X Encontro Nacional de Educação Matemática Educação Matemática, Cultura e Diversidade Salvador – BA, 7 a 9 de Julho de 2010 A ETNOMATEMÁTICA COMO FATOR DIFERENCIAL NA ALFABETIZAÇÃO CIENTÍFICA COM ARTESÃS E ARTESÃOS DE FILÉ Leonides Silva Gomes de Mello IFAL/UNICSUL [email protected] Resumo: Por meio deste trabalho pretende-se correlacionar a Etnomatemática e a Alfabetização Científica, enfatizando o diferencial que aquela pode representar para a implementação desta, especificamente numa comunidade de artesãos e artesãs de filé, no Estado de Alagoas. Trata-se de uma investigação com abordagem metodológica de natureza qualitativa e etnográfica, realizada junto à comunidade dos artesãos de filé do Bairro do Pontal da Barra, em Maceió, Alagoas. O suporte teórico está baseado nas contribuições de Chassot (2003), D’Ambrosio (2007) e Freire (2009). A pesquisa apontou que, naquela comunidade, conceitos e conhecimentos matemáticos, nem sempre adquiridos em sala de aula, são utilizados no dia a dia dos artesãos, visando preparar para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho. Palavras-chave: Etnomatemática; Alfabetização científica; Cidadania; Cultura. INTRODUÇÃO O trabalho aqui apresentado é parte da pesquisa de Doutorado da autora, na área de Ensino de Ciência e Matemática, atualmente em andamento, com alguns resultados já consistentes aqui relatados. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, de caráter etnográfico, realizada na comunidade de artesãos e artesãs de filé1 do Pontal da Barra, em Maceió, Alagoas. 1 O filé simples consiste em uma rede de nó tecida a mão, semelhante às redes de pescar, enquanto o filé bordado utiliza a rede de nó como suporte para o bordado, o ponto de passagem, que recobre alguns quadros da rede, de acordo com o desenho a ser criado. Anais do X Encontro Nacional de Educação Matemática Comunicação Científica 1 X Encontro Nacional de Educação Matemática Educação Matemática, Cultura e Diversidade Salvador – BA, 7 a 9 de Julho de 2010 Para se traçar um perfil individual e coletivo dos artesãos e artesãs foram realizadas perguntas abertas a 25 (vinte e cinco) artesãos(ãs) de filé da região, cujas respostas, após analisadas, darão suporte para responder à pergunta: como a Etnomatemática pode ser um fator diferencial na alfabetização científica dos artesãos e artesãs de filé do Pontal da Barra, em Alagoas? O objetivo desta pesquisa é fazer uma correlação entre a Etnomatemática e a alfabetização científica, mostrando, de forma precisa, como a matemática praticada no dia a dia por grupos culturais que se identificam por objetivos e tradições comuns (D’AMBROSIO, 2007, p.9 ) pode ajudar na transformação de um conhecimento tácito – confecção do artesanato filé passado de geração a geração – em um conjunto de conhecimentos que não apenas facilita aos homens e às mulheres a fazerem uma leitura do mundo onde vivem, mas também a entenderem a necessidade de transformá-lo, e transformá-lo para melhor (CHASSOT, 2003, p. 38), levando em consideração a cultura e a diversidade impregnadas no Nordeste do Brasil. REFERENCIAL TEÓRICO Segundo D’Ambrosio: Etnomatemática é hoje considerada uma sub-área da História da Matemática e da Educação Matemática. [...] Etnomatemática é a matemática praticada por grupos culturais, tais como comunidades urbanas e rurais, grupos de trabalhadores, classes profissionais, crianças de uma certa faixa etária, sociedades indígenas, e tantos outros grupos que se identificam por objetivos e tradições comuns aos grupos. [...] A etnomatemática é embebida de ética, focalizada na recuperação da dignidade cultural do ser humano. (D’AMBROSIO, 2007, p.9) Ficam bem claros, aqui, a abrangência, o caráter antropológico e o foco político, da Etnomatemática. Anais do X Encontro Nacional de Educação Matemática Comunicação Científica 2 X Encontro Nacional de Educação Matemática Educação Matemática, Cultura e Diversidade Salvador – BA, 7 a 9 de Julho de 2010 Para o trabalho aqui proposto, as definições ajustam-se com perfeição, pois o objeto de estudo em análise trata da matemática utilizada por uma comunidade urbana, composta por um grupo de artesãos e artesãs de filé, que transmite uma determinada identidade cultural, por meio de um conhecimento tácito – que atravessa gerações (avós, mães, filhas e netas) – tendo como objetivo a manutenção da tradição de tecer o filé, na comunidade lacunar do Pontal da Barra, às margens da Lagoa Mundaú, buscando recuperar a dignidade dos seres humanos que ali sobrevivem às custas da confecção e venda desse artesanato e da pesca. O ensino da matemática pode ajudar ao aluno na recuperação desta dignidade, pois por meio da matemática é possível discutir questões econômicas, sociais e culturais, questionando injustiças e comparando possíveis diferenças e distorções. Dignidade esta que deve apontar caminhos que contribuam para a formação de cidadãos críticos e atuantes na comunidade onde vivem, questionando os problemas que os afetam direta e/ou indiretamente, seja por uma exclusão social, cultural ou econômica. Como se pode perceber, o saber fazer matemática consiste em quebrar o domínio do rigor, da certeza e da precisão, levando dominador e dominado a um mesmo patamar na escala da aprendizagem, pois, segundo Freire (2009, p.23), “quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprende”. Druzzian afirma que: A Etnomatemática busca resgatar as histórias do presente e do passado, procurando entender a Matemática como uma construção dos grupos envolvidos, dando importância aos saberes que foram silenciados no decorrer da história, sendo dominados por saberes ditos hegemônicos e que foram legitimados pela sociedade. (DRUZZIAN, 2002, p.68) Considerando a afirmação feita por Druzzian, sobre Etnomatemática, percebese, mais uma vez, a estreita relação existente entre esta e o trabalho dos artesãos e artesãs de filé, na comunidade do Pontal da Barra, quando: a) buscam o resgate do passado através da perpetuação de uma identidade cultural de um conhecimento tácito, hoje (re)construído por meio de novos Anais do X Encontro Nacional de Educação Matemática Comunicação Científica 3 X Encontro Nacional de Educação Matemática Educação Matemática, Cultura e Diversidade Salvador – BA, 7 a 9 de Julho de 2010 padrões e cores, graças à influência da flora local, do gosto tropical e das inter-relações étnicas do nordeste; b) utilizam os conceitos e conhecimentos da matemática (calcular, medir, contar, criar desenhos geométricos) aprendidos, quase sempre na escola da vida e do trabalho, pela necessidade de sobrevivência para comprar/fabricar/ vender a peça tecida; c) constroem e (re)criam novos modelos, novas peças, dinamizando o mercado e gerando uma competitividade na comunidade, com a ajuda da geometria; d) finalmente, quando, por meio da matemática (resolução de problemas), podem preparar-se para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho – tomam decisões analisando as alternativas possíveis, após avaliar custos e benefícios. Segundo Chassot (2003, p. 49), “A cidadania só pode ser exercida plenamente se o cidadão ou cidadã tiver acesso ao conhecimento (e isto não significa apenas informações) e aos educadores cabe então fazer esta educação científica”. O mundo globalizado exige uma mudança de currículo em que possam ser trabalhadas situações que ofereçam soluções para problemas enfrentados pela comunidade, no seu dia a dia, e explicitadas as razões por que fazer determinada ação – nisto consiste a aprendizagem – por meio do conhecimento das causas e consequências. Segundo Freire: O desrespeito à leitura de mundo do educando revela o gosto elitista, portanto antidemocrático, do educador que, desta forma, não escutando o educando, com ele não fala. Nele deposita seus comunicados. (FREIRE, 2009, p. 123) A aprendizagem deve ocorrer na escola, formadora de opinião, que vai além de um espaço para a emissão de saberes novos à comunidade observada, pois se amplia enquanto um instumento também de poder daqueles artesãos. Uma escola que fale da realidade de vida daquela comunidade, esclarecendo as dúvidas e criando possibilidades de crescimento individual e comunitário, pois, conforme Fourez (2008, p.114), nunca é Anais do X Encontro Nacional de Educação Matemática Comunicação Científica 4 X Encontro Nacional de Educação Matemática Educação Matemática, Cultura e Diversidade Salvador – BA, 7 a 9 de Julho de 2010 inteiramente só que se afronta a realidade, mas também em grupo, em comunidade humana, em sociedade organizada. Os textos citados no referencial teórico dialogam com nossa proposta, pois são indicadores da correlação existente entre Etnomatemática e alfabetização científica, mostrando sua importância no preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho dos artesãos de filé do Pontal da Barra, no Estado de Alagoas. METODOLOGIA A metodologia adotada para este trabalho foi de caráter qualitativo, com abordagem etnográfica, definida por Ludke e André (1986, p.13) como aquela que envolve a obtenção de dados descritivos, obtidos no contato direto do pesquisador com a situação estudada, e que enfatiza mais o processo do que o produto, preocupando-se em retratar a perspectiva dos participantes. Com a finalidade de conhecer melhor a realidade que cerca nosso objeto de estudo no trabalho ao qual nos propusemos, foram realizadas entrevistas in loco com 25 (vinte e cinco) artesãos e artesãs de filé de Alagoas, moradores do Pontal da Barra, no segundo semestre de 2009, com o intuito de observar, ouvir e perceber um pouco da realidade diária daquela comunidade: crenças, mitos, cultura, saberes matemáticos utilizados no artesanato de filé, enfim, o cotidiano daqueles artesãos. Foram feitos contatos que propiciaram descobertas importantes sobre a cultura da região e ocorreram muitas conversas nos quintais e portas de lojas/casas, pois tais locais serviam também como espaço para a comercialização dos produtos. Interessante destacar que cada um dos entrevistados queria fazer de seus discursos os mais verdadeiros em detrimento de outros, além de compartilharem histórias de vida contadas e recontadas: o passado remexido, o presente a nossa frente e, para o futuro, muitas esperanças, sugestões, anseios e confiança de dias melhores. Anais do X Encontro Nacional de Educação Matemática Comunicação Científica 5 X Encontro Nacional de Educação Matemática Educação Matemática, Cultura e Diversidade Salvador – BA, 7 a 9 de Julho de 2010 Utilizamos uma estratégia na qual a informalidade dos questionamentos motivava um relato espontâneo sobre a formação da comunidade: a chegada àquele bairro; como aprenderam a tecer o filé; suas idades; suas famílias; escolaridade; enfim, belas histórias foram narradas, algumas tristes, outras alegres, mas todas permeadas por uma coragem que impressionava, encantava e, sobretudo, identificava o poder do trabalho artesão desenvolvido na região e a sua influência para a economia local. As mulheres, em maior quantidade que os homens, desenvolvem seus belos trabalhos de filé nos momentos de folga dos afazeres de casa e estão sempre aguardando os melhores dias que estão por vir, outro fator importante, pois a mão de obra feminina tem papel determinante na formação da família e da sociedade, representando um poder muitas vezes silenciado por um modelo patriarcal. O principal critério utilizado para a seleção dos artesãos pesquisados era que trabalhassem tecendo o filé e não apenas vendendo o artesanato naquela comunidade, pois foi a forma encontrada para que pudéssemos perceber as relações entre a utilização da matemática na confecção e comercialização do filé, na comunidade do Pontal da Barra. Cabe ressaltar que todas as informações aqui colocadas foram autorizadas pelos artesãos e artesãs de filé do Pontal da Barra, ouvidos (as) pela autora. RESULTADOS DA PESQUISA Por meio das entrevistas e observações, nas visitas feitas àquela comunidade, descobertas importantes foram feitas e são apresentadas, a seguir, juntamente com alguns resultados da pesquisa etnográfica: a) a maioria dos artesãos (ãs) não terminou o ensino médio, mas possui vasto conhecimento na escola da vida e do trabalho: contando, medindo, elaborando novos modelos com a ajuda da geometria, fazendo cálculos de preços, fazem uso dos mais diversos recursos da matemática de forma exemplar; Anais do X Encontro Nacional de Educação Matemática Comunicação Científica 6 X Encontro Nacional de Educação Matemática Educação Matemática, Cultura e Diversidade Salvador – BA, 7 a 9 de Julho de 2010 b) alguns estão começando a ensaiar o exercício da cidadania, nas reuniões da Associação de Artesãos, quando nos encontros, nas noites de quarta-feira, solicitam explicações e fazem indagações a respeito das escolhas dos membros e dos trabalhos que serão encaminhados às feiras interestaduais e até internacionais para exposição e vendas. Nesse caso, apenas pequena parte dos quase 330 (trezentos e trinta) associados é selecionada, sem critérios bem definidos. c) Os mais arredios e isolados com relação à Associação são os que, com menor renda, vivem exclusivamente do trabalho de filé e não possuem loja para vender seus produtos: como não participam da Associação de Artesãos, ficam à mercê da boa vontade de quem queira comprar seus produtos, pelo preço mais conveniente para o repassador. Esses são os que mais necessitam de uma alfabetização científica que os prepare para uma melhor qualidade de vida, crescimento pessoal e o exercício da cidadania.Através das respostas obtidas, constataram-se algumas incertezas, mas, ao mesmo tempo, muita determinação daqueles artesãos que tecem seus trabalhos com coragem e ousadia. d) A pesquisa identificou a criação de uma Organização Não Governamental (ONG) : Instituto Salve as Águas – Educação Ambiental, criado em agosto de 2009, que tem dado suporte econômico-financeiro e ambiental aos artesãos(ãs) do Pontal da Barra (por meio da promoção de bingos – arrecadando fundos para a compra de materia-prima: linhas e rede), para os artesãos que possuem menores condições para aquisição destes bens; e) Acredita-se que, apoiados por esta ONG, os artesãos poderão ter acesso a um programa de alfabetização científica implantado naquela comunidade, em parceria com instituições de ensino municipal/estadual/federal, na busca de melhorias e crescimento da população que vive naquela comunidade de artesãos (ãs) de filé, no Pontal da Barra. Anais do X Encontro Nacional de Educação Matemática Comunicação Científica 7 X Encontro Nacional de Educação Matemática Educação Matemática, Cultura e Diversidade Salvador – BA, 7 a 9 de Julho de 2010 CONCLUSÃO A análise das entrevistas deixou claro que o trabalho em filé faz parte da vida da comunidade do Pontal da Barra, pois praticamente todos os moradores vivem dessa produção cultural. Alguns vendem o que tecem e, também, revendem o trabalho de outros artesãos (geralmente os mais abastados, que possuem loja na rua principal do bairro), enquanto outros vendem apenas a sua produção (em geral os mais carentes e com menor grau de instrução). Hoje, homens, mulheres e crianças tecem o filé naquele bairro. As crianças aprendem desde pequenas a trabalhar com um tear, algumas aos sete anos já bordam e/ou fazem a rede – base desse tipo de trabalho. A rede, segundo relato dos artesãos pesquisados, é o mais trabalhoso e que demanda mais tempo para ser feito, por isso vários deles compram a rede pronta de artesãos mais humildes que sustentam sua família exclusivamente com esse trabalho. A maioria dos artesãos não terminou o ensino médio na escola propedêutica, mas possuem vasto conhecimento na escola da vida: contando, medindo, elaborando novos modelos com a utilização da geometria, fazendo cálculos de preços, enfim fazendo uso, de forma exemplar, dos mais diversos artifícios da matemática. Ao longo desta pesquisa percebeu-se a necessidade de políticas públicas estaduais voltadas àquela comunidade e que propiciem a conscientização do papel dos artesãos no crescimento da região, permitindo aos grupos uma participação maior nas decisões que afetam o trabalho por eles desenvolvido, tais como: a) a forma de escolha dos artesãos que participarão de feiras interestaduais e/ou internacionais deve ser democrática e com ampla divulgação; b) a necessidade de um trabalho de empreendedorismo para ajudar os artesãos a negociarem seus trabalhos de filé e melhorarem a qualidade do produto, diversificando-o sempre que necessário, para não ficarem à mercê de atravessadores; Anais do X Encontro Nacional de Educação Matemática Comunicação Científica 8 X Encontro Nacional de Educação Matemática Educação Matemática, Cultura e Diversidade Salvador – BA, 7 a 9 de Julho de 2010 c) a elaboração de um catálogo onde constem todas as etapas da confecção do filé e seus mais diversos pontos com o objetivo de preservar a identidade cultural, não apenas daquela comunidade, mas do Estado de Alagoas. A alfabetização científica implica, assim, estratégias de caráter educativo que permitam a formação de saberes contextualizados, de modo que se tenha, enquanto cidadão, um discurso reivindicatório que encontre a audição em diferentes setores da sociedade. REFERÊNCIAS CHASSOT, A. Alfabetização Científica: questões e desafios para a educação. 3. ed. Ijuí: Editora Unijuí, 2003. D’AMBROSIO, U. Etnomatemática – elo entre as tradições e a modernidade. 2.ed. 3ª reimp. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. ______. Etnomatemática e educação. In KNIJNICK, Gelsa; WANDERER, Fernanda e OLIVEIRA, Cláudio José de (org). Etnomatemática, currículo e formação de professores. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2004. DRUZZIAN, E. A Etnomatemática nos Fazeres do Trabalhador. Reflexão e Ação, Santa Cruz do Sul, v.10, n.1, p.65-75, jan/jun.2002. FOUREZ, Gérard. Crise no Ensino de Ciências?Investigações em Ensino de Ciências – V8(2), pp. 109-123. Disponível em <http://www.if.ufrgs.br/ienci/artigos/Artigo ID99v8 n2 a2003.pdf. > Acessado em 20 de dez/2008. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 40ª reimp. São Paulo: Paz e Terra, 2009 (Coleção Leitura). Anais do X Encontro Nacional de Educação Matemática Comunicação Científica 9 X Encontro Nacional de Educação Matemática Educação Matemática, Cultura e Diversidade Salvador – BA, 7 a 9 de Julho de 2010 LUDKE, M.;ANDRÉ, M.E.D.A. Pesquisa em Educação: abordagens qualitativas. São Paulo: EPU, 1986. Anais do X Encontro Nacional de Educação Matemática Comunicação Científica 10