CAPA
ESTA TERRA É MINHA:
QUESTÕES INDÍGENAS E DE RELIGIOSIDADE
MARIA OTILIA TELLES STORNI
(organizadora)
Ideia
João Pessoa
2015
FICHA TÉCNICA
Livro produzido pelo Projeto
Para Ler o Digital: reconfiguração do livro na Cibercultura – PIBIC/UFPB
Departamento de Mídias Digitais – DEMID / Núcleo de Artes Midiáticas – NAMID
Grupo de Pesquisa em Processos e Linguagens Midiáticas – Gmid/PPGC/UFPB
Coordenador do Projeto
Marcos Nicolau
Capa
Gabriel Jardim
Editoração Digital
Bruno Gomes
Alunos Integrantes
Bruno Gomes
Gabriel Jardim
Sâmara Lígia
Samara Cintra
EDITORA
Av. Nossa Senhora de Fátima, 1357, Bairro Torre
Cep.58.040-380 - João Pessoa, PB
www.ideiaeditora.com.br
Atenção: As imagens usadas neste trabalho o são para efeito de estudo,
de acordo com o artigo 46 da lei 9610, sendo garantida a propriedade
das mesmas aos seus criadores ou detentores de direitos autorais.
S885c
Storni, Maria Otilia Telles.
Esta terra é minha: questões indígenas e de religiosidade [recurso
eletrônico] / Maria Otilia Telles Storni.- João Pessoa: Ideia, 2015.
1CD-ROM; 43/4pol. (614kb)
ISBN: 978-85-7539-975-0
1. Ciências das religiões. 2. Indígenas e religiosidade. 3.Religiosidade
- crença e magia - mundo indígena e universo urbano.
CDU: 279.224
Essa Terra É Minha
SUMÁRIO
Apresentação..........................................................................................................06
Esta Terra É Minha: Fulniô E Potiguara
Maria Otilia Telles Storni.......................................................................................08
A Festa Do Ouricuri e o Orgulho Fulniô
Maria Otilia T. Storni e Romério H. Zeferino Do Nascimento................30
O Toré, As Plantas Sagradas e a Fraternidade Potiguara
Maria Otilia Telles Storni.......................................................................................50
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A Religião, A Mídia e o Segredo Do Sagrado
Maria Otilia Telles Storni e Miguel Pereira Da Silva....................................71
Sumário
eLivre
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Essa Terra É Minha
APRESENTAÇÃO
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Sumário
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Os quatro artigos que compõem este livro foram apresentados em congressos, sendo os dois primeiros visibilizados na 46ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência - SBPC – ocorrido em Vitória/
ES em 1994. O terceiro fez parte do XV Congresso Internacional do Ciclo
de Estudos sobre o Imaginário de 2008 em Recife e o quarto foi exposto
no Iº Simpósio Internacional em Ciências das Religiões ocorrido em João
Pessoa/PB em 2007.
Três destes trabalhos focalizaram diretamente as questões da identidade
étnica, terra e religiosidade dos Fulni-ô e Potiguara, cujas reservas se localizam respectivamente em Pernambuco e Paraíba. O último artigo desta coletânea trata da natureza massiva das religiões da pós-modernidade urbana
e explora a questão do misticismo de resultados típico dos templos onde as
multidões se aglomeram esperando ser atendidas pelas suas divindades nas
suas carências. Note-se que todos estes artigos têm em comum a análise
das facetas da crença e magia da religiosidade, sejam elas do mundo indígena das reservas acima citadas, sejam elas do universo urbano e massivo.
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Essa Terra É Minha
Estes são trabalhos que resultaram de pesquisas desenvolvidas pela autora e organizadora desta coletânea, sendo que os co-autores foram seus
alunos e orientandos. Os dois trabalhos sobre os índios Fulni-ô foram elaborados por ocasião da pesquisa do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica – PIBIC/CAPES/UFPB desenvolvida durante os anos de 1992 e
1994, cujo bolsista foi Nascimento (1994), além dos dados da dissertação de
Silva (1993) do PPGSS/UFPB. O artigo apresentado em Recife sobre os Potiguara foi resultado de um trabalho de campo sobre fitoterapia e identidade
étnica feito entre os Potiguara entre 2006 a 2008, sendo que o mesmo foi
financiado pelo CNPq.
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Sumário
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Essa Terra É Minha
ESTA TERRA É MINHA:
FULNI-Ô E POTIGÜARA
Maria Otilia Telles Storni
Não é preciso deixar de ser índio para ser civilizado.
Marilena Araújo
Índia Fulni-ô
Introdução
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Pensar nos índios brasileiros de hoje é uma tarefa complexa. Ao lado da
imagem épica dos bravos guerreiros vestidos de roupas de penas e palha,
fabricada pela mídia baseada em fotos antigas, temos grupos e aldeamentos miscigenados, aculturados e com a sua reprodução ameaçada em vários
níveis: cultural, social, econômica, saúde, etc. O índio brasileiro é o OUTRO
da nossa população com o qual se preocupam os que têm mais consciência
e respeito por nossas raízes. Isto porque ele sofre tanto ou mais que os não-índios com os efeitos negativos das contradições deste contexto capitalista
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Essa Terra É Minha
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compartimentado e desigual que os rodeia.
Quando nos referimos à reprodução econômica e sócio-cultural dos índios logo nos remetemos à questão da TERRA como base essencial que alimenta o SER e a EXISTÊNCIA dos índios, pois é COM e PELA sua terra que
eles vivem. Pretendemos então resgatar as nossas pesquisas com os grupos
FULNI-Ô e POTIGUARA, para elaborarmos algumas reflexões sobre a relação
destes com o território em que vivem. Nosso objeto de análise inclui o papel
da posse da terra na identidade étnica desses dois grupos, dentro de uma
perspectiva de memória histórica reativada em situações específicas. Ou seja,
pretendemos analisar os fatos, passagens e elementos históricos que mais
marcaram estes grupos a ponto de delinear as representações de ambos
sobre seu modo de ser, seus vínculos com seu CHÃO, e como eles mapeiam
as relações inter e intra-étnicas. Ao final veremos o papel da religiosidade
como amálgama comum à posse da terra e que dá o contorno essencial da
identidade étnica dos dois grupos
Os dados que constam neste artigo, no caso dos FULNI-Ô, são resultados
de uma pesquisa de campo que se desenvolveu entre 1993 e 1994 sobre o
tema geral da Identidade Étnica deste grupo. Parte desta pesquisa foi financiada pelo Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica – PIBIC
– a qual teve a autora deste como orientadora do então aluno e bolsista do
curso de Educação Artística Romério Humberto Zeferino do Nascimento.
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No caso dos Potiguara trabalhamos com os dados de Maria da Salete Horácio da Silva, mais especificamente de sua dissertação de mestrado (1993).
Foi ela que acompanhou e fez pesquisa com este grupo na sua luta pela demarcação das suas terras em Jacaré de São Domingos, sofrendo com eles,
por vezes, até risco de vida na solidariedade de enfrentar os latifundiários
que queriam invadir seu território. Fomos responsáveis pela orientação da
referida dissertação defendida no Programa de Pós-Graduação em Serviço
Social – PPGSS - da UFPB e por isso sofremos “por empréstimo” suas tensões
nessas lutas e conquistas.
No presente artigo pretende-se trabalhar a terra indígena através da categoria CHÃO, que é uma combinação conceitual instrumental de diversas
facetas teóricas e autores a quem recorremos para ordenar esses dados. Por
CHÃO entende-se a base objetiva e concreta da existência de um grupo indígena. É mais do que limite geográfico embora o inclua; é o limite no sentido
de fronteira da identidade étnica, em sua organicidade grupal, como definiu
Barth (1976, p. 15-17).
Tem a ver com a noção de “espaço-solo” referida por Silva (1993, p. 9),
que por sua vez se remete ao conceito de Santos, Milton (1979, p. 10) sobre
a relação do homem com a natureza, onde ele a transforma do valor de uso
para valor de troca. Inclui também uma ligação atávica e ancestral dos índios
com o seu território, bem como, é o elemento que une, sintetiza, atualiza e
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Sumário
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reforça as relações dos índios enquanto sistema de membros do grupo específico que ocupa o seu CHÃO.
Esta especificidade é dada pela posse e pertencimento comum do e ao
território. Ainda e principalmente delineia o “nós” grupal diante dos “outros”
que são os não-índios, ainda que essa relação “nós-outros” seja permeada
pela desigualdade interna e externa do grupo indígena, como lembram Cardoso de Oliveira (1976, p. 76) e Brandão (1986, p. 145-146).
Aqui temos a seguinte realidade espiritual e virtual: a terra e os seus
índios, os índios em suas terras se misturam e se tornam um só elemento,
unidade essa determinada por suas cosmovisões, espíritos, os que já se foram, os que virão, os que lá estão; homens, plantas, solo, animais, águas e
outros elementos concretos e abstratos se interagem e se interdependem.
Mesmo que não se lembrem mais de todos os elementos... ou, que queiram mudá-los.
Enfim, o CHÃO é o espaço simbólico multidimensional que referenda as
pessoas e grupos que o ocupam, seus modos de apossá-lo e, as representações, limites e relações entre eles e os que não são parte deles – os grupos –
mesmo que nele residam. É como se do CHÃO emanassem os elos de ordenamento que envolvem os homens que a ele pertencem, ao mesmo tempo
em que faz fluir as suas relações como parte de uma certeza – vertical (com
os ancestrais), horizontal (fraternidade com os demais) e temporal (passado,
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Essa Terra É Minha
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presente e futuro da garantia da posse). O CHÃO sintetiza o modo de ser e
de certeza de vida dos que nele habitam.
As representações simbólicas que os não índios do entorno têm sobre os
índios é muito restrita a sinais adscritivos visíveis, que os aproxima de uma generalização idealizada: usam roupas e idiomas diferentes, com modos de vida
e cultura distintos. Como essa distinção não é mais tão clara são classificados
como “aculturados”, “remanescentes”, “miscigenados”, “em extinção” e esses rótulos são utilizados como pretexto para que os não-índios que são poderosos
queiram invadir as terras dos índios. É o caso dos proprietários da grande usina
de processamento de açúcar vizinha da reserva dos Potiguara, bem como dos
moradores não índios da aldeia Fulni-ô, que residem em Águas Belas/PE.
No entanto, os dois grupos étnicos estão em pleno exercício de sua alteridade
no sentido de serem “não-brancos”, ainda que possam até se auto-afirmarem e
se auto-classificarem como “iguais a” ou “pessoas-a-caminho-de se civilizarem”.
O território que ocupam e possuem é, a nosso ver, o elemento responsável pela
manutenção dessa alteridade étnico-cultural, mesmo para aqueles que vivem
fora dele, mas, mesmo assim se consideram membros desses grupos indígenas.
A terra indígena e os grupos que nela residem são, finalmente a principal
referência para o SER índio em ambos os casos. É com base nessas reflexões
que apresentaremos os elos dos Fulni-ô e Potiguara com seus CHÃOS. Por mais
distintos que possam ser a comparação entre ambos com suas diferenças e
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Essa Terra É Minha
contrastes pode contribuir para o conhecimento do CHÃO de outros grupos
indígenas.
Situação formal da posse da terra fulni-ô e potiguara
Fulni-Ô
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Os Fulni-ô são índios que vivem contiguamente na cidade-sede do município de Águas Belas/PE em um território que tem cerca de 3.500 pessoas
dessa etnia. Suas terras já passaram por inúmeras demarcações, invasões e
reduções desde antes de 1851, segundo Pinto (1956), o que foi confirmado
por algumas lideranças desse grupo. Como nosso objetivo não inclui a pesquisa histórica detalhada, apresentaremos aqui os dados recentes que configuram a atual forma de ocupação deste território.
Segundo o cacique João Francisco dos Santos Pontes, a última demarcação das terras Fulni-ô foi feita em 1957, num perímetro de 11.500 hectares, que foi dividido em 427 (quatrocentos e vinte e sete) lotes de 30 (trinta) hectares cada, mas, há glebas menores por causa das sobras laterais do
quadrilátero das plantas de cada lote. Segundo nossas pesquisas, há levantamentos documentais feitos desde 1851, cujos dados nem sempre coinci-
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Essa Terra É Minha
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dem. Consta que há uma planta baixa deste território com todos os lotes,
mas, os marcos que os delimitam estão sendo constantemente deslocados,
o que causa conflitos internos e externos segundo as informações do Diário
de Pernambuco de 27/10/1980.
Cada lote foi doado à uma família Fulni-ô da época que, desde então o
repassa para seus herdeiros de acordo com as regras de parentesco e dos
clãs desses índios. São os mutuários do território que usam o pronome possessivo no singular para expressar a MINHA posse da terra. É difícil esclarecer os critérios de herança dos Fulni-ô porque eles consideram a divisão do
grupo em clãs como parte de um conjunto de segredos (PINTO, E., 1956 e
FOTI, V., 1991), o que inclui essas regras. Percebe-se então que o compartilhamento desses segredos é um dos componentes essenciais da identidade
étnica Fulni-ô.
Segundo o referido cacique, metade desta terra é quase impossível de
ser aproveitada por ser distante e se localizar nas escarpas íngremes da Serra
do Comunati que rodeia a aldeia Fulni-ô. Da terra agricultável, cerca de 40%
é arrendada aos que eles se referem como “brancos pobres” o que implica
que estes arrendatários não-índios têm permissão para ocupar a terra desses
índios (!). A conseqüência dessa situação é que hoje boa parte da população
economicamente ativa dos Fulni-ô não tem mais terra para cultivar e, por isso,
os que podem trabalham em terras de parentes que têm terras disponíveis.
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Vale informar que a maior parte da população Fulni-ô tem grandes dificuldades de subsistência básica, em parte por “falta” de terras para cultivar,
em parte por falta de meios financeiros para investir em seus roçados, ou ainda, por carência de recursos para desenvolver o artesanato, que é uma outra
fonte de renda para esses índios. De modo geral, esses índios têm acesso a
escolas de ensino fundamental da cidade de Águas Belas, no entanto, poucos têm empregos formais, com exceção dos que são funcionários da FUNAI.
Esses seriam os índios que têm uma situação financeira privilegiada porque
têm carros e até contratam pessoas da população não-índia da cidade para
serem seus empregados.
A estrutura econômica desta aldeia gera uma grande diversificação da
capacidade de consumo desta população. Ou seja, enquanto muitos residem em casebres precários de alvenaria, com pouca coisa além das paredes, outros (poucos) têm carros, eletrodomésticos, móveis e outros artigos
considerados como de luxo, como antenas parabólicas, TV à cabo, etc. A
desigualdade econômica interna é um elemento ameaçador para a unidade
grupal desses índios, ou seja, há uma disseminação de necessidades de consumo supérfluo ao lado das suas precárias condições financeiras.
Ao lado disso tudo o universo cultural dos Fulni-ô é muito rico e é motivo de apresentações em festas e eventos freqüentes. O cacique João Pontes
afirmou que eles conservam quase intacto o seu sistema de parentesco, com
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Essa Terra É Minha
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Sumário
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seus clãs e regras de escolha de cônjuges. Também estão revalorizando o
uso do idioma Yaathê entre os jovens – os idosos ainda o conservam -, que
serve como uma estratégia de distinção étnica quando estão entre os não-índios de Águas Belas.
A principal manifestação cultural dos Fulni-ô é o Ouricuri, que se trata de
uma espécie de retiro anual no qual os índios se recolhem por quase quatro
meses por ano, em um espaço que abriga pequenas casas onde os índios
ficam fora do arruamento urbano para desenvolverem seus rituais religiosos.
Durante este período também participam como podem os índios que moram fora de Águas Belas. Ressalte-se que os cônjuges não-índios não podem
entrar nesses rituais, nem alguns casos de filhos de casais mestiços que não
se iniciaram no Ouricuri na idade correta, por residirem fora da aldeia.
Enfim, durante o período do Ouricuri os Fulni-ô vivem outros tipos de
relações sociais e hábitos. Por exemplo, não podem brigar, todos se ajudam
mutuamente, resolvem-se as querelas e conflitos de todo o resto do ano,
enfim, esses índios devem se comportar dentro dos princípios e regras dos
antepassados (PINTO, 1956). O território do Ouricuri, também chamado de
Aldeia Fulni-ô como está grafado na placa da entrada do mesmo, tem entre
362 e 382 hectares – não há precisão, segundo João Pontes – e é a TERRA
COLETIVA o que significa que existe só para o uso dos índios porque não
pode ser arrendada a não-índios. Os controladores e defensores desta terra
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Essa Terra É Minha
coletiva são o cacique e o pajé juntos.
O elemento essencial da terra do Ouricuri é o de ser a NOSSA TERRA –
em oposição à MINHA TERRA – aquela referente a dos lotes da reserva. Além
disso é nela que se reproduzem os valores originais da índianidade Fulni-ô.
É um espaço excludente dos não-índios, onde desenvolvem seus rituais em
segredo, ou seja, os “brancos” não só não podem assistir como também não
podem saber o que se passa nessas cerimônias religiosas. “O Ouricuri é um
viver em que se intensifica e se reforça o jeito de ser do Fulni-ô. É como uma
forma de purificar o índio que vive a maior parte do tempo envolvido por
uma sociedade que lhe trouxe problemas econômicos, morais e espirituais”.
Isso é o que afirma Léa Araújo (índia Fulni-ô).
Potiguara
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Sumário
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Os Potiguara da Paraíba tinham, na época desta pesquisa – 1991 -, uma
população de 6.228 índios e tiveram parte do seu território demarcado em
1983 – Vila São Miguel, no município de Baía da Traição – e parte em 1993
– Vila Monte-Mor, no município de Jacaré de São Domingos, segundo Maria
da Salete Horácio da Silva (1993, p. 11-12). Segundo esta pesquisadora, os
índios da Vila São Miguel dispõem de um território de 21.230 hectares e os
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Sumário
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da Vila Monte-Mor, de 5.032,234 hectares. A aculturação desses índios ocorreu através de invasões de suas terras desde o século XVI e em 1866, quando
houve a primeira demarcação desse território; nesta data a extensão total
era de 70.934 hectares segundo Silva (1993, p. 29).
Na luta contra os invasores, os Potiguara têm sido apontados na literatura histórica como valentes guerreiros que se destacaram como “teimosos”
defensores de suas terras. O adjetivo acima é da autora supra-citada, que
fez o destaque ao processo de persistência e garra de luta desse grupo na
defesa do seu CHÃO.
Esses índios utilizam a terra para roçados, em locais combinados entre si
e aprovados pelos caciques. No entanto, alguns índios têm arrendado suas
terras, o que gera graves conflitos internos no grupo, pois esta é uma atitude considerada como reprovável e já causou a expulsão de alguns índios
do território. Os que querem arrendar a terra alegam que o CHÃO continua
a lhes pertencer, pois, ainda mantém o controle sobre o seu patrimônio territorial. O que ocorre é que os empresários vizinhos da reserva oferecem
somas e benefícios para pressionar alguns índios a cederem a terra para o
plantio da cana para as usinas da região e depois não devolvem mais o espaço que ocuparam. Esta é a visão capitalista do espaço-solo, ou seja, é o
valor de troca individual da terra e não o valor de seu uso tradicional para a
subsistência grupal.
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Essa Terra É Minha
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Com exceção dos índios arrendadores, os Potiguara têm um nível de vida
econômico considerado pelos não-índios como sendo “irrisório”, com baixo
fluxo monetário entre eles, ainda que para eles signifique uma subsistência
estável: além das hortas e dos roçados alguns desenvolvem a pesca – marítima e nos rios - e coleta de frutos nativos. Também há os que vendem
madeira e seus excedentes agrícolas. Dos anos 80 para cá os invasores das
terras Potiguara são seus vizinhos latifundiários do Grupo Agropastoril Rio
Vermelho, da Usina Miriri de Rio Tinto/PB.
Suas invasões são com máquinas, armas e policiais particulares, muitas
vezes “ajudadas” pela morosidade das autoridades jurídicas locais em impedir tais delitos. Mas, ao invés de se deixarem vencer por essas forças invasoras desiguais e “quase” legitimadas, eles se reorganizam constantemente
para defender e manter a demarcação do território, que foi reconquistada
à duras penas e há pouco tempo, como a de Jacaré de São Domingos. Segundo Silva (1993), nesta localidade há um grave conflito interno entre os
defensores da terra e os arrendadores que ainda residem lá.
A expressão da força de defesa territorial é expressa pelo pronome da
terra NOSSA, que se refere à terra coletiva. Esta se materializou na criação do
Conselho Indígena Tupã dos índios de Jacaré de São Domingos, em setembro de 1991, segundo Silva (1993). Esta foi uma forma de garantir os direitos
dos índios enquanto cidadãos; essa cidadania saiu das leis dos “brancos”
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Essa Terra É Minha
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Sumário
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para ser invocada pelos índios para preservar seu Chão, que é a essência da
sua indianidade.
No decorrer de sua história os Potiguara foram perdendo diversos elementos importantes da sua cultura tradicional. Através de constantes miscigenações quase não portam o seu principal traço adscritivo – o fenótipo
da pele escura e cabelos lisos, além dos olhos amendoados. Também não
têm mais o tupi – seu idioma – nem o sistema de parentesco, bem como,
perderam o contato com alguns dos seus deuses e incorporaram muitos dos
valores do catolicismo como parte da sua espiritualidade. No entanto ainda
conservam o Toré, que é mais do que uma dança, é um ritual onde os índios
incorporam os ancestrais que são invocados para lhes ajudar a se defenderem das ameaças externas.
No movimento da luta pela demarcação da gleba de Jacaré de São Domingos esses índios resgataram o seu Chão, que é, segundo a autora citada,
a sua última indianidade. Foi nessa luta que se uniram, se defenderam e se
repensaram, através do exercício da sua alteridade contra o invasor: o nós
Potiguara coletivo e solidário. Foi através das roças coletivas e mutirões que
derrotaram as máquinas e cercas inimigas (SILVA, 1993, p. 39). Para isso ocuparam em grupo a sede da FINAI em João Pessoa por diversas vezes, para
pressionarem o órgão “protetor” dos índios reivindicando a demarcação.
Nestas ocasiões passavam dias dançando o Toré com cantigas de letras pro-
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Essa Terra É Minha
vocativas, segundo Silva (1993, p. 41 e 43).
Coletivamente os Potiguara se mobilizaram para organizar grupos de
apoio por ocasião da prisão de um dos caciques na Cadeia Pública de Rio
Tinto, por causa da sua resistência às máquinas invasoras (Op. Cit., 1993, p.
40) Coletivamente participaram de reuniões, tomaram decisões, buscaram
adesão à sua luta até no exterior, enfim, organizaram ações de confronto pacífico para conseguirem a demarcação do seu CHÃO. Também se cotizaram
para angariar recursos para financiar o envio de alguns representantes para
Brasília e tentar mover pressões junto as autoridade mais altas do aparelho
de Estado (Op. Cit., 1993, p. 42-44).
Embora a demarcação tenha sido homologada e executada, a invasão da
Usina Miriri ainda está em litígio judicial através do processo de manutenção
da posse no território dos índios. Mas, o Conselho Indígena Tupã está vigilante e a postos na defesa do CHÃO dos Potiguara.
Capa
Sumário
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Sofrimentos em comum
Os dois grupos aqui enfocados têm histórias muito semelhantes de tensões e sofrimentos causados pelas invasões dos não-índios nas disputas de
suas terras. Com relação a isso há, na memória dos Fulni-ô, a referência a
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Essa Terra É Minha
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uma série de massacres que sofreram dos “brancos” de Águas Belas. Um índio idoso que vivenciou este período – 1910-1912 aproximadamente – contou-nos que os não índios atacavam a aldeia, ateavam fogo em suas casas
de palha e os expulsavam dali. Ele relatou também que os índios se escondiam durante o dia e, à noite voltavam para celebrar o Ouricuri.
Depois, os índios foram voltando aos poucos e, à certa altura um índio
encontrou enterrada uma imagem de Nossa Senhora da Conceição, o que
gerou um grande significado místico. O local onde a Santa foi encontrada foi
doado pelos índios à cidade, onde foi construída a igreja da santa do mesmo
nome onde hoje é o centro de Águas Belas.
Os índios Fulni-ô alegam que esse foi o pretexto para que os “brancos”
os pressionassem a desocupar o local e dividir o seu território com eles no
município de Águas Belas, “pois a santa não podia sair dali”, como justificaram. Com esse fato simbólico, os índios recuaram no território fazendo
novos limites entre a aldeia e a sede do município. Hoje o arruamento da
chamada Aldeia Fulni-ô é uma parte urbana da cidade de Águas Belas, a
qual é demarcada por um muro alto e vazado que simboliza as fronteiras
físico-geográficas entre ambos os segmentos étnicos.
Mas, permanece viva na memória dos índios sua antiga posse; a falta de
espaço para a expansão urbana – segundo o mapa Águas Belas é “ilhada”
pelas terras Fulni-ô – faz com que os “brancos” e índios tenham relações
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muito tensas. É como se os “brancos” fossem “invasores-invadidos”, ou seja,
é como se os índios pudessem virtualmente reocupar o seu espaço, o que
resulta num grande inconformismo dos não-índios por não poderem dispor
dos direitos dos Fulni-ô àquele território
Já os Potiguara têm uma vivência com invasões desde o século XVI, como
já foi mencionado. Foram muitas e muitas guerras, escaramuças e perseguições que sofreram às quais sempre resistiram ferozmente. No século XX, os
documentos pesquisados por Silva (1993, p. 21-22) contam que além dos vizinhos latifundiários, nos anos 40 havia como principal invasor de suas terras
os donos da Fábrica de Tecidos Rio Tinto, da Companhia de Tecidos Paulista,
cujos proprietários eram da família Lundgren.
Os Potiguara nunca aceitaram esta situação, de tal forma que conseguiram efetivar a demarcação de suas terras, ainda que em etapas: em 1983, da
Vila São Miguel; e, em 1993 da Vila Monte Mor de Jacaré de São Domingos.
Estes últimos foram excluídos da demarcação de 1983 e suas mobilizações,
por quase dez anos, foram acompanhadas pela autora que consultamos para
este trabalho. Mas, como já foi citado, apesar de tudo a questão ainda não
está totalmente resolvida até hoje.
Já os Fulni-ô, após a divisão do seu território em lotes feita em 1957, tiveram como invasores o próprio Estado através da Companhia Elétrica de
Pernambuco – CELPE – e a Companhia Telefônica de Pernambuco – TELPE.
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Essa Terra É Minha
A primeira companhia teve que negociar com os índios a implantação de
postes de eletricidade nas terras coletivas do Ouricuri que, em troca, fornece
energia elétrica “gratuita” para todos os índios desta aldeia. A segunda chegou a construir um prédio dentro da aldeia, mas, não conseguiu a aceitação
dos habitantes da mesma. O tráfego de estranhos entre os Fulni-ô causou
tanto desconforto que foi necessário que a TELPE saísse de lá e construísse
outro posto dentro do território não-índio.
Representações simbólicas sobre a ligação dos índios com a terra
Capa
Sumário
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O CHÃO dos Fulni-ô tem seus limites com o dos não-índios riscado com
o sangue de todos os que o defenderam nos massacres e, muitas vezes
isso significou a VIDA dos que se sacrificaram por ele. Foram as pressões e
provocações que reforçaram a ligação dos Fulni-ô com o CHÃO COLETIVO.
Foi essa percepção que impulsionou os índios a lutarem por uma divisão
e administração territorial em lotes para garantir a ocupação e defesa dos
mesmos. Ou seja, antes do MEU LOTE existe a NOSSA TERRA. O pronome
possessivo singular vem então como referência de parte do todo, no sentido
de mutuário de uma posse COLETIVA.
No entanto, esta percepção da coletividade tem ficado esmaecida nas
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Essa Terra É Minha
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últimas duas décadas por causa dos conflitos entre os herdeiros e dos arrendamentos, que são vistos pelos não-índios como manifestação de “desinteresse” dos índios pelo trabalho reforçando o velho estereótipo do “índio
preguiçoso”. Para contradizer com essa representação preconceituosa o SER
Fulni-ô é pautado pelo COLETIVO, ou seja, o pertencimento grupal destes
índios é simbolizado pela terra indivisível do Ouricuri. Recorde-se que foi
pelos rituais do Ouricuri que os índios Fulni-ô superaram os massacres para
retornar ao seu CHÃO. E esse grupo reafirma essa pertença e indivisibilidade
durante os quase quatro meses do Ouricuri.
Temos então que o OURICURI é o CHÃO-SAGRADO-VIDA, o que é essencial para a identidade desses índios. Lembra também o sangue derramado pelo seu solo, o que reforçou o limite entre os índios e não-índios.
Nos retiros do Ouricuri não se permite a entrada dos “brancos” por que é
parte do SEGREDO Fulni-ô. Enfim, a ligação dos Fulni-ô com o seu solo tem
o seguinte encadeamento de identidade étnica: CHÃO-COLETIVO-SAGRADO-SEGREDO-VIDA.
Os Potiguara têm uma concepção exclusivamente coletiva da posse da
terra, apesar das suas contradições conjunturais dos arrendamentos recentes. A ligação que têm com o seu CHÃO é de séculos, assim como é antiga a
sua resistência contra os invasores. Nesse vínculo construíram seu modo de
vida, modo de ser e modo de FÉ grupal onde exercitaram sua FEROCIDADE,
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Essa Terra É Minha
FÚRIA E FORÇA. A sua ligação com o CHÃO é tão forte quanto o vínculo que
têm com sua MÃE (SILVA, 1993, p. 77), o que denota um caráter de IRREVERSIBILIDADE e INDISSOLUBILIDADE, do mesmo modo como são os elos
de uma mãe com seus filhos. Segundo Silva (1993), para os Potiguara, TER a
terra é o mesmo que SER a terra, razão pela qual alimentaram sua resistência contra os invasores fortes e desiguais com suas ações de TEIMOSIA (Op.
Cit., 1993, p. 78).
Para eles, a sua história e memória são as de sua TEIMOSIA em manter
este vínculo com seu CHÃO, contra forças maiores e contra todos os que os
ameaçaram. Nessas memórias foram se perdendo seu idioma, costumes, parentesco, alguns deuses, etc. Mas, não perderam a sua ligação com o CHÃO,
pois, a terra é enfim a sua primeira e última indianidade. Sintetizando a ligação, dos Potiguara com o seu CHÃO temos o seguinte encadeamento simbólico: FEROCIDADE-FÚRIA-FORÇA-COLETIVA-TEIMOSIA-TER-SER-NOSSA-MÃE
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Conclusão: o chão da identidade étnica desses dois grupos
Primeiramente percebe-se que, para ambos os grupos, a identidade étnica se firmou nas oposições aos não-índios devido aos seus sofrimentos co-
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muns causados pelos invasores “brancos” dos seus respectivos CHÃOS. Esse
processo chegou ao ponto de essas resistências terem suplantado o valor de
diversos costumes importantes de sua indianidade, principalmente entre os
Potiguara. Mas, aqui não contabilizamos só as perdas e sim a importância do
que ficou e como esses simbolismos atuam na organização e mobilização
desses dois grupos.
A religião, parentesco e idioma dos Fulni-ô são alguns dos componentes
do seu orgulho de ser. Este sentimento coletivo é invocado nos confrontos
e nas eternas arengas interétnicas que eles vivenciam. É um ORGULHO que
reveste sua suposta pobreza material com dignidade, que pode até reverter
esse quadro de dificuldades econômicas. O ORGULHO da auto-afirmação
dos Fulni-ô alcança a meta de se “civilizarem” no sentido de terem “bens
materiais” sem deixarem de serem índios. Porque para eles a indianidade é o
SAGRADO do Ouricuri, da NOSSA terra, que é SEGREDO, pois, interessa somente a eles mesmos.
No restante do seu território encontramos as divisões em lotes de possessivo individual MEU e mesmo que arrendados, são fonte de subsistência
econômica para grande parte dessa população. É nesse sentido que os Fulni-ô querem e aceitam se “civilizar” para terem “futuro” – bens de consumo –
e VIDA. São esses valores que lhes abrem as portas do mundo dos “brancos”
ao qual também querem pertencer.
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Essa é uma identidade étnica dividida, como o é seu território: eles têm
o lado NOSSO do SER-SAGRADO-SEGREDO do OURICURI e o lado MEU do
econômico, com renda, subsistência, aspiração de conforto e VIDA COM os
não-índios. Essa dicotomia identitária reflete mesmo a atual situação dos
Fulni-ô: eles se encontram fisicamente mesclados com o mundo dos não-índios e mesmo que tenham a posse do seu CHÃO coletivo, seu território
geográfico concreto está fragmentado o que facilita que sejam vulneráveis
às influências oriundas do entorno econômico, político e cultural que os rodeia. Por tudo isso, ainda que eles tenham o PARENTESCO e o IDIOMA com
o qual praticam a sua RELIGIÃO eles querem se CIVILIZAR PARA CONTINUAREM ÍNDIOS.
É o contrário dos Potiguara, que não têm mais quase nenhum traço essencial da sua cultura, parentesco e idioma, mas, conservaram o TORÉ, que
compõe o seu universo SAGRADO, junto com a terra do NOSSO CHÃO. Com
a religiosidade e a TERRA-MÃE eles formam o grupo cujos membros se unem
através dos mesmos laços filiais, ou seja, é um coletivo de auto-defesa e resistência. O CHÃO tem uso comum e solidário, até porque, sozinho cada
índio deste grupo não teria como enfrentar máquinas e armas invasoras.
Essa coletividade e fraternidade emanam da terra que se torna CHÃO sem o
“branco”. Em suma, os Potiguara INDIANIZARAM A TERRA PARA CONTINUAREM ÍNDIOS.
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Essa Terra É Minha
Referências
BARTH, Fredrik. Los grupos étnicos y sus fronteras. México: Fondo de Cultura Econômica, 1976.
BOURDIEU, Pierre. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 1990.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues R. Identidade & etnia. São Paulo: Brasiliense, 1986.
CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. Identidade, etnia e estrutura social. São Paulo: Pioneira, 1976.
FOTI, Miguel Vicente. Resistência e segredo: relato de uma experiência de antropólogo
com os Fulni-ô. Brasília: Fundação Universidade de Brasília, Dissertação de Mestrado do
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, 1991.
PINTO, Estevão. Etnologia Brasileira: Fulni-ô – os últimos tapuias. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1956.
SILVA, Maria da Salete Horácio da. Resistência indígena Potiguara: o caso de Jacaré
de São Domingos. João Pessoa: UFPB, Dissertação de Mestrado pelo Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, 1993.
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Sumário
STORNI, Maria Otilia Telles e NASCIMENTO, Romério H. Z. do. Relatório de pesquisa
sobre os Fulni-ô. João Pessoa/UFPB/PIBIC, Digitado, 1994.
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A FESTA DO OURICURI E O ORGULHO FULNI-Ô
Maria Otilia Telles Storni
Romério Humberto Zeferino Do Nascimento
Introdução
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Os Fulni-ô de Aguas Belas/PE têm Orgulho de serem índios por diversas razões. Primeiramente, porque são os únicos indígenas do nordeste que
têm um idioma próprio, o Yaathê; e, por serem bilíngües, consideram-se
superiores aos não-índios desta cidade que falam apenas um idioma. Eles
são também os proprietários da maior parte do território do município de
Aguas Belas, sendo que o espaço urbano deste está literalmente ilhado pela
reserva Fulni-ô. Atualmente, para que a expansão urbana possa ocorrer, os
não-índios dependem de negociações com os Fulni-ô, o que os coloca em
situação de suposta vantagem por um lado, e por outro, causa um clima de
hostilidade e tensão cotidiana por parte dos “brancos” que ali residem.
Além disso, eles têm uma organização religiosa que lhes orienta num
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complexo sistema de parentesco de clãs e metades. Em outras palavras, a religião lhes fornece um mapeamento simbólico que lhes garante não só a sua
espiritualidade, como também, sua organização grupal, parental e direito à
terra e residência na reserva. Em síntese, religião, parentesco, idioma e terra
são os elementos igualmente importantes que compõem o sentimento de
Orgulho Fulni-ô.
Esses componentes têm uma revitalização simbólica e material anual, por
ocasião dos rituais do retiro do Ouricuri. Estes são celebrados numa outra aldeia deste mesmo nome, construída especialmente para isso – eles residem
na tribo do Ouricuri do final de agosto ou início de setembro até a primeira
semana de dezembro. Os não-índios não podem assistir nem saber o que
se passa nestas cerimônias, bem como não têm acesso a informações sobre
o sistema de clãs e metades do seu sistema de parentesco, conforme afirma
Foti (1991).
O único dia em que os não-índios têm permissão para entrar no território do retiro do Ouricuri é no dia da festa de abertura dos rituais. A festa do
Ouricuri é famosa na região e para lá afluem multidões de “brancos” todos
os anos. Neste artigo pretende-se então fazer uma leitura dos principais
elementos simbólicos desta festa, especialmente os que dizem respeito ao
contexto hostil das relações interétnicas em confronto que nos foram mais
visíveis sob o olhar antropológico dos pesquisadores.
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Essa Terra É Minha
Pretende-se então trabalhar com este ritual sem entrar no conteúdo religioso do mesmo, o que, em princípio, apresenta-se como uma limitação e
um desafio antropológico. Mesmo assim acreditamos que com esta forma
de análise possamos contribuir para criar uma nova visão das relações interétnicas com os Fulni-ô e demais índios do nordeste, calcada no estímulo à
auto-valorização compensatória da cultura e direitos dos índios.
Fundamentos teóricos
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Os Fulni-ô e não-índios de Águas Belas, nos dias de hoje, só podem ser
pensados num contexto de dependência interétnica. Por trás desta expressão encontra-se um processo de redemarcação identitária que, no dizer de
Pacheco de Oliveira (1993, p. VIII), propicia uma ...”mobilização coletiva por
um território comum...” e a “...reelaboração de tradições específicas”. Concordamos com o autor quando afirma que a questão indígena do nordeste
e a dos Fulni-ô não pode ser reduzida à uma dimensão territorial, pois, as
causas e rituais comuns dão às identidades “uma grande importância normativa, afetiva e valorativa”, isto é, “...um sentimento de unidade e destino
comum como povo e nacionalidade” (PACHECO DE OLIVEIRA, 1993, p. VII,
grifos nossos).
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O mesmo autor arremata: “Não importa o quanto os símbolos e valores
venham efetivamente de fora, o que conta é que são vividos e pensados
como se estivessem impressos a ferro e fogo nos corpos e sentimentos dos
indivíduos; e que daí lhes determina – como uma força interior – o seu futuro concebido como um reencontro com seu verdadeiro destino” (Op. Cit., p.
VIII, grifos nossos). São esses sentimentos e força interior que pretendemos
analisar neste artigo.
A festa do Ouricuri poderia ser vista como uma festa religiosa qualquer
do interior nordestino se não fosse percebida como parte de um processo
histórico de construção identitária, onde os não-índios de Águas Gelas, desde o final do século XIX, vêm tentando expulsar os Fulni-ô de seu/s território/s. Ambos os segmentos étnicos se sentem com direitos de ocupação das
terras do município e, nesses conflitos, vêm criando e invocando um sem
número de representações simbólicas mutuamente preconceituosas que
lhes viabiliza a posse da terra. A identidade étnica Fulni-ô, neste contexto, é
marcada pelas mágoas e revoltas resultantes das agressões que permeiam
suas relações com os não-índios de Águas Belas.
A intensidade da tensão dessas relações não vem só da memória histórica dos conflitos entre ambos; está na visibilidade do limite entre a aldeia e a
cidade, construído perto do centro da mesma, o que aumenta a cobiça dos
não-índios sobre as valorizadas terras urbanas dos Fulni-ô. Está também no
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Essa Terra É Minha
porte altivo de alguns índios quando circulam pelas ruas sob os olhares de
desconfiança dos “brancos”, pois, estes não “podem” e também não “querem” circular nas ruas da aldeia, a não ser que sejam convidados para isso.
Brandão (1986, p. 42), inspirado no conceito de Fricção Interétnica de Cardoso de Oliveira (1976) afirma que:
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Identidades são representações inevitavelmente marcadas pelo confronto
com o outro; ...são mais que isto, não apenas o produto inevitável da oposição por contraste, mas, o próprio reconhecimento social da diferença. A
construção das imagens com que sujeitos e povos se percebem passa pelo
emaranhado de suas culturas, nos pontos de intersecção com as vidas individuais. Ela tem a ver, ali, com processos ativos de conflito, luta, manipulação. Um povo ao mesmo tempo se nega a si mesmo e se afirma como uma
identidade de dominado ou perseguido, integradora de valores negativos
e positivos de diferenciação. Por que ele não pode deixar de ver-se como
dominado, tal como o negro escravo acaba ‘se vendo’ através dos olhos
do senhor branco. Mas, porque também a sua própria condição engendra
a necessidade de lutar pela sua sobrevivência e nesta luta incluem-se os
símbolos que preservam uma identidade de minoria, de dominado, mas, de
qualquer modo, uma identidade própria...construída não apenas por oposição à do outro – a maioria dominante – mas para opor-se a ela. Para estabelecer a diferença (grifos nossos).
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Essa Terra É Minha
O que este autor denomina de “valores negativos e positivos de diferenciação” é visto por Erikson (1972) como identidades negativas e positivas
típicas de minorias oprimidas, dentre as quais ele aponta os judeus e negros
americanos. Este último autor afirma também:
O ser humano, de fato, é advertido para não se tornar o que ele, freqüentemente, não tinha a intenção de vir a ser, afim de que aprenda a antever o
que deve evitar. Assim, a identidade positiva, longe de ser uma constelação
estática de características ou papéis, está sempre em conflito com aquele
passado que tem que ser esquecido e com aquele futuro potencial que tem
que ser evitado. O indivíduo que pertence a uma minoria oprimida e explorada, que está cônscio dos ideais culturais dominantes, mas, impedido de
seguir-lhes o exemplo, é passível de fundir as imagens negativas que lhes
são atribuídas pela maioria dominante com a identidade negativa cultivada
em seu próprio grupo (p. 304, grifos nossos).
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A identidade negativa dos Fulni-ô lhes foi imputada nos conflitos de disputas territoriais onde os não-índios invasores lançavam mão de “imagens
negativas” dos índios para justificarem seus direitos de dominantes sobre
aquela terra. Mas, foram as mesmas “imagens tornadas negativas” – religião,
idioma, rituais, etc. – que permitiram aos órgãos indigenistas oficiais identificar os índios para demarcar-lhes o território por diversas vezes, desde 1851
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até 1957, quando houve a última demarcação da reserva, feita ainda pelo
Serviço de Proteção ao Índio – SPI (dados de STORNI, 1994, p. 6).
Em suma, as relações interétnicas entre os Fulni-ô e águabelenses foram
e são marcadas por elementos simbólicos negativos, aos quais os índios
vêm reelaborando em forma positiva. A festa do Ouricuri é um momento ritual especial dessa reelaboração, bem como, da “diluição” ou “neutralização”
das tensões e incidentes ocorridos durante o ano, nas relações entre índios
e não-índios desta cidade.
Pretende-se então analisar a festa de abertura do Ouricuri como um RITO
DE PASSAGEM, dentro de outro, que é o próprio retiro, com tudo o que ocorre
neste período. Segundo Van Gennep (1960 apud Turner, 1974, p. 116), ritos
de passagem são os “...que acompanham toda a mudança de lugar, estado,
posição social [e] de idade”. Turner (1974, p. 116-117) afirma que todos os
ritos de passagem têm três fases: separação, margem ou limiar e agregação:
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A primeira fase (de separação) abrange o comportamento do indivíduo ou
de um grupo quer do ponto fixo anterior na estrutura social, quer de um
conjunto de condições culturais (um ‘estado’), ou ainda de ambos. Durante
o período ‘limiar’ intermédio, as características do sujeito ritual (o ‘transitante’) são ambíguas; passa através de um domínio cultural que tem poucos,
ou quase nenhum dos atributos do passado ou do estado futuro. Na terceira fase (reagregação ou incorporação), consuma-se a passagem. O sujeito
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Essa Terra É Minha
ritual, seja ele individual ou coletivo, permanece num estado relativamente
estável mais uma vez, e em virtude deste tem direitos e obrigações perante
os outros de tipo claramente definido e ‘estrutural’, esperando-se que de
acordo com certas normas costumeiras e padrões éticos que vinculam os
incumbidos de uma posição social, num sistema de tais posições (grifos
nossos).
A contribuição teórica deste último autor está na sua definição de LIMINARIDADE e COMMUNITAS, ou seja, a segunda fase do rito de passagem
acima definido. A “ambigüidade” indicada por Van Gennep como atributo da
fase liminar, é evidenciada tanto na suspensão quanto na inversão ou quebra
das classificações, posições e estados das pessoas num espaço cultural. Esta
ambigüidade apresenta, a nosso ver, uma enorme riqueza simbólica, pois,
evidencia elementos identitários que estão dentro e fora do tempo, dentro
e fora da estrutura social e relações cotidianas. Turner (1974, p. 118-119) explica que, no estado de COMMUNITAS
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É como se houvesse dois ‘modelos’ principais de correlacionamento humano, justapostos e alternantes. O primeiro é o da sociedade tomada como um
sistema estruturado, diferenciado e freqüentemente hierárquico de posições
jurídico-político-econômicas, com muitos tipos de avaliação, separando os
homens de acordo com as noções de ‘mais’ e de ‘menos’. O segundo, que
surge de maneira evidente no período liminar, é o de sociedade considera-
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Essa Terra É Minha
da como um ‘comitatus’ não estruturado, ou rudimentalmente estruturado
e relativamente indiferenciado, uma comunidade, ou mesmo comunhão de
indivíduos iguais que se submetem em conjunto à autoridade geral dos anciãos rituais (grifos nossos).
Influenciado pelo método estruturalista levistraussiano, Turner (1974, p.
131) enumera uma vasta lista de oposições e inversões simbólicas que podem ocorrer nos ritos de passagem. Abaixo damos visibilidade aos destaques dos arranjos de oposições binárias que melhor se adéquam ao caso
deste ritual:
COMMUNITAS (OU COMUNIDADE)
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ESTRUTURA
Igualdade
Desigualdade
Ausência de propriedade (da terra)
Propriedade (da terra)
Ausência de ‘status’
‘Status’
Nenhuma distinção de riqueza
Distinções de riqueza
Continência sexual
Sexualidade
Subestimação das distinções de gênero
Importância das distinções de gênero
Referência contínua aos Poderes Místicos
Referência intermitente aos Poderes Místicos
Humildade*
Justo orgulho de posição
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As propriedades da LIMINARIDADE e do estado de COMMUNITAS ou
comunidade acima apresentados seguem um modelo geral ao qual o autor
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Essa Terra É Minha
sinaliza a possibilidade de ser aumentada, de acordo com as situações em
estudo. No nosso entender, é possível também que seja necessário trocar alguns elementos de lugar, colocá-los em ordem hierárquica de importância,
enfim, fazer os arranjos simbólicos binários conforme o contexto ritual. Neste caso específico, levaremos em conta o contexto das relações interétnicas
como veremos no próximo quadro.
Etnografia da festa do ouricuri
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Desde o final do século XIX, em Águas Belas, há registros históricos de
conflitos entre os índios e não-índios por causa de disputas pela terra. Como
já foi citado, os “brancos” já fizeram diversos massacres na aldeia, queimaram suas choupanas, mataram crianças, enfim, tomaram inúmeras atitudes
agressivas para expulsar os índios do seu território. Isto ocorreu também nas
primeiras décadas do século XX e, os índios idosos que testemunharam essas agressões nos contaram que, durante a noite os Fulni-ô voltavam para a
aldeia para fazerem seus rituais.
Esta questão é importante para este grupo porque há outros grupos Gê
em Pernambuco e no nordeste, mas, nem todos criaram esta tradição de fazer celebrações para lhes dar força e resistência na defesa do seu território e
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Essa Terra É Minha
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sua gente. Ainda hoje durante o ano, os índios Fulniô sofrem um sem número
de humilhações e discriminações por parte dos não-índios. As crianças índias
passam por maltratos e pressões diariamente nas ruas e nas escolas. O grupo
é composto, em sua maioria, por pessoas consideradas como “pobres” e se
vestem com roupas modestas, se comparadas com as dos não-índios.
No entanto, alguns índios gostam de exibir sinais de opulência do mundo
capitalista e se apegam a itens de consumo como carros, eletrodomésticos e
outros símbolos que podem lhes “igualar” à condição econômica dos “brancos”. Destacam-se por serem trabalhadores, mas, há também alguns índios
que sempre pedem dinheiro e comida nas lojas e feiras da cidade, o que é
visto pelos não-índios como um elemento comportamental de identidade
negativa dos índios.
Como já afirmamos antes, todos os anos os índios Fulni-ô deixam a sua
residência na aldeia de Águas Belas e se mudam por cerca de 3,5 meses para
o território sagrado e coletivo do Ouricuri, distante seis quilômetros de Águas
Belas. Cada família deste grupo tem uma pequena casa neste local, onde todos
residem neste período. Na “tribo”, como este espaço coletivo é chamado, todos
vivem outro tipo de relações internas e hábitos: não podem brigar entre si, ajudam-se mutuamente e, quando é o caso, resolvem-se as querelas e inimizades
internas ocorridas durante o resto do ano. Enfim, os Fulni-ô, em seu espaço religioso coletivo devem viver dentro dos princípios e regras dos antepassados.
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Os casais não podem ter relaçôes sexuais neste território e, os homens
têm uma parte do espaço da “tribo” onde as mulheres não podem pisar, literalmente. No lado masculino do Ouricuri desenvolvem os rituais sagrados
mais importantes; também é lá que está plantado o juazeiro sagrado com
o mesmo nome deste território. Enfim, é nesta época e local que os Fulni-ô
resgatam e reproduzem os valores ditos como originais da sua indianidade.
É um espaço excludente dos não-índios e, como já citamos antes, conservam estes rituais em segredo.
O único dia em que se permite a presença dos “brancos” na “tribo” é o
da abertura, que chamamos aqui de festa do Ouricuri e para o qual a pesquisadora e orientando foram especialmente convidados. Para lá vão multidões de não-índios, não só de Águas Belas, como da região e de longe.
Isto ocorre porque são atribuídos muitos poderes mágicos à árvore sagrada
do juazeiro da “tribo”. Os “brancos” vão a romaria, para fazerem pedidos,
cumprir promessas ou agradecer as graças alcançadas pelo Ouricuri e, esse
fenômeno aumenta a cada ano que passa. Todos os índios devem participar
do acampamento, inclusive os que residem em outras regiões brasileiras. Só
não podem permanecer na “tribo” os cônjuges não-índios dos Fulni-ô, bem
como os filhos mestiços que não foram iniciados no ritual até uma certa faixa de idade infantil, à qual não quiseram nos informar.
A preparação da festa do Ouricuri ocorre na última semana do final de
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agosto ou início de setembro. A data, sempre um domingo, é decidida pelas
lideranças oficiais, ou seja, o pajé e o cacique, por critérios religiosos também não revelados. A separação de Águas Belas para a “tribo” é feita num
clima de euforia de preparo de bagagens, arrumação de móveis como fogões, mesas, cadeiras, colchões, caixas de panelas, utensílios de cozinha e
outros objetos, que são inicialmente colocados nas frentes de cada casa na
aldeia de Águas Belas.
O ato de colocar coisas na frente das casas denota um significado de atividade comunitária e simultânea, porque quem tem um meio de transporte
passa e vai recolhendo o material para levar para a “tribo”. Isto também ocorre em outras ocasiões, como por exemplo, na época da colheita do feijão,
quando então, colocam os fardos da leguminosa em rama nas frentes das
casas. Todos se ajudam mutuamente a bater os fardos de feijão entoando
canções próprias, que também são segredo.
Os índios transitam pelas ruas num corre-corre cheio de emolgação e
alegria. Nos dias de vésperas começa a circulação de carroças, carros e caminhões, cheios de bagagens e índios, em direção ao Ouricuri. A maior parte
dos índios já começa a se ausentar, a partir da 6ª feira antes do domingo da
festa. Assistimos um grande caminhão fazendo uma “via-sacra” para carregar as bagagens de várias famílias; fomos informados que era um veículo de
um político proeminente de Águas Belas, que o havia emprestado para um
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dos líderes informais dos Fulni-ô. Esse líder – Joventino – estava em cima do
caminhão monitorando o motorista para as casas por ele escolhidas para serem atendidas. Por mais que haja uma possível interpretação de clientelismo
eleitoreiro, é forçoso reconhecer que há também um respeito dos políticos
não-índios em participar desta festa indígena.
Havia também a alegria de todos que andavam pelas ruas a cumprimentarem os índios de fora que estavam chegando para a festa. Por isso, a noite da
véspera foi muito festiva nos bares e no clube recreativo de Águas Belas. Essa
movimentação dos dias precedentes da festa caracteriza então a primeira fase
deste ritual: a separação coletiva do espaço profano da aldeia para o local sagrado do Ouricuri. O dia da festa começa muito cedo, com os últimos índios
saindo para a “tribo” de bicicletas, carroças ou carros. Chegamos lá por volta
das 8:30 hs. da manhã e ficamos impressionados por ver a enorme fileira de
caminhões lotados de gente, pedestres e carros apinhados de índios e não-índios, a disputarem a estreita estrada de chão para o Ouricuri.
É muito difícil avaliar quantitativamente a multidão que se dirigia para lá,
mas, com certeza havia mais de 5.000 pessoas. Essa enorme quantidade de
pessoas dentro daquela “mini-aldeia” – as casas são pequenas, de no máximo três cômodos cada – deixou os pesquisadores aturdidos. No ar, um grande alarido festivo: não-índios andavam como que a esmo, de um lado para
o outro, enquanto muitos índios permaneciam acocorados na frente de suas
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casinhas ou conversando com os parentes recém-chegados de fora.
Alguns índios ficavam tranquilamente olhando o movimento dos “brancos”, deitados em suas redes no lado masculino do Ouricuri. Algumas bancas
de comércio vendiam frutas, água e bolos. Tudo indica que ali era proibida
a ingestão alcoólica. Era impossível caminhar sem esbarrar em alguém. No
meio da multidão de não-índios ficavam alguns índios que depois viemos a
saber que eram alguns dos líderes informais de prestígio do grupo; percebia-se que estes ficavam fazendo o papel de relações públicas, destacando-se
no seu papel de “donos da casa”, cumprimentando os conhecidos, inclusive
pessoas não-índias de prestígio da região. Evidenciava-se nesta postura o
Orgulho Fulni-ô destas pessoas.
O ponto alto da abertura do Ouricuri é a missa católica, que é celebrada
no sentido de união dos povos de diferentes etnias e religiões. O celebrante
é sempre uma autoridade eclesiástica de fora, que é escolhida cuidadosamente por suas posições favoráveis à causa indígena. Esta missa foi rezada e cantada em Yaathê e no sermão – em português – houve menção aos
problemas dos índios com os brancos relacionados à invasões de terra e os
problemas de demarcação territorial dos índios Xukuru das cidades vizinhas
de Pesqueira e Paulo Afonso.
Foi feito também um emocionado apelo para a manutenção da paz e boa
convivência entre índios e não-índios. Este sermão foi intercalado com insis-
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tente louvação aos índios. Ressalte-se que a missa católica dos não-índios
celebrada em grande parte no Yaathê representa a proposta desses índios
na mistura dos dois mundos, além de um pedido de respeito para uma boa
convivência entre os “brancos” e os Fulni-ô.
Depois da fala do celebrante um líder Fulni-ô idoso fez um discurso em
Yaathê, que foi traduzido simultaneamente. As rezas do ofertório foram traduzidas por uma lingüista – a profª Jannmacely, da Universidade Federal de
Alagoas – e se referiam também aos problemas de falta de apoio aos índios,
pedidos de ajuda e questões de invasão do território por parte dos “brancos”. No final da missa mais um líder, Joventino, tomou o microfone e fez
novo discurso em Yaathê, enfatizando a necessidade dos brancos e índios se
tornarem amigos e solidários.
Depois da missa conversamos com alguns jovens índios. Eles estavam
preocupados com as notícias sobre os candidatos à presidência da República e dos apoios da esquerda – Lula - às comunidades indígenas. As maiorias
dos índios à volta destes jovens escutavam a conversa com visível ceticismo,
declarando suas simpatias ao então candidato Fernando Henrique Cardoso.
Pode-se interpretar essa atitude dos jovens Fulni-ô como resultantes de um
acordo com políticos locais, o que aparenta ser mais uma forma de união e
aceitação da manipulação dos e com os não-índios. O que mais nos chamou
a atenção foi a presença de candidatos a cargos políticos locais que ali es-
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tavam cumprimentando os índios efusivamente, distribuindo “santinhos” e
ouvindo pedidos diversos de ajuda dos índios. Todos prometiam concessões
– dinheiro, passagens, etc. – em troca de intenções de votos.
Perguntamos à líder e funcionária da Funai Marilena Araújo se essa negociação de favores por votos era freqüente e ela confirmou. Em seguida ela,
com a ajuda e confirmação de outros índios, formulou o discurso de que os
“brancos” devem uma indenização aos índios por terem roubado suas terras
e devastado a sua cultura; por isso ela e os demais se declararam com direito
a fazer esses pedidos e negociações, já que a FUNAI é um órgão ausente e
falho em ajudar os índios. Soubemos inclusive que havia sido escolhido recentemente um índio como “cacique administrativo” dos Fulni-ô cuja função
exclusiva era a de pedir ajudas para os índios, tanto em nível local como na
sede da FUNAI em Brasília. Por volta das 13:00 hs. – horário limite da presença dos não-índios na “tribo”, os “brancos” começaram a se retirar do Ouricuri. Queremos destacar, nesta descrição, as seguintes oposições indicadas por
Turner (1974) no Communitas da festa do Ouricuri:
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COMMUNITAS (RITUAL)
ESTRUTURA (DURANTE O ANO)
Igualdade entre índio e não-índio
Desigualdade entre ambos
Propriedade coletiva dos índios no território sagrado
O índio tem igualdade de “status” com o não-índio
Propriedade individual e invasão dos não-índios nas terras
da reserva
O não-índio é considerado como “superior” ao índio
Nenhuma distinção de “riqueza” entre índios e não-índios
Distinções de “riqueza” entre índios e não-índios
Justo orgulho da posição dos índios
Estigma dos Fulni-ô
Continência sexual
Prática da sexualidade
Alta importância das distinções de gênero – o lado masculino Subestimação aparente das distinções de gênero
do juazeiro sagrado
Referência contínua aos poderes místicos – romarias, Referência intermitente dos poderes místicos
promessas, graças alcançadas
Mistura do catolicismo dos não-índios com a religiosidade Distinção das religiões entre os índios e não-índios
Fulni-ô
Negociação de favores de igual para igual por causa do Negociação desigual de favores com o clientelismo
direito de indenização
Considerações finais
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Consideramos que a celebração ritual da abertura e festa do Ouricuri
tem o significado central de uma TRÉGUA entre os Fulni-ô e não-índios.
Ou seja, é uma espécie de paz armada provisória e compensatória para os
conflitos e discriminações cotidianas a que os índios são submetidos durante o resto do ano, junto com a altivez do Orgulho Fulni-ô pela força da
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sua religiosidade reverenciada pelos não-índios.
Nesta festa se percebe também uma forte interdependência entre ambos
os segmentos étnicos, que se junta com uma estigmatização da identidade
negativa dos índios, que é visível durante o resto do ano. Na festa da abertura dos rituais o índio é o “dono da casa” que recebe os não-índios efusivamente e sempre mostrando que é ele que faz as regras, determina dia, hora
e forma de permanecer no espaço do índio e por isso tem o seu Orgulho.
Mas, no resto do ano essa supremacia desaparece, ou melhor, se inverte em
favor dos dominantes não-índios. O Orgulho dos índios é evidenciado pela
detenção dos poderes místicos dos quais os “brancos” se beneficiam.
Há também o Orgulho de uma supremacia da posse territorial aparentemente pacífica, que foi conquistada depois de sua sofrida experiência com
as invasões dos não-índios em suas terras. Este Orgulho é alçado nas negociações de favores com os poderosos não-índios e pelos discursos dos direitos dos índios a “indenizações” por todas as perdas e sofrimentos que os
“brancos” lhes proporcionaram.
Esse é o orgulho pelo qual os índios passam a ter os poderes, privilégios e recursos materiais dos “brancos” sem deixarem de ser índios fulni-ô.
Essa é, enfim, uma identidade indígena cindida e ambígua, pois, reivindica
também o valor da identidade dos “brancos” para que possam transitar
com dignidade e respeito mútuo nesses dois mundos.
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Essa Terra É Minha
Referências
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CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. Identidade, etnia e estrutura social. São Paulo: Pioneira, 1976.
ERIKSON, Erik. Identidade, juventude e crise. Rio de Janeiro: Zahar, 1972.
FOTI, Miguel Vicente. Resistência e segredo: relato de uma experiência de antropólogo
com os Fulni-ô. Brasília: Fundação Universidade de Brasília, Dissertação de Mestrado do
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, 1991.
PACHECO DE OLIVEIRA, João. Viagem de volta. In PETI – Atlas das terras indígenas do
nordeste. Rio de Janeiro, PPGAS/ Museu Nacional/UFRJ, 1993.
STORNI, Maria Otilia Telles e NASCIMENTO, Romério H. Z. do. Relatório de pesquisa
sobre os Fulni-ô. João Pessoa/UFPB/PIBIC, Digitado, 1994.
TURNER, Victor W. O processo ritual. Petrópolis: Vozes, 1974.
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O TORÉ, AS PLANTAS SAGRADAS
E A FRATERNIDADE POTIGUARA
Maria Otilia Telles Storni
Introdução
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Neste trabalho pretende-se focalizar a importância do poder simbólico
polissêmico do Toré dos Potiguara da Baía da Traição, que compõem um
grupo indígena paraibano da atualidade. Nosso objetivo é o de mostrar como
a fraternidade e a identidade étnica Potiguara são mantidas e realimentadas nestes rituais sagrados, mesmo que o cenário contextual deste grupo
étnico seja o de convivência de seus membros com diversas crenças não
índias. Mas, na eminência de ameaças internas e externas de fragmentação da sua unidade eles recorrem às suas raízes religiosas.
Cabe esclarecer que os dados empíricos aqui apresentados foram captados da pesquisa. Também recorremos ao relatório final deste mesmo projeto
na sua versão de 2008, dos quais participou a autora deste artigo e outros
pesquisadores das áreas de saúde e farmácia. Alguns depoimentos sobre
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religiosidade também são provenientes da tese de doutorado de Lusival Antonio Barcellos (2005) e os dados estatísticos e estruturais foram fornecidos
por Palitot (2005), como os que apresentaremos a seguir:
A população Potiguara gira em torno de 13.547 pessoas1, sendo um dos
maiores contingentes indígenas aldeados do Brasil e a maior do nordeste.
Estão distribuídos em 26 aldeias e nas áreas urbanas dos municípios de Baía
da Traição, Marcação e Rio Tinto. Processos migratórios também levaram
contingentes significativos dos Potiguaras a habitarem cidades como Mamanguape, João Pessoa2 e mesmo o Rio de Janeiro. Outros locais importantes nas suas rotas migratórias são as cidades de Cabedelo, Bayeux e Santa
Rita (PB) e Canguaretama, Baía Formosa e Vila Flor, no Rio Grande do Norte.
Segundo Palitot (2005), que nos forneceu os dados estruturais mais recentes, em termos de organização social a distribuição do poder de decisão
e de representação se dá a partir dos grupos de famílias extensas, que geralmente estão alocadas em aldeias próximas umas às outras. Cada aldeia
possui um cacique ou representante que age como mediador das relações
1 Dados obtidos a partir do cruzamento de informações da FUNAI – AER de João Pessoa e do Distrito Sanitário Especial Indígena, o DSEI Potiguara da FUNASA.
2 Há 81 índios Potiguara vivendo na Grande João Pessoa e cadastrados para atendimento no DSEI, obviamente
este número não corresponde ao total de índios que vivem na região metropolitana da capital. Deste total de índios
cadastrados, 37 compõem o grupo familiar dos “Paca”, expulsos da Baía da Traição há alguns anos atrás, por desavenças com outros grupos familiares que redundaram em um crime de morte. Existem ainda 6 índios Wassu (AL) e
16 (dezesseis) Guajajara (MA), que moram na capital e em Bayeux cadastrados no DSEI. Outros 9 (nove)Potiguara
vivem em Baía Formosa (RN) e 7 (sete) em Mataraca (PB).
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da comunidade com os órgãos oficiais (Fundação Nacional do Índio - FUNAI, Fundação Nacional da Saúde - FUNASA, prefeituras, etc.) e comerciais
(usinas, guias de turismo, criadores de camarão etc.) e resolve pequenos
problemas da localidade. Além desses representantes locais, existe um cacique-geral, que representa o grupo como um todo, principalmente perante os órgãos oficiais e a Justiça. Esses cargos são resultado das adaptações
realizadas historicamente nas formas de representação política deste grupo
étnico desde o século XIX.
Neste contexto, os povoados que são considerados como aldeias são aqueles que possuem um líder ou representante, geralmente chamado de cacique,
não importando necessariamente a quantidade de pessoas que habitem estes
povoados. As aldeias Potiguara são: Forte, Galego, Lagoa do Mato, Cumaru,
São Francisco, Vila São Miguel, Laranjeiras, Santa Rita, Tracoeira, Bento, Silva,
Akajutibiró3, Jaraguá, Silva de Belém, Vila Monte-Mór4, Jacaré de São Domingos,
Jacaré de César, Estiva Velha, Lagoa Grande, Grupiúna, Brejinho, Tramataia, Camurupim, Caieira, Nova Brasília (Ibiquara) e Três Rios5.
Além dessas aldeias existe em torno de uma dezena de outros povoados
que não possuem representante oficialmente reconhecido e são representa3 Estas no município da Baía da Traição.
4 Estas três em Rio Tinto.
5 Estas últimas em Marcação.
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dos pelo líder da aldeia mais próxima6. Monte-Mór e Três Rios passaram a ser
consideradas como aldeias há pouco tempo: Monte-Mór, quando passou a
contar com um representante, saindo da esfera da aldeia Jaraguá e Três Rios,
depois que os índios da zona urbana de Marcação retomaram uma faixa de
terras ocupadas por canaviais e refundaram o antigo povoado que havia no
local. Já os índios que moram na Baía da Traição geralmente recorrem aos
representantes das aldeias Forte, São Miguel e Akajutibiró pela proximidade
destas com o centro da cidade, quando não, diretamente ao Posto Indígena
da FUNAI, localizado no Forte.
As terras indígenas ocupam um espaço de 33.757 hectares distribuídos
em três áreas contíguas, nos municípios de Baía da Traição, Rio Tinto e
Marcação. A Terra Indígena – TI - Potiguara situa-se nos três municípios e
possui 21.238 hectares, que foram demarcados em 1983 e homologados
em 1991. A TI Jacaré de São Domingos tem 5.032 hectares nos municípios
de Marcação e Rio Tinto, cuja homologação se deu em 1993. Por fim, a TI
Potiguara de Monte-Mór, com 7.487 hectares, em Marcação e Rio Tinto,
está em processo de demarcação com freqüentes conflitos com as usinas
de cana e a Companhia Rio Tinto que são próximas desta TI.
Segundo Barcellos (2005), do atual Território Indígena, 70% encontra-se
6 São eles Benfica, Sarrambi, Vau, Regina, Boa Vista, Tapuio, Carneira, Morrinho, Borel, Taiepe e Nova Esperança, entre
outros.
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ocupado pela cultura da cana-de-açúcar. Com o desmatamento da vegetação nativa para dar lugar à monocultura da cana-de-açúcar, houve uma crescente descaracterização da flora, que impulsionou os nativos a substituírem
o extrativismo como fonte de renda por atividades agrícolas e atividades
terciárias, deixando o conhecimento da flora e do seu potencial econômico
concentrado nos pajés e nos iniciados por eles com o objetivo de os substituírem no futuro.
Ainda assim, as plantas fazem parte do universo sagrado dos Potiguara
porque são geradas pela terra que lhes dá vida, alimento, moradia e a dignidade da sua identidade étnica. Esta identidade é então composta por tudo
isso mais as sabedorias quanto ao seu uso, que são ensinadas pelos espíritos
ancestrais que residem nesse território e compõem sua cultura. A terra e as
plantas medicinais fazem parte da natureza, junto com as matas, as águas
dos rios e do mar, com tudo que é derivado deles.
A natureza é elemento sagrado porque é a expressão corporificada dos
espíritos ancestrais, de tal forma que se torna parte do modo de ser Potiguara. Há uma ligação inseparável entre o Território-Natureza-Toré-Espíritos
e esse encadeamento simbólico-religioso ressalta que o Ser Potiguara é o
mesmo que o Ser da Terra, posto que ela é a mãe de todos os componentes
deste povo, cujos ancestrais a ela pertencem e nela residem.
As ameaças externas são as invasões históricas na terra dos Potiguara
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desde a época do Brasil colônia, e que atualmente que são representadas
pelas usinas de produção de açúcar vizinhas às terras das aldeias. As ameaças internas são dos próprios índios que têm tido conflitos entre si porque
muitos acabam permitindo algumas dessas invasões em troca de vantagens
financeiras. A população tem aumentado assim como os interesses conflitantes que colocam em risco a unidade grupal dos Potiguara. Assim, a identidade étnica Potiguara é, ao mesmo tempo una e múltipla devido a esses
problemas internos e externos.
A questão da identidade: a terra, as plantas
e o sagrado da identidade Potiguara
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Os estudos sobre identidade étnica na Antropologia brasileira se iniciaram no final da década de 60 do século XX, com Roberto Cardoso de Oliveira (1976). Esse autor se apoiou nas teorias de Fredrik Barth (1969), que
definiu o conceito de grupo étnico para analisar seus limites e organização
em termos de diferenças culturais.
Essas propostas foram fundamentais para os estudos etnológicos brasileiros porque focalizaram os grupos indígenas, não apenas em si mesmos,
como fizeram os antropólogos tradicionais estruturalistas e funcionalistas,
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mas também, por incluírem as suas relações, quase sempre conflituosas, com
as populações não-índias.
De acordo com João Pacheco de Oliveira (1998), que foi orientando de
Roberto Cardoso de Oliveira, a definição dada por Barth para grupo étnico
é a de um tipo organizacional, no qual uma sociedade constrói e reconstrói
sua individualidade grupal diante de outras com quem está em processo de
interação social permanente. Essas relações são estruturadas a partir de diferenças culturais.
Os elementos definidores de um grupo étnico estão principalmente nos
limites traçados pelas diferenças culturais. Os processos de perda ou resgate da identidade étnica devem ser então estudados em contextos específicos, tanto no sentido político como no econômico ou religioso. Pacheco de
Oliveira (1998) parte desse ponto para mostrar como a territorialização se
constitui como um dos principais catalisadores dos processos de emergência e mobilização da identidade étnica.
De acordo com esse autor o reconhecimento concreto dos territórios
tradicionais é o primeiro elemento definidor da mobilização identitária dos
índios do nordeste brasileiro, o que inclui os Potiguara. No lado espiritual,
correspondente ao aspecto material do território, estão os rituais do Toré,
que atuam entre os índios dessa região como importante contraparte simbólica legitimadora da identidade étnica desse grupo.
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Manuela Carneiro da Cunha (1998) revela que as comunidades étnicas
podem tanto ser formas de organização para a resistência como para a conquista de espaços, ou ainda ser uma linguagem de explicação de mundo e
base de relação dos seus membros com o contexto que envolve a comunidade indígena. Essa linguagem pode também ser uma retórica por seu caráter flexível e comunicador.
Enquanto forma de organização política a etnicidade – linguagem que
compõe a identidade étnica – é uma forma de organização política e só
pode existir num contexto mais amplo, em situações de contato com outros
grupos sociais distintos. O meio mais amplo fornece, portanto, os quadros
e as categorias dessa linguagem. Dessa forma, a “cultura original” do grupo
étnico não só se modifica, mas adquire também uma nova função que lhe é
essencial: a de ser uma cultura de contraste em relação à dos grupos sociais
que vivem ao redor dos índios, que nessa pesquisa são os Potiguaras.
A cultura tende então a se acentuar, ao mesmo tempo em que se torna
mais visível por ser simplificada e reduzida a um número menor de traços que
se tornam diacríticos, isto é, visíveis segundo Cunha (1986). No caso, a revalorização das práticas fitoterápicas tradicionais dos Potiguara fez com que esse
conhecimento seja um traço diacrítico da identidade étnica desse grupo.
O resultado desse raciocínio é que os grupos étnicos não podem mais
ser definidos exclusivamente a partir da sua cultura, mesmo que esta seja
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Essa Terra É Minha
um elemento imprescindível da etnicidade. Cunha (1986, p. 101) explica melhor: “Foram essas considerações que levaram antropólogos interacionistas,
como Moerman e Barth, a definirem adequadamente a identidade étnica
em termos de adscrição: assim, é índio quem se considera e é considerado
índio”. A identidade étnica passa então a se constituir como uma ideologia,
cuja finalidade expressa é realizar a distinção entre grupos sociais que se
encontram numa situação irremediável de interação e disputa por posições.
Cunha (1986, pp. 101-102) lembra que:
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A construção da identidade étnica extrai assim, da chamada tradição, elementos culturais que, fora do todo em que foram criados seu sentido se
alterou. Em outras palavras, a etnicidade faz da tradição ideologia, ao fazer
passar o outro pelo mesmo; e faz da tradição um mito na medida em que
os elementos culturais que se tornaram ‘outros’, pelo rearranjo e simplificação a que foram submetidos, precisamente para se tornarem diacríticos,
se encontram por isso mesmo sobrecarregados de sentido. A etnicidade,
tanto quanto a noção de cultura que lhe servia de substrato vê-se privada
de qualquer substância; ou melhor, abolida a idéia de uma cultura estática
dada ab initio, ela permanece ainda algo que não se põe apenas se contrapõe, e cujo motor e lógica lhe são externos.
De acordo com essa autora, a etnicidade tem um caráter instrumental onde, além da identidade contrastiva há também a ideologia étnica, a
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Essa Terra É Minha
partir do momento em que os elementos culturais tradicionais do grupo
étnico são reativados e rearrumados como forma de distingui-los de outros grupos e legitimá-los para determinados objetivos.
Note-se que há uma ligação ascendente intrínseca entre o Território-Natureza-Toré-Espíritos7 e as plantas usadas na fitoterapia que constam dos saberes tradicionais Potiguara, daí sua importância como parte
sagrada da identidade Potiguara, principalmente por ser parte da sua
ligação ancestral com a terra. Nesse caso, veremos a seguir, que a fitoterapia Potiguara ressurge dentro do universo espiritual de crenças ligadas
à natureza. Veremos também que quando as plantas são invocadas com
a força do Toré8 que só os índios têm acesso, há um aumento do poder
terapêutico das plantas.
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7 O Toré é uma dança tradicional dos índios do tronco Tupi que abrange os grupos desde o Ceará até a Bahia, segundo Oliveira F°. (1998).
8 Sobre o Toré ver também Dantas, Beatriz Góis et al. “Os povos indígenas no nordeste brasileiro: um esboço histórico”. In CUNHA, Manuela Carneiro da (Org.) História dos índios no Brasil, 2ª ed., São Paulo: Cia. das Letras/
Secretaria Municipal de Cultura/FAPESP, 1998, pp. 431-456.
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A terra, as plantas e o sagrado dos rituais do Toré
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Veremos, a seguir, alguns dados empíricos que confirmam a teorização
acima apresentada. Segundo algumas índias entrevistadas por nós, todas as
plantas que curam são sagradas. De acordo com uma índia entrevistada por
Barcellos (2005), para esses índios, antigamente, não havia Deus e sim Tupã;
para os espíritos ancestrais não havia bíblia e sim natureza.
Muitas das plantas de uso medicinal citadas pelos Potiguara nesta pesquisa não são diferentes das usadas na fitoterapia tradicional dos não-índios
do entorno da reserva, o que demonstra a troca de saberes com estes ao
longo de sua história. Mas, o que chama a atenção das práticas com plantas medicinais pelos Potiguara é a crença nos poderes mágicos das plantas,
cujos simbolismos e respectivos significados são guardados como elementos compartilhados apenas entre eles, mesmo em casos de doenças mais
físicas do que espirituais desses índios.
Numa das entrevistas mais significativas desta pesquisa sobre a crença
na cura pelas plantas medicinais colhemos o seguinte depoimento: “Acredito sim no poder de cura das plantas e gosto de estar na mata junto com
a natureza porque sou índia e sou ensinada por Tupã e as outras entidades
espirituais dos índios que me guiam na escolha das plantas que eu devo
usar em cada caso de doença que eu curo. Eu ensino os curumins [meninos,
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Essa Terra É Minha
jovens] e vou passar esses ensinamentos para o meu filho mais novo, que se
interessa por isso e vai continuar os meus trabalhos de cura com as plantas”
(D. Maíra, pajé – nome fictício).
Esses dados confirmam a relação da indianidade com a espiritualidade,
bem como a preocupação com manutenção desses conhecimentos através
do filho. No diário de campo há novas informações:
“Toda vez que ela indica o uso de uma planta ela faz um Toré e que ela
mesma prepara os remédios de plantas. Ela recebe as entidades, que dizem
que planta deve usar, e depois ela ou seu filho mais novo vai para a mata
para pegar a planta. Antes de tirar a parte que ela ou o filho procuram ela
pede licença para a natureza, ou seja, para os espíritos daquela planta: ela
bate no tronco ou raiz que ela vai colher, ao mesmo tempo em que invoca
as entidades para permitirem a retirada da planta e ajudarem na cura da
doença onde vai ser usada, mostrado como preparar o remédio” (STORNI,
diário de campo).
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Como se pode ver, o ato de ir para a mata é precedido da invocação dos
espíritos que a orientam o que buscar. A natureza representada pela mata
é então o universo apossado pelos espíritos, em que os índios têm acesso
após uma espécie de negociação com eles, tanto para orientação das plantas
como pelo modo respeitoso de pedir permissão para usar as plantas, o que
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Essa Terra É Minha
evidencia o modelo Território-Natureza-Toré-Espíritos. No relato das formas
de preparação dos remédios há muitas que são semelhantes aos dos demais
entrevistados, ou seja, os lambedores, banhos e chás. Mas há também outras maneiras que são exclusivas de D. Maíra, como está anotado:
“... ela tem relatos de cura, e que em cada caso há uma orientação, havendo
situações em que ela mesma não conhece as plantas que vai utilizar segundo suas declarações.
Há também situações em que ela não quis relatar a forma de preparo das
plantas porque incluem rituais que são segredos para os brancos. Nesses
casos não insisti para ela me contar os segredos. Aliás, em muitos casos que
ela trata os doentes, esses não podem saber o que estão ingerindo, o que é
mais uma forma de segredo e de ritualização dos tratamentos fitoterápicos
que ela ministra” (STORNI, diário de campo).
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Ficou claro que há plantas de uso freqüente em doenças comuns e
pouco graves, e, há remédios de plantas para doenças difíceis, que são
acompanhadas por rituais mais longos e complexos. Há doenças que também são tratadas em hospitais de João Pessoa ou nos Postos de Saúde
Indígena – PSI/FUNASA – Fundação Nacional da Saúde, ou ainda no PSF
– Programa de Saúde da Família da Prefeitura de Baía da Traição. Esses
serviços complementam os tratamentos fitoterápicos, que são reforçados
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pelos poderes simbólicos espirituais dos rituais.
Segundo D. Bali, a esposa de um dos caciques, as plantas como a mescla,
a jurema e o alecrim são consideradas como portadoras de poder sagrado
sendo usadas nos rituais de Toré, celebrações de pedidos de proteção das
suas necessidades mais importantes, especialmente os de defesa nos litígios
com os invasores não índios no seu território. Segundo uma índia entrevistada, essas plantas são usadas em defumadores que lhes permite entrar em
contato com os seus espíritos ancestrais, especialmente nos terreiros cujos
rituais coletivos permitem a presença dos não índios. A fumaça viabiliza o
afastamento das coisas ruins e atrai os espíritos que são incorporados por
alguns índios mais velhos e preparados para esta importante missão.
Há aquelas plantas utilizadas nos rituais individuais das rezas das benzedeiras Potiguara, como a arruda, o pião roxo e a mangerioba, além da indicação do uso de outras plantas para as curas de problemas espirituais como
o “mau-olhado” e o “ramo”, que são causados por pessoas com energias
negativas, especialmente os não-índios e/ou os que têm inveja. Há também
as plantas sagradas como o alecrim e a arruda, utilizadas nos Torés mais íntimos, só de índios dos grupos de vizinhança, que são celebrados nas ocas
que se localizam no meio das matas. Barcellos (2005, p. 57) relata a importância do Toré na fraternidade desses índios no decorrer da retomada de
uma gleba de terra invadida por uma usina vizinha dos Potiguara:
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Durante a retomada, todo dia era dançado o Toré. Foi difícil de se conseguir o alimento material, porém o alimento espiritual, corporificado no Toré,
era a fonte que sustentava a luta, aquecia o frio, fortalecia os fracos, unia e
reunia os índios das várias aldeias e transformou-se em oxigênio vital por
ocasião de tiros disparados na noite pelos capangas da usina, numa tentativa de amedrontar e espalhar o grupo. O centro do acampamento tornou-se
foco de resistência, tendo o Toré como símbolo de etnicidade, de fortaleza,
de partilha e de referencial sagrado de um povo que tem na espiritualidade
o combustível para lutar por seus direitos e evidenciar a vida. Passados dois
anos, no início de agosto de 2005, centenas de pessoas vindas de todas
as aldeias que participaram da retomada estavam reunidas para celebrar a
conquista, a vitória e a vida da transformação realizada na monocultura do
canavial árido, em terra fértil, com uma pluralidade de culturas frutíferas,
nativas e de subsistência, numa área com mais de 400 hectares de terra
plantados.
Mais adiante este autor complementa:
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A Aldeia Três Rios, hoje com 55 casas construídas e 36 famílias já residindo,
é uma nova página da história de um povo que luta para ver regularizado
o fornecimento de energia, o abastecimento d’água e a construção de banheiros, enfim, que quer ver seus direitos constitucionais garantidos, embora não admitidos por órgãos competentes como a FUNAI e a Fundação Nacional de Saúde (FUNASA). O Vice-Cacique, Josesí, assim se expressa a esse
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Essa Terra É Minha
respeito: “hoje nós estamos formando a aldeia, mostrando para o povo, o
pessoal que passa vê e antes nós não tinha isso. Pra mim isso é uma vitória.
Toda festividade teve na partilha o seu principal oxigênio. Os índios da
aldeia, os não-índios e diversos parceiros que apóiam a retomada [da terra] contribuíram para a grande festa de ação de graças, que teve em Lena,
esposa do Cacique Bel, com mais um mutirão de pessoas, a condução na
preparação e distribuição de uma grande quantidade de comida, da qual
todos se serviram” (Aldeia Três Rios, ago. 2005, grifos nossos).
Ficou evidente que a terra mobilizou os Potiguara nesta ação coletiva de
defesa do território, que também é de preservação grupal-coletiva-familiar
desta população. A ameaça externa congregou os índios de hoje com os ancestrais invocados no Toré e até os não-índios que os apoiaram para partilharem da retomada da terra invadida. Este patrimônio espiritual se reproduz
no território material que realimenta o grupo que, mesmo fragmentado se
torna unificado na convocação da manutenção dos que se sentem pertencentes a uma só identidade étnica, a Potiguara.
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Conclusão
Nesses dados ficou evidenciada a importância da terra para os índios
Potiguara, que pertence à categoria do sagrado no seu mais amplo sentido.
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A espiritualidade deste grupo étnico é então materializada pela terra que
abriga os ancestrais e os saberes que seus descendentes herdaram sobre as
plantas e seus usos para curas de todos os males. Englobam desde problemas de saúde individual até as questões sociais de manutenção e reprodução do grupo, o que inclui especialmente autodefesa coletiva às ameaças de
invasão externa das terras. No entanto, os saberes sobre as plantas não são
homogeneizados, já que há outros vindos de fora e que intervêm na vida
dos Potiguara, como os da Fundação Nacional de Saúde – FUNASA – e dos
Postos de Saúde Indígena – PSI.
Ao buscarem as plantas alguns detentores desses saberes buscam os espíritos da natureza que fazem parte do território Potiguara, tanto em termos
de tempo – passado, presente e futuro – da reprodução simbólica e material
da identidade do grupo, quanto em termos de vinculação horizontal dos habitantes entre si, que só existe por causa do locus territorial. A terra Potiguara só existe porque o grupo e todos que compartilham da sua identidade
a ocupam. É uma questão de pertença e compartilhamento do simbolismo
sagrado, que é mais do que geográfico e físico.
Há inúmeras influências religiosas que coexistem neste universo. Há até
os índios que renegam o poder do sagrado ancestral por causa da presença
de grupos evangélicos que abominam essas idéias e práticas, embora que
eles se sintam também parte da comunidade tradicional, por mais que esse
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fenômeno seja paradoxal. Em suma, o confronto interno de interesses entre
os Potiguara é uma séria ameaça interna da quebra da unidade comunitária
desses índios. Mas, além das questões religiosas há os interesses econômicos que também são conflitantes: algumas famílias Potiguara estão mais
preocupadas em se inserirem no mundo dos brancos do que cultivarem suas
tradições. Na verdade, esta variação de interesses se deve ao alto grau de
miscigenação étnica dos Potiguara como um todo.
A população Potiguara vem aumentando, as aldeias novas vão surgindo, as necessidades do mundo capitalista que existem em volta das aldeias
pressionam essa população, e nem todos conseguem se manter na mesma
intensidade das tradições ancestrais. Mas, quando as ameaças externas, especialmente as de invasão do território surgem, a unidade ameaçada volta
com força aumentada pelas plantas mágicas que são utilizadas para reforçar
a concentração do poder dos espíritos invocados nos Torés.
Nestes momentos muitos índios que se dizem evangélicos, como S. Marcelino, o cacique da aldeia Akajutibiró, lembram-se e valorizam os velhos
saberes e a magia das plantas que existem nessas terras e que são consideradas por eles como sagradas. Nesse contexto os rituais do Toré celebram a
fraternidade gerada pela identidade étnica Potiguara.
Em outras palavras, mesmo com todas estas mesclas culturais os Torés
sedimentam e têm o poder de colar as fragmentações internas da identi-
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Essa Terra É Minha
dade étnica irmanada dos membros desse grupo, que se unem contra as
ameaças externas. É nesses momentos que eles se sentem como parentes da
mesma família, ou seja, estes grupos que compõem os Potiguara podem até
ser diversificados em vários aspectos, mas, a terra e a irmandade identitária
que os congrega no Toré compõem um só elemento, uma só fraternidade
essencial.
Referências
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Essa Terra É Minha
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Sumário
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Essa Terra É Minha
UFPB/CCS/DEP. DE FISIOLOGIA E PATOLOGIA. Relatório final do Projeto:1-012/04 Resgatando o Saber Indígena em Plantas Medicinais. Edital 001/04-FAPESQ/MS/
CNPq, Coordenadora do Projeto: Profª. Dra. Fernanda Burle de Aguiar (Dep. de Fisiologia e Patologia), Equipe técnica: Profª. Dra. Maria Otília Telles Storni, antropóloga (UFPB),
Profª. Dra. Maria da Salete Horácio da Silva (CEDESPS/Pb), Ms. Janaína Silva Lessa Ferreira (FUNASA), Ms. Maria Angélica Ramos da Silva - CEDESPS/Pb, Ms. Jackeline Gomes
da Silva (CEDESPS/Pb), Profª. Dra. Rinalda Araújo Guerra de Oliveira (UFPB), Profª. Dra.
Maria Regina de Freitas (UFPB), Profª. Dra. Rita Baltazar de Lima (UFPB), Profª. Dr. Carlos
Alberto Beltrão de Miranda (UFPB), julho de 2008.
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A RELIGIÃO, A MÍDIA E O SEGREDO DO SAGRADO
Maria Otilia Telles Storni9
Miguel Pereira Da Silva10
Introdução
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Nesse trabalho pretende-se apresentar primeiramente o conceito de sagrado e da experiência religiosa no seu sentido lato, ou seja, o Mistério que
contém o segredo do sagrado. Também daremos visibilidade aos teóricos
que mostram a religiosidade como produto midiático que é consumido por
fiéis-telespectadores. Partimos das idéias de Weber (2006, p. 17): O ascetismo cristão, que de início se retirara do mundo para solidão, já tinha regrado
o mundo ao qual renunciara a partir do mosteiro e por meio da Igreja. Mas,
no geral, tinha deixado intacto o caráter natural espontâneo da vida laica no
9 Maria Otilia Telles Storni é mestra em Antropologia Social e doutora em Ciências Sociais com habilitação em Antropologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Exerce a função de professora do Departamento de
Ciências Sociais/CCHLA da Universidade Federal da Paraíba - UFPB.
10 Miguel Pereira da Silva é mestre em Ciências das Religiões – PPGCR/UFPB - e doutor em Sociologia pela Universidade Federal de Sergipe – UFS - e já foi orientando da primeira autora no PPGCR.
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mundo. Agora avançava para o mercado da vida [...].
Ao final ressaltaremos a redução do sagrado e da experiência espiritual
das mensagens religiosas que são transfiguradas como produto de consumo, numa espécie de misticismo de resultados, ou seja, o misticismo praticado com vistas a resultados imediatos de graças alcançadas após a “doação de dízimos” como se fizesse parte de um sistema de trocas mercantis. É
nesse contexto consumista que se encontram as trocas de ofertas materiais
por bênçãos ou soluções pedidas pelos fiéis, especialmente no cenário das
práticas religiosas dos programas exibidos pelos meios de comunicação televisivos.
Reflexões sobre o conceito do sagrado: a autocomunicação de Deus
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Sören Kierkegaard (1984, p. 195) explica o sagrado com a seguinte afirmação: O homem é uma síntese de infinito e de finito, de temporal e de eterno, de liberdade e de necessidade [...] Nada que é finito, nem mesmo o mundo
inteiro, pode satisfazer a alma humana que sente necessidade do Eterno. Na
necessidade do Eterno, o sagrado reside na essência do homem, pois, sendo
este um ser que subsiste na ordem do espírito, sua busca pela verdade ultrapassa a realidade perceptível conduzindo-o à subjetividade.
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Por outro lado Galimberti (2003) assevera que a subjetividade revela que
o homem não é um ser auto-suficiente, sua auto-realização depende do seu
relacionamento com o Eterno, e uma vez que ele não consegue relacionar-se
com o Ser Supremo, queda-se no desespero. “Sagrado” é uma palavra indo-européia que significa separado, e sua expressão independe de uma condição espiritual ou moral, por ser inerente ao que tem relação com potências
superiores (dimensão divina) que estão além do domínio do homem.
O reino do sagrado não se concilia com razão e a moral humana em sua
totalidade, pois, mesmo não pertencendo somente ao mundo sobrenatural,
relaciona-se com a natureza e à cultura em suas dimensões alheias, e, por
conseguinte, relaciona-se aos instintos, pulsões, paixões e às doenças, de
onde se originaram as primeiras reflexões de Freud. O segredo do sagrado
é o Mistério que se revela e está além das razões humanas. Por mais que a
ciência e a técnica busquem explicar a existência humana e sua auto-comunicação com o Divino, impondo-lhe uma razão esvaziada do “sagrado”, não
consegue destituí-la dos vestígios do sagrado, que é imanente ao seu ser.
Os avanços tecnocientíficos da modernidade são desafiados pela presença das forças anímicas que regem o universo do homem, numa sociedade
dessacralizada, conduzindo-o à cosmogonização11 do mundo “desencanta11 Cosmologia (do grego κοσμογονία; κόσμος “universo” e -γονία “nascimento”) é o termo que abrange todas as teorias sobre origem do universo, de acordo com religiões, mitologias e ciêntificas através da história. Segundo Mircea
Eliade (2001, p.33), o momento “cosmogônico” funda o mundo a partir da revelação do sagrado. Cosmogonização é
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Essa Terra É Minha
do”. Conforme, afirma Eliade (2001, p. 26): (...) seja qual for o grau de dessacralização do mundo a que tenha chegado, o homem que optou por uma vida
profana (racionalizada) e não consegue abolir completamente o comportamento religioso (...) até a existência mais dessacralizada conserva ainda traços
de uma valorização religiosa do mundo.
Quando entrevistado por Claude Henri-Rocquet, Eliade (2001) completou sua análise autobiográfica quando aquele lhe perguntou: Afinal, o que
entende por sagrado? Na resposta de Eliade constata-se que o sagrado se
constitui na expressão da relação constitutiva da consciência humana com o
mundo que a envolve, como se pode perceber a seguir:
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Como delimitar o sagrado? É muito difícil. O que me parece inteiramente
impossível, em todo o caso, é imaginar como o espírito humano poderia
funcionar sem convicção de que existe qualquer coisa de irredutivelmente
irreal no mundo. É impossível imaginar como a consciência poderia aparecer sem conferir uma significação aos impulsos e às experiências do homem. A consciência de um mundo real e significativo está intimamente
ligada à descoberta do sagrado. Pela experiência do sagrado, o espírito
apreendeu entre o que se revela como real, poderoso, rico e significativo, e
a busca da sacralização do mundo racionalizado na modernidade, ou seja, a busca da abertura para o transcendente
que só o momento “cosmogônico”, pode proporcionar (ELIADE, 2001, p. 36).
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Essa Terra É Minha
o que é desprovido dessas qualidades, a saber, o fluxo caótico e perigoso
das coisas, as suas aparições e os seus desaparecimentos fortuitos e vazios
de sentido. Mas é preciso insistir sobre esse ponto: o sagrado não é um
estádio na história da consciência, é um elemento na estrutura dessa consciência. Nos graus mais arcaicos de cultura, viver enquanto ser humano é,
em si, um ato religioso, pois a alimentação, a vida sexual e o trabalho têm
um valor sacramental. A experiência do sagrado é inerente ao modo de ser
do homem no mundo. Sem a experiência do que é real – e do que não é -,
o ser não saberia construir-se [...] O sagrado não implica a crença em Deus,
nos deuses ou em espíritos. É, repito-o, a experiência de uma realidade e a
fonte da consciência de se existir no mundo (CORREIA, 2005, p. 5).
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A consciência é o próprio enraizamento da noção do sagrado no interior de um mundo que a transcende. O sagrado é a “experiência da realidade” que se oferece ao homem quando se descobre como ser no mundo. O
mundo moderno, com todo aparato técnico e científico conduz o homem a
indagar-se cada vez mais sobre a essência do seu ser, desencantado, frente
à instrumentalização da razão. Franz Brüseke (2005, p. 16), ao abordar o sagrado na tecnicidade moderna, ressalta:
A técnica moderna coloca o homem em contato com o mundo que faz com
que os Deuses fujam. Os Deuses não estão somente mortos, eles foram,
segundo a metáfora de Heidegger, afugentados pelo homem moderno. Ou
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Essa Terra É Minha
para lembrar Nietzsche: “Gott is tot. Und wir haben ihn getõtet!” (Deus está
morto e nós o matamos). As duas metáforas, a primeira da fuga dos Deuses
e a segunda que nos acusa do assassinato de Deus, correspondem aquilo
que Weber expressa, de forma menos dramática, na sua tese do desencantamento (Entzauberung) do mundo. Este desencantamento é resultado
imediato do processo de racionalização e intelectualização, sem o qual a
ciência moderna não teria surgido.
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Como decifrar as metáforas de Nietzsche e o pensamento de Heidegger
citados no texto de Brüseke (2005)? Conforme Weber (1991a), estaria realmente o mundo desencantado? Outras reflexões são induzidas, a partir dessas “provocações”. Não há a pretensão de refutar essas questões, o que nos
força a pensar sobre a resistência das divindades e a sacralização do mundo,
“embriagado” pelo progresso científico e tecnológico contemporâneo.
Aqui questionamos: Por que o desenvolvimento tecnocientífico não consegue unificar a compreensão do mundo, despida de imaginários e controlada racionalmente? Só assim, a luta pelo desencantamento do mundo e o
genocídio dos deuses se completariam. Franz Brüseke (2000) assinala que,
por mais que o homem domine a ciência e a técnica e acene para o fim da
religião mediante a “morte de Deus”, há nele um princípio ôntico conceitual,
que faz ressuscitar o “Deus morto” racionalizado e perpetuar as experiências
“irracionais” da religiosidade:
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Essa Terra É Minha
A impressionante habilidade que o homem ganhou quando começava aplicar os conhecimentos científicos no campo do trabalho, e o imenso crescimento dos seus conhecimentos na exploração do mundo, contribuíram
para o esquecimento gradual, mas progressivo das irracionalidades que
fundamentam e envolvem o seu fazer. Parece oportuno lembrar daquilo
que não está no alcance de nossas mãos e de nossos cálculos racionalizantes. Lembrar-se é somente possível quando ainda têm vestígios na nossa
alma daquilo que esquecemos. Um desses vestígios é um conceito que
ainda está presente no pensamento contemporâneo e que nos diz ainda
“alguma coisa”, apesar da decadência dos grandes sistemas religiosos; é o
conceito do sagrado (BRÜSEKE, 2000, p. 1)
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Pode-se relacionar a luta pelo desencantamento do mundo e o genocídio dos deuses com o “caos” mundano, de um universo descosmogonizado,
onde se sacraliza o homem e sacrificam-se os deuses. O “Caos” que envolve
o mundo desperta no homem as sensações de impotência e nulidade, frente de si mesmo como potência em ato. Conforme nos aponta Mircea Eliade
(2001, pp. 36-170) O homem completamente racional é uma abstração; jamais o encontramos na realidade [...] não se pode viver sem uma “abertura”
para o transcendente; em outras palavras, não se pode viver no ‘Caos’. Uma
vez perdido contato com transcendente, a existência no mundo já não é
possível.
A transcendência estabelecida mediante o contato com o sagrado (e com
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o segredo, o Mistério), permite ao homem a superar o “caos” produzido pela
dessacralização do mundo, pois, o ‘Caos’ que envolve seu mundo habitado
corresponde ao seu terror diante do nada. [...] Se porventura, o homem se perde no interior dele, sente-se esvaziado de sua substância “ôntica”, como se, se
dissolvesse no Caos, e acaba por extinguir-se (ELIADE, 2001, p. 60). O ser no
mundo e o mundo no ser. Essa complementaridade ontológica estabelece a
relação primordial com o sagrado, pois, causa na homogeneidade mundana
uma ruptura, distinguindo o sagrado do profano, traço essencial do fenômeno religioso, conforme nos mostra Durkheim (1989).
A maximalização da razão caotifica cada vez mais o mundo do homem,
pois se apropria do sagrado, esvaziando-o de sua mística, transferindo a dimensão transcendental, para a teoria do progresso, fazendo com que sobreviva a soteriologia12 da história da salvação na mais radical dessacralização
escatológica13 cristã, apresentando a ciência como redenção e o progresso
como salvação. Isso não desestrutura a sede do homem desencantado de
pedir explicações a Deus sobre a realidade caótica de sofrimentos ambivalentes entre o bem o mal, e sua distinção que orienta sua conduta no mundo
dessacralizado. Há uma incomensurabilidade existente entre o homem que
“pede explicação” e Deus que está “alem de todas as razões”. E sua respos12 Soteriologia – estudo das verdades Divinas reveladas aos homens sobre a salvação das almas – é a chamada Economia da Salvação.
13 Escatologia - doutrina revelada sobre o destino do homem, da Igreja e do mundo.
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ta anula qualquer especulação racional sem deixar dúvidas, como explica a
Bíblia Sagrada:
Onde estavas, quando lancei os fundamentos da terra? Dizei-me se é que
sabes tanto. Quem lhe fixou as dimensões – se o sabes -, ou quem estendeu sobre ela a régua? Onde se encaixam suas bases, ou quem assentou
sua pedra angular, entre as aclamações dos astros da manhã e o aplauso de
todos os filhos de Deus? Quem fechou com portas o mar, quando irrompeu
jorrando do seio materno; quando lhe deu nuvens como vestidos e espessas névoas como cueiros; quando lhe impus os limites e lhe firmei porta
e ferrolho. [...] Entrastes pelas fontes do mar ou passeaste pelo fundo do
abismo? Foram-te indicadas às portas da morte, ou vistes os porteiros da
terra da sombra? Examinaste a extensão da terra? Conta-me, se sabes tudo
isso! (C.f Jó 38, 4-18).
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A resposta de Deus a Jó nos põe diante da experimentação do Mistério
que se revela com sua majestas (majestade) e que nos faz exclamar como o
profeta: Tu me seduziste, Senhor, e eu me deixei seduzir. Foste mais forte que
eu e me venceste! (Jr 20,7). E, ao mesmo tempo, reveste o ser humano de
uma transcendência, por meio da experiência do numen (que segundo Otto
(1992) é a experiência irracional da fé), e que provoca uma reação emocional
no plano da experiência vivida, desencadeando uma espécie de aniquilamento do ser, ou de percepção da pura existência em si, frente ao Mistério.
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Nesse momento, todos os sentimentos que correspondem ao numinoso nos
põem diante do misterium tremendum et fascinans, que provoca ao mesmo
tempo terror e fascinação (OTTO, 1992).
Mas, esse mistério, com suas práticas, envolvimentos, encantamentos e riqueza simbólica causados pelo sagrado no seu sentido lato, tem
passado por mudanças históricas que acompanham as transformações
sócio-econômicas, políticas e culturais do mundo ocidental. A migração
do ascetismo14 para vida laica mundana aproxima de certa forma, os dois
mundos: o sagrado e o profano. Causa, ao mesmo tempo, a perda e a busca de sentidos, colocando o homem moderno frente de si, como potência
em ato, por meio da racionalização que tende a esvaziar o sagrado, que é
irracional e emocional. É nesse processo que assistimos à transformação
do sagrado em produto de consumo, quando a espiritualidade irracional
passa para o terreno do racional.
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14 Ascetismo vem de ascese, elevação para Deus. Segundo Ferreira (1999), ascese refere-se ao exercício prático
que leva à efetiva realização da virtude, à plenitude da vida moral. Ascetismo também se relaciona com a prática da
ascese e é a doutrina que considera a ascese como o essencial da vida moral; É ainda a moral que desvaloriza os
aspectos corpóreos e sensíveis do homem.
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A transformação da religião e do sagrado em produtos de consumo
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O primeiro passo para a transformação do sagrado em produto de consumo foi através da massificação da religiosidade, e esta vem ocorrendo
desde a chegada de Jesus Cristo ao mundo. Vejamos como isso ocorreu
através de uma sintetização dos dados da Bíblia Sagrada, que é o livro de
ensinamentos cristão mais conhecido do mundo. Logo após a descoberta
dos primeiros milagres de Jesus, as pregações cristãs foram se multiplicando
através dos apóstolos que O acompanharam em vida. Essas preleções foram
acompanhadas de multidões encantadas com os poderes das mensagens
fraternas e amorosas, num mundo cheio de pobrezas, catástrofes climáticas,
preconceitos, discriminações entre os povos, perseguições, sofrimentos, imperialismos e escravização de um povo por outros. Note-se que a presença
das multidões nas pregações de Jesus é o primeiro sinal da massificação dos
ensinamentos cristãos.
Como a Bíblia relata no início o cristianismo foi proibido e seus seguidores perseguidos. A fé praticada nas catacumbas, que eram subterrâneos
que abrigavam os fiéis que se escondiam, deixou de ser proibida quando o
Imperador Constantino resolveu então aceitar a fé cristã. A partir de então as
idéias cristãs se espalharam pelo mundo e pelos séculos afora. Hoje é a filosofia religiosa que possui o maior número de fiéis no mundo, apesar de sua
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constante fragmentação em novos grupos e denominações. Seus dogmas,
valores e filosofias foram cristalizadas em livros sagrados como as diversas
versões da Bíblia Sagrada, os textos judaicos, os livros islâmicos e outros.
A ocorrência de idéias e dogmas semelhantes, que foram espalhados pelo
mundo evidenciou o processo de massificação do cristianismo, ainda no final da Idade Média e início da Modernidade (CANCLÍNI, 1997).
Segundo Weber (2006), o fortalecimento do espírito capitalista no mundo foi instigado pela ética protestante e isso trouxe conseqüências contraditórias. Por um lado houve a valorização do enriquecimento e sua cultura
material, pois, para os protestantes a riqueza devia ser usada como forma de
louvar a Deus. Por outro lado, a cultura do consumo veio surgindo aos poucos através das festas religiosas – Natal, Páscoa e outras -, como as comemorações, o hábito de dar presentes, o bem vestir para ir à Igreja, os enfeites
das festas religiosas, etc.
De acordo com esse autor, no início do cristianismo os bens materiais e
o enriquecimento eram execrados, o lucro era considerado como usura, ou
seja, um pecado que tinha o significado equivalente a roubo. A sobriedade
era uma virtude tão importante quanto à castidade e honestidade e vários
líderes cristãos faziam voto de pobreza reforçando o desprezo pelo enriquecimento. Por sua vez, os protestantes deveriam enriquecer materialmente
para a glória do Senhor, e esse aparente paradoxo contribuiu para os novos
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grupos religiosos aceitarem sua inserção nas relações sociais que envolviam
a produção, mercantilização e acumulação de lucros.
Vale lembrar que, segundo Weber (2006), a cisão entre os católicos e
protestantes se deu justamente pela decepção desses últimos com relação
à contradição da Igreja Católica, que pregava a sobriedade e ascetismo, por
um lado, e por outro, cobrava taxas e acumulava bens através de articulações
com os reis e governantes poderosos. Enfim, as religiões cristãs – católicas,
protestantes e outras que reverenciam a Bíblia Sagrada - alcançaram o início
do século XX abrigadas em templos, muitos deles suntuosos, e com uma estrutura de arrecadação monetária que lhes permitia manter patrimônios que
podem ser classificados, no mínimo, como auto-sustentáveis. Já o Vaticano,
que é um Estado como outro qualquer, tem suas pompas financiadas pelos
lucros dos seus investimentos como requer uma estrutura estatal capitalista.
Nesse período do surgimento da ética protestante havia também os novos hábitos urbanos que, por motivos óbvios, estimulavam o movimento
fabril e comercial de alimentos, roupas, máquinas, o que por muito tempo
foram produzidos artesanalmente. Enfim, o ato de consumir se tornou também uma necessidade de sobrevivência do mundo capitalista enquanto sistema de circulação de mercadorias e respectivos lucros.
Assim, surgiram novas necessidades que atingiram diretamente os indivíduos, pois, são eles que passam a ter, além delas, poder aquisitivo, vontades,
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desejos e poder de decisão para consumirem. O prazer e as ilusões do hedonismo – viver para ter prazer – passam, no século XX, a ser supervalorizados,
o que fez esmaecer a força dos valores religiosos que pregavam sobriedade,
mesmo que a ordem fosse o enriquecimento material “para a glória do Senhor”. Cabe aqui invocar alguns autores como Baudrillard (2000, p. 206) para
nos dizer o que é consumo:
O consumo não é nem uma prática material, nem uma fenomenologia da
‘abundância’, não se define nem pelo alimento que se digere, nem pelo
vestuário que se veste, nem pelo carro que se usa, nem pela substância
oral e visual das imagens e mensagens, mas pela organização de tudo isto
em substância significante; é ele a totalidade virtual de todos os objetos e
mensagens constituídos de agora então em um discurso cada vez mais coerente. O consumo, pelo fato de possuir um sentido, é uma atividade
de manipulação sistemática de signos (Grifos do autor).
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Como se pode ver, antes de ser uma prática material, o consumo é simbólico, pois, é através da incorporação de novos signos que as pessoas passam a ter interesses e desejos que antecedem as decisões das compras.
Baudrillard (2000, p. 207) explica melhor: Para tornar-se objeto de consumo
é preciso que o objeto se torne signo. Ou seja, os objetos precisam se tornar conhecidos incorporando significados e símbolos para serem desejados
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e consumidos. Segundo Canclíni (1995), o consumo é uma prática que nos
distingue dos demais em nossa sociedade. Por exemplo, comprar objetos
e pendurá-los ou distribuí-los pela casa, significa assinalar-lhes um lugar e
uma ordem social: Consumir é tornar mais inteligível um mundo onde o sólido se evapora. Por isso, além de serem úteis para a expansão do mercado e
a reprodução da força de trabalho, para nos distinguirmos dos demais e nos
comunicarmos com eles, como afirmam Douglas e Isherwood, ‘as mercadorias servem para pensar’. (CANCLÍNI, 1995, p. 59).
Esse autor mostra que o fato das mercadorias se tornarem objeto de reflexões, desejos e prazeres está em confronto com a idéia que relaciona consumo à alienação, como apontaram os autores críticos de origem marxista,
como os filósofos da Escola de Frankfurt. Canclíni (1995) evidenciou também
que, através do consumo podemos pensar o mundo à nossa volta, além de
podermos pensar em nós mesmos. Por outro lado, o estímulo insistente do
consumo, apontado por Baudrillard (2000), pode gerar prazer, mas, também
incertezas e insatisfações, ou seja, as compras precisam ser um motivo para
a ordenação e não para a desordem no nosso mundo. Neste aspecto, o consumo religioso contribui para a neutralização das incertezas causadas pelo
excesso de significados produzidos pela modernidade – o que Baudrillard
(2000) chama de estetização.
Featherstone (1995) e outros autores mostram que, após o distanciamen-
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to das práticas religiosas tradicionais, a tendência nas sociedades ocidentais
modernas foi da religião se transformar numa atividade indicada para momentos de lazer, que são adquiridos no mercado. Podemos, pois, delinear
uma definição mais ampla de cultura religiosa, que localizará não apenas as
instituições e movimentos espirituais, mas também os processos e práticas
sociais que criam e recriam símbolos sagrados.
É necessário, portanto, questionar as abordagens que interpretam o consumo como derivado da produção capitalista e exploradora das classes dominadas, porque elas procuram depreciá-lo enquanto massificador e veiculador das ideologias dominantes desse sistema. Ao contrário, precisamos
reconhecer que, embora o consumismo resulte numa inflação de quantidades de bens em circulação, é um processo dialético que pode causar ou não
a alienação, e, principalmente, não resulta num eclipse geral do sagrado,
como reitera Featherstone (1995). É neste ponto que nos confrontamos com
os modelos frankfurtianos, que são pessimistas porque rejeitam de modo
radical e maniqueista os produtos das indústrias culturais. Estes, pelo fato de
gerarem processos de consumo, são considerados por esses filósofos como
alienantes, ou seja, distorcedores da percepção da realidade dos consumidores.
Atualmente muitos cientistas sociais têm se dedicado ao estudo da religião no Brasil e encontram-se diante de um desafiante cenário religioso,
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que tem sido marcado por um notável aumento da competição entre organizações religiosas pela preferência dos fiéis. Segundo Guerra (1999), a atual
conjuntura religiosa nacional do Brasil apresenta características marcantes
da crescente concorrência pelos fiéis, o que produz transformações organizacionais das várias igrejas que entraram no sistema capitalista de mercado.
Estas instituições assim reestruturadas, por sua vez, produzem reflexos significativos em termos de seus discursos e práticas rituais no sentido de atrair
fiéis-consumidores.
Esses discursos e práticas, para Guerra (1999), são gerados por igrejas,
seitas e outras formas de religiosidade em geral, com itens de consumo
oferecidos aos indivíduos no mercado, de maneira semelhante à dos outros
bens simbólicos, tais como moda, entretenimento, estilo de vida e identidade cultural, entre outros. Isso significa dizer que a força da tradição sobre a
opção religiosa do indivíduo vem diminuindo gradualmente e, em lugar dela
vêm se utilizando categorias discursivas tais como oferta e procura de bens
religiosos. A venda de indulgências, bênçãos, objetos sacralizados, amuletos,
imagens, souvenires e outros é uma prática religiosa antiga. A novidade é a
intensificação dessas trocas em nome da religiosidade, que foi transformada
em um produto dentro do mercado capitalista moderno.
No que se refere ao Brasil alguns autores têm escrito a respeito das transformações da esfera religiosa e o mercado. Prandi (1996), por exemplo, ana-
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lisa a individualização da religiosidade como uma conseqüência da secularização e sua transformação em item para o consumo em lugar da força da
tradição católica e pentecostal. Ele afirma que: ...a religião foi passando pouco a pouco para o território do indivíduo. E deste para o do consumo, onde
se vê agora obrigada a seguir as regras do mercado (PRANDI, 1996; 260).
A recente explosão das denominações neopentecostais no Brasil tem
chamado à atenção dos estudiosos dessa temática. Nelas surge à teologia
da prosperidade, como apontam Prandi (1996, p. 258), ao se referir às igrejas
que se multiplicam como empresas, num autêntico sistema de “franquias”
religiosas. Segundo esse autor, algumas denominações existem há menos
de vinte anos e já se tornaram impérios em nível nacional e internacional.
Segundo esse autor, seus pastores são empreendedores que possuem
baixa ou nula formação teológica, mas, devem demonstrar grande capacidade de atrair público e gerar dividendos para a igreja, de acordo com um
know-how administrado empresarialmente pelos seus bispos como um negócio lucrativo. Eles são treinados para serem “agressivos” na propaganda,
já que a expansão desse mercado depende muito do estilo da oferta, de seu
marketing e de seu discurso, que se concentram nas promessas de prosperidade, abundância, fartura, emprego, saúde, felicidade conjugal-familiar e
enfim, na superação das angústias existenciais e problemas pessoais.
Um dos aspectos mais importantes citados por esse autor está em um de
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seus subtítulos: A religião pela qual se paga (PRANDI, 1996, p. 266). O ato de
pagar pela religião, segundo ele, é uma experiência muito recente no Brasil.
Na tradição católica há e sempre houve doações, esmolas e contribuições
dos mais aquinhoados às suas paróquia, mas, nunca tiveram o caráter da
obrigatoriedade. É no neopentecostalismo que se colocou mais claramente
a questão do pagamento obrigatório da religião e da expansão religiosa financiada por todos os seus adeptos: Não sabemos quanto de fato se paga,
quanto além do dízimo, que já é algo muito excepcional, na nossa tradição,
mas em muitas igrejas, a maior parte do culto se realiza em torno de expedientes constrangedores de arrecadação de oferta (PRANDI, 1996, p. 269).
Entretanto, é importante ressaltar que não são apenas os neopentecostais
que têm aderido às práticas mercadológicas das trocas religiosas por bens
materiais. Atualmente todas as denominações cristãs, umas de forma mais
explícita, outras menos, têm buscado na espetacularização da fé uma forma
de se fazerem consumidas. É o caso dos programas televisivos voltados para
a exibição das mensagens e imagens de conteúdo religioso pronto para o
consumo, já que é entregue em domicílio. Além desses apelos há sempre os
pedidos de contribuições e doações.
Invocamos Feuerbach citado por Debord (1997, p. 13, grifos do autor)
para nos indicar o que é o espetáculo:
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E sem dúvida o nosso tempo... prefere a imagem à coisa, a cópia ao original,
a representação à realidade, a aparência ao ser...Ele [o consumidor] considera que a ilusão é sagrada, e a verdade é profana. E mais: a seus olhos o
sagrado aumenta à medida em que a verdade decresce e a ilusão cresce, a
tal ponto que, para ele, o cúmulo da ilusão fica sendo o cúmulo do sagrado.
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Como se pode perceber, o espetáculo é uma representação teatral, no
sentido de ilusão, que pode apontar para uma falsa consciência da realidade
– em outras palavras, a alienação -, ou inversão da realidade, de acordo com
esse autor. Debord (1997, p. 15, grifos do autor) lembra que: O espetáculo
que inverte o real é efetivamente um produto. [...] No mundo realmente invertido, a verdade é um momento do que é falso. Nesse ponto permitimo-nos fazer uma crítica da crítica a Debord (1997), tal como a que fizemos aos
frankfurtianos, pois esses autores foram tomados por um pessimismo que
se arrisca ao destrutivismo porque não se sabe ainda, em termos empíricos,
qual é a extensão dessas ilusões para os consumidores.
Mas, nunca é demais lembrar que há espetáculos religiosos massificados,
não só na televisão como em espaços físicos próprios para abrigar multidões,
que são divulgadas e apoiadas pela mídia, os quais comprovam os modelos críticos, especialmente as idéias de religião espetacularizada de Debord
(1997). Recorde-se os inúmeros shows evangélicos de música gospel, ou as
missas-shows dos católicos, onde se explora à exaustão o misticismo de re-
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sultados e a farta vendagens de discos e souvenirs, que são considerados
como “sagrados”.
É com base nesses elementos teóricos que destacamos a mercantilização
consumista através da fé no cenário midiático religioso. Esse contexto de
consumo religioso massificado é marcado pelas relações de troca simbólicas e materiais que permitem a manutenção dos impérios econômico-religiosos. E são essas transações que denotam a redução do sagrado, que se
concretiza através do que chamamos de misticismo de resultados. Ou seja,
a prática religiosa em que se espera resultados imediatos às suas orações e
doações em dinheiro.
Conclusão
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A mídia, com sua lógica técnico-dicursiva, induz aos fiéis-espectadores a
essa fé mítica, instantaneamente mágica e reduzida às necessidades temporais do “aqui e agora”, esvaziando-os da esperança escatológica da fé cristã,
que transcende ao cíclico natural e social da temporalidade da realidade
concreta. As novas expressões de religiosidades espetacularizadas pela mídia massiva televisiva ganham maior visibilidade de impacto, não como sinal
de tempos apocalípticos, mas, como uma nova “agenda” de construção de
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sentidos frente ao fiel-telespectador, que continuamente é esvaziado dos
significados do segredo do sagrado no sentido lato.
Não se pode negar que as práticas religiosas mediatizadas causem uma
ruptura com as práticas das religiões históricas, centradas nos discursos orais/
contactuais comunitários e pautados pelo amor cristão e solidário, pois,
Como se sabe, a televisão é o domínio do visual e do som, lugar da combinação de dois sistemas semiológicos, o da imagem e o da palavra. Dessa
combinação nasce o produto [...] apto a fabricar imaginário para o grande
público [...] como máquina de fabricar ficção [...] em que se articula uma
relação simbólica de contato entre a instância midiática e a instância telespectadora [...] o telespectador que ela procura interessar e emocionar
(CHARAUDEAU, 2006, p. 222-223).
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Mas, segundo Matta (1999 apud NETO, 2004, p. 164) o contexto midiático contribui para criação de uma “comunidade inclusiva” como lugar de
encontro, por meio dos processos de interatividade (STORNI, 2000), o que
também é ressaltado por Jesús Martín-Barbero (1995, p. 75): (...) los médios
de comunicación no son um puro fenómeno comercial, no son so un puro fenómeno de manipulación, son un fenómeno antropológico, son un fenómeno
cultural a través del cual la gente, mucha gente, cada vez más vive la constitución del sentido de su vida.
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O espaço midiático não se restringe apenas à manipulação do imaginário,
mas também como espaço de construção de sentidos. Aqui se pode encontrar tanto o consumo imediatista da troca simbólica de orações e bênçãos
por bens materiais, como também o resgate da fé e religiosidade com maior
profundidade reflexiva, já que o fenômeno midiático é dialético e, por isso
mesmo, paradoxal. Em outras palavras, podem existir tanto os fiéis-clientes
do misticismo de resultados quanto os adeptos de práticas solidárias que repensam as mensagens religiosas com propostas amplas, coletivas e repletas
de sentido de uma nova e sólida agenda de valores solidários. Essa é uma
questão complexa que depende de novas pesquisas e que, por isso, foge ao
âmbito deste artigo.
De qualquer forma, surgem novas comunidades de fiéis massificados pela
linguagem simbólica do ritualismo religioso “mágico-midiático” e hipnótico,
cuja finalidade estratégica é atender o indivíduo nas suas relações sociais,
enfocando suas necessidades do “aqui e agora”, que troca o antigo Bem ético pelo estar individualista, associando salvação e consumo (SODRÉ, 2002a, p.
192). Esse ascetismo midiático produz uma espiritualidade ou misticialidade
de resultados, o que se torna um desafio para Igreja, conforme afirma João
Paulo II (Redemptoris missio, 1990, n. 37c): É um problema complexo, pois essa
cultura nasce menos dos conteúdos do que do próprio fato de existirem novos
modos de comunicar com novas linguagens, novas técnicas, novas atitudes
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psicológicas (RM, n. 37c).
A partir dos temas expostos sobre a religião, a mídia e o sagrado abordados nesse artigo é possível concluir que apesar de todas as mudanças
ocorridas no campo religioso, por meio das lógicas do mercado e consumismo, a religião mantém em parte sua função moralizadora na sociedade, por
definir-se como um sistema de crença, valores e práticas relacionadas ao sagrado, que unem numa mesma comunidade moral todos que a ela aderem
(DURKHEIM, 1989, p. 79). Mas, é forçoso reconhecer, a mídia televisiva
está roubando o segredo do sagrado com o reforço do misticismo de
resultados...
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