TÍTULO:
Conselho que recebi: “Amanhã no Ultra Trail Monte da Lua, vai devagar”.
RELATO:
E mais conselhos se seguiam:
- Come muito e bem ao levantar (mas nunca tenho apetite de manhã)…;
- Preferencialmente segue um “rosinha” que marque o passo (mas eu não gosto de ir atrás de
ninguém…);
- Não facilites na hidratação e alimentação, nunca confiando no que oferecem na prova;
- E principalmente vai devagar na primeira metade e se tiveres força vai mais depressa na
segunda metade.
Estes foram alguns dos conselhos que eu recebi em casa na noite anterior à minha estreia num
Ultra Trail.
Os trilhos não são novidade para mim... e são as únicas provas que não me enervam na
antecipação.
Adoro correr pelo meio das árvores, ouvir a natureza, conseguir evadir-me de todo o ruído da
vida quotidiana.
Ali dependo de mim, das minhas pernas, mas essencialmente da minha cabeça.
Outra coisa que adoro é o ambiente das provas de trilhos. Falo com quem passo, com quem
me passa e a quem me junto durante algum tempo. Dizem-se piadas, rimo-nos, praguejamos e
sofremos com pessoas que nunca vimos.
Pessoas que por um dia nos conhecem melhor que muitas pessoas que nos acompanham
todos os dias.
Bem... voltando... noite de sábado… dormi o que me deixaram e de manhã acordo tranquila.
Visto o que já tinha preparado na noite anterior em 5 minutos. Calções de licra, meias básicas
sem cano (nada de meinhas à pipi das meias altas;)), t-shirt do Clube mas cortei as mangas (ah,
liberdade, tão bom e mais fácil para mexer os braços na corrida) e ténis. Três barras, 1,5 ltr. de
água e uma sandes com doce foi a alimentação que saiu comigo daquela casa.
Últimas palavras ouvidas? Vai devagar!
Nunca tinha feito uma prova de corrida de mais de 30 km e já lá vão uns 2 ou 3 aninhos, e o
máximo de tempo que treinei foi 1h20, por aí... na Expo... parecido com a Serra de Sintra não
acham?
Mas pronto, tento manter o meu corpo atento, pregando-lhe algumas partidas. Quando ele
menos espera, pimba! Desta vez um Ultra Trail.
Não sabia como é que ia reagir, se as pernas iam aguentar, se eu ia aguentar, mas pronto,
estava perto de casa, em Sintra, qualquer coisa e dizia para me irem buscar à Piriquita onde
me iriam apanhar a lambuzar-me com travesseiros e queijadinhas!!
Fui de boleia com umas amigas que convidei para irem fazer a "caminhada" dos 25 km (quase
que me deixaram de falar porque lhes afiançava que eram “só” 25 km, num sítio lindo;)).
Indo eu de “rosinha” sou sempre mais fácil de identificar embora muito poucos do Clube
saibam quem eu sou, mas lá me encontraram. Tiraram-se umas fotos de grupo, discutiu-se
quem ficaria em último e... Partida!
Lá começámos... primeiro obstáculo atravessar a língua de água na praia. Ainda era cedo para
molhar os pezinhos por isso afunilou logo nas pedras que permitiam passar para o outro lado.
Olho para a frente e vejo que para sair se tem de subir e, mais um afunilamento. Fixe! Assim
tenho tempo para tirar toda a areia que já tenho nos pés (ténis rotos em cima é no que
dá ). Ténis com atacadores em invés de elásticos também garantem uns minutos extras a fazer
laços.
Lá parto para a subida e vejo que já estou em último... como é hábito.
Estavam duas espanholas à minha frente que ultrapasso na primeira hipótese... duas já estão ;)
só faltavam 12 (éramos 15 meninas no Ultra Trail)!
Ponho o meu ritmo de corrida normal, sentia-me bem e feliz por estar a correr "no mato". Vou
ultrapassando, ultrapassando, passei por vários rosinhas, conversámos e segui caminho. Chego
ao primeiro abastecimento toda feliz, um já está!
Até um cavalinho tínhamos à espera, dou-lhe umas festinhas e sigo, tinha água por isso nem
parei, vejo que está muita gente à minha frente na descida e ultrapasso-os... mais uma série de
raparigas.
Continuo sempre bem, com algumas companhias presenciais, sem conversar mas a manter o
ritmo. Cerca dos 15 km dá-me uma dor horrível do lado esquerdo da barriga. Tive que
abrandar na corrida. E resolvo comer a sandes com doce. Já não comia nada desde as 7h!
Começo a comer enquanto corro para tentar não perder de vista um outro rapaz. Chegamos a
Sintra, segundo abastecimento, tenho água, tenho comida, nem olho mas sinto muita gente lá
e penso já ultrapassei mais uns quantos!
Junto-me a uma rapariga e um rapaz (mais tarde apresentamo-nos, Sandra e Pedro) e quando
passávamos as portas da Quinta da Regaleira dizem-nos: “ Força, meninas são as 3ª e
4ª classificadas!!
Já não fazia ideia das classificações, mas aquela informação, acordou a “ganância”.
Vou com ela mais uns 10 km e depois largo-os pensava eu.
Quinta da Regaleira, um dos meus sítios favoritos! Deixem passar! Castelo dos Mouros outro!
Spot da escalada onde já tinha passado tão bons momentos! Vê-se tudo lá de cima! Lindo!
Depois de cerca de 1h juntos, eu estava bem, e aproveitando que o Pedro vai à casa de banho,
arranco. Sou 3ª!
Só tenho de gerir.
Chego ao 3º abastecimento junto a um lago. Encho o camelbak, não queria perder muito
tempo e arranco. Vejo um amigo meu que me segue passado uns minutos. Conversamos um
bocado, para ele também é uma estreia. Só que ele fazia maratonas o que já era alguma
vantagem. Não te prendas por mim, vai!
Começo a beber muita água, muito calor, muita subida, e os erros que se fazem no inicio da
corrida, acabam por nos apanhar mais tarde ou mais cedo e estava na hora.
Por essa altura já tinha comido as duas barras, só faltava uma.
As minhas pernas ferviam. Vou andando cada vez mais devagar. As descidas até aí e os down
hills massacravam-me o joelho esquerdo. Já não conseguia correr a descer. Só no plano mas as
forças também ficaram algures no 3º abastecimento.
Só me lembrava da primeira edição do Serra de Arga (cancelada a meio devido ao mau tempo)
que me tinha dado cabo dos joelhos e que me tinha encostado às boxes cerca de dois anos!
Foram passando todos por mim. A Sandra e o Pedro. Os outros rosinhas. Outros atletas. A
cerca de 1h ou mais do 4º abastecimento acaba-se-me a água. Há uma rapariga que me dá um
niquinho da dela. Já só queria chegar. Corro nos planos. Depois a subida à Peninha.
Doíam-me as costas, os pés, as pernas. Parava para tirar a terra dos ténis rotos! Punha as
pernas para cima, alongava, corria mais um bocadinho. Ia indo mais ou menos com a 6º
classificada, nas descidas ia a andar.
Peninha, calor, sem água, só me apetecia mandar para o chão, mas também ali ninguém me ía
buscar por isso é seguir caminho. A 2/3 da subida oiço um rapaz gritar - está ali uma fonte com
água fresquinha!!
Lanço-me como se não houvesse amanhã. Era uma espécie de forno com um fio de água a
correr lá dentro. Apoio o pé na borda do "forno" e estico-me, não chego!! Pânico!! Vou morrer
a olhar para a água! Estico-me toda e lá consigo encher o camelbak. AH QUE MARAVILHA!!
TÃO FRESQUINHA!! TÂO MARAVILHOSAMENTE FRESQUINHA!!! E lá arranquei de novo
avisando os que vinham atrás de tão bela fonte!
Lá chego ao 4º abastecimento. Só laranjinha, maçãzinha, tostas minúsculas, pauzinhos, batatas
fritas. Nada de bolo ou pão, hidratos de jeito! Recolho uma série de laranjinhas e deito-me à
sombra no refúgio.
Vejo todos a chegarem. Mais rosinhas. Mais raparigas. O Renato do abastecimento dizia-me,
vá estás quase, agora é sempre a descer! Ah... o meu joelho vai adorar!! Fiquei lá bastante
tempo... passaram 3 raparigas.
Finalmente saio. Mais um downhill. Desço devagar com todos a passar por mim. Consigo ir
recuperando e vou correndo nos planos. Por quem passava perguntava-me então esse
joelho?! Epá nos planos aguenta-se! Só queria chegar! Mas arribas e arribas ainda me
esperavam!
Às descidas intermináveis e dolorosas contrastavam as paisagens espetaculares do Oceano. No
cimo de uma das arribas tive de parar para tirar umas fotos... era demasiado lindo para deixar
passar. Infelizmente, a certa altura já não era só nas descidas que me doía o joelho esquerdo
mas também o direito doía agora nas subidas.
Vou com uns rapazes que alcanço e passamos a 6ª na subida ao Cabo da Roca. Finalmente o
último abastecimento. Sento-me no chão e bebo isotónico. Havia piores do que eu espalhados
pelo chão. Está quase! Arranco novamente.
Chego à Adraga a correr, passo a 5ª... pensava que já tinha passado o sofrimento quase todo
mas eis que surge uma subida à direita em areia que me fez parar de correr novamente. Areia
nos sapatos, lá paro novamente para tirar.
Alcança-me a 5ª mais o grupo com quem ia. Pessoal porreiro que tento acompanhar.
Finalmente chegámos às escadas que dão acesso à Praia Grande. Desço agarrada ao corrimão
por causa dos joelhos.
Bom dia de praia... era o que devia de estar a fazer! Um rapaz pergunta a um dos grupos se é
uma prova e de quantos km. Ele mostra-lhe o relógio que devia de dizer os km pois o rapaz
ficou boquiaberto depois de um palavrão e não disse mais nada.
Na praia corro, oiço ao longe um grito Millennium!! Deixo o grupo para trás. Alcanço mais um,
e mais outro. A praia das Maçãs deve estar ali à saída, mas não, corro, corro, mas nunca mais?
Chego finalmente à descida que dá acesso à praia.
Vejo o insuflável da meta, no caminho para baixo, uma fita a barrar o caminho. Não percebo
por onde é para passar. Ando ali meia à toa. Oiço uma voz mas não vejo nada. Pergunto a um
rapaz que passeava se tinha visto pessoal a passar, sim, eles vão por aí.
Pela fita? Não, há um caminho à direita da fita. E lá o vejo.
E passo. Em sentido contrário vem um rapaz cuja cara reconheço de algumas horas atrás. É por
aqui, pergunto? Sim... sempre a descer... então esse joelho? Vai andando... só quero chegar à
meta agora!
Desço, estavam pessoas nas pedrinhas que passavam por cima da tal língua de água onde há
quase 10 horas atrás tinha tudo começado. Ponho os pés na água. Ah, tão bem que sabe!
Vem o meu pequenino ter comigo a rir e de braços abertos... NAAANDA!!! Rio e dou-lhe um
abraço e beijinhos. Vejo o meu outro mais que tudo e faço-lhe uma cara como quem diz, “Não
fui devagar!”.
Corro na direção da meta. Pôr os pés na água não tinha sido uma ideia feliz, pois agora tinha
um peso brutal nos pés. Mas tinha a meta. E terminei! O meu primeiro Ultra Trail em 5º lugar
das meninas em 9h e 46m.
Lembro-me no início ter pensado. Bem... 50 km... 10 km por hora... dá 5 horinhas.
HAHAHAHAH se parvoíce matasse!
Nunca fiz tanto erro numa prova só. Eu já sou conhecida pela minha
maluqueira/irresponsabilidade nas provas mas até hoje nunca tinha pago uma fatura tão
grande.
Vejamos:
- arrancar em último lugar;
- levar ténis rotos na parte de cima em terreno de areia;
- levar ténis com atacadores normais em vez de elástico;
- não levar comida quase nenhuma por confiar na existência de comida dos abastecimentos;
- não levar água suficiente;
- não parar nos abastecimentos;
- não IR DEVAGAR na primeira metade e partir para uma prova de mais de 50 km como se
fossem 30 km!!!
Enfim... para a próxima espero não cometer tantos. Um ou outro só vá!
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“Amanhã no Ultra Trail Monte da Lua, vai devagar”.