1 O IMPÉRIO DE SANTO ELESBÃO NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO, SÉCULO XVIII Mariza de Carvalho Soares RACE AND ETHNICITY - RAE02 “African and African-descended kings, queens and festivals in the Atlantic world” LASA 2001. Washington, 6-8 de setembro de 2001. 2 O IMPÉRIO DE SANTO ELESBÃO NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO, SÉCULO XVIII Mariza de Carvalho Soares∗ Introdução A questão da escravidão africana nas Américas tem merecido nos últimos anos especial atenção por parte dos historiadores.1 Em quase todos os casos a documentação já identificada está dispersa e a referente a grupos específicos é escassa e permite apenas que se levantem hipóteses sobre suas vidas e formas de organização, assim como sobre a relação entre as novas alternativas de organização e a transferência de formas culturais africanas para o novo mundo.2 Nesse caso o deslocamento do ponto de partida do estudo dos africanos escravizados da África para o Brasil resulta do pressuposto de que os critérios para a reorganização desses grupos étnicos são estabelecidos a partir das novas condições encontradas no cotidiano da escravidão. Tal afirmação não implica em negar a importância das tradições étnicas africanas. Formas culturais e organizativas tais como política, moradia, parentesco, religião etc. – podem e certamente são trazidas pelos escravos tanto individualmente quanto em grupo. Entretanto, é importante alertar para o fato de que é necessário compreender como se dá a transferência dessa “bagagem social” porque embora os escravos chegados à América se pensem a partir de um passado, eles se organizam de acordo com seu presente, tendo em vista um futuro, sempre que possível livre da escravidão, mas ocidentalizado e cristão. O trabalho aqui apresentado é continuação de uma pesquisa anterior, sobre a Irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia na cidade do Rio de Janeiro/Brasil, uma irmandade constituída basicamente por africanos vindos da Costa da Mina na primeira metade do século XVIII.3 O corpo documental reunido em torno dessa irmandade ∗ Doutora em História e Professora do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro, Brasil. Agradeço ao Professor Paul Lovejoy o incentivo para desenvolver uma pesquisa sobre escravidão africana no Brasil colonial em combinação com a História da África e da escravidão atlântica. Agradeço ao Embaixador Alberto da Costa e Silva por sua leitura erudita e generosa da primeira versão desse texto. 1 Novos enfoques teóricos da historiografia africanista têm retomado o tema. Entre eles destacam-se os trabalhos de Paul E. Lovejoy. Transformations in slavery: a history of slavery in Africa. Cambridge. 1983; Joseph Miller. Way of death: merchant capitalism and the angolan slave trade 1730-1830. Princeton. Princeton University Press. 1988; John K. Thornton. Africa and Africans in the making of the Atlantic world, 1400-1680. Cambridge. 1992. Entre os historiadores brasileiros ver Luiz Felipe de Alencastro. O trato dos viventes. Formação do Brasil no Atlântico sul. São Paulo. Companhia das Letras. 2000. 2 No Brasil, trabalhos recentes têm enfocado a presença de africanos vindos da África Ocidental para o Brasil, especialmente para o Rio de Janeiro. Carlos Eugênia Líbano Soares. A capoeira escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo. Editora da UNICAMP/CECULT. 2001. Merece ainda destaque o livro da historiadora americana Mary Karasch. A vida dos escravos no Rio de Janeiro. 1808-1850. São Paulo Companhia das Letras. 2000. (edição original em inglês de 1987). Trabalhos mais recentes, alguns ainda em fase de conclusão, aparecem no seminário Enslaving connections: Africa and Brazil during the era of the slave trade, realizado na Universidade de York, Toronto, Canadá, outubro de 2000. 3 Ver Mariza de Carvalho Soares. Devotos da cor. Identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro, século XVIII. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira. 2000. 3 mostra a presença de sólidas organizações étnicas, sendo por isso seu estudo determinante tanto para a compreensão das irmandades quanto da própria escravidão na cidade do Rio de Janeiro e no Brasil colonial.4 Se, como afirma Robin Law, o tráfico altera e mesmo configura o reino do Daomé ao longo do século XVIII, ele também informa a configuração dos grupos étnicos traficados no Novo Mundo. Assim, do outro lado do Atlântico, nas irmandades ou nas chamadas “casas” onde realizam seus ritos secretos5 daomeanos e outros povos da Costa dos Escravos se enfrentam num esforço de construir novas formas de convivência. Embora tal afirmação possa parecer óbvia, muito poucos têm sido os historiadores interessados em conhecer o destino dos escravos traficados para fora da África, os laços que eles mantém com seu passado e as formas de sociabilidade que constroem na América. A primeira e mais recorrente questão aqui apontada é a incorporação do sistema classificatório adotado pela própria sociedade escravista para reconhecimento dos escravos africanos, as chamadas nações. Mesmo tendo um componente étnico e também cultural, a nação é atribuída aos escravos pelos agentes colonizadores e definida no quadro do tráfico atlântico. Assim sendo, os grupos organizados com base nesse critério, ultrapassam as fronteiras estritamente étnicas para se constituir como unidades mais inclusivas por mim denominadas grupos de procedência. A noção de grupo de procedência se inspira nos trabalhos do antropólogo Fredrik Barth quando ele afirma a existência de sistemas sociais abrangentes onde interagem indivíduos de diferentes grupos étnicos. Seguindo essa mesma orientação teórica o historiador Paul Lovejoy em recente trabalho aponta para o fato de que algumas vezes as identificações étnicas se tornam mais inclusivas como resultado da migração forçada da escravidão fazendo surgir uma solidariedade étnica que emerge entre diferentes grupos sem que exista qualquer condição prévia para isso.6 Uma vez instalados no Novo Mundo os escravos se agrupam em torno das ditas nações, uma identidade atribuída que acaba sendo incorporada por eles, servindo como ponto de partida para o reforço de antigas fronteiras étnicas ou para o estabelecimento de novas configurações identitárias. Dessa forma, o grupo de procedência denominado mina no Rio de Janeiro não é necessariamente idêntico ao mina da Bahia, de Pernambuco ou do Maranhão. Também o que é designado mina no Rio de Janeiro no século XVIII difere do que, na mesma cidade, é considerado mina, no século XIX. Tais diferenças são conseqüência das variações do tráfico, das populações traficadas e dos arranjos no interior de cada nação, em cada cidade, época e situação. Por isso mais que 4 O conjunto da documentação aqui citada é proveniente de dois tipos de fontes: documentação interna da irmandade (atas e compromissos) e testamentos. Os primeiros pertencem aos acervos da própria irmandade e também da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (BN-RJ) e de Lisboa (BN-Li); os testamentos pertencem ao Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro (ACMRJ). 5 Não foi até agora localizada documentação sobre essas casas na cidade do Rio de Janeiro no século XVIII. Não há, entretanto, qualquer dúvida quanto ao fato de que existiram e provavelmente situadas em locais muitos próximos das capelas das irmandades de pretos. Sobre essas casas em Minas Gerais ver Luiz Mott. “Acotundá: raízes setecentistas do sincretismo religiosos afro-brasileiro”. In Luiz Mott. Escravidão, homossexualidade e demonologia. São Paulo. Ícone Editora. 1998. 6 Sobre grupos de procedência ver Mariza de Carvalho Soares. Devotos da cor... Sobre os autores citados me refiro a Fredrik Barth. “Grupos étnicos e suas fronteiras”. In O guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Organização de Tomke Lask. Rio de Janeiro. Contra Capa. 2000; Paul Lovejoy. “Enslaved africans in the diaspora”. In Paul Lovejoy (edited by) Identity in the shadow of slavery. London/New York. Continuum. 2000. p. 11. 4 etnias (no sentido de grupos originais) trata-se aqui de configurações étnicas em permanente processo de transformação. A segunda questão, à qual darei destaque no curso desse texto, é a inserção de grupos étnicos africanos nas agremiações católicas destinadas aos leigos como via de acesso dos africanos escravizados à sociedade colonial.7 A partir dos anos de 1980, novas pesquisas sobre escravidão no Brasil abriram caminho para uma melhor compreensão das formas de organização da população escrava.8 A leitura desses trabalhos mostra que a sociedade escravista apresenta determinadas regras e limites para a vida da população escrava e que os indivíduos aprendem a se mover no interior dessas regras, de modo a criar alternativas de convivência ou contestação, de acordo com as condições particulares, que cada caso oferece. Assim, se de um lado são impostas aos pretos9 as rígidas normas e a hierarquia da sociedade estamental, de outro lhes é franqueado um infindável rol de atalhos por onde as pessoas têm acesso a distinções e dignidades, em diferentes esferas. Para africanos escravos e forros, durante todo o período colonial, a mais eficaz via de acesso a essas distinções foi ingressar numa irmandade. 1. As irmandades leigas na cidade do Rio de Janeiro No Brasil dos tempos coloniais - e mesmo ao longo do século XIX - a vida religiosa é marcada por uma grande participação leiga. Os leigos constroem capelas e igrejas para seus santos de devoção; deixam pequenos oratórios nas esquinas das cidades e na beira das estradas; propiciam o culto doméstico dos santos de devoção individual ou familiar. Muitas vezes devoções particulares se transformam em cultos públicos.10 A filiação a uma ou mais irmandades é demonstração de fervor religioso e também de prestígio social. Por isso as irmandades são consideradas uma das principais alternativas para organização dos leigos na sociedade colonial.11 Mais que meros espaços religiosos, as igrejas são espaços de sociabilidade onde procissões, enterros e outras cerimônias públicas estão entre os mais concorridos acontecimentos sociais da cidade. Nesses tempos, a pompa de um funeral dá a medida da importância de um homem.12 Vem daí uma das principais razões para pertencer a uma irmandade. Por toda parte surgem irmandades de clérigos, militares, sapateiros, mascates e mercadores, negros, pardos, crioulos e africanos. Sob a égide de uma sociedade hierarquizada as 7 Vale aqui uma reflexão sobre a noção de estrangeiro proposta por Meillassoux. O ato de converter-se e ingressar numa irmandade, garante ao africano um espaço no interior da sociedade cristã, apagando, pelo menos na esfera religiosa a marca de sua gentilidade. Claude Meillassoux. Antropologia da escravidão. O ventre de ferro e dinheiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 1995. 8 Destaco trabalhos como os de Stuart Schwartz. Segredos internos. Engenhos e escravos na sociedade colonial. (primeira edição em inglês, 1985). São Paulo. Companhia das Letras. 1995; João José Reis. Rebelião escrava no Brasil. A história do levante dos malês (1835). São Paulo. Brasiliense. 1986. 9 “Preto” é um termo de uso generalizado no século XVIII. As irmandades são oficialmente chamadas irmandades de “Homens Pretos” e “Homens Pardos”. 10 Sobre as antigas igrejas e devoções da cidade do Rio de Janeiro, ver Augusto Maurício. Templos históricos do Rio de Janeiro. 2ª edição revista e aumentada. Rio de Janeiro: Gráfica Laemmert Limitada. 1947. 11 Sobre irmandades leigas ver Caio César Boschi. Os leigos e o poder. (Irmandades leigas e política em Minas Gerais). São Paulo: Editora Ática.1986. 12 Sobre o tema da morte, ver João José Reis. A morte é uma festa. São Paulo: Companhia das Letras. 1995. 5 irmandades consideradas mais ricas impedem a entrada de homens sem patrimônio ou pureza de sangue.13 Já em Portugal as irmandades não vêem com bons olhos a filiação de escravos e mesmo de pretos e pardos forros. Excluídos do convívio social, eles são também discriminados em suas devoções. Assim são criadas as primeiras agremiações religiosas de homens à época chamados “pretos” e “pardos”, fossem eles escravos, ou não. A primeira irmandade de homens pretos de que se tem notícia é criada em Lisboa no ano de 1460. Trata-se da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário do Mosteiro de São Domingos, em cuja organização inspira todas as demais irmandades de homens de cor.14 Além de cultuarem seus santos separados dos brancos, essas agremiações passam também, autorizadas pela Santa Casa da Misericórdia, a enterrar seus mortos. Assim é que, tanto em Portugal (para onde vão os primeiros escravos africanos ainda no século XV) quanto no Brasil, as irmandades são a primeira e principal forma institucionalizada de organização dos negros africanos e de seus descendentes escravos, forros e livres.15 A análise dos compromissos16 mostra como, ao longo do tempo, vão sendo criadas inserções contrastivas no seio das irmandades.17 A existência na Península Ibérica de irmandades de homens brancos nas quais é exigida a limpeza de sangue faz surgirem, ainda em Portugal, irmandades “de Homens Pretos”.18 A já mencionada Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos do Convento de São Domingos em Lisboa é uma delas. Lendo com cuidado seu compromisso, é possível 13 Em Portugal estão incluídos nessa categoria os descendentes de judeus, mouros, ciganos e negros. Na cidade do Rio de Janeiro, assim como em Salvador a Santa Casa de Misericórdia é a primeira agremiação leiga a instituir esse critério de exclusão. A J R. Russel-Wood. Fidalgos e filantropos. A Santa Casa de Misericórdia da Bahia, 1550-1755. Brasília: Editora Universidade de Brasília. 1981; do mesmo autor “Prestige, power and piety in colonial Brazil: the Third orders of Salvador”. Hispanic American Historical Review 69: 1989. 14 A relação entre São Domingos e Nossa Senhora do Rosário decorre do fato de ter sido ele o introdutor do seu culto na Igreja Católica. Sobre irmandades na peninsula ibérica e no Brasil ver Patrícia Ann Mulvey The black lay brotherhoods of colonial Brazil: a history. City University of New York, Ph.D. 1976. Xerox University Microfilms. Ann Arbor. Michegan 48 108. pp. 10-12,17. Ver também Bernard Vincent. “Lês confréries de noirs dans la Péninsule Ibérique (XVe-XVIIIe siècles). In David González Cruz (editor) Religiosidad y costumbres populares em Iberoamérica. Actas Del Primer Encuentro Internacional celebrado em Almonte-El Rocio (España) del 19 al 21 de febrero de 1999. Sobre organizações religiosas de africanos e afro-descendentes no Novo Mundo ver também John Thornton. Africa and Africans..., especialmente o capítulo 7, “African cultural groups in the Atlantic world”. pp.183-205. 15 Sobre a ida de escravos africanos para Portugal no século XV ver G. H. Zurara Crónicas de Guiné. Segundo o ms. de Paris. Modernizada. Introdução, notas, novas considerações e glossário de José de Bragança. Barcelos: livraria Civilização Editora. 1973. Biblioteca Histórica. Série Ultramarina. 16 Compromisso é a palavra usada para denominar os estatutos que regulamentam a existência das irmandades leigas no interior da Igreja Católica. 17 Recorro aqui à noção de identidade contrastiva de Roberto Cardoso de Oliveira onde o “nós” se constitui no próprio processo de diferenciação do “outros”. Roberto Cardoso de Oliveira. Identidade, etnia e estrutura social. São Paulo. Livraria Pioneira Editora. 1976. 18 O compromisso de 1618 da Misericórdia de Salvador estabelece sete condições para filiação entre elas ser “limpo de sangue”. Em Portugal essa exigência tem como alvos principais judeus, mouros e ciganos; nas colônias se estende aos negros. A. J. R. Russell-Wood. Fidalgos e filantropos... p. 93. 6 perceber que aí estão reunidos pretos, mouriscos brancos, mulatos e índios, embora apenas os pretos não escravos possam assumir cargos na hierarquia da Irmandade.19 Uma vez instaladas na colônia do Brasil, as irmandades de pretos se organizam regulamentando a entrada de crioulos e africanos das diversas procedências. Nas irmandades do Rosário, muitas delas criadas ainda no século XVII, são aceitos pretos de um modo geral, mas apenas os angolas e congos – algumas vezes crioulos - têm acesso aos cargos da irmandade. No século XVII a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Salvador aceita apenas angolas e crioulos. A Irmandade de Santo Antônio de Categeró aceita qualquer pessoa, mas restringe o acesso aos cargos a angolas e crioulos.20 Essa progressiva segmentação das irmandades explica porque os africanos da Costa da Mina, excluídos das esferas de poder das irmandades do Rosário, criam suas próprias agremiações.21 No Rio de Janeiro, a velha Matriz de São Sebastião, primeira igreja construída na cidade, é uma das poucas a permitir a presença de irmandades de pretos e pardos. Ao longo do século XVII aí se organizam quatro devoções: Nossa Senhora do Rosário, São Benedito, São Domingos e Nossa Senhora da Conceição. As três primeiras são de “Homens Pretos” e a última de “Homens Pardos”. Em 1667 as devoções do Rosário e São Benedito se juntam, formando uma única irmandade. As outras duas se instituem em irmandade em data ignorada ainda no século XVII.22 No final do século XVII a Igreja de São Sebastião está muito velha e o Bispo D. Antônio de São Jerônimo passa a não medir esforços para melhorar as condições de instalação do Cabido. De um lado investe na transferência da sede do bispado para uma das novas igrejas da cidade e de outro desencadeia uma campanha contra a permanência, nas dependências de sua igreja, das irmandades do Rosário e de São Domingos.23 Pressionados pelo bispo, no ano de 1700, os irmãos do Rosário dão início à construção de uma capela junto à então chamada Rua Pedro Costa. Na mesma ocasião os irmãos de São Domingos ganham um terreno da Câmara de vereadores e vão construir sua capela no Campo da Cidade. A primeira demora muitos anos para ser construída e só é inaugurada em 1725; a segunda, menor e mais pobre,fica pronta já em 1706. 19 Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos do Convento de São Domingos. Capítulo 7. Patricia Ann Mulvey. The black lay brotherhoods… “Appendix B”. pp. 255-263. 20 A. J. R. Russell-Wood. Fidalgos e filantropos... p. 108. 21 O compromisso de Nossa Senhora do Rosário do Rio de Janeiro de 1759 não faz distinção de nações. Entretanto é preciso lembrar que esse e todos os outros posteriores a 1755 devem passar a omitir esse tipo de restrição que passa a ser condenada pela Mesa de Consciência. Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rozario e Sam Benedito dos homens pretos; colocada na sua mesma Igreja nesta cidade de Sam Sebastião do Rio de Janeiro... 1759. AHU cód. 1950. capítulo 12, parágrafo 33. Agradeço a cópia desse documento a Larissa Viana. 22 Olympio de Castro. “Memórias sobre a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito dos Homens Pretos do Rio de Janeiro, escrita pelo Rev.mo Capelão Cônego Dr. Olympio de Castro. (Publicada na edição especial do Jornal do Commercio, comemorativa do Ano Santo) 1928”. In Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e S. Benedito dos Homens Pretos ereta na sua mesma igreja nesta Corte do Rio de Janeiro. 1928. pp. 47-58. 23 A Irmandade de Nossa Senhora da Conceição dos Homens Pardos, oficialmente instituída em 1700, permanece na Igreja de São Sebastião até o ano de 1729 quando, em meio a uma nova crise, é transferida para uma ermida na Rua do Hospício. 7 Ao longo do século XVIII essas e outras irmandades de homens pretos se espalham pela cidade. Muitas delas estão organizadas não apenas com base na cor, mas também na procedência da população africana. Existem devoções organizadas por africanos vindos de Angola e do Congo, como a irmandade do Rosário; outras onde predominam o chamado Gentio de Guiné, como a da Lampadosa e por fim as devoções dos africanos vindos da Costa da Mina.24 A irmandade do Rosário da cidade do Rio de Janeiro é dirigida por africanos de Angola. Segundo seu compromisso, os africanos de outras procedências podem fazer parte da irmandade, mas não assumir cargos na Mesa. Se negros e pardos haviam sido excluídos das irmandades de “homens brancos”, o grupo africano majoritário na cidade (os angolas) imbuído do mesmo espírito, limita a participação de africanos de outras procedências nas esferas de poder de sua agremiação. Uma vez excluídos das esferas de decisão das irmandades já então instituídas, os minas e outros grupos africanos minoritários que começam a chegar à cidade a partir da última década do século XVII, têm como única opção organizar suas próprias devoções. Uma vez instituídas elas adquirem características próprias ao grupo que as constitui, se diferenciando das demais não apenas pelo santo de devoção, mas pelo modo como internamente - e sem ferir as normas eclesiásticas -, reelaboram suas antigas tradições trazidas da África. Em meados do século XVIII os africanos da Costa da Mina estão ligados a pelo menos quatro irmandades. Duas delas vêem da antiga Sé e estão instaladas na própria Igreja do Rosário: a de Nossa Senhora da Lampadosa e de Santo Antônio da Mouraria.25 As duas últimas estão abrigadas na Igreja de São Domingos: são a Irmandade do Menino Jesus (também chamada Menino Deus) e a de Santo Elesbão e Santa Efigênia. A historiografia tem considerado os minas um grupo de menor destaque na cidade devido à sua suposta pequena expressão demográfica. Embora sejam, efetivamente, um grupo minoritário em relação aos angolas, na primeira metade do século XVIII, os minas chegam a representar quase 30% da população africana da cidade.26 Além disso, suas devoções e irmandades indicam ser esse grupo bastante organizado e provido de recursos financeiros. Em sua quase totalidade, as fontes utilizadas para identificação dos escravos africanos indicam apenas a procedência dos mesmos. A documentação das irmandades de africanos é preciosa para o estudo dos povos traficados. É aí que aflora a diversidade interna a cada uma das grandes categorias de procedências de uso mais corrente (mina, angola e guiné). A documentação da igreja de Santo Elesbão nos dá um detalhado perfil dos grupos étnicos aí presentes, mas pode também nos iludir quanto aos ausentes. Entre os anos de 1715 e 1716 quando o suprimento de Aladá para Ajudá é interrompido o Daomé passa a fornecer a totalidade dos escravos negociados em Ajuda. Segundo Robin 24 Sobre essa terminologia e a diversidade das nações africanas no Rio de janeiro, ver Mariza de Carvalho Soares. “Descobrindo a Guiné no Brasil colonial”. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, ano 161, nº 407, abr/jun 2000. pp. 71 -94. 25 Em meados do século a irmandade da Lampadosa constrói sua capela. Os registros de óbito do século XVIII mostram a presença de várias nações africanas no interior da Igreja da Lampadosa. Não foi ainda localizada nenhuma documentação sobre essa irmandade que permita conhecer os critérios de composição da mesma. A irmandade de Santo Antônio da Mouraria permanece na Igreja do Rosário e até pelo menos a década de 1740. Na década de 1770 há registros sobre uma capela devotada a esse santo, mas até agora não encontrei documentação significativa sobre ela. 26 Sobre composição da escravaria africana na cidade do Rio de Janeiro ver Mariza de Carvalho Soares. Devotos da cor... Cap. 3 e 4. 8 Law, nessa ocasião, “a significant proportion of the slaves sold on the Slave Cost, in fact, came not from the Gbe-speaking communities, but from their Yoruba-speaking neighbours to the north and north-east.”27 Os dados da Irmandade de Santo Elesbão não confirmam essa suposição. Nela até agora não encontrei registros de escravos de língua ioruba nesse período. Por outro lado esses grupos, por motivos ignorados, poderiam estar lá e não ser mencionados ou, mais provavelmente, estar numa das outras irmandades minas da cidade cuja documentação ainda não foi localizada.28 É o caso das irmandades do Menino Jesus e de Santo Antônio da Mouraria, por exemplo, ambas compostas especificamente por pretos minas.29 Como qualquer outra irmandade, as agremiações de africanos festejam anualmente seus santos de devoção. Embora sujeitas às mesmas normas eclesiásticas das irmandades de homens brancos, as irmandades de “Homens Pretos” ficam conhecidas por suas folias que saem às ruas recolhendo donativos para o custeio das festas caracterizadas pela incorporação de antigas tradições africanas reelaboradas no universo cristão. A autoridade máxima da folia é o rei que custeia seu reinado e a festa com recursos próprios, com “esmolas” dos irmãos ou recolhidas na rua. Essas cortes ficam famosas pelo reboliço que causam ao som de cantigas e danças. Entretanto, é preciso ter cautela para não associar precipitadamente, os reis e as rainhas das folias a antigos soberanos tribais africanos. A tradição da escolha destas cortes vem de Lisboa. A Mesa da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário do Mosteiro de São Domingos instituída em 1567 é composta por cargos executivos (juiz, procurador, etc.) e mais uma corte com rei, duque, conde e outros nobres, representando a sociedade estamental portuguesa no interior da irmandade. Se tal associação existe, ela deve ser buscada no universo cristão ibérico, em tempos muito mais antigos do que aquele aqui considerado. Assim, já inspirada na tradição ibérica, as irmandades de homens pretos no Brasil, escolhem reis e rainhas. Na historiografia brasileira e também nos trabalhos sobre folclore essas cortes ficam conhecidas como Folias, nome já adotado nos compromissos do século XVIII. A diferença entre a corte da irmandade portuguesa e as cortes das irmandades de “homens pretos” do Brasil é que aqui os dois segmentos da Mesa (os cargos executivos e os títulos de nobreza) aparecem separados: enquanto os juizes e os demais membros da Mesa encarregam-se da direção das irmandades, os reis encabeçam agremiações étnicas também denominadas “reinados” ou “estados imperiais”. A se reconstituir uma genealogia das folias da cidade do Rio de Janeiro, elas começam ainda na Igreja de São Sebastião, onde são um dos motivos de conflito entre os pretos e o Cabido. Em suas novas igrejas esses devotos passam a fazer circular suas cortes mais livremente e elas são vistas, especialmente nas proximidades do Campo da Cidade e no Largo do Carmo onde costumam ir saudar o governador e depois o vice-rei. A Folia da Lampadosa, uma das mais famosas no século XVIII adota esta tradição da 27 Robin Law. The slave coast of West África 1550-1750. The impact of the Atlantic slave trade on an African society. Claredon Press. Oxford. 1991. p 187. 28 A documentação cita grupos ainda não identificados por mim como os “ianos” e os “clarás”, ambos ditos minas. 29 Na Irmandade do Menino Jesus há registro da existência de um membro da mesa, procurador, de nação cabu. Livro de óbitos e testamentos da Freguesia do Santíssimo Sacramento, 1746-1776, 27.01.1755, fl. 298v. Ele é também irmão da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e de Santo Antônio da Mouraria, nessa época ainda instalada na Igreja do Rosário. Assim como ocorre em outros casos, menciona em seu testamento o gerenciamento de dívidas entre os irmãos. 9 Igreja do Rosário elege reis e rainhas. Já as folias de Santana e de Santo Elesbão, ambas alojadas na Igreja de São Domingos, elegem imperadores e imperatrizes. A Irmandade de Santana funda o Império do Divino Espírito Santo e a Irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia o Império de Santo Elesbão.30 No interior dessas irmandades ditas angolas e minas existe uma enorme diversidade de pequenos grupos que se organizam de modo quase invisível aos olhos dos historiadores e que por muito tempo passaram desapercebidos. Na Irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia desde sua criação em 1740 estão presentes além dos minas os “nacionais” de Cabo Verde, São Tomé e Moçambique. Em 1763, o Brasil é elevado a vice-reino e a cidade do Rio de Janeiro passa a ser a nova capital. Na Igreja da Lampadosa, um escravo do Conde da Cunha, primeiro vice-rei do Brasil instalado no Rio de Janeiro, é eleito rei da nação rebolo-tunda. Nessa mesma igreja há menção à presença de cabindas, moçambiques, minas e guinés.31 Mesmo na Igreja do Rosário onde são mais conhecidos os reis angolas, existiram também outros reinados, inclusive de minas. Não é fácil identificar na documentação disponível o dia a dia dessas organizações, mas a folia da Lampadosa tem o costume de homenagear o Império do Divino participando de suas festas e cortejos. Também o Império de Santo Elesbão visita e presta homenagem à folia do Rosário sempre que lá é eleito um rei de nação mina. As visitas são demonstrações da estreita ligação que, apesar das diferenças, unem essas agremiações numa rede própria que envolve ao mesmo tempo diferenças étnicas e critérios de precedência e hierarquia próprios da sociedade colonial como um todo.32 A Folia pode sair às ruas várias vezes ao ano, de acordo com os recursos e a vontade dos reis, mas seu principal compromisso é o comparecimento à festa dos oragos da igreja. Assim como a Irmandade sai “incorporada” com suas capas e alfaias também a Folia é apresentada ao público em trajes especiais com manto, coroa, cetro, bastão e vara, guarda-sol e instrumentos musicais (ver Julião). As mais importante saídas da Folia se dão no período anterior à festas anuais da irmandade, quando elas saem às ruas para recolher esmola para ajudar nas despesas da festa. Outra obrigação cumprida pela Folia é acompanhar o cortejo fúnebre dos irmãos. Em todas essas ocasiões a corte tem passagem solene e leva a sério seus títulos de nobreza. Entretanto, a polêmica sobre o que é lícito ou não por ocasião das festas mostra que, em alguma medida, ocorrem os chamados “excessos”, sempre associados à origem gentílica dos seus integrantes. 30 Uma cronologia dessa irmandade elaborada a partir de fontes diversas mostra que ela começa a aparecer na documentação no século XVIII como uma irmandade de africanos, passa a crioulos, depois a militares (supostamente pardos) até ser considerada apenas como uma festa de grande aceitação “popular”. O Império do Divino foi o único que sobreviveu à proibição das saídas das folias no século XIX. Sobre militares e pardos ver Russel-Wood, A. J. R.. Black man in slavery and freedom in colonial Brazil. New York. 1982. Sobre a Festa do Divino ver Martha Abreu. O Império do Divino. Festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro, 1830-1900. Rio de Janeiro. Nova Fronteira. 1999. 31 Vieira Fazenda menciona um rei rebolo-tunda e Augusto Maurício fala num rei cabinda. J. Vieira Fazenda. op. cit. tomo 95, vol. 149 (p.123-127). Augusto Maurício. Templos históricos do Rio de Janeiro. 2ª edição revista e aumentada. Rio de Janeiro: Gráfica Laemmert Limitada. 1946. ( p. 112-113). 32 A ata da devoção das almas indica que seus devotos levam a folia para homenagear a festa do Rosário sempre que nessa igreja é eleito um rei mina. É possível que se trate do rei da Irmandade de Santo Antônio da Mouraria, mas não há registros sobre isso. BN(MA)9,3,11. Sobre a Lampadosa, ver J. Vieira Fazenda. Antiqualhas e memórias do Rio de Janeiro. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro tomo 95, vol. 149 (2ª edição). Rio de Janeiro: Imprensa Nacional. 1943. pp. 123 -127; e Augusto Maurício. Templos históricos... pp. 109-117. 10 A polêmica sobre essas festas é abordada pelas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, aprovadas em 1707, onde são autorizadas as representações do Divino e as folias “sendo honestas, e decentes”. Uma determinação do Conselho Ultramarino de 1780 recomenda tolerância com as danças dos pretos, o que indica a existência, quase um século depois, da mesma ambigüidade em relação a tais práticas nas própria legislação eclesiástica e na administração régia.33 Também os compromissos mostram preocupação com esse tema, recomendando, por exemplo, que ao fim de cortejos fúnebres e festivos os irmãos retornem “em ordem” para a igreja. A volta dos cortejos – sejam eles enterros ou procissões - é marcada pela descontração. Interpretadas como ocasiões de algazarras elas são, freqüentemente, alvo de perseguições policiais. O mesmo ocorre ao longo das festas quando, terminada a missa solene as quermesses e danças se estendem por dias junto às barracas armadas em volta das igrejas. A década de 1770 é marcada pelo governo do marquês de Lavradio que realiza grandes empreendimentos na cidade como o calçamento das ruas, a construção de um matadouro, aterro da Lagoa da Pavuna e a abertura de novos caminhos. Uma de suas iniciativas mais importantes para o cotidiano da vida da cidade é a concentração da venda de escravos no mercado do Valongo. Com isso os escravos recém-chegados da África já não ficam mais espalhados pela cidade como até então acontecia. Depois de vendidos e enquanto aguardam o transporte para Minas Gerais ou em qualquer outro lugar fora da cidade passam a ficar reunidos no Campo de São Domingos onde, segundo o marquês “tinham todas as comodidades”. Quando às comodidades podemos duvidar, mas uma coisa é certa. Estavam bem longe das ruas por onde transitavam as famílias mais ricas da cidade e bem perto das infames capelas de pretos que o marquês sonhava demolir...34 É no seu tempo que circula na cidade a idéia de acabar com as pequenas capelas construídas a partir da década de 1750 pelos pretos na parte dita “extra-muros” da cidade. Uma correspondência mostra que esta iniciativa conta com o apoio do vice-rei, do bispo e também dos irmãos do Rosário que dela se beneficiam. A idéia é impedir a reforma das capelas até que elas estejam tão deterioradas que possam ser interditadas, conforme previsto nas Constituições primeiras.35 Demolidas as capelas os devotos seriam transferidos para a Igreja do Rosário que aumentaria sua receita, podendo então reunir fundos para a desejada reforma da igreja. Para convencer o rei da justeza de seu pleito os irmãos do Rosário enviam uma representação: 33 Discutindo a questão da feitiçaria na vigência do código penal brasileiro de 1890, a antropóloga Yvonne Maggie alerta para a distinção entre magia maléfica e benéfica, o que lembra a distinção entre as festas “ruidosas” e as “tranqüilas”. Yvonne Maggie. Medo do feitiço: relações entre magia e poder no Brasil. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional. 1992. p. 24, 29-30. 34 Marquês de Lavradio. “Relatório”. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro. Imprensa Nacional 4; 453-76. 1842. Também “Relatório” Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro nº 76, 1913. Tanto a Lagoa da Pavuna quanto o Valongo ficam na freguesia de Santa Rita criada em 1750 para atender ao crescimento urbano. 35 O livro quarto regulamenta em detalhes o funcionamento das capelas. Erigir ou manter capela sem licença pode ser punido com excomunhão. Constituições primeiras do Arcebispado da Bahia feitas e ordenadas pelo illustrissimo, e reverendissiimo senhor D. Sebastião Monteiro da Vide 5º arcebispo do dito Arcebispado, e do Conselho de sua Magestade: propostas, e aceitas em o Sínodo Diocesano, que o dito senhor celebrou em 12 de junho do anno de 1707. 1ª edição Lisboa 1719 e Coimbra. 1720. São Paulo: Typographia 2 de Dezembro de Antonio Louzada Antunes. 1853. Livro 4º, LIII, 1193. 11 “várias irmandades de pretos com Igrejinhas indignas, e indecentes, que nem devem ter este nome, como são a Irmandade das Mercês, e São Domingos, S. Felipe São Tiago, O Menino Jesus, Santa Efigênia e S. Elesbão, N. S. da Lampadosa, S. Mateus, outra de S. Benedito em S. Antônio, O Senhor Jesus do Cálice, N. S. de Belém e S. Antônio da Mouraria, as quais sendo VM servido ficarem anexas, e recolhidas a esta Igreja demolindo-se os alpendres em que existem para cemitérios faria VM um grande serviço a Deus, e grande aumento desta Igreja, e irmandades, pois as dispersas despesas que fazem, reunidas, e incorporadas nela ficaria cessando a sua grande necessidade para a conclusão da obra.”36 Essas pequenas devoções, até os anos de 1750 concentradas nas igrejas do Rosário e São Domingos, partem todas para construção de capelas próprias. Algumas delas não deixam registros e devem ter sido destruídas pelo marquês ou por algum de seus sucessores. Outras resistem a esta política de estrangulamento e depois de reformadas transformam-se em pequenas igrejas como é o caso da de São Domingos, Santa Efigênia, Lampadosa e Senhor Jesus do Cálice. Segundo o marquês, nessas capelas, freqüentadas por “pessoas depravadas, e de má vida, e costumes” acontecem “cousas torpes, e indecentes”.37 Embora não se saiba o destino da maioria delas, tudo indica que a estratégia da demolição teria dado certo, facilitando a ampliação da cidade que cresce em direção ao Campo. Apesar das constantes proibições, as folias continuam saindo às ruas até 1808 quando, segundo o pintor Jean Baptiste Debret que reside na cidade entre 1816 e 1831, ficam proibidas por parecerem uma afronta à recém chegada Corte portuguesa.38 “Em abono da história das irmandades negras lembraremos que, com a presença da Corte no Rio de Janeiro proibiram-se aos pretos as festas fantasiadas extremamente ruidosas a que se entregavam em certas épocas do ano para lembrar a mãe pátria; essa proibição privou-os igualmente de uma cerimônia extremamente tranqüila, embora com fantasias, que haviam introduzido no culto católico. É por esse motivo que somente nas outras províncias do Brasil, se pode observar ainda a eleição anual de um rei, de uma rainha, de um capitão da guarda...”39 Provavelmente por esse motivo as folias do Rio de Janeiro não são registradas em suas pranchas nem nas de outros artistas do século XIX. Como no século XVIII as igrejas do Rosário e São Domingos ficam nos fundos da cidade, são limitados os registros sobre estas festas das quais sabe-se apenas que, “ruidosas” ou “tranqüilas”, “honestas” ou “muito indecentes”, acontecem longe dos olhos daqueles que deixam registros sobre a cidade.40 Exceção feita às pranchas de Carlos Julião desenhista militar 36 Requerimento da Irmandade do Rosário ao rei datado de 27.07.1774. AHU. Rio de Janeiro - avulsos caixa 107 - doc. 31. Agradeço a Maria Fernanda Bicalho a transcrição dessa correspondência. 37 Resposta do Marques de Lavradio ao pedido de informação do rei motivado pelo requerimento dos irmãos do Rosário datada de 17.07.1775. AHU. Rio de Janeiro - avulsos - caixa 107 - doc. 31. 38 Fugindo das investidas de Napoleão a rainha de Portugal D. Maria I (viúva de D. José) e seu filho, o príncipe regente D. João, futuro D. João VI e boa parte da corte portuguesa se transferem para a cidade do Rio de Janeiro em 1808, alterando profundamente o cotidiano da vida da cidade. 39 Debret reproduz uma coleta de esmolas na Irmandade do Rosário do Rio Grande do Sul. No Rio de Janeiro, pinta o enterro do filho de um rei negro. Na legenda dessa prancha não há qualquer associação entre o filho o rei e as folias que ele afirma não saírem mais na cidade do Rio de Janeiro. Ao que tudo indica refere-se apenas às festas públicas. Jean Baptiste Debret. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. Notas de Sergio Milliet. São Paulo. Livraria Martins. 1940. 40 O abade La Caille, Bougainville e outros visitantes da cidade ao longo do século XVIII descrevem a parte urbnanizada ignorando a existência do Campo da Cidade e das edificações próximas a ele. N La 12 português que, lamentavelmente, não registra detalhes escritos sobre a folia por ele reproduzida em seu álbum.41 2. A Irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia Segundo a hagiologia cristã, Santo Elesbão e Santa Efigênia são dois santos negros, ambos africanos. Suas devoções provavelmente foram trazidas para o Brasil pelos religiosos carmelitas que divulgavam junto aos negros a veneração a estes santos como forma de tornar mais eficaz sua catequese. Em 1735 o Pe. José Barbosa, cronista da Casa de Bragança e membro da Academia Real de Lisboa, publica um livro sobre Santo Elesbão. Três anos mais tarde, em 1738 o Frei José Pereira de Santana (16961759), um religioso carmelita, doutor em teologia e qualificador do Santo Ofício publica um livro sobre Santa Efigênia. Os dois santos costumam ser venerados juntos e sua devoção é bastante difundida no Brasil ao longo do século XVIII, em especial no Rio de Janeiro, Salvador, Recife, São Paulo e várias cidades de Minas Gerais. Todas as igrejas do Rosário têm devoções ou pelo menos imagens desses santos, assim como de São Benedito e Santo Antônio do Categeró, todos negros.42 Santo Elesbão viveu na primeira metade do século VI. Foi o 47º Imperador da Etiópia, reino cristão cujos domínios, na época, atravessavam o Mar Vermelho. Em nome da Igreja os etíopes enfrentam os infiéis, conseguindo libertar a cidade de Najran do domínio dos judeus. No fim da vida o vitorioso príncipe guerreiro abdica do trono em favor de seu filho, tornando-se um anacoreta. Por ter atravessado o mar foi considerado defensor dos marítimos. A imagem de Santo Elesbão é de cor negra, veste o hábito carmelita e nela o santo aparece cravando uma lança no peito de Dunaan, guerreiro judeu que se apossou da cidade cristã de Najran. É festejado no dia 27 de outubro, data de sua morte.43 Ainda de acordo com a hagiologia, cristã Santa Efigênia foi princesa da Núbia, filha do rei Egipo. Convertida e batizada por intermédio do apóstolo São Mateus, a princesa tornou-se religiosa carmelita e fundou um convento de freiras dessa ordem. O sucessor de seu pai tentou desposá-la e, tendo sido preterido, mandou incendiar o convento que foi salvo por uma graça divina. A preservação do convento valeu-lhe o título de protetora contra os incêndios. A imagem de Santa Efigênia também é de cor negra e veste o hábito carmelita. Traz na mão esquerda o convento em chamas e na direita uma cruz. Existe ainda uma imagem que traz na mão uma pena no lugar da cruz. Caille. Journal historirque du voyage fait au Cap Bonne Espérance. Paris: Guillyn. 1763; L. A. Bougainville (comte de) Bougainville et ses compagnons autour du monde 1766-1769. Journaux de navigation établits et commentés par Étienne Taillemite. Paris: Imprimerie Nationale. 1977. 2 vols. 41 Sobre o trabalho de Carlos Julião ver Silvia Hunold Lara. “Customs and costumes: Carlos Julião and the image of black slaves in late eighteenth-century Brazil” (inédito) 42 Santo Antônio do Categeró (1490-1550) foi um escravo siciliano, beatificado em 1589; São Benedito viveu na Sicília e faleceu em 1589. 43 Sobre a conversão da Etiópia ao cristianismo ver Alberto da Costa e Silva. A enxada e a lança. A África antes dos portugueses. 2ª edição revista e ampliada. Rio de Janeiro. Nova Fronteira.1996. cap. 6, pp. 165-191 13 Como é desconhecida a data de seu falecimento sua festa é comemorada a 26 de setembro, em honra a São Mateus.44 A divulgação desse culto está associada à propaganda carmelita de seus santos junto aos africanos alvo da catequese missionária. Na primeira metade do século XVIII, ainda em plena vigência da Inquisição, é também cara à Igreja a devoção a um santo perseguidor de judeus. Por outro lado é importante lembrar que, sendo Santo Elesbão um santo que além de africano é soldado, em muito devia agradar aos “militarizados” povos da Costa da Mina, especialmente aos daomeanos.45 Outro componente interessante na simbologia desse santo é a presença de um leão dourado em sua bandeira. A serpente é o símbolo do reino de Ajudá; o crocodilo do reino de Aladá e o leopardo do reino do Daomé. Nada mais natural que um leão ser o símbolo da irmandade. Um último componente interessante desse culto é o fato de que, protetor dos marinheiros e navegantes esse santo prolonga na cidade do Rio de Janeiro a tradição da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário do convento de São Domingos de Lisboa. De acordo com o compromisso de 1565, todo dia 2 de fevereiro é realizada uma missa para Nossa Senhora da Purificação. Nessa ocasião é dada uma benção aos círios que são dados aos homens da irmandade que saem para o mar. Essa prática mostra que pelo menos boa parte dos irmãos está ligada ao mar e aos tratos ultramarinos.46 No Rio de Janeiro como de resto em outras ocasiões o culto aos santos negros é considerado um recurso para despertar a fé nas populações africanas escravizadas. Ao avaliar a oportunidade da criação de uma nova irmandade o Bispo D. Antônio de Guadalupe recebe a seguinte resposta: “Ex.mo Rev.mo S r - São tantas as Irmandades de Pretos que a multiplicidade delas tem feito menos fervorosa a sua devoção; já os pretos minas têm outra confraria do Menino Jesus cita na Capela de S. Domingos, na qual não há muito fervor e aumento, porém agora se apresenta um ról de mais de setenta Irmãos e Irmãs que se têm agregado a estes Santos; e me parece que por serem da sua cor serão mais eficazes e constantes no fervor e devoção que agora mostram ter. V. Excia. mandará o que for servido.”47 Os minas da cidade do Rio de Janeiro recebem esse nome por procederem da Costa da Mina. Segundo Robin Law, a partir de 1690 quando se intensifica o tráfico na região surge uma nova designação: Costa dos Escravos, onde se concentra o comércio de escravos. Apesar de não ser uma classificação cultural ela coincide, aproximadamente, com a área lingüística e cultural das línguas ewe ou aja, hoje chamadas gbe. Ainda segundo esse autor, o problema da consideração de uma unidade lingüística anterior à chegada dos europeus é saber até que ponto os povos aí instalados têm consciência dessa proximidade já que não existe um nome comum nem para o 44 Sobre os reinos cristãos da África, especialmente a Núbia ver Alberto da Costa e Silva. A enxada e a lança. A África antes dos portugueses. 2ª edição revista e ampliada. Rio de Ja neiro. Nova Fronteira.1996. cap. 8, pp. 213-248. 45 Segundo Law: “Although Dahomey was certainly a more highly militarized society than Aladá and Whydah, Dahomian militarism clearly had its historical roots in the political culture of these earlier kingdoms. Robin Law. The slave coast p 97. 46 Aos oficiais da mesa, sempre mais agraciados que os demais, era dado um círio de meio arratal. Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos do Convento de São Domingos de Lisboa, 1565. Patricia Ann Mulvey. The black lay brotherhoods… pp. 255-263. 47 Carta do vigário da Freguesia da Candelária ao Bispo de 23.04.1740. Augusto Maurício. Templos históricos do Rio de Janeiro. 2ª edição (revista e aumentada). Rio de Ja neiro. Gráfica Laemmert Limitda. 1946. p. 215. 14 conjunto dos grupos étnicos, nem para as línguas aí existentes.48 No ano de 1741 começa a circular em Minas Gerais um vocabulário manuscrito da então chamada “Língua geral da Mina”.49 Considerando que os povos da Costa dos Escravos começam a ser traficados para Minas Gerais por volta de 1700 e que já no ano de 1741 está sendo divulgado nessa capitania o referido vocabulário, é justo supor que ou esse intercâmbio lingüístico foi construído muito rapidamente no cativeiro ou já existia antes dele. No Brasil os povos de língua gbe incluem tanto os minas do Rio de Janeiro no século XVIII quanto os jejes fartamente identificados na Bahia no século XIX.50 Escravos dessa região começam a chegar em número crescente ao Brasil por volta de 1690.51 Os primeiros registros regulares de embarcações chegadas da Costa dos Escravos e adjacências por mim localizados datam de 1693. No período de 1693 a 1695 chegam ao Brasil pelo menos 22 embarcações, a maioria patachos e sumacas, sendo que quatorze delas vêm da Mina, cinco de São Tomé e três da Mina com escala em São Tomé.52 Das cinco vindas de São Tomé três delas fazem escala em Angola. Em anos posteriores até 1715 as listagens mostram uma presença mais acentuada das embarcações vindas da Costa da Mina em relação às São Tomé, com menção a outros portos como Ilha do Príncipe, Rio Calabar, Porto do Cabo Lau e Ilha Terceira.53 Além desses portos os registros de óbito informam ainda a presença na cidade de africanos vindos de Cabo Verde e Cacheu além de outras designações como os cabu.54 É o caso de Antônio Luiz Soares, preto forro mina falecido com bastante idade em 1755 que informa em seu testamento: “declaro que fui nascido em terras de brutos da gentilidade [...] da Costa da Mina e sou nação cabu” de onde veio, com a “idade de sete anos” para a Bahia, tendo sido depois vendido para o Rio de Janeiro.55. Na correspondência dos governadores as embarcações com destino aos portos da Costa da Mina são mencionadas pela primeira vez em 1703, em carta de D. Rodrigo Costa, governador da Bahia (1702-1705), ao rei de Portugal. Segundo ele, começara “há poucos anos” a 48 Robin Law. The slave coast… pp. 14, 21-22. Ver mapa 18. Antônio da Costa Peixoto. Obra nova de Lingoa g.al de mina traduzida, ao nosso Igdioma por Antonio da Costa Peixoto, Naciognal do Rn.o de Portugal, da Provincia de Entre Douro e Minho, do comcelho de Filgr.as Que com curuzid.e trabalho, e desvello, se expoz, em aprendella, p.a tembem a emsignar, a q.m for curiozo, e tiver von.de de a saber E.o Nas Minas Gerais,e Frg.a de Barm.ou Anno de 1741. Lisboa. Agência Geral das Colônias. 1949. 50 Especificamente sobre os povos de língua gbe na Bahia ver Luis Nicolau Pares. “Transformations of the sea thunder voduns in the Gbe-speaking area and in the Bahian Jeje Candomblé.” Enslaving Connections: Africa and Brazil during the Era of the Slave Trade. York University, Toronto. 11 – 15 October, 2000. vol 2. 51 Já bem antes disso existem sinais da presença de minas na cidade do Rio de Janeiro. Segundo Monsenhor Pizarro o primeiro contrato para tráfico de escravos do Brasil foi assinado na capitania do Rio de Janeiro. Em decorrência dele, a partir de 13 de agosto de 1615 fica proibida a concessão de licenças ordinárias. Resta saber a que grupos étnicos da Costa da Mina tais remotas remessas do século XVII correspondem. J. S. A. Pizarro de Araújo (monsenhor Pizarro). Memórias históricas do Rio de Janeiro Rio de Janeiro: Imprensa Nacional. 1948. 10 vols. vol. p. 239. 52 Durante toda a vigência do tráfico a documentação portuguesa e depois do Império do Brasil mantém o uso da designação “Costa da Mina”. É dessa forma que são feitos todos os registros das embarcações. 53 Documentos Históricos, vol. LVI, LVII, LX, LXI. Rio de Janeiro. Biblioteca Nacional. Trata-se de uma importante coleção publicada pela BN com transcrição de fontes primárias e inventários da documentação colonial. 54 São também chamados kabu, gabu ou ngaabu. Alberto da Costa e Silva. A enxada e a lança. A África antes dos portugueses. 2ª edição revista e ampliada. Rio de Janeiro. Nova Fronteira.1996.pp. 610 -612. 55 Livro de óbitos e testamentos da Freguesia do Santíssimo Sacramento, 1746-1776. fl. 298v. 49 15 remessa de embarcações da cidade do Rio de Janeiro para resgatar escravos na Costa da Mina.56 Assim sendo, tanto a Bahia quanto o Rio de Janeiro incrementam um comércio regular de escravos com a Costa da Mina na virada do século XVII para o XVIII. Nào por acaso tem início justamente nesses anos a exploração do ouro nas Minas que passa a ser usado pelos negociantes do Brasil para comprar escravos na África. Ao iniciar o século XVIII já existem duas rotas de escravos em direção as lavras de ouro: a primeira delas sai da cidade de Salvador e, passando ela Vila de Cachoeira, segue por terra pelo então chamado Caminho do Sertão até as Minas; a outra sai por mar de Salvador, passa pelo Rio de Janeiro onde se junta à rota do Rio que vem diretamente da Mina, segue por mar para a Vila de Parati e daí sobe por terra a Serra da Mantiqueira até chegar às Minas.57 De acordo com o Livro de passaportes e guias da cidade de Salvador entre os anos de 1718 e 1729, o único disponível, saem dessa cidade 21. 238 escravos sendo que 19.500 deles com destino a Minas.58 No Rio de Janeiro a devoção a Santo Elesbão e Santa Efigênia tem origem desconhecida. Sabe-se apenas que no ano de 1740 esses santos já são venerados por um grupo de aproximadamente trinta pessoas numa casa particular na Freguesia da Candelária.59 Nesse ano os devotos decidem transferir as imagens para a capela de São Domingos, localizada na mesma freguesia. Como informa a já citada carta do vigário da Candelária, existe nessa igreja outra devoção de pretos minas, da qual o cabu Antônio Luis Soares é procurador e onde, parecem estar reunidos povos da Costa da Mina vindos de outras áreas que não a Costa dos Escravos. Por motivos desconhecidos, os irmãos não se integram a ela, preferindo constituir uma nova agremiação, cujo pedido é aprovado pelo Bispo em 7 de maio de 1740.60 Toda devoção para ser instituída como irmandade é obrigada a redigir um Compromisso, nos moldes de qualquer estatuto civil, onde ficam arrolados todos os pontos contratados entre os que compõem a dita Irmandade. O Compromisso estabelece acertos tanto no campo espiritual quanto administrativo, financeiro e mesmo sobre a política interna da instituição. No Brasil os compromissos das irmandades de homens pretos são redigidos com base no compromisso das irmandades do Rosário, as primeiras 56 “...os moradores do Rio de Janeiro, e das capitanias suas anexas, continuam a mandar, há poucos anos, várias embarcações a resgatar escravos a Costa da Mina, o que até agora não faziam...” Arquivo do Estado da Bahia, 7, 108. Pierre Verger. Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o golfo do Benin e a Bahia de Todos os Santos dos século XVIII a XIX. 3ª edição. São Paulo: Editora Corrupio. 1987. pp. 39 40. 57 Ver Mariza de Carvalho Soares. “Os minas em Minas: tráfico atlântico, redes de comércio e etnicidade”. História: fronteiras. Anais do XX Simpósio da ANPUH. Florianópoilis. 1999. pp. 689-695. 58 Livro de passaportes e guias, 1718-1729. APEB, doc. 248 59 Candelária é a freguesia portuária da cidade onde se encontra a maior concentração de escravos minas da cidade na primeira metade do século XVIII. Na década de 1750 eles chegam a representar em torno de 50% da população escrava africana da freguesia, a maior parte deles trabalhando em atividades ligadas ao porto. Ver p. 105, tabela 5. 60 O compromisso inicialmente composto por 24 capítulos tramita entre o bispado no Rio de Janeiro onde é aprovado em 1740 pelo Bispo D. Antônio de Guadalupe.e a Mesa de Consciência e Ordens em Lisboa até ser confirmado por D. José I, rei de Portugal em 1767.Nessa ocasião já possui 32 capítulos e mais cinco capítulos referentes à criação do Estado Imperial (Folia) que foram sendo anexados ao longo dos anos. Existe no consistório da igreja uma homenagem aos irmãos fundadores da irmandade cujos nomes são: Francisco Vieira, Antônio Bastos Maia, Francisco das Neves e Antônio Pires dos Santos. Uma cópia dessa documentação está guardada no arquivo da Igreja. Não há notícias do destino dos originais, supostamente arquivados na documentação da Mesa de Consciência e Ordens, em Lisboa. 16 a serem instituídas na colônia.61 O Compromisso da Irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia segue, esta longa genealogia e não foge aos temas que se repetem em todos eles. Nos quinze anos seguintes a irmandade fica alojada na Igreja de São Domingos. Em 1745 a Irmandade ganha um terreno no próprio Campo de São Domingos para a construção de sua igreja.62 A obra não demora a começar e já em 1747 é benta e assentada a pedra fundamental.63 A construção da igreja deve ter acirrado as divergências entre os diferentes grupos no interior da Irmandade. Já no ano de 1748 é encaminhada e aprovada pelo bispo do Rio de Janeiro, a primeira reforma do Compromisso de 1740. A igreja é construída em apenas sete anos, sendo inaugurada com um culto público em 28 de agosto de 1754. A presteza com que a obra é levada a cabo faz pensar nos meios utilizados pelos irmãos para realizá-la em tão curto prazo. Escritos em 1740, os vinte capítulos iniciais do Compromisso indicam uma agremiação ainda pouco regulamentada. Nos anos seguintes aumenta o número de devotos, sendo necessário dotar o compromisso de regras mais claras e rigorosas. É assim que - ao longo dos dez anos que se seguem à inauguração da igreja, o compromisso recebe um conjunto de novos capítulos que estabelecem novas regras ou detalham regras pouco precisas dos capítulos anteriores. Esse detalhamento reflete um jogo de poder no interior da irmandade. A combinação de intensos conflitos com formas de consolidação dos grupos resulta em estratégias de sociabilidade bastante próprias. Além de escravos e forros pobres, a irmandade certamente conta com irmãos mais afortunados. Além do enriquecimento da irmandade que permite uma obra tão rápida existem outros “indícios” que levam a crer que a direção da irmandade reúne algum patrimônio, muito possivelmente acumulado através de suas ligações com o tráfico de escravos entre a Costa da Mina e a cidade do Rio de Janeiro. Tal hipótese se ampara em indícios ainda a serem mais investigados: a devoção de Santo Elesbão é uma devoção de homens do mar; a irmandade surge de uma devoção doméstica localizada numa casa particular da Freguesia da Candelária, a freguesia portuária da cidade; as informações que constam de uma ata da igreja sobre os portos da Costa da Mina são fornecidas por um piloto anônimo que conhece em detalhes todo o litoral da Costa dos Escravos; e pelo menos um irmão registra em seu testamento que pratica pequenos negócios com escravos. Por fim não deve ser aleatório o fato o florescimento da irmandade ser paralelo à consolidação do reino do Daomé. (1734-1750) e aos anos de abundância do ouro de Minas Gerais (1700-1760).64 De todos pontos regulamentados pelo Compromisso o mais importante é, sem dúvida, o sepultamento dos mortos. É em torno dos ritos associados à morte que a comunidade devocional se organiza. Os funerais além de fazerem cumprir o compromisso são também ocasiões nas quais a irmandade se apresenta publicamente, 61 Entre elas a da Bahia, Espírito Santo e Rio de Janeiro. Estes, por sua vez, estão calcados no Compromisso da já mencionada Irmandade de Nossa Senhora do Rosário do Convento de São Domingos, de Lisboa. 62 De acordo com a escritura a doação foi efetivada em 1748. AN - 1º Ofício de Notas. Livro de Notas: 10/5/1748-?/11/1748. Caixa 12866. Nº 115, p. 106. Agradeço essa informação a Maurício Abreu. 63 Em 1748 a Irmandade da Lampadosa até então instalada na Igreja do Rosário, ganhou um terreno bem perto dali, começando também a construção de sua igreja. 64 Sobre a metodologia da pesquisa histórica e o tratamento dos indícios ver Carlo Ginzburg. “Paradigma indiciário”. Mitos, emblemas e sinais. São Paulo. Companhia das Letras. 1989. pp.143-179. 17 reforçando seus laços internos e demonstrando à sociedade o zelo dedicado àqueles que a ela pertencem. A importância dos sepultamentos decorre do fato de ninguém, seja escravo ou livre, querer ser sepultado nas valas coletivas da Santa Casa de Misericórdia.65 Por isso o compromisso estabelece em detalhes o que fazer por ocasião da morte de um irmão. A Irmandade encarrega-se ainda da alma do morto, rezando missas pela sua salvação.66 Um dos últimos atos praticados pelo moribundo é sua participação num rito privado muito pouco referido pela ritualística católica e também pela historiografia. Por ocasião da administração dos últimos sacramentos, supostamente em “perfeito juízo e entendimento” e cercado de pessoas de sua confiança o moribundo escreve, ou dita, na presença do capelão da irmandade, seu testamento. Por ocasião do óbito o testamento é aberto e transcrito no “Livro de óbitos e testamentos” da freguesia. O testamento registra não apenas o destino do patrimônio do morto, mas suas últimas vontades. Esmolas, missas, anuais atrasados e outros legados deixados para a irmandade transferem uma parte importante do patrimônio individual dos irmãos para a coletividade. Embora talvez os recursos arrecadados não sejam suficientes para constituir um sólido patrimônio (como acontece em irmandades mais ricas) pelo menos garantem uma circulação e redistribuição de recursos que, uma vez depositados na irmandade, passam contribuir para o sustento do culto e do grupo de congregados.67 É curioso notar que embora o compromisso assegure o sustento da família do irmão falecido esta não deve ser das maiores despesas. Pelos testamentos é possível verificar que muitos dos irmãos não têm filhos (ou não declaram tê-los), o que facilita a transferência dos recursos para o interior da irmandade. Marina Martins, uma devota de Nossa Senhora dos Remédios uma devoção criada pelos mahis na Igreja de Santa Efigênia em 1786 declara em seu testamento que possui uma escrava que deve ser vendida para pagar seus legados. Quer ser enterrada nessa igreja. Pede que seu corpo seja conduzido a essa igreja por seis padres com velas de meia libra, sepultado com o hábito de São Francisco. Deixa para Nossa Senhora dos Remédios 6,400 réis e mais 65 Mariza de Carvalho Soares. Devotos da cor... Merece ser lembrada a descrição dos sepultamentos dos escravos e “da gente mais pobre” feita pelo inglês John Luccock que permanece na cidade entre 1808 e 1818: “Logo em seguida ao falecimento, costura-se o corpo dentro de uma roupa grosseira e envia-se uma intimação a um dos dois cemitérios a eles destinados para que enterre o corpo. Aparecem dois homens na casa, colocam o defunto numa espécie de rede, dependuram-na num pau, e, carregando-o pelas extremidades, levam-no através das ruas tal como se estivessem a carregar uma qualquer coisa. Se acontece de pelo caminho encontrarem com mais um ou dois que de forma idêntica estejam de partida para a mesma mansão horrível, põem-no na mesma rede e levam-nos juntos para o cemitério. Abre-se transversalmente, ali, uma longa cova, com seis pés de largo e quatro ou cinco de fundo; os corpos são nela atirados sem cerimônia de espécie alguma, de atravessado e em pilhas, uns por cima dos outros, de maneira que a cabeça de um repousa sobre os pés do outro que lhe fica imediatamente por baixo, e assim vai trabalhando o preto sacristão, que não pensa nem sente, até encher a cova, quase que por inteiro; em seguida, pões terra até para cima do nível.” John Luccock. Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil. Apresentação de Mário Guimarães Ferri. Belo Horizonte: Editora Itatiaia/São Paulo: Ed USP. 1975. Reconquista do Brasil, vol. 21. p. 39. 66 Compromisso da Venerável Irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia, capítulos 13 e 23. Arquivo da Irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia-AISESE. 67 A assinatura dos compromissos por parte dos integrantes da mesa da irmandade permitiu a identificação de várias dessas lideranças religiosas no interior da igreja. A partir dessas listagens foi possível levantar o óbito e o testamento de alguns deles. Embora essa etapa da pesquisa ainda esteja em andamento já é possível perceber que a irmandade é uma esfera de apropriação coletiva dos recursos acumulados individualmente. 18 4,000 para outra irmandade e esmola para missas. Declara ter uma filha parda, nascida antes de seu casamento em relação a quem determina: “não lhe deixo nada, porque não tenho, mas feitas, e pagas as minhas disposições se ficar algum trapinho meu testamenteiro, preferirá a ela primeiro, que outra qualquer pobre.”68 Esse exemplo mostra que pagamento do enterro, a celebração das missas e as esmolas deixadas para as irmandades são compromisso anteriores à constituição de um patrimônio familiar a ser deixado para a descendência. Quanto aos bens arrolados nos testamentos são poucos. Uns poucos possuem uma casa sempre dita “pobre”, quase todos os que adquirem alguma posição tem um ou dois escravos, sempre africanos, de diversas nações. A maioria tem “uns trates” e algum dinheiro. Muitos não têm nada deixando em seu testamento apenas suas últimas vontades... um enterro digno, missas e velas. As mulheres costumam ter jóias de ouro. Assim - imbuídos da justeza de seus atos ou forçados pelas circunstâncias - a maioria dos irmãos deixa, de um modo ou de outro, praticamente todos seus bens para a Irmandade ou para membros dessa agremiação, usualmente seus testamenteiros. De acordo com o compromisso, a irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia é criada por um grupo de africanos, reunidos na cidade do Rio de Janeiro incluindo “naturais” da Costa da Mina, Cabo Verde, Ilha de São Tomé e Moçambique, sendo que só eles podem compor a mesa da irmandade. A irmandade aceita a entrada de brancos e pardos, sendo terminantemente proibida a filiação de angolas, crioulos, cabras e mestiços.69 Ao reunir diferentes grupos de procedência - alguns geográfica e culturalmente bem distintos - como minas, caboverdes e moçambiques, os irmãos mostram não haver, para sua fundação, um critério de proximidade étnica ou cultural exclusivo.70 Os grupos de procedência aí representados correspondem aos portos de embarque de escravos cujo tráfico se intensifica no século XVIII.71 Ao chegarem à cidade esses escravos se vêem afastados das esferas de poder das irmandades já constituídas e resolvem criar sua própria agremiação, excluindo dela justamente aqueles já organizados. Em especial os angolas e crioulos, mas também os minas devotos de Santo Antônio da Mouraria estabelecidos na Igreja do Rosário e os devotos do Menino Jesus, estabelecidos na Igreja de São Domingos. Encobertos por essas grandes categorias de procedência (Mina, Moçambique, Cabo Verde e São Tomé) existem diversos pequenos grupos étnicos invisíveis aos olhos do pesquisador e mesmo de muitos de seus contemporâneos.72 Tanto categorias mais 68 Livro de óbitos e testamentos. Freguesia da Candelária 1797-1809, óbito em 29.07.1803, fl 140v. Agradeço essa informação a Eduardo Cavalcanti. 69 Compromisso... cap. 10, AISESE. Em 1767, por exigência régia, fica sem efeito esta restrição. A documentação pouco esclarece sobre as condições em que essa exigência é atendida. 70 Nesse sentido as fontes locais indicam situações mais complexas que as apontadas pelo historiador John Thornton quando argumenta a unidade cultural das confrarias de africanos no Novo Mundo e a formação do que chama de “grupos culturais”. Ver John Thornton. Africa and Africans… capítulo 7. 71 Exceção ao caso dos moçambiques que, no século XVIII, chegam à cidade do Rio de Janeiro apenas quando aí aportam eventualmente naus da rota da Índia. Em torno do ano de 1720 devem ter aí aportado uma ou mais delas. Este é o único período em que há registro da chegada de escravos vindos da contracosta na cidade até o ano de 1760. Além dos moçambiques há ainda menção a alguns escravos da Ilha de São Lourenço (antigo nome da Ilha de Madagascar). Sobre esses números ver Mariza de Carvalho Soares. Devotos da cor...p. 113. 72 No que diz respeito aos historiadores essa invisibilidade resulta da nefasta combinação da idéia que dominou por muitos anos a historiografia da escravidão de que os africanos teriam sido despojados de 19 abrangentes como os grupos de procedência quanto categorias mais restritas como os grupos étnicos são acionados no interior da irmandade, sendo imprescindível entender qual deles está atuando em cada situação.73 Na Igreja de Santo Elesbão e Santa Efigênia as fronteiras entre os grupos estão bem demarcadas. Internamente reconhecem os diferentes grupos, procurando dar a cada um o devido lugar. Em relação aos demais demarcam com clareza mecanismos de controle e exclusão. De acordo com o compromisso de 1740 o ingresso na irmandade é feito da seguinte forma. “Antes que o Juiz e mais oficiais da mesa desta Santa Irmandade queiram admitir e fazer assento à qualquer pessoa que o queira ser sendo preto ou preta, primeiro examinarão com exata diligência a terra e nação donde vieram. Achando serem naturais e que são oriundos da Costa da Mina, Cabo Verde, Ilha de S. Thomé ou de Moçambique logo se fará assento nela, dando de sua entrada quatro patacas. E da mesma nação é que se hão de eleger o Juiz, escrivão, Procurador e Juiza e Irmãos e Irmãs de Mesa que sempre hão de servir na Santa Irmandade, exceto o Tesoureiro que, como já se disse em seu lugar, seja homem branco os quais e mulheres e pardos e pardas querendo por sua devoção serão admitidos por irmãos desta Santa Irmandade. E de nenhuma sorte se admitirão pretas de Angola, nem crioulas, nem cabras ou mestiças.” O mesmo capítulo acrescenta ainda severa punição aos que ousam descumprir essas determinações.74 A gravidade do ato e a punição a ele atribuída fazem suspeitar da freqüência com que, de modo não esclarecido, os angolas e outros indesejados irmãos impõem sua presença na irmandade. A análise do conjunto da documentação da Irmandade75 mostra também como, ao longo dos anos, através de sucessivas alterações, ele constrói um conjunto de mecanismos que regulamentam a presença dos pequenos grupos no interior da Irmandade. O principal grupo de procedência da irmandade é o grupo mina, composto suas tradições com um tipo de fonte, em especial os compromissos, que não explicitam esses pequenos grupos porque são escritos juntamente para construir laços entre eles e não para destacar suas diferenças. 73 É importante destacar que essa organização interna não foi ainda identificada nos trabalhos sobre as irmandades do Rosário. Apesar disso, tudo faz crer que também aí os africanos atuem de forma organizada. Um indício dessa organização é o fato de que nas irmandades do Rosário, embora com variações, apenas angolas, congos e crioulos, costumam ter assento à Mesa diretora. Compromisso ..., AISESE. 74 “E o Juiz e mais oficiais e os Irmãos da Mesa que ao contrário fizerem, acabando o ano de sua ocupação não tornarão a servir coisa alguma na dita Irmandade, de que se fará termo pelo Juiz oficial e mais Irmãos de Mesa que logo lhe suceder, destituindo outro sem os ditos Irmãos que admitam os ditos pretos e pretas d’Angola, crioulas ou cabras, tanto homens como mulheres, devolvendo a cada um o que deram de sua entrada, para que fique de nenhum efeito seus assentos de que se fará declaração à margem dos livros deles”. Compromisso..., AISESE. 75 Compromisso..., AISESE; ata da Congregação mahi, BN(MS)9,3,11; e proposta de compromisso da Irmandade de Nossa Senhora dos Remédios. BN-Li AHU/CU-cód.1300. A congregação mahi é constituída por um grupo de mahis chegados como escravos à cidade do Rio de Janeiro, no século XVIII. O referido documento tem como título: "Regra ou estatutos por modo de hum dialogo onde, se dá noticia das Caridades e Sufragaçoes das Almas que uzam os pretos Minnas, com seus Nacionaes no Estado do Brazil, expecialmente no Rio de Janeiro, por onde se hao de regerem e governarem fora de todo o abuzo gentilico e supersticiozo; composto por Francisco Alves de Souza pretto e natural do Reino de Makim, hum dos mais excelentes e potentados daquêla oriunda Costa da Minna”. BN (MA) 9,3,11. Não tenho notícias sobre trabalhos anteriores com base neste manuscrito a não ser um livro publicado por mim que deu origem a uma pesquisa sobre os mahis ora em andamento. Mariza de Carvalho Soares. Devotos da cor... 20 pela reunião de pequenos grupos étnicos vindos da Costa dos Escravos.76 Por ocasião da criação da Irmandade, em 1740, os chamados “irmãos fundadores”77 já estão de alguma forma organizados de acordo com suas nações e grupos étnicos, tendo sido justamente esse, o critério básico para filiação à irmandade.78 Um exemplo dessas organizações é a congregação dos pretos minas, surgida em data desconhecida. Em 1748 ela é governada por Pedro da Costa, substituído em data ignorada por Clemente Proença. Como as demais procedências (Cabo Verde, Moçambique, São Tomé) são francamente minoritárias na cidade, não parece haver dúvida sobre o fato de que os minas controlam a irmandade. 3. Um rei mahi na corte de Santo Elesbão Em 1740 a recém criada irmandade reúne em torno de setenta irmãos. Nos anos seguintes a irmandade cresce a ponto da reforma do compromisso de 1764 recomendar o uso do consistório da igreja para evitar reuniões domésticas que pudessem fazer “suspeitar entre a vizinhança”.79 No século XVIII a permissão para que os africanos se reunissem segundo suas nações é uma difícil polêmica.80 Uns alegam que reunidos, os africanos se tornam mais perigosos, rebeldes e desordeiros; outros argumentam que juntos e sob o manto da Igreja ficam mais mansos e controláveis. Ser regulamentado pelo Bispado como uma Folia é um modo de tornar legítima uma organização étnica que mesmo assim carrega o estigma do comportamento bárbaro próprio aos povos gentios. Não deve ser outro o motivo que faz com que os irmãos tenham tanto zelo na defesa da “paz e da quietação” no interior de sua igreja: 76 Entre eles os dagomés, mahis, savalus e agolins. É feita ainda menção a um grupo ianno (ou lano) que não pude identificar. BN(MS)9,3,11 77 Assinam o primeiro compromisso da irmandade em 1740 quatro irmãos, considerados “fundadores”: Francisco Vieira, Antônio Bastos Maia, Francisco das Neves, Antônio Pires dos Santos. Ainda não foi possível identificar a procedência de nenhum deles. Um quadro na parede da igreja homenageia os quatro irmãos. Entre 1744 e 1748 os registros fazem menção à aquisição de três terrenos em nome da irmandade. Nessas três negociações estão envolvidas várias pessoas, dentre elas Manoel dos Santos Martins, Antonio Pires dos Santos e Francisco Gonçalves Nunes, ditos pretos forros e Clemente da Serra preto forro de Cabo Verde.Desses apenas Antônio Pires dos Santos está entre os cinco irmãos fundadores. AN - 4º Ofício de Notas. Livro de Notas: 24/2/1744-7/9/1744. Nº 36, p. 109; 4º Ofício de Notas. Livro de Notas: 20/10/1747-2/5/1748. Nº 43, p. 140; 1º Ofício de Notas. Livro de Notas: 10/5/1748 -?/11/1748. Caixa 12866. Nº 115, p. 106. Agradeço essas informações a Maurício Abreu. 78 “Antes que o Juiz e mais oficiais da mesa desta Santa Irmandade queiram admitir e fazer assento à qualquer pessoa que o queira ser sendo preto ou preta, primeiro examinarão com exata diligência a terra e nação donde vieram achando serem naturais e que são oriundos da Costa da Mina, Cabo Verde. Ilha de S. Thomé ou de Moçambique logo se fará assento nela dando de sua entrada quatro patacas e da mesma nação é que se hão de eleger o Juiz escrivão Procurador e Juíza e Irmãos e Irmã de Mesa que sempre hão de servir na Santa Irmandade exceto o Tesoureiro que como já se disse em seu lugar seja homem branco.” Compromisso da Irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia, capítulo 10, AISESE. 79 . “e se quiser o imperador fazer alguma mesa ou convocação (...) lhe conceder o juiz com sua mesa a fazê-la no nosso consistório, sem impedimento algum, para não convocar tanta gente em sua casa, que faz suspeitar entre a vizinhança. Compromisso... cap. 3 da Folia. Arquivo da Irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia. 80 Quando o escravo do Conde da Cunha é eleito rei de sua nação na Igreja da Lampadosa, como em tantas outras ocasiões, é colocada a questão das desordens e da proibição às folias. O conde autoriza a coroação de seu escravo e permite as “festanças costumadas”. O ouvidor do crime, argumentando o perigo das desordens, permite a coroação garantida pelo Conde, mas proíbe a saída da folia às ruas sob alegação de evitar distúrbios e algazarra. 21 Também é costume haver nas irmandades principalmente na dos pretos irmãos revoltosos, inimigos da paz, convocando estes, [sequito] para que hajam discórdias para ruína dos mais, como sucede as vezes como palavras descompostas originando por este meio fazer pouca obediência e para que não hajam revolução n nesta irmandade, o irmão juiz com sua mesa examinará a todo o irmão que novamente se assentar, se foram ou não expulsos das outras irmandades e achando ser certo, não será este admitido a esta, ainda que a sua esmola de entrada seja mais avantajada, porque só se cuida nesta que haja paz e quietação e não distúrbios; e os irmãos que aceitos nesta irmandade cuidarão muito na conservação e união que devem ter uns com os outros e faltando-lhe alguns dele alguma destas circunstâncias, serão pela mesa repreendidos primeiro, segunda e terceira vez; e continuando com maior excesso serão pela dita mesa expulsos e excluídos da congregação dos mais para nunca serem mais admitidos e se fará disto termo para que a todo tempo conste. 81 Esse é um dos últimos capítulos incluídos no Compromisso que contém ao todo 32 capítulos, mais um Acrescentamento onde é criado o Império de Santo Elesbão. Quero aqui destacar que o compromisso deve ser entendido como um relato dos acordos e impasses que surgem no interior de um campo de lutas. Se de um lado demonstra as estratégias para controle da Irmandade,por outro aponta para formas de administração das tensões internas. Esse é o caso da criação do Império de Santo Elesbão. A criação do Império permite a distribuição de algumas esferas de poder entre as lideranças dos grupos étnicos, se apresentando como uma resposta aos crescentes conflitos no interior da irmandade.82 O crescimento da irmandade faz com que os diferentes grupos - organizados em torno de congregações, reinados ou devoções - comecem a se desentender e a disputar em nome de “preferências e maiorias”.83 Esses conflitos no interior do grupo parecem ser constitutivos do relacionamento entre eles. Em data desconhecida entre 1748 e 1762 começam a surgir graves desentendimentos no interior da congregação. Por ocasião da sucessão de Clemente Proença, duas facções se apresentam no interior dessa congregação. O conflito entre elas acaba gerando um cisma que leva à criação de pelo menos uma nova congregação liderada pelos mahis em oposição aos dagomés (que provavelmente permanecem na antiga congregação mina). Como resultado dessa dissidência, no ano de 1762, toma posse como rei da nova congregação o capitão Ignácio Gonçalves do Monte. Assim sendo, por ocasião criação do Estado Imperial em 1764 (a folia da Irmandade), os minas já estão divididos em pelo menos duas facções, cada uma governada por um rei: Ignácio Gonçalves do Monte, um mahi que governa além de seus nacionais também os agolins, savalus e [iannos]; e um rei, supostamente daomeano, que representa o grupo mais importante e provavelmente fundador da irmandade por eles denominados dagomés. Os daomeanos da cidade do Rio de Janeiro devem ter sido traficados a partir do final do século XVII e ao longo de todo o século XVIII como resultado dos incessantes conflitos que se estedem por toda a Costa dos Escravos nesse período, gerando prisioneiros e futuros escravos de todas as partes envolvidas nos conflitos.84 Vinte anos 81 Compromisso.. cap. 30, Arquivo da Irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia. Sobre essa análise ver Mariza de Carvalho Soares. Devotos da cor ..., capítulo V – “A construção da norma”. 83 BN(MA)9,3,11. 84 Ajudá (capital Glehue), Aladá (capital Aladá) e Daomé (capital Abomé) são três reinos distintos. A disputa entre Aladá e Ajudá ainda não tinha sido resolvida quando o Daomé conquista Aladá em 1724. 82 22 depois de aqui chegados alguns deles já estariam alforriados e com algum patrimônio de modo a liderar a criação da irmandade no ano de 1740.85 O tráfico dos mahis acontece no bojo desses conflitos.86 Assim sendo, os mahis traficados para o Brasil são prisioneiros de guerra, provavelmente posteriores a 1730.87 Isso indica que provavelmente teriam sido traficados em Ajudá pelos próprios daomeanos, em troca de ouro, daí sua presença em Salvador, mas também no Rio de Janeiro e Minas Gerais. O Estado Imperial de Santo Elesbão é governado por um Imperador e sua corte composta por até sete reis e outros cargos de nobreza. Cada rei é responsável por seus nacionais ou parentes.88 A criação de uma nova hierarquia paralela à mesa diretora da irmandade consagra uma segmentação já existente ao nível da organização social e política que se implanta, a partir de então, na esfera da organização religiosa formal. Através das folias, os grupos étnicos afloram no interior da igreja, sob o amparo da Irmandade. Para oferecer a esses pequenos grupos alguma esfera de participação, poder e principalmente prestígio mas ao mesmo tempo criar uma esfera de poder e prestígio superior a eles, a Mesa da irmandade resolve criar o Estado Imperial. Com a queda de Aladá, três mil refugiados são enviados a Ajudá, muitos morreram outros tantos são vendidos aos europeus. Não há notícia da chegada de aladás à cidade do Rio de Janeiro, mas eles podem estar entre os minas. No período de 1718 a 1726 foram batizados na freguesia da Sé da cidade do Rio de Janeiro 681 adultos minas: 57 em 1718; 64 em 1719; 50 em 1720; 95 em 1721; 107 em 1722; 73 em 1723; 125 em 1724; 79 em 1725 e 31 em 1726. Livro de Batismo de Escravos da Freguesia da Sé, 17181726. Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro. Para comparar os batismos com os desembarques é necessário considerar a defasagem de 1 a 2 anos, período que os proprietários têm para doutrinar seus escravos e encaminha-los à paróquia para serem batizados. Em 1717 o preço do escravo português chega a 13 ou 14 cabess. No começo de 1718 devido à ausência de compradores portugueses os preços caem para 12-13 cabess. Ainda nesse ano os portugueses voltam e o preço chega a 14-16 cabess. Essa variação de preços fornecida por Robin Law confirma a defasagem de 1 a 2 anos (com algum atraso) entre o desembarque e o batismo: os portugueses voltam a negociar escravos em 1818 e o número de batismos de 1720 para 1721 sobe de 50 para 95. 85 Essa cronologia é compatível com a já mencionada chegada de moçambiques na cidade por volta de 1720. 86 De acordo com Dalzel a posição de negociante de escravos era repudiada pelos reis do Daomé que admitiam apenas vender seus próprios escravos. Em certo sentido Robin Law concorda com Dalzel mas esclarece que por ser incompatível com o ethos guerreiro dos daomeanos, a atividade comercial é realizada por um grupo de comerciantes e não pelo rei propriamente. Assim sendo, no reinado de Agaja (1708-1740) os escravos do rei eram negociados por comerciantes autorizados pelo rei que faziam o comércio em seu nome. Essa política ainda adotada por Tegbesu (1740-1774) foi abandonada por Kpengla (1774-1789) que passou a negociar diretamente com os compradores europeus. Agonglo (17891797) repudiou essa atitude impopular e reconstituiu a liberdade de comércio. Robin Law. The slave coast… p 343-344. 87 Os mahis são mencionados como adversários do reino do Daomé pela primeira vez em 1732. Aparecem nos Archives Départementales de la Loire-Atlantique (Nantes, c. 739, Mallet de la Mine, Nantes, 08.01.1732) e na correspondência de João Basílio, administrador da Fortaleza de Ajudá. (08. 09.1732, citado por Verger em Fluxo e refluxo... p. 154. Os savalus aparecem em 1733 na documentação dos Archives Nationales (Paris) como “sabalours” (c. 6/25, Levet Whydah, 26.08.1733). Robin Law. Slave Coast… 88 Ambas as expressões são recorrentes na documentação para referir-se aos membros de um mesmo grupo étnico ou de procedência. É interessante a cantiga transcrita por Debret quase um século mais tarde: “Entre os moçambiques as palavras do canto fúnebre são especialmente notáveis pelo seu sentido inteiramente cristão (...). Dou aqui o texto Moçambique em português: nós estamos chorando o nosso parente, não enxergamos mais; vai em baixo da terra até o dia do juízo, hei de século seculorum amem.” Embora a cantiga seja cristã, os que choram o morto são seus “parentes”. 23 Em 1765 as irmandades do bispado do Rio de Janeiro recebem uma notificação que informa sobre uma Provisão Real quanto à obrigatoriedade de se apresentarem à Mesa de Consciência e Ordens, para confirmar seus compromissos. Em função desta Provisão - ou quem sabe do pedido de inclusão dos capítulos da folia no ano anterior -, o Provedor de Capelas e Resíduos verifica que a documentação da Irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia não fora até então enviada para aprovação régia como era costume, tendo sido aprovada apenas pelo bispo do Rio de Janeiro, D. Antônio de Guadalupe. A documentação é então enviada a Lisboa para aprovação dos 32 capítulos escritos entre 1740 e 1764, aí incluídos o Acrescentamento e os cinco capítulos da Folia. Em 11 de março de 1767 D. José, rei de Portugal assina a provisão que aprova a ereção da irmandade e revalida sua licença.89 A partir dessa data é pouco o que se sabe sobre a irmandade, especialmente sobre o cumprimento das duas exigências régias apresentadas por ocasião da revalidação da licença: uma reduzindo as taxas estipuladas no compromisso; outra tornando nulo o capítulo 10, de 1740, que estabelecia a proibição da entrada de angolas e crioulos na irmandade.90 Para tentar controlar os efeitos desta nova diretriz o capítulo 26 estabelece que a Mesa passa a ser composta por seis “irmãos criadores” (Mina, Cabo Verde, Ilha de S. Tomé, Moçambique) e seis dos “outros admitidos” (cabras, mestiços, crioulos e angolas). Com isso os fundadores garantem para si seis lugares na Mesa e deixam outros seis para serem distribuídos entre os demais.91 A preocupação de impedir a entrada dos angolas e as punições infringidas àqueles que o fizessem indicam que não foram poucas as tentativas de ingresso. A documentação hoje disponível referente à irmandade não permite avaliar os efeitos da determinação régia ao longo da segunda metade do século XVIII. Entretanto, o estatuto da congregação mahi, elaborado em 1786, indica qual pode ter sido a estratégia montada para evitar o ingresso dos indesejados angolas. Vinte anos mais tarde, o estatuto da Congregação mahi - simples documento interno não regulamentado pela Igreja - proíbe a entrada de angolas. Tal impedimento faz com que, mesmo que autorizados a ingressar individualmente na irmandade, os angolas sejam impedidos de participar das esferas de poder, controladas pelos pequenos grupos no interior da irmandade através das folias que organizam os diferentes grupos étnicos ou de procedência aí presentes. De acordo com o compromisso apenas irmãos com patrimônio podem ser eleitos reis das folias, devendo, às suas custas sustentar o reinado e sua corte.92 O corpo documental mais sólido sobre a presença dos mahis no interior da irmandade data da década de 1780. Por ocasião da sua morte, em 1783, o capitão Ignácio Gonçalves do Monte é sepultado no cemitério da irmandade. Em seu testamento declara ser irmão da 89 Arquivo da Irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia. São poucos os compromissos encaminhados a Lisboa até a década de 1760. Sobre as datas dos encaminhamentos ver Patrícia Mulvey. The black lay brotherhoods… Apêndice E. 90 Alteração exigida por D. José: “se tirarão dos capitulo 10 a diferença da naturalidade dos pretos”. Ver Correspondência para confirmação do compromisso no Arquivo da Irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia. 91 Provisão de D. Antônio do Desterro datada de 18.08.1767. Na cópia da provisão de D. Antônio do Desterro comunicando aos irmãos a aprovação de sua petição depositada na Igreja de Santa Efigênia consta, por erro, o ano de 1797 no lugar de 1767. O erro é confirmado pelo fato de que, tendo chegado ao Rio de Janeiro em 1747, D. Antônio do Desterro vem a falecer no ano de 1773. 92 Compromisso ... Capítulo 1º da Folia. Arquivo da Irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia. 24 Irmandade. Sua sucessão abre uma disputa que fica registrada numa ata da congregação mahi. Uma das cópias da referida ata está depositada na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e serviu de ponto de partida para essa pesquisa. O sucessor do capitão Ignácio na congregação mahi é Francisco Alves de Souza, regente da congregação durante o reinado do capitão Ignácio, que chega ao Rio de Janeiro em 1748, depois de ter passado algum tempo na Bahia. É através de seu relato que a história do grupo se perpetua.93 Em 1748, que cheguei a esta capital vindo da cidade da Bahia, achei já esta congregação ou corporação de pretos minas de várias nações daquela Costa, a saber Dagomé, Maqui, [Ianno], Agolin, Sabaru todos de língua geral com muita união tendo por rei de tal congregacão a um Pedro da Costa mimoxo também da mesma nação e depois faleceu este, nomearam para existir no mesmo cargo a Clemente de Proença com o mesmo título a que exerceu há muitos anos e continuando a tempo começaram os pretos a zingarem as nações umas com as outras, buscando preferências de maiorias. Ao que deu ocasião ao que as nações Maki, Agolin, [Ianno], Sabaru saírem do jugo Dagomé escandalizados e afrontados de alguns ditos picantes que os dagomé lhes diziam, procuraram fazer o seu rei e com efeito o fizeram na pessoa do Capitão Inácio Gonçalves do Monte no ano de 1762 por ser verdadeiro makino e este foi o primeiro que fez termo e endireitou e aumentou esta congregação. 94 A cronologia da congregação mahi permite perceber que os grupos étnicos estão organizados na cidade provavelmente antes da fundação da irmandade. Não deve ser outra a razão para, por ocasião do surgimento dessa agremiação a filiação a ela atender justamente a esse critério. O capitão Ignácio, considerado “um verdadeiro maquino”, lidera um conjunto de pequenos grupos étnicos minas (entre eles os mahis, agolins, savalus e ianos), todos eles adversários dos dagomés.95 Isso indica que, entre os oponentes dos dagomés, seriam os mahis o grupo de maior projeção. Sua caracterização como um “verdadeiro maquino” faz ainda pensar que, entre os assim cotidianamente designados, existiriam alguns mais verdadeiros que outros.96 À diferença da mesa da irmandade onde as relações entre os irmãos estão mais institucionalizadas, no interior da folias o poder é exercido de forma mais personalizada. Em 1740, por ocasião da fundação da irmandade o rei da congregação dos pretos minas podia ser Pedro da Costa ou já Clemente Proença. É curioso notar que nem um nem outro têm seus nomes entre os principais fundadores da igreja, reforçando a hipótese de 93 "Regra ou estatutos por modo de hum dialogo onde, se dá noticia das Caridades e Sufragaçoes das Almas que uzam os pretos Minnas, com seus Nacionaes no Estado do Brazil, expecialmente no Rio de Janeiro, por onde se hao de regerem e governarem fora de todo oabuzo gentilico e supersticiozo; composto por Francisco Alves de Souza pretto e natural do Reino de Makim, hum dos mais excelentes e potentados daquêla oriunda Costa da Minna”. BN(MA)9,3,11. Transcrição de Luciana Gandelman; revisão de Mariza de Carvalho Soares. Anunciado para divulgação no SHADD: Studies in the History of the African Diaspora – Documents, is a publication of the York/UNESCO Nigerian Hinterland Project, Department of History, York University que vai estar acessível através da Internet proximamente. (www.yorku.ca/nhp). Esse documento é uma cópia de época de um original ainda não localizado. Tratase de uma ata não datada e sem identificação do escrivão por ela responsável. Também não fica claro o motivo porque foi escrita sob a forma de um diálogo. Ver Mariza de Carvalho Soares. “Apreço e imitação no diálogo do gentio convertido” Ipotesi. Revista de estudos literários. V. 4, nº 1, jan-jun, 2000. pp.111123. 94 BN (MA) 9,3,11. 95 Considero-os “pequenos” por sua representatividade estatística na cidade. Na África estão entre os mais conhecidos reinos da Costa da Mina. J A M A R Bergé. “Étude sur lê pays Mahi”. Bulletin du Comité d’Études Historiques et Scientifiques de l’A O F II (1928). pp. 708-55. 96 .Robin Law. Slave Coast… 25 que constituiriam uma oposição aos dagomés no interior da irmandade. Entretanto, duas referências por mim encontradas demonstram a presença dos mahis na Irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia. São dois sepultamentos realizados no cemitério da igreja: o de um inocente, filho de Pedro da Costa e o de um escravo de Ignácio Gonçalves do Monte. A igreja é inaugurada em 1754 e o ano de 1755 corresponde aos primeiros sepultamentos em seu cemitério. A presença, já nesse ano, de pelo menos dois sepultamentos associados aos mahis indica que, provavelmente, eles já estariam ligados à irmandade antes de sua transferência para a nova igreja.97 Conforme a narrativa de Francisco em 1762 algumas nações conseguem escapar ao “jugo” dos dagomés e constituir uma nova congregação cujo rei passa a ser o capitão Ignácio que é mantido como rei até a data de sua morte em 1783. A morte do capitão Ignácio abre nova crise não apenas no interior da congregação, mas no conjunto da irmandade, fazendo com que os minas voltem a “zingar” entre si. Segundo o atestado de óbito, Ignácio Gonçalves do Monte morre em 27.12.1783.98 É sepultado na Capela de Santa Efigênia amortalhado no hábito de São Francisco, acompanhado pelo pároco com dez sacerdotes.99 Por declarar não saber escrever, Ignácio dita seu testamento, supostamente na presença dos irmãos da irmandade. Deixa viúva Victória Correa da Conceição com quem declara não ter filhos. Acrescenta ainda não tê-los tido com qualquer outra mulher, a qualquer tempo. Nomeia como testamenteiros em primeiro lugar a própria viúva, em segundo Francisco do Coito Suzano e em terceiro José dos Santos Martins. Informa ter comprado sua alforria por 350,000 réis. Diz ser “barbeiro e sangrador”, atividade que desenvolvia numa oficina localizada junto a uma venda de secos e molhados, ao lado de sua casa. O testamento não faz menção a bens de raiz. Deixa livre um escravo e recomenda expressamente que sejam colocados em dia os anais da irmandade para a qual deixa uma esmola de 10,400 réis. Dá detalhes sobre o enterro e as missas de corpo presente, demonstrando estar disposto a gastar bastante com seu funeral. Todas essas iniciativas ficam a cargo de seus testamenteiros a quem recomenda que cuidem também do dinheiro de seus “patrícios” explicando que eles “me dão a guardar seu dinheiro por mais seguros em minha mão os vêem.”. Pede também que atentem para receber “algum dinheiro que empresto a várias pessoas”. Adverte sobre a existência de “um livrinho que tenho na minha gaveta aonde trago as mais cousas e valores”, onde toda sua movimentação financeira está anotada. Declara ainda que é testamenteiro da defunta Quitéria Fernandes da Silva preta forra de cujo testamento ainda não teria dado conta, “por se não ter acabado o tempo estipulado nele para a sua conta”100 Os testamenteiros têm total autonomia para negociar o patrimônio com vistas ao cumprimento dos legados. Além de primeira testamenteira a viúva é também a única herdeira do saldo dos legados, onde estão incluídos os outros dois testamenteiros. Esse 97 Livro de óbitos e testamento da Freguesia da Sé, 1746-1776. Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro. Outros membros da congregação e mesmo da irmandade certamente estão presentes nos mesmos registros mas o desconhecimento de seus nomes e de sua identidade dificulta a localização. 98 De acordo com a ata da congregação sua morte ocorre no dia 25 de dezembro de 1783. A diferença de dois dias pode ser uma mera confusão ou indicar um tempo pela disputa do morto e de seu legado, como vou mostrar adiante. 99 Livro de óbitos e testamentos da Freguesia do Santíssimo Sacramento – 1776-1784. Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro. 100 O prazo normal para essas prestações de conta gira em torno de dois ou três anos e o dito testamento ainda não foi localizado. 26 testamento, encontrado depois da publicação do livro Devotos da cor no qual existe um capítulo sobre a congregação mahi apresenta novas informações além das obtidas através da ata da irmandade que trata da sua morte. O testamento nomeia três personagens certamente fundamentais nos conflitos que envolvem a sucessão de Ignácio Monte analisada no livro. A primeira é a viúva Vitória Correa da Conceição, que ele explica ser sua “parenta por sangüinidade”, “por ser ela filha do meu avô [......] bem conhecido Rei que foi entre os gentios daquela Costa no Reino de May ou Maquis”.101 Os outros dois, supostamente membros da congregação, não estão entre os fundadores da devoção das almas ou da devoção de Nossa Senhora dos Remédios, ambas compostas pelos partidários do regente Francisco Alves de Souza, sucessor do capitão Ignácio no governo da congregação contra quem a viúva abre uma longa demanda. Na ata da congregação que relata a morte de Ignácio consta que estavam presentes na ocasião alguns membros da congregação cujos nomes são arrolados no texto. Nenhum deles foi indicado como testamenteiro ou recebeu qualquer outra menção no testamento, cabendo, portanto, a dois ausentes (da ocasião ou do texto) essa tão importante função: Francisco do Coito Suzano e José dos Santos Martins102 estão certamente entre os indicados na ata como “parciais da viúva” em seu plano de tornar-se a “imperatriz de toda a Costa da Mina”, como acusam seus inimigos, os partidários do regente.103 A leitura combinada da ata da irmandade e do testamento permite perceber o conflito aberto no interior da congregação mahi por ocasião da sucessão. De um lado está Francisco, regente da congregação durante o reinado de Ignácio, neto de um antigo rei mahi; de outro a viúva de Ignácio, filha do mesmo rei. De acordo com o testamento em nenhum momento Ignácio desautoriza sua mulher a quem deixa a responsabilidade de guardar seus pertences (inclusive o importante livrinho). Por outro lado, ao arrolar seus bens não faz qualquer menção ao cofre e mais “trastes” da congregação que estariam em seu poder e que por ocasião de sua morte a viúva se recusa a devolver aos irmãos, decorrendo daí toda a disputa entre ela e os parciais de Francisco. A situação se mostra de tal modo intrincada, que é difícil saber quais são efetivamente os interesses em jogo. Em nenhum momento a documentação esclarece quais são os interesses de Ignácio. Dificilmente ele desconheceria a disputa que viria ocorrer por ocasião de sua morte mas em nenhum momento é dito pelas facções em conflito qual seria a vontade do morto. As confusões armadas pela viúva, que – certamente para maior desgosto do regente se chama Vitória - fazem lembrar os acontecimentos que marcam a vida no reino do Daomé por ocasião da morte de um rei. O reino é um legado do morto, mas há que disputá-lo. Na irmandade os reis são eleitos e a sucessão, que deve passar de um mahi para outro não pode ser uma herança paterna (supostamente todos os filhos são crioulos), devendo recair sobre outro africano. Dessa forma a sucessão de um rei já tradicionalmente tumultuada, gera na irmandade certamente conflitos ainda maiores. Por outro lado, à diferença do que ocorre na África, existem na irmandade instâncias 101 A referência a seu avô como “rei” pode indicar tanto um tipo de poder político centralizado quanto a idéia apresentada por Law de um conjunto de pequenos grupos independentes. 102 Um Manoel dos Santos Martins está entre os compradores do terreno onde é construída a igreja. O uso do mesmo sobrenome não significa parentesco entre eles e sim, conforme costume, serem ambos escravos de um mesmo senhor. 103 BN(MA)9,3,11. 27 superiores às quais se pode apelar tanto para dirimir dúvidas, quanto para manipular esferas de poder: os parciais da viúva recorrem ao Tribunal da Relação do Rio de Janeiro e ao Vice-rei. Já os parciais do regente se apelam a D. Maria, rainha de Portugal.104 O fato da viúva estar na posse dos bens da congregação e de ser a primeira testamenteira pode indicar apenas que, como legítima esposa, ela teria tido a oportunidade de proceder a seu favor por ocasião da morte do marido.105 Todas as providências a serem tomadas por ocasião da morte de um irmão ficam, segundo o compromisso, a cargo da irmandade e não da congregação que não tem regimento escrito. Isso pode significar também que, aliada aos dirigentes da irmandade (os dagomés), a viúva poderia ter se beneficiado dessa condição para controlar o testamento alijando seus opositores no interior da congregação mahi. Isso faz suspeitar que, ao contrário do regente, opositor declarado dos dagomés, a viúva estaria se unindo a eles. Daí sua pretensão de ser a imperatriz da Costa da Mina, cargo que só pode ser atribuído à mulher que acompanha o Imperador da irmandade e não a simples rainhas de folias nacionais. A ata da congregação mahi indica a existência de 200 filiados. De acordo com levantamento feito para o vice-rei Luiz de Vasconcellos, na década de 1780, a população escrava da cidade gira em torno de 9.700 homens e 7.100 mulheres.106 Se considerada uma população escrava de 20.000 e tomados os mahis da congregação como total dos mahis da cidade, e todos como escravos, eles corresponderiam, grosso modo, no mínimo 1% da população escrava da cidade, provavelmente bem mais que isso. Embora seja uma vaga estimativa, esses números dão alguma medida da importância desse grupo na vida da cidade. Além dos conflitos abertos entre os dois pretendentes à sucessão do capitão: de um lado os parciais da viúva e de outro os parciais do regente, descortina-se também uma tensão entre os parciais do regente. Ao decidir que não quer ser rei, mas apenas regente, coloca em risco sua liderança e a própria existência da folia. Alegando que inexistindo um rei deixaria de existir também sua corte os demais dirigentes da congregação temem perder seus próprios títulos. É o seguinte o diálogo pela disputa dos postos e títulos transcrito na ata: TODOS: Estamos contentes, mas VM não há de nos tirar o nosso direito e nem o nosso regalito, que há tantos anos estamos de posse. SOUZA: Que é o direito que VMs dizem estão de posse? 104 Sobre recursos feitos às autoridades régias e ao próprio monarca ver A. J. R. Russell-Wood. “Acts of grace’: Portuguese monarchs and their subjects of African descent in eighteenth-century Brazil”. Journal of American Studies 32, 307-332. Cambridge University Press. 2000. 105 De acordo com manifestação de Gonçalo Cordeiro na ata da congregação: “A viúva o que deve fazer é cuidar no governo de sua casa e cuidar de fazer bem a alma de seu marido, cumprindo com o que manda o testamento do dito seu esposo, e não se meter no que não lhe importa e se ela fez essa coisa não foi por vontade de todos pois VM bem sabe que esse nosso adjunto consta de mais de 200 pessoas entre homens e mulheres, não me consta que se fizesse a ela regenta porque havia de ser por eleição e vontade de todos os ... adjuntos e nem mulher pode ocupar semelhante cargo majormente em governar e reger homens.” BN(MA)9,3,11. 106 Luiz de Vasconcellos. “Memórias públicas e econômicas da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro para o uso do vice-rei Luiz de Vasconcellos por observação curiosa dos anos de 1779 até o de 1789.” Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. tomo XLVII, parte 1, ano 1884. p. 27. 28 TODOS: Se não tirar os nossos postos e nomes que a imitação dos fidalgos do nosso reino de Maki, se usa entre nós outros, a fim de distinguir o maior do menor, do fidalgo a mecânico; e haver respeito entre uns e outros. Decidida a manutenção dos cargos e títulos da corte apesar de extinto o título de rei que fica substituído pelo de regente registra-se em ata o conjunto dessas atribuições: Francisco Alves de Souza: regente; Rita Sebastiana: regenta; João Figueiredo:vice regente; Antônio da Costa Falcão: 2º vice-regente; Gonçalo Cordeiro: secretário; Boaventura Braga: 2º secretário e também 4º do conselho, chave de dentro e aeolû cocoti de daçâ (duque); Luiz Rodrigues Silva: procurador e aggau (general); José da Silva: aggau (general); José Antônio dos Santos: 1º do conselho e responsável pela primeira chave; Alexandre de Carvalho: 2º do conselho, responsável pela segunda chave e eiçuûm valûm (duque); Marçal Soares: 3º do conselho, responsável pela terceira chave e alolû belppôn lifoto (duque); José Luiz: 5º do conselho, tjacôto chaul de za (marques); Luiz da Silva: 6º do conselho e ledô (conde).107 Dos títulos escritos em língua geral da Mina o único que pude identificar até agora foi o de agau, general.108 O exército do Daomé possui três títulos de destaque que correspondem às mais importantes funções de guerra: Agau (general, comandante em chefe), Posu (comandante da direita e segundo no comando) e Zohenu (comandante da esquerda).109 Os demais títulos e cargos, embora ainda não identificados mostram existir na congregação uma teia de cargos e títulos (todos acompanhados de segundos, terceiros e direita e esquerda) semelhante ao encontrado no Daomé.110 Como a congregação mahi se desmembra da congregação mina ela reproduz a hierarquia dessa primeira mantendo seus cargos e títulos conforme sua designação nesse reino. Durante o reinado de Ignácio aconteceram conflitos no interior da congregação e dela saíram os agolins e os savalus,.cada um passando a eleger seu próprio rei. Provavelmente também esses reinados organizaram as suas folias, vindo a constituir, a partir de 1764, a corte do Imperador de Santo Elesbão. Em 1764, dois anos após os conflitos que segmentam a congregação mina, são acrescentados ao Compromisso da Irmandade cinco capítulos para a criação de um “estado de folias”, chamado Estado Imperial de Santo Elesbão. A razão declarada para a criação do “Estado Imperial” é o crescimento da irmandade em bens móveis e de raiz e também em número de irmãos. A existência de duas congregações com dois reis e a possibilidade de outras nações também reivindicarem a mesma realeza certamente deve ter trazido aos irmãos muitos problemas. A criação do Império se apresenta como uma solução: por um lado a figura do imperador cria um elo entre os reis e por outro se sobrepõe a eles, restituindo a ordem e a hierarquia no seio da Irmandade. O Estado Imperial se apresenta, portanto como um mecanismo de distribuição de parcelas de prestígio e distinção aos grupos minoritários, garantindo ao principal grupo da 107 Este é o único momento em que a língua geral da Mina é usada ao longo de todo o documento. A transcrição das palavras foi feita por mera comparação da grafia das letras, sendo provável a ocorrência de erros. 108 comandante em chefe do exército do Daomé. Robin Law. The slave coast…p 325. 109 Robin Law. The slave coast… p 271. 110 Vale aqui a lembrança que a congregação é composta por mahis e não por daomeanos. Isso mostra que tal configuração ou foi inspirada nas práticas políticas do Daomé ou tem na região uma abrangência maior que a desse reino, o que parece mais provável. 29 irmandade, os dagomés, a retomada do controle político na esfera de organização dos grupos étnicos.111 Conclusão A cronologia das irmandades e devoções de pretos minas da cidade do Rio de Janeiro no século XVIII aqui apresentada é contemporânea de uma série de acontecimentos relacionados ao tráfico atlântico e aos conflitos a ele associados na própria África Ocidental, tanto na Costa dos Escravos quanto na Senegâmbia. Mesmo correndo o risco de uma simplificação perigosa gostaria de mencionar aqui alguns acontecimentos relativos ao tráfico na Costa dos Escravos no século XVIII. Feita, mais uma vez, a paz com Oió em 1748, Tegbesu se volta contra seus inimigos menores, entre eles os mahis, sitiando a cidade de Gbowele em 1753. Os conflitos entre o Daomé e os mahis estendem ao longo de toda a segunda metade do século XVIII mas são também permeados por diferentes interesses que geram algumas formas de alianças. Cito aqui dois exemplos que mostram como essas parcerias, estão ainda muito pouco analisadas pela historiografia. Por volta do ano de 1758, Tegbesu decapita o agau por estar sob suspeita de pretender deserdar para o país mahi.112 A existências de laços entre mahis e o Daomé está demonstrada na própria família real. A esposa preferida de Tegbesu é mahi, também mãe de Kpengla, filho de Tegbesu e seu sucessor no trono do reino.113 Por outro lado, os conflitos que envolvem Daomé, Oió e povos da hintelândia apontam para um outro conjunto de acontecimentos menos estudados que ocorrem fora dos limites de influência direta do rei e de suas ações militares. Durante praticamente durante todo o século XVIII os mahis estão sob influência de Oió e não do Daomé. Na segunda metade do século XVIII quando os conflitos pelo controle das rotas do tráfico atlântico se acirram assim como Daomé e Oió os mahis também já são reconhecidos como comerciantes de escravos na hinterlândia, de onde comerciam inclusive com os daomeanos. Entretanto, o mais importante é perceber que na disputa dos portos de saída Ajudá está sob controle do Daomé, mas existem outros portos fora da sua esfera de influência onde, com regularidade, os Oió e também os mahis escoam sua mercadoria humana. É o caso de Porto Novo.114 Essa perspectiva é fundamental para retomar à análise da presença mahi no interior da irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia. Os dagomés presentes na igreja devem ter chegado, como já foi dito, entre 1720 e 1740. Os mahis devem ter começado a ser traficados na década de 1730 e podem ter chegado em vários períodos, especialmente após a guerra de 1731 e também após o sítio da cidade de Gbowele em 111 A implantação do Império de Santo Elesbão lembra de imediato a criação do culto a Mawu no Daomé. Este, entretanto, é tema para outra oportunidade. 112 Decapitar era sinal de poder absoluto. Conforme relato de Norris. Robin Law. The slave oast of West África 1550-1750. The impact of the Atlantic slave trade on an African society. Claredon Press. Oxford. 1991. p 328. 113 Sobre esses laços familiares ver Archibald Dalzel. The history of Dahomy an inland kingdom of Africa. Compiled from authentic memoires by Archibald Dalzel. A second printing with a new introduction by J. D. Fage. Frank Cass & Co. Ltd. 1967. pp. 76, 165, 192. 114 Archibald Dalzel. The history of Dahomy an inland kingdom of Africa. Compiled from authentic memoires by Archibald Dalzel. A second printing with a new introduction by J. D. Fage. Frank Cass & Co. Ltd. 1967. p. 214. 30 1753. Entretanto, na década de 1780 quando ambos se enfrentam por ocasião da morte do capitão Ignácio já são passados mais de cinqüenta anos. Não se trata aqui de um conflito entre os dagomés traficantes e os mahis traficados. Em 1780, os minas da cidade formam uma bem organizada e razoavelmente rica comunidade, distribuída por várias devoções e irmandades, com patrimônio superior a qualquer outro grupo de africanos da cidade.115 Certamente esses devotos já não se vêem como míseros traficados arrastados seminus pelas ruas da cidade. Ao contrário, tentam esconder esse tempo de suas vidas, mencionando na história da irmandade apenas o passado guerreiro e glorioso deixado em suas terras. Nos anos de 1780, tanto dagomés quanto mahis se vêem como membros de importantes reinos africanos.116 Por fim é importante destacar que os anos de escravidão, a alforria, a vida cristã e a slavação eterna na qual investem quase todos os seus bens não afastam esses devotos do viceral sentimento de que são cabus, dagomés, mahis, savalus. O capitão Ignácio Gonçalves do Monte, rei dos mahis na cidade do Rio de Janeiro, neto de um rei mahi em sua terra, morre sem deixar descendentes. Assim como ele, a maioria dos demais devotos da Irmandade declara em seus testamentos não ter tido filhos. De acordo com o sistema de identificação dos escravos adotado no Brasil no século XVIII, é “crioulo” o filho de um escravo africano nascido no Brasil.117 O crioulo é o escravo ou escrava, filho de mãe gentia que nasce no âmbito da sociedade colonial. Magdalena Costa, uma “preta forra crioula”, é filha natural de Josepha da Costa, uma “preta mina” e mãe do pequeno Custódio, “escravo”, batizado em 1745.118 Esta curta genealogia permite perceber que ser crioulo é, nessa época, uma condição provisória sucedida, na geração seguinte, pela inserção numa identidade genérica de “escravo” que iguala a todos na esfera mais baixa da sociedade estamental. A inserção dos filhos dos africanos na sociedade colonial como crioulos impede a constituição de uma descendência étnica no âmbito da sociedade escravista.119 Nessas condições, a sobrevivência de um grupo étnico no cativeiro está ligada ao próprio tráfico à constante chegada de novos integrantes. Tal perspectiva explica o pouco caso com os crioulos e o cuidado especial com os mortos. O modo encontrado por eles de ser mahi - longe do reino mahi - foi reconstruir sua identidade voltada para o 115 Embora ainda não seja possível fornecer números exatos, os testamentos mostram que os minas, individualmente ou em grupo reúnem o maior patrimônio entre os africanos aforriados. Sobre isso ver trabalhos recentes de Sheila de Castro Faria. “Mulheres forras – riqueza e estigma social”. Tempo, vol.5, nº 9, jul/2000. pp. 65 -92; e Carlos Eugênio Líbano Soares sobre pretas minas apresentado nesse congresso: “Comércio, nação e gênero: as negras minas quitandeiras no Rio de Janeiro (1835-1900)”. HIS 33. 116 É oportuno lembrar que a primeira embaixada do Daomé ao Brasil/cidade de Salvador, então capital da colônia do Brasil, data de 1750, durante o reinado de Tegbesu. Pierre Verger. Fluxo e refluxo... pp. 257-263. 117 No Brasil ou em qualquer outra parte dos domínios portugueses, portanto, fora dos limites da gentilidade. Por isso existem crioulos do Brasil, de Portugal e mesmo de Angola onde a presença portuguesa se faz de forma efetiva. A condição de crioulo afeta apenas uma geração de cada descendência decorrendo daí o fato de não constituir um grupo estável e com interesses comuns. Esta provisoriedade pode explicar a identificação de apenas 47 mães crioulas em relação às 267 dadas como nascidas no âmbito da sociedade colonial. Nos registros de batismo da cidade do Rio de Janeiro. Para maiores detalhes sobre os números aqui apresentados ver Mariza de Carvalho Soares. Devotos da cor... 118 Livro de batismo de livres - Freguesia da Sé (1744-1761), 05.05.1745. 119 Ao longo do século XIX se generaliza o uso da palavra crioulo para todos os afrodescendentes escravos, forros ou livres nascidos no âmbito da sociedade colonial e depois imperial. 31 passado com base numa rede étnica geracional. Isso é possível na medida em que, no século XVIII, as mais diversas esferas da sociedade colonial envolvidas no tráfico sequer vislumbram no horizonte o fim desse infame comércio. É sustentado pelo pensamento da perenidade do tráfico que dagomés e mahis se enfrentam e disputam interesses no interior da irmandade, mostrando quanto, na segunda metade do século XVIII, ainda estão arraigadas nessa sociedade os pressupostos da legitimidade do tráfico já tão discutido na Europa, especialmente na Inglaterra. Os mahis, assim como todos os escravos africanos, não se “criolizam”, ou são “crioulizados”, por forças das circunstâncias históricas resultantes do tráfico.120 Eles presenciam e reagem a essa situação de diferentes formas (das quais infelizmente temos poucas notícias). Uma delas é a organização da congregação mahi e de uma devoção às Almas no seu interior.121 Se as tradições são apagadas pelo tempo, pela ocidentalização ou pela mestiçagem, é uma outra história. Na irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia, mantendo algumas de suas tradições e abrindo mão de outras, os irmãos buscam uma saída pensando neles mesmos e em seus ancestrais e não em sua descendência. Esse sentimento do presente está certamente associado ao fato da maioria deles não ter filhos, ou não considerá-los como importantes no processo de identificação étnicia. A congregação mahi é uma comunidade voltada para os “irmãos” e “nacionais” numa fraternidade geracional que atravessa o oceano, ligando o reinado mahi do Império de Santo Elesbão ao reinventado “potentado reino mahi da Costa da Mina”. De acordo com as palavras do secretário da congregação mahi: “a maior paixão que tenho é de não ver os nossos nacionais todos católicos fazendo serviços a Deus que é o fim para o que fomos nascidos.”122 Numa tensão para fazer conviver o que hoje enquadramos no binômio cultura & identidade étnica, incorporam o Deus cristão e ao mesmo tempo se apegam a seus nacionais na esperança de vê-los cristãos, como única saída para construir uma unidade étnica num outro mundo onde, mesmo que mortos, todos os mahis podem estar de novo reunidos. 120 Faço aqui uma referência ao debate que deriva do trabalhos de Sidney W. Mintz e Richard Price. The birth of African-American culture: an anthropological perspective. (1ª edição 1976). Boston. 1992. 121 O compromisso da devoção das Almas está transcrito na ata da congregação. BN(MS)9,3,11. 122 BN(MS)9,3,11.