embora para longe o mar o mesmo absoluto as ondas as mesmas pra lá e pra cá SOL o sol nasce atrás da vegetação litorânea o mar avisa ao dia a chegada da renovação maré alta ou baixa peixes nas redes ou livres a ponta negra continua bela terminando nervosamente no morro do careca o sol está agora entre as últimas nuvens e seu rosto claro e alvo surge entre os galhos da última árvore no alto da montanha alta da mata atlântica eu sei que o dia será renovador e cheio de vida o sol anuncia uma vida nova sempre 919 FORTALEZA aquela estrela de cinco pontas no meio do mar é o forte dos reis magos dos magos da antiguidade mas os magos antigos sabiam da paz interior não se preparavam para a guerra nem para o sangue do inimigo aquele forte com paredes tão grossas em pedras tem uma capela bem no meio anunciando a terrível política estrangeira da cruz e da espada e da morte o forte é apenas o medo da invasão por todos os lados os homens ainda fazem guerra a guerra existe ainda no mundo fortes e fracos no mundo TAPIOCA tapioca com carne de sol e dentro da tapioca fechada em duas partes iguais o queijo derretido a moça da tapioca sorri alegre a carne tem sol dentro de si por isso uma luz interior surge diante da tapioca A MOÇA as moças do interior do rio grande do norte são sorridentes e falam como se houvesse diante de si uma pessoa sempre importante tratada com uma superioridade incrível 920 as moças comedoras de camarão ficam nas calçadas ou pelas ruas dentro das barracas ou mercados e têm os olhos puxados como os índios OUTRORA para o visitante a vida é outra passeios e alegria mas uma vida real prossegue dura e sem graça sinto no ar um outro mundo diverso do meu sinto no mar uma outra onda diversa da minha BUGGY DE NATAL as rodas traseiras gigantes sobem as dunas a areia é como gelatina no seu caminho não há caminho difícil a trilha é fácil deslizar lateralmente pelas dunas ou subir aceleradamente pelo atalho a emoção do deserto significa muito para quem sente um grande vazio o buggy acelera eu me perco na visão onírica e ao mesmo tempo cheia de realismo das dunas 921 SEVERO, O MOTORISTA severo dirige o buggy na praia sob a ponte nas dunas a fotografia é o registro da velocidade do deserto nas dunas MAGNATAS na praia de jacumã uma casa chamou a atenção aristocrática com seguranças e pessoas vazias tomando champanhe que se passava ali? não saberei jamais nem quero somos apenas os mesmos em tempos outros os magnatas das casas morrerão como os trabalhadores como as mulheres operárias como eu pequeno e cheio de prazer ESSE MAR esse mar em azul escuro distante como se captasse dentro de si em espelho o frescor da nuvem nascida no céu esse mar que próximo se enverdece em algas tantas enganando a retina azul como se uma mata invisível ali habitasse 922 esse mar que amo em tonalidades tantas no litoral do brasil feito encantamento de orixá em dia de lua cheia esse mar me devolve o melhor de mim nele sou apenas o pequeno ser aprendendo o mistério dos elementos no absoluto RESSACA MARINHA o que houve no fundo do mar na noite que passou em sonho? as algas e corais se despediram da vida marinha a praia se encheu de corpos mortos desprendendo seu último colorido sorriso CAJUEIRO vou estender meu neurônios numa praia de areia branca e de vez em quando terei uma ideia para gerar um fruto colorido o maior cajueiro do mundo sou eu quando penso PITANGA o potiguar comedor de camarão o rio potengi de camarão tanto a pitanga doce de sobremesa 923 CAJÁ as frutas do litoral são ácidas de um amarelo extremo de um vermelho extremo as frutas do litoral são pequenas de um tamanho mínimo de um encanto máximo as frutas confundem pelo nome pequi ou cajá? MENINA DO BALDINHO a menina de maria chiquinha brincava na praia seu biquíni amarelo sobre a pela branca de dois anos emoldurava a tarde em sua infantilidade ela sustentava a teoria de que poderia fazer uma piscina cabendo seu corpo minúsculo com a água do mar carregada num balde cor-de-rosa seus olhos grandes e negros e brilhantes não sufocavam a fantasia da brincadeira ela tão cheia de si diante do mar absoluto ela tão absoluta na sua fantasia desmedida ela imitando o mar em seu vai e vem trazendo para o mundo outras formas de som de volume de colorido ela ainda não sabe do tempo que o mar ensina a vida vai levar a fantasia como balde vai deixar muitas vezes as mãos vazias para depois com alegria encher novamente o mar é uma entidade pedagógica ensinando à menina a eterna menina que um dia sairá do tempo da fantasia 924 a lição do tempo e da onda da chuva e da semente um dia a menina de biquíni amarelo saberá do mundo agora com seu tempo insignificado até mesmo para ela ela não está nem aí para a filosofia ela não se preocupa com o tempo o tempo bate em ondas e vai continuar batendo VENDEDOR DE PEIXES o vendedor de peixes equilibra-os em feixes num pau percorre o calçadão sem dentes na boca oferece o fruto do mar GRÃO DE AREIA os grãos de areia cada um com seu tempo unidos nas palmas da minha mão ou roçando os pés na caminhada matinal os grãos de areia são tantos e cada um é si mesmo cada um tem sua cor própria e sua história de movimento que o mar sabe girar o tempo para fazer a alegria das pedras quantos tempos diferentes em cada grão estão enterrados na areia? na ilusão da areia concreta erigida em milhões de anos fragmentos unidos em tempos tantos 925 MAR ALTO o menino-tempo empina o sol ele surge como pipa atrás do morro do careca e faz do dia de sol mar que alegra LIGAÇÃO os destinos se cruzam na praia tempos em grãos sobre os pés [sempre a areia] como ela somos vários ligados pelo absoluto ACELERAÇÃO dentro do tempo o pior de tudo é a sensação de sua rapidez aceleração excessiva EQUILÍBRIO a mão do mar conduz o surfista na linha do seu corpo a onda o mar absoluto é dono de si e de todos que estão dentro ou sobre ele e o equilíbrio é característica do perfeito 926 TOLICE eu tenho dentro de mim o vazio o nada nadifica o mar é todo o mar pensa o todo sem etapas ou apenas me aparece assim – como sou tolo! FALÉSIA gostaria de saber do tempo das falésias mas a miséria é muita elas subsistirão à minha procura pela tempo absoluto MAIS QUE EU o mar paralisa se o cabelo alisa o mar assombra se o corpo sobra o mar agita se o eu gravita o mar ma habita mais que eu ele o mar de nada absolutamente nada necessita 927 VAZIO / 2010 O VAZIO É O OPOSTO DO CHEIO dentro de si num espaço aparente eu me dou o cheio e me dou o vazio não sei se há uma vazio por encher ou um cheio por esvaziar eu sou indeciso vou buscar nas letras do verbo cheio de ação e vazio de poesia o sentido vou provocar o vômito do certo cheio de erros por perto sem sen ti men to não me contentarei com o vazio esse pouco diante do pleno e cheio e imenso que pulsa forte dentro 928 o cheio ou o vazio serei eu prestes a cair novamente em poesia? o vazio ou o cheio quem está aqui dentro quando vem o receio? a vida é essa mistura do substancial o cheio e do vago e imemorial o sempre estarprestes-a-acontecer o destino o vazio da liberdade na alma essa alma terra e mar céu e inferno essa alma dividida entre bipar] [tida necessidade e desejo cheio e vazio quero encontrar o vazio se houver 929 e o cheio já disposto revisitar sei que a poesia é mínima vou encarar de frente o cheio essa lua completa no céu da boca esse vento invisível na pele e do vazio vou fazer apologia ele é necessário mais que a vida sem ele a vida não teria seu tempo no tempo entendo o vazio sem vazio não há liberdade sem vazio nada há o cheio e o vazio o arrepio antes do frio o pensamento antes da ação eu preciso do vazio mais que o cheio estou cheio de mim quero que o 930 vazio livremente me dê outro que vive em convento quero que ele venha livre por que único meu porque interior do vazio quero apenas mais que tudo dentro a novidade dela me faço o bem o bem que é o vazio feito realidade do vazio quero o todo o absoluto absorvendo dentro de si meu ser no final do verso cheio quero o vazio novo o novo é sempre livre o livre é sempre o c o vazio do todo no cheio tolo o vazio se faz memória no verso da história do tempo do agora ontem hoje amanhã eu me escorro na dinâmica dos poros do ser esse vazio chamado existência que se preenche em lacunas de 931 tempo o tempo que rouba do vazio sua liberdade na essência sou vazio ou cheio? o que é a vida ao seu fim: um cheio que se preencheu do vazio ou um vazio aberto depois de uma etapa de enchimento? o vazio é a necessidade da liberdade antes do ato o fato do tato eu era assim vazio quando livre agora preso sou cheio de amarras na alma me solte o tempo! me solte o absoluto e me abandone no vazio vago da onda quebrando sem som sem tom sem sorte a sorte é uma mera conjunção do vazio que não sabe para onde vai como eu que de tanto ato sou pouco livre para ser vazio novamente serei vazio novamente serei completamente vazio quando cheio dessa vida? que o vazio seja ele mesmo intenso intenso intenso ANTES DE SER QUALQUER COISA quando no tempo dos tempos ime mo riais perdido na fração quântica do ser em gestação na quantidade tanta do criador múltiplo dentro de seu pensamento vagando era eu vazio ou cheio? todo o destino já havia ali na gênese da minha origem da mais primitiva memória de mim criado para ser 932 era eu vazio ou cheio? se meu destino todo completo desenhado estava no livro das horas do tempo eu era eu mesmo ou o vazio? era eu vazio ou cheio? meu deus, quem me criou na distância do tempo eu eu se era eu o mesmo de agora me perco seu apenas que dentro de deus eu era um fragmento de destino um lapso do pouco que agora sou cheio do muito que estou eu era vazio mas de um outro outro tipo de vazio era o vazio do tempo ainda por passar o que dói saber que era puro o vazio original não é pecado nem ao menos pode ser salvação 933 salva-se no tempo e pré-criado como ser uma liberdade imortal? das asas do tempo primeiro aquele que passou sem registro do qual nada sei sobrou o vazio o vazio da origem como ausência na natureza sempre se é alguma coisa cheio de vida ou animado o que na prática ocupa espaço e espaço na natureza é vida ou morte que é cheia de vida que se foi o espírito se houve seu início em tempos imemoriais sei que esse tempo se tornou agora carne e na carne estou cheio de órgãos que dizem da minha constituição fí si ca é o corpo matéria perfurado de vazios tão grandiosos que são invisíveis aos olhos e os olhos se enchem de luz para enxergar o cheio enganando porque é vazio sei do corpo ocupando espaço 934 mas nem todo espaço é repleto de alguma coisa e alguma coisa nem sempre é o cheio se mostrando aos olhos da vida no corpo sei do cheio o ar nos pulmões o estômago inflado o intestino em ventos da vida sei do sangue entupindo artérias cheias de tanto líquido arrebentando em derrame doentio nos hospitais o cheio está ocupando todo o espaço da vida sei do início no útero vazio ou cheio quando ninguém dentro? da vida sei dos corpos na barriga da mãe vazia ou cheia depois do parto? da natureza sei que é cheia o vazio não cabe na vida mas sem o vazio que seria da fome? a fome a primordial necessidade é vazio de comida dentro do corpo ou a sensação de enfraquecimento depressão de vazio dos nutrientes 935 o corpo é cheio dele sei muito sou ele e ele me contem dentro do corpo e alma essa ligação absurda sei que um enche o outro mas o bom é o vazio o vazio da alma sem corpo vagando em madrugada nos braços do sonho que vem como consciência do vazio a alma esvaziada do corpo sem peso sem necessidades é livre e por isso sei profundamente que deus me criou livre por que vazio o cheio o estar cheio veio depois da necessidade de passar pela experiência do repleto que é enganação para compreender o vazio se deus cria cria para a dialética a oposição eterna entre diferentes vida e morte qual dos dois é mais cheio e 936 mais vazio? do tempo ido ido em tanto desgaste esse desgaste chamado idade o tempo cheio da vida pulsante eu sei que se foram vários calendários mas dos calendários nada sei é uma convenção que me deixa apenas sem saber se o que trago aqui dentro e´ de fato o real o farto o absolutamene pleno do vazio da vida sei tão pouco o que não foi o que não ocorreu o que deixou de ser o que não fui o que deixei de fazer o que foi obstáculo o que não se deu o beijo partido meio vazio meio cheio 937 a carta de amor pela metade meio cheia meio vazia mas vazia no final nunca ntregue o destino há? cheio desde o início o projeto de minha estrutura será que um dia a verei realizada? e desse projeto absoluto do absoluto pensando o finito serei eu algum momento autor ou mero ator a representar a cena? o destino cheio de ho ras de dias e de noites tris tes para delirar em fu tu ro a manhã vazia de so fri men to é que os dias passados são pesados e enfadonhos o dia seguinte vazio ainda 938 é sempre promessa justa o destino não existe? se existe até onde eu posso continuar nesse sofrimento triste? se é destino o cheio cheio desde o início não há vazio apenas um roteiro a cumprir o destino não sou eu estou de fora dele eu sei não posso atuar no cheio eu desejo o vazio como nunca desejei eu sei que o vazio sou eu partes a descobrir mesmo que sem graça a alegria é o cheio da tristeza tola os opostos não são necessários é apenas uma relação mental frágil e boba que não se resolve a alegria da vida não pode ser apenas o vazio da tristeza há algo mais espalhado 939 no sorriso dado a morte não é o oposto da vida que se passa é algo mais não sabido repleto de vazio o não realizado é o vazio? se vivo e não morro estou cheio ou prestes a novos vazios? onde estou agora meu coração onde ele está estou eu? não posso confirmar a dúvida é a segurança do destino estou tão cheio de mim de pensar o ontem e o futuro esse vácuo incessante incomoda muito o vazio não há para quem viveu eu vivi eu sei que vivi tanto enchendo de mim mesmo o vazio que outro será que dentro desse vazio que antes nada era já havia a previsão do agora cheio do hoje determinado pelo vazio? da vida passada o tempo me é o repleto 940 o completo o cheio a oposição é frágil a nada leva a não ser a certeza própria de quem vive há em tudo na vida no tempo nas pessoas nas coisas o vazio o vazio ultrapassa o tempo sobrevive às coisas sobrepõe às pessoas é a fissura da realidade não haveria o agora sem o vazio nem o amanhã já captado sem o o c o do tempo sei do vazio como possibilidade para o fato das coisas das pessoas e da natureza sei do vazio como realidade 941 ainda não completa por fazer escorrendo entre os d e d o s vazios entre si de carne completa o tempo é vago não vazio o tempo é dado esvaziado quando cheio emparedado será muro mudado o tempo é parceiro do vazio como o menino só sente frio o tempo é meio termo cheio e vazio eu gostaria de preencher as lacunas das horas o tempo é sempre por fazer o vazio ainda por fazer é apenas vazio e só o nada é no nada que sei do vazio não no tempo que é algo interior é no nada que esfrio a alma 942 o vazio não tem temperatura mas arde quando sofro no nada aprendo sobre o vazio do nada sai a voz anunciando é hora de criar a vida o nada é triste o vazio é absoluto no vazio eu sei do que existe a casa vazia tem pa re des por fora aos olhos o cheio por dentro o oco do es pa ço a ár vo re é cheia por fora não vejo sua seiva e se seca ela vazia morre o monumento na aparece do surge para praça vazio impressionar 943 os olhos tão contaminados vê de novo o na praça arvores às vezes cheios de olhar por cheios tantos cheio a constar o vazio é pouco preenchem o espaço com bustos sérios os bustos do tempo paralisados entre o tempo do ontem e a pretensa homenagem do agora os bustos nas praças são cheios não tem para onde ir não se movimentam estão parados eternamente não podem querer não estão optando não são apenas preenchem o vazio da praça mas não podem usufruir do vazio esse das almas livres das almas cheias de espaços ocos a menina de cabelos longos no colo da mãe ainda está feliz porque nos braços do tempo está cheia de vazios o vazio de quem nasce é alegre mais feliz e completo de quem já viveu 944 e sabe dos vazios completados na existência gostaria tanto de repassar a sensação desse frio do vazio na alma o tempo ainda puro sem pecado ou punição sei tão pouco desse vazio distante perdido entre as alamedas da memória não posso recordar do vazio desfeito quando se deu a ruptura eu eu não pensava sobre isso não registrei o que se passava mas passou e sinto que o vazio deixou de ser ali existente para ser esse cheio cheio de mim em mim aqui dentro poderei fugir? não posso fugir dos cheios agora trançados no meu interior é impossível sustentar-se agora 945 sem as peças cheias de sentido seria eu mesmo agora sem o vazio desfeito no tempo da existência? não! sei que não seria a surpresa vem desse fato de ser agora o pleno não tão amado mas eu mesmo eu sei da minha composição da minha bula eu sou o meu remédio no cheio de agora sem perspectiva de vazio eu me sustento apesar de cambaleantes as pernas entre os destinos de tantos amores a energia do vazio se foi o vazio é pleno de vitalidade ele sustenta invisivelmente por isso quando o perdi deixei de ser outros para ser esse identificado aqui identificado comigo mesmo 946 o desejo de vazio melancólico tão enfadonho que o destino parece ter sido escrito antes de mim e a liberdade teria sido apenas um tema de canções de amor ou de livros existencialista o vazio e o cheio minha carne é essa luta diária entre vida e morte posso me abandonar? o vazio diz: mereço crédito ainda farei grandes coisas em sua vida enfadonha posso me libertar do corpo? o cheio diz: quero ficar eu sem sua carne serei passado e voltarei ao vazio só posso ser pleno se vivo em sua carne serei vazio novamente se desfeito dessa ligação mas a alma dela me lembro 947 ela existe decerto ela é a sede do vazio e do corpo provisório deseja se libertar sem culpa para novos vazios em outros corpos e outros lugares distantes do tempo o tempo é frio demais para ser esperança o tempo é pouco por detrás da lembrança eu sei da minha lembrança cheia na memória é na memória que o cheio pulsa forte que abala a verdade a verdade nada mais é que o cheio falado se o vazio não houvesse 948 não haveria filosofia não, o cheio é falso provisório e im pró prio para a vida sim, o vazio é belo criador da beleza como ópio na mente do torturado o vazio é minha pele interna o cheio é o selo do medo o cheio o vazio eu no meio ou para ser exato eu dentro do tudo eu mesmo o dentro entro fico permaneço o fora ora deixo enlouqueço 949 DEPOIS DE SER TANTA COISA E DE AMAR a vida passa às vezes tão sombria às vezes tão sóbria às vezes tão sobra às vezes tão obra inacabada sou um pedreiro nessa construção diária e repleta desses vazios por dentro como um vão o vão da obra inacabada ou acabada em vazio o vazio perdido planta sobre a mesa cheio de projetos de ocupação na tarde quando sopra um vento estranhoa vida se dá tão cheia de compromissose omisso me retiro para dentro de mimcheio ultrapassado e confuso a vida cheia de passada 950 contornada por mim mesmo em momentos tão vários variantes sobre o mesmo tema a vida passada a vida enchida a vida prescrita a vida conturbada sou eu eu sei... sou eu nessa tarde morna amortecendo o impacto de sonhos desfeitos em vazio se bons não sei mas vazios se ruins não sei encheram as comportas do ser hoje eu estou cheio tão cheio da sociedade e da idade nessa formação cheia de pessoas vazias 951 que não me preenchem ao contrário me deixam de boca seca boca seca é o vazio da língua sem palavra hoje eu entardeci lotado até à boca como um pote de minas novas na argila comprimida no fogo o fogo da tarde me fez temer quebrar cada pedacinho do inteiro que agora se me apresento não sei se o cheio é apenas o enfadonho sentimento de viver situações imerecidas daquelas que a vida enche o dia a vida precisa aprender a ser mais se le ti va sei que a viagem das palavras é retorno ao e qui li bri o 952 mas a vida me leva pelo braço e vou por minhas próprias pernas me encher me encher da rotina dos dias sem graça e das pessoas que fazem do dia um dia ainda mais sem graça a graça da vida é o vazio estou cheio não quero descobrir se suporto estar cheio o cheio é melancólico o outro é infernal o outro é cheio demais para partilhar com ele meu vazio meu vazio escorregada pelos dias há tantos dias o vazio sou eu não quero o pleno o anjo vazio é mais feliz o anjo cheio perdeu a raiz a vida é esse embolado de cheio e vazio e o estado sempre impraticável do agora meu vazio onde andará? 953 por onde andarei se tão cheio estou? tão cheio pobre de mim que a pobreza é vazio e leva para a frente hoje estou cheio sem para onde ir esse estado de adormecido apesar de em pé e dói por que não para onde fugir vivo tenho para onde ir depois se a vida me acorrenta da vida à existência? para onde correr se as pernas que levam para cá e para lá me condenam a caminhar estar caminhando estar se olhando um balaio cheio de mortes o que foi amigo morto a que foi a mãe morta o que foi o pai 954 morto a que foi amiga morta o cheio é muito para essa tarde apenas sei desse vazio que não é desse vazio que não será mais porque repleto de conteúdo o vazio o amor vazio tão novo tão frágil o amor passado tão sofrido engasgado dentro da alma sem saída para lado algum o amor preenche tanto para meu espanto nunca mais esvaziei a alma para amar de novo daquela forma do jeito inaudito de antes do primeiro amor o primeiro amor é flor o segundo amor é dor contínua eu não esqueço do passado 955 ele me retrata mas e o vazio? onde estará ainda o vazio para ser feliz novamente? poderei depois de amar ser ainda outro no amor novo sem precedentes? o amor é essa tarde cheia de chuva de barulho de absurdo o amor não me fez bem não faz agora queria o vazio de antes do amor tão passado para ter esperança para ter a surpresa surpresa? depois de tantos anos lotando a vida de ba ga gens? como esvaziar o conteúdo da alma lotada de pedregulhos das praias todas avistadas no tempo das férias? 956 amor eu sei da impossibilidade da fragilidade do tempo levando trazendo novo amor mas novo amor agora? não sei se depois de cheia a alma poderá chegar ainda um conteúdo tão simples que me a jogar fora as tralhas do tempo adornando as malas da vida o amor novo amor ainda hoje ainda há tempo? impulsione o amor renova ainda a alma? não estou cansado do amor apenas gostaria do amor sem as tranças da cabeleira do tempo queria apenas cabelo liso o tempo do amor novo já acabado findo de lado deixado a música no ar evoca o silêncio do vazio 957 do antes da chuva o quente depois do frio o barulho da manhã na barriga da mãe o vazio da visão dentro da placenta os sons da infância novos libertados do vazio mas o vazio ali era emoção o cheio de agora é lotação o silêncio precedendo a banda de música o giro no ar da batuta a batuta vazia de som o som depois da batuta erguida em compasso de silêncio a zoeira do conjunto na ladeira o silêncio é oportunidade como o vazio mas depois a alma cheia da melodia 958 a redenção do tempo o terço evocando o perdão mas depois o voltar para casa dormir em paz e saber que o dia seguinte estava cheio a procissão do ser no mundo o frio na barriga da morte o quente da mão da lágrima no rosto o tempo passa tão rapidamente como o vazio se enche tão definitivamente sem retorno sem entorno mácula o tempo a vida a existência o amor acabado separado o cheio presente passado o vazio futuro eu dividido farto cheio 959 O CHEIO É OPOSTO AO VAZIO E VICE-VERSA no cheio vago dentro como se da noite escura tirasse o claro da lua surgindo no horizonte bem tarde da madrugada eu sei das horas passadas dos vazios e dos cheios na taquicardia do tempo passando desafinado na alma mas sei do vazio ainda constante mesmo que ultrapassado de vida o cheio me é um dado prefiro o não dado o vazio absurdo o vazio sou eu ainda por fazer o cheio sou eu feito acabado sem saber o cheio e o vazio são lados da vida da vida passada futura 960 ESPELHO / 2010 ESPELHO estava parado diante do espelho não sabia da vida estacionada diante da própria imagem frágil sabia apenas de mim em corpo antigo estava entregue ao tempo e isso foi se misturando com os dias e os dias foram se mostrando quem habita o corpo diante do espelho no espelho sou espelho SITUAÇÃO DE SONO não procuro no sonho ninguém nada mas vem não imagino situações absolutamente mas tem quem o sonho me faz outro no sono não sei se isso é real ou não 961 PUDERA mendigo do dia o sentido preciso do dia o digo gostaria do dia a fantasia CHEGADA DO TRABALHO quando a pipa recebeu do céu azul quase azul em fim de tarde autorização para o vôo ocasional quando do céu a rabiola da pipa branca agitou-se por causa do vento a meditação seguiu em espiral quando na tarde depois da chuva a pipa cor-de-rosa de rabiola branca voou dentro de mim eu fui embora para casa COR DO QUE SE FOI o arco-íris depois da chuva medindo a curva da terra eu de relance percebi cores novas em mim dores mortas enfim algo novo acontece não sei quando vem sem aviso 962 algo de velho morre sei que foi hoje foi sem sentido o arco-íris não sabe de nada nem das cores novas em mim ele só sabe da chuva que sem ela ele, que é choro de chuva, não teria começo só fim ESTOURO do jeito que vai vai apenas e sai e sai apenas e ai a vida é correria do jeito que estou não sei se vou ou fico ou sou a vida é estouro ANTI-ESPELHO a escuridão me trouxe o dia não a sombria manhã que ela estava bela e o sol fazia no rosto um espelho contrário iluminando a escuridão sem nenhum sucesso eu não acordei espelho do dia antes o dia se pareceu um oposto como a sombra da lua imersa na noite contrasta com o lado iluminado pelo sol hoje acordei inverso 963 COISA das coisas que duras permanecem eu as vejo mutantes entre tantas outras coisas errantes das coisas que pesadas enrijecem eu as vejo antes entre outras várias coisas pedantes das coisas que ásperas entristecem eu as vejo rolantes entre muitas tantas coisas quebrantes MUDANÇA da despedida guardo a memória limpa e purificada por ter vindo afinal para cá da tristeza de quando antes de ser agora eu aguardo outro tanto de mudança de endereço 964 ALTURA ponto final não há nem poderia sou letra maiúscula a começar a palavra solta pelo ar eu viajo nas alturas do começo de despontar eu sou como a chuva do alto para o alto sempre feita para o alto bem alto voltar NÃO não resolvi meu coração para a tristeza mesa sem pão não permiti meu coração fincar um ponto fixo sou mutação não insisti em solidão sou mais que o tempo da pouca paixão não investi em reflexão quero ser apenas pouco com muito de intenção apenas eu ação 965 AFLORAÇÃO os óculos tirados deixados sobre a mesa em descanso para as vistas a mente livre leve e revolta ao mesmo tempo em tudo eu sou poesia quando despido da lente de fora eu sou poema quando poesia de dentro aflora OBRA nem poderia estar eu me ausento de vez em quando eu fujo para ficar quieto dentro e por fora sem barulho 966 eu prefiro manifestar em mim eu mesmo em sonho de palavra meu sonho é palavra e não sonho senão dentro do tempo esse tempo vão interior O TEMPO NO ESPELHO o espelho é a vida dada em sua franqueza diante dos olhos mesmo cansados o espelho é agora dado em sua fraqueza das mãos tolas sem argumento eu me vejo em tempos tantos e me vejo vendo outros cenários se vou chegar a percebê-los não sei vale o espelho como exercício contra o medo não, eu não parei de sonhar eu tenho quadros de miragem antes aqueles que chegaram até aqui minha mente caminha com espelhos eternos não, eu desejo esquecer a vida eu quero me espelhar no passado sem sombras nem ofuscação 967 eu preciso do espelho do tempo eu sei da hora passada em frente de mim ou em busca de mim mesmo sem fim eu sei que a mente me engana mas sei da minha imagem gostaria de passar pelo espelho sem que dele viesse o tempo gostaria de brincar para sempre do tempo de crescimento o tempo espelhado na vida se faz idade e da idade retiro o som dos ossos gemendo procurando a melhor imagem eu não sei se o espelho mente se a vida é uma mentira sórdida sei que do tempo em imagens tantas eu me faço espelho de agora eu não posso saber da próxima imagem que o tempo vagueia pela vida antes da pose eu sei apenas das horas programando encontros com meus novos rostos vistos eu sou espelho de dentro se revirando para fora eu sou onda do tempo passando imagem pura que o espelho me seja amigo como o tempo me faz companhia que o espelho me corrija o erro da rota dos dias vazios 968 PRESENÇA no silêncio posterior a nós das vozes caladas na noite eu sinto o imponderável quando vejo seus olhos no silêncio depois vida das almas silenciadas eu sinto a existência continuando forte eu amo o silêncio da declaração de amor sem palavras somente presença TODO dos rostos no espelho da rainha do rei dos rostos no tempo da freira do frei eu sei da parte do todo só deus 969 ANTES E DEPOIS o vento sem barulho é presença do absoluto a chuva sem bonança é ausência do orgulho o silêncio dos dias me dá a paz a verdade das vidas capaz me faz o vento antes da chuva o silêncio antes da verdade a vida é assim antes e depois CERCADO o tempo entre nós é cercado de mistério deixemos a cerca aprisionar a paixão o silêncio entre nós é cercado de pretérito deixemos a cerca amordaçar a sensação 970 ROMPIMENTO da palavra acho que não do verbo faço que sim substantivo sentimento adjetivo rompimento CHAVE vou para a cama dormir um pouco antes do dia acabar com voz rouca vou me apagar a vela da consciência brilhou demais quanta paciência vou me retirar fechar a porta jogar a chave nos lençóis depois eu encontro depois eu acho a chave de fora 971 UMA HORA DE SONHO son o son o son o son o TEMPO E ESPELHO no espelho da vida visada do tempo eu sei que hoje risada do ontem no espelho do tempo há vida que passa há também eu mesmo parado quando do fato o espelho não mente apenas e somente sou eu no tempo presente 972 RESULTA DA POESIA da bela flor resulta a boa semente da tela em flor delira a sábia mente da grande árvore desfruta da altura o pássaro da fronte altiva desnuda o sábio realidade belas e grandes mentes sábias fazem um mundo de sensibilidade SONORIDADE EXISTENCIAL na tarde amassada feito papel inútil ao fim do dia eu me vejo em necessidades tantas não sei até até quando essa alternativa de esconder o som interior será possível não sei se conseguirei esconder de mim a música reflete na parede os acordes de ternura ou ainda de mutilações da vida feitas pelo amor eu escuto e não me encontro entre as notas da tarde essa tarde me parece uma outra imagem do meu interior eu sei que há horas em que o tempo é inútil não nego a beleza da vida que vaga sem tempo o sem tempo do estar em si presente e vendo a si mesmo na solidão o único invólucro que a vida me dá agora eu sei muito bem eu sei das horas de fim e reinício hoje o medo de que eu esteja entardecendo por dentro 973 veio me levando para caminhos antes desconhecidos é que a idade é uma prisão sem volta do hábito cotidiano não posso me furtar de saber quem sou eu e somos tantos perdidos em olhares de espelhos tantos e ocos e fartos essa vastidão de sins e nãos que passam pelo rosto como brisa silenciosa que é apesar de singela eu sei não me posso deixar sem pensamento ele vem e me rouba e me confessa a mim mesmo quem sou não, não sei, porque exatamente agora no fim de tarde entre um minuto vago e uma hora estúpida eu me vi eu me vi cheio de palavras interiores e de vazios externos não sei nada da vida e da vida vivida pouco entendo sou apenas agora meu espelho sem avesso eu sou apenas essa miragem de sonoridade interior eu sou apenas o que pensa o mundo e do mundo faz o conteúdo de si para não dizer a verdade hoje eu faria qualquer coisa mas não posso eu me vejo fazendo alguma coisa e não posso os cabelos agitados pelo vento me falam me amordaçam à realidade essa prisão do tempo de um tempo ecoando dentro de mim feito maldição quem sou eu? talvez o que se faz sem saber se fazendo e já feito que estou eu? talvez o que jaz 974 sem saber jazendo e já jazido eu que pergunto respondo em alto som na tarde dada por fora porque dentro sou noite [a estranha noite escura a misteriosa noite densa de mim mesmo com sons de desespero de ser si mesmo] AGORA de lado apenas virado o rosto no travesseiro nu na noite o rosto triste a noite longa a lágrima pura sou da noite a briga continua ecos de palavras o pensamento é prisão de palavra a noite de lua muda a fase quisera eu mudar agora 975 MUNDÃO o mundo pulsa como eu pulso compulsão o mundo gira como eu giro girassol DELÍRIO ela disse ainda sob o efeito da medicação de um modo tão espontâneo que por um momento breve feito picada de seringa acreditei no seu delírio voltei no tempo ela disse: moro lá embaixo no botavira e o botavira da infância surgiu diante bem diante dos olhos de nós mas ela estava em outra cidade no hospital que não era a casa de caridade e seu braço em soro escorria o botavira virou delírio na tarde quente de fritar miolos FRIO NA BARRIGA o frio na barriga esse precede o fim da linha do trem do trem do dia 976 esse dia ordinário como outro dia desnecessário esse dia impróprio como aquele dia óbvio o frio na barriga processo do sim de ontem e agora começo de fim ESPELHO DE BANHEIRO o espelho do banheiro é fumê nele eu me vejo não você o delírio do corpo prazer nele estou sozinho sem você o espelho embaçado por todos os lados na mente um passado você do meu lado ESPONJA na minha casa de gente miúda era comum muito comum mesmo 977 dividir o sabonete a esponja fosse sintética ou de bucha natural na minha casa era comum tão comum e normal tomar banho junto para passar o tempo a vida o pecado fosse de dia ou em alta noite FRONTEIRA o espelho verdadeiro foi seus olhos aqueles perdidos na paisagem interior como se eu caminhasse léguas e léguas e nunca alcançasse eu nunca alcancei a verdade de seus olhos distantes feito vento rodopiando no mar e eu na montanha no meio do mundo longe de seu mundo de além-mar voltarei ainda várias vezes em eras das eras perdidas vou atravessar sua fronteira e encontrar minha verdade o meu espelho é você sempre você para sempre você 978 MIRAGEM a miragem do sonho na vida passando é seus olhos dentro dos meus inteiros próximos a ponto de cegar as horas passageiras ótimos a ponto de chegar no fundo da alma REFLEXÃO o mar é azul espelho de iemanjá virado para o teto do oposto do mar o retrovisor do carro é espelho do longe o raio da bicicleta movimenta o tempo o rio calmo é espelho do céu o frio intenso miragem de véu 979 INTERPRETAÇÃO no barulho do mar reage o ouvido faz dentro pensar na vibração do vento reage a pele faz sempre arrepiar eu repouso na noite depois do dia interpretar RESSONHO das horas reponho na estante o sonho por mais estranho amanhã eu sei se sei talvez a vida será ressonhar SENTIDO os sentidos são espelhos do mundo lá fora transformam em ideias dentro a caneta o papel a seta o anel 980 os sentidos são reflexos do mundo todo interpretam em mentiras centro o menino a maçã o piriquito a manhã os sentidos são mentais levam para dentro o que por fora atrai QUATRO o fogo pode dar sinal se do alto visto o fogo pode ser final de noite a água pode afogar se dentro do corpo a água pode matar fatal a terra pode sustentar se a casa se edifica a terra pode deslizar mumifica o ar pode engasgar se entrar errado o ar pode acabar sepultado 981 MUDEZ o espelho não fala apenas reflete se eu fosse espelho seria mais feliz sem espelho não haveria a palavra muda sem espelho não teria a palavra surda o espelho não dialoga apenas transfere para os olhos o movimento OBJETO DE TEMPO para trocar de roupa espremer o cravo conferir a ruga lugar certo espelho indicado por especialistas para observar as pintas passar o creme escovar os dentes lugar perto espelho indicado por existencialistas 982 CRIAÇÃO o homem imagem semelhança de deus o deus contrário diferença dos seus espelho? RAPIDEZ a vida no corpo esse momentâneo e estranho sentimento uma prisão instantânea vai ser rápida vai ser breve sei do tempo passando vai ser ágil vai ser leve sei do ermo ficando ERRO das horas perdidas da vida feridas ficaram no corpo a alma se vai 983 libertando todo dia comemoro a ida está chegando a hora da saída flutuando a morte não é nada sei da vida nada exata errando INTEIRO a chuva fina na madrugada consola a mente deitada no travesseiro a lua cheia da hora tardia aumenta a tristeza da mente sabendo do meio a vida quando em processo de vida é lenta demais para ser inteira ESPELHO DE FOME os olhos da abelha espelham as flores os olhos dos pardais 984 espreitam as cores nos bichos os olhos são aptos ao espelho a natureza alimenta por que é espelho a fome precisa de espelho o alimento na fonte DIA o dia corre tanto em coisas tão vagas não é o mar no seu ritmo claro é o dia com seu cinismo chato o dia passa ligeiro em falas tão ácidas não é o almoço é o dia com seu apetite de asco 985 CANSAÇO cansado de corpo e alma me ausento durante o sono quando retomo a consciência me custa a identidade o tempo a calma ausentes das horas cotidianas quando perco minha vontade me assusto haverá em outro canto outro eu pronto? haverá de novo o encanto meu sem pranto? FOTOGRAFIA as fotografias são espelhos do tempo os sorrisos desbotados os abraços depois do clique o registro eterno da situação espelhos do tempo na gaveta ou nos álbuns de família ou no arquivo digital vistos no momento lacrimal a vida na fotografia é espelho da família daquela que passou como o tempo usado fotografias são espelhos do tempo 986 SALA DE ESPELHOS a vida espelhos em brincadeira sou tantos sou vários formatos múltiplos gordo magro grande pequeno informe cabeça para baixo espelhos em brincadeira numa sala ampla o tempo muda a cena o corpo a mente a vida AMOR TORTO na hora errada não se cala o coração na vez da traição morro estafado pequenas traições é o sonho da perfeição no amor que rola breve entre os dedos as feridas incicatrizáveis o peito batendo em terremoto a língua afiada para machucar gostaria de acabar com a cena 987 pequenas traições sentir-se atraído para lugar nenhum o amor é torto O ESPELHO E O VENTO o lago parado o dia em azul tudo calmo o rio sereno o dia em domingo muito fácil vem o vento no lago azul borrado passa o vento no rio serenidade breve MARCA a página do livro o espelho é a mente se mentira dentro da mente depende a televisão em cores o espelho é o cérebro se conteúdo doente o aumento é da lente vejo os objetos do mundo há neles uma intencionalidade se espelhar fundo na alma deixando marcas 988 INFINITO o infinito não é espelho não me vejo dentro não consigo mirar o incontável deus é infinito o universo é infinito [onde haverá um espelho para o corpo?] VÍTIMA DO TEMPO quando as vistas cansadas e as pernas atravessando o samba quando a chuva sem som na janela e eu perdido em olhar tonto o tempo serei a vítima do tempo ele terá passado por todo meu organismo deixando as marcas fundas da existência e eu cedido ao tempo sem volta VIDRO DE LOJA na rua a loja de vidro temperado lá dentro o ar condicionado refrigera a alma os carros passam refletidos no vidro com a propaganda estampada em cor de rosa 989 o dia se passa em espelho a rua é um movimento de reflexos agitados a loja continua parada o movimento é o espelho o mundo do lado de fora MÚSICA a música toma conta do espaço que pertencia à sua imagem um novo rumo toma o pensamento e eu que pensava em saudade o ritmo da música cria outra esfera nela circulo com novo humo uma novidade em cada nota e eu que pensava no fim do amor SÍSMICO o poema é reflexo do perplexo eu cismo sísmico o poema é espelho do recente eu mimo mímico 990 NÃO QUERO VER não atravesso diante do espelho se não quero me enxergar não grito diante da caverna se não quero me ouvir eu prefiro me ocultar quando nada quero ouvir ou enxergar por isso prefiro a ausência do espelho INFÂNCIA a infância jogou as redes ainda caio nos medos de uma vida ignorante a infância deixou fraturas ainda cedo aos medos de um dia o antes a infância é espelho da alma agora infelizmente nessa hora 991 REFLEXO SEM VISÃO quantos reflexos dentro dos olhos molhados na manhã dos dias não viram imagem dentro da mente? MEMÓRIA ESPELHO DE MIM eu puxo a mão da memória para não perder a imagem de quem sou diante do espelho de mim mesmo não quero impor a ninguém um corpo e uma alma sem noção de si mesmos OLHOS DO LAGO o espelho da natureza é invertido o dia ensolarado vira em instantes chuva de granizo por sobre os quintais apagando o sol que antes iluminava o rio cheio de água na estação das chuvas se enfraquece no inverno que é frio lá na montanha o rio cheio é espelho do peixe em desespero na natureza os reflexos são invertidos em opostos de seco e molhado em sol e chuva por todos os lados nos olhos do lado 992 O QUE o que muda ficou um tempo igual senão seria outro afinal o que luta venceu um pouco parcial senão seria derrota total o que vive foi um instante inicial senão seria morto final OPOSIÇÃO o diferente de mim é o mar o dado em movimento mais que o ar o oposto de mim é o amar o feito em sentimento mais que raciocinar 993 ESPELHO FIXO PASSADO não voltarei ao passado mas ele insiste em ficar dentro de mim rachado não gostarei do deixado mas ele persiste em falar algo por mim calado o passado é o pesadelo do espelho ainda vivo mesmo quebrado REFLEXO INTERIOR a filosofia me desconfia o reflexo me esvazia o niilismo é futuro que a mão tecia a filosofia me desafia o reflexo me sacia o psiquismo é turvo sou eu à luz do dia OPOSIÇÃO amor espelho máximo da dor? de que lado se dá o reflexo? 994 se soubesse quebraria o inverso o sonho do oposto é ser sem oposição ENQUANTO enquanto o corpo joga para fora o tempo em pele e ruga o vento em sopro quente a vida em células mortas enquanto o corpo jorra a cada hora o passado em doença e cirurgia o erro em palavras de chumbo você em lembranças de versos enquanto a alma se depura na angústia do corpo morrendo eu vou me lembrando sempre de você no meu espelho SEREIA a sereia se olha no espelho ela tem passado como eu? a calda é a calda da sereia o seu passado achei a resposta a sereia tem calda que se arrasta mais que meu passado apenas imagem 995 a calda a calda da sereia divide sua existência ela bem se parece comigo mas ela vai morrer meio a meio gente e peixe eu vou morrer três a três passado presente futuro a sereia se olha no espelho ela tem passado como eu MONÓCULO o monóculo da festa do rosário foi o primeiro espelho da idade visto depois de muitos anos ele ainda é uma novidade o monóculo tem uma criança pareço eu ainda em tempos outros com outras pessoas em tempos idos ele ainda sou eu em outra cidade GATO o cheiro do gato morto na esquina no lote vago é espelho final da vida toda em saltos brincadeiras? pulo do gato onde andará o morto do gato? 996 ASA a asa se equilibra na outra asa o pássaro tem duas asas se tivesse apenas uma não voaria uma tem a mesma força da outra o pássaro tem duas asas se uma fosse mais forte do chão não sairia CONDIÇÃO hoje eu acordei arisco com medo de repetir o dia de ontem reflexo condicionado DURMO a noite sem lua sonho sem limite imagem perfeita cara no travesseiro a noite dá o sonho o melhor espelho de todos os espelhos o sonho leve e frágil 997 HOJE hoje é feriado nada a fazer um bom poema sai sem dor como a prece na noite é forte de manhã tem pouco calor POMBO vi um pombo morto no chão não era um pombo era um sapato os olhos espelharam errado para a mente vagando de dia de sábado o espelho se confunde SONHAÇÃO na cama a alma rodopia em sonho que arrasta para lá da imaginação nunca soube do sonho com explicação a alma se revela outra e sem espelho vaga pelas ideias efêmeras 998 pelos universos paralelos sem complicação complicado é acordar MOSTEIRO eu poderia prender os pés no vento para sair da realidade mas não o vento passa racional e não sei voar sem asas eu queria estar em vários lugares no alto da montanha um mosteiro a fé é tão passional e não sei calar palavras ENVELOPE dentro do envelope pardo é escuro é claro não sei não vejo dentro do envelope vazio o ar preenche o espaço simulo não percebo dentro do envelope tem papel a palavra lá dentro enche demais 999 VAZIOOIZAV o espaço vazio cheio de ar o copo vazio cheio de ar há paradoxo na visão do espelho a mente mente não sente o ente como se deve a mente é crente se depende não sabe realmente LÁGRIMA a lágrima reflete o mundo à sua volta mas seu mundo não está em volta vem de dentro de mim como a lágrima me reflete sem ela não sabedoria das dores de dentro 1000 CALMA o arrepio percorre o corpo fiação elétrica dentro é a alma o pensamento morre no tempo mudança dos ventos dentro é a calma RENOVA sorrio da angústia aquela que matava o tempo novo é o sorriso pleno dos mais plenos dados vem como uma paz depois do combate em guerra sangrenta vem como uma chuva depois do calor ofegante dos poros abertos suados sorrio da angústia é o tempo renovado o tempo renova sempre 1001 AJUNTAMENTO a palavra escrita não seria nada sem a folha branca no fundo a palavra proscrita não seria vil sem pensamento do mundo a palavra espiritual não seria útil sem esclarecimento do estamos juntos a palavra semeia a alma ajunta RELAMPEJO a cidade é um relâmpago cenas variadas vividas anonimamente a menina olhando para a vitrine o sorvete derretido no chão o pombo comendo a pipoca a sacola cheia de biscoitos finos pessoas em tempestade as vidas são trovões quando juntas 1002 SAÍDA a sala tem quatro paredes eu entro e saio entre elas pela porta a toca tem um caminho o coelho entra e sai dentro dele pelo oco há saída eu sei há saída VISÃO o livro é espelho do livre a geladeira é espelho do frio a menina é espelho da mãe a televisão é espelho do fel há espelhos por todos os lados de que lado eu quero estar? vendo visto 1003 PENSAMENTO penso tanto mas não sei se penso para trás ou para frente o pensamento tem sentido? penso tanto às vezes direita às vezes esquerda para ditadura ou democracia o pensamento é opção? penso pouco quando caminho preciso só das pernas não da vida em fé o pensamento é vazio? penso pouco quando durmo preciso só dos olhos fechados sem nexo o pensamento é solidão? PO[SSIBILIDADE] dessas ligações misteriosas não sei explicar um livro antigo na estante vira pó palavra vira pó 1004 desses silêncios misteriosos não sei ouvir a mensagem escrita nas pirâmides vira pó construção vira pó DO SILÊNCIO para Samantha das areias da praia carrego o silêncio o silêncio absurdo do absoluto das montanhas almejo o silêncio o silêncio obscuro do concreto dos amores desejo o silêncio o silêncio puro do infinito dos livros recebo o silêncio o silêncio profundo do desconhecido das vidas recolho o silêncio o silêncio chocante do recomeço 1005 VIDA chegar? a vida é uma corrida não sei quando começou e tenho um lugar para terminar? ficar? a morte é um obstáculo não sei quando virá e tenho um medo de findar? CONTAGEM conto de um a dez o tempo não muda conto outra vez desisto da luta o tempo não pára quando conto o tempo prossegue quando conto 1006 MÃOS prezo as mãos uma de cada lado em proporção rezo com as mãos juntas no centro em oração imploro pelas mãos levadas ao céu em depressão as mãos são mensagens espelhos fixos do coração ENFIM o fim não existe há apenas o fingimento de que o tempo parou por um momento há tempos não finjo sinto as cordas do tempo rígidas pelo corpo estou preso o fim fim 1007 DA MORTE as pessoas mortas que fazem ainda? a saudade da presença é toda pequena e torta o invisível atrás da porta mesmo não visto há PALAVRA MUTANTE o corpo de ontem não tem agora o mesmo sentido a palavra mudou tudo o homem de hoje é outro do início outro significado a palavra mexeu em tudo TATOO não sabia da saudade o reflexo da memória mais doloroso que tatuagem 1008 SEMPRE crio nas voltas da mente a vontade de ser sempre UNIDADE a mão direita sabe sempre o que faz a mão esquerda não poderia ser diferente na unidade O VERBO semeio a palavra entre a substância e o ouvido faço verbo e o verbo se fez carne O VENTO TEM VÁRIAS FACES soltei o poema pelo ar para alimentar o vento com palavras de amor o amor sempre vale a tempestade 1009 HUMANO / 2011 ANJO DE[CAÍDO] das nuvens num dia de sol veio o homem para a terra sem asas nu em pelo pronto para ser o que fosse de longe não se sabe de onde o homem chegou com sua loucura diversas faces cobrem o homem com nuvens escuras dentro de si veio para voar sem limite pelo mundo de fora um dia voltando para as nuvens do pobre engano de voar tão alto aguarda as asas crescerem feito anjo decaído? 1010 ETERNIDADE o céu se abre é o sorriso as nuvens abrem a boca mostram os dentes a alma se abre é a vida as lembranças retornam como o tempo demonstra a eternidade O SER das coisas da alma amontoado de bagagens estantes cheias de lições vidas passadas vida real das coisas da alma erros em viagens distâncias não percorridas pessoas esquecidas vida atual o ser é humano o ser é espírito 1011 CORPO o corpo é humano tem dentro de si o mesmo a pele por fora por dentro o ser os olhos que olham por fora de si o mundo o corpo é humano tem por dentro e por fora sentido TRAGÉDIA a tragédia está no ar quando o humano se faz tempo e lugar a tragédia faz contar os mortos os corpos embalsamar a tragédia é o fato contado em lágrimas na tele da televisão ampliada no jornal a tragédia é um evento humano [ontem 111 presos foram mortos no carandiru hoje quantos morrerão tragicamente?] 1012 HUMANIDADE em mim toda a humanidade passa como brisa suave em mim todos os dias nos poros na consciência sou eu humano todo e pleno humano em todas as horas todos os momentos da vida até aqui fui humano em sentimento em medos em tristezas em esperança e fui mais longe quis ser eu mesmo a humanidade passa dentro de mim em mensagens de grandes pensadores alguns tristes alguns felizes mas todos como eu de uma humanidade na veia como um sangue povoado de passado e tradição ser humano todos os dias pela manhã ao colocar a roupa da cultura da fala do eu a identidade do humano em mim surge ressurge se reconfigura se renova a humanidade em mim mês faz eu mesmo como se dela dependesse para ser pleno e a plenitude é o sonho maior da humanidade em mim quando acordo a vida já me acordou tantas vezes e me revisitei porque no humano de cada dia em vozes várias eu sei que o tempo é maior ensinamento nele sou de fato o humano de mim mesmo 1013 a herança o legado sou eu mesmo humanizado não há outra maneira de ser sem ser eu mesmo humano dolorosamente humano prezeirosamente humano ser humano é o melhor dos fardos não sei ser outro sem ser humano primeiro é como se a humanidade se escorresse em mim feito água benta nas pias batismais desde cedo o humano em mim respira cumplicidade o humano em mim é todo o humano assim feito um projeto se realizando do jeito possível da forma imprevista do jeito único de responder ao tempo o humano de cada um é apenas o jeito de ser compreendido nas várias formas de se fazer ser humano tantas formas de ser dentro da humanidade em mim 1014 DOR a dor do outro é o outro em falta de si ou sendo si na falta do todo a via crucis da vida é a outra vida que salta dentro da vida que alta se afasta da felicidade a dor cabe no outro se cabe no torto além cabe aqui dentro porém é desejo pouco a dor do outro é sempre oposto um desejo forte de não ser em si PERDIÇÃO a inconsciência sabendo-se perdido incapaz de reencontrar o norte é um ato de desespero humano sempre humano a negação do si estando ser eficaz forma de oposição da humanidade de dentro deixando-se de lado a humanidade é um moeda de dois lados opostos na mesma vida perder-se? achar-se? 1015 RAÇA a raça tem cor na pele os olhos assim enxergam por trás dos olhos vendo há mente pensando quando somos raciais no momento de olhar ou na cor que criamos dentro de nós? CRIANÇA a criança no colo da mãe sorridente leva em si o mundo entre o corpo crescendo e a cultura existente será ela um dia humana ou já humana está? que dizer das crianças adultos desumanos? [onde erramos?] COMICHÃO a hora passa a perna coça o tempo roça o caminho da-se a situação é condição do tempo comichão 1016 SOLENIDADE a vida não tem fundo se dá a cada dia entre os muros do mundo a vida não sabe de si eu sei da lida quando penso no tempo em mim o tempo acaba com a vida tão solenemente me acho humano TOQUE toque de recolher é a tarde fechando os olhos do dia quero me preparar para adormecer não quero viver a noite hoje o dia foi nobre e o rei do dia fui eu a noite me traz o frio 1017 MORRO a notícia chegou tragédia humana nas encostas do morro o morro matou cansado de ficar de pé como pode o morro saber do humano -cansado da vida? o morro resolveu descansar e levou com ele muitas vidas SILÊNCIO INTERIOR a solidão não fala ao contrário se cala dentro do diálogo interior não há conversa na solidão o outro que sempre fica não resta a solidão impõe silêncio interior 1018 NITERÓI o cachorro saiu do meio dos escombros das casas ruídas da lama e os seres humanos? muitos ainda estão soterrados no tempo o corpo é morto [há um cheiro de morte no ar] HUMAN humano man ano mano DEPOIS depois que a noite se foi o dia nunca mais foi o mesmo tudo muda eu como a noite que se foi fui me encontrar entre tantos diversos tudo altera [a vida é dinâmica feito o sonho na cama rotação] 1019 REPOUSO a cidade ainda se debatia raivosa e fétida quando eu ainda distante de toda realidade exceto a minha interior dormia ROLAÇÃO afinal, o humano na chapa quente da vida na lapa densa do dia afinal, o humano homem e mulher rolando feito pedra um sobre o outro afinal, eu humano no humano do mundo mundo miúdo onde rola a vida sobre todos LADO o lado da sombra é o meio da luz se revelar revelar? o lado da claridade é o meio da sombra se acabar iluminar? 1020 METADE humano no fundo é homem homem no fundo é vazio vazio metade do cheio ainda por ser NÚMERO ai vai por todo lugar ar por todo vai ai SOBRA o que parece carece de explicação o que resta está sob utilização o que sou ou é ou será o que conta onda quebra no mar 1021 AMOR que toda planta verde azul ou amarela toda árvore pequena média e grande possa dar flor que todo ser humano possa ter amor FILÓSOFO o pensamento é a tarefa não o ar quente nos pés o filósofo é ser humano que lembra o dentro o interior em caverna de razão o exterior em engano da sensibilidade a vida passada em ética de gestos nobres a morte na dialética do tempo mutante o pensamento é a obra prima de dentro e na voz do filósofo OBSTÁCULO assim como o rio possa a vida do humano ser profunda se necessário rasa se ditar o tempo mas que seja em obstáculos dando no absoluto 1022 ASA as asas não as tenho mas para que asas se tenho o pensamento e o coração pulsando em cada letra da sua voz? as asas não as quero para ficar mais perto para sempre junto de tudo ou do nada que se parece obscuro em cada nota do tempo na vida VERDADE HUMANA os pés e os braços sempre busquei o amor distante e quando perto achei que mentia para mim e para os pés e os braços em presença e abraço mentira existe quando? quando sei que a vida é assim em mistério de tempo em à toa seguindo quando descubro o peito sei que reside aí em mim como sempre em verdade 1023 [AMAR]RAR-SE o amor define o humano não o cansaço do dia em final de jornada nem o galope das horas em relógio terminando o turno da fábrica o amor define o humano na pequena vida emoldurada em tons de vermelho é a paixão o rosto vermelho diante do outro o outro sem vergonha presente em nudez tão pura como se não houvesse adão e eva o amor somente ele define o humano as loucuras os dramas as cartas os encontros as despedidas os poemas e nisso tudo a fragilidade boba do momento dizendo vai passar vai passar vai passar mas quero eu preciso loucamente AMAR MÉDICO nasci nas mãos do homem chorei o primeiro desencanto nas mãos que não me amavam mas já traziam para a realidade da vida um homem de branco tão alvo como nuvem caminhando pelo hospital ou como um anjo desolador anunciando o fim o médico é um recurso humano ao humano 1024 para doença de amor sei que não há cura mas para doença de corpo finito rápido fugindo da via curta e breve e fugaz sei que pode haver remédio medo médico remédio remédico LUZ apaguei as luzes da sala do quarto e do banheiro sobrou a imagem do dia claro feito um sol nascente a luz me atravessa e cria na memória do dia a luz inventada para mostrar a realidade em volta e dentro tenho a luz diante dos olhos por ela o humano se faz certo sou apenas agora um jogo de luz as sombras são os resquícios do tempo ENGENHEIRO a casa sai de um rabisco o prédio em estruturas sobe antes como ideia em cálculos precisos o vazio se preenche com matemática 1025 e geometria e o cheio se edifica em paredes o homem pensa a casa desde os tempos remotos e sua engenharia se ergue de dentro para fora FIM não me chamei mas vim assim mesmo para encontrar entre gemidos a voz de dentro pulsando vida não me interroguei mas afirmei assim mesmo o jeito de moldar o destino meu apenas meu de mais ninguém não me engracei pelo contrário, sempre sério fui me encontrar entre as teorias de um ceticismo arrogante e vazio eu sempre soube de mim entre os caminhos do tempo esse tempo frágil que domina tudo em mim e vai ter um fim sempre um fim FOGO DE SAUDADE os pés ainda estão na mesma posição amarrados esperando o algoz acender o fogo para consumir o corpo todo para arder de amor de puro amor 1026 até hoje aguardo as horas trazerem o vento calmo para diminuir a saudade mas vem o cheiro do silêncio e a noite se torna novamente vaga feito onda sem mim aguardo ansiosamente por sua presença entrando por todos os espaços da alma essa que habita você e no entanto nunca nunca conduziu seu corpo para meus braços um tempo infinito se passou entre as pernas deixou os passos tontos e perdidos nos anos e as primaveras com seus perfumes se foram sem fazer sequer um barulho de sua voz onde está o sonho do encontro senão aqui na memória apagada de um casamento sem álbum de fotografias ou de fotografias sem a imagem do amor sinto sua ausência como um fogo que não destrói antes constrói a dor empilhando em mim o não-ser o não-sentir o não vazio da voz rouca sem tom o não que ecoa em minha memória como recordação não poderei perdoar o tempo pelo fogo minha alma arde sem se perder e não não posso me calar diante de sua lembrança preciso do verso para expurgar a dor mais uma vez você é uma dor em mim 1027 FOLHA do verso em flor na folha pétalas sem cor do tempo faço novamente o poema sem remendo no verso em dor na tarde dias sem frescor na vida faço temporariamente o lema eu arrependo VIDA INTERIOR amo o que de dentro se expõe ou se esconde em desejo infantil amo a alma que brota do vaso em raízes fundas no corpo ardil amo a palavra somente pensada como uma folha prensada na tipografia dando vida ao texto amo sua vida interior porque sei nela eu vivo ainda apesar do tempo esquecendo nossa fantasia OBSCURO a nuvem não chove nunca chove água ela esconde em si o vazio que a move 1028 o sol não aquece nunca esquenta ele esconde o frio por dentro da pele o arrepio da água não nunca teve nunca há frio mesmo se neve CAMINHO quando sair pela porta e os pés jamais mirarem o caminho antes tantas tantas vezes percorrido o caminho entre o desejo e o seu chão profundo marcando o vago e triste coração quando sair e for embora para nunca mais me abandone a mim mesmo me deixe preciso reaprender a viver esquecer das horas tristes de amor miúdo que não cresce antes, bem antes, murcha e desce para o buraco da tristeza sair deixe minha alma se libertar por favor me abandone a mim sem pedir para voltar pelo caminho onde um dia de mim me perdi 1029 TANTO os homens foram meninos e tiveram sonhos e ilusões de vida e de ótica os homens foram meninas que deixaram o tempo entre os cabelos crescer e se cortar para renascer os homens foram tantos o mundo dos humanos é um tanto de tantos tantos que hoje me espanto fui humano sou humano um tanto do tanto de outro tanto O PADRE o padre é do interior tão interior e vazio que vive na casa paroquial onde a vida é artificial eu sempre vi o padre como oco por dentro e cheio de dogmas por fora nunca vi um padre feliz e sorridente os dentes da alma não existem 1030 RASO raso muito raso hoje sem profundidade esgotado no tempo estou cansado raso como o rio seco longe das chuvas chuvas densas e fortes da montanha azulada raso como o campo secando na tarde quente sem ventos brandos puros para espalhar o orvalho na noite raso tão raso que pena hoje não há profundidade estou rastejando em mim sem lugar para mergulhar hoje estou raso sem fundo o outro agora é realidade MEMORIAZINHA a palavra não alivia a voz muda calada é essa memória fria a estrada se apaga na forma e no conteúdo sempre o tempo mudo 1031 o cheiro de seu corpo não sei onde encontra eu me fui sem retorno há passado e há palavras hoje sou sem passado doem apenas as falácias BATIDA o tempo bate pelo corpo para lembrar à sonolenta alma é hora é dia é mês é ano é ano do novo é ano de ser só e simplesmente humano PÉ NO CHÃO no mar se banha na praia em alto mar não é possível colocar os pés no chão para sentir o coração da terra 1032 COMUM o pingo do ser é o humano no límpido oceano vida em comum o mundo a faísca do ser é o humano no infinito abismo vida comungada no mundo IMAGEM durante o sonho não sei de mim sei do paradigma da noite fazer-se símbolo oculto para ensinar o bruto a vida no sonho é cifrada em código tão poderoso dentro de si se perde não tenho chave o sonho é um catálogo de aberrações em cores o sonho não traz a paz muito menos melhor me faz o sonho adormece por alguns instantes o barulho do pensamento contínuo dizendo de mim de mim de mim 1033 CORPO tu o corpo tu mesmo o outro fora de mim e tanto preso em imagem dentro de mim feito todo tu o corpo o pobre corpo sofrido e condoído mas sempre amado sempre amado como hoje tu o corpo diante dos olhos amado e fundo pequeno e mudo sem sentido lembrado tu o corpo o mesmo há muito a ermo o lembrado dentro do tempo mesmo passado dentro ficado tu o corpo amado e eterno frágil e externo muito de mim em mim dado cabendo na vida 1034 tu o corpo o outro corpo desejado na noite apegado aos sentidos eu sei de tu corpo mais que do o meu tu corpo pobre corpo preso no tempo do relógio não sei onde vou parar a memória apaga suas curvas tu corpo amado corpo lembrado fruto das horas em passado das horas em marasmo tu corpo nunca meu tu corpo onde estás agora vive em mim todo todo está longe como nuvem passando sem saber onde tu corpo amei tu no corpo tu sopro brisa leve morto 1035 DIA IDO o dia apressado corrido entre atos perdido no espaço o dia acelerado despido entre dados batido em passo o dia se foi leve em tarde sem fim e noite sem mim ESPERA enquanto espero da água a fervura do café o sabor de fim de tarde enquanto espero a lua para ser noite e da noite o ser fim de dia para ser saudade eu me mostro no espelho da vida humano diante do tempo TEMPO CANSADO a sombra da árvore não é fria nem quente como o peito amando diariamente a noite com lua não é bela nem feia como o passado irretocável eu sei do tempo entre sombra entre noite cansado 1036 ESTRELA a estrela fitada longe como e do universo viesse um grito forte de não sei onde a estrela pequena ponte entre o espaço interno e o espaço infinito do nem tudo se pode PLÁGIO não posso parar preciso permitir a ascensão em mim da novidade não posso calar necessito coagir o impulso de morte sem atividade sei da vida hoje mais que passado ontem e ontem não não tem plágio LUTO a notícia suja do jornal sujo se espalha pelo ar da casa os mortos a morte o furto 1037 a notícia não é boa é sempre uma maldade velada no real não há realidade fácil a notícia ocupa espaço no fim do dia mais que toda alegria a notícia vem fechar com luto a vida passando SORRISO o sorriso no rosto prendo-me nele satisfação a tristeza na face fujo-me dela ingratidão MEMÓRIA E HISTÓRIA a voz ecoando forte a memória é som que não cessa a dor bailando tonta a história é curva que não fecha CONSOLAÇÃO do vento esse vento de viver não parando não deixando de ser apenas o barulho do encontro entre tantos a ausência é o frio 1038 o vento assoprando na nuca o tempo vai apagado como rastro de animal em extinção e farto de ser inteiro o silêncio do vento me isola mas a saudade do tempo essa saudade oca de sentido me consola ACORDO o corpo renovado pelo sono ou pela ilusão do pleno volta ao mundo sério o corpo amenizado do peso ou pelo vazio da noite retorna ao dia frágil VIDA não posso dizer as palavras fugidias estabelecem um vácuo entre eu e minha pobre vida não posso fingir as situações indubitáveis criam o senso de realidade entre eu e minha triste lida 1039 DANÇA DAS HORAS a liberdade de coçar a ferida é dentro do ser a própria tarefa quando amar desejo é outra coisa a ferida é externa e somos feridos a liberdade de expressão da alegria é de dentro para fora quase sempre mas o silêncio da alegria contida é tão funda que vem como um vulcão ser livre de mim não posso agarro meu corpo pego a mão e me guio sou apenas a liberdade momentânea no corpo nada mais que corpo na dança das horas QUESTÃO por que quando se sabe o que dizer alguém em nós nos obriga a não dizer? é defeito de nascimento ou será imperfeito o crescimento de dentro? ORÁCULO dos muitos dentro me perco entre o essencial o que decide 1040 dos vários por fazer me deixo sempre no final inacabado dos outros a se apresentar me faço silêncio absoluto espetacular eu sei de mim apenas o que estou secular eu quero em mim outros de dentro para fora oracular ENQUANTO DER se eu me deixar de lado vou para onde acabo? se eu chorar fraco virá um outro chato? se eu quiser pouco virá um outro tão intenso a cobrar? eu não vou me deixar vou ficar comigo enquanto der 1041 ASPEREZA da saudade essa palavra áspera guardo na ponta da língua o adeus que não foi meu nem seu foi do tempo VAZIO COMO EU subjuguei a vitória do amor ele nunca vence apenas convence por um instante condenei o tempo ao amor como se eterno ele fosse apesar de estar em mim fechei a janela da alma para ver se me recapturava pouco adiantou o amor é vazio assim como eu RESMUNGO coço a cabeça esfrego os olhos resmungo versos você não volta 1042 HUMANITAS do humano o tempo atravessa a vida de cabo a rabo não sou gato do humano a vida em três tempos ida e volta não sou bumerangue do humano a história em acontecimentos notórios e secretos não sou museu do humano a memória dos aborrecimentos internos e familiares não sou livro sou humano apenas humano corpo e alma na terra FIM quero uma casa no campo frio que nem pranto e patos na lagoa para me espanto 1043 quero uma noite seguida de um belo dia e chatos à distância do meu recanto quero um lugar longe tão longe que possa na curva do caminho esquecer de mim que tudo tem fim que tudo tem fim em mim em mim AMOR E DOR depois do amor do suor e da flor não sei de mim fiquei pelo quarto pelo ato perdido depois da dor da carta de amor não quero em mim resposta me aparto do fato doído 1044 HORÁRIO às 11 horas eu passarei por lá não sei se poderei voltar mas vou passar o corpo pede vou me apresentar diante de você e pedir sua atenção e seu amor e todas as delicadezas profundas exigidas pelo amor o amor exigiu sempre muito de mim de você não sei nem posso saber sua alma é controversa e eu sou apenas do verso o amor é a causa do poeta é o que resta é o que fica às 11 horas estarei diante de você DEBAIXO DA PELE debaixo da pele capto sua mão no corpo sensação debaixo da pele ouço sua voz nos poros tensão debaixo da pele sinto seu calor pela alma sei do amor 1045 QUANTO VALE? dos versos nunca recebi o valor deles eu tive apenas o retorno da voz ecoando dias depois em humano calor o verso humaniza o valor ai está SAPATEIRO o sapateiro raimundo no banquinho colando o couro e o salto diante da praça naqueles tempos infantis o aluguel na praça era de graça o banquinho do sapateiro era de couro em tiras trançadas e pregadas para sustentar seu peso o sapateiro raimundo estará para sempre no cenário da praça grande e alta da infância lenta e calma do interior CHAPA o chapa de caminhão estende a lona ocupa a rua com sua arte de dobrar a lona amarela e espessa do caminhão carregado de mercadorias da capital 1046 o chapa de caminhão fica na rodoviária esperando o tempo de ser contratado o tempo à toa vigilância astuta para o equilíbrio das contas de casa MENINAS DA ROÇA as meninas da roça trabalham nas casas as casas de família para estudar as meninas da roça são retintas e belas trabalham o dia todo cultivando a vida as meninas da roça são exportadas vão para a cidade perder a inocência as meninas da roça são domésticas e sabem a arte da troca DAS COISAS o que revolta a água no copo é o que vem de fora o estado interior do vazio é sempre equilíbrio o que provoca o furacão é o que vem do encontro o estado dúbio das coisas é sempre violência 1047 NÃO-SER a luz atinge a retina não sei da sombra ela se foi nunca a luz retinge a memória uma vez lá dentro eternamente fato eu sou a luz da minha luz não posso passar a vida em função da escuridão do não-ser FENDA a casa do carro é a garagem a saudade da volta é viagem a cama do gado é pastagem a saudade da gota é estiagem DIA DESSES dia desses vou correr pela casa e encontrar os vazios do cômodo e revesti-los de palavras tão gritadas que não haverá átomo na estrutura que não vibre pessoa em volta que não se incomode pensamento posterior que não sorria (no fundo eu mesmo) dia desses vou dar de cara comigo mesmo e soltar uma gargalhada tão afetuosa que não vai restar dúvida da lucidez do 1048 momento eu diante do espelho e o espelho sendo o mesmo que a ermo viveu tanto tempo procurando um dia desses um dia desses dia desses eu vou fazer coisas absurdas para rir depois um dia desses vou experimentar o equilíbrio da loucura e das asas um dia desses eu vou me descompor para aparecer livre do outro lado MELANCOLIA voltar eu não vou voltar vou ficar olhando o tempo ou o relógio a tagarelar bem no alto da torre voltar eu não vou voltar vou me devotar apenas ao de sempre de outro jeito o modo de ser apenas melancolia TINTURARIA vou jogar tintas nos versos acabar com a clareza da rima colocar na rua o bloco inteiro das palavras vesgas do pensar não quero versos claros e distintos quero poesia multicolorida sem anestesia no início inícios onde apenas vem fim 1049 PULSOS os meus dois pulsos cortados por causa do seu silêncio mórbido RASGO o rasgo entre os viadutos a gota da chuva agarrada ela cai e nada acontece o sofrimento é humano VIOLÊNCIA lá fora entre os carros há um que de absurdo no crime lá fora entre os faróis há um que de desumano no filme o humano está violento demais CANDURA a ternura da manhã ainda divagando a noite passada em neblina a candura do sabiá acordado pelo sol cântico alegre no fio de alta tensão 1050 SINTO MUITO o que se passa entre o tempo do ontem entre as sombrias esquinas da vida o que se tornou e nunca mais será um sonho esse delírio de realização em pleno processo de existência o que ficou marcado nas horas idas e tidas e retidas na inconsistência da memória fraca dos dias fui eu passado como o sol esfriando entre o tempo da explosão e o agora adormecendo no espaço entre as coisas do passado e os gastos traços do presente eu rasgo a carta da saudade entre as palavras malditas da noite escura da alma eu nego sobriamente que houve você não houve você sinto muito não houve nós sinto muito ficarei eu apenas na noite e sem drama catando os pedaços do tempo E SERÁ? a fogueira de milho verde e dos hippies em volta queima e arde e fere ainda os olhos mais que a loucura do que nunca foi prefiro o delírio do que ainda não é e será? 1051 VENTRÍLOQUO o homem ainda está lá contando causos no meio do dia e da praça o homem com o boneco no colo ventríloquo é marionete com mão dentro por dentro do boneco vive marionete o feminino do humano ESPANTO a humanidade está cansada falta espaço para tanto sonho ou há muito espaço para o espanto? a humanidade caminha cansada e sem modos pelo espaço BRINCADEIRA depois da infância vem outra brincadeira o confiar em si mesmo apesar do medo depois da infância vem outra besteira o desconfiar do passado que aqui me trouxe depois de alguns anos passados o tempo se esgota na noite e a noite revira o tempo da infância morta 1052 TIETA tieta ainda vive no alto do botavira exibindo das tetas o prazer aos rapazes de família tieta fez sua família com vários homens e de cada um ela arrancou um nome dos rapazes de família tieta não tem filhos sem pai tem filhos de mãe mãe de família ESCRITURÁRIO ele não dá sua mão para ninguém e se acontece socialmente ele corre e lava com sabonete tempos do banco o dinheiro sujo ficou na memória do escriturário ele não oferece a mão para ninguém só escuta música porque o som não produz sujeira que se possa lavar SENHORA DO CARMO quando eu voltar já velho para a cidade interior vou encomendar uma imagem de nossa senhora do carmo para cláudio de joaquim soldado só assim vou acreditar em deus só assim 1053 TRÊS a árvore diante do chafariz sem água bem em frente da escola infantil quebrou seus galhos na tempestade nunca mais foi a mesma o chafariz um dia secou a escola cresceu seus alunos a árvore perdeu seus galhos eu passei e sobrevivi aos três ser humano ser passado ESTAR ENTRE entre o silêncio da folha caindo e do tempo em vento nas folhas prefiro o torpor da hora chegando silenciosa pouco a pouco sem demora no tempo certo depois de ser realidade entre o silêncio das horas deixando a vida em total abandono e da morte chegando em sua totalidade prefiro a deferência da sabedoria construindo novos rumos para os rumos desarrumados da vida passageira e necessária 1054 BEIJO QUENTE não provoque a sede na boca os beijos são quentes demais e posso necessitar ainda mais da sua presença aqui e agora MÁQUINA DE ESCREVER tenho saudades da máquina de escrever da campainha anunciando sempre faltam apenas 10 toques para o fim tenho saudades do papel correndo de um lado para outro e do mecanismo do barulhento mecanismo das teclas a máquina de escrever fez parte do ontem não ficou tecla sobre tecla DAS MORTES das mortes nas guerras quantas terão sido por medo da vida? das mortes dos suicidas quantas não deverão ocorrer por medo da vida? NOVA HUMANIDADE uma nova humanidade renovada em espírito estará próxima ou distante? dos absurdos humanos um cansaço se evidencia a paciência se esgota 1055 entre uma e outra notícia uma nova humanidade remoçada nos objetivos estará nascendo ou repetindo erros? COLETIVO o coletivo é o mais difícil o bem coletivo é o mais raro ainda estamos nus na nossa escuridão a solidariedade se espalha mas ainda é frágil e pouca ainda fazemos jus à nossa divisão SERRO vou passear no canto da praia mas antes vou passar por debaixo da grande árvore da santa casa e depois vou lembrar do necrotério que ali havia e que aterroriza a infância vou sentir o frio da madrugada voltando da casa no botavira entre mandalas coloridas e músicas e frases de jane entre machu pichu e a patagônia um dia eu ainda vou lá acompanhar o pôr-do-sol entre a camada de gelo mais primitiva do planeta e entre razões pessoais para acreditar na humanidade um dia eu vou me abandonar sob a lua cheia – a segunda, azul! – no gramado da igreja do rosário em milho verde e vou perder a vergonha de dizer a verdade para mim mesmo um dia eu farei o que quero mesmo que seja um erro mesmo que seja desespero mesmo que seja inteiramente serro 1056 ENTRE DOIS PONTOS DA MESMA VIDA / 2011 A PARTIR DE UM PONTO estou ainda paralisado pela beleza do outro mundo não o meu mundo inteiro e cotidiano da vida interiorana de um canto de minas gerais tão absurdamente pequeno que me caibo ainda nele estou perplexo diante da beleza do monumental de outras construções dos metrôs na rua e pedestres desse mundo outro das estações de trens gigantes e da pequenez horripilante em que me encontrava embarquei pela porta da frente do sonho e me dei me dei o tempo de ser outro estrangeiro e incrédulo desconfiado e aterrorizado com a inutilidade banal da minha presença naqueles lugares um dia eu ingressei em outro mundo e me saí sujo como um poema gullariano nascido da indignação 1057 mas a sujeira era essa lembrança estonteante do grande e do infinitamente pequeno diante de si esse eu que vive em mim estrangeiro sem fim de rotas confusas de mapas perdidos esse eu que se confunde comigo quando falo ou quando pergunto para achar resposta para o silêncio esse silêncio que é meu próprio tudo esse eu que viajante em terras outras encontrou na fissura da vida um outro perdido em tempos tontos e preteridos que ouvia ainda os sons que não se ouvem mais numa europa outra de outro tempo dado o tempo é navegação a ermo sempre ou sempre determinado quando presente porque achamos que ele é determinação 1058 numa europa confusa dos imigrantes confusos dos indianos dos paquistaneses dos africanos e de mim um brasileiro com olhar miúdo diante de um mundo gigante para entender quem era eu olhando para os monumentos era apenas rememoração ou tolo sentimento era um olhar novo ou redescoberta do dado mudado no tempo das cidades eternas? só sei que pensamento foi de um ponto a outro ponto da mesma vida em poucos dias dias de alma e não de corpo dias de caminhada e não de repouso eu precisava passar pelas ruas pelos quarteirões tortos e pelas estátuas ainda presentes entre uma ponte e outra e mirar as montanhas mesmo dentro do trem eu precisava acelerar a memória para reviver e não pensar em nada em não sentir o porquê 1059 o porquê da vida é sempre uma operação chata e enfadonha é a saudade que trago em mim de um ponto ao outro ponto geográfico fugindo do espaço apertado do cotidiano eu fui para outro ponto da mesma vida para acalmar o tempo absoluto em mim de um ponto ao outro ponto da mesma vida saí em busca do roteiro imaginado antes e durante cada curva me revelou de mim o melhor de cada momento eu essa companhia interessante quando junto e companhia divergente quando luto contra os medos que me atam ao aqui e agora eu essa bigamia de alma sem saber quem manda e se sabe se orienta depois desdiz e se espanta porque das horas sei da mutação essa que vi em forma de cidade civilizada em monumentos da minha alma tentei curar a o tempo 1060 mas as nuvens da europa me devolveram o dado em outros tempos percorridos com tantos lados mas ao meu lado não havia ninguém de outro tempo apenas eu mesmo me procurando que essa procura eu sei e sinto é minha que essa procura alucinante eu faço e tenho prazer em despertar todo dia querendo mais da vida que de mim algo querendo mais do mundo que de mim pouco estou vazio e penso pouco só lembro da saudade condoída de europa na alma esse ponto em que me encontro é pouco outro ponto em que me desloco é louco e todos não chegam nem partem são tortos porque sei que o certo é um destino sem graça eu fui e voltei para dentro e de dentro me faço memória e poesia que essa é companheira 1061 da alma repleta do grande monumento o maior dos monumentos o melhor dos monumentos o mais estranho monumento a saudade essa que não se afasta e vem e cola e cala e passa e tem uma vida própria em mim uma morte nunca realizada a saudade é a outra margem da viagem essa que começa em vazio de paisagem e quando se vê há um colossal registro de datas e cheiros e horas e medos passados eu passei de um ponto ao outro da mesma vida e não me agito interiormente por isso sei que sempre quando chega a hora da partida é melhor ceder que relutar em beber a mesma água dos dias um ponto ao outro ponto da mesma vida uma viagem interna dentro da mesma visão dos olhos meus agora que são admiração desse sonho interessante que é a memória 1062 os lugares continuam lá mas eu me mudei de ponto se quiser me encontrem longe de mim mesmo não sou mais o mesmo estou há quilômetros de mim perdido e achado aqui no fundo do meu silêncio BELO HORIZONTE o bairro é pequeno como eu sou pequeno saio do bairro para a rodoviária da linha verde há uma ligação entre um ponto e outro da viagem a conexão entre o chão e o ar entre o plano e o alto entre a terra e o céu no aeroporto tancredo neves as aeronaves chegavam e partiam um ritmo frenético de pontos outros de vidas tantas misturadas no saguão do aeroporto 1063 eu peguei o vento oposto da imaginação o caderno de poemas e me pus ali meditando sobre o tempo que flui não entre as coisas mas entre os fatos não entre mim e mim mesmo mas os pontos de mim que se opõem confins é um aeroporto em formato círculo mas do círculo não se fecha a curvatura como o universo que depois de aberto se fecha para sempre na antimatéria do buraco negro em confins começou a viagem de um ponto para outro ponto fora como se dentro eu me deslocasse para não sei onde apesar do mapa 1064 SÃO PAULO entre belo horizonte e são paulo não há uma turbulência sequer nuvens que me levam para dentro tão fundo em mim que pareço ser apenas vácuo entre são paulo e mim nada existe senão a janela do avião no alto e a menina lendo um mangá na poltrona à frente entre são paulo e mim não existe empatia apenas pausa para o estresse comum às grandes viagens como se todos resolvessem num dia viajar juntos entre são paulo e mim há um ponto de intercessão funesto acabado em embarque demorado ou free shopping de chocolate suíço entre são paulo e todos os outros anônimos visto por minha lente nada há senão um relógio chegando na hora de entrar pela imigração hora de embarcar no vôo da air france hora de acomodar-se entre poltronas hora de escolher o silêncio chato 1065 da mente em turbina acelerado e como não se espantar com o âmbar escorrendo entre as casas paulistas em amarelo sanguinário espanto de ver que na rua o ar baila e nas casas os moradores parados são invisíveis por causa dos telhados avermelhados em barroco sentimento guardados como se o tempo no vôo fosse apenas tempo de esquecer o terreno o âmbar do alto conectando as casas o escuro e o quase ouro invisível distribuindo na noite de partida a riqueza que penso ser minha agora não a riqueza dos tripulantes servida em objetos de plástico nem do ravióli descongelado tão insosso que pensei no Brasil mas estava ainda no Brasil me apontava o visor de vôo mas como ainda no Brasil se não sou ave do céu? estava já em outro lugar um ponto de outro ponto deslocado como se houvesse o avesso de mim dissipado 1066 a antilhesa em francês estrangeiro me serviu a noite como única possibilidade e degustei o momento em caderno aberto em meio às emoções confusas de um longo vôo PARIS não sei como estou diante da cidade mas ainda me vejo ali sempre quando a saudade acompanha na noite o ritmo do tempo adormecido em emoções inválidas ou se valeram não posso dizer apenas da noite trago o fogo da emoção essa que se perde quando se chega de novo como se nunca dali tivessse saído a alma se sentiu em casa e nunca estive tão bem diante da cidade das luzes das luzes interiores eu sei que não há conotação prévia para o acaso nem entonação própria para a música que acompanha mas sei que edith piaf nunca foi tão real 1067 quando como cheguei ao montmartre do alto vendo paris em céu azul e do céu azul vendome livre o vôo do tempo era a alternativa para mordaça inquietante da rotina da vida de trabalho no montmartre as árvores altas de verde claro deixavam os ventos passarem em verão e calor e a música dos violinos da sacre coeur ecoam forte em moonlight serenade em fim de tarde as praças fechadas em tantas grades as fontes de água pura e os pombos e sempre uma estátua a admirar petrificada as pessoas passando em tempo de flâneur de manhã o vento frio ainda adormecia a memória do dia anterior de uma viagem às pressas de sensações eu nunca fui de correr sempre optei pela contemplação 1068 mas a alma exigia revisitar os lugares os monumentos quando adentrando o cemitiére pére lachaise a morte chegou pelo som dos corvos e pelos mausoléus cobertos de lembranças tristes e felizes de outros tempos quando nas árvores o tempo enviava mensagens de boas vindas como se aos vivos os mortos quisessem roubar o tempo das possibilidades e do porvir que parece ser o futuro quando de mapa nas mãos e o coração pulsando adentrando a avenida dos combatentes da segunda guerra e das diversas tragédias humanas em nome da paz quando à esquerda me virei e em esquina se deu o busto em dólmen de allan kardec o coração reviveu tempos de druidas dos druidas que um dia resolveram erguer stonehenge e foram se achegando o ateu e a brasileira na manhã que anunciava um dia de quarenta graus e de pés cansados 1069 e fui percorrendo em sensações de tempo passado as ruas e alamedas dos mortos famosos e anônimos ricos e miseráveis a miséria da alma é uma lembrança para todo o sempre e fui me deixando envolver pela sensação de abandono a sensação individualizante da morte à qual a resposta é de cada um apenas no silêncio dos dias e fui arrastado pela rua gambetta passando pelo crematório onde as cinzas de tantos serão a única recordação de um corpo que não resiste às emoções do futuro a sombria visita não assombra quem medo da morte não cultiva já que é bestial antecipar o que não sabemos se será ainda cedo ou tarde arrastado pela dor física a manhã de paris é como uma noite bem dormida ainda as lojas ainda fechadas e apenas os cafés recebendo leitores para um tempo compartilhando das letras a notícia nunca saberei o prazer de ler jornal pela manhã o dia em fresca bruma começa sempre em metrô os jardins de verão ainda repletos de cores e os pardais dançando nas gramas 1070 nunca saberei o prazer de ler jornal na praça entre as ruas de paris ou por sobre a pont neuf pouco sabia de mim agora dado em tempo sabia de outro em outro dado momento entre as faces renovadas de homens e mulheres pouco nutria de sensibilidade agora meu tempo pulsava outro em outra vida perdida e dada entre os artistas do sacre coeur ou do quai antoine não achei a face pintada de ontem apenas um retrato na câmera digital revelando o dado do tempo outro tempo outra hora outra eu outra face novidade em mim em coração renovado em corpo outro dado eu sei sou apenas um outro ponto da eternidade 1071 mensuridade a brevidade sei da eternidade vasta e infinita mas em paris eu queria apenas paz a paz inacreditável de sentar-se na praça ver os pombos se banhando a paz inabalável da velhinha em passeio de cachorro compondo a manhã de verão e de novidade o vento que passa entre as pontes do sena daria da vida o muito para sepultar os ventos em face dados outrora mas o vento volta outro e sei do outro em mim e do vento outro aqui deixando para trás o todo de uma vida apenas o vento vai prosseguir em outros rostos ainda mas ali não estarei sei bem o vento que me consola é mineiro e frio no inverno e cheio de secura e quente no verão e vazio de frescura 1072 e agitado na tempestade e estático em julho para desespero dos meninos soltadores de pipas o meu desespero é outro é saber a sapiência dos ventos que não voltam e dos meninos que voltarão em mim terão dúvida sobre o vento que também retorna o vento de paris é diverso do vento da montanha o mesmo que ouvi quando nasci em outubro em tempestade na minha cidade natal o vento brinca de jogar as longe num jogo violento entre os telhados o vento de paris não anuncia a tempestade nem o frio há uma ausência de comunicação sobre o que vem depois e como não sou daquele mundo me senti fora do tempo o que me adoçou cada manhã os pardais da minha cidade morrem quando venta muito caem dos telhados em madeira velha o tempo cria armadilha para os corpos jovens e sem maturidade os pardais de paris vivem no chão tão campestres que duvidei por um momento que a grama verde tivesse algo de seu interesse na minha cidade os pardais gostam de invadir a rodoviária 1073 e mesmo nas casas de janelas abertas aos ventos da manhã é costume das aves roubar os grãos de arroz (isso quando o gato não roubou um pedaço de carne) os pardais de paris gostam de semente de grama e têm as penas claras e os olhos tristes sem a esperteza dos pardais do Brasil os pardais da minha cidade vivem alegres no verão e no inverno são tão poucos por causa da mortalidade que parecem desaparecer das manhãs de silêncio os pardais estão no mundo eu jamais me encontro em todos os pontos da mesma vida sou vários em mosaico de tempos a hora em outro lugar é sempre hora nova mas em paris a hora era uma dor de reencontro com os nomes com os lugares com as estátuas eu as via novamente sem ter estado lá agora eu sei do vazio das horas ainda por viver mas o que dizer das horas já vividas em outro tempo 1074 e agora refeitas em outro ponto da mesma memória cheia do cheiro e vento desse lugar? minha alma já esteve ali durante intenso tempo outro do mesmo tempo – tempo eu - em outra carne agora diverso em outro ponto – ponto eu a história é outra em dois pontos da mesma vida COLÔNIA o trem atravessa ainda a europa vasta leva e traz passageiros espalhando gente nos trilhos há um eterno barulho de trem vindo e trem partindo eu pus meu ouvido no trilho e senti na alma o menino acordando na manhã de férias quisera que o ouvido nunca tivesse partido para não ter que voltar em outro momento quisera que dos trilhos na memória da alma guardasse apenas a chegada mas os judeus se foram como eu para o exílio de outros lugares mas eles e eu voltamos vivos para reviver outras lembranças eu sei que a morte não mata a alma nem que a alma se perde no tempo eu me achei entre dois pontos 1075 no meio de um novo trem mas novo é o tempo da tecnologia e inovo se sei chegar e partir bem se renovo o olhar do tempo de dentro percorro com paciência o tempo eterno do além a europa ainda se percorre de trem mesmo depois de alberto santos dumont mesmo depois do 14 bis renovar as asas da imaginação do vôo o trilho resgata o tempo quantos giros um trem faz para levar até colônia o corpo? a hbf köln tem um cheiro de deportação os trilhos quando rangem seus dentes nervosos espalham um cheiro de óleo insuportável deixando a alma triste os trilhos de colônia tem o fedor do nazismo onde se conectam esses trilhos? a alma não queria ouvir os gemidos das famílias e se recusou a ouvir o passado das bagagens o café da manhã em 1076 hambúrguer e canecão de frente para a catedral onde os triângulos imperam como se o arquiteto do universo reproduzisse a estrutura de seu pensamento no cartão postal da cidade a grande arena a mulher jovem em mendicância a tarde de sol repleto de pombos e pardais e das compras para guardar no lar a memória de um tempo calmo perto do Reno AMSTERDAM como se estivesse entre os canais abertos da alma de um lado o passado sempre pronto para a cobrança do outro o futuro essa margem sem fim da vida como se estivesse em pernas de pau para dar conta da 1077 travessia entre o espaço de dentro e de fora a grandeza do ser ali em volta da central onde os destinos se cruzam e de detestam para sempre como se estivesse oco por dentro e cheio por fora em prece de convento beneditino aguardando o dia ser o melhor dos dias daqueles outros dias tristes em que era apenas uma presença sem mim mesmo dentro em amsterdan eu não quis nada mais que eu mesmo no reflexo pálido e confuso no canal de algas entre casas barcos e barcos casas entre o sol e nuvem espessa em amsterdan eu não quis nada mais que o sopro do espírito dentro dizendo para o mundo lá fora estou pleno e centrado nesse momento eterno sem vazio em nenhum dos lados o canal corre fundo separando as ruas as pessoas não se separam pelos canais o olhar percorre longo caminho e encontra 1078 o amor mesmo do outro lado do rio o canal frio sem vida aparente se mar ou doce se gelatina ou azul em transe não sei debaixo dessa água não quero ficar eu sou ser da superfície e nas nuvens do dia que se passa rápido em viagem não achei sentido para a estação tão cheia de corpos não havia ali um corpo que dentro pudesse tirar amor por mim e por isso de mãos abanando a confusa vida de quem entra e sai de trens e percorre os trilhos como se caminhasse pelas próprias pernas e mede o tempo não pela maré ou pela nuvem má de agouro mas apenas pelos destinos que chegam e partem da estação nem van gogh me salvou na inútil paisagem interior amnsterdam será sempre bela porque de mim não precisa sua imortalidade não depende da minha presença mas dela tirei a fotografia mais breve e forte de uma viagem a fotografia desbotada de uma alma em fim de depuração 1079 em corpo cansado de viagem em trem de vago vagão eu sei que a vida em amsterdan não é nada em mim eu sou fim amsterdan é riso de tarde breve a fotografia está nos porões da alma essa que aprisiona o tempo bom ou ruim e cata da existência dores e alegrias essa alma obscura até para si mesma que se fosse nuvem que vai e morre seria mais fácil mas as nuvens passam e se acabam e a alma continua sua loucura em meio dos dias de viagem quando começou a viagem não sei só sei que da alma as paredes estão cheias tão cheias que me perco em tantos calendários e folhinhas marianas (ah, dona sinhá de santo antônio do itambé lembrei do pote de água fresca atrás da porta em estante de madeira e lembrei da folhinha mariana como promessa paga anualmente essa água ainda me sacia essa água ainda me alimenta a memória) as casas velhas tiram seus móveis pelas janelas e dos canais se atravessa para o mar não o mar de banhar-se o mar do medo de alagamento na superfície de amsterdan o dia passou ligeiro feito rodas de bicicleta perto do memorial 1080 no centro de um ponto que não era o centro era apenas uma ficção de localização no restaurante de lanche rápido de garçon em holandês me abordando eu sei até agora que fui estranho para quem me quisesse parecido o calor da cidade não incomodou a pele nem a umidade dos canais invadiu os pulmões quando em viagem há uma secura por descoberta até agora acredito que havia muito para explorar quisera que a tela de van gogh estivesse em três dimensões pudesse eu entrar em seu quarto e sair no quintal onde os girassóis se desmancham de amor ao sol a qualquer hora do dia BERNA o dia do urso começa sonolento eu também sou assim dentro do trem em grande velocidade entre um ponto de paris e outro ponto da alsácia 1081 e outro ponto em strasburgo e outro em colman e mais um aos pés dos alpes me saudando com um nublado dia que a fotografia se tornou preto e branco imediatamente mas não me deixei cair em desespero por causa do medo de não andar entre as casas e rio aar com sua água verde clara de água de neve que um dia foi água de fundo de terra que um dia resolveu chover nos alpes mas sem saber virou pingo gelado e hoje veio me visitar na sua vida cíclica a água sabe dos pontos dentro de um vida mais que eu que nunca água fui mas tenho sede de vida em cada canto do meu céu e do meu inferno e não importa dizer que a cobertura de vidro temperado em neve sol escaldante por sobre a estação que de lojas vive 1082 e de restaurantes de salsichas sobrevive tenha olhado para mim com frieza sei que em berna os olhares são quentes no verão e cheios de saudade e melancolia no inverno quando os alpes bravos dizem ventos fortes esculpindo na pele a saudade do sol em arrepios longos e sem remédio sei que em berna as crianças crescem felizes e sabem brincar sua infância debaixo das fontes numa brincadeira arrebatadora ao olhar em fim de tarde de mães e pais berna não se fecha por causa da chuva antes suas marquises levam movimento às lojas e nesse frenético ir e vir os postais expostos mostram um tempo parado de ontem não o meu tempo ali passando em vagar lento a ponte sobre o rio aar tem um aviso para impedir que os loucos que os trapaceiros tentem pular para morrer afogados na água que é pura vida 1083 a ponte é de altura inimaginável e as pernas medrosas de outras lembranças não conseguiu atravessar de um ponto ao outro é o medo sempre o medo impedindo a transição o mau gosto das roupas e em especial das meias em cores de arco-íris europeu que no brasil sei bem as cores são tropicais e inegavelmente belas as mais belas cores que revelam um outro olhar as ruas largas de metrô em linhas embaixo e por cima a energia para o trânsito o transporte vai de um ponto ao outro do mesmo dia e porque eu não quem disse que eu não posso na vida ter vários pontos de interseção entre um ponto e outro da mesma trajetória chamada por alguns destino? eu fui guiado pela curiosidade e pelo prazer de vagar 1084 sem destino somente buscando ali algo de mim que estava dentro enfim e não sabia esse calor que emito na saudade da felicidade ficaria ali para sempre não fosse outros pontos de outros tantos lugares me aguardarem e eu mesmo me esperar para mudar novamente a vontade de ficar em outro ponto de ir embora ficaria eternamente em turismo se assim possível fosse mas sei que morar em berna poderia ser um tumulto forte e desagradável para a alma acostumada a outro outro ponto em outra lugar que receio perder prefiro passar por berna como o rio aar sem parada definitiva e descer o morro para dar em outros pontos para de tantos olhares fazer-se belo e inteiro pena que só os rios sabem do inteiro da fonte pequena e miúda do trajeto tortuoso até chegar 1085 ao absoluto mar que esse não sei onde dá apenas imagino na doçura da noite de dor o que virá a ser quando o tempo se disser cansado dos olhos que vem da boca que fala da minha fragilidade imodesta BRUXELAS de paris a bruxelas é o tempo de um cochilo ou de fotografia desbotada da plantação distante ou de um sanduíche de estação de trem daqueles cheios de noite mal dormida o caminho que leva a bruxelas é curto e a estação principal é pequena e chata sem o encanto de outros pontos da europa sem o desencanto do cheiro de colônia mas em bruxelas o sorriso do domingo de manhã 1086 foi de uma sutileza e delicadeza tão profundos e os sinos da catedral saint michel tocaram tão fundo a alma triste de tempo que se acaba em passeio distante os casais de velhinhos iam para a igreja rezar no domingo bem cedinho e eu sozinho na praça me sentia em casa já que sou de passado do interior onde domingo de manhã era dia de ir á missa sentir a tristeza das imagens dos santos estáticos sem sair de um ponto ao outro da mesma vida já que as suas vidas eram apenas memória e poeira em bruxelas o sol da manhã é frágil que dá pena e as pessoas são tão silenciosas que 1087 as ruas são conventos como se a idade média estivesse ainda na alma dos homens e mulheres dali mas há em tudo uma monumentalidade e as praças lembram que o espaço é do humano para sentir-se miúdo diante da história esse grande ponto entre vários pontos da humanidade a praça da feira de artesanato tem senhoras de fibra como as brasileiras trabalhadoras de minas novas só que o charme da europa não coloca fome nem sede na vida dessas outras mulheres do norte bruxelas respira a vida de sua família real nas praças nas casas no palais royal e no grande museu da história da bélgica onde o nazismo aparece como a pior memória a ocupação da vida simples pelo totalitarismo marcou a memória da cidade para sempre e o rei exilado em seu heroísmo ambíguo é homenageado por sua bravura e resistência 1088 os judeus agradecem em grandes placas o povo que impediu a morte de parte do povo guardando em segredo em seus porões os que sofriam o temor da morte bestial e sem sentido as flores de bruxelas despertam cedo como as crianças para fazer o passeio com os pais e os cães não gostam do calor das ruas e os pombos sofrem de tanto calor mas eu me sentia em casa como sempre minha alma precisa de um pouco de beleza e muita simpatia para se sentir humana e feliz como ao entrar na loja de discos para comprar maria callas em seu esplendor e encontrei com um cão amante de música clássica dormindo ao som de mozart o museu da música no velho prédio inglês levou os meus ouvidos a todos os cantos do mundo a música tem o poder de conduzir a ama de um ponto a outro ponto da mesma vida e do terraço a europa pareceu ser apenas um ponto 1089 miúdo e único numa grande extensão de terra assolado por guerras históricas e povos que convivem em franca oposição os pontos belos e únicos são tantos será que poderia elencar meus pontos interiores com tanta nitidez como um mapa de centro histórico? RIO DE JANEIRO o vôo de paris ao rio de janeiro teve tão pouco espaço que parecia uma arca de noé humana a voar entre dois pontos do atlântico o rio de janeiro amanhecia em sua beleza única quando os corpos exaustos por doze horas de pouco espaço se esticaram em fila de imigração e mais uma vez eu me soube cidadão do mais belo país do mundo eu me senti voltando ao ponto onde tudo começou como um ouroboros comendo a cauda 1090 em eterno retorno fui e voltei mas faltava ainda me encontrar entre as malas e as lembranças entre a saudade do que ficava aqui e do deixava lá do outro lado mas eu aprendi que a tristeza é um ponto dentro da saudade e que a alegria é outro ponto dentro da realidade essa exaustão em suspiro que chamamos vida vida que pulsa como um tempo longe e um tempo perto mas sempre inquestionável são vários pontos no mesmo rumo a vida que sou eu e eu que sou vários pontos dentro da mesma viagem que fim terá? acabará em rio de janeiro lindo em dia de sol? INTERIOR DE MIM eu estou em mim há algum tempo entre pontos diferentes eu erro sou errante por isso vagante sou fragilidade por isso felicidade o tempo em mim é confuso 1091 não se divide e vive contínuo mas sei que para quem me acompanha sou muitos pontos em pontos diferentes não repito o dia de ontem apesar da rotina eu navego em mar tenso por dentro e não pense que há calmaria todos os dias eu preciso me ajustar em novo ponto no espaço a viagem ao interior de si é breve dura talvez alguns instantes na vida mas nesses instantes de autoternura há uma voz dizendo de mim para mim e perdoando os pontos cegos do vôo os pontos passados sem contemplação as viagens sem empolgação os desvios do rumo das cidades que embalaram meu sono das luzes que iluminaram meus passos não quero nada a não ser a lembrança terna e fértil e que ilumina sempre das estrelas não quero nada mais que o enfeite 1092 em céu em dia de calor em paris ou chuva rápida fechando o tempo para sempre em berna do céu que se renova eu não quero nada mais que o azul me faz ver longe e trilhar na imaginação outros caminhos que se abrem e se fecham e se cruzam nas horas dos dias do grande amor eu quero apenas o sorriso do primeiro o grande e maior primeiro sorriso de amor que da angústia de lhe encontrar muito sofri das asas do avião quero para sempre flexibilidade para decolar na hora certa e mesmo no incerto ter força para levar dentro de si a alegria da viagem a viagem dela apenas o sopro renovado sopro da novidade a viagem dela apenas o breve o breve momento de ir e voltar e estar indo ainda não chegado e estar voltando ainda não voltado a viagem entre dois pontos da mesma vida a vida passageira 1093 sempre passageira passa ligeira é da natureza da vida a passagem de um ponto ao outro ponto frio ou quente lento ou rápido sempre dialético não sei dos pontos vários em cada ponto diferenciado não, não sei nem mesmo qual ponto foi inicial sei de agora essa vazio de outros pontos por costurar de madrugadas por vier e esquecer em especial aquelas madrugadas onde seus braços longes não me alcançam nem em sonho o sonho é uma das melhores partes dos pontos sonho que não se emenda que não se escreve esse delírio da razão que sonha em ser apenas o prazer realizado mas nos pontos vazios do passado o prazer quando ausente foi está não quero a memória do esquecido deixo o eterno morto repousando no frio caixão do tempo eu continuo a viagem de um ponto ao outro ponto entre um eu que é e outro eu que se faz e vai ser mas não controlo a viagem interior tem roteiro incerto 1094 perdas inimagináveis que se adicionaram e se adicionarão sem que isso comprometa o mapa a seguir e sigo e sigo e sigo sempre em frente tropicando em horas ouvindo os sinos da santa rita da minha eterna cidade do interior que vejo em todos os lugares como impressão digital da natureza de dentro esse que se expõe nas janelas do trem eu estarei depois do serro entre uma janela e outra da alma basta se abrir uma cidade nova para amar a lembrança dos sinos das palmeiras das praças dos cachorros sem dono dormindo nas calçadas dos loucos da rodoviária sem passagem eles não querem ir embora de dentro de mim mesmo que morram a lembrança deles é eterna eles estão no mesmo ponto de sempre e sempre é um fim e um começo eterno retorno 1095 NOTÍCIA / 2011 PAISAGEM DO DESCASO a cidade se perde entre árvores casuais mendigos casuais e eu casual dentro do cenário a cidade se veste como se despida estivesse a árvore retorcida é semelhante ao velho encurvado mendigo solitário a cidade tem paisagem mas nada de planejado é uma paisagem do descaso onde casa um juntou seu caco a cidade aquece as pernas no asfalto tenso e quente os carros poluem o ar mais uma vez em descaso a cidade se fecha aos olhos numa paisagem de descaso puro descaso puro descaso belo horizonte, 17-07-2010, sábado SÃO PAULO I na veia de são paulo corre um âmbar luminoso o único movimento visto do alto no avião 1096 a cidade parece mosaico emoldurado de amarelo um âmbar tenso nas ruas SÃO PAULO II os telhados escondem as cenas eu daqui nada vejo o telhado dos invisíveis esconde a ação nada vejo será que deus os vê? GUARULHOS I fila que dobra pra cá depois retorce pra lá e dá em outro lugar onde a fila continuará uma fila atrás da outra passaporte na mão bilhete na mão cabeça quente GUARULHOS II como gado vamos uns atrás dos outros quem à frente 1097 vai à frente ou atrás de quem? quem foi o primeiro dessa fila infindável? TURBINA zumbido de colméia a turbina ligada a rainha onde fica na torre plugada? POLTRONA a poltrona à frente tem painel eletrônico eu sigo a rota por terra por mar estamos agora a 9 mil metros do chão entre a terra e o espaço infinito presos na aeronave por ar via aérea MAIS DE DEZ mais de dez horas o avião continua zumbindo nos ares vejo terra à vista 1098 mais de dez horas entre a américa e a europa vejo o aeroporto SENTADO me senti em casa não fosse pela posição dormir sentado é prostração jantar café da manhã queria mesmo hotel vai demorar ainda? GARE DU NORD I os arcos flexionam verbos ecos de vozes múltiplas de todas as partes do mundo a estação qual nave parada no meio da cidade conduz aos túneis e a outros lugares as burcas os turbantes os homens negros as mulheres árabes se misturam no domingo 1099 TURBANTE as cores fortes amarelo azul verde vermelho preto branco o turbante prolonga o pensamento da africana ao infinito INDIANOS em seus bigodes em sua pele morena em sua língua obscura em seu terno de domingo em sua vida de trabalhador em sua habitação da periferia os indianos estão no trem sorrindo da vida passando pela janela do RER HIPOCRISIA o taxista muçulmano ainda me leva na sua ira até o aeroporto os cristãos são hipócritas a frase não me sai da cabeça e ronda minha certeza até agora MUÇULMANA a muçulmana de rosto coberto com um filho nos braços pede escola no metrô de paris 1100 por detrás da câmera um outro homem qualquer nada vê na correria comum de seu monitor a fome continua dos dois lados CEMITÉRIO os carros passam rápidos pela rua no muro ainda bate o vento da morte entre os vivos que passeiam por montmartre bem na esquina do cemitério há uma nuvem de vida em paris mas um enorme número de corpos mortos e sepultados em mausoléus de pedra a vida e a morte a alegria e a tristeza são roupas tempo ALTURA do alto onde as pombas conhecem melhor que eu a cidade lá em baixo eu me posiciono no alto depois das escadas ou antes que o vento chegue as pernas me colocam na montanha de lá vejo uma cidade no por do sol linda e jovem como sempre 1101 bela e monumental como nunca esse olhar é só meu do meu ponto de vista até onde a vida alcança nem os pombos nem as aves mais fortes sabem da força do passado eu sei que o passado me eleva mais alto que a basílica sacré-coeur PADROEIRO saint-jean de montmartre é o padroeiro de paris na minha terra miudinha do interior de minas o padroeiro não tem é uma santa conceição que no dia oito de dezembro felicita-se por seus devotos ela não mora em paris ela habita no interior bem no altar-mor da igreja matriz saint-jean montmartre não conhece conceição mas ambos protegem da mesma forma 1102 GRAVURA na place du tertre perto da vinha antes da igreja fica uma rua de todos os lados tem muro de pedra e no meio passam milhares de pessoas e entre os milhares há aqueles que se põem no papel do desenhista para lembrança eterna meu rosto ficou apenas na sombra passageira da tarde bela de um sol tão belo que custo acreditar que a eternidade estava ali efêmera como sempre meu rosto passou em sombra viva a sombra da tarde de montmartre VISTA eu não ouvi som senão do vento não ouvi o coração senão do tempo não entrei na missa para não incomodar não rezei baixinho nem para ensaiar 1103 eu me pus apenas como um visionário no alto do templo para mirar o tempo o tempo que passa em silêncio bom feito pensamento que rola dentro CARACOL andar pelo corpo do caracol do mais interno do seu ser para o mais externo de se perder fui visitando os dezoito cantos do caracol da urbanidade por baixo da terra em metrô cada arrondissement é um número cada número me contou sua história pitágoras vive no corpo do caracol em solo da europa eternizado TOUR EIFFEL eiffel pegou uma linha de tricô costurou em geometria o concreto armou cada ponto mais alto do chão para elevar o olhar para o alto do alto se vê apenas a razão a mente que pensa e constrói no vazio do espaço arquitetônico o cheio repleto de outros vazios a torre eiffel não é bela mas cabe muita matemática 1104 CARRO prefiro as bicicletas os namorados nelas prefiro os corredores o sol da tarde belo prefiro as linhas de metrô os músicos fazendo festa os carros não gosto não tem pureza são impuros SENA lá embaixo eu vejo sua água em alga verde feito clorofila boiando na tarde de domingo os barcos são desprovidos do charme natural das águas e sua grandeza lhes rouba o valor o sena corre por debaixo de meus pés levando a sua vida em dialética heráclito estava ali comigo BARBÈS na rua da padaria havia também um restaurante de comida exótica feito festa do rosário a carne ali servida parecia estar há semanas dependurada em um suporte como conheço essa cena de alimentação 1105 desde pequeno não me assustei apenas pensei na beleza do mundo em suas semelhanças eu ali diante da mesma cena da infância no rosário os turcos comiam com uma cara tão boa não entendia uma palavra de seu vocabulário mas a fome, essa fome de cidade em dia de festa entendo bem desde pequeno no colo da minha mãe KARDEC estou aqui diante de mim e me vejo diante do tempo que passa e vai e vai como um dia veio e virá outro sei das horas em tantas vidas sei do tempo nas idas e vindas e sua vida que foi e sua morte em quem dói? não vejo dor nem silêncio sinto apenas aqui, diante de seu dólmen uma paz incrível um silêncio comovido e nem o frio matinal me faz desviar os olhos lacrimejantes da memória afetiva e dos tantos silêncio que fiz para chegar aqui as palavras espirituais não se calam antes agitam a razão para serem reais eu desejo ao mundo a ciência e todas as grandes vontades de progresso efetivadas dentro do amor que é tudo como deus os druidas revivem o tempo revive a nada é cimetiére du père lachaise 18/07/2010, lundi 1106 O TEMPO RETORNA memória que resta quase sem pressa os dias voltaram como sempre as coisas refeitas no lugar das coisas é o passado nas ruas os homens as mulheres os monumentos “les flanêurs” agora sou eu, de novo no novo tempo dado eu sinto um frio na espinha quando sei do que vai e do que fica e daquilo que é eterno eternamente paris nas escadas da dom / colônia, alemanha / 20 de julho de 2010 COLÔNIA a severidade das palavras os gestos carregados corpos desajeitados as melhores mães do mundo os filhos mais autônomos o tempo de família em colônia no verão os patos se escondem do sol sobre a ponte do parque eu me escondo de mim 1107 fingindo que me achei eu nunca me achei sei colônia, alemanha alemanha de arendt alemanha de heidegger DOM triângulos do arquiteto revelados por sob a escuridão o escuro da guerra tingiu as paredes de fuligem quadrados do arquiteto sustentando o peso das pernas dos santos cansados em estátuas colônia, alemanha 20/07/2010 ALFÂNDEGA qual o peso das palavras? a alfândega vai deter meus versos? DROGA a miséria em colônia estava ela presente nos jovens drogados da escadaria? essa é a miséria da europa rica e poderosa de filhos sem teto e pedindo esmolas? 1108 DINHEIRO a bela jovem toca flauta o rapaz simpático toca contrabaixo ele olha para ela e o turista deposita centavos de euro a música prossegue e eu vou embora não fosse a música bela aos ouvidos não registraria a imagem triste da pobreza que nunca se cala TAMBOR ele estava tocando o tambor o seu rosto cansado não acreditava no chapéu vazio no chão à sua frente o tambor soou alto mas não acordou o seu tocador HBF são várias plataformas na haupt banhof são várias lojas no térreo um relógio rolex de parede rouba a cena hbf köln de estruturas fortes concreto armado uma cor de fim de dia desde manhã bem cedo 1109 NEVE não havia neve em nenhuma parada nem próxima da estação nem longe meus pés não pisaram na neve nem o nariz sentiu o seu cheiro em nice nada de neve a neve estava nos rios o verão europeu é sem graça para quem gosta de montanha VITRINE as prostitutas estavam prontas para a noite na rua rente à plataforma em bruxelas os clientes se aglomeravam nas vitrines para escolher o cardápio da noite fim de tarde é começo de desejo SOMBRA a catedral de colônia não tinha sombra por volta do meio dia e os turistas não chegavam sequer à sombra de deus no dia quente de verão ao meio dia o sol tira deus de cena para um descanso merecido da miséria humana ALTURA elevaram as paredes ao máximo mas deus estava para além um pouco mais alto dentro 1110 costuraram estruturas ao altíssimo mas ele estava aquém um pouco mais baixo centro os arquitetos fazem suas obras deus faz suas metáforas sempre É... a primeira vez fiquei parado o mundo em volta são apenas os outros eu nada sou senão silêncio para ouvir edith piaf colônia, 20/07/2010 NUNCA MAIS os guetos nunca mais os campos nunca mais eu preciso dizer nunca mais o cheiro da deportação o medo da morte vaga ainda está pelos ares na Alemanha nunca mais 1111 QUASE ATRASO perdido na vida como um passageiro mineiro atrasado para o embarque eu me senti sem destino e mineiro atrasado ou quase para o embarque os alemães são mesmo surpreendentes colônia, 20/07/2010 terça-feira, fim de tarde, horário de verão ATRASO bilhete? onde? não sei... não pode no bolso, na calça esqueci no dom não, está aqui junto a mim coração acelerado -cheguei e sentei, que bom! APITO o apito de partida doeu na alma alma coletiva de quem foi judeu o apito obrigando as portas fechadas a escuridão o campo de trabalho o apito mexeu nos nervos há coisas imbecis na vida da gente e de outros loucos 1112 CHEIRO DE ESTAÇÃO a estação tem cheiro um espantoso odor de máquina sem gente de máquina sem dor colônia, alemanha 20/07/2010 VELA as velas acesas como eu de alma aberta tudo se acaba tudo acaba em fim a sombria parede dos santos e das imagens da morte a morte é a fé sem recurso ou o último recurso de sorte a luz das velas o escuro das salas o medo é sombra sempre mesmo dentro da catedral DENTRO agora escrevo de dentro do trem sobre os trilhos eu desando os versos (o sonho do poeta é escrever poesia num trem da europa) thalys, entre colônia e aix-le-chapelle 20/07/2010 1113 BILHETE não abuse da paciência eu sei quem eu sou só não lembrava já que acordei é hora de reabrir o diálogo sobre o tempo autêntico quero a alegria de volta e retorno cheio de força para dizer: basta! para dizer: estou pronto! para viver para viver bem e melhor TELHADO telhado de escama de peixe a neve precisa escorrer de volta para o solo o solo é depósito de tudo o que flutua LINHA que pena a linha do metrô daqui não encontra a linha do metrô de lá sinto saudade da linha do metrô de lá vendo a linha do metrô de cá 1114 GARE DU NORD II a maior toca de pessoas é a gare du nord de seus ferros batidos de suas linhas iniciais onde cada trem chega de frente e volta de ré sendo frente para outro destino toca de franceses de cores e estilos vários de movimento constante organização sempre precária para quem vem de fora das estruturas subterrâneas da vida parisiense PROTESTANTES amsterdam não tem católicos não os vi em prédios grandes há um cheiro de calvino no ar mesmo entre os barcos não há nem um pouco de imagens de maria nem um tanto de imagens de santos os pastores estão nas igrejas luteranas ou nas antigas igrejas que viraram museus max weber estaria em casa por aqui 1115 TREM E CHÃO os trens de amsterdam tem os pés no chão como eles eu deveria ser mas meus pés tem asas quando me acento em viagem boa eu não seu jamais do caminho certo trilhado em mim só sei que trilhei o chão de dentro até aqui DEUS você acredita em deus? perguntou o pastor luterano dentro da linda igreja a primeira visitada em amsterdam ele buscou um papel em português e me deu a grata surpresa de ouvir em belo português a passagem de joão eu não sabe que sem deus estaria perdido ainda por ai entre um canal e outro procurando um fim 1116 INÍCIO um céu que não acorda uma chuva que não vem um sol que não se sabe a manhã de amsterdam floriu nos barcos a cor da natureza esplendida eu me apaguei entre as ruas e entre os canais de algas tênues já que não sei viver sem luminosidade CASA o tempo das casas centenares é adverso habitação de muitos tempos há fachadas cada uma com seu tempo e sua face debochada elas vivem ali há tempos mascaradas de história ALGA alga amalgamada entre água e mar alga molhada entre mágoa e lar 1117 passei por cima das algas na ponte alga amalgamada entre mar e água AMSTERDAM um corpo irrigado por canais veias cheias de água nós circulamos é permitido cortar os pulsos sem dor apenas necessidade os patos marrecos contam da vida do corpo em canal estirado no mapa de uma cidade hoje habitada pelos olhos meus admirados 21/07/10 - holanda, depois de bruxelas, depois de paris 1118 I’M FREE as meninas da rua das luzes vermelhas parecidas com as do cinema na versão mais sensual a permissão da maconha nos coffee shops regados a reggae e doença eu no meio da multidão sou apenas mais um o único que me ama amsterdam, 21/07/2010 PATO E MARRECO qual a diferença do pato para o marreco? dúvida diante do canal em amsterdam RODA as rodas giram bicicletas metrô ônibus as rodas giram ventilador turbina vida eu sei das voltas do mundo em mim somente isso 1119 CASA as casas-barcos as flores na varanda dormir dentro da água como na barriga da mãe a vida suspensa do canal sem atrito real ÁGUA a água deve ser gelada ninguém nada no canal comente os bichos ninguém pesca por ali ninguém mergulha somente a imaginação COMIDA o mcdonalds fica de frente do kamper nos dois há sanduíches grandes num fiz o almoço noutro café da manhã colônia é uma cidade de sabores repetidos degustar é aprender evitar o oposto 1120 QUASE em colônia o dia foi quase quase chuvoso quase solar a estação foi quase quase passado nunca futuro MOINHO a velocidade sem fim quantas voltas no moinho da minha cidade mineira são necessárias para fazer uma viagem de trem na europa? VACA HOLANDESA as vacas nos campos pastam há dias mas só hoje eu as vi as vacas nas relvas bastam há dias mas só por hoje eu as vivi 1121 LIMITAÇÃO uma ordem demais ordenada em cada canto da cidade entre canais e entre pessoas há sinais de limitação pare passe interrompa fique aberto fechado pronto inválido seco frio há muitos sinais frios como ontem ativos como hoje estou de férias não quero limite PRISÃO a linha do trem prende seu corpo ao chão como eu no corpo sou extensão METRÔ E BICICLETA entre a bicicleta e o metrô apenas a linha em aberto para as duas rodas o metrô está em seu destino a bicicleta brinca de menino não sabe para onde vai dar a estrada 1122 MUSEU VAN GOGH as linhas sérias da arte no prédio do museu van gogh me deram a luz do tempo entre girassóis e sóis quanta alegria na tela expressando a tristeza da vida a arte de fato subverte o tempo de dentro e de fora PONT NEUF é preciso abrir espaço para os barcos mas é preciso criar o belo para contemplar a passagem das velas MOYEN-ÂGE jesus sorri para maria subvertendo a idade média na sua escuridão HEMISFÉRIO NORTE precisei atravessar o atlântico para conhecer o outro lado da lua eu precisei sair de mim para me conhecer um pouco mais serei completo agora como a visão da lua ou mais metade que não se encaixa? 1123 EUGÈNE DELACROIX I o museu tem cheiro de gente que foi embora mas nos objetos fixou sua tatuagem em odor no quarto de delacroix a roupa cheira tempo outro entre quadros e bustos e medalhas e homenagens EUGÈNE DELACROIX II em tudo a loucura dos últimos dias em cada parede e em cada canto a exagerada vida boêmia de paris de outro tempo ainda vivo a vida se espalha como lembrança criando o eterno no finito um dia os objetos serão apenas um monte de obstáculos para as pernas ALÉM DO QUAIS ST. AUGUSTIN ainda não voltei do quais st. Augustin onde os bouquinistes vendem livros e além de livros gravuras da belle époque ainda estou passando pelo cais onde as pedras em concreto cercam o rio sena há séculos e além do cerco conduzem-no ao mar para como o sena eu me perder no absoluto e além 1124 ESCOLA DE BELAS ARTES a arte em paris chama quem passa como o prédio das belas artes em formato convexo na entrada falta uma parte diz ele você que passa venha ver a arte do tempo na tela franca QUARTIER LATIN os universitários e as mesas cheias espremidos entre becos e ruas um teatro um sebo uma livraria e eu a sorbonne em algum lugar diante do busto de Montaigne o dia o sol e o verão e eu no quartier latin a inquietude é de quem acorda cedo ou de quem dormiu muito tarde e eu estou vagando ÉCOLE DE FRANCE na école de france michel foucault fala e seus verbos ecoam ainda pelo ar na noite onde o pensamento encontrava encanto entre os corredores da mente curiosa 1125 hoje o cartaz impede a visitação não posso entrar na sala vazia nem ver por onde as palavras antes eram ditas em sabedoria na frança há sempre um ar blasé como se até os prédios dissessem -sei de tudo há muito tempo só faço de conta que não sei DRAPEAU azul branco vermelho no alto do prédios públicos não há verde não há amarelo não há ordem e progresso no alto dos prédios públicos SAMARITAINE o samaritaine estava fechado obras por todos os lados do outro lado da pont neuf entre arvores verdes de verão o prédio fechado estava lá distante e encoberto por andaimes 1126 BEIJO MATINAL o casal se beija na estação de metrô tão cedo que devem ter se amado a noite inteira e agora se despedem para a rotina do dia terão se reconciliado? vai ver que sim terão se reencontrado nas férias vai ver que talvez a história deles pra mim é apenas um belo beijo matinal MUNDO PEQUENO o le monde diminuiu de tamanho o seu formato é mínimo falando do mundo eu não sou notícia no jornal sou apenas no mundo pensando em mim CÉU parece que o céu de paris gostou de mim na manhã céu azul tempo firme parece que o sol de paris incentiva a caminhada em pleno verão 1127 parece que ontem foi bom dormir ao som da sirene no hotel em montmartre PODER TEMPORAL é diante das faces velhas dos reis esculpidos em pedra no museu que vejo o poder passar provisório e tolo como todo poder pequeno e medíocre a longo prazo o poder virá pó como o rosto dos reis incógnitos se desmanchando um após o outro se sucedendo a natureza renova o tempo todo o poder frágil que passa sempre passa sempre passa ANTIGUIDADE em saint-germain as rosas estão tão coloridas em contraste fundo com as esculturas 1128 antigas os pardais comem semente no gramado da praça bela onde eu me encontrei mais uma vez comigo mesmo antigo a fonte de água pura convida à refrescância matinal para quem anda água esculpida e ofertada pelas mãos da mulher em ferro batido antiga UMA VIDA se descartes dividiu o corpo e alma vivo em paris num só dia várias vidas enoveladas pelas ruas que se apertam e se juntam para dar um destino a quem caminha FLUXO no metrô os ratos saem rápido e os pernilongos vivem também no metrô achei a toca que dava em outras várias tocas eu não me achei no labirinto mas despertei do medo de esquecer é preciso seguir o fluxo de vez em quando 1129 ATRÁS DO VIDRO indiferente aos cafés de paris entrei no mcdonalds e pedi a promoção mais globalizada avistei depois os transeuntes por entre vidros de preços colados na avenue richelieu COMIDA CHINESA a chinesa colocou no microondas o arroz o camarão rapidamente o mundo anda pequeno demais ela falava mandarim freneticamente a comida ficou com gosto de coisa misturada anacronicamente EXPOSIÇÃO willy ronis tem fotografias em preto e branco no monnaie de paris o cotidiano de outro tempo do pós guerra e da guerra de viver feliz 1130 ROTINA os franceses saíram de férias e deixaram a cidade para nós os estrangeiros há pela cidade um ar de abandono ocasional de uma longa rotina dos moradores DISTÂNCIA em paris estou livre dos norte-americanos há uma distância tão grande que os ares são outros diversos em paris os estados unidos parecem de fato uma américa distante NEBLINA entre paris e algum ponto depois a neblina me acompanha pelo vidro do trem qual a temperatura lá fora? o dia acordou lilás e a blusa os assentos o carimbo do validateur também entre paris e algum ponto da europa a neblina de faz parceria pelo vidro que tem a arte de me refletir 23/07/2010 1131 AFINAL acordei com formigação no estômago tomei um soco da vida estou desperto atento às ciladas do destino destino eu agora tenho um, afinal entre paris e berna, 25/07/2010, sexta-feira, bem cedo FONTE o menino solto no mundo brinca com a fonte uma das tantas na praça da paz e a chuva alterando a paisagem de fora e de dentro (que bom) cria outra realidade os alpes encobertos tem vergonha de mim esperando outra estação para me ver renovado o menino brinca na fonte de onde brota um outro mundo lá de dentro do fundo há sempre uma resposta berna, suíça, sexta-feira, 25/07/2010 DONAS as senhoras nos carrinhos de salsicha são delicadas sorriem para quem passa eu não pude resistir 1132 é muita mineiridade do outro lado do mundo é muito saudade no mesmo mundo meu HORA parece que não há medo do outro em canto algum em nenhum lugar o verão espantou a desconfiança para outro ponto as fontes despertaram o melhor de dentro de cada um o relógio marcou a hora da alegria de viver para todos ALPES a montanha não nasce mas faz os rios reviverem em fontes inesgotáveis ou em berna como há muito os alpes alimentam de água o rio aar quando chove suas nuvens 1133 a montanha não nasce mas faz azul quase verde as águas do rio aar descendo do alto um cheiro de ozônio puro trazendo o céu para os pés a neve derretida é agora um vale verde FUTURO na volta de berna num trem entre trilhos tantos e linhas várias e contraditórias um menino brinca e joga cartas com a mãe sorridente na sua infância ainda sem sabedoria do futuro essa incógnita do crescimento NEVE não houve neve ela no chão ficou nos alpes a neve não veio era verão calor nos vales 1134 ALEMÃO em berna o alemão é a língua o francês é outra opção entre uma compra e outra o difícil alemão é a língua as placas são confusas como descobrir o que se escreve? CHUVA a madeira na estação imita as montanhas em seu movimento ondulado a chuva chegou comigo mas a estação jogou para outro lado o som nublado ORDEM o ordenamento da cidade é cerebral e tudo se encaixa como um playmobil os fios do metrô as fontes em estilo medieval seguem sua rotina séria a cidade é uma regra exposta no tempo de cada um passando seu modo sistemático 1135 VISÃO ALPINA na rua kolcher atrás do parlamento eu tentei ver o invisível entre as nuvens os alpes surgiram devagar acordando em miragem sofrível entre as nuvens nada de fotografias o rosto estava sonolento os alpes voltaram a dormir assim que a chuva deu o seu sinal IGREJA na igreja protestante onde o órgão de tubos vela em silêncio os fiéis o café é espaço breve de mesas cheias bem cedo sagrado sabor EINSTEIN HÄUS albert einstein morou em berna sua casa virou um singelo museu dessas casas onde o cheiro de família permanece apesar do tempo passando 1136 na einstein häus as fotografias de família se misturam ao berço da filha do casal e a lembrança percorre cada cômodo PARA ALÉM quando as flores estão nas janelas cada uma em sua cor mais plena o sorriso saiu de casa e passou a dar bom dia para todos que passam quando a fonte não dá apenas água mas de sua beleza esculpida há sete séculos a ternura rompeu o limite da pela e passou a ser em praça pública EXÉRCITO SUÍÇO no trem de volta para paris saindo de berna havia dois militares do exército com suas metralhadoras e tomaram o meu lugar eu como bom mineiro evitei perguntar sobre guerra já que queria apenas a paz um deles de cara amarrada deu uma barra de cereais do exército suíço para um menino que brincava no vagão a guerra tem momentos de calma 1137 RETORNO DE BERNA o som dos trilhos é intenso mais uma vez um trem mais uma vez a passagem mais uma vez o sol dizendo adeus agora eu sei do caminho infinito essa estrada ilimitada repleta de estações diferentes não sei onde estou perto ou longe? em strasbourg as plantações são infinitas e dão noutro país já na região da alsácia-lorena as guerras adormecem com seus mortos silenciados SEPULTAMENTO acho que em berna não há velório nem sepultamento triste tudo termina em volta da mesa num sorriso de criança o sonho de uma vida morrer nos alpes no mais alto perto do céu físico e longe da civilização complicada LEVEZA o chocolate pareceu-me mais adequado consumido entre ruas da capital suíça as vacas estavam logo ali de perto me dando seu leite prontamente os relógios me davam a referência 1138 que eu não queria o meu tempo de estar sem pressa acabava no tique taque do relógio cuco por todos os lados as fotografias não dizem da sensação da emoção elas ficaram lá inscritas para sempre numa linha de tempo coletiva eu nós os outros testemunhas de um tempo que nem a morte a morte é frágil agora nos roubará nem a memória que apaga a função da memória é a mesma do sopro lampejos do foi bom belo puro singular o caminho de volta é o que dói o abandono do que não será e já foi a dor do que se fez realidade o prazer do sonho realizado é estranho e silenciador a saudade é sempre um silêncio numa estação que não é não foi e ainda está forte e real para quem viaja a vida é suspensão estou suspenso há vários dias alguém em mim está ausente e me faz feliz e sei que esse alguém adormecido vai voltar menos denso e pesado entre berna e paris, 23/07/2010 1139 CHEIRO o barulho do trem me dá medo muito mais medo que o navio os gemidos dos deportados no ar abafados pelas portas dos trens o sofrimento dos judeus paira sobre a cidade como um abafado suspiro que diz não devia ter sido e foi BEM CEDO acordei com vontade de metrô de subterrâneo de entrar na toda do coelho no caminho do rato entrar em lugares calmos como vincennes de uma calma insuportável entrar na association des études espirites onde a lembrança de kardec estacionou palpável entrar em ruas desertas do sábado onde o verde dos jardins e parques dão fome mais que as embalagens com seus letreiros em amarelo e vermelho paris, sábado, 24/07/2010 ARTE em azul tom sobre tom com o céu ao fundo se ergue uma caixa gigante caixa de arte 1140 a arte é o centro da vida de cada turista pelo menos no centre georges pompidou BICHO DE CIDADE os pardais os pombos os corvos sabem que somos finitos que depois do inverno o frio será necessário paris sem ninguém seria linda mesmo com pardais pombos corvos é magistral MAÇONARIA no museu da maçonaria na rue du cadet o cão pequeno cão me esperava para mostrar o grande oriente da frança templo hi-tech em cavernas milenares informações da ordem em quadrilongo 1141 SOZINHO o ritual de alimentação francês é social demais para quem viaja como eu sozinho é um destrato constante ver pessoas em grupos diferentes de mim sozinho [mas a viagem sozinho é um contrato de solidão planejada para refazer a vida de dentro] sozinho DEPOIS o carinho o afeto são fortes para o corpo eu preciso de amor como as flores eu preciso de carinho como as dores QUEIJO SEM VINHO paris tem gosto de vinho bom ou de queijo camembert de noite dentro do hotel em pernas cansadas esqueci o saca rolhas dormi sóbrio demais 1142 POESIA DE MANHÃ em paris posso escrever mil poemas por dia até pela manhã quando a poesia nunca se acha ao meu lado nem dentro nem fora nem perto nem longe a poesia não rima com acordar cedo o verso acorda tarde em mim PONTO eu? onde estou? não sei... devo estar entre um ponto e outro da mesma vida ou entre um lugar e outro da mesma saída ou depois do tido e antes do prometido eu? para onde vou? não sei... vou indo apenas gerundiando como se houvesse amanhã 1143 deve haver pois hoje hoje acordei de ontem e hoje foi melhor que melhor que tudo antes eu? estaremos juntos vida e eu fundos a caminho de bruxelas, bélgica, 25/07/2010 CONTEÚDO a janela do trem me contem queria sair por ai num vai sem vem a bestial vida das dores eternas da vida terna cheia de problemas desnovelar o enredo e fazer segredo da dor vazia que dói [enquanto isso o bilheteiro fiscaliza cada passagem de um ponto ao outro da europa] bruxelas, domingo, 25/07/2010 1144 REAL a realeza se espalha por bruxelas nos prédios de placas imortais o rei está vivo nas obras monumentais no palais royal ou museu belvu não vi castelos feudais somente prédios altos e monumentos aos mortos das guerras a idiotia da morte por causa da política entre a paisagem urbana medieval reis e rainhas sem castelos mas com museu e palácio MÚSICA maria callas me roubou a atenção na vitrine da loja de discos ao lado do museu da música maria callas canta agora aqui na casa depois da viagem ao lado de dentro de mim com ela brindei bruxelas e ouvi sons de instrumentos no old england o museu sonoro na catedral saint-michel os sinos dobravam e me chamavam mas não pude entrar senão no passado [na minha cidade eterna há um sino singelo que quando toca meche com todas as saudades] 1145 DEPOIS por que o último dia existe? quem criou o primeiro dia não sabia que depois o tempo se extinguiria e vem uma saudade antes do que sei inevitável depois por que o depois? paris, depois de um passeio nostálgico na place du tertle BANAL o centro georges pompidou é feio por fora e retem em si obras de arte pureza é ambigüidade o outro lado é sempre o inverso banalizado VIDA vou deixar a sombra apagada pelo sol que vadio levou a memória quero apenas o relance da saudade a brevidade das coisas que valem uma vida pequena vida de estradas tantas como metrô de paris a cidade onde cada dia é suspiro do que sabemos da finitude 1146 queria ser eterno apenas mas sou espírito aprendendo paris, 27/07/2010, segunda-feira FIM DE VIAGEM a tarde terminou de frente para paris eu não senti estranheza nem medo nem torpor eu sei que o sentimento breve foi de novo a falta que as coisas belas fazem na vida DEFINITIVO quatro meninas louras violinos a tocar a alma a primeira lágrima caiu leve e bela ao som de moonlight serenade o tempo arde em brasa em saudade do que é intenso e belo a vida é bela só não sabia das horas era um intenso momento eu me perdi definitivamente e depois outras músicas me fizeram voltar retornar para o hotel paris, sacré-coeur, 27/07/2010 1147 VINHO o vinho aquece a saudade esse silêncio que não acaba entre os tempos tantos da realidade eu não posso dizer de mim sem a falta que em mim há do que foi e a abertura cruel do que será sem ser inteiro HOTEL o que incomoda é o frio no hotel Roma sacré-coeur o frio é combatido água quente aquecedor janelas fortes e mais há pessoas prontas de todo modo para esquentar os lençóis ROTEIRO no hotel onde braque morou eu tentei ir pelos corredores mas sobrou dele apenas suas telas coloridas pelo mundo afora as pinturas pelas paredes pareciam dançar comigo haveria então um roteiro escrito previamente para mim agora? 1148 VISTO os paquistaneses entram sem visto tentam burlar as leis de migração mas o controlador de bilhetes não deixa imigrante ilegal passar não sei por que me deixaram entrar pela europa afora e agora eu me perdi já não sei quero mais voltar ao país onde o verde é mais verde VAGAÇÃO a volta da frança terminou no domingo era tarde e na avenue champs-elysées as equipes chegavam em glória absoluta como voltando de uma guerra vitoriosos vagando pela avenida tomada de policiais passei pela casa onde morou santos dumont ali construindo o número 9 que chegaria um dia ao 14 bis poderia ter ido ao jardin de tuileries comprar um exemplar de o pequeno príncipe mas continuei vagando sem rumo o que em paris é um rumo muito certo sempre CAIXA ACÚSTICA a caixa de música de manivela toca la vie em rose e agora está inerte sob o som da sala o mundo paralelo deixado para trás é como uma gaveta que se fecha para ser aberta posteriormente 1149 BRANCO cansei de me debater os versos não chegam caí para o lado estenuado com a folha em branco total paris, 27/7/2010 RESTA UM EU MESMO / 2011 O QUE RESTA É O POEMA restarão entre as coisas os nomes de cada coisa por entre os pensadores ficarão entre as couves o fertilizante de cada colheita perpetuando a fraqueza deixarão entre os sentimentos as dores e sabores de cada boca efetivando a paixão resta um eu mesmo nas coisas do mundo FORNO DE PASTORA para acelerar o coração vento de forno de pastora o sopro mais quente aquece por dentro 1150 MEDIDA o cachorro mede da ponta do nariz à ponta do rabo um cumprimento que se estende ao infinito de um lado ao lado segundo a matemática o cachorro não está nem aí para a matemática VENDA “vendo essa esquina” dizia o anúncio na movimentada rota do bairro compraram a esquina hoje há um prédio na esquina vendida ABALO um abalo sísmico em cada entranha da alma como se debaixo de todos os porões ainda eu sobrevivesse aos devaneios da terra marcada pela transitoriedade abalada eu estou abalado nas estruturas não como uma árvore depois da chuva a chuva depois passar por todas as árvores se esconder vaga no rio encanado da cidade 1151 a cidade que me consome e não me deixa ser eu mesmo nem diante do espelho trago cada imagem do dia há dias desfeita estou tão puramente entregue ao entregue esperando dele venha senão o sorriso da novidade não me incomodaria a novidade não cruza a rota da tristeza ESTRELA quando um grande amor acaba uma estrela morre no espaço mas o universo não pára por causa disso bem sei VIRADA tirar a roupa do tempo de cada molécula e me ver outro depois do tempo ao seu lado virar a página do tempo de revista no passado e me ver todo depois do tempo dado acreditar que o tempo vário do relógio interior possa trazer o novo amor claro 1152 CHUVA a chuva na janela pequena do banheiro insiste em me banhar eu não posso sair a chuva bate forte e chama para fora mas a água quente é salutar eu não posso brincar CAMA VAZIA quando eu me virei para o lado não vi seu corpo nem queria preferi a solidão nem de manhã quando me virei e não vi seu corpo não queria menti a superação SITUAÇÃO enquanto a chuva cai eu me visto por dentro como a flor sem vento se abre para o centro não me importo com os sons externos nesse momento sou apenas o vento quebrado remoendo 1153 VERÃO no verão apenas exponho o corpo oco de emoção no verão apenas componho o verso torto da sensação MELODIA a melodia da cidade da infância é tão profunda que corta a entranha da alma até calada a sinfonia da cidade da infância é tão conjunta que entorta o caminho dos pés na escada JURA juro não escolhi mexer tão fundamente ainda mais agora no silêncio na proteção da cidade onde os cantos são conhecidos tão intensos juro não prometi afundar as mãos na tristeza de ontem aqui é agora 1154 meu primeiro amor foi no alto da santa rita e por lá ficou há tantos anos perdi o sentido da escada os passos se perdem mas não se traem aprendi mesmo juro não entendi a palpitação da memória ainda buscando seu corpo entre as andorinhas mas algo do tempo se foi para onde vão as pequenas memórias essas que valem a pena lembrar apesar de todas as juras apesar de todas as maldições de todos os esquecimentos propositais de todas as horas afogando as mágoas apesar das fotografias escondidas não voltam mais as horas elas se perderam nos ponteiros do relógio amigo que levou de mim você de você eu talvez ficou a sensação do tempo de um tempo breve belíssimo serro, 30 de janeiro de 2010 1155 VENTO DA PRAIA o vento que passa na praia onde pastora faz quitanda não sopra nos coqueiros da praça joão pinheiro é outro vento levado trazido e jungido pelas curvas do paneleiro e das três bicas cozido no tempo dos pobres o vento é sempre frio menino que entra e mergulha depois sai e se liberta do fundo do rio rola feito pedra nas margens do lucas pois não conhece limite do curso a liberdade do vento da praia levanta a saia das beatas na festa do divino se faz antigo por que o antigo é sempre frio e os sons da banda são tão passados que a folia se repete há três séculos o vento da praia é devasso não sopra na praça tem medo da rua da cadeia foge pela mata de claudionor RITMO DA CHUVA no ritmo da chuva a lata bate tambor a manhã se torna festa de ritmos cadenciados a chuva de verão não sai do ritmo 1156 LIÇÃO bem cedo se aprende com a chuva a lição acordar é olhar a janela para saber qual a estação não adianta sentir frio na época que faz verão não adianta esperar sol no dia em que chove assim há na natureza algo para além da lógica racional da mente esperar da estação o certo é o que se deve aprender SAUDADE DE PEDRA as pedras da escadaria de santa rita na cidade do meu interior saíram dos rios bem do fundo dos rios os mesmos rios que hoje correm miúdos feito tempo bom nos rios as pedras rolavam para o mar o absoluto mar do tempo mas hoje estão incrustradas na história da cidade uma a uma amordaçadas como um colar para santa rita as pedras estão com saudade da viagem do fundo do rio para o absoluto do mar quando chove no verão as pedras transpiram saudade de marejar serro 29-12-2010 1157 VASTO o passado é marca eterna gravado feito marreta na pedra sabão o passado não se esquece deixado feito trombeta é gravação o passado é pasto vasto PRECISO o futuro é jeito de corpo que ainda não se deu talvez nem se dê impreciso O TEMPLO DO MAR quando o sol bate antes de quebrar a onda em mosaico de gotas eu ouço a voz de dentro o mar é um templo onde o tempo cala a fala quando o pé ainda não encontrou o solo do mar em apoio forte e o tempo gravita entre o bem e o mal estar de sempre 1158 o mar é tempo silêncio de templo fala e cala arraial d’ajuda, 17-01-2011 HIBISCO a abelha percorre suas veias as formigas sobem e descem o beija-flor apaixonado jura volta breve hibiscos de tantos cores amarelo vermelho cor-de-rosa flor de praia SABIÁ num canto de terra entre o mar e outro mar ele eleva sua voz em alto tom dissipa o som por lados tantos me perco em sua mensagem musical o sabiá canta encanta 1159 PITINGA recifes cercam as ondas até ali perto depois é mar aberto em pitinga há rastafári voo de ultraleve contemplo apenas o movimento da praia é maré que doa vida aos de dentro aos de fora QUILOMBO o gato tem nome de terra vasta esconderijo chama-se quilombo e rola na areia da praia arredio RETIRANTES quando a maré sobe os retirantes sedentos voltam para ver o que veio o mar traz água nova apesar de ser o fim dos rios 1160 CASA TRISTE tudo era triste naquela casa até o vento que passava pelos corredores escorria pelas janelas sem graça arrepiava os pelos do cachorro em fim de tarde na escada inacabada AGUARDO enquanto a nuvem não arruma a chuva esquento a memória que me trai mas não atrai sua presença enquanto o avião parado aguarda a hora dependo do tempo para lhe rever mas não posso sair por aí desatinando desatinado destino destinando ATRAIÇÃO ainda nem me recompunha da perda da vida veio outra venda ocular vedando o olhar não sei o motivo do amor ser galopante tão empolgante 1161 ainda não sei o que opunha de fato no ato o amor simplesmente chegou fraco e oco bobo e tolo era ele de novo eu sabia apenas não o queria SILÊNCIO É RAZÃO por certo não quero mas meu querer está frágil ando querendo que outros queiram por mim para que eu me deixe em paz por medo quero apenas razões para concordar e ser ágil não quero controvérsia deixem em mim apenas eu em paz de mim MISSÃO DO ABSOLUTO MAR em trancoso o mar recebe o rio deixa-o viver em paz na maré baixa mas quando vem a volta da lua o mar quer apenas invadir 1162 e se lança nos mangues desperta os caranguejos meche com as raízes bem fundo depois vai embora deixando o suor salgado sabor pela margem do rio recuando diante do todo poderoso mar absoluto que tudo pode pois mesmo na ira da invasão leva vida que sobe pelo rio depois se despede mansinho cumpridor de sua missão o absoluto tem missões que só o mar expressa COISAS as coisas tem forma estrutura peso norma há nas coisas coisas tantas significadas em instâncias como a boa e doce melancia tem sementes nas entrâncias as coisas tem peso caimento subimento elo há nas coisas tantas coisas 1163 revestidas de palavras doidas como o maluco que tem boina para o vazio da cachola as coisas tem cheiro apodrecimento florescimento inteiro há nas coisas tempos longos enchidos de vida em pompa como o talher de família santa passa de bisavó para filha em lembrança TEMPORADA o tempo volta a dar voltas soltas rodopios tontos pontos prontos tantos o tempo erra parado o tempo vela vagado o tempo vai em dor e ai paz 1164 A QUALQUER CUSTO hoje NÃO quis assistir ao jornal a televisão estava carregada de outras coisas preferi olhar para dentro e sentir o vento terno do fim de tarde encontrando a noite inicial mais uma vez hoje não quis me vestir de bem e mal deixei a verdade da idade gritar e pronto caído em algum canto da sensibilidade agradeci o fim do dia precipitado em noite que o tempo me fez hoje não quis o barulho brutal esqueci-me da zueira do mundo em volta optei por deixar as palavras soltas feito nuvens no fim de tarde resgatando da noite sua insensatez hoje não deixei o tempo passar eu o prendi dentro da liberdade de fazer o meu tempo na minha vida mais uma vez a saída para me encontrar [eu me encontro agora dentro de mim e não me chamem poderei evitar o ruído externo a qualquer custo] NATUREZA jogar o chapéu bem perto de algo que seja ao léu deixar a onda discreta 1165 apagar quem me ronda subir a montanha rápido afagar a nuvem tamanha ANTES antes de mim eu era distração agora que sou me faço invenção antes de mim eu fui percepção agora que estou me faço evolução RASTRO DE CHUVA a chuva passa pelo dia deixa rastros fortes na folha verde em mim a chuva não ultrapassa a janela do quarto apenas da mente enfim 1166 ALÉM EXISTO a alma pulsa para além no sofrimento não se contenta deseja remédio a alma sabe mais de tudo que eu sabendo do pouco cravado na memória da vida curta a alma não resolve apenas recolhe do tempo o necessário para se libertar rapidamente a alma deseja sair de mim para ser eu mesmo o mais profundo resiste ali a alma sabe de mim mais que de mim o corpo o corpo é um oco passageiro a alma sabe do cheiro do todo SOSSEGO se sobra tempo divago se falta tempo calo o tempo some entre uma olhada e outra atrapalhada 1167 o tempo não falta se durmo é que o corpo dói estar no mundo quero apenas ausência mas ela está para além muito para além de mim no tempo o tempo corre não pego o tempo morre sossego AZIA o vulcão interior ferve o humor a fogueira queima alastra dor a garganta sofre pede socorro o estômago revolta arregala o olho azia 1168 GOTA DE TEMPO dentro da gota d’água o vapor o calor a nuvem inicial na gota d’água o passado o futuro o mundo primordial a gota d’água é memória é história do mar abismal eu tenho gotas d’água em mim por isso vivo em função da paixão do tempo escorrido na mão na história única da encarnação DE NADA SERVIU por entre as veias do corpo há ainda um pouco do corte do destino sangrando por entre a brisa e o calor há misturado um quê de sorte do destino desatado você não serviu para nada nem para palpitar o coração na varanda da saudade [o que se foi foi tarde na brisa fraca da saudade] 1169 EU SEI o vento entre os dedos não melhora o medo tenho fome do segredo não contado cedo foi paixão, eu sei... daquelas de sótão e porão, eu sei... FUTILIDADE o dia trouxe apenas fantasia coisa inútil brota depois desbrota sem raiz ao fim das horas o dia trouxe apenas ilusão coisa fútil entorta depois desentorta em mim o orgulho de sobra GRANDEZA nunca tive em mim profundidade mesmo no abismo infinito da dor nunca tive em mim romanticidade mesmo no cinismo esquisito do amor sou apenas um vulto sem sombra alongada sou apenas um pouco sem pretensão de imensidade 1170 INTERVALO não sofro entre o banho e o jantar nem entre o almoço e o voltar para trabalhar sofro quando a noite vai afundar em saudade num tempo tão amplo que me perco e perder-se é sofrer me perco sofro entre dois horários certos não há tormento a certeza impede o tédio O DEPOIS É SAUDADE antes da saudade apenas o beijo a lembrança dos lábios é depois o depois é saudade multiplicação da ausência dos lábios em memória que se apaga quer se renovar não pode o depois é saudade 1171 EQUILIBRADO acordei e fui para o jardim não encontrei nenhuma rejeição na luta entre as flores e as formigas joguei água sobre a terra nem me paralisei diante da secura necessária para uma nova era o ar estava tão leve o silêncio tão profundo e fértil nasci no novo dia renovado equilibrado entre o bem o mal que há dentro e fora de mim ainda sem luz para ser total respeitando a fisionomia do mundo repleto de acidentes de percurso eu não quero ser bruto o dia me devolveu o equilíbrio em forma de som de passarinho em mim escutei o roçar das asas o dia amanhecei no outono iluminado não por que o sol está mais claro e forte mas simplesmente por que eu estou assim equilibrado na corda bamba do sim ou do não 1172 RESTA UM resta um eu mesmo na tarde na noite basta um seu medo corro longe quase dor fica um remendo na hora do amor o medo de desamar me afasta de você o medo de afastar termina em mim resta um eu mesmo amargo vazio resta um eu mesmo apenas um mesmo JAZ? o sopro de dentro para o mundo é alento a fúria de sempre para o mundo é defeito 1173 o amor inspira e o mundo respira o ódio destrói a frágil ponte entre nós quanta diferença entre cada um de nós num mundo tão feroz e você o que faz? jaz? vivaz? TRANSIÇÃO devagar o dia some poeira de horas varridas pela noite outra coisa entre o dia e outro dia perpetuar o dia impossível passa breve ou rápido vira outra coisa sem sol quando em lua a noite fere o dia POR CIMA por cima das nuvens do dia pleno por trás do branco fundo um verso escondido prestes a cair bem em cima da folha pálida em silêncio 1174 o verso não vai escorrer pelo telhado nem vai chegar com barulho de tempestade virá manso como os herdeiros da terra para se colocar diante do antigo nada da folha onde era nuvem agora é poesia onde restava eu agora sou eu mesmo vivo a poesia dos dias belos e dos dias feios POR TODOS OS LADOS ainda haja saudade ainda na insistência da mágoa prefiro o amor puro de puro amar ainda na fotografia velha resta a emoção do instante não vou procurar pelo não vivido me contento agora com estar sendo livre e para sempre um passado escrito repleto de futuros à frente por todos os lados que cabem a sensibilidade 1175 VIOLAÇÃO o coração não enxuga ele não é areia de deserto de amar vivo imundo em água de paixão não dou voltas na solidão encaro-a de frente rebelde de amar torturo os puros meu amor é violação VULCÃO se querer é ausência em desejo ardo em medo de arder mais por causa da falta de seus braços e nas horas vagas seus abraços meu querer não faz o mundo girar muito menos o corpo amado como um móbile alienígena diante de mim ficar o querer é mais que sou foge ás cadeias de dentro explode feito vulcão nas horas mais impróprias como agora como sempre 1176 FLORIDO é no sorriso me perco entre os dentes da boca é no florido me deixo entre as rosas da janela é no conflito me faço entre as dores da alma é no cochicho me ouço entre os versos da folha vazio é antes depois esvazio REFLUXO o suor rola nas costas do homem para por ali mesmo não vai longe estaciona ao mar vão apenas os grandes rios vertem por si mesmos para se represar eternamente serei eu fluxo ou refluxo? 1177 COXIA o som da palavra nem antes depois também não que havia? sentido depósito frio de letras em contraste? além da palavra nada há senão vazio além de mim nada haverá ido conjuntos infinitos de idos verbos e sujeitos como eu... IGUAL o mundo me coube não sei: até quando há muito que me percebo marginal o mundo me ouve não sei: até hoje? há dias me sinto igual 1178 HAJA CORAGEM cansado de encontrar no fim do dia o mesmo eu mesmo há muito feito refeito e recozido frágil a cada dia desperto para isso eu serei morto há pouco sei bem para onde vão os sins e nãos para o fim tumular do silêncio ensaio todos os dias para o encontro fundo entre eu mesmo outro bom lado de tudo mas é hora cedo de deixar de lado a coragem [haja coragem] ALHEIO CHEIRO das boas passagens da vida a melhor de todas é a que volta em cheiro de sabonete de hotel ou de perfume alheio [alheio sempre ao meu interior] 1179 borbulhando em memória de idos tempos outros de tanto passado que apenas sobrou o que nem sabia que guardava [alheio sempre ao meu baú] ESPERANÇA É POESIA acho linda a poesia não muda nada nem ninguém mas enfeita a tarde acho bela a mania dos intelectuais de hoje como alguém ceifando a esperança os artistas são necessários para clarear a tarde os intelectuais não são boas companhias para o por do sol A VIZINHA a vizinha não gosta de roseiras vai ver tem medo das besteiras da juventude a vizinha corta as floreiras sei que ela tem saudade dos amantes 1180 a vizinha não gosta daquilo que incomoda como antes as flores as rosas são amorosas ESPREME[DOR] vou espremer até o último verso disso que agora sou um resto vou defender meu último suspiro como quem luta com ferido de tiro eu quero até o resto de mim jogado no mundo enfim OCULTISMO ele me ensinou cada palavra tem outras dentro e afirmava – isso é sinal de talento nunca acreditei na poesia das palavras ocultas no remédio leio a caixa a receita e a bula não confio no que vem em permuta gosto da palavra exata nem menos nem mais abdico dos penduricalhos que todo ocultismo traz 1181 SANTA DE BRONZE DA PRAÇA a santa de bronze fica no alto da cidade uns vão para um lado da praça outros para o outro lado a rua é mão e contramão a praça destituída de beleza incomum no bairro alto tem cimento e pessoas de fazer nada andando uns fazem nome do pai outros pedem um pai com nome são meninos da periferia e do alto eu os conheci desde sempre e agora a praça é caminho para fora as cidades em volta são outras serviços vastos gentes tantas asfalto até na porta a praça tem uma santa de bronze não tine nem retine sem badalo está lá estacionada como a vida das pessoas da praça morta nossa senhora da conceição toma seu bronze de manhã e à tarde já dilatada pede a deus o orvalho o pardal de vez em quando virá acredite, pois! as asas abertas sobre seu manto aliviará o sol na cabeça com asas de menino 1182 ASSIM, ASSIM... depois da chuva o pé-de-moleque amolece mas não chega a escorregar na boca da banguela a cidade é calçada contra os medos todos mas não evita a assassina calada da noite a cidade tem crianças tem velhos ainda infantes gerações que de tão renovadas reinventam o mesmo de antes [eu nasci ali e fiquei assim assim com medo da verdade em mim] DE POUCO, PALAVRA o retrato do rosto sou eu descomposto nem sei bem quem a foto colocou no meu bolso passo a vida em encosto tiro uma janela e ponho encanto na reforma de dentro outro continua posto eu sou esse mesmo de vário, nada de muito, cada de pouco, palavra 1183 COMO ERA AMARELA a casa amarela tem ninguém dentro só de vez em quando quando em muito vem um casal que já foi jovem e hoje visita a velha casa como velhinhos bons a casa conta de cada ruga e de cada rusga os móveis juntam poeira para contar das estações o quintal tem goiabeira que me viu menino e o sagrado coração de jesus já enxerga pouco BOI, BOIS, DEPOIS quando caio em tarde me levanto em relógio é o tempo ele sempre resgatando o sorriso de quem viveu vários anos os anos passam a cada segundo mas não penso em frações penso apenas o tempo todo como o que passou e se foi numa corrida de bois dessa porção do que não volta é que sinto falta agora basta o relógio indica futuro nada é estático e vai se renovar depois PINCEL pincelado fui sem poder opinar na tela que ainda sou eu e flui 1184 passando tinta não sei se pinta coloração nova a tela está quase pronta cheia de riscos plena de vícios coberta de ciscos eu sei, eu vejo onde vai pousar em cor e descor em dor e amor essa tela de ousar? vou pintando, apenas cenas e duras penas ZIGUEZAGUE profundo o rio corre nele não se morre à toa rio é vida não morte rio corre não corte vai como vai o tempo vai vai e volta em chuva boa da mata o rio faz ziguezague envolve o olho fica no mapa parado em disfarce vai como o dia vai vai vai e torna em rua torta da rota 1185 FOTOOLHO de dentro capto o de fora rapto rápido ligeiro fração de segundos olho no olho cor sensação roubo o mundo fotografo o ato a coisa o que passa o que fala e gesticula prendo para sempre o fato olho fotografia sou eu brincando magia SEIS E TRINTA seis e trinta toca o despertador do celular soneca de quinze minutos seis e quarenta e cinco toca o despertador do celular soneca de dez minutos seis e cinquenta e cinco toca o despertador do celular ainda bem que são seis e cinquenta e cinco 1186 NOTA TARDIA pela janela do ônibus sobreponho corredor interno e calçadas da rua o relance mira o ambiente pleno lá longe a nuvem esgota sua chance de chover em fim de tarde seca como se a vida dependesse dela o bem te vi tentou roubar os olhos no fio de alta tensão da cemig mantive a concentração na poesia de carlos drummond de andrade sobre o colo com alguma poesia SOPRO DE MAR passa a hora em salvação não há pecado aqui nem em cima nem em baixo nem além do equador pudera o tempo calar desviar da tolice o ato o banal fica eterno preso às coisas num sopro de mar num sopro de mar GRITO DE INFERNO a ordem terceira do carmo se reunia no mês de julho para comemorar o dia frio intenso de pessoas com medo da morte nossa senhora ajudava quem cria os santos gritam em suas imagens gritam inferno e punição mesmo durante a liturgia 1187 FIOS DE TRICÔ o fio de cabelo cai e não vai quem tem rota é o humano cabelo é ser estranho na natureza do mundo quantos fios pelo chão emendados em tricô de horas a colcha de retalhos dos restos invade a cidade em tapete fúnebre o fio de cabelo cai e não sai livre em grito de alforria cabelo é escravo orgânico não sabe viver em palmares MÃO DE MÃE como se não fosse quente sua mão o tempo considerava era quente e úmida e sentimental como se não tivesse na mão um bom dia uma boa noite como se não existisse um laço entre as mãos se afagando o tempo esgota a sensação mas não escreve a verdade a verdade é mais funda a verdade é nossa 1188 BEATICES o melhor da procissão era o bêbado em tentativa de seguir a linha reta das beatas ou sussurrando em ré o dobrado da banda em dó ou olhando para o chão enquanto o padre mostrava o céu o melhor da procissão era o bêbado MENTIRA SALUTAR rumino sensação para o verso encadeado em linha uma debaixo da outra não alimento a dor do mundo oponho o verso resistência aderência ao verso cabe o inverso a mentira salutar hospital funeral 1189 ANTES FOSSE antes fosse o vazio na linha não o caminho de dentro falindo antes fosse a fé no espírito não o egoísmo de sempre surgindo antes fosse a alegria na vida não a hemorragia da dor emergindo antes fosse o encontro na esquina não a desistência do amor suprimindo antes fosse coisa e palavra apenas fosse antes DIA REPETIDO dia repetido um depois do outro tempo perdido? ou aviso de mudança e destino gritando no ouvido? 1190 POR SOBRE AS NUVENS por sobre as nuvens há colinas tantas e várias e vastas recolho entre elas calma miro um horizonte para baixo entre branco total com fundo de quintal o âmbar das ruas veicula silêncio as fibras óticas enterradas emitem palidez diante das veias abertas das ruas em incandescente iluminação de poste eu apenas sei de mim por sobre as nuvens há colinas ORVALHO de manhã o orvalho ainda tem orgulho da noite o sol decompõe a neblina evapora o sentimento o dia é calor de decisão prefiro a noite permanência de solidão e orvalho GUERRA o livro na estante soldado enfileirado na guerra o livro restante depois da leitura condecorado o livro sem leitor dói em passado desonrado 1191 A BANDA ANDA a banda dobra a esquina som de procissão eterna cruza a cidade em reza tem bumbo pratos contrabaixo tem maestro clarinete trombone silencia fundo mulher homem a banda não se perde vai junto do coral de dona vilma não entra na igreja dá meia volta e cai no mundo os músicos do interior são inteiros não precisam de deus BASTARDO por hoje basta emoção demais desgasta por agora fica amor demais irrita para amanhã quero mais do mesmo inteiro 1192 O QUE SÃO PALAVRAS? a puta pariu pariu a puta puta a pariu a pura partiu partiu a pura pura a partiu a cura saiu saiu a cura cura a saiu NOITE EM SONHO na extensa noite passada perdi de mim um tempo um vasto tempo outro dado por inteiro em outro ponto é o sonho é o sono adjetivos de quem dorme a noite passou válida permaneço vivo ainda sobre os escombros das estruturas adormecidas PAUSA domingo é dia de pausa não que sinta necessidade de pausar a vida para recomeçar sei muito bem que intensa como se dá não para e estaciona 1193 domingo é dia de aula outro tempo passando vago e divagado entre as pernas ou o sol se imponto no outono como recurso de caminhada domingo é dia de sair da jaula a rotina não prende há uma permissão para ir e vir dentro do meu dia lento ou rápido feito apenas para mim mesmo domingo é dia bom gosto de bombom em páscoa A PRAÇA a árvore emoldura a praça debaixo uma menina com outra criança no colo calada passa a hora em sol que espalha silêncio o beija-flor bem sabe que é hora de roubar da menina o cheiro dos cabelos ainda molhados da noite em amor da criança o som da alma que acaba de chegar de outro mundo o dia se mistura na praça PERNAS DE LADEIRA do outro lado da cidade a periferia se esquenta no sol da manhã ainda de outono quando em frio e inverno é mais difícil as mães tem medo do vento cortando a alma os pássaros ainda não sabem da duração dos dias de seca e de desamparo para seus filhotes comemoram as penas no corpo miúdo não há nota dissonante no sino batendo missas na matriz não fosse o homem de pernas tortas vencendo a ladeira acreditaria na vida após a morte 1194 TERRA BOA muitos bichos dormem dentro da terra saíra é um deles de cor verde e azul brilhantes as minhocas vivem no solo quando chove forte elas boiam sedentas de aventura os peixes vivem entre terras as margens do rios e lagos são apenas precipícios largos para a vida se contorcer dentro da terra há aconchego e desassossego o vulcão que cospe larva sabe disso desde cedo SE CHAMAR, EU VOU se o amor tomar as mãos e guiar mesmo pela escuridão eu vou se o amor roubar as horas diante do relógio da santa rita eu vou se é amor não digo não sim digo sim veloz eu vou se o amor me pedir silêncio do encontro desde que haja gemidos noturnos eu vou se o amor quiser partir cedo demais 1195 abro o destino novamente outro virá eu vou para o amor nunca fecho as portas o vento é sempre o mais puro se soprou, eu vou ANTERIOR[IDADE] o antes nada é senão possibilidade de durante e sempre depois o antes da fotografia é imagem na retina foco interior pois o antes da música é contagem de tempo a linha de acerto das notas o antes do amor é deserto de angústia tempo perdido nada o antes da morte é quando resta um eu mesmo pronto FUNDO DA PRAIA no contorno do fundo da praia o bairro mais fundo do vale encontro a casa velha com muro de pedra sabão 1196 a dona velha na janela se veste de fumaça de fogão a lenha quase ausente em dissipação se mistura ao cheiro do feijão se ela soubesse para além da fumaça há um mundo outro tolo e sem graça ficaria ali estática como quem amolece diante do tempo pedindo uma prece no fundo da praia há situações estranhas RIO MIÚDO os rios escorrem pelas montanhas não se encontram antes do mar há um alinhamento perfeito entre eles para molhar cada parte da cidade todos são miudinhos nascem logo ali num desencanto de nuvem agarrada de medo no pico do itambé [ela precisa chover sabe prefere a aventura de se escurecer em raios] AUSÊNCIA falta silêncio entre as expressões do medo falta palavra muda em pensamento falta promessa certa para quem vem depois 1197 falta conversa honesta sobre sentimento ausência não compromete apenas oferece tempo para que o novo se manifeste SUJEIRA ainda que torne o vento eu não restarei incólume a pele tem sujeiras profundas O QUE FICA RESTA fica um corpo depois do poema um doido depois da demência resta um pobre depois da doença um amigo depois da tristeza fica o tempo depois da ação um flagelo depois da usurpação resta eu mesmo depois da febre um poema depois da sede 1198 GRANDE ELEGIA DO MUNDO /2011 ONDE ESTOU? EXISTE MUNDO? o mundo existe mesmo triste? deixo a rima de lado e passo de lado para outro de dentro para fora de fora para dentro sinto como senti no parto a tristeza do que se foi e bom se foi para nunca mais onde vivo adormeço e choro és tu, mundo de grande fascínio de grande beleza de grandes homens e mulheres mas triste e trágico como agora se dá só sei que é um mundo pouco para tanto amor cenas dantescas se destacam no dia que sucede a noite fria nas nos paralisa mais e mais que a imagem do mundo sofrendo como eu em canto de tempo do ontem do hoje do amanhã sabemos que poderá não chegar como uma obra incompleta e deixada de lado pelo pintor em mãos cansadas de reparar a tela recolocando o tema em seu lugar central onde vivo adormeço e choro és tu, mundo de grande delírio de toda impureza de homens-bichos e mulheres-monstros triste e trágico como sempre 1199 agora mais demente e figurado terá fim essa aflição de ver-te pior a cada dia como um morto sem esperança nu na cama do hospital? vivo em ti e sofro em ti a saudade da pipa cortando o céu em inocência não pousará em mãos de esperança senão no chão deserto da vida dura os meninos nascidos hoje são velados desde jovens em futuro incerto a crueldade vem com a chupeta a televisão ligada na enfermaria nasce-se vendo a morte na tela sem espanto chora-se sem saber se o choro ouvido causará comoção nos ouvidos surdos o mundo, tu mundo, de coisas variadas e múltiplas e sérias e tensas ilude os sentidos ilude os sentimentos passa por cada um de nós como obtuso decerto por causa do dia caindo em tarde final como em ópera de callas a voz do mundo, tu mundo, é tragédia estar no mundo, mundo aberto em chagas faz refrear a esperança pausada na asa da borboleta tão bela e presa no mundo sem cores o farfalhar das asas não mudam os sons 1200 os tiros os crimes os massacres existir no mundo sem ouvir as asas em cores da borboleta faz a noite mariposa ser longa como as tranças da menina do interior centro do mundo agora em televisão ou jornal popularesco em sangue manchando a vida o mundo onde existo é torto sinuoso e abismal caber dentro de seus limites claustrofobia ingênua demais a culpa é da vida? a culpa é da morte? haverá culpa coletiva ou culpa de poucos compartilhada? o mundo vivido dentro em mim se perde em flor despetalada roseiras bico de papagaio margaridas orquídeas o vento passa em pranto nas cores da natureza talvez ela pura seja o mundo a parte do mundo meu mundo triste horizonte sem linha vórtice sem fim 1201 caindo em horas o mundo existido parto de não chão extensivo de morta plantação frágil existir é o nosso o criminoso belo ou cínico ou puro e religioso pode estar em canto em esquina em trem em ônibus em carro em garagem em nova york world trade center torre um torre dois pentágono em madri atocha el pozo de tío raimundo santa eugenia nas embaixadas nairobi kenia dar es salaam tanzânia 1202 vestido para matar explodindo o mundo primeiro o seu se inteiro foi depois dos inocentes um por um em cada estilhaço de ódio disparado contra contra contra quem? qualquer ser vivo as borboletas as orquídeas as baratas a arara azul o que vive e respira morra pelo ódio ou do ódio se sinta vítima privilegiada os estilhaços caem inertes contarão os versos em sangue e vingança rimados o mundo é lugar difícil e não me digam há esperança... se existe, virá do submundo onde a força da novidade jamais desaparece não estará na superfície de agora no tempo 1203 estará oculta em casulo por revelar em tempo de salvar dos destroços o coração que pulsa e se pulsa saudade de outros tempos saberá pulsar o tempo renovado em cinzas de tragédia qual fênix morta ressurgida em asa e vento e chuva e sol e lua e madrugada pronta para ser nova novidade existirá novidade não essa? mundo, tu mundo velho de velhas unhas de velhos cabelos grisalhos de hábitos enraizados na alma criança nascendo de sete meses em dor de mãe e de si mesmo de pés tortos de mãos que não afagam que fará agora decadente jovem velho sem forças 1204 cansado em si mesmo dentro e fora lamento dentro e fora sedento da renovação? mundo, tu mundo certeira insensatez trazemos os ditadores estarão livres amanhã depois da revolução outra sem ditadura e roubada da noite em democráticas luzes da lua? mundo, tu mundo não estás cansado dos ditadores escritos em livros didáticos história geografia sociologia filosofia e poesia? são tantos nomes habitando a vergonhosa lista dos assassinos e qual promessa trouxeram em suas armas de minério de ferro com almas de ferro com punhos de aço com coração de pedra? estamos cansados da ditadura travestida 1205 de amor à pátria e ao povo tu mundo, violento mundo entronaste assassinos em massa sobre os campos verdes dos continentes em ruínas erguendo a esterilidade do poder não pode haver poder no sangue do outro nem poesia na surdez alheia nem felicidade nos túmulos cheios tu mundo, vazio mundo depositaste nos ombros dos violentos o fardo da geração do novo sepultaste o novo sob pés radicais debaixo das botas de couro de dureza legítima matando a semente no chão fértil ou no deserto das miragens tu mundo, estranho mundo encenaste a tragédia onde sorriso deveria cobrir os palcos eles nasceram cresceram e de arma em punho mataram os corpos um a um dois a dois mil a mil 1206 quilômetros e quilômetros de filas de insepultados cadáveres os crânios espalhados e ocos cobram a dignidade dos velórios a última lágrima não viram e nem verão é tempo de continuar a vida em sonho e fantasia de novos corpos os seus ditadores, mundo revezaram-se nos continentes arrancando do anonimato os corpos de homens e mulheres e milhões de crianças esses corpos se contam hoje nos relatórios de guerras de genocídios tantos e gritam sua existência apesar da frieza das tabelas a todos eles nosso pavor a todos eles nosso espanto de terem corpo e alma como todos nós viventes a todos os continentes impuseram o medo e o terror friamente merecem ainda os livros? vamos retirar seus nomes hoje, agora, vamos esquecer deles para pacificar o dia pela última vez quero ver grafados os nomes peço a todos os viventes que seja última vez 1207 que lhes dedicamos o tempo de uma leitura que lhes ofertamos as letras de um verso que seja a última vez em verso e prosa pela honra de quem vive pela memória de quem morreu stalin hitler mussolini franco salazar ceaucescu mao tsé-tung sukarno pol pot hussein tojo marcos trujillo pinochet papa doc stroenner vargas bush speight idi amin al-bashir al-gaddafi mubarak tu mundo, mundo absurdo criaste os monstros? mas depois dos monstros 1208 virão os salvadores da alma? ou deixarás, ainda, no frio chão os corpos dos milhões sem paz? não podemos acreditar mundo, tu mundo dos absurdos depois dos massacres o sorriso dos malvados será pleno... nada pode ser assim há depois da morte bestializada a culpa acreditemos nisso como consolo e como alternativa haverá para os mortos e para quem viveu da guerra outros reencontros de regeneração senão a esperança no mundo tu, mundo sem pé nem cabeça apagada ficará para sempre o tempo do mundo ainda será para reencontros desses de dor e tormento mas também de explicação o algoz não pode sair da vida prenhe de mais sangue recuso a acreditar em temor algum de novos encontros haverá pais e mães futuros prontos para recriar a vida e serão pais e mães algozes de outros tempos o ditador de hoje é a mãe redimida de amanhã o assassino de hoje é o pai amoroso de outro dia o mundo terá conserto? 1209 quando em concerto tirarmos dos didáticos livros os ditadores remover seus nomes apagá-los não em ódio ou vingança sentimentos vis dar manchetes para os pacifistas acrescentar notas de rodapé aos amorosos recuso-me a acreditar na morte escrita perpetuada e sem fim os livros os jornais os olhos verão ainda sei, tu mundo, sei de futuro haverá página outra da de agora haverá, creiamos senão as mortes serão em vão o mundo no mundo do mundo nada em vão haja continuação nas vozes silenciadas haja dia novo aos atrozes assassinos volte a poesia em rima e verso alegre agora em elegia canto o desencanto da saudade da paz nesse mundo, tu mundo, algoz da alegria 1210 o mundo existe mesmo triste? o mundo insiste como despiste? o mundo, tu mundo vivo está não aceito a morte banalizada as manhãs de mágoa e dor terão fim apesar de agora sentimento do mundo perverso divisão entre bem e mal bons e maus guerra paz POEIRA DE VULCÃO do vento de dentro do vulcão surge a fumaça tóxica paralisa aviões a europa os aeroportos como um vulto de fundo o ar das entranhas da terra renova quisera a saudade da profundidade ser apenas um sopro noturno ou brisa de vulcão incensando a vida quisera o mundo doce e livre das dores e atrocidades parece: somente a brisa ficará o mal arrebentará do fundo das almas atormentadas dos homens presos ao passado 1211 quando criança aprendi no passado não se deve parar exceto na saudade do amor quando criança aprendi as fotografias são belas recordações exceto na presença de quem amamos o mundo gera imagens de violência no jornais e revistas e televisão quisera o mundo se calasse e na manhã do dia seguinte fosse fosse apenas um sopro de brisa da calma brisa das praias nordestinas as praias acalmando a ira dos frequentadores com o ritmo das ondas arrumando a alma silenciando as dores é do tempo, mundo inexato, passar as coisas as pessoas o ódio por que não aprendes e deixa cair da face esse rancor pela vida feliz, ó mundo? até quando vulcão praias ventos e tempestades tentarão refrescar sua sede de corpos mutilados? até quando as praias salgadas aplacarão a fúria de tua língua a devorar vidas em tragédias? quisera do fundo da terra 1212 o coração do mundo em lava purificasse os corpos o mundo enquanto planeta está arrepiado de pavor e as camadas de terra agitadas consomem vidas os mares elevados em tsunamis constrangidos pela ira lambem em plagas altas as cidades costeiras lameadas de violência e saques e roubos e tédio os açudes secaram no interior as chuvas matam no exterior e de dentro para fora o homem se perde no mundo caótico da imprensa trágica há pouco espaço para o ar puro da emoção a que sustenta no mundo, o coração a que amplia no mundo, a visão os ritmos da terra onde tu, mundo, existes (sei que és apenas uma convenção minha convenção, nossa convenção estar no mundo é criar significados de forte ficção válidos esquizofrênicos temporários e etéreos 1213 mas digamos: reais, plenos de realidade) existes em meio ao fim a natureza sabe recomeçar o trágico, é natural eu nunca aprendi o trágico é parcial volúvel estranho injusto os ritmos da terra por onde estás no meio de nós em palavras frases vocabulário sopram morte e espanto os ritmos da terra quisera fossem acolhedores mas nos impedem de criar o mundo o mundo, ó mundo, é frágil pois se apaga na tempestade do deserto na chuva fora de época em colheitas impedindo em furacões que despejam na superfície escombros e mortos os ritmos da natureza pensava até ontem: renovam mas apenas consomem o velho e do velho virá tradição? os ritmos da natureza suspendem a lógica do nosso mundo: constância equilíbrio e repetição 1214 em tu, mundo, destruído mundo a repetição é apenas memória na natureza a repetição é novidade onde estará tua novidade, mundo se cessa ao nascer o novo e quando desapareces é pálida lembrança? onde estarei em ti para não desparecer e virar memória de palavra abalada onde me fixar em ti para depois da tempestade da cinza do vulcão não virar cinza também? o mundo é esquecimento lento gradual e belo esquecimento CANSAÇO E FÚRIA o cansaço vem de longe talvez de trás do morro como a chuva na minha cidade a do interior do brasil e da alma o cansaço vem há tempos talvez de imagem inexata televisão de mundo pequeno o japão é ali 1215 a islândia parece tão perto a fúria cansa tanto ver através do mundo a fúria do outro do sequestrador do ladrão galã do corrupto elegante o ar se mistura cansaço e fúria e tu, mundo revela sua alma lugar de contraditos lugar do impreciso lugar da angústia imagem és apenas uma imagem miragem para os salvadores os meditadores os homens de boa vontade terei eu boa vontade diante de ti, mundo em fúria? como poderei estacionar a emoção calma e lenta e meditada entre seus ossos expostos em jornais matinais? não sei o que queres se me levar para longe de ti como um desertor do exército da salvação um menino cansado de correr em volta da própria sombra a mulher gestando a bola de carne grande bola de renovação 1216 terei eu capacidade diante de ti, para mudar? tu, mundo és maldito por que muda ou por que não mudando impede a esperança? mundo tão vasto me caiba mais um pouco só mais um pouco para envelhecer com sabedoria em corpo e alma mas se quiser me abandonar à própria sorte farei como os pássaros em queda livre de noite (os pássaros não morrem de dia...) deixando seu ar se vento seu tufão sua miséria para trás sei que as noites amontoadas viram história eu não quereria pudesse fugir dessa sina historiar em seus muros quereria estar fora como quem vê de longe apenas o céu azul em abóbada convexa espacial barriga do universo pudesse a tristeza ser apenas contemplação 1217 de sua grandeza natural não os sentidos dolorosos de ser seu estando dentro da sua alma orgânica quantos reinos reinam em conjunto na sua massa? a água corre pelos rios até o absoluto mar a terra cobre os corpos até o absoluta estacionar o fogo consome a vida tirando seu oxigênio o ar quando em último suspiro é vida bailando em frêmito dos reinos reinando em suas leis prefiro o divinal a ausência de ti, mundo quantos budas fazem do mundo ausência de mundo em posição de lótus no alto da montanha? como estar em ti sem estar em ti? buda, me dê a receita para ultrapassar o tempo e deixar no tempo outro eu outro eu tão antimundo sem medo do tátil do que fere do que serve para a dor buda, me dê a pista 1218 livre para me guiar até seu fim para ficar assim longe de mim feito passarinho quando constrói ninho o mundo sabe dos que lhe abandonam e ri dos que não conseguem e a se prendem ao seu corpo o mundo sabe dos sofredores e ri e se alegra feliz e observa na dor sua essência na flor sua dinâmica (a flor precisa de solo como nós no mundo repletos de raízes família escola igreja estado) a cada necessidade adormeço em comoção meu solo no mundo agora frágil pendula antigo relógio da santa rita gritando as horas desde o século dezoito no alto da cidade o mundo sempre começa badalando 1219 chamando para a correção das horas o tempo do mundo me chama desde pequeno no relógio da santa rita de lá júlia e magda anunciavam os mortos entregando seus corpos para a sepultura felizes deles não verão as horas passando o sino tocando provocação espiritual do alto da cidade o relógio ecoa nos rios do vale frio do lucas quatro vinténs e remexe a vida com suas palpitações e chama e clama e mostra e impede e deixa e retoma e mata e faz nascer são tantos verbos para dizer do tempo pintando as paredes do mundo como os pintores barrocos escondendo a cara do tijolo por sobre as tábuas da igreja velha mas há verdade por trás das coisas é a verdade de cada 1220 um que necessária mostra quem somos porque somos porque nos fazemos no mundo e tu, mundo de almas pintadas de caras falsificadas de corações ocultos de falas que mais parecem carros alegóricos do carnaval em chuva pedindo abre alas e tu, mundo esquisito em seu tronco torto em seus frutos vegetando suas mudanças que dizer para mim, agora da saudade da alegria? que queres, mundo senão ocultar por trás das palavras venha a poesia para te revelar em versos pulsando outro ritmo outro destino eu sem poesia seria mais vazio sei de ti, mundo, cheio não cabe em si 1221 O QUE QUERO, ACABARÁ no alto do montanha me despedia do mundo vago dos mortais e nem assim passou por mim a andorinha da infância ela se retirou pequena em novos mundos nem poderia ficar: eu não sou o mesmo no alto da cidade onde um dia na infância se instalava o sentido nas moléculas interiores do tempo compondo o corpo no mundo eu me perdia mais uma vez em despedida silenciosa do passado às vezes no silêncio da montanha se ouve o coração calado há tantos anos e um suspiro de renovação se faz sentir forte e bruto como um soco no estômago liberando a dor a montanha traz de volta o caminho de dentro puro como nuvem se dissipando profunda a montanha eleva a alma para dentro de onde nunca deveria ter saído para o mundo mas que seria sem o de fora perdido em busco do seu interior? a montanha devolve o olhar distante 1222 obrigatório para a saudade de si mesmo a montanha não permite estranhamento separa do mundo como um casal em velório a montanha sabe dos caminhos árduos para compor sua trilha em ziguezague se não soubesse seria ser humano não montanha se não soubesse seria mundo arrogante no alto e nem estrelas brilham ao longe na montanha elas brilham dentro em abóbada noturna inconfundível contornando o espaço de existir no alto para o alto do alto vejo o mundo arrastado em mim não o quero, desejo apartar-me nada mais que isso apenas mas a montanha exige retorno voltar para o vale onde lama dá em rio rio dá em peixe peixe dá em mar mar dá em absoluto contrário de mim mas a montanha pede descida como retornar para o vale em enchente 1223 estou precisando do ar rarefeito para encher os pulmões não quero a lama do vale para atolar o pés de realidade mas a montanha pede asas como árvore gigante pede harpia como harpia pede plumas como plumas pedem vento e vento pede silêncio que não tenho há palavras há palavras há palavras as palavras não param de refazer o mundo nem por um instante, há sons dentro e fora de cada um e o mundo solta verbos de provocação de intensa provocação há palavras demais há verbos demais há períodos demais o mundo é feito de sons emendados perdi o seu sentido (dona milude faleceu e não pode remendar a colcha de retalhos dentro de mim e a tradição se 1224 rompeu acabando com o conserto possível das minhas ligações internas em tecido frágil passando em tempo o tempo no mundo faz acabar o que quiser é uma lei tudo passará apesar da beleza apesar da poesia apesar da montanha da tarde bela apesar da janela da moça da roça aberta para o mundo e o sorriso escrito na convivência tudo vai passar o que ficará não se sabe é construção do mundo do mundo que rasgou meus retalhos e dona milude falecida não pode remendar já que não está no mundo com mãos de fada mãos de adoçar goiabada de dar sabor ao café da tarde de dar credibilidade ao terço entre os dedos de dar afago ao tempo na pele em rugas ensaiando a morte) o mundo é cozido em panelas tantas que nem cozinheira serrana pode dar conta (as cozinheiras da terra do meu coração 1225 são habilitadas para fazer mil coisas ao mesmo tempo mas não podem cozinhar nas panelas o mundo em tantos sentidos haja panela de pedra sabão haja panela de alumínio haja gamela para o angu nem o maior fogão da terra natal pode dar conta dos mundos em cozimento agora nesse momento fervendo passando do ponto prontos para comer sem tempero que dará só para cachorro ou o lixo da segunda-feira as cozinheiras tão santas de bocas limpas e língua de temperar a vida não podem dar conta do mundo em ebulição melhor deixar em banho maria o mundo para que seja algo depois bem depois) enquanto a montanha me eleva o mundo continua batendo à porta como a música da banda de música abrindo as portas da igreja fazendo menino jesus bater palmas e largar o peito de maria 1226 ou o silêncio que empurra as portas da alma em noite longa de são joão da cruz de noite de desejos impuros de teresa de ávila de amores proibidos de heloisa e Abelardo as portas se abrem ao vento do silêncio e por elas entra o mundo poeira de vida brisa de oceano tempestade da mata sorriso de papagaio briga de vizinho escapador de carro pipoca explodindo no carrinho menino caindo na rua calçada mãe agradecendo flores o último suspiro da vida dentro do hospital o primeiro choro da vida dentro da maternidade o espantoso abrir das portas do mundo em fúria ou em amor as portas se abrem sem trancas quando bate de leve a palavra suave de garganta amorosa um pai nosso em dor uma ave-maria em promessa a certeza da fé em terços multiplicados pelos dias em rosário pleno maria de nazaré traz nas mãos 1227 o rosário de toda uma vida e da eternidade longa tão longa como a cegueira do mundo que fazemos em ti, mundo senão esperar redenção? que esperamos de ti, mundo senão que da dor surja nova arrebentação não de carne e fel mas de amor e eternidade? as portas do mundo se abrem e se fecham qual o segredo combinado para entrar e sair em paz? haveria paz se não fosse a contradição das imagens anotadas na memória os mortos gritam quando passam em dor os falecidos continuam a gemer reclamando salvação haveria paz se não fosse o desejo máquina acelerada de tempo moendo horas e horas em projeções nem o engenho setecentista conseguiria processar os desejos infinitos da alma humana haveria paz mas os mortos ensanguentados lamentam de cada algoz em vitória o sangue em cálice o corpo lapidado não gerou diamante antes, erosões profundas na alma haveria paz 1228 não fosse a dor repetida a cada geração NO FINAL, RESTA UM: EU MESMO entre os escombros do mundo passado em televisão em cores ou preto e branco entre os tolos escombros do mundo passado em revista pelas tropas da imprensa prontos para a tragédia entre os vários óbitos do mundo analisados pelos filósofos sábios e supersticiosos aptos para o caos eu passo entre suas horas quisera passar mais rápido para não estacionar nos dramas eu passo entre as flores quisera passar bem lento para passar sempre cores de rosa eu passo como passam as andorinhas em silêncio de meditação em manhã de frio em névoa densa eu passo sabendo que passagem é sua regra máxima -não estacione! me dizes todos os dias por isso, passo pássaro voador em meio aos escombros eu passo para ficar menos mundano suas cores não me comovem 1229 suas dores apenas me desolam são de outros que são humanos humanamente fazendo mundo eu passo pois sei ainda não sofrer se soubesse teria sorrido todas as vezes que o silêncio se impusesse à alegria respostas para o mundo essa alma efêmera haverá? respostas para a alma do mundo esse mundo sem sentido terá? quisera fosse a noite seu único mistério e como a noite dá em manhã dará um dia seu rosto para contemplação? quisera fosse o mundo aceitação simples e como um doente terminal existisse em mim a verdade mas a verdade não está no mundo fora está no micromundo dentro no final, resta um sentido o sentido da consciência pensante pobre pensante paupérrima pensante no final, resta a chave para o sentido do todo como absoluto é tudo que é grande (como o mar em absoluto fluxo de rios temporários em rumo certo) no final, resta a clave 1230 de sol fazendo a sinfonia como grande é a música em uníssono no final, fico extasiado contemplação pura e simples sei que resta um: eu mesmo para onde ir? para dentro e rir o sorriso de si para o mundo é homenagem do transitório para o transitório seremos perenes quisera ser mar absoluto mas dele tenho o luto dos rios puros terminados em sal no sal depositando todo o doce recolhido nas montanhas gerais o absoluto é feito de unicidade o mar é sal e sal puro sem lugar para a doçura de quem viveu correndo entre serras azuis o absoluto para onde vamos - eu e tu mundo! nos fará perder para depois em sentido (o sal dá sabor) reviver reviver reviver 1231 PASSATEMPO / 2011 PASSATEMPO a poeira cansada rua avenida entre carros caminhões uma hora descansa a estação chuvosa vento raio entre árvores casarões passa uma hora o amor eterno carta encontro entre cama e mesa emoções tem seu termo por que passam as boas coisas são aéreas por que marcam as boas coisas são etéreas SÃO BELOS são belos os poemas meus poemas, também pudera vieram de dentro de mim, quisera jamais ser poema e, sim, verdade 1232 são belas mentiras as letras saltitantes, eu me vesti ontem para a festa , quis me ver impresso no livro, enfim são belos os poemas meus poemas de mim BEM QUE TENTEI queria escrever uma carta veio apenas patifaria queria descrever a história coube apenas filosofia tentei entender o mundo brotou poesia QUANDO: HOJE de quando em quando sei sabendo desdenho da vida ilusão pura de ótica de prática de quando em quando rei governo o desejo do corpo percepção dura de gemido de frêmito 1233 QUADRO FELIZ não calo nem calaria como outro dia faria a noite está silêncio não desejo beijo nem corpo há um som de dentro invisível dizendo diz... diz... diz... escreve em quadro com giz barulho de professora feliz cheiro de álcool de mimeógrafo a folha do tempo se vira velha não calo nem calaria como outro dia queria BRINCO AZUL o vento passa por entre os cabelos dela em vulto cruzando a avenida nem percebe a saudade deixada para trás de seu movimento afoito a menina de brincos azuis vai linda entre as árvores descompostas do outono nela não se veem os galhos da idade longa apenas a leveza da primavera imprensa na tarde o vento vai cruzar a avenida novamente todo dia é dia de brisa ou tempestade 1234 BANALIDADE por trás da tarde nada há senão destino existiria não vi ninguém nada mal estou sozinho banalmente ESPERANÇA desde revelação em profunda terra no leito do rio vai rolando o diamante cai um dia desses dias de sorte na bateia do garimpeiro nada diz do tempo entre o fundo da terra o rio rolando nas mãos até a chegada aos olhos do garimpeiro em bateia aguardando há tempos longos como agora em sonho de ser tempo outro estranho em rio e diamante e garimpeiro uns dirão: esperança 1235 SOU das coisas idas retratos em gavetas não há um sinal de saudade agora já houve, sei ontem, não, anteontem debaixo da árvore quando soube de mim outro das coisas sumidas cartas em pastas velhas não tenho a menor pena e pranto já se ouve o tempo tocando as letras para reviver antigas tristezas que não as quero já fui saudade não mais já fui pranto e pena não cabe em mim há outros vazios correndo nos cantos onde havia melancolia já fui outro agora sou apenas sou DESPISTE despistei a brisa ela trazia memória traria seu cheiro 1236 de sabonete de bebê quem sabe o livro cheiro de história impregnasse todo eu dei nega no vento ele pedia saudade daria um jeito sempre deu eu sei de falar do amor enroscado no abismo do tempo esquecido não ouço a natureza em medo interior calo o sentimento para não arder em febre de saudade de novo, não de novo, por que? ABANDONO abandonar o verso sob a árvore o outono em folhas adubará a rima colher o verso em raiz funda a primavera em cores dará seu brilho 1237 REPETIÇÃO em volta a realidade vista nos convence tão vivamente criamos a verdade o que repete tantas vezes eternamente verdade se faz de raiz e caule verdade? onde está fora ou dentro no inteiro e cheio ou vazio e feio? ÍNFIMO lugar algum estou apenas em em alguma proporção mínima ínfima resolução de ser pouco caibo em mim tão bem fico não intrometo em outros não gostaria de ser muito nada sou sou nada 1238 AVISO AOS DITADORES gostaria de lembrar a quem de direito das flores nascentes da manhã rosa vermelho alaranjada gostaria de registrar para a posteridade o lindo nascer do sol de outono nuvens brincaram de montanhas gostaria de dedicar aos ditadores o sorriso da criança o primeiro passo o nascimento da barriga esperançosa gostaria de escrever numa grande pedra o mundo pulsa vida apesar da dor de cotovelo de cabeça da política ainda cabe mais um na insistente mas digna tarefa de renovação para algo que mesmo não sabido já grande se apresenta por que saiu de nós essencialmente bondade VERSOS PROIBIDOS a folha de flamboyant no chão vista não é ainda poesia a folha de flamboyant triturada em palavras em mim é ainda não poesia a folha de flamboyant na rua da amargura pisada pelo destino solta no mundo como eu solto em ladeiras e ventos talvez seja início de poesia o que proíbe um verso? 1239 ENGENHO sou engenho moenda de cana cana-doce estrutura em dentes vários grudados um no outro movimento extração de doçura provocação de garapa calor de aço contristado resta do corpo memória de suco a vida é árdua CANÇÃO DO ATRASO vai dar tempo sei que vai dar tempo sai de casa sem relógio certo agora corro vai dar tempo não vou perder a hora ela, já perdida, virá boa a boa hora chegará apesar do atraso do tempo corro, corro, corro o vento sopra ainda frio e quente e corre vai como eu mesmo 1240 de um lado para outro da cidade que atrasada atrasou o meu tempo certo vai dar tempo ouso dizer que vai dar tempo apesar do motorista ouvir rádio do trocador dormir da menina do lado cochilar do verde cair pela calçada do sorveteiro contar dinheiro vai dar tempo, eu sei mesmo que haja manifestação das prostitutas da praça da rodoviária ou dos militares e dos civis juntos até que enfim! vai dar tempo preciso parar de pensar no relógio gritando no sol mudando de lado na lua crescendo na maré enchendo em osama bin ladem em barack obama vai dar tempo preciso esquecer a conta a pagar o banco em visitar o caderno para anotar o amor por declamar a ligação para contatar (o motorista deve estar brincando deu boa tarde para a velhinha ajudou o moço a subir escada buzinou para o colega 1241 elogiou a moça bonita comprou jornal popular pegou cada passageiro desviou do canteiro de obras cantou música popular sorriu para o guarda informou a rua certa escutou reclamação anotou telefone da amante dispensou a pressa no sinal... o motorista quer me enlouquecer? combinou com tempo me deixar sem tempo? investigou meu atraso quer tirar um sarro da minha cara de espanto?) mas vai dar tempo se não houver chuva no caminho nem bloqueio continental de bonaparte nem alerta de segurança nos estados unidos nem sinal de bomba em paris nem sinal de vida em marte ou fim dos dias em outdoor vai ar tempo o bem-te-vi contou ao sair asas e pneus são para voar apesar do relógio acelerado da vida acelerada do tempo curto para curtir a janela vai dar tempo mesmo hoje preferia dormir mas acordei tarde o sonho melhor que a vida o sono melhor que a lida o silêncio melhor que tudo tudo tudo tudo 1242 vazio melhor ficaria mas vai dar tempo o motorista resolveu lembrar do coletivo do coletivo cheio de atrasos cheguei a acreditar perderia o tempo o tempo não vai embora presente como guerra batalha contra relógio sei que vou chegar no horário vai dar tempo a velocidade das rodas os pontos passando todos anotados na memória as árvores sorrindo sem graça os pombos dando espaço nas ruas cheias de lixo as placas tristes para trás o ponto de ônibus à frente à frente é o meu estou chegando vai dar tempo sabia que ia dar tempo o tempo é meu amigo de rugas marcando a face de nós a garganta de saudades a alma vai dar tempo vai sobrar tempo? sim, vai dar tempo... quero que dê tempo para me olhar chegando para me enxergar em quase atraso obrigado bem-te-vi pelo aviso 1243 QUANDO OLHAR NÃO QUERO a luz à frente mostra não desejo ver fecho os olhos perco a placa à frente indica não quero saber fecho deixo a vida à frente incita prefiro temer fecho prazer a rotina mostra calar acho saber RETIDO o peso do corpo sei variou pouco estou no mesmo vários anos pelo caiu saliva evaporou cheiro partiu pé doeu variação pouca entre um dia e noite entre bem e mal 1244 corpo, afinal corpo registra sinais e sinal não encabulo corpo é normal o corpo vai bem vive para viver morre para reter o amor nunca lhe tem batida de coração suor nas mãos tudo bem o amor passa o corpo aliás não durará infinitamente INÚTIL VIADUTO a saudade criou viaduto entre meu muro e seu silêncio inútil viaduto não transitamos não caminhamos entre nós chamem o engenheiro destruam o viaduto joguem ao chão o amor impossível 1245 PASSA, NUVEM enquanto as nuvens acima do mais alto em mim lutam por espaço enquanto os ventos jogam as sombras em mim sol omisso enquanto no alto a fluidez total sem fim passa tempo nevoeiro enquanto me solto das algemas de ti enfim as nuvens se calam [o pico do Itambé agarrou a tempestade para tomar um banho no calor do verão saudade da cachoeira com cheiro de montanha de sabão de nuvem espumando em banho] TEMPERO pudera exceder no tempo o tempero despendido pelas ervas à comida a memória do tempero se eterniza no paladar da fome 1246 essa vontade de ter entre os dentes cozidos em tempo certo em cheiro certo em temperatura certa o tempo passa o tempero fica MAIS QUE PALAVRAS cumplicidade entre coisas não pensantes o cachorro em festa o papagaio conversa o pintassilgo espera a água para o banho a roseira pede água em silêncio e agradece em cores atraindo abelhas e beija-flores cumplicidade entre seres vivos a natureza cheia de poesia explodindo em domingo ELEGIA DO PASSARINHO caiu seu corpo em noite alta não vi, pois dormia em solidão de impossibilidade os bichos tem mania de morrer de madrugada queria estender uma rede protetora para sua partida mas o tempo dos humanos e o tempo dos bichos é outro e eu dormia enquanto seu corpo falecia pudera eu assistir seu último suspiro o último olhar para o mundo dos vivos mas eu dormia quieto no leito e seu leito de morte 1247 visito agora em amarelo tão vivo que parece dormir ou em letargia tão profunda vai acordar em cantos renovados seu canto vai ecoar pela casa por muitos anos o amarelo de seu corpo tão puro continuará brilhando nas fotografias do passado em lápide de saudade agora livre seu canto se espalha por outro mundo sua pequena alma se encanta com a liberdade essa que perdemos ao fechar a porta em segurança sentirei saudades de colocar água para seu banho espalhando alegria: qual a necessidade do banho? seu corpo tão livre de sujeiras e pecados brincava em água agitada feito rio de verão mas agora somente a terra vai banhar sua pequenez ficou o alpiste sem uso triste na embalagem ficou a gaiola vazia em revolta de silêncio o passarinho voou como todos sabem para fora da gaiola do tempo para fora da gaiola da existência TROCADILHO se soubesse nunca mais ficaria mesmo morto ao seu lado não vê meus olhos quer saber de mim? não sou outro apenas distante se soubesse para sempre esperaria seu sorriso 1248 toda noite não crê nos meus olhos? não vê: são os mesmo ainda olhando seu destino do meu se perder se soubesse de agora calaria o tempo da ausência a dor extrema quer dizer em mim amor POEMINHA VAZIO nada mais a dizer se nada a dizer é calar nada mais a sofrer se não sofrer é não amar fica sempre o não possibilidade vazia do que passou no coração nada mais a dizer em verbo intransitivo nada mais a sentir o mundo está sofrido há dias assim sem vontade sem doçura chatice pura 1249 ESTILINGUE ASTRAL o asteroide entra na órbita da terá em chamas de vermelho intenso culpa do deus lá de cima brincando de estilingue astral ele cata pedra no cinturão de asteroides ajeita o estilingue e dá uma risada a terra gira rápida e escapa da pedra na cabeça quantas marcas esse deus de fora deixou na lua tão miudinha o rosto cheio de marcas como espinhas depois da adolescência se houvesse tempo lá no alto para medir a brincadeira da divindade jogando pedrinhas do big bang na noite terrestre vem mais uma gira terra translação vem mais uma corre terra rotação diminui a noite deixa entrar o verão 1250 OUTRO DIA já é tarde da noite o dia queria fosse assim até agora mas já é tarde basta ficar parado o relógio ultrapassa a lua revira os ventos muda as estações já é tarde no apartamento tarde demais para reviver tarde demais para aproveitar vou deixar o dia tardio ser afinal ele mesmo em fim de noite já tarde acabando-se em madrugada outro dia virá? DIA BOM elástico dia estilingue de horas jogar-se na manhã dormir à tarde vigiar a noite a lua está lá fora cheia prático dia feito de pequenezas um bom livro uma boa conversa uma qualquer coisa a vizinha está lá fora cheia 1251 PASSO A PASSO enquanto o sol prepara a noite em orvalho enquanto o mistério encara a razão de frente passo de passo em passo descaso total sem orvalho sem mistério realidade pura e banal COM ELA por debaixo do asfalto entre as pedras atrás das montanhas vem e se espalha pelas horas da manhã pelas estações do ano por entre os cabelos e mais interior se faz consciência de desilusão 1252 CARTA até breve, não houve até mais, não coube a palavra final foi nunca nunca nunca mais era tarde, num café depois a noite depois a carta recebida? lida? rasgada? jamais melhor assim: posso respirar o ar da tarde em paz apesar da saudade SENSO PURO incompleto estar no mundo faltam ainda alguns litros ausência de tantos quilos apesar de ser incompleto estou sempre em falta SER BOTEQUIM o interior do ser visto por dentro assemelha-se ao botequim bêbados em silêncio, não muitos cadência de velório e dor, muita dor em cada canto das paredes azulejadas brancas 1253 nem a mulher da propaganda quase nua alegra-se com os consumidores há um jocoso tédio: é tarde demais para recompor a vida e voltar a música o espantoso momento em volta e nada de eco apenas e apenas é muito agora um alívio o tempo passa preciso apenas somente apenas por mais difícil que seja soltá-lo de mim, deixá-lo reembarcar em outros lugares o tempo passa a propaganda passa a mulher passa o bêbado passa [deverei acreditar?] SIMPLES a noite recolhe silêncio o vento passa frio a lua é inverno o tempo encolhe lento é hora de pausar para expandir em cada silêncio recolho meditação em cada tempo simplificação 1254 MISTURA na flor pronta, perfume antes, odor na dor tanta, queixume antes, posterior as coisas embolam, sempre durante, ou eternamente DOMINGO o tempo passa leve apenas no domingo obrigação é peso segunda-feira antes da segunda-feira o domingo se veste de pouco em silêncio a semana começa trotando SILÊNCIO DE PEIXE o peixe não ouve palavra burburinho de mar nada vale não avisa chegada nem dispara o coração o peixe não tem palavra nem se preocupa com o alfabeto as palavras do mar não calam nem falam absolutamente nada 1255 VESTIDO DE BAILE se não fosse o vestido rodado em baile não haveria mundo girando no espaço o círculo a elipse são os mesmo no vestido ou mente de deus DO PROFUNDO NÃO SE DIZ gostaria de falar no verso o que está por trás do verso mas já não seria realidade, apenas, pobremente, mera descrição gostaria de dizer do belo por trás de cada beleza mas já não seria fidelidade, apenas, fracamente, sons partidos gostaria de calar a lágrima que está para depois da música mas já não seria emoção, apenas fragilmente, fuga do profundo não se diz vive-se ELEGIA DA ESTRELA seu dedo indicador desenhou o cruzeiro do sul desde aquele dia entendi o céu foi criado por suas mãos cada estrela do cruzeiro recebeu o seu detalhe eu nunca havia visto o céu 1256 por isso era ainda criança o céu nunca mais foi escuro as três marias se deram as mãos o rosário de estrelas fez prece pena que somente a saudade se revela agora no tempo onde os desenhos se apagam ainda brilham as estrelas no céu é sua lembrança mais pura entre as serras do serro quisera se apagassem apenas as lágrimas não as vidas que nos contornam para sempre as estrelas brilham forte para lembrar o amor não se apaga, existirá sempre PONTE a ponte inútil no meio do caminho solitária estática somente de vez em quando entre seus corrimões um veículo de hora em hora de dia em dia de noite em noite passará não como o rio debaixo em peixe alga e vida a ponte só tem sentido 1257 na travessia ocasional de alguém que nem sabe de sua armação em cimento e metal nobre ABANDONO o abandono do primeiro gato no bairro pelo mundo o abandono da primeira pomba por sua conta por seu risco o abandono do primeiro cão no asfalto na roça gerou essa necessidade de seu abandono de mim a culpa não foi sua bem sei... a culpa é do primeiro gato da primeira pomba do primeiro cão deixados à própria sorte sobrevivendo de saudade mas resistindo e criando resistência contra o desamor vivam os abandonados! 1258 PAISAGEM QUASE ESQUECIMENTO as nuvens no céu tocadas pelo vento sem rumo ermo um dia se cansaram do voo sem parada extenuadas resolveram fixar morada as nuvens cansaram de voar ser nômades errantes e se fixaram no chão perderam a alma das brisas das evaporações e endurecidas paralisadas como pedra bruta tornaram-se imóveis e inflexíveis a paisagem de minas é quase um esquecimento da alma nômade das pedras cansadas do voo da vida ROÇA o remédio para a cidade é a roça de milho plantar colher comer o remédio para a cidade é a troça da vida 1259 rir cedo dormir cedo para controlar a idade POR DEBAIXO DA NÉVOA o horizonte em montanhas vistas do alto cobertas por névoa é uma nuvem gigante de esquecimento cobrindo a paisagem (mas por debaixo há montanhas de um azul real repletas de saudades e caminhos que dão em cidades) FORMA DE NUVEM não havia nuvem sequer nem pra lá nem pra cá onde olhasse era vazio de azul em azul puro e como não houvessem nuvens no céu eu as criei para dar forma ao sonho IBITIRUY o vento da terra do interior a terra onde nasceu meu corpo e vive minha alma chama-se ibitiruy o ibitiruy sopra de leste para oeste 1260 espalha sementes pelo ar arqueia o capim lança longe os grãos catapulta medieval no início da criação o ibitiruy brinca de agricultor SEIO DE COPA na fazenda grande de casa branco com azul a árvore desponta no meio da paisagem rural como um seio gigante e farto a copiosa copa se avoluma em redondo mamelonar grudada à terra que lhe segura e alimenta VENTO DE INVERNO o vento do ônibus do avião do carro do menino vagando não desperta a semente para a vida apenas o vento do inverno seco anual eterno sabe a hora de jogar o grão na terra antes da chegada da primavera chuvosa e cheia de mimos 1261 ESTAÇÃO o inverno é estável não há os revezes de outras estações o verão é tempestade há sempre renovação no vento e na chuva que preferem os bichos da terra e de debaixo dela? DISSIPAÇÃO a névoa sobre a mata ainda repousava em silêncio costurada sobre o solo em agulhas de orvalho sob o olhar da lua branca quando o sol invadiu sua intimidade elevando da relva em dissipação o dia nasceu sem névoa tragada pelas nuvens em desenho de criança ANDORINHA a andorinha acorda cedo sacode as asas ao sol observa no chão os insetos sonolentos depois da noite quem acorda primeiro vive mais 1262 ROSEIRA a roseira da casa abre pétala em sorriso a cor é vermelho veludo a roseira da casa de marlene miranda fica na escadaria da santa rita há fotografias correndo o mundo em vermelho veludo e pétala em sorriso a rosa dá boas vindas para quem chega e pede água ANTENA as pernas desengonçadas das torres de televisão de telefonia celular de rádios tramadas pelo engenheiro suportam mensagens tristes e alegres a toda hora sintonia de peso 1263 PEDRA REDONDA o por do sol é atrás da pedra redonda sei que lá habitam seres especiais os piratas de além-mar o pequeno príncipe e sua rosa as bruxas e suas vassouras as fadas madrinhas carinhosas no por do sol eles se reúnem para o descanso merecido o pirata ouve o papagaio o pequeno príncipe beija s rosa a bruxa pensa na receita a fada madrinha cochila na pedra redonda eles vivem e no por do sol eles se encontram para divertir a imaginação e fazer o dia nascer feliz FRIO DA MONTANHA a letargia do frio da montanha impõe ritmo lento a todos os seres (como fica, então, minha mente apressada?) GRAMADO enquanto a grama do adro da igreja de santa rita enverdece renovada 1264 enquanto o sol passa a brisa convida a semente a brotar todo dia as cores da grama são várias os verdes matizados brotam a cada segundo quantos anos se tecem o gramado para os pés? JANELA DE IGREJA em cada janela da igreja pequena ou grande triangular ou quadrada um mundo se fecha outro se abre qual dos dois preferir: o de dentro ou o de fora o sagrado ou o profano? PLACA, ESTÁTUA para as estátuas da praça para os bustos de bronze para as placas comemorativas não há estações tudo é estacionário desde sua inauguração 1265 CHEIRO DE VIAGEM cheiro de viagem para a cidade do interior fumaça de forno de pastora temperado com lenha do pasto de claudionor carne moída com pimenta do pastel folhado de nondas da churrascaria casa fechada no inverno impregnada de café pela manhã poeira abafada com água de mangueira ao final da tarde na rua da cadeia ônibus na rodoviária dentro ou fora absurdamente repleto de substâncias inerentes a cidade tem cheiro de viagem para dentro memória de infância estacionada no mesmo ponto ORVALHO o orvalho renova a noite mas não germina as sementes espalhadas pelo vento do inverno o orvalho não enferruja os bustos da praça são caras de bronze eternizadas para o riso quem gostaria de ficar ali parado na noite? 1266 PROBLEMA DO DESEJO o desejo não envelhece problema do tempo não meu o desejo não cessa problema do termo não seu o desejo escapa ao controle problema de cerca não teu o desejo prende a alma problema de religião coisas de deus USINA EÓLICA na usina eólica do camelinho quatro hélices de 3 abas formam quadrado para pegar o vento só vi poesia na preguiça de vento ao fim da tarde bucólica nenhuma hélice girava nenhum vento passava o céu era testemunha da falta de energia 1267 ACORDAR quando o corpo desperta o frio acorda para a vida o café reanima a rosquinha fala de ciclos ida e vinda vida e morte frio e calor paz e guerra quando o corpo desperta a alma não sabe do frio vagou pela noite chegou tarde de volta não gosta de café não come rosquinha evitaria os ciclos não fosse sua imperfeição PEDAÇO ERRADO ainda na noite perca-me entre estrelas ou desfaça planos secretos ainda no dia deixe-me cair cansado ou não queira sorrir breve ainda no sonho não haja sonho e apenas o vazio se faça lembrança 1268 ainda com você sinta saudade de mim mesmo ainda terei grande amor por cada pedaço errado de mim PERFUME CÍTRICO o perfume cítrico de limão de combinados ácidos deixam-me ameno o banho depois da água sentir cheiro de planta de saúde de vitamina c deixar a noite perfumada de limão para esquecer o dia passado em memória do que não sou mais e o medo esse artifício da liberdade de viver menos que mereceria e mais do que devia 1269 INVISÍVEL VERSO vou espalhar o verso sem preocupação ninguém o colha nem o coloque no cesto não o leve à praça pública ao prelo das gráficas o melhor do verso é ser ele jogado no tempo do papel passando vagaroso invisível vagalume na noite escura o invisível verso surja do fundo da alma contente por temporário eterno por escrito frágil por ser apenas a parte pouca de mim LENDA DA MEMÓRIA o relógio mostra 19h13min do dia perdido em rosário de dias terei feito promessa cumprido o pacto rezado com alma? o dia perdido jamais verei talvez na lenda da memória 1270 BANHO tsunamis vendavais corredeiras inundações gases despoluição banho de espuma renovação da pele SUPEREGO ao canto estou de vez em quando falo me ouço me escuto intrigante voz ao canto fico participo da ação questiono opino perseverante voz fala sem pedir grita para libertar-se superego HORA a hora passou tirou da lua a metade esfriou o sol deixou inverno por todos os lados 1271 a hora passou como sempre mas somente agora eu vi o relógio vivo das coisas do mundo mudando sempre RUGA DE CAMINHADA a ruga dos pés de tanto pisar o mundo tornou-se flexível (o que não flexiona parte e quebra e acaba) ALMA DO MUNDO ouço a voz de dentro que voz será essa à noite? me encanta me agrada me diz coisas lindas mas é rebelde não fala a verdade a verdade está para além da voz de dentro a voz da verdade está na alma do mundo puro ou impuro se coloca sério 1272 a voz de dentro se cala quando quero e fala quando espero apenas silêncio do mundo não estou onde está minha voz estou onde a voz indica algo para além no caminho entre o mundo e a alma de mim mesmo cheia de cadentes abscessos de fúria silêncio alma não quero ouvir vozes silêncio alma não quero o porvir atroz AMANHÃ: QUANDO amanhã quando a noite se for entre o lapso de tempo da madrugada para o nascer do sol amanhã quando a noite for promessa e restante da anterior apenas o orvalho amanhã quando o bem te vi cantar saudando marotamente a manhã amanhã quando eu sorrir ao acordar deixando a alma remotamente esquecida da noite em conversas pelas ladeiras da noite 1273 amanhã quando a lua for apenas uma loucura para os lobos e para os loucos eu quero acordar livre do sonho por tê-lo realizado a lenda pessoal (escuto a música no ar: marujada de joaquim bago-bago passando na praça joão pinheiro som de mar no alto da montanha) GARIMPEIRO DAS VOZES a frenética voz das coisas baila intensa no dia eu escuto vozes variadas tonalidades confusas vozes doces vozes como garimpeiro seleciono a joia a da pedra inútil as vozes são tantas qual delas será santa? HOSPEDO UMA ALMA a alma está em hotel frouxa de pernas para o ar não haverá amanhã não há preocupação no porvir a alma está hospedada 1274 água quente na banheira champanhe na taça estrelas no céu lua cheia a alma está ilhada no silêncio do quarto se frio: aquecedor se quente: refrigeração a alma está no alto andar pelo mundo é bom tem gosto de mel de abelha na ponta do dedo e se lambuza e se acusa e se perdoa êta, alma hospedada em mim! aqui, profundamente assim! BANHO DE ALMA a alma toma banho parece estranho mas já vi a alma enxuga as gotas parece absurdo mas já senti quando amo ela sua 1275 quando amo ela tua e sai de mim e vai solta no mundo a alma é do mundo e te encontrou pra mim e cansada tomou banho enxugando as gotas do suor da jornada quando amo ela lua quando amo ela rua VÉU DA MENTE o véu da mente cérebro impede a realidade ébrio a realidade está para além das cortinas dos olhos a fresta é pequena demais para espiar a verdade a verdade está para além da parcial visão dos olhos 1276 TERNO TEMPO o tempo passa passa tempo movimento eterno o tempo basta basta tempo intensamente terno FRENTE E VERSO ainda parado em frente ao vento (saber que o vento não tem costas é bom) o que vindo do pico do itambé me educa para a vida há ensinamento na corrente flutuante e invisível sobre a terra como a alma: no influxo de coragem vaga em corpo feito o vento coloca as nuvens onde quer o corpo coloca a alma onde deve e se não deve vira tempestade terminando em mutação o vento sempre ensina frente e verso AMOR MESMO abraço deveria dizer saudade mas em você nunca era amor mesmo 1277 BICHOS PENSANTES as pombas-rolinhas miudinhas e roxas empoleiradas na janela tomava banho de sol no inverno os bichos de asas se aqueçam os bichos pensantes dormem BRIGADEIRO no inverno a alma tem sono alma com sono dá em cama tardes imensas em movimentos pra lá pra cá terminando em brigadeiro no sofá: extensão da preguiça da alma BACIA D’ÁGUA água sanitária resseca a mão parece mão de velho ou de maria eremita antes de escrever histórias no fim da vida água de banheira resseca a mão parece mão de criança ou de bebê de poucos dias explorando o ventre artificial: bacia 1278 SERENA REALIDADE o casarão velho range o assoalho memória de botas e fazendas o telhado cai as telhas como fios de cabelos ao vento os pombos renovam os ninhos os morcegos pegam as frutas (eles não dormem no túnel da chácara do barão como eu pensava) os cachorros que vivem tão pouco esquentam os corpos mirrados no sol do meio dia: a única refeição do dia não há novidade exceto o ônibus não há novidade exceto o repouso das coisas e das pessoas em volta da cidade do interior: serena realidade CEMITÉRIO E CÉU não devia haver ladeira para subir aos céus o céu da minha terra encosta em cemitério o que dá certo medo da vida após a morte o corpo inerte do morto sobe pelas mãos suadas 1279 homenagem final abrir a urna chorar copiosamente (ou nem tanto) depois descer para o vale onde o rio continua o rumo incerto da vida entre morros até chegar em gotas ao absoluto distante o mar A CIDADE CANSA a cidade grande cansa não pelo horário fixo da agenda a cidade grande cansa não pelo anonimato do rosto a cidade grande cansa não pela meta de venda no alto-falante a cidade grande cansa não pela velocidade do carro cansa pelo concreto absoluto concreto sem sonho a cidade cansa pela falta de sono 1280 RETRATO DE 4ª SÉRIE o retrato da infância sorri (como não sorrir diante de imagem singular: bandeira do brasil livros de líder perfeitos numa mesa de executivo bem sucedido?) o retrato da infância denuncia (como não se sentir intimidado ao olhar: placa indicativa de 4ª série último ano no grupo joão nepomuceno avô de Kubitschek nos idos de 1983?) o retrato me inscreve no tempo presença de outro no papel não sou o mesmo: o tempo passou profundamente HISTÓRIA DE CALÇAMENTOS o pé-de-moleque da ladeira perde a rapadura na chuva ficam apenas os amendoins lascados poucos inteiros a gengiva não segura os dentes para sempre: história de calçamentos 1281 E PARA O JANTAR? o melhor é saber que nada se sabe sobre a alimentação das andorinhas o melhor é saber que nada se sabe sobre a alimentação dos morcegos mas eles continuam voando na tela da infância e sei que isso será para sempre para sempre apesar do desconhecido método de alimentação desses bichos EQUILÍBRIO o que dói é o equilíbrio familiar, sempre familiar das classes dos gêneros do rural e do urbano o que dói é o desperdício familiar, sempre cautelar mudar de cidade quando se tem vontade de desequilibrar (nunca vi gente da minha terra brincando de equilibrista: só no circo velho que foi embora sem me levar para longe) 1282 LUAR E SOLAR a lua é a mais discreta de todas não emociona nem comove apenas se dá em obrigação de folhinha mariana o sol não mata nem faz nascer não vibra nem se espalha apenas se faz há tantos anos para repetir o ritual todos acreditam “lua e sol são nos mesmos” todos afirmam “lua e sol fazem a mesma rota” nada disso: os olhos, sempre os olhos, é que repetem o olhar não é á toa que estrangeiro sempre vê novidade no luar e no solar O LOUCO E A MORTE o louco mais louco da cidade do interior mais profundo do vale mais jequitinhonha abandona a casa e não volta e some a rua o absorve para sempre até que num belo dia de domingo o dia mais sossegado de todos tocam-se os sinos do cemitério e o louco volta para casa eterna nos braços dos meninos sérios 1283 a morte não tem graça nem para o louco mais louco da cidade mais profunda do vale mais jequitinhonha do cemitério mais alto da cidade mais interior a morte é numa loucura quase inaceitável HOMEM DE RODOVIÁRIA ele parece manequim no tempo onde o paletó e o chapéu eram peças de grande elegância (hoje ainda o é nas cidades grandes cheias de anonimato e prédios altos) ele parece estático no tempo aonde ir à cidade era belo para sentir as novidades de perto (hoje ainda o é paris londres amsterdam cheias de modas tantas tidas como a última) ele mora na roça e vem de ônibus para a cidade ele vive na moda de sentir-se no fim do mundo e só na cidade sentir o afago do tempo 1284 PRAGA DE PADRE TROMBERT nunca vi furacão nem mesmo nevasca mas contam de um padre rogou uma praga tão grande deus mandou um granizo tão forte cobriu as ladeiras da cidade até o rio que até os porcos pararam de roncar na lama até as galinhas esqueceram a hora de dormir na árvore e até o alto-falante da santa rita ficou mudo por causa do susto a mitologia serrana rola ladeira abaixo se for padre e bispo desce dos céus NOTAS PARA SEPULTAMENTO no dia do sepultamento quero: (anotem bem na lista de papel) flores barrocas do século dezoito coral de dona vilma em te deum banda de música em marcha fúnebre e todos os loucos na primeira fila e para completar: (não deixem de cumprir senão eu volto) caixão de maçom de zé rela terço de pedrelina de nadir visita de luiza de castelo portas de comércio lacradas e para celebrar a chegada ao céu: (peçam para são pedro ou são miguel) voz de glorinha dos correios entoando o canto de verônica -daí eu vou saber que morri mesmo assim como jesus na sexta-feira santa 1285 TEMPO DA SAUDADE voltar na saudade das ruas é inclinar o pescoço para cima cruzar os ouvidos para escutar as horas na santa rita o tempo havia onde saudade essa, não, eu sei, não existia nem pulava do peito para o mundo em desejo agora a frágil estrutura do ser – alma que pensa reza aos santos todos para passar horas onde o tempo da saudade esse, não, eu sei, não existia! BILHETE OBRIGATÓRIO vou anotar no bilhete depois de olhar o calendário da loja primavera depois de consultar a folhinha mariana ou o do sagrado coração de jesus vou anotar no bilhete depois de sentir a temperatura do vento do alto da santa rita depois de olhar curioso a correição das formigas ou o voo das andorinhas “hora de ir para o serro, de férias” 1286 PASSAMENTO DE TEMPO o tempo passa para o vento passa para o pensamento para o encantamento para o momento por que não passaria para nós aqui dentro? eu e eu mesmo em diálogo lento! o tempo tem rimas próprias para seu passamento DE DENTRO PRA FORA / 2012 DE DENTRO PRA FORA hoje: dentro pra fora um tempo antes era o contrário o caminho errado hoje: de mim para o mundo um tempo ontem era o otário o caminho equivocado agora é isso: acerto de contas saber de dentro pra fora sempre 1287 DEPOIS DAQUILO depois de um dia diferente a vida nunca mais foi a mesma duendes gnomos silvos salamandras anjos deus todos ressurgiram na alma virei uma catedral cátara o mago o ato caminhos de dentro pra fora viva o diverso vivo em progresso ENTRE CORPO E ALMA um dia o corpo vai deixar-se partir de onde veio depois de cruzar palmital pedro lessa morro do paiol morro de areia ele voltará ao ponto inicial: onde tudo começou mais uma vez 1288 TEMPO-TORTURA enquanto eu não me encontrar o mundo será cadeia as horas algemas: tempo-tortura ALTIVEZ eu me vi no alto do pico do itambé nele a alma do mundo em mim o mundo da alma altivos: eu e ele como tudo que veio das mãos de deus PARA SEMPRE não segurei a emoção o chão pulsava o coração ardia a mente acelerada de repente: lapso o espírito disse “quero ficar para sempre aqui” OUTRA PARTE você não sabe mas posso ensinar o amor escondido por trás do olhar 1289 você não sabe o que posso lhe dar o amor é mistério e sabe se ocultar na lua ou no sol espalho meu amor para você sempre se iluminar (e um dia me amar) e mesmo que passem dias em frio vagar eu sei: você é minha outra parte e vai um dia me amar FLORAÇÃO no lote vago da casa derrubada a grande flor rosa vermelha lembra a todos os distraídos como lápide erguida na tarde o tamanho do seu coração IGREJINHA a igrejinha de santo antônio no alto da cidade tão miudinha está em reforma fizeram um grande ninho estruturas de garranchos de paus para os pedreiros subirem nas alturas toda obra precisa de acolhida 1290 CASA DA CACHOEIRA o tempo jogou tantas horas pelo chão o tempo passou rápido a casa da cachoeira não resistiu às estações: caiu de saudade PONTE DE PEDRA a ponte de pedra servia para as onças hoje passam carros e completaram com cimento o que faltava de certeza (o homem sempre duvida da força oculta) a ponte de pedra de tantos poços pequenos e médios e grandes e rasos e pouco rasos e muito fundos (a profundidade depende de cada um) o frio corta o pé na água não há neve nem gelo apenas o vento frio do inverno MAPA DO TESOURO os sentimentos mais puros da infância eu deixei entre os dois rios passando em vale por seu povo nobre onde está o mapa do tesouro dessa pureza? 1291 PEREÇO RÁPIDO o pico do itambé vigia como velho bondoso a tradição dos dias o hábito dos gaviões de prender com as garras os mocós distraídos em banho de sol o pico sorri dos corpos frágeis a rocha cai tão devagar até virar areia de rio se foram milhares de anos (eu não os tenho: pereço rápido) MINIATURA a cidade diminuiu de tamanho o rio encurtou as margens o pico do itambé aproximou-se a cachoeira está mais rasa o meu mundo cresceu tanto na cidade grande o que vejo é miniatura absurda da infância ESSE MENINO esse menino das férias de janeiro de cachoeira a qualquer hora de banho em rio na tarde em fim esse menino das caminhadas sem perguntas das escaladas sem fim e sem preocupação sem medo da tempestade em raio e trovão 1292 esse agora é outro de partes tão diversas esse agora é pouco o outro era absoluto esse agora não é o mesmo o mesmo é a cachoeira e o belo rio da tarde esse agora agora sei se perdeu nas fotografias VENDA DE ANTÔNIO ALÍRIO na venda de antônio alírio cheiro de fumo em rolo groselha em refresco no copo americano havia geladeira azul feito céu de inverno ou véu de maria de nazaré em maio em coroação na venda de antônio alírio havia meninos e homens e mulheres hoje o tempo levou a velha casa -ficou o lote vago, pobre lote vago sem história 1293 QUITANDA DE MARICA a quitanda de marica na casa de sinhá de dirceu saia o dia todo em fumaça pausa apenas para o almoço a fumaça da candeia rodopiando anunciava café da tarde em crocantes confabulações de massas marica limpou o forno foi-se embora para a roça mandou um aviso para mim: na fumaça rodopiando no alto do pico (tragam groselha de venda para o café da tarde bigode vermelho tem sabor de família) TROMBA D’ÁGUA o rio desce do pico do itambé com tanta fúria e cólera o que era miudinho fica gigantesco e dá medo como tudo em nós, pequeno um dia explode em tantas palavras o rio explode em tromba d’água tantos metros acima do normal os garranchos ficam presos no alto das árvores a ira deixa marcas por todos os lados 1294 VIBRAÇÃO as antenas internas viradas para o sol sou pura energia dentro e fora ENERGIA me viro me mostro me retiro me pasto pensamentos são energia VELHICE os velhos adoecidos esperam a morte futuro: ficou nos filhos (como cria-los debilita) ou será um amor sem resposta ou a fé tonta sem aposta? CALAR É SABER o tempo passa aprende-se: o silêncio é sempre mais 1295 DIAMANTINA as casas miúdas são aparentadas conversam entre si fazem festa coloridas nem rua larga nem avenida becos curtos e pronto a cidade tem casas com almas dentro e pulsam vibrantes na montanha MERCADO VELHO os arcos de madeira cento e oitenta graus espaço interno para feirantes no sábado de manhã se compra e se venda alguma coisa ao fundo em dois mil e tantos metros de altitude o pico do itambé espia a tradição do mercado e dos mercadores de terra CALÇADA o ambiente de dignidade se espalha pelo almoço a intensa dignidade 1296 de todos e todas debaixo do céu azul de um inverno a mais entre as ruas miúdas calçadas de vidas SORRISO diamantes antes enterrados passaram por mim há pouco travestidos em sorrisos e bons dias honestos há coisas que saem somente do fundo da alma CATEDRAL a catedral é empecilho o único na singeleza quem pôs sem generosidade a cadeira no meio da rua? prefiro a simplicidade do presépio natalino nele reconheço o mestre não nas catedrais arrogantes TORRE ÚNICA sem torres gêmeas apenas uma torre 1297 e nada mais e pouco mais apenas uma para evitar comparação quem dera se a vida fosse única como a igreja do bonfim tem apenas uma torre para evitar comparação AS LUZES os espíritos não olham os corpos apenas e tão somente as luzes não as luzes da tarde caindo nossas luzes nada lhes ilumina mais que as luzes nossas luzes nada lhes causa mais temor que as cruzes nossas cruzes eles sabem da treva e da luz mais que o sol e alua mais que todos os livros os espíritos não olham os corpos apenas e tão somente az luzes nossas luzes RECOLORIR o azul em fim de tarde colore a memória quase sem cor do tempo recordar é recolorir o mesmo de outro tom 1298 LUA SUMIDA a lua tímida e distante do inverno quase sumida ilumina o hemisfério norte lá ela brinca de sol em noites claras de verão FRIO E CALCULISTA o cobertor me traz o calor de dentro apagando se foi com o tempo pudera esse calor me requentar agora homem feito frio e calculista DIA NUBLADO nem os cachorros ousam latir o dia nublado de inverno garoa fina silencia somente as andorinhas ousam coar baixo no rio catar insetos saídos do silêncio da manhã (elas ouvem a umidade elas sentem a novidade vinda dos céus) 1299 PONTO ALTO o alto de um morro é sempre um ponto alto da caminhada da subida: é chegada quem chegou ao alto da santa rita quem chegou ao alto do pico do itambé nunca serão os mesmos as manhãs são diferentes entre nuvens a madrugada é elegante entre névoas da alma CALOR hoje não vou tomar banho preciso reter todo calor do corpo para queimar em renovação amanhã eu me banharei impulsionada pela novidade que virá, eu sei FOME DE BICHO de tarde ainda há fome entre os bichos cercados no quintal da casa apesar de novos moradores velhos costume, velhos costumes (cuidar dos bichos é matar a fome deles) CARACOL dar volta nas horas para esquecer de mim o caracol dá volta em si mas sente o peso nas costas que será de mim caracol sem fim? 1300 GIRO DAS HORAS o tempo passa para todos em volta invisivelmente leva para o passado os mais presentes os mais recentes o tempo cala a voz de todo coração incrivelmente só ele consegue e bem acabar com o amor que parecia eterno o tempo se alastra entre as vidas e passa meninos e meninas e sara feridas e feridos com o esquecimento ah, o tempo somente ele sabe o que sou ou tento SILÊNCIO ABSOLUTO o silêncio absoluto nunca houve dentro sempre o eco bruto o pensamento o silêncio definitivo nunca se deu em mim acho: única vez há tanto partimos um do outro em fim o silêncio bem queria apagar a memória ou quem sabe dizer: “chega” mas não: me diz “fala e ouço” tenho necessidade de som sua voz criou ideia fixa 1301 ANTIGO AMOR o sopro do vento vindo do lado de fora desperta a saudade de dentro quando foi a última vez entre olhares purificados nos acertamos no tempo e no espaço? o vento sussurra seu nome e o domingo era tão suave e a vida era tão doce que será de mim? o vento é a alma do mundo o sopro divino pairando nas coisas veio revirar no alfabeto interior letras que insistem em escrever seu nome antigo amor LAGARTIXA a lagartixa bebe água da mangueira de plástico na manhã de domingo mal sabe ela da alegria de matar sua sede de inverno 1302 logo ela tão atida ao calor das pedras precisa refrescar-se (a natureza é sábia jamais louca loucura é morrer de sede com água na boca) CENÁRIO DA JANELA as pombas rolinhas pastam na grama aquela, deitada abre as asas para o sol outra corre, acelerada atrás do macho intruso outra, amorosa, reproduz a espécie bichos de asas como bois na grama eu na janela com asas cercada por quatro paredes as rolinhas pastam debaixo da janela o mundo continua seu giro absurdo 1303 DOS DIAS no dia lento demoro no dia quente evaporo no dia sábio aprendo no dia frio esquento no dia puro evoluo no dia escuro escuto no dia rápido espanto no dia trágico manto no dia sonoro ouço no dia silêncio cresço O IDO É ALGO das velhas coisas livros cartas eternidades sentimentais das velhas coisas fotografias 1304 casos intimidades banais fica algo fica algo fica algo talvez vida talvez existência sempre passado PRESTA? fico em ponto não volta vai chegar -que resta? a fresta ontem amanhã -e presta? JANELA FECHADA enquanto a janela fechada fica bem te vi sabiá pica pau meu olhar não habita enquanto a janela lacrada irrita lá fora 1305 há festa canto sino que se agita enquanto me fecho em janela ferrenha o mundo sorri o sol brilha a lua cresce a vida se desenha (preciso abrir a janela deixar poeira e sol entrarem sem medo melhor um móvel cheio de pó que uma alma cheia de dó) PASSADO SOCIAL CLUBE medo, não, talvez vontade do diferente sem saber ao certo por onde como quem medo, não, talvez saudade da paixão nova do poema torto sem eira nem beira aventura sem limite medo, não, talvez diferença fazer o dia diferente à noite mais quente que o próprio abraço já costumeiro medo, não, talvez retorno 1306 ao que vale a pena dentro e deixar o verniz fora ser apenas social passado clube medo acho que não há medo há um vento forte renovando o que antes era feio SONHO ainda da noite o sonho ainda da noite esperança nada mais a vida em sonho sonha vagamente o sonho vem o sonho vai a noite cai o dia sai eu fico sonho vivo nas horas ROTA AÉREA a nuvem não passa sou eu: traduzo sua mutação em tempo 1307 a nuvem não muda sou eu: induzo sua flutuação no vento a nuvem não chove sou eu: secura pura implorando renove a nuvem não some sou eu: céu azul desenhando linhas aéreas para partir de mim para outro lugar como as nuvens a vagar DIÁRIO DOS SÉCULOS puro feito um beato o pardal vaga pela cidade de geração em geração enchendo os telhados de vida ninhos e muita esperança de renovação pura feita uma beata a andorinha abre suas asas ao sol desde cedo para abrigar a força de sobrevivência no alto da montanha fria os bichos voando são plenos de vida habitam o diário dos séculos da natureza dentro da cidade mais fria do mundo 1308 DA PRÓXIMA VEZ da próxima vez antes de dormir talvez eu peça silêncio, não sonho talvez eu queira ausência, não voz da próxima vez antes de adormecer eu tenha a sensação renovada do novo antes do amanhecer por agora fica o barulho das vozes a incrível história dos sonhos indo e vindo durante o dia perdendo seu sentido calando sua voz em mim DIA EMBAÇADO o dia passa embaçado nem neblina nem fumaça nem sinal de sol forte lá fora seja lá fora o que for passam as pessoas sozinhas tão isoladas dentro de si mesmas a clausura é a sociedade plena o dia mais um dia aflora fora afora 1309 TEMPO MENINO o tempo fica grudado na pele das meninas crescendo o desejo em fantasia de coito não para de maquiar o rosto das mulheres com a aflição do passado das meninas puras o tempo sacode a árvore velha para colher o fruto desde há tantas estações uma vez por ano o tempo sabe: há necessidade urgente de mudança nos adjetivos dependurados na vida vi meninas tão puras feito árvore nova vi mulheres tão putas feito fruto sem vida o tempo desmente a fotografia inicial de todos nós: quem somos, afinal? TRAÇO o corpo carregado mundo caminhado destino traçado hora de mudança cansaço de cobrança destino na balança a morte se vem dirão: como convém a todos de mal ou bem 1310 VIDA FÍSICA ausência em saudade o corpo lhe reteve imagem e memória o que ficou desce fundo na alma corta e fere e ferve não sei se vive ou se morreu embora viva em meu corpo [como tirar sua mancha da memória ainda não inventaram para o amor esquecimento fácil) FRONTEIRA a fronteira entre a tarde e a noite não traduz o limite interior entre a vida sonhada e a vivida a fronteira entre a noite a manhã não induz ao novo olhar entre a vida esperada e a realizada estou em território de guerra terra arrasada de um lado soldados com medo do outro uma brecha para o destino o destino precisa da fronteira para fazer-se pleno e inevitável 1311 AINDA BEM ainda bem: o sol nasceu e cruza o céu como ontem ainda bem: estou de pé e depuro a alma no dia ainda bem: o sonho dissipou-se e virou passado como as horas ainda bem: mais uma vez ainda estou diante do vazio a procura ainda bem: tudo está no seu lugar apenas eu dei voltas para descobrir ainda bem: cheguei de novo ao ponto -claro não podia ser outro: interrogação SOMBRA difícil compor de luz o dia terminado em breu dentro de mim a sombra não permite iluminação pobre de mim não paguei a conta de energia: sou sombra só TEMPOS EM UM SEGUNDO o fim de tarde apenas fecha o dia nada mais se veda em mim continua imperativo voz pedindo sentido palavras para resolver o vazio 1312 o fim da tarde não dissipa a dúvida o tempo da estação é certo mas o meu o meu tempo nada de linear possui o relógio corre por vários caminhos nenhum deles me conclui assim sei a natureza humana em mim se diz verdadeiramente forte e intensa não me larga nem para dormir o fim de tarde apenas abre outras outras tantas janelas da alma para a noite a noite longa mais uma vez pressentida de outro dia que nunca será o mesmo o fim da tarde não me leva ao sono nem ao esquecimento sou ainda pensando em mim todo o tempo de cada segundo que são muitos muitos tempos num segundo TÚNEL DO TEMPO pulo o incerto caio no medo fujo do certo saio a ermo há fuga possível em mim morando dentro assim tão fundo? 1313 cuspo a palavra pulso o sentido culpo o mundo salto e caio fundo há tempo visível no fim do túnel ou tempo vário falta enfim? SECA DE DESERTO pudera na solidão retirar da nuvem prenhe de chuva a umidade para a língua seca de tantos anos dizendo seu nome na aridez da noite a noite, sempre ela, o inútil deserto das horas das lembranças secas da vida sem futuro das horas de miragem o orvalho da madrugada me salva mais uma vez mais uma vez uma vez mais 1314 TELEFONE não vou ligar o telefone nem esperar o telefone não quero ouvir o telefone sua voz distante ao telefone falando perdão por telefone escondendo a intensão ao telefone vou desligar as linhas do telefone quero apenas ausência do telefone e de sua insistente mania de distância REVELAÇÃO por trás das nuvens a tarde se vai entre montanhas plenas e absolutas vai mais um dia um sol que trouxe o dia 1315 quisera a noite ser plena mesmo sem montanhas mas haverá a lua, bem sei trará de volta a luz menor mas sempre luz para os olhos aquecimento da voz do coração TEMPO QUE DURA antes da noite basta o beijo em tarde desnudada antes da lua basta o corpo suado em vermelhos tons antes da vida basta o silêncio que dura eternidade CONCORDO em poesia passa o dia a flor a pombinha o pardal explodem em cores fortes sonhar é colocar cor e voz e feitos especiais ao desejo submisso no sonho sei da poesia vasta feito chão de sertão em seca anunciando depois da morte a explosão de vida e cores sonhar é fechar os olhos concordar com a alma 1316 MOCÓ a curva para os olhos é reta plena para o mocó eu preciso do caminho ele precisa da toca eu sem toca ando ele sem caminho entoca o mocó saiu para tomar sol aflito de que amanhã chova ou faça frio e precise olhar para as paredes de terra PENSAMENTO DEPOIS PALAVRA a palavra antes é sopro na parede de dentro depois dita bendita ou maldita escreve sua própria história dentro não há história apenas arquitetura de linguagem dentro não há diálogo apenas egoísmo em círculos 1317 ABSOLUTO quisera da borboleta impressão bruta da cor quisera da noite lua cheia pra dor quisera da vida pedra bruta esculpir quisera de nós cartas sérias mentir mas foi verdade meu querer nada impede mas foi real meu poder nada decreta nada, em absoluto nada, de morte, em luto LINHA VAZIA quando versos derramados perco medo da rima enfrento a linha fria sem receio 1318 a linha por ditar é apenas vazio pronto para erguer quem sou quem sou? a linha cheia diz mais uma vez MONITORIA o rio líquido na tela reflete o mundo o monitor sabe o inverso de tudo a retina fina na mente identifica nas coisas a cor desejada põe para dentro de mim imagem se faz na tela imagem de trás da vida bela VERBO digo frases para evitar o silêncio escolho discos para dar um tom leio poemas para crucificar a alma verbalizo sempre 1319 DA ANTERIORIDADE, PERFEIÇÃO antes desabasse o mundo quando desisto morre o absoluto antes detestasse o muito quando resisto fico mudo antes viesse a razão quando amo crio confusão antes viesse o amor quando penso invento a dor antes fosse pleno quando falto sou defeito NA CARNE fragmento o verso não sou açougueiro não passo de poucas palavras o verso é sem gorduras, muxibas, tripas pouco e pouco o verso ele precisa do mínimo para ser ele mesmo ele sou eu ao contrário ele é exercício de mim quando curto revela o vário 1320 ENTRE TEMPOS vivemos muito mais que o brilho da noite única vivemos muito para além do brilho da tarde e ultrapassamos as andorinhas em corpos belos e vagamos no mar da vida mais que as gaivotas mas morremos depois de tantas luzes acesas tantas borboletas indo e voltando para o casulo tantas cigarras evocando a magia da primavera morremos em silêncio como toda morte fria que somos diante da vida quem fomos diante da morte? FUTURO a rotina de ir desse para outro pensamento cansa como ficar parado em diálogo sem som basta fica a sensação de obra inacabada pensar viver em fantasia sem medida infinitamente do pensado que se fez realidade? 1321 DIÁLOGO ENTRE COISAS o vento bate na janela a natureza pede insistentemente -desperte! a nuvem chove na janela a estação mede pacientemente -até quando? o retrato sobre a mesa congela o passado francamente -para sempre. FLUIDO as persianas filtram o vento do vento sai o frio e o quente as grades da prisão tiram o sono o pensamento não voa está sempre preso o fluido passa sempre mesmo em demora longa longa longa ALMA E TEMPO de passagem pelo tempo passeio breve de lavagem a alma ensaboo sempre que seria do tempo sem a alma dentro? 1322 que seria da alma sem o tempo centro? passar como passam as águas da cachoeira de manhã tarde noite sempre de dentro pra fora HÁ FIM perto do fim se perdem pedaços do corpo um órgão extraído apêndice calejado um órgão retirado vesícula baleada perdem-se os cabelos as unhas crescem devagar o corpo já cansado produz a sombra translúcida perto do fim se perdem os fios do tempo há o fim para mim 1323 INTERIOR: PARA ALÉM DA JANELA DA ALMA dentro da geladeira conservação dentro do guarda roupa estação dentro da mente arquivação dentro da gente inquietação dentro do tempo revolução dentro do medo perturbação de fora todas as coisas são de dentro de dentro todas as coisas são de sempre de dentro pra fora se passa a vida de fora pra dentro se tem realidade VERSO CANSADO final de ano versos cansados o tempo acaba a linha da rima final de ano o banho é o mesmo 1324 o dia nasce o mesmo na linha do horizonte o poema está cansado como eu de estar mais mais e mais e mais um ano no espelho d’água refletido CASAMENTO a vibração do amor ultrapassou a parede do seu e do meu coração o universo virou casa -casamento EXPECTATIVA espero para depois de amanhã um sinal dizendo: é hora exata fazer as malas e carregar nelas o sentimento do mundo espero para depois de amanhã um final fazendo: é hora pura construir alas e abastecer a alma com o sentimento profundo CAIXA QUENTE o apartamento é caixa quente lá fora as nuvens frias e úmidas renascem as sementes do inverno reflorescem as árvores da seca 1325 mas o apartamento quente é dentro e o mundo de fora chove em milhões de possibilidades eu sei que uma gota de chuva basta para renascer o melhor de cada semente para colorir o mais belo de cada flor em encontros entre o céu e a terra em profunda sintonia entre os mundos ESCAPE buscar na memória o pingo da chuva de domingo enfrentar a realidade acabou a religiosidade o tempo basta nada lhe escapa enfim o silêncio como no princípio CISMA sentado fico olhando o movimento dos bichos formiga desenfreada borboleta enfeitada pardal já tem ninho beija flor já tem filho rolinha de papo cheio gato esperando recheio 1326 em volta há o céu sempre no alto sem vigiar ele é de ar e etéreo eu sou de carne como os bichos fico a cismar um dia tudo vai acabar MENTE FORTE TEM LUZ PRÓPRIA faróis apagados é noite sem lua é lua sem são jorge é são jorge sem lança vejo apenas o imediato o dado o fado da alma ando pela estrada sem placas sem guia sozinho uma luz apenas interior a mais forte sabe para onde vou e vou e vou como sempre estou 1327 VIDA BESTA a vida besta da lesma passa lenta pelo chão a vida besta da aranha tecida no desalinho do tênue fio a vida besta da gente forjada no tempo das horas a vida sempre ela pronta para ser besta MODO DE VIDA ainda não sei se vou a cidade do interior tem vida própria fora da minha e quando me encaixo subtraio e quando por lá chego rebaixo 1328 JOGO palavra autoridade máxima de fora pensamento autoridade próxima de dentro CEREBRAL pensando coisas ficam prensadas no cérebro há idas e voltas na noz cerebral há eterno retorno na voz imortal JANELA ABERTA o sol abre a janela a manhã desperta os sentidos de dentro pra fora reconheço o mundo nomes de coisas coisas cheias de sentidos o sol abre a janela e os pássaros cantam aqui dentro 1329 NECESSIDADE a necessidade de ir daqui para ali mesmo sem asas a necessidade de rir de mim e de ti mesmo sem razão a necessidade de florir a vida em atos belos mesmo sem noção aprender: necessidade básica AÇÃO o espaço entre as horas preencho com o pensamento flutuação sobre a realidade pensar nunca é fazer fazer nunca é pensar SONHO o mais difícil do sonho é acordar depois de acordado o mas difícil é acreditar o sonho é grandioso demais para caber na vida o sonho é inconstante demais para ser realidade 1330 O DE FORA E O DE DENTRO o mundo de fora está diminuído a distância não mais existe estamos emaranhados em fibras óticas o mundo de dentro está reprimido infinito espaço entre desejo e a realidade externa em dramas caóticos MEMÓRIA DE COISA lá fora o mundo agitado dentro de cada coisa um sigilo pulsa: a memória em tudo fica um rastro do que vivemos em tudo é permitido: a lembrança ALMA toque de leve a alma ela é etérea mas eterna na alma não se mente ela é canteiro fértil na alma nada se esconde o que lá está um dia retornará em corpos no tempo lançados 1331 PROFUSÃO da hora queria o estático do segundo cravado não a mobilidade do segundo passado virando minuto e memória da vida queria o encontro que ainda não aconteceu mas esse precisa de fé e nos dias de hoje o passado é mais real que o futuro da vida queria a frase encaixada no coração o ponto de mutação profundo onde a alma encontra a matéria A LENDA para Paulo Coelho a lenda da cidade cresceu com os moradores a venda nos olhos impediu muitos sonhos na juventude há um sol de si para si que ilumina na noite escura da vida no entardecer das dores tudo é possível no tempo onde as ruas ainda são caminhos possíveis e ninguém nos impede de trafegar a lenda de cada um é apenas uma estrada aonde somente os pés do sonhador pode passar e ser profundamente feliz 1332 Feiura Ghetuliana Sábado há noite O relógio Rotina Ruas Salto alto Calmante Gari O poste e o bêbado Esotérica Rebordosa Mictório Perdas & danos Polo oeste Noite térmica Trevo H2 ó 2004 Hedon Dual A onda era preta Intercâmbio Spin Wall Volume Arrumação Em potência Rosa Elegia do tempo I II III A lição da chuva Solidão 3-ORATÓRIO DE VERSOS, p.36 Tradução Medo Continuação Modificação Perdidos Vivendo Goles Festa Leves versos Pater Senão ÍNDICE 1-IDENTIDADE / 1993, p.3 Prólogo Eu sou Identidade Bocado Linha do horizonte Casulo Indefinito Cacografia Temporal Re-ação Anônimo Futurístico Escalada Sono Cósmico Notas Despedida Ressinto Horas After day Passante Meias palavras Fascista Visão Toque Saudade Angustíade Estático Certeza Negativo Essência Alusão Porão Falácia Gelatinístico Medo Bússola E I II Recordação 2-TONEL DA MEMÓRIA, p.20 Passeio poético 21 -12 – 93 Bem ou mal 1333 Retorno Convento Tripalium Tumulto Flatus voces Curativo Mato Voz e nós Crescendo Nada O que é morrer? O pássaro do Egito Sinais Eucaliptos Mãe Balada do confuso Morte Noturno Esquecimento Contrassenso Mentiras Varal das consoantes Céu seu Informação Amor brejeiro Passos da memória Cenário Memória de sons Lágrima doce Páre, agora Poema de um velho Confidência ao amor Mar Poeta Vagando Som Tempo ao tempo Meu poema Amanhecer Linhas da linha Barca do sentido Copo Tinta fresca Trajetória Festa em mel Demoníades ou balada do convertido Urnas e cantos Luz Poligamia das letras Estatística Seca dos tempos Boiada de versos O outro Ingenuidade Elegia da bola da infância Soma et anima Encontros Oratório Soneto da casa perdida Poema sem brevidade Balança do tempo Papel das almas Bojo do Barco Lenitivo Rosa, rosae Escultura em capim Visão noturna Gaivota Roleta A mão 24º andar Pobre homem, o tempo Tempo longe Controversos Janela Eterno retorno Feixes Rotina entre serras Fruto Mandins Brevidades eternas Caminho da manhã Face antiga À gaúcha Imoral Balada do néscio À margem Inocência estética Cascata tinha Dieta poética Multicenário Tatu galinha Dança do Rosário 1334 Pau a pique Ferida Primeiro domingo Buracos do tempo Super modernidade Carne Milho Verde Bromélia Ao passado Balé dos sérios Maria, José e o sapato Santa Rita Pampulha Botavira 4-300, p.110 Desatino Será que Beth não vem? Dúvida Será que Beth não volta? Boulevard Café Será que Beth já foi? Sobre a Pá(lavra) O beijo 300 5-CHÃO DE POEMAS, p.117 Primeira estrada Chegada Pulsação Sombras Cotidiano Em volta Pinguela Água Visão Ontem Uma rima Uma forma de chão Rima sem sorte Aquele ser O outro lado Salitre na alma Reencontro Manga Teia Tarde em Diamantina Livro da alma Mesa da vida Capim queimado Mínima cidade Pescaria Cenário do povoado Fogão Carpintaria Ruga Um outro quintal Destino Tempo-menino Elegia do dia seguinte Desdenhando A fuga da poesia Ai, memória! Uma mesa Festa de São Sebastião Pretérito na alma Antigo amor Antagonismo Queda Pronome exagero cotidiano Sala e música Perseguição natural Alma/rua carma Andorinha 16 de maio de 2003 Amor Um chão Olhar de viaduto Varandeiro Viva Maria Eremita de Souza Curral na serra Chão do interior Restante Rimação Janela de ônibus Sonhos de rua 1335 Cavalgada imaginária Marianando Montanhas Céu e chão Ouropretando Museu Varia poesia Preto ouro Re-pensamentos Viagem ao interior de si mesmo 6-DE TUDO E DE AMOR, p.180 Português culto Crítica cínica Remédio Entre Milho Verde e São Gonçalo nota de roda pé Pausa Dagoberto: quando as palavras não são necessárias Incômodo Noite em Diamantina Tempo outro Povo entre parentes(is) Vaso Ambiente de pousada Objetos Incenso Lente de aumento [barra de ferro] Pena Adão Ventura de volta Virá o ser Provocação Contrário Um detalhe Membro superior Presença Desejo Vou unir Sentimento Salivação Corpo Tropeço no amor Pessoa Da artéria e da estrada O lápis e o apontador Sobre o amor Condado Utensílio Brincador Cidade interior Sermente Desorientação Via viagem Previsão Somatização Luz (ia) Outro fato em volta Parto Duplo Sobretudo amor Diz Unilado Tarde em fim Coisas de amor Sempre há Novas palavras Quando Partida Sartre Luando O! lhos Devaneio Visão Papel em branco Cupido Curvado Longe Salvação Sorrio Grito Vida e verso Momento In-decisão Medida Traço Nariz Floresta Certeza Gente Volta, tempo Apesar da noite 1336 Enguiço Ingenuidade Ilusão Curva da tristeza Dias de vazio Vazio 7-O CHEIRO SEM CHEIRO DA ROSA SOBRE A MESA, p.253 cheiro cor frieza Trancoso rédea azul onda interrogação Beth se casou pau pedra palavra página há dias tao efemeridades esse vento por causa me ponho esse Serro é... sim relógio da alma autocanibalismo dedo império do amor consumo animi um ano saudade subo desço horário si novembro volta salto fim sono é quem diria... elegia da memória imortal dança de fita força alta magia loucura rezo dois terços palavra sou eu ponteiro adiantado ladeira amor contas vou lavar c(idade) no lava-pés santo 8-TRANSMUTAÇÃO, p.287 ar e eu? silvos lixo manha passeio reconexão sono pesado outro poeira gnomos acima dono deserto quando vidro templo idade estar-no-mundo manhã redação medo mistério mutante templário palavra herança ação tempo de novo bruma 1337 útero identidade dia é assim segredo esoteria momento troca cor Existência rima sem rima aprendiz de um grau pomba cofre ir água unidade férias bonfim vida lua rua/lua umbigo mulher do condado vê serrania lá trás muda cidade não variedade página futuro falatório retrato dentro menoridade a boneca mar número nome cedo texto sabe outro lugar hora eu não posso O que vejo? pé frio saber jardim caracol ondinas simbora cascalho respostas Tudo mudou bagunça dicionário serrano boa visão subliminar salamandras tempo elemental letra eu negativo sonho esquina foi esse apelo Parêntesis reza loucura 9-MARESIA, p.338 estado espiritual processo rio e mar tarô purificação camarão frieza cabana pedra relógio marítimo rota da água doce sereia onda pulsa pecador vassoura benta mergulho baiana do acarajé som 1338 olho rosa tambor outro ser quem somos? visto caldo farmácia capoeirista água doce quiosque recomeço cabana amarela bem vindo carmosina céu azul mãe de tantos prato benta dois óculos uma face tromba cacau panela menino piscina gaivota ausente casual frito sururu anzol bichinho bastião arazul mangustão netuno soberano peso livre peixe pé flexível motor de tudo rabisco dendê azul açaí nau pedra mole casa de litoral tipo de mar pescado matutino barco frágil nau frágil quem? cupuaçu guia espelho hiato casa flor suor meninas de porto seriedade campo quântico memória jeito dialética poema do mar não fruta interior vento claro/escuro maré baixa maresia dentro silêncio completo mar completo cor sem nome cor revelada sinuca casa velha moça retorno confissão ruga mundi sonho de hotel café de pousada nome de praia colonial mariscar farol azul vesúvio colônia mercado merci 1339 casca família viagem cheio cenário castelo de areia carnaval algema navegante cilício amarra mar outro poema de mar verão asa aberta nome de santo despedida 10-COTIDIANO, p.392 instantâneo meio da cidade gaiola e asfalto coti dia ano excerto urbano os de menor idade rotinário revista pão matinal inútil poeira prece do sono muro de um ponto ao outro Janela da seriedade azul lanche rápido tempo junto fast food vira-latação o tempo louco da cidade dono flor o tempo cotidiano casa desejo ano passado dedarata usina apartamento banho urbanidade teatral serviço público boca do lixo pulsação cotidiana eu identidade estar-vivo-e-em-pé trajeto breve sacola de compra silenciosidade filosofia leve placa publicitária manifesto da idade bicicleta jogo de palavras iluminação bairro floração cena de família fechado para balanço ruário fim de mês sonoro cão piscada sirene fluidez 11-MANHÃ, p.421 acordamento despertador ossificação presença sonho milagre matinal trinta minutos bico de lacre lição matutina frio brilho esconderijo alma pura três minutos devolução sorriso pão-de-queijo multiplicidade friagem 1340 náusea perguntar não ofende salto lara obrigado à manhã velório de dia dia sonho ruim lágrima energia preferência palavrã gato bicho matinal chuva dicionário: manhã missa matinal teatro da vida ginásio/colégio rodoviária matina banda de música cor de sonho molecular solar[idade] natural[mente] estação prisão entre as folhas rio ri quarador calor e desejo para onde vão as lembranças depois da vida? tarde na praia tardear estrutura do olho do latim: LIBERTAS intermezzo vento de papagaio estrada da barragem parada fim de tarde tarde boa vista pai morto tarde fria tempo tarde mulher da roça temporal eclipse especiaria palavra dezoito horas reza tardinha banho de rio pobreza tarde louca bicho de rua mosaico tarde maldita para-raio entre sol e lua carta esporte amor tardio fim de tarde 13-NOITE, p.476 chegada órbita atividade noturna outro lado fogo fogueira consolo vitória nada se perde tudo se transforma gravação corpo matinal final da manhã 12-TARDE, p.449 hora do angelus sombra do meio dia jogo de dados suor e meio piscina interior [sol]ipsismo asfalto hora de almoço paixão vida na tarde artéria quente térmico 1341 chegada pernas ao céu que necessidade noção deus dia com noite dia/noite folha morta lição cama metáfora travessia da noite legado infância são jorge frase de lua orquídea alma nova fragilidade última ceia mistério da meia noite gatos madrugada operária noite natural desdobramento travesseiro de letras poste véspera de feriado ego vida noturna noites geminadas mote a cidade sabe de mim bêbado joão surubim noite ouvido húmus escada AR benzedeira plenitude último suspiro 14-OLHOS DE CONCRETO, p.505 A profecia O discurso da profecia A desconstrução 15-CEM MÓDULOS, p.549 instrução para montagem laje geometria urbana dia viaduto liberdade dois lados Sem título sonho semáforo dos ventos eu palavra folha redução anotações arma tarde finda fernando brasileiro moderno água de vaso todo gerúndio vento de amar comida between sinal/farol fio fuga de palavra tolices cheiro gota algodão e tempo segundo hiperativo osso real mente SEM TÍTULO ritmo fé nome trinta e seis quando ainda amo sou eu pouco amor quinze minutos passado para trás 1342 mesmo metafísica limite telefone grampeador folha branca pergunto, apenas lágrima seca som e mente nada é o tempo tudo de novo movimento cinco sentidos não meta o nariz exterioridade frio livro mundo indiferença o de fora língua áspera contrário biosfera verso breve binóculo abacate sono canino banho volta, mundo! dentro e fora fração de tempo desejo espírito SEM TÍTULO unha e barba imitação poema cansado noite só espelho pergunta movimento estante loucura definição hera lírio noite ida quando cama elástica hora oposto sete palmos achado modulação pedaço de sentido ótimo 16-O VENTO DO TEMPO NO RELÓGIO DO TEMPLO – INFÂNCIA, p.599 1 2 3 4 5 6 7 8 9 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 22 23 24 25 26 27 28 29 30 31 32 33 34 35 36 37 1343 38 39 40 41 42 43 44 45 46 47 48 49 50 51 52 53 54 55 56 57 58 59 60 61 62 63 64 65 66 67 68 69 70 71 72 73 74 75 76 77 78 79 80 81 82 83 84 85 86 87 88 89 90 91 92 93 94 95 96 97 98 99 100 101 102 103 17- O VENTO DO TEMPO NO RELÓGIO DO TEMPLO– ADOLESCÊNCIA,p. 681 1 2 3 4 5 6 7 8 9 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 22 23 24 25 26 27 1344 28 29 30 31 32 33 34 35 36 37 38 39 40 41 42 43 44 45 46 47 48 49 50 51 52 53 54 55 56 57 58 59 60 61 62 63 64 65 66 67 68 69 70 71 72 73 74 75 76 77 78 79 80 81 82 83 84 85 86 87 88 89 90 91 92 93 94 95 96 97 98 99 100 18- O VENTO DO TEMPO NO RELÓGIO DO TEMPLO – MATURIDADE, p.738 1 2 3 4 5 6 7 8 9 11 12 13 14 15 16 17 18 19 1345 20 22 23 24 25 26 27 28 29 30 31 32 33 34 35 36 37 38 39 40 41 42 43 44 45 46 47 48 49 50 51 52 53 54 55 56 57 58 59 60 61 62 63 64 65 66 67 68 69 70 71 72 73 74 75 76 77 78 79 80 81 82 83 84 85 86 87 88 89 90 91 92 93 94 95 96 97 98 99 100 101 102 103 104 105 106 107 108 109 111 112 113 114 115 1346 116 117 118 119 120 122 123 124 125 126 127 128 129 130 131 132 133 134 135 136 137 138 139 140 141 142 143 144 145 19 – RESÍDUO ORGÂNICO, p.792 cuidado: resíduo orgânico pisada artimanha sombra som de osso veias da cidade relação vejo inerte ainda vão chegada gemido noturno sem saber cadeira de balanço folhagem de estrada como o jequitinhonha crença poeira do tempo corpo oco prisão preferência vidro o frasco sua benção baú noturno de novo corpo e alma morte orgânica cabelo pele o corpo muda unha pelo digital I cedo demais corpo denso olhos fechados eu ainda amo pele outra suor hera sobre a era dentro e fora reino fim do corpo poeira às vezes corpo puro o tempo cai a mente mente? sonho líquido arrepio fixamente dia abraço dedo entre as pernas nudez voz vida orgânica terra fundo superego idioma voação 1347 motor asa da letra a fala da letra tempo físico pele lento oco outro inteiro dedo amor cheio doença o outro morre qual? alguém vive mentalidade passa o tempo espirro poucura achado inacabado sangue roupa íntima energia exame clínico veia dente verme digital II com ou sem tempo do corpo músculo carne alheia mente e olho antinomia eu sou dois? narizim correnteza 20 – PULSO TEMPO, p.842 À procura do tempo O tempo é o intervalo O tempo não acaba, apenas muda 21 – GRÃO DE TEMPO, p.870 grão de tempo tempo descartáveis múltiplo tempo só calçadão vaga passo sempre mundo chão leque do absoluto vida duna expectativa amor, sim preguiça memória pensamento con[versação] tema perecível resta o rosto fuga vento tempestade caco do temporal travesti luz humano mundo faber coração permanente ooops! palavra ninho sonho livro inverno/verão céu quarto de pousada vaga memória portugal 35 sentido pedra bomba correios ímpar para depois inovação surpresa etapa 1348 entre esvaziamento consumo clima interior fio coração partido trânsito desejo papagaio cerca: propriedade interior do casulo à borboleta libertação ausência ponteiro grão mão do tempo re-tardar tempo paulinho da viola o que passa temperatura labirinto do sonho convenção mundial grão de fé miragem de vida estrela de avião turbulência saliência falésia pressão cinto trem de pouso meninas de natal turista sol fortaleza tapioca a moça outrora buggy de natal severo, o motorista magnatas esse mar ressaca marinha cajueiro pitanga cajá menina do baldinho vendedor de peixes grão de areia mar alto ligação aceleração equilíbrio tolice falésia mais que eu 22 – VAZIO, p.928 O vazio é oposto do cheio Antes de ser qualquer coisa Depois de ser tanta coisa e de amar O cheio é oposto ao vazio e vice-versa 23 – ESPELHO, p.961 espelho situação de sono pudera chegada do trabalho cor do que se foi estouro anti-espelho coisa mudança altura não afloração obra o tempo no espelho presença todo antes e depois cercado rompimento chave uma hora de sonho tempo e espelho resulta da poesia sonoridade existencial agora mundão delírio frio na barriga espelho de banheiro esponja 1349 fronteira miragem reflexão interpretação ressonho sentido quatro mudez objeto de tempo criação rapidez erro inteiro espelho de fome dia cansaço fotografia sala de espelhos amor torto o espelho e o vento marca infinito vítima do tempo vidro de loja música sísmico não quero ver infância reflexo sem visão memória espelho de mim olhos do lago o que oposição espelho fixo passado reflexo interior oposição enquanto sereia monóculo gato asa condição durmo hoje pombo sonhação mosteiro envelope vaziooizav lágrima calma renova ajuntamento relampejo saída visão pensamento po[ssibilidade] do silêncio vida contagem mãos enfim da morte palavra mutante tatoo sempre unidade o verbo o vento tem várias faces 24 – HUMANO, p.1010 anjo de[caído] eternidade o ser corpo tragédia humanidade dor perdição raça criança comichão solenidade toque morro silêncio interior niterói human depois repouso rolação lado metade número 1350 sobra amor filósofo obstáculo asa verdade humana [amar]rar-se médico luz engenheiro fim fogo de saudade folha vida interior obscuro caminho tanto o padre raso memoriazinha batida pé no chão comum imagem corpo dia ido espera tempo cansado estrela plágio luto sorriso memória e história consolação acordo vida dança das horas questão oráculo enquanto der aspereza vazio como eu resmungo humanitas fim amor e dor horário debaixo da pele quanto vale? sapateiro chapa meninas da roça das coisas não-ser fenda dia desses melancolia tinturaria pulsos rasgo violência candura sinto muito e será? ventríloquo espanto brincadeira tieta escriturário senhora do carmo três estar entre beijo quente máquina de escrever das mortes nova humanidade coletivo serro 25 – ENTRE DOIS PONTOS DA MESMA VIDA, p.1057 A partir de um ponto Belo Horizonte São Paulo Paris Colônia Amsterdam Berna Bruxelas Rio de Janeiro Interior de mim 26 – NOTÍCIA, p.1096 paisagem do descaso são paulo I são paulo II 1351 guarulhos I guarulhos II turbina poltrona mais de dez sentado gare du nord I turbante indianos hipocrisia muçulmana cemitério altura padroeiro gravura vista caracol tour eiffel carro sena barbès kardec o tempo retorna colônia dom alfândega droga dinheiro tambor hbf neve vitrine sombra altura é... nunca mais quase atraso atraso apito cheiro de estação vela dentro bilhete telhado linha gare du nord II protestantes trem e chão deus início casa alga amsterdam i’m free pato e marreco roda casa água comida quase moinho vaca holandesa limitação prisão metrô e bicicleta museu van gogh pont neuf moyen-âge hemisfério norte eugène delacroix I eugène delacroix II além do quais st. augustin escola de belas artes quartier latin école de france drapeau samaritaine beijo matinal mundo pequeno céu poder temporal antiguidade uma vida fluxo atrás do vidro comida chinesa exposição rotina distância neblina afinal fonte donas hora 1352 alpes futuro neve alemão chuva ordem visão alpina igreja einstein häus para além exército suíço retorno de berna sepultamento leveza cheiro bem cedo arte bicho de cidade maçonaria sozinho depois queijo sem vinho poesia de manhã ponto conteúdo real música depois banal vida fim de viagem definitivo vinho hotel roteiro visto vagação caixa acústica branco 27 – RESTA UM EU MESMO, p.1150 o que resta é o poema forno de pastora medida venda abalo estrela virada chuva cama vazia situação verão melodia jura vento da praia ritmo da chuva lição saudade de pedra vasto preciso o templo do mar hibisco sabiá pitinga quilombo retirantes casa triste aguardo atraição silêncio é razão missão do absoluto mar coisas temporada a qualquer custo natureza antes rastro de chuva além existo sossego azia gota de tempo de nada serviu eu sei futilidade grandeza intervalo o depois é saudade equilibrado resta um jaz? transição por cima por todos os lados violação 1353 28 – GRANDE ELEGIA DO MUNDO, p.1199 Ondes estou? Existe mundo? Poeira de vulcão Cansaço e fúria O que quero, acabará No final, resta um: eu mesmo 29- PASSATEMPO, p.1232 passatempo são belos bem que tentei quando: hoje quadro feliz brinco azul banalidade esperança sou despiste abandono repetição ínfimo aviso aos ditadores versos proibidos engenho canção do atraso quando olhar não quero retido inútil viaduto passa, nuvem tempero mais que palavras elegia do passarinho trocadilho poeminha vazio estilingue astral outro dia dia bom passo a passo com ela carta senso puro ser botequim simples mistura vulcão florido refluxo coxia igual haja coragem alheio cheiro esperança é poesia a vizinha espreme[dor] ocultismo santa de bronze da praça assim, assim... de pouco, palavra boi, bois, depois pincel ziguezague fotoolho seis e trinta nota tardia sopro de mar grito de inferno fios de tricô mão de mãe beatices mentira salutar antes fosse dia repetido por sobre as nuvens orvalho guerra a banda anda bastardo o que são palavras? noite em sonho pausa a praça pernas de ladeira terra boa se chamar, eu vou anterior[idade] fundo da praia rio miúdo ausência sujeira o que fica resta 1354 domingo silêncio de peixe vestido de baile do profundo não se diz elegia da estrela ponte abandono paisagem quase esquecimento roça por debaixo da névoa forma de nuvem ibitiruy seio de copa vento de inverno estação dissipação andorinha roseira antena pedra redonda frio da montanha gramado janela de igreja placa, estátua cheiro de viagem orvalho problema do desejo usina eólica acordar pedaço errado perfume cítrico invisível verso lenda da memória banho superego hora ruga de caminhada alma do mundo amanhã: quando garimpeiro das vozes hospedo uma alma banho de alma véu da mente terno tempo frente e verso amor mesmo bichos pensantes brigadeiro bacia d’água serena realidade cemitério e céu a cidade cansa retrato de 4ª série história de calçamentos e para o jantar? equilíbrio luar e solar o louco e a morte homem de rodoviária praga de padre trombert notas para sepultamento tempo da saudade bilhete obrigatório passamento de tempo 30- DE DENTRO PRA FORA, p.1287 de dentro pra fora depois daquilo entre corpo e alma tempo-tortura altivez para sempre outra parte floração igrejinha casa da cachoeira ponte de pedra mapa do tesouro pereço rápido miniatura esse menino venda de antônio alírio quitanda de marica tromba d’água vibração energia velhice calar é saber diamantina mercado velho calçada sorriso catedral torre única as luzes 1355 recolorir lua sumida frio e calculista dia nublado ponto alto calor fome de bicho caracol giro das horas silêncio absoluto antigo amor lagartixa cenário da janela dos dias o ido é algo presta? janela fechada passado social clube sonho rota aérea diário dos séculos da próxima vez dia embaçado tempo menino traço vida física fronteira ainda bem sombra tempos em um segundo túnel do tempo seca de deserto telefone revelação tempo que dura concordo mocó pensamento depois palavra absoluto linha vazia monitoria verbo da anterioridade, perfeição na carne entre tempos futuro diálogo entre coisas fluido alma e tempo há fim interior: para além da janela da alma verso cansado casamento expectativa caixa quente escape cisma mente forte tem luz própria vida besta modo de vida cerebral janela aberta necessidade ação sonho o de fora e o de dentro memória de coisa alma profusão a lenda 1356 DANILO ARNALDO BRISKIEVICZ nasceu em Serro, Minas Gerais, em 1972. Filósofo, poeta, historiador e fotógrafo. Vive em Belo Horizonte onde atua como professor do Ensino Superior. publica livros impressos e em formato e-book que podem ser baixados gratuitamente no site do autor. 1357 Copyright by Danilo Arnaldo Briskievicz Todos os direitos reservados. Permitida a cópia/citação, reprodução, distribuição, exibição, criação de obras derivadas desde que lhe sejam atribuídos os devidos créditos do autor e da editora por escrito. Contato Danilo Arnaldo Briskievicz [email protected] www.recantodasletras.com.br/autores/doserro 1358