1 2 “Ter um livro é tão emocionante e responsável quanto ter um filho.” Dannilo Autorino 3 4 Engravidei. Agora sou um menino que terá que amadurecer para encarar o mundo adulto. De que maneira? Não sei. As pessoas estão muito descartáveis hoje em dia, pensei. Mas para tudo há um limite. 5 6 1. Tudo na vida passa, exceto... A tontura, que ainda não passou. Passaram-se horas, passaram-se minutos, passaramse segundo, passaram-se roupas, mas a tontura nada. Ela nada na piscina que formei tampando o ralo da pia. Queria buscar um eixo, um ponto de equilíbrio no meu corpo. Os olhos coçavam e a cada esfregada de dedo, a imagem nítida daquele rosto delicado se desfocava. O barulho da água caía na pia e dava musicalidade ao ambiente hostil. Já nem sentia mais a carne dos lábios, nem os olhos que ficavam cada vez menores. Minha cabeça gira e com ela, meu reflexo, que se transforma no dia em que corri no meio da sala de aula sem pedir permissão ao professor para vomitar no primeiro banheiro que encontrasse. Sinto-me cada vez mais pálido. O sexo ereto que há semanas não ejacula dói, e nenhum doutor sabe responder o por quê. - Acho que vou... vomitei! O gosto ruim na boca contrasta com o sabor dos lábios de Gabriel. Um cheiro 7 trousse lembranças da minha cueca que descia coxas abaixo, uma cueca do piu-piu para comprovar a imaturidade dos quinze anos, jogada ao chão. Hipnotizados, os olhos dele puxavam os meus como se eu escondesse algum segredo. Naquele dia, não tinha ninguém dentro da sala de aula, ele já estava nu quando perguntou: “Você tem certeza de que quer fazer isso mesmo?” Eu nem respondi. Encostei minha boca em seu ouvido e gemi... Vomitei. Tive a impressão de ter ejaculado, mas as minhas calças continuavam limpas. Inclinei a cabeça na pia e bebi água até dar vontade de fazer xixi. Os minutos de espera pareciam horas, foi quando vi o sinal de positivo aparecer em vermelho. Chacoalhei o teste como se desejasse que aquilo estivesse errado, mas o farmacêutico avisou que ele não se engana mais de uma vez, e essa já era a terceira. Engravidei! Seria possível? Os sintomas não mentem, nem a ciência. Olho novamente para o espelho. Sentia muito sono e dor de cabeça. O ambiente não me enjoava mais, apesar das paredes destruídas e do cheiro de urina por todos os lados. Meus pensamentos é que me nauseavam. Lembrava constantemente do dia em que a minha primeira vez seria realmente a mais marcante. Tudo começou com uma única e 8 exclusiva ideia, imbecil, de experimentar. É engraçado ver que a ciência do teste não falhou, mas a humana sim. Pouco me importo. Consegui me sentir um pouco melhor a ponto de ouvir o sinal bater dando origem ao som dos tênis apressados pelos corredores. As pessoas tinham pressa do nada. Atravessei a porta e saí de lá cambaleando, sintomas da vertigem. Vi as modelos anoréxicas da minha turma entrando no banheiro ao lado para vomitarem a água e a barra de cereais que haviam almoçado. Respirei fundo. Olhei para a minha barriga, ainda magra, e fui para casa. Enquanto caminhava, o cheiro de ervas do meu cabelo revirava-me o estômago, e cada vez que meus pés afundavam na rua, conseguia ouvir também um trovão explodindo dentro de mim, aviso imediato da fome, uma fome excessiva, o que já excluía qualquer esperança de que não teria um feto na barriga. A mãe viajou para longe daqui faz três anos, acho que ela me abandonou e só mudou o verbo para ser menos impactante, mas pouco importa! Tenho a vizinha, doce mulher, fofa e graciosa de cabelos loiros cacheados como o dos anjos, usava sempre rosa bebê, típico de uma personalidade meiga e materna. Possuía delicadeza nos dedos e um cheirinho de mãe. Vinha de vez em quando para entregar-me as sobras do seu almoço. Ela estranhou o meu atraso, pois o barulho da porta não avisara 9 a minha chegada. Assim que entrei, vi seu rosto impaciente e cansado esperando por explicações. Mal consegui soltar meia palavra e ela veio em direção a mim exalando aquela vozinha de bolhas de sabão. - Meu menino, pensei que tivesse acontecido alguma coisa terrível com você, nunca vi você atrasar tanto, veja, aqui está o seu almoço. Ela mal terminara a frase e eu imediatamente comecei a botar, a garfadas, comida garganta abaixo. - Nossa! Você está com fome mesmo, hein?! - disse a vizinha que geralmente não me deixava em paz um minuto. Até parece que engoliu uma criança. - E depois soltou uma risadinha de hiena. Afrouxei um pouco a mastigada. Houve um silêncio. Ela soltou um olhar estranho. Eu nem olhei, apenas mastigava tensamente o garfo pensando que era comida. - Vou voltar para casa, - continuou ela - se precisar de algo, pode me chamar. E antes mesmo da vizinha se aproximar para me dar o habitual beijo na testa, pude sentir o cheiro doce do seu perfume que me embriagou de náuseas galopantes revirando-me num caminho que ia do ventre ao estômago. 10 Fiquei com medo de que vomitasse ao falar, portanto, mantive a boca bem fechada. Na minha mente, as modelos anoréxicas apareceram e eu relembrei àquela conversa de menininhas que grunhem feito passarinhos assanhados, com fogo na periquita, que acendia cada vez mais meu ódio e vontade de gorfar. - Meu Deus, grávida?! Angélica está grávida? O que será de nós?! Ela vai ficar gorda por causa da maldita criança. O que faremos? Vamos parar de falar com ela imediatamente, não podemos aceitar uma obesa andando conosco. - Calma Rebeca, a barriga começa a aparecer a partir do terceiro ou quarto mês de gestação. - Ok, em maio a gente para de falar com ela, então. A voz da vizinha me acordara. A frase repetia em minha mente: “ela vai ficar gorda por causa da maldita criança”. Meu Deus, o que farei quando a minha barriga começar a crescer? - Eu estou bem vizinha, - reagi - obrigado pela preocupação, minha pressão deve ter caído, só isso, vou terminar de comer. Pode ir... E ela saiu dando-me uma esperta piscadinha. 11 - Se é assim que você quer, au revoir, mon chéri, bon appétit. Apesar de toda a fome, a comida não me descia mais no estômago, e como se caísse naquele momento um beliscão na pele, eu acordei de todos os sonhos que tive, de tudo que se passou até aquele dia. Estava grávido! Não estranhei aquilo como acho que deveria, mas queria uma explicação. Eis aí uma grande pergunta: “De onde tiraria essas explicações?” Eu não queria entregar esse segredo a pessoas desconhecidas, nem mesmo à vizinha, que é a pessoa mais próxima de mim. Tudo estava escuro até que meus olhos revelaram uma ideia de onde eu poderia ir. Nunca acreditei muito em cartomantes, mas para tudo há sempre uma primeira vez. O manto de fumaça lilás enrugava-se pendente no ar, como uma segunda pele ou um tecido aromático do qual você puxa e deixa que ele forme ondas crescentes e delicadas pairando entre o teto e o chão, uma nata. A bola no meio da mesa mostrava o misticismo da casa e o lugar era tão quente que me causava um pouco de pânico. Uma carta levanta-se do baralho e a mulher com 12 panos ao invés de roupas, deposita-a na mesa com suas mãos um pouco enrugadas pela idade, e ela fez isso consecutivamente até que dez cartas fossem expostas. - Pense no que deseja, pense em si e as cartas farão o resto. O suor caía gotas abaixo da testa, minhas mãos esfregavam-se uma na outra, inquietas, temendo o que Deus dirá. - O que diz aí, moça? Me diga! Ela prendeu as mãos com correntes de aço, disse que um espírito poderia controlar seu corpo a qualquer momento depois de ter quebrado as barreiras do plano espiritual e material. Ela tinha olhos azuis quase brancos, parecia cega, mas engraçado que sabia exatamente onde as coisas estavam e como o meu rosto era. Suas narinas abriam e fechavam com velocidade, parecia que usava de outros sentidos para ver, talvez, quem sabe, quando eu era pequeno acreditava em bruxas. - Você corre perigo, meu rapaz. Fases novas para você e muito difíceis! Tem algo que queira me dizer? 13 Senti certa malícia na voz dela. Fiquei com medo do que poderia acontecer caso revelasse a minha gravidez, portanto, decidi mentir. - Ah não, nadinha. - Tem certeza? – e ela me olhou fundo nos olhos com aquele olhar branco que me dava medo. - Sim. – respondi tenso. - Bem, então está tudo bem com a sua família? - Sim senhora. - E com seus amigos? - Também. - No campo profissional? - Também. - Então que diabos está fazendo aqui?! Gaguejei em dialeto e no final não saiu nenhuma palavra inteira. - Tem sentido enjoo? – soltou a frase friamente. Gelei. Senti um frio na barriga, mas não consegui mentir: 14 - Sim. - Tem tido desejos? Sabia onde ela queria chegar. Estava me borrando, mas ainda não consegui mentir: - Sim. Percebi que ela já estava ficando sem paciência e começou a exalar um cheirinho ruim. - Vou ser direta meu rapaz, eu não sou trouxa. Você tem algo na barriga além de merda? Comecei a chorar e não consegui mais omitir. - Tenho, eu estou grávido! Grávido da minha primeira transa. O que eu faço agora moça? Me ajuda! Eu não sei o que pode acontecer comigo. Tenho medo de começar a menstruar daqui nove meses. - Calma... – disse ela super calma. - Calma? Nossa! Calma?! Você é louca ou o que?! Eu nem sei trocar frauda... - Você disse louca? Eu sou uma bruxa, menino! BREU-XE-A! E não uma louca! Posso ser chamada de cartomante, macumbeira, vagabunda, qualquer um serve, 15