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m mundo sem arte não poderia enxergar a si próprio. Ficaria en­
cerrado dentro dos limites de regras simplistas. É por essa razão que
os regimes totalitários, uma vez instalados, censuram, proíbem e queimam.
É assim que eles perfuram o olhar do pensamento, do sonho, da memória
e da expressão das diferenças. A terra de onde nascem os artistas.
Esse termo, que serve mais para qualificá-las do que para defini-las,
suscita desdém e comentários. Se por um lado a Arte é nobre, maiúscula,
simples e bela, por outro, o artista é minúsculo, objeto de desprezo e,
frequentemente, de rejeição. É que o fundo foi muitas vezes apagado em
benefício da forma. Desde os macacões de Picasso, as gravatas de madei­
ra de Vlaminck, os chapéus de Braque, as arruaças sur­realistas, alguns
ingênuos e muitos maledicentes tomam a parte pelo todo, a fantasia pela
obra de arte, e esquecem (ou ignoram) que a indu­mentária não conta, a
não ser por aquilo que é: uma aparência.
Tanto os pintores do Lapin Agile quanto os poetas do La Closerie
des Lilas usavam, às vezes, roupas extravagantes, organiza­vam festas
inusitadas, puxavam o revólver e provocavam o burguês de mil maneiras,
por um motivo essencial: na época, o burguês não gostava deles. Estava
rigidamente assentado numa ordem antiga, enquanto penas e pincéis
aproximavam-se do anarquismo, assim como o farão mais tarde com o
comunismo e o trotskismo. Eram mundos inconciliáveis.
Mas a obra está além dos problemas da ordem e dos costu­mes. Antes
de qualquer outra coisa, o artista produz obras de arte. Picasso pode se
vestir como quiser, Alfred Jarry pode puxar a arma tantas vezes quanto
desejar (e ele o fez), Breton e Aragon podem ameaçar aqueles que despre­
zam, todas essas bravatas pouco signifi­cam se comparadas aos caminhos
que eles traçaram. A arte moderna nasceu das mãos desses sublimes
provocadores. De 1900 a 1930, eles não se contentaram apenas em levar
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essa vida de artistas que os tor­nou detestáveis para alguns e que muitos
outros invejaram: acima de tudo, eles inventaram a linguagem do século.
Foram igualmente odiados por isso. Os escândalos do Ubu roi, do
Sacre du printemps, da “jaula das feras”, dos “cubistores” ou do Bonheur
de vivre, exposto por Matisse no Salão dos Independentes, em 1906, dão
a medida da violência suscitada pelas vanguardas. Stravinski, mil vezes
ultrajado, admitia entretanto esses rompantes; ele achava que o público
não tinha que se mostrar indulgente em rela­ção aos artistas, mas cabia
a esses últimos compreender a perseguição da qual são, algumas vezes,
objeto: ele mesmo teria dado de ombros se tivesse ouvido suas próprias
obras um ano antes da sua criação.
As vanguardas sempre incomodam. Mas a sociedade acaba por
assimilá-las. As tendências mais modernas fazem esquecer as audácias das
gerações precedentes. No seu tempo, o impressionismo havia provocado
o furor do público e da crítica. O neoimpressio­nismo deixou-o bastante
apagado, antes de aparecer ele próprio com cores mais desmaiadas diante
dos horrores fauves que foram, por sua vez, varridos pelas monstruosidades
cubistas. Na poesia, os românticos foram destronados pelos parnasianos,
que foram substi­tuídos pelos simbolistas, que Blaise Cendrars via como
“poetas já ultrapassados”. Na música, Bach encerra a tradição barroca,
Haydn, Mozart e Beethoven abrem a orquestra para as máquinas sinfô­
nicas de Berlioz, que se tornaram harmoniosas em face do dode­cafonismo.
Quanto a Erik Satie, a crítica da época já achava o bas­tante que ele tivesse
o direito de ser chamado de músico...
No limiar do século XIX, a França era a capital das vanguar­das. Mas
não era só isso. Duas escolas coabitavam em Montmartre. Uma delas se
inscrevia sem rupturas na tradição de Toulouse-Lau­trec: Poulbot, Utrillo,
Valadon, Utter e outros nunca provocaram os raios que caíram sobre a
cabeça dos inquilinos do Bateau-Lavoir. Lá, pintava-se formalmente. Aqui,
as formas eram quebradas em busca da nova arte. Misturando línguas e
culturas, cavando num terreno de incrível diversidade, os espanhóis Gris
e Picasso, o holandês Van Dongen, o ítalo-polonês Apollinaire, o suíço
Cendrars e também os franceses Braque, Vlaminck, Derain e Max Jacob
escapavam das regras para liberar a pintura e a poesia de pesadas limitações.
Do outro lado do Sena, em Montparnasse, Modigliani, o ita­liano;
Diego Rivera, o mexicano; Krogh, o escandinavo; os russos Soutine, Cha­
gall, Zadkine, Diaghilev; os franceses Léger, Matisse, Delaunay – entre
muitos outros – também enriqueciam o patrimô­nio artístico. Nos anos
1920, chegarão os escritores americanos; Tzara, o romeno; os suecos, outros
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russos, novas nações... Paris se tornará a capital do mundo. Pelas calçadas,
eles não serão mais cinco, dez ou quinze, como em Montmartre. Mas sim
centenas, milhares. Um burburinho de riqueza nunca mais igualada, nem
mesmo mais tarde em Saint-Germain-des-Prés. Pintores, poetas, esculto­
res e músi­cos, todos misturados. De todos os países, de todas as culturas.
Clássicos e modernos. Ricos mecenas e marchands ocasionais. As modelos
e seus pintores. Escritores e editores. Pobres e milionários.
Antes da Primeira Guerra Mundial, Picasso já enriquecera, mas
a maioria de seus companheiros vivia numa incrível pobreza. Depois de
1918, eles compravam carros Bugatti e residências de luxo. O tempo dos
brilhantes aprendizes estava terminando. Guillaume Apollinaire, que
morreu dois dias antes do armistício, leva com ele a época dos pioneiros.
Modigliani, falecido em 1920, encerra o ciclo das vidas errantes que Villon
e Murger conheceram. O búlgaro Jules Pascin fecha para sempre a porta
dos trinta primeiros anos do século XX: o tempo dos boêmios.
Eles tinham escolhido viver em Paris, cidade fraterna, gene­rosa,
que soube oferecer a liberdade a esse povo vindo de outros luga­res. Hoje,
Picasso, Apollinaire, Modigliani, Cendrars e Soutine não viveriam mais lá.
Teriam sido repelidos para longe do Sena. O espa­nhol por uso de drogas,
o ítalo-polonês por receptação, o italiano por escândalo na via pública, o
suíço por furto, o russo por miséria crô­nica e mendicância mal disfarçada.
Poderíamos citar tantas outras razões. Todas demonstrariam que
os artistas, hoje como ontem, andam quase sempre pelas beiras e não pelo
centro dos caminhos. Permanecem aquilo que nunca deixa­ram de ser e
que os torna tão peculiares. São pessoas deslocadas.
Falar daqueles de ontem é também amar os de hoje. A memória é
reflexo, a sombra é uma projeção. Através das décadas, os artistas conti­
nuam irmãos dos seus antecessores.
A exigência é sua primeira companhia. Modigliani, Soutine e
Picasso, que sempre se dedicaram apenas à sua arte, criticavam Van
Dongen e alguns outros que queriam agradar à alta sociedade. Para eles,
esses companheiros de época se renegaram, quase se comprome­teram.
Tornaram-se uma espécie de técnicos, de artesãos da pintura. Ora, os
artesãos não seriam artistas. Pierre Soulages, um dia, me deu a chave da
diferença: “O artista procura. Ele ignora o caminho que vai tomar para
alcançar seu objetivo. O artesão, por sua vez, segue por caminhos que
ele conhece para ir ao encontro de um objeto que ele também conhece”.
Brilhante.
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O artista trabalha sozinho, não emprega ninguém e não tem profis­
são. Pintar ou escrever não é uma questão de profissão; trata­-se de uma
respiração. Até a ferramenta é incerta. Se a ideia morre, ou a imaginação,
se a cabeça entra em pane, nada nem ninguém pode­rá salvar o homem
asfixiado pelo nada. E ninguém poderá substituí-lo: a obra de arte é úni­
ca, assim como aquele que a produz. As cariátides de Modigliani não são
comparáveis a nenhuma outra. Se aconteceu que Robert Desnos comprou
um desenho a carvão de Picasso, vendido como se fosse uma composição
de Braque, foi por­que, durante o grande período do cubismo sintético, os
dois artistas trabalhavam juntos.
Tanto um como outro procuravam. A dúvida constitui a eterna
linguagem do artista diante de si mesmo. A nova obra nunca é adquirida.
Ela não repousa sobre coisa alguma, nem mesmo sobre a obra que a pre­
cede. O sucesso e a curiosidade são efêmeros. É preciso sempre recomeçar
do zero. O zero é um abismo. O artista vive apenas do seu fôlego. Se este
lhe falta, tudo desmorona. É assim que funciona o homem em relação à
obra nascente.
Bohèmes [Boêmios] nasce nos ateliês do Bateau-Lavoir e cresce
sobre as calçadas da Ruche e de Montparnasse. Ele cruza um romance,
Nu couché [Nu deitado]. Preenche seus espaços, suas reentrâncias e seus
mistérios não revelados.
Escrevi os dois livros ao mesmo tempo, durante vários anos, descan­
sando de um no outro, incapaz de dividi-los, de separá-los. São dois irmãos
siameses da mesma aventura literária: um é romance, o outro é crônica.
Não teria podido escrever Nu couché sem escrever Boêmios, e Boêmios
não existiria sem Nu couché. A história desses homens que fizeram brotar
a arte moderna na terra das suas diferen­ças é tão rica que apenas um
livro não me pareceu suficiente para esgotar as peças do caleidoscópio que
espio há tantos anos. São com­panheiros extraordinários, mas persistentes.
Frequentando-os, esque­ci o motivo que havia me conduzido até eles.
Comecei escrevendo Nu couché. Na sua primeira versão, o livro
me fugia. Escorregava sob seu próprio peso. O real afogava a ficção. Os
personagens nascidos do meu imaginário depunham suas armas diante
dos heróis do Bateau-Lavoir e do cruzamento Vavin. Aqueles valiam talvez
um romance, mas estes também o mereciam.
Recomecei. Retirei de Nu couché as escadas que permitiram tomar
de assalto minha fortaleza. Coloquei-as em outro lugar. E es­crevi os dois
livros paralelamente.
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Nu couché visita os ateliês, os cafés e os bordéis da época através de
invenções que não pertencem apenas às testemunhas do momento. Ele é
como uma criação fixada numa moldura.
Boêmios explora o quadro nas suas luzes e riquezas. Ele con­ta os
artistas de Montmartre e de Montparnasse pela voz do contador.
Não sou historiador da arte. O escritor tem sua própria linguagem. A
minha é esta. Uma maneira de escrever um outro romance: o das pessoas,
dos lugares, das obras que o século, virando a página, levaria para uma
ilha deserta se quisesse ter o prazer de encontrar a si mesmo, à sombra
da sua memória.
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