TÉCNICA
A estética dos ângulos
Mais do que uma necessidade funcional, a decoração e os acabamentos das peças de
alta-relojoaria são a essência de uma arte pouco conhecida e escondida nos pequenos
detalhes com que se trabalham as arestas de peças milimétricas alojadas no coração do
relógio. São esses segredos desvendados pelas mãos dos artesãos que muitas vezes
U
justificam o elevado preço da alta-relojoaria.
t e x t o Va n d a J o r g e e M i g u e l S e a b r a > f o t o s c e d i d a s p e l a A u d e m a r s P i g u e t
m relógio é um instrumento que
mede o tempo e um produto de
apurada técnica, mas a sua qualidade estética também é determinante no momento da compra. Ao adquirir um
exemplar de alta-relojoaria, o aficionado sabe
que – para além do cuidado aspecto exterior –
está a comprar uma peça dotada de um mecanismo com as mais harmoniosas proporções e
qualidade de execução ímpar. A excelência de
um relógio é determinada pela sua qualidade
técnica intrínseca e pela sua fiabilidade, mas
quando se fala de alta-relojoaria existe sempre
uma vertente incontornável: o nível de acabamento e a estética decorativa do mecanismo,
que fazem com que cada peça envolva uma
quantidade de trabalho muito acima da média.
A convicção de que um relógio complicado
deve ter acabamentos e decoração feitos artesanalmente ganha forma dentro da manufactura
Audemars Piguet. É assim desde os primeiros
tempos e, apesar dos avanços técnicos, os níveis
de perfeição não se adaptam à industrialização.
Os acabamentos permanecem manuais e a deco-
Anglage: Limar à mão as arestas dos diferentes componentes dum
relógio. Idealmente, o ângulo deverá ser de 45º. É sinal distinto das
peças de alta-relojoaria.
ESPIRAL DO TEMPO > 123
Anglage
lhados na máquina, mas os cantos interiores são
responsáveis pela beleza de um mecanismo relo-
a excepção. O trabalho decorativo desses cantos
joeiro. Sublinha o contorno das peças de relojoa-
revela o grau de mestria do trabalho manual que
ria e cria um jogo de efeitos luminosos. Feita à
confere aos mecanismos um carácter único.
mão, a anglage exalta a autenticidade da secular
arte relojoeira.
A enorme diferença entre a mesma peça antes e depois do
processo de anglage.
1
artesão que se preza só se contenta com o melhor
e procura criar efeitos ópticos sem sombras num
processo que requer enorme destreza – algumas
peças exigem 10 horas! A anglage também pode
ser feita à máquina e ter um aspecto relativamente
satisfatório, mas a anglage artesanal é sem dúvida
superior e torna cada peça única.
1
Quina reentrante: quando as
Quina arrendondada: quando o ponto de
Quina saliente: quando as 2 chanfraduras
2 chanfraduras se juntam para o interior.
intersecção de 2 chanfraduras é curvo.
se juntam para o exterior. O ponto de
O ponto de intersecção deve ser nítido
intersecção não deve ser arredondado
formando um ângulo agudo.
mas formar um ângulo vivo.
Requisitos de uma anglage perfeita:
1 A superfície do ângulo deve ser plana (salvo
para um ângulo bercé)
1 A largura do ângulo deve ser sempre constante
e as suas arestas paralelas
1 A qualidade do polimento deve permitir
1
< ESPIRAL DO TEMPO
decorativo, sendo um dos principais elementos
1
124
A grande maioria dos ângulos podem ser traba-
O excepcional trabalho de acabamento no calibre 2889
do turbilhão cronógrafo Jules Audemars.
o máximo de reflexos luminosos
1 O trabalho deve estar limpo e cuidado, mesmo
sob a lupa.
1
Os Segredos da Anglage
A anglage é um tipo de acabamento decorativo
que consiste em suprimir as arestas entre a superfície e os lados, formando um ângulo oblíquo
(bordo chanfrado/chanfradura) que, no final, é
polido. A inclinação do ângulo, regra geral, é de
45º graus. A anglage permite eliminar a aspereza
da fundição que permanece nas arestas após o
acabamento feito na máquina e que, mais do
que uma característica inestética, pode prejudicar o bom funcionamento do movimento mecânico. Além disso, o polimento, sendo essencialmente estético, também limita a corrosão.
A anglage pode ser feita grosseiramente, mas um
A anglage é uma particularidade do acabamento
1
ração personalizada pelas mãos de artesãos, conferindo a cada peça um valor material, artístico e
sentimental.
Um relógio complicado não é necessariamente um relógio topo de gama. Para além da
complexidade e da fiabilidade técnica, é o grau
de acabamento que o projecta para o segmento
da alta-relojoaria. A procura da perfeição faz
com que cada peça tenha o seu tempo próprio
de concepção, sendo cada componente reflexo
de uma pesquisa estética aprofundada.
Nos ateliers da Renaud & Papi, manufactura
vanguardista da Audemars Piguet, as superfícies
de cada peça são renovadas, corrigidas e decoradas por 15 artesãos – sendo um deles o português Francisco da Costa Fugas. Os mais entendidos reconhecem e identificam facilmente a
técnica de execução, mas escapa à grande maioria as operações artesanais feitas com utensílios
primários e tradicionais como as limas, o torno
de polir e a pele de cabrito. Deste trabalho artesanal resultam superfícies polidas, esculpidas,
acetinadas e com o brilho de uma pérola.
Entre as diferentes técnicas, destaca-se a anglage, um trabalho minucioso de polir os ângulos, que acentua o contraste luminoso entre as
arestas e as superfícies de várias peças componentes de um mecanismo de alta relojoaria. Os
ângulos ditos ‘partidos’ tornam, dessa maneira,
as peças menos frágeis aquando das manipulações e o próprio polimento limita a corrosão.
Anglage
Em cima uma peça em bruto; em baixo, a mesma peça, já
depois da anglage em acabamento final.
As peças de relojoaria assumem formas variáveis e apresentam,
regra geral, cantos interiores que dificultam a execução da ‘anglage’.
Na alta-relojoaria, é comum multiplicarem-se os cantos sem serem
realmente necessários. Para lá da questão da funcionalidade, as
formas correspondem a escolhas estéticas personalizadas.
ESPIRAL DO TEMPO > 125
Anglage
1
Os métodos modernos e os mais tradicionais
Actualmente, os ângulos podem ser formados
em acabamentos à máquina, com o polimento
feito quimicamente, mecanicamente ou com
limas especiais. O método é satisfatório para a
produção em série, já que os ângulos são puros e
regulares. Contudo, não pode ser adoptado para
os cantos interiores, que com este método se
tornariam ângulos arredondados. A estampagem
é um método utilizado nas grandes séries que
permite conceber e polir os ângulos; trata-se de
um método industrial que não necessita de
conhecimentos específicos, reduz consideravelmente o tempo de trabalho e é um processo
mais rentável.
Qualquer que seja a forma, as peças são idênticas sem intervenção da mão artística do
artesão. Através dos métodos modernos (que
duram de 10 a 20 minutos), não se conseguem
os efeitos ópticos transcendentes porque não se
obtém uma superfície completamente plana e,
dessa maneira, não se consegue o efeito escurecido desejado.
O diâmetro das brocas é sempre muito importante para conseguir
arestas perfeitas.
126
< ESPIRAL DO TEMPO
Diz-se que a anglage artesanal exige talento...
e muito tempo. Primeiro, tempo para a formação. Os artesãos que se dedicam à anglage
são, nos dias de hoje, raros de encontrar, uma
vez que não existe uma escola de formação para
tão peculiar arte e apenas algumas noções são
ensinadas nas escolas de relojoaria. Para combater a falta de formação, as principais manufacturas procuram dar os ensinamentos necessários
internamente – uma formação nos moldes antigos, de mestre para aluno. Um ano é o tempo
mínimo necessário para transformar um aprendiz num artesão capaz de trabalhar os ângulos,
mas a perfeição só é alcançada ao longo de toda
a carreira. É também preciso tempo para a criação. O processo mais manual de formar os ângu-
Na alta-relojoaria, a peça é polida com um abrasivo fino (pasta de
Pele de cabrito, polidor, pedras e torno/torniquete de polir, são
os instrumentos de trabalho destes artesãos.
diamante) sobre uma placa de zinco e o objectivo consiste em obter
um reflexo luminoso quase perpendicular à face com zonas negras.
los é feito através de limas ou outros instrumentos dotados de superficies abrasivas. É um trabalho extremamente minucioso e que permite eliminar as marcas de fabrico e as manchas inestéticas que podem eventualmente atrapalhar o bom
funcionamento mecânico. Para mais, os jogos de
luz que proporciona sublinham o acabamento
da peça – podendo incluir também flancos acetinados, ébavurage, étirage, brouillage, polimento espelhado ou blocado. A autenticidade da
anglage manual é sobretudo notória nos cantos
interiores e exteriores, já que nenhuma máquina
os consegue trabalhar na perfeição.
O trabalho de anglage à mão necessita de
duas a cinco horas de trabalho e pode ser feito
com o método do brunissoir, com um utensílio,
ou com método da meule de madeira, com rolos
de madeira cobertos de diamantina – onde qualquer deslize da mão pode ser fatal porque a peça
fica inutilizada. Este último método, feito num
torno equipado de um amolador carregado de
diamantina, exige, de facto, grande mestria,
porque a quantidade de matéria original é con-
A anglage é um ofício raro e delicado que põe em
evidência a autenticidade do trabalho artesanal.
Este tipo de acabamento minucioso é, sem sombra de dúvida, o elemento mais determinante na
estética decorativa de um mecanismo.
siderável e qualquer erro é difícil de recuperar. A
vantagem é que um ângulo de qualidade é obtido mais rapidamente, mas o grande inconveniente é que não se consegue alcançar os recortes
interiores. Nesses casos, recorre-se a um instrumento de polir, de preferência no contorno
completo para respeitar a coerência estética. A
anglage mecânica é produtiva e dá um aspecto
limpo e forte, relativamente satisfatório. Mas se
considerarmos que um objecto se deve distinguir pelo acabamento dos pequenos detalhes, a
anglage feita à mão é a escolha óbvia. As ‘imperfeições’ da anglage artesanal são os sinais da autenticidade do trabalho manual e do savoir-faire. Só assim, cada peça pode tornar-se única
e personalizada. ET
ESPIRAL DO TEMPO > 127
Download

A estética dos ângulos