CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO DE FAMÍLIA, SUA
REPERSONALIZAÇÃO E O VALOR JURÍDICO DO AFETO
Cristiane Pereira da Silva1
Resumo: Os princípios insculpidos em nossa Constituição Federal, decorrentes de uma
República Federativa que se constitui em um Estado Democrático de Direito, inspira a
doutrina e jurisprudência pátrias a imprimirem em suas decisões, entregando aos
cidadãos, uma Justiça que tem na dignidade humana seu valor-fonte. É bem verdade
que nem sempre foi assim, pois trazíamos incutidos em nossas mentes que somente as
relações matrimoniais legitimavam a constituição da família. No entanto, com um pouco
de sensibilidade e bom senso o Direito de Família passou a reconhecer outras relações,
especialmente as baseadas no afeto, como unidade familiar, e é sob esta ótica que se
deve visualizar as várias espécies de famílias existentes em nossa sociedade, não
deixando à margem, relações constituídas entre pessoas que não se entrelaçam em
virtude do vínculo jurídico institucionalizado do casamento, e que, sem sombra de
dúvida, são baseadas no afeto, no respeito, na consideração, e auxílio mútuo,
elementos necessários e suficientes ao reconhecimento da existência de uma entidade
familiar, a qual merece guarida do Estado, não só sob o aspecto patrimonial, mas
também sob a ótica das próprias relações afetivas existentes entre seus membros. Daí,
a importância jurídica da repersonalização do Direito de Família e do valor jurídico do
afeto. É neste contexto que devemos compreender, apreender e dar a solução mais
consentânea e justa ao caso concreto, especialmente quando da análise de casos que
envolvam a adoção e a união estável entre pessoas do mesmo sexo, as intituladas
uniões homoafetivas. Devemos nos despir de quaisquer preconceitos desarrazoados, e
ter na dignidade humana um ponto cardeal capaz de nos levar à solução mais justa,
como fez nossa Corte Suprema em decisão histórica proferida em sede de ação direta
de inconstitucionalidade, à qual foi atribuído efeitos erga omnes e vinculante, o que
demonstra a magnitude da matéria tratada, e que, por certo, é crucial no caminho da
igualdade das relações familiares.
Palavras-chave: Família. Dignidade Humana. Constitucionalização. Repersonalisação.
Afeto. União Homoafetiva. União Estável.
1
Professora de Direito Civil e Processo do Trabalho das Faculdades Integradas de Nova Andradina –
MS; Especialista em Civil e Processo Civil pela mesma Instituição; servidora pública do Tribunal de
Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul.
2
1. INTRODUÇÃO
Várias questões relativas ao direito de família, considerando-se esta em sua
mais ampla diversidade de constituição, serão analisadas sob o prisma da Constituição
Federal, seu fundamento no Estado Democrático de Direito, seus princípios,
especialmente, o princípio da dignidade da pessoa humana, em suas vertentes: o
respeito e o afeto, além da necessária análise sob a égide da igualdade material.
Dada a multidisciplinariedade da matéria, deixemos desde já definido que as
relações de família não podem e não devem ser tratadas unicamente sob a ótica do
Direito, há de nos ajudar e orientar a Psicologia, a Assistência Social e a Medicina
Genética, sem as quais não é possível compreender, apreender e dar a solução mais
consentânea e justa ao caso concreto.
Esclarece-se que as considerações elaboradas neste singelo escrito
acreditam estar em sintonia para com os valores e princípios do Direito de Família
Comtemporâneo e de acordo com as progressivas conquistas na busca da superação
da discriminação desarrazoada.
Dentro deste viés, parte-se de uma constatação cristalina: a mudança que
vem ocorrendo na constituição das famílias, sendo que o Direito não pode desconhecer
esta realidade.
Contudo, as discussões no campo jurídico ainda se encontram norteadas por
vários estigmas que podem traduzir-se na ausência de reconhecimento jurídico, em
muitos casos em franco prejuízo àqueles que deveriam ser os principais protegidos. É o
que se procura delinear ao trazer-se à colação temas como a adoção por
homossexuais e a união homoafetiva.
3
2.
FUNDAMENTO
E
ESTRUTURA
DOS
PARADIGMAS
DO
ESTADO
CONTEMPORÂNEO E O INDIVÍDUO-CIDADÃO.
Para entendermos as profundas alterações ocorridas no tratamento jurídico
dado à família necessária uma digressão à estrutura dos paradigmas do Estado
Contemporâneo.
Primeiramente, frise-se que somente se fala em direitos individuais com a
derrocada do Estado Absolutista Monárquico, mediante a promoção das Revoluções
Francesa e Industrial, ocorridas em meados do século XIX e início do XX, porquanto
era o monarca quem exercia todos os direitos, inclusive o direito de vida e de morte sob
os súditos, e, portanto, nenhum direito era conferido ao indivíduo.
Foi por meio dessas revoluções que se firmou o “(...) declínio do absolutismo,
do mercantilismo e dos resquícios do regime feudal (...)” e a ascensão de um novo
modelo de Estado, fundado na “(...) prática do individualismo econômico e no
liberalismo político (...), o Estado Liberal de Direito2.
Hobbes, Locke e Rousseau contribuíram para a fundamentação políticofilosófica do Estado Liberal de Direito desenvolvendo teorias contra o absolutismo
centralizador e destacando o contrato social como fonte de uma autoridade política e
dos poderes do Estado.
A fundamentação jurídica do Estado Liberal de Direito adquiriu contornos de
formalidade e tecnicismo jurídico3, restringindo suas atividades à defesa da ordem e
seguranças públicas, promovendo o ideal burguês do laissez-faire, laissez-passer
quanto aos domínios econômicos e social4.
2
BURNS, Edward McNall, LERNER, Robert E.; MEACHAM, Standish. História da civilização ocidental:
do homem das cavernas às naves espaciais. Trad. Donaldson. M. Garsagen. 40ª ed. São Paulo: Globo,
2001, v. 2, p. 478.
3
GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica Processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: AIDE, 2001, p.
07.
4
SOARES, Mário Lúcio Quintão. Teoria do Estado: o substrato clássico e os novos paradigmas como pré-compreensão para o
direito constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 276.
4
Referida diretriz pautava-se na concepção de que os operadores do direito
deveriam aplicar a lei de forma mecânica, desconsiderando as peculiaridades dos
casos concretos, vez que o valor preponderante, nos termos do positivismo, era o da
segurança jurídica. Sobre essa perspectiva, ressalta Carvalho Netto:
Assim o paradigma do Estado de Direito ao limitar o Estado à legalidade,
ou seja, ao requerer que a lei discutida e aprovada pelos representantes
da melhor sociedade autorize a atuação de um Estado mínimo, restrito
ao policiamento para assegurar a manutenção do respeito àquelas
fronteiras anteriormente referidas e, assim, garantir o livre jogo da
vontade do atores sociais individualizados, vedada a organização
corporativo-coletiva, configura, aos olhos dos homens de então, um
ordenamento jurídico de regras gerais e abstratas, essencialmente
negativas, que consagram os direitos individuais ou de 1ª geração, uma
ordem jurídica liberal clássica. É claro que sob este primeiro paradigma
constitucional, o do Estado de Direito, a questão da atividade
hermenêutica do juiz só poderia ser vista como uma atividade mecânica,
resultado de uma leitura direta dos textos que deveriam ser claros e
distintos, e a interpretação algo a ser evitado e até mesmo pela consulta
ao legislador na hipótese de dúvidas do juiz diante de textos obscuros e
intrincados5.
No processo histórico de formulação do sistema de garantias da liberdade
burguesa consagrou-se o reconhecimento de seus direitos fundamentais, tendo em seu
centro convergente os direitos de liberdade: as liberdades civis, com a emergência dos
direitos individuais (vida, segurança individual e propriedade privada) e a liberdade
política, com a consolidação dos direitos políticos (ressalvando-se que à época a
cidadania envolvia apenas o direito de voto) 6.
É neste Estado Liberal de Direito que irá refletir-se o valor preponderante à
época: a liberdade, cujo alicerce teórico foi a propriedade privada dos meios de
produção.
Impende salientar que é neste Estado Liberal de Direito que o Código Civil
que vigeu até 1916 buscou inspiração, ou seja, o indivíduo somente era considerado
5
NETTO, Menelick de Carvalho. “O requisito essencial da imparcialidade para a decisão constitucionalmente adequada de um caso
concreto no paradigma constitucional do Estado Democrático de Direito”. Direito Público. Belo Horizonte: Procuradoria Geral d o
Estado de Minas Gerais, v. 1, n. 1, jan.-jun./1999, p. 103.
6
HORTA, José Luiz Borges. Horizontes jusfilosóficos do Estado de Direito: uma investigação tridimencional do Estado liberal, d o
Estado social e do Estado democrático, na perspectiva dos direitos fundamentais. Obra (Doutorado em Filosofia do Direito) –
Faculdade de Direito. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 2002, p. 114.
5
como sujeito apto a ter, possuir, o patrimônio e a propriedade eram o centro da
atividade protetiva do Estado.
Nos primórdios do século XX houve incipientes manifestações a favor do
direito às prestações positivas do Estado, o que culminou na passagem do Estado
Liberal de Direito para o Estado Social de Direito, por meio da consolidação de novos
fundamentos ao sistema capitalista.
Não nos esqueçamos da Guerra Fria a qual ajudou na construção do
paradigma do Estado Social de Direito na Europa Ocidental, em razão da luta de
classes e como estratégia capitalista capaz de oferecer estabilidade e frear a expansão
do socialismo pelas suas fronteiras.
Esclarece Soares que a permanência da estrutura capitalista no Estado
Social de Direito manifestou-se pela preservação artificial da livre iniciativa e da livre
concorrência, compensando-se as desigualdades sociais pela prestação de serviços
estatais e garantia de direitos sociais7.
A presença dos direitos sociais como trabalho, segurança, educação, saúde,
habitação, etc., nessa nova estrutura estatal demonstra o caráter gestor do Estado nas
políticas públicas e a qualidade de cliente do homem enquanto sujeito de direitos.
Nesse
contexto,
o
Estado
tornou-se
um
Estado
Administrador,
intervencionista e assistencialista, e o cidadão, um “cidadão-cliente” (adquirindo referida
condição apenas enquanto subordinado aos programas sociais estatais 8.
No Estado Social de Direito o valor preponderante passou a ser a igualdade:
correspondente não apenas à igualdade formal, mas, sobretudo, à igualdade material,
ou seja, as leis deveriam reconhecer materialmente as diferenças, propondo
alternativas jurídicas em face da diversidade apresentada. Em função dessa diretriz os
operadores do direito, sobretudo os juízes, incorporam a interpretação finalística ou
7
SOARES, Mário Lúcio Quintão. Teoria do Estado: o substrato clássico e os novos paradigmas como
pré-compreensão para o direito constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 294.
8
SOARES, Mário Lúcio Quintão. Teoria do Estado: o substrato clássico e os novos paradigmas como
pré-compreensão para o direito constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 294.
6
teleológica em suas decisões9.
A propriedade passou, teoricamente, a ser condicionada à função social,
sendo considerada um dos fatores condicionantes da ruptura do tradicional esquema do
Estado burguês, no qual as Constituições asseguravam restritamente direitos civis e
políticos.
Ao olharmos a história política, social, cultural e econômica, pode-se afirmar
que o Estado Democrático de Direito é o mais evoluído na dinâmica dos Direitos
Humanos, por fundar-se em critérios de pluralidade e de reconhecimento universal de
direitos.
A concepção desse modelo de Estado revela-se por meio de princípios
basilares, com destaque para o princípio da constitucionalidade, o sistema dos direitos
fundamentais, o princípio da legalidade da Administração Pública, o princípio da
segurança jurídica e o princípio da proteção jurídica e das garantias processuais 10.
É verdade que muitos desses princípios já se encontravam presentes em
outros paradigmas de Estado, No entanto, é no Estado Democrático de Direito que
encontrarão maior sustentação teórica e, por isso mesmo, maiores possibilidades de
concretização social.
Observe-se
que
é
no
Estado
Democrático
de
Direito
que
há
o
reconhecimento do caráter normativo dos princípios, de sua função normativa própria e
não de simples enunciados programáticos. É no Estado Democrático de Direito que a
Hermenêutica, a Teoria dos Valores ou Axiologia Jurídica, revelará em torno da pessoa
humana, o que significa que no Estado Democrático de Direito o homem é o centro
convergente de direitos, sendo que todos os direitos fundamentais do homem deverão
orientar-se pelo valor-fonte da dignidade.
Com todas essas alterações na estrutura estatal constata-se também uma
nova tônica nas Ciências Humanas, que passa a ser a interdisciplinaridade, bem como
também, há uma extensão do conceito de cidadania, enfatizando, especialmente, seu
9
NETTO, Menelick de Carvalho. O requisito essencial da imparcialidade para a decisão
constitucionalmente adequada de um caso concreto no paradigma constitucional do Estado Democrático
de Direito. Direito Público. Belo Horizonte: Procuradoria Geral do Estado de Minas Gerais, v. 1, n. 1, jan.jun./1999, p.105.
10
SOARES, Mário Lúcio Quintão. Teoria do Estado: o substrato clássico e os novos paradigmas como
pré-compreensão para o direito constitucional. Op. cit., p. 304-305.
7
efeito espacial, quando o cidadão deixa de ser aquele que possui a capacidade de
exercer direitos, sobretudo os políticos, para ser portador de todos os direitos
fundamentais da pessoa humana, ou seja:
O cidadão deixou de ser a exclusividade de sua aldeia para, sem abandonar
o seu canto, fazer-se universal. Dessa qualidade unge-se a cidadania contemporânea.
As pontes que ligam Estados retratam as linhas universais que ligam todos os
cidadãos, a determinar o compromisso de todos com as causas de todos11.
A cidadania, em sentido estrito e tradicional, pode ser conceituada como o
manifesto exercício dos direitos políticos pelos homens, o direito de votar e de ser
votado.
No entanto, em um sentido amplo e contemporâneo, típica de um Estado
Democrático de Direito, pode ser conceituada como a aptidão do indivíduo em adquirir
direitos, prerrogativas e proteções da ordem jurídica, aptos a qualificá-lo como igual os
seus semelhantes no contexto da sociedade local, regional ou internacional.
No centro deste debate, importa mais uma vez destacar o potencial que a
complexa estrutura globalizada tem de desestabilizar o sentido amplo e contemporâneo
da cidadania, mediante o enfraquecimento da regulação social pelo Estado. Estimula,
em sua dinâmica, a auto-regulação e práticas individualistas, o que naturalmente
desenvolve dimensões de instabilidade e de incerteza em sociedade.
Nessa conjuntura é oficializado um quadro de exclusão social permanente.
Enfim, a estrutura social, ora descrita, promove um dilema histórico e jurídico em face
da diretriz democrática preconizada pelo Estado de Direito.
De toda forma, acredita-se que os fatores de resistência à democracia devem
ser superados pela própria estrutura estatal democrática. O que significa, conforme
ensina Chauí, que no movimento histórico a democracia deve permanentemente
reformular sua estrutura em favor da criação e da ampliação dos Direitos Humanos12.
11
ROCHA. Carmem Lúcia Antunes. República e federação no Brasil: traços constitucionais da organização política
brasileira. Belo Horizonte: Del Rey, 1996, p. 118-119.
12
Nesse sentido, a autora sustenta: “A democracia é a sociedade verdadeiramente histórica, isto é, aberta ao
tempo, ao possível, às transformações e ao novo. Com efeito, pela criação de novos direitos e pela existência dos
contra-poderes sociais, a sociedade democrática não está fixada numa forma para sempre determinada, ou seja,
não cessa de trabalhar suas divisões e diferenças internas, de orientar-se pela possibilidade objetiva (a
liberdade) e de alterar-se pela própria práxis” (Grifo da autora). Cf.: CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia.
13ª ed. São Paulo: Ática, 2004, p. 406.
8
Perceba-se que, considerando o indivíduo, juridicamente, ele passa de um
nada, na monarquia absolutista (sujeito apenas de obrigações para com seu rei); para
um proprietário pleno juridicamente protegido no Estado Liberal (sujeito de direitos e
obrigações); para um proprietário juridicamente protegido, no entanto, cuja propriedade
esta condicionada a uma função social, no Estado Social de Direito (sujeito de direitos e
obrigações, porém considerado dentro de uma coletividade); e, num estágio mais
avançado de Estado, o Estado Democrático de Direito, para um proprietário
juridicamente protegido, cuja propriedade continua condicionada a uma função social,
no entanto, esta é temperada por valores jurídicos nos quais o homem é o centro dos
direitos e a dignidade um valor-fonte (sujeito de direitos e obrigações, considerado
dentro de uma coletividade, na qual o valor mais importante é a dignidade humana, e
pela qual, todos os direitos e obrigações do homem devem pautar-se).
Veja-se que é neste estágio de Estado que o homem é centro de direitos e
não mais seu patrimônio, daí a doutrina falar em despatrimonialização do direito.
Vale lembrar que, nesse cenário, o postulado da dignidade humana se torna
o epicentro do grande elenco de direitos civis, políticos, econômicos e culturais, que
vêm proclamados, não só pelas constituições de cada Estado-nação de cunho
democrático, mas principalmente, por meio de instrumentos internacionais.
A trajetória evolutiva do Estado, inspirada em novos conceitos, tem feito com
que o cânone da dignidade da pessoa humana – como um dos fundamentos da
organização nacional – passe não só a ser observado, mas também concretizado,
mediante a adoção de instrumentos direcionados à efetiva realização de uma justiça
participativa. Em outras palavras, por intermédio de um constitucionalismo societário ou
comunitário, busca-se a realização de valores que apontam para o existir da
comunidade13. Isto porque a participação ativa do cidadão – pessoa humana que tem
direito a ter direitos 14 – passa a ser um dos fundamentos da sociedade contemporânea
organizada nos moldes do Estado Democrático de Direito.
Aliás, não poderia ser de outra forma, porquanto o Estado Democrático de
13
CITTADINO, Gisele. Pluralismo, Direito e Justiça Distributiva. Elementos da Filosofia Constitucional
Contemporânea. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 1999, p. 15.
14
Nas lições de Lafayette Pozzoli, deve-se tomar o conceito atual de cidadania, que atribui à pessoa o
direito a ter direitos, in MARITAIN e o Direito. São Paulo: Loyola, 2001, p. 118.
9
Direito está embasado na doutrina do eudemonismo 15, doutrina que admite ser a
felicidade individual ou coletiva o fundamento da conduta humana moral, isto é, que são
moralmente boas as condutas que levam à felicidade.
Vale dizer, que os direitos fundamentais sociais, vinculados ao mínimo
existencial, passam a constituir o núcleo básico de todo ordenamento constitucional,
como metas e objetivos que devem ser alcançados pelo Estado Democrático de Direito,
uma vez validados pela comunidade à qual foram previstos, a formar a consciência
ético-jurídica de seus integrantes.
No âmbito do ordenamento jurídico brasileiro, a Constituição Federal de 1988
é a primeira que integra o elenco dos direitos fundamentais os direitos sociais, antes
distribuídos no capítulo pertinente à Ordem Econômica e Social. Conforme observa
Flávia Piovesan, além de acolher a universalidade e a indivisibilidade dos direitos
fundamentais, a Lei Maior de 1988 acolhe também o processo de especificação do
sujeito de direito, conforme insculpido nos capítulos dedicados à família, à criança, ao
idoso, aos índios, incumbindo ao Estado instituir políticas públicas em prol de um
tratamento diferenciado e especial a tais grupos 16. E assim, inspirada nas constituições
democratas do século passado, inscreve o cânone da dignidade da pessoa humana
dentre os fundamentos da organização nacional.
Dispõe nossa Constituição Federal:
Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel
dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado
Democrático de Direito e tem como fundamentos:
(...)
III – a dignidade da pessoa humana;
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
(...)
§7º. Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da
paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do
casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e
15
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 15. impressão.Rio
de Janeiro: Editora Nova Fronteira, p. 592.
16
É o que enfatiza Flávia Piovesan na obra Temas de Direitos Humanos. São Paulo: Max Limonad, 1998,
p. 214, aduzindo que “sem a efetividade dos direitos econômicos, sociais e culturais, os direitos civis e
políticos se reduzem a meras categorias formais, enquanto que, sem a realização dos direitos civis e
políticos, ou seja, sem a efetividade da liberdade entendida em seu mais amplo sentido, os direitos
econômicos e sociais carecem de verdadeira significação”.
10
científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma
coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.
Eis o contexto estatal que se encontra inserido o indivíduo-cidadão integrante
de uma família.
3. A CONSTITUIÇÃO, O NOVO CÓDIGO CIVIL, A FAMÍLIA E A SOCIEDADE
Tendo a Constituição Federal de 1988 erigido como fundamento da
República a dignidade da pessoa humana, ou seja, como já dito, colocou a pessoa
como centro das preocupações do ordenamento jurídico, todo o sistema, que retira da
Constituição sua orientação e seu fundamento, se direciona para a sua proteção, ou
seja, as normas constitucionais (composta de princípios e regras), centradas nessa
perspectiva, conferem unidade sistemática a todo o ordenamento jurídico.
Ensina Luiz Edson Fachin que:
Eis o que sustentamos: opera-se, pois, em relação ao Direito dogmático
tradicional, uma inversão do alvo de preocupações do ordenamento
jurídico, fazendo com que o Direito tenha como fim último a proteção da
pessoa humana, como instrumento para seu pleno desenvolvimento.
Nossa tese, pois, é a de que a Constituição Federal de 1988 impôs ao
Direito Civil o abandono da postura patrimonialista herdada do século
XIX, em especial do Código Napoleônico, migrando para uma
concepção em que se privilegiam a subjetividade, o desenvolvimento
humano e a dignidade da pessoa concretamente considerada, em suas
relações interpessoais. É por isso que cabe enfatizar a concepção plural
de família presente na Constituição, apta a orientar a melhor exegese do
novo Código Civil brasileiro17.
Nesses nossos tempos de inquietude, dilemas, exclusão econômica e jurídica
surgem novas situações sociais que influenciam o berço familiar e exigem uma
aplicação do ordenamento jurídico temperado com amor e afeto, porquanto é cada vez
maior o número de uniões não matrimonializadas, dentre as quais, as uniões
homoafetivas que não mais se contentam em ser vistas como uniões meramente civis,
17
FACHIN, Luiz Edson. Direito de Família: elementos críticos à luz do novo código civil brasileiro. 2ª ed.
Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. XVII-XVIII.
11
mas como instituições familiares, que merecem reconhecimento e proteção, proteção
não só com relação ao patrimônio, mas também com relação ao afeto entre os seus
membros.
É neste contexto que se propõe uma hermenêutica construtiva e não
meramente uma reprodução de saberes dogmáticos, pois se identifica o Direito de
Família para além do Código Civil, alçando-o à Constituição Federal.
Pertinente a essa direção escreveu Paulo Luiz Netto Lôbo:
(...) os estudos mais recentes dos civilistas têm demonstrado a falácia
dessa visão estática, atemporal e desideologizada do direito civil. Não se
trata, apenas, de estabelecer a necessária interlocução entre os
variados saberes jurídicos, com ênfase entre o direito privado e o direito
público, concebida como interdisciplinaridade interna. Pretende-se não
apenas investigar a inserção do direito civil na Constituição jurídicopositiva, mas os fundamentos de sua validade jurídica, que dela devem
ser extraídos (...) 18.
Verifica-se, assim, a necessidade de criação jurisprudencial para apreender a
complexidade e paradoxo das novas comunhões existentes em razão das mudanças na
realidade social.
Bem asseverou, a propósito, Francisco José Ferreira Muniz:
(...) nessa medida, a decisão judicial, ao integrar a lacuna para resolver
o caso concreto, esboça, para, além disso, o desenho da norma jurídica
que o legislador deverá editar para, em futuros desenvolvimentos do
sistema, preencher o vazio existente (...) 19.
Diz, ainda, Guilherme Calmon Nogueira da Gama que:
A base constitucional da disciplina legal da família é inegável. A
Constituição Federal, como é da tradição brasileira, mais uma vez veio a
atender aos anseios sociais no sentido de se modernizar, adequando-se
à realidade atual, sem, no entanto deixar de adotar como norma
principiológica o reconhecimento da família e do casamento como
fundamentais no contexto nacional, merecedores de proteção do Estado
que, ao contrário do que muitos pregam, deve envidar esforços no
sentido de estimular a vida familiar saudável, responsável,
independentemente da forma de sua constituição, sempre tendo como
norte a busca do engrandecimento moral, material, cultural do
18
LÔBO, Paulo Luiz Netto. Constitucionalização do Direito Civil. Revista de Informação Legislativa,
Brasília, a. 36. n. 141, p. 100-109, jan./mar. 1999.
19
MUNIZ, Francisco José Ferreira. Textos de direito civil. Curitiba: Juruá, 1998, p. 116.
12
organismo familiar e de cada um dos seus integrantes20.
Não obstante haja proteção constitucional para as relações familiares, é certo
que a norma constitucional não tece minúcias acerca das várias vertentes em que as
relações de família de desdobram, sendo que nestes tempos de fragmentação
legislativa (o legislador brasileiro quer prever todas as situações possíveis e todas elas
regulamentar por norma), de despatrimonialização do direito privado, e da defesa
principiológica e valorativa das relações de afeto, o que se viu produzir foi o Novo
Código Civil Brasileiro, em vigor desde janeiro de 2003.
Embora seja uma produção legislativa relativamente recente, o Novo Código
Civil já nasceu excludente, porquanto não disciplinou de maneira satisfatória as uniões
estáveis, nada tratou acerca das famílias fraternas (entre irmãos ou irmãs), bem como
silenciou sobre filiação socioafetiva.
É certo que ao juiz é vedado eximir-se de julgar ante a inexistência de norma
que regule a matéria posta sob seu crivo, devendo este decidir o caso de acordo com a
analogia, os costumes e os princípios gerais de direito, e, é justamente aqui que a
jurisprudência deve se abrir para compreender e empreender os novos desafios, sem
preconceitos ou visões preconcebidas.
A importância da jurisprudência pode ser sentida na evolução histórica do
instituto da filiação, no qual, os juízes passaram a valorizar o estatuto da igualdade
entre os filhos, bem como foi aproximando a verdade jurídica da verdade de sangue e,
também, da verdade sociológica e afetiva da filiação. Tal transcurso revela que no
desate das questões jurídicas a jurisprudência se inclinou para colocar no centro de
suas considerações os melhores interesses da filiação. Com isso, visivelmente,
rechaçou uma percepção calcada na exclusividade das atenções patrimoniais, para
localizar, em torno da pessoa o núcleo de seus afazeres.
Não nos esqueçamos de que os valores que informavam o Código Civil de
1916 era a legitimidade da família e dos filhos fundada tão somente no casamento,
sendo que à jurisprudência e à doutrina coube o papel de substituir estes valores pela
igualdade e pelo afeto, valores estes que mais se amoldam ao princípio da dignidade
20
GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. O companheirismo: uma espécie de família. 2. ed. rev. ampl.
São Paulo: RT, 2001, p. 56.
13
humana.
De fato, conforme escreve Silvana Carbonera “os operadores do direito, com
os olhos voltados para o sujeito, começam a agregar outros elementos àqueles já
relacionados à clássica noção jurídica de família, indicando que, em alguns casos,
somente a formalidade do vínculo é insuficiente” 21.
Nessa esteira, a noção de família vai abandonando a relação outrora
necessária de casamento, vínculo jurídico formal, e se vincula com maior força a sua
dimensão fática, abrindo espaço para discussão acerca do valor sociológico e afetivo
das relações familiares.
Eis a família contemporânea: fundada na igualdade e no afeto entre seus
membros, a qual não mais possui uma única definição22 e que se tornou plural23, sendo
que são essas relações de afeto, solidariedade e de cooperação que regem essa nova
família que justamente demonstram a concepção eudemonista da família, ou seja, não
é mais o indivíduo que existe para a família e para o casamento, mas a família e o
casamento é que existem para o seu desenvolvimento pessoal, em busca de sua
aspiração à felicidade24.
4. FILIAÇÃO, ASPECTOS JURÍDICOS, BIOLÓGICOS E AFETIVOS.
A primeira relação familiar a ser reconstruída e modelada pelas mãos da
doutrina e da jurisprudência foi a filiação, sendo que a nova vestimenta adveio da
realização de uma interpretação construtiva, colmatando lacunas e relativizando
rigores.
Veja-se que, no que diz respeito à presunção pater is est, no início,
21
CARBONERA. Silvana. O papel jurídico do afeto nas relações de família. In: FACHIN, Luiz Edson
(coord.). Repensando fundamentos do direito civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. p.
277.
22
Daí a importância do saber interdisciplinar e multidisciplinar em matéria de Direito de Família, como
exposto por Fernanda Otoni de Barros no estudo Interdisciplinaridade: uma visita ao tribunal de família
pelo olhar da psicanálise (In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha Pereira (org.). Direito de família
contemporâneo. Belo Horizonte: Del Rey, 1997. p. 781-835).
23
“Longe estamos de acreditar na predominância de um único modelo familiar na vida social atual na
sociedade brasileira” - PEREIRA, Tânia da Silva. Direito da criança e do adolescente: uma proposta
interdisciplinar. Rio de Janeiro: Renovar, 1996, p. 186.
24
MICHEL, Andrée. Modèles sociologiques de la famille dans les societés contemporaines. Archives de
philosophie du droit: réforme du droit de la famille. Paris: Sirey, 1975. t. 20, p. 131-132.
14
predominava uma exegese restrita e gramatical do Código Civil de 1916, no qual a
contestação da paternidade realizada pelo marido somente era apta a desconstituir a
presunção de paternidade de filho adulterino a matre, nas estritas hipóteses legais e
desde que nos prazos estabelecidos.
A partir da década de 60, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal
passa a admitir que o filho adulterino a matre promova investigação de paternidade,
desde que sua concepção tenha se dado quando da separação de fato dos cônjuges.
Essa investigatória poderia ser proposta mesmo ausente a impugnação da paternidade
pelo esposo.
Essa orientação do Supremo já vinha ao encontro da idéia de que a
paternidade jurídica não se estabelece somente por laços de sangue, passando a
posse de estado a um papel relevante.
Também
com
relação
ao
reconhecimento
da
filiação
a
evolução
jurisprudencial se manifestou admitindo o reconhecimento, por homem solteiro, de filho
havido com mulher casada25, bem como, também admitiu o reconhecimento de filho
adulterino pelo pai casado, tornando desnecessária a investigação de paternidade pelo
filho após a dissolução do vínculo matrimonial.
Frise-se que a Lei Federal nº 883, de 21/10/1949, autorizava o
reconhecimento de filho adulterino após a dissolução da sociedade conjugal, pela morte
de um dos cônjuges, ou pelo desquite, ou separação judicial, ou seja, a eficácia do ato
de reconhecimento era post mortem. Mas a jurisprudência foi mais longe no
reconhecimento da igualdade entre os filhos, admitindo, desde logo, a partir da
Constituição de 1988, a investigação de paternidade contra pais casados e, na
constância do vínculo conjugal.
25
Recurso Extraordinário nº 46.135, Supremo Tribunal Federal. Relator Ministro Hahnemann Guimarães.
15
Demonstra essa afirmação o primoroso acórdão de lavra do Ministro Sálvio
de Figueiredo:
DIREITO DE FAMÍLIA – FILIAÇÃO ADULTERINA – IVESTIGAÇÃO DE
PATERNIDADE – POSSIBILIDADE JURÍDICA.
I – Em face da nova ordem constitucional, que abriga o princípio da
igualdade jurídica dos filhos, possível é o ajuizamento da ação
investigatória contra genitor casado.
II – Em se tratando de direitos fundamentais de proteção à família e à
filiação, os preceitos constitucionais devem merecer exegese liberal e
construtiva, que repudie discriminações incompatíveis com o
desenvolvimento social e a evolução jurídica.” (Superior Tribunal de
Justiça – Resp 7631 – DJ 04/11/1991).
Sobre o assunto, ensina Rose Melo Venceslau que:
O estado que pode vir a ser alterado em razão de dados biológicos é o
do filho. Não há status de paternidade. Em virtude disso, entende-se ser
o problema da filiação direito do filho. É o filho que pode alterar seu
estado de filiação por meio da ação de investigação de paternidade, a
qual não encontra obstáculo nem mesmo no vínculo paterno-filial já
existente, que em conseqüência da ação positiva o desconstitui. É o filho
que tem o direito de impugnar a paternidade estabelecida
voluntariamente pelo ato de reconhecimento26.
Percebe-se que a igualdade passa a se impor como elemento decorrente do
respeito à dignidade da pessoa humana, “a busca da eliminação das desigualdades é o
traço dominante desse transcurso, uma longa evolução da bastardia ao estatuto da
unidade”27.
Conforme aduz João Batista Villela, o aspecto biológico cede espaço ao
comportamento, de modo que a paternidade passa a ser reconhecida pelo amor que se
dedica ao bem da criança28.
Nessa mesma perspectiva, observa Sergio Gischkow Pereira:
(...) a paternidade é conceito não só genético ou biológico, mas
psicológico, moral e sociocultural. Em grande número de ocasiões
26
VENCESLAU, Rose Melo. Status de filho e direito ao conhecimento da origem biológica. In: RAMOS,
Carmen Lucia Silveira et al. (orgs.). Diálogos sobre direito civil: construindo uma racionalidade
contemporânea. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 399.
27
FACHIN, Luiz Edson. Da paternidade: relação biológica e afetiva. Belo Horizonte: Del Rey, 1996, p. 82.
28
VILLELA, João Batista. Família hoje. A nova família: problemas e perspectivas. Rio de Janeiro:
Renovar, 1997, p. 85.
16
o vínculo biológico não transcende a ele mesmo e revela-se completo e
patológico fracasso da relação de paternidade sob o prisma humano,
social e ético. Em contrapartida, múltiplas situações e de ausência de
ligação biológica geram e mostram relação afetiva, em nível de
paternidade saudável, produtiva, responsável. E os milhões de casos de
paternidade biológica não desejada? Por outro lado, a paternidade
oriunda da adoção é plenamente consciente e desejada 29.
Sobre o assunto, conclui Luiz Edson Fachin:
Desse modo, sob a égide da igualdade e da primazia do afeto, caminha
a doutrina para o reconhecimento da filiação como realidade em que o
aspecto biológico caminha lado a lado com o socioafetivo 30.
E continua:
A verdade sociológica da filiação se constrói, revelando-se não apenas
na descendência, mas no comportamento de quem expende cuidados,
carinho no tratamento, quer em público, quer na intimidade do lar, com
afeto verdadeiramente paternal, construindo vínculo que extrapola o laço
biológico, compondo a base da paternidade. É à luz de uma
hermenêutica constitucional de valorização da dignidade da pessoa
humana – princípio fundante da República, conforme se extrai do art. 1
da Carta Magna – que afirma Paulo Luiz Netto LÔBO: “a
repersonalização, posta nestes termos (...) é a afirmação da finalidade
mais relevante da família: a realização da afetividade pela pessoa do
grupo familiar; no humanismo que só se constrói na solidariedade; com
o outro”. (A repersonalização nas relações de família. In BITTAR, Carlos
Alberto (org.) O direito de família e a Constituição de 1988. São Paulo:
Saraiva, 1989, p. 89).
O reconhecimento da filiação socioafetiva se impôs a partir do
desenvolvimento da mesma engenharia genética que tornou inegável a
verdade biológica. Se, de um lado, a ciência permite a certeza sobre os
laços de sangue, ela permite, sob outro aspecto, que tais laços sejam
postos à margem diante de uma realidade socioafetiva31.
É inegável o valor jurídico do afeto e seu reconhecimento pela jurisprudência
vem ganhando cada vez mais espaço e, de fato, em algumas ocasiões, está se
sobrepondo ao direito de conhecimento da identidade genética, como no acórdão
abaixo:
29
PEREIRA, Sérgio Gischkow. Algumas considerações sobre a nova adoção. Revista dos Tribunais, São
Paulo, v. 682, p. 65, 1992.
30
FACHIN, Luiz Edson. Direito de Família: elementos críticos à luz do novo código civil brasileiro. 2ª ed.
Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 18.
31
FACHIN, Luiz Edson. Direito de Família: elementos críticos à luz do novo código civil brasileiro. 2ª ed.
Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 20.
17
Pedidos de desconstituição da relação de filiação cumulativamente com
investigação de paternidade. Oposição do pai registral. Vínculo
socioafetivo. 1 – Cabe apenas ao marido o direito de contestar a
paternidade dos filhos nascidos de sua mulher. Inteligência do art. 1691
do CC/2002. 2 – O filho maior pode impugnar o reconhecimento da sua
filiação apenas dentro dos quatro anos que se seguir à maioridade civil,
sendo totalmente descabida a ação se proposta quando o filho já
contava com 38 anos, é casado e inclusive já possui filho. Art. 1614
CC/2002. 3 – A anulação do registro, para ser admitida, deve ser
sobejamente demonstrada como decorrente de vício do ato jurídico, ou
seja, coação, erro, dolo, simulação ou fraude, o que não se verifica,
quando se trata de uma declaração de paternidade feita pelo marido da
mãe em relação a filho que foi concebido e nasceu na constância do
casamento. 4 – Mesmo que esteja ausente o liame biológico, pelo fato
da mãe do autor ter sido infiel ao pai registral, induzindo-o a erro,
descabe desconstituir a relação jurídica de paternidade quando resta
incontroversa a existência da filiação socioafetiva, e o pai registral (e
socioafetivo) não concorda com a desconstituição do registro civil.
Recursos providos, por maioria. (TJRS, Ap. cível n. 70.018.883.215, 7ª
Câm. Cível, rel. Des. Sérgio Fernando Vasconcellos Chaves, j.
27.06.2007)32.
A afetividade faz com que o relacionamento se fortaleça, e ela se revela
muitas vezes por pequenos atos, como um abraço ou uma conversa amigável, por
exemplo. Este sentimento é uma das vigas estruturais de uma família e por sua vez da
sociedade, porquanto uma família saudável tem mais a oferecer a esta.
Outro aspecto relevante que envolve a afetividade pura é o vínculo filial que
se forma pela adoção. Presente se encontra aqui não só a filiação, porquanto se trata
de uma filiação qualificada pela vontade, pelo desejo de dar a outro ser humano amor,
carinho, afeto, pela vontade de dispensar a este ser, todos os cuidados necessários a
um bom desenvolvimento social, econômico, cultural, e, principalmente moral.
É neste cenário que aparece um tema que comporta grandes e acaloradas
discussões jurídicas e sociais: o da adoção por homossexuais.
Lembra Candice de Vasconcellos Pedroso Grams Gentil Fernandes, verbis:
Foi em 1996, que pela primeira vez na História do Brasil que a presença
dos homossexuais foi reconhecida em documento oficial, através do
Programa Nacional dos Direitos Humanos. É impressionante que em um
país considerado entre os cinco primeiros do mundo em
homossexualidade, que a data da „oficialização‟ do contingente gay, seja
32
D´ANGELO; Suzi e Élcio. Direito de família. São Paulo: Anhanguera Editora, p. 282-283.
18
tão recente. O Brasil, segundo dados estatísticos, coletado pelo Grupo
Gay da Bahia, é o campeão mundial de assassinatos de homossexuais,
com um assassinato de gay a cada dois dias, somente no ano 2000.
Parece ser impossível a existência do binômio homossexualidade e
cidadania. Será que a opção sexual de uma pessoa retira dela, como na
antiguidade bíblica citada, quaisquer vestígios de direitos?33
Trataremos agora tão somente da adoção deixando a discussão acerca da
união homoafetiva para o próximo tópico.
Os conceitos e preconceitos que envolvem o relacionamento entre
homossexuais são diversos daqueles que dizem respeito à adoção de crianças e/ou
adolescentes por um homossexual ou por um casal homossexual. No entanto, na
adoção, o direito mais relevante a ser preservado não é o dos adotantes, mas sim do
adotado, o instituto visa o seu bem estar, pautado pelo seu direito à vida, à saúde, à
alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao
respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, colocando-o a salvo de toda
forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (art.
227, Constituição Federal).
A adoção pode ser requerida por uma pessoa e também por duas,
mencionando a lei que, neste caso, os adotantes devem ser marido e mulher ou viver
em união estável (art. 1622, CC/2002).
Na adoção singular, não há óbice legal impedindo um homossexual de
proceder à adoção de uma criança ou de um adolescente, ou mesmo, de uma pessoa
maior de 18 anos, de forma que nada impede que apenas um dos parceiros venha a
realizar a adoção na modalidade singular.
Nesta modalidade, a jurisprudência, mediante cuidadoso estudo psicossocial
por equipe interdisciplinar que possa identificar na relação o melhor interesse do
adotando.
33
FERNANDES, Candice de Vasconcellos Pedroso Grams. Direito das Minorias. Rio de Janeiro: Editora
Forense, 2001, p. 192.
19
Nesse sentido, já decidiu o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro:
A afirmação de homossexualidade do adotante, referência individual
constitucionalmente garantida, não pode servir de empecilho a adoção
de menor, se não demonstrada ou provada qualquer manifestação
ofensiva ao decoro e capaz de deformar o caráter do adotado, por
mestre e cuja atuação é também entregue a formação moral e cultural
de muitos outros jovens. (Ap. 14.332/98, 9ª Câm. Cív., rel. Des. Jorge de
Miranda Magalhães, DORJ, 28/04/1999).
A questão polêmica se instaura sobre a possibilidade de adoção por duas
pessoas do mesmo sexo, na modalidade conjunta.
Não obstante a oportunidade de discussão do tema da união homoafetiva,
como já dito, trataremos do tema no próximo tópico. No entanto, ninguém pode duvidar
que em uma família constituída por um casal homossexual não haja proteção ao
adotando, pois vivendo o adotando com quem mantém vínculo familiar estável, é excluir
a possibilidade de adoção a sua manutenção em instituição, o que só vem em seu
prejuízo.
A doutrina e a jurisprudência, em especial esta última, têm avançado no
assunto tutelando essas uniões e a família por elas constituídas, igualando situações
que necessitam de isonomia, fazendo com que a sociedade venha a crer que os
princípios constitucionais protegem as uniões homoafetivas desde 1988.
Tal posicionamento pode ser conferido em recentíssima decisão do Superior
Tribunal de Justiça:
DIREITO CIVIL. FAMÍLIA. ADOÇÃO DE MENORES POR CASAL
HOMOSSEXUAL. SITUAÇÃO JÁ CONSOLIDADA. ESTABILIDADE DA
FAMÍLIA. PRESENÇA DE FORTES VÍNCULOS AFETIVOS ENTRE OS
MENORES E A REQUERENTE. IMPRESCINDIBILIDADE DA
PREVALÊNCIA DOS INTERESSES DOS MENORES. RELATÓRIO DA
ASSISTENTE SOCIAL FAVORÁVEL AO PEDIDO. REAIS VANTAGENS
PARA OS ADOTANDOS. ARTIGOS 1º DA LEI 12.010/09 E 43 DO
ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. DEFERIMENTO DA
MEDIDA.
1. A questão diz respeito à possibilidade de adoção de crianças por
parte de requerente que vive em união homoafetiva com companheira
que antes já adotara os mesmos filhos, circunstância a particularizar o
caso em julgamento.
2. Em um mundo pós-moderno de velocidade instantânea da
informação, sem fronteiras ou barreiras, sobretudo as culturais e as
20
relativas aos costumes, onde a sociedade transforma-se velozmente, a
interpretação da lei deve levar em conta, sempre que possível, os
postulados maiores do direito universal.
3. O artigo 1º da Lei 12.010/09 prevê a "garantia do direito à convivência
familiar a todas e crianças e adolescentes". Por sua vez, o artigo 43 do
ECA estabelece que "a adoção será deferida quando apresentar reais
vantagens para o adotando e fundar-se em motivos legítimos".
4. Mister observar a imprescindibilidade da prevalência dos interesses
dos menores sobre quaisquer outros, até porque está em jogo o próprio
direito de filiação, do qual decorrem as mais diversas consequências
que refletem por toda a vida de qualquer indivíduo.
5. A matéria relativa à possibilidade de adoção de menores por casais
homossexuais vincula-se obrigatoriamente à necessidade de verificar
qual é a melhor solução a ser dada para a proteção dos direitos das
crianças, pois são questões indissociáveis entre si.
6. Os diversos e respeitados estudos especializados sobre o tema,
fundados em fortes bases científicas (realizados na Universidade de
Virgínia, na Universidade de Valência, na Academia Americana de
Pediatria), "não indicam qualquer inconveniente em que crianças sejam
adotadas por casais homossexuais, mais importando a qualidade do
vínculo e do afeto que permeia o meio familiar em que serão inseridas e
que as liga a seus cuidadores".
7. Existência de consistente relatório social elaborado por assistente
social favorável ao pedido da requerente, ante a constatação da
estabilidade da família. Acórdão que se posiciona a favor do pedido,
bem como parecer do Ministério Público Federal pelo acolhimento da
tese autoral.
8. É incontroverso que existem fortes vínculos afetivos entre a recorrida
e os menores – sendo a afetividade o aspecto preponderante a ser
sopesado numa situação como a que ora se coloca em julgamento.
9. Se os estudos científicos não sinalizam qualquer prejuízo de qualquer
natureza para as crianças, se elas vêm sendo criadas com amor e se
cabe ao Estado, ao mesmo tempo, assegurar seus direitos, o
deferimento da adoção é medida que se impõe.
10. O Judiciário não pode fechar os olhos para a realidade fenomênica.
Vale dizer, no plano da “realidade”, são ambas, a requerente e sua
companheira, responsáveis pela criação e educação dos dois infantes,
de modo que a elas, solidariamente, compete a responsabilidade.
11. Não se pode olvidar que se trata de situação fática consolidada, pois
as crianças já chamam as duas mulheres de mães e são cuidadas por
ambas como filhos. Existe dupla maternidade desde o nascimento das
crianças, e não houve qualquer prejuízo em suas criações.
12. Com o deferimento da adoção, fica preservado o direito de convívio
dos filhos com a requerente no caso de separação ou falecimento de
sua companheira. Asseguram-se os direitos relativos a alimentos e
sucessão, viabilizando-se, ainda, a inclusão dos adotandos em
convênios de saúde da requerente e no ensino básico e superior, por ela
ser professora universitária.
13. A adoção, antes de tudo, representa um ato de amor,
desprendimento. Quando efetivada com o objetivo de atender aos
interesses do menor, é um gesto de humanidade. Hipótese em que
21
ainda se foi além, pretendendo-se a adoção de dois menores, irmãos
biológicos, quando, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça,
que criou, em 29 de abril de 2008, o Cadastro Nacional de Adoção, 86%
das pessoas que desejavam adotar limitavam sua intenção a apenas
uma criança.
14. Por qualquer ângulo que se analise a questão, seja em relação à
situação fática consolidada, seja no tocante à expressa previsão legal de
primazia à proteção integral das crianças, chega-se à conclusão de que,
no caso dos autos, há mais do que reais vantagens para os adotandos,
conforme preceitua o artigo 43 do ECA. Na verdade, ocorrerá verdadeiro
prejuízo aos menores casos não deferidos a medida.
15. Recurso especial improvido.(STJ, RECURSO ESPECIAL Nº 889.852
- RS (2006/0209137-4) - RELATOR : MINISTRO LUIS FELIPE
SALOMÃO).
Diante de todo o exposto, vemos que nossa doutrina e jurisprudência, ante as
mudanças sociais pelas quais vem passando a família, mudanças essas de certa forma,
severas, porém, paulatinas, têm tentado, por meio da hermenêutica calcada em
princípios constitucionais, especialmente o princípio da dignidade da pessoa humana,
atender ao anseio da sociedade, buscando soluções impregnadas de justiça, fulcradas
na igualdade, afeto, respeito e solidariedade, sentimentos existentes entre os membros
que compõem a família.
5. UNIÃO EXTRAMATRIMONIAL, ASPECTOS JURÍDICOS, SOCIAIS E AFETIVOS.
A lei não imprime à união estável contornos precisos, limitando-se a elencar
suas características, e faz isso no art. 1723 do Código Civil 34: convivência pública,
contínua e duradoura estabelecida com o objetivo de constituição de família. Preocupase em identificar a relação pela presença de elementos de ordem objetiva, ainda que o
essencial seja a existência de vínculo de afetividade, ou seja, o desejo de constituir
família35.
34
É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na
convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de família.
35
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 6ª ed. rev. atual. e ampl. – São Paulo: Editora
Revista do Tribunais, 2010.
22
Maria Berenice Dias, ainda assevera:
Com a evolução dos costumes, as uniões extramatrimoniais acabaram
merecendo a aceitação da sociedade, levando a Constituição a dar nova
dimensão à concepção de família, passando a proteger relacionamentos
outros além dos constituídos pelo casamento. Emprestou juridicidade
aos enlaces extramatrimoniais até então marginalizados pela lei. Assim,
o concubinato foi colocado sob regime de absoluta legalidade 36. As
uniões de fato entre um homem e uma mulher foram reconhecidas como
entidade familiar, com o nome de união estável. Também foi estendida
proteção estatal aos vínculos monoparentais, formados por um dos pais
com seus filhos
(...)
A Constituição, ao garantir especial proteção à família, citou algumas
entidades familiares – as mais freqüentes -, mas não as desigualou.
Limitou-se a elencá-las, não lhes dispensando tratamento diferenciado.
O fato de mencionar primeiro o casamento, depois a união estável, e por
último, a família monoparental não significa qualquer preferência nem
revela escala de prioridade entre eles. Ainda que a união estável não se
confunda com o casamento, ocorreu a equiparação das entidades
familiares, sendo todas merecedoras da mesma proteção. A
Constituição acabou por reconhecer juridicidade ao afeto ao elevar as
uniões constituídas pelo vínculo de afetividade à entidade familiar. Paulo
Lobo sustenta que o caput do art. 226 da CF é cláusula geral de
inclusão, não sendo admissível excluir qualquer entidade que preencha
os requisitos de afetividade, estabilidade e ostensibilidade37. Não
obstante as interpretações restritivas do texto constitucional feitas pelos
profetas da conservação, como refere Belmiro Welter, há a necessidade
de afastar essa baixa constitucionalidade que se quer emprestar à união
estável, desigualando-a do casamento38. A esse tratamento equalizador
foram fiéis as primeiras leis que regulamentaram a união estável, não
estabelecendo diferenciações ou revelando preferências.(grifos da
autora)39.
36
Rodrigues, Silvio. Direito civil: direito de família, p. 263.
Lobo.
Paulo.
Entidades
familiares
constitucionalizadas.
Disponível
em
<http://ibdfam.org.br/?artigos&artigo=128> Acesso em: 09 de junho de 2011.
38
Welter. Belmiro Pedro. Estatuto da União Estável. São Paulo: Editora Livraria do Advogado, 2010. p.
37.
39
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 6ª ed. rev. atual. e ampl. – São Paulo: Editora
Revista do Tribunais, 2010, p. 168.
37
23
Perceba-se que a doutrina citada não exclui NENHUMA união constituída
pelo vínculo de afetividade, portanto, não há que se fazer distinção entre a união entre
homem e mulher (heterossexual) ou entre pessoas do mesmo sexo (homoafetiva).
A união estável existente entre homem e mulher (chamada pela doutrina de
união estável, propriamente dita) já não mais suscita discussões acaloradas e
impregnadas de preconceitos, embora nem sempre tenha sido desta forma. Não se
diga o mesmo das uniões homossexuais (chamada pela doutrina de união
homoafetiva).
As uniões homoafetivas são relações familiares semelhantes ao casamento,
apenas diferenciando-se no que pertine à possibilidade de gerar filhos, o que não é
essencial para a configuração de uma entidade familiar, porquanto é possível a
reprodução sem sexo, sexo sem matrimônio e matrimônio sem reprodução.
Certo é que, preenchidos os requisitos da relação duradoura, pública e
contínua, não há porque excluir as uniões entre pessoas do mesmo sexo do conceito
de núcleo familiar, sob pena de ser violado o princípio da igualdade.
Paulo Lobo vai além e afirma que todas as entidades familiares devem ser
protegidas, inclusive as uniões homoafetivas, sob pena de violar o princípio da
dignidade da pessoa humana40.
Atualmente, no atual estágio de evolução familiar em que nossa sociedade se
encontra, é impossível não reconhecer a natureza familiar da família homoafetiva. Suas
relações de afeto e entre-ajuda é que interessam para o crescimento do ser humano.
Suas relações de afetividade ultrapassam seu conteúdo patrimonial, e já são
solucionadas no âmbito das Varas de Família com fundamento no direito de família
constitucional. Nesse sentido, já decidiu o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:
Relações homossexuais. Competência para julgamento de separação
de sociedade de fato dos casais formados por pessoas do mesmo sexo.
Em se tratando de situação que envolve relações de afeto, mostra-se
competente para o julgamento da causa uma das varas de família, à
semelhança das separações ocorridas entre casais heterossexuais.
Agravo provido. (TJRS, Agravo de Instrumento nº 599075496, Rel. Des.
Breno Moreira Mussi. j. 17/6/1999).
40
Lobo.
Paulo.
Entidades
familiares
constitucionalizadas.
<http://ibdfam.org.br/?artigos&artigo=128> Acesso em: 09 de junho de 2011.
Disponível
em
24
Na seara jurídico-familiar estão sendo rompidos conceitos e reformuladas
posturas doutrinárias, substituindo a ideologia tradicional, amparada na sagrada família,
por outra mais coerente com a realidade sustentada pelo afeto. Percebe-se então que o
casamento deixou de ser o único legitimador da família e a sociedade conjugal tende a
ser vislumbrada como estrutura de amor e de respeito, independentemente do sexo
biológico e da orientação afetiva de seus elementos.
Aliás, outra não podia ser a conclusão a que a doutrina e a jurisprudência
vêm chegando, porquanto, trata-se de simples interpretação do texto constitucional.
As variantes de ordem sexual encontram-se tuteladas em inúmeros diplomas
relevantes, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos (artigos 1º, 2º, 3º e 7º,
por exemplo, consagradores da liberdade, igualdade e da não-discriminação) e a
maioria das constituições democráticas, a exemplo da Constituição Federal de 1988,
através da disposição contida nos artigos 5º, caput, e 3º, IV, in verbis:
Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do
Brasil:
(...)
IV- promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo,
cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no
País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes (...)
Coroando e, portanto, reconhecendo a existência de uma entidade familiar na
união homoafetiva, nossa Corte Suprema, em decisão histórica proferida na Ação
Direta de Inconstitucionalidade nº 4277 e Ação de Descumprimento de Preceito
Fundamental nº 132, de 05/05/2011, por votação unânime, “julgou procedente as
ações, com eficácia erga omnes e efeito vinculante, autorizados os Ministros a
decidirem monocraticamente sobre a mesma questão, independentemente da
publicação do acórdão”. (Grifamos)
Referida decisão é um marco para o Direito de Família justamente porque se
fundamenta em princípios constitucionais inscritos nos artigos 1º, III (dignidade da
pessoa humana); 3º, IV (promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça,
sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação); 5º, caput (igualdade) e VI
25
(inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença); expressando toda a
magnitude constitucional desse ramo do direito, bem como externando sua
repersonalização, além de ressaltar o valor jurídico do afeto nas relações familiares.
Isso sem contar acerca da extensão de referida decisão, em razão da atribuição da
eficácia erga omnes e do efeito vinculante, o que por si só, poderia ser objeto de novo
artigo.
Ante todo o exposto, é inegável a verdade de que a união de pessoas do
mesmo sexo apresenta as características da entidade familiar, porquanto dotadas de
afeto, de respeito, consideração, e auxílio mútuo, de forma que os parceiros encaram a
relação de forma contínua e duradoura, igual a qualquer casal heterossexual, sendo
que estas relações merecem serem reconhecidas e protegidas pelo Estado. Aliás, de
outro modo não poderia ser, porquanto, a República Federativa do Brasil constitui-se
em um Estado Democrático de Direito, e como tal orienta-se pelo valor-fonte da
dignidade.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
No atual estágio do Estado Democrático de Direito não há espaço para
discriminações desarrazoadas porquanto a igualdade prevista em nossa Constituição
Federal é uma igualdade material, ou seja, a igualdade que trata igualmente os iguais e
desigualmente os desiguais na medida de sua desigualdade. Há, portanto, a análise,
caso a caso, da necessidade de aplicação da lei ou de sua integração levando-se em
consideração peculiaridades do caso concreto, sendo que, em questões familiares, há
de ser considerada a pluralidade das relações existentes (família matrimonializada,
extramatrimonializada, monoparental, socioafetiva, etc), seja ela de que forma for, não
importando o nome que lhe seja atribuído: casamento, união estável, união
homoafetiva, filiação biológica, filiação socioafetiva, e mais alguma que esteja por vir;
importando apenas, para ser tratada como uma relação protegida e regida pelo
microssistema do direito de família, que a relação das pessoas ligadas o sejam por um
vínculo de consanguinidade, afinidade ou afetividade. Certo é, que nenhuma realidade
fática, nem ninguém, pode ser excluído da proteção jurídica estatal.
26
Os vetores da justiça, do amor, da igualdade, do respeito à dignidade
humana, da liberdade e do atendimento das necessidades humanas, pelo fato da nova
concepção de família ter a possibilidade de desenvolver todas as potencialidades do
homem, são essenciais a uma sociedade melhor e a mais perfeita organização familiar.
É certo que uma má sociedade apenas por exceção produz boas famílias,
mas famílias más também não originam uma boa sociedade.
Se a família estiver estruturada (calcada em relações de respeito, afeto,
cooperação e solidariedade) e funcionalizada para transmitir aos seus componentes os
valores superiores de convivência, um passo formidável terá sido dado no escopo de
constituir uma sociedade mais justa, fraterna, solidária, igualitária e libertária. As
transformações porque a família vem passando expressam o ajustamento deste ente
social às novas realidades fáticas e valorativas. Por isso o direito de família vem
mudando tão acentuadamente. E que se fomentem estas mudanças, para o direito não
ser obstáculo ao advento de uma sociedade nova e melhor. O direito deve ser mais um
fator a acelerar as modificações. E o será se o compromisso de seus aplicadores e
exegetas for com os autênticos interesses populares, e não com teorias enclausuradas
nos gabinetes, em regras agasalhadas por uma metafísica platônica correspondente a
um mundo fantasioso e imaginário, que não reflete a realidade de nosso povo.
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