Racismo, Allan Kardec, Doutrina Espírita e Nós Gustavo Leopoldo Rodrigue Daré [email protected] Na Procuradoria da República no Estado da Bahia, no dia 28 de setembro de 2007, nove editoras espíritas brasileiras (1) assinaram o Termo de Compromisso de Ajustamento de Conduta (TAC). Este processo resultou dos “questionamentos acerca do conteúdo de determinados trechos das obras literárias de Allan Kardec, vistos como supostamente discriminatórios e preconceituosos em relação a pessoas negras e de outras etnias”. Foram selecionados, no total, 96 trechos de textos. A “melhor forma” encontrada para “afastar qualquer dúvida quanto à mensagem dos textos editados nas obras de Allan Kardec” foi a “publicação de notas de esclarecimento nos próprios livros... que leve em conta o seu contexto histórico e a interpretação sistemática dos princípios que regem a doutrina espírita”. A nota explicativa de 4 páginas deverá ser publicada em 8 obras e todas as Revistas Espíritas assinadas por Kardec (2). É o maior trabalho de revisão sistemática das obras kardequianas realizadas no Brasil. Um trabalho que passou, por força da lei, a compor todas as edições impressas no país desde outubro de 2007. A amplitude do trabalho comprova que estamos perante uma forte crítica ao pensamento kardequiano, e sugere que o discurso criticado deve estar alicerçado em premissas doutrinárias fundamentais. Kardec destaca-se por sua enorme habilidade em desenvolver argumentação lógica correta. Deste modo, se aceitarmos que as conclusões estão erradas, e as argumentações estão corretas, concluiremos que as premissas estão erradas, e teremos a responsabilidade de buscar premissas alternativas robustas. Se considerarmos as premissas corretas, teremos que aceitar as conclusões como verdadeiras, apesar de serem discordantes do discurso dominante contemporâneo. O texto da nota explicativa sugere que as conclusões de Kardec estão erradas devido as premissas erradas, porém não analisa em profundidade quais são as verdadeiras premissas que sustentam a tese kardequiana, nem apresenta premissas substitutas mais adequadas. Analisemos a afirmativa do TAC “supostamente discriminatórios e preconceituosos”. A palavra preconceito apresenta uma única conotação principal, porém discriminação possui significados com conotações comportamentais e emocionais diferentes: Discriminação (3): a) faculdade de distinguir ou discernir; b) apartação, segregação. Preconceito (3): conceito ou opinião formados antecipadamente, sem maior ponderação ou conhecimento dos fatos; idéia preconcebida; julgamento ou opinião formada sem se levar em conta o fato que os conteste; superstição, crendice, intolerância, ódio irracional ou aversão a outras raças, credos, religiões. O texto jurídico da TAC utiliza a palavra discriminação como sinônimo de segregação racial. Entretanto, discriminar, como sinônimo de distinguir, é uma das bases da atividade científica e filosófica. É etapa fundamental de todo julgamento racional. A taxonomia de Bloom e colaboradores, que até hoje inspira propostas pedagógicas, propõe que a capacidade cognitiva inicia-se pelo conhecer e passa por várias etapas intermediárias até alcançar seu ápice no ato de avaliar ou julgar (4). Entre estas etapas temos a análise, que exige identificar, distinguir e diferenciar, ou seja, exige discriminar. A capacidade kardequiana de discriminação está em todos os seus textos classificatórios, como na classificação dos tipos de Espíritos, de Mediunidade, de Médiuns, de Espíritas, de Obsessão, de Mundos Habitados e das Leis Morais. Suas conclusões são baseadas na somatória de fatos, teorias explicativas e inferências lógicas. Aceitando que as conclusões de Kardec estão erradas, podemos argumentar que os fatos conhecidos por ele estavam errados, que as teorias em que se fundamentava estão superadas, ou identificar erros em suas inferências. Encontrar erros nas inferências lógicas kardequianas é, para mim, o mais difícil. Encontrar falhas nos fundamentos teóricos e factuais é mais fácil, facilitado pelos conhecimentos desenvolvidos nos 150 anos que nos separam dos textos de Kardec. Porém, esta crítica deve ser feita com seriedade, sua qualidade lógica deve se aproximar da de Kardec, e não simplesmente repisar sobre o lugar comum do senso comum e do politicamente correto. Qual o Objeto de Análise? Emerge de uma análise detalhada dos textos selecionados pela TAC, que Kardec não se posiciona no conflito superficial e simplista de brancos versus negros. Ele confronta povos primitivos-selvagens com povos civilizados. É como povos primitivos, e não exclusivamente como negros, que Kardec discute as habilidades, limitações e finalidades das raças humanas n'O Livro dos Espíritos (diálogos de 688 a 692 e outros) e n'A Gênese (capítulo XVIII). Com o mesmo enfoque, analisa os povos andinos, os incas, os árabes e os negros (5). Não podemos concentrar nossa crítica no atual viés brasileiro do enfrentamento branco x negro, mas na visão povos tribais x povos civilizados. Povos civilizados definidos como aqueles que desenvolveram o padrão cultural europeu da Idade Moderna-Contemporânea, povos alicerçados na convicção do princípio do progresso, da Ciência, das estruturas sociais organizadas em Estados e cidades gerenciados pela informação e intercomunicação. As Premissas e Paradigmas Nos textos classificados como racistas, destacam-se alguns princípios que fundamentam toda a doutrina elaborada por Kardec e Espíritos colaboradores: a) Adepto da teoria evolucionista, busca identificar e classificar as diferenças sociais e individuais, comportamentais e corporais. Estas diferenças são interpretadas como indícios da história evolutiva da espécie humana. Seu raciocínio e trabalho discriminativo seguem as mesmas estratégias dos darwinistas, que ao analisarem os animais de diferentes continentes buscaram desenhar a trajetória evolutiva dos seres vivos. Utiliza seus conhecimentos sobre a vida social e cultural de povos distantes da cultura européia (africanos, incas, andinos, etc) para identificar estas diferenças, classificá-las e ordená-las em seqüência crescente de complexidade e acumulativas de qualidades consideradas superiores. b) Aceita como premissa, fundamentada em uma teoria racionalizada e reforçada em diálogos mediúnicos, de que as estruturas físicas definem restrições para a manifestação do Espírito. Esta mesma teoria fundamentou o desenvolvimento da Genética e da Medicina ocidental. Não foram totalmente superadas em várias áreas da Ciência humana e biológica. c) Para hierarquizar as formas evolutivas dos seres vivos, Kardec se apóia em teorias do Belo. No ensaio “Teoria da Beleza” (Revista Espirita 1869) afirma que a beleza do Espírito se manifesta no corpo físico. A associação entre o belo, o verdadeiro e o bom nos remete às tradições filosóficas greco-romanas de Pitágoras, Platão e Aristóteles (6). Talvez este princípio da inter-influência Espírito e matéria tenha relação com o pensamento do alemão Friedrich Schiller (1759-1805), para quem “o mundo da matéria obtém um valor destacado para o homem em evolução” (7). A teoria da inter-dependência do Belo e da Qualidade Moral do ser humano não é exclusiva de Kardec, mas foi a única que sofreu a penalisação judicial. As conclusões kardequianas emergem de um trabalho de análise da cultura de diferentes povos do globo, interpretadas como manifestações das capacidades criativas, cognitivas e afetivas dos Espíritos reencarnados e das estruturas funcionais de seus corpos. Considera que o corpo limita a manifestação do Espírito, a cultura é produto da capacidade coletiva dos Espíritos reencarnados, e a estética do Belo evolui na dependência do progresso físico-espiritual. Até aqui não há erro de lógica, portanto, não há preconceito, apesar de algumas conclusões serem contrárias ao bom senso atual. Podemos considerar que o bom senso atual esteja errado ou que as premissas estão erradas. Em seguida, elaboramos propostas alternativas considerando a possibilidade das premissas estarem erradas e analisando criticamente a atualidade ou não das premissas kardequianas. Elaborando Propostas Alternativas 1) Sobre os limites físicos dos povos primitivos. Muitas teorias sociais sobre o Homem se desenvolveram nos últimos 150 anos e hoje disputam, em igualdade de condições, a supremacia da verdade com as teorias físico-genéticas. Para muitas teorias sociais, muito do que parece ser inato em um povo não é resultado da genética, mas é resultado de processos históricos de construção do psiquismo humano. Defendem a capacidade de indivíduos provenientes de "povos primitivos" (sociedades tribais) se igualarem socialmente aos “povos civilizados”, desde que possam usufruir dos mesmos recursos de aprendizado. Algumas pesquisas afirmam que as diferenças genéticas entre as raças surgiram muito recentemente na evolução da espécie humana, e que estas diferenças mínimas são insuficientes para limitar o desempenho de um indivíduo. “As raças modernas representam adaptações muito tardias e secundárias... inteiramente posteriores aos processos formativos básicos do desenvolvimento nervoso e anatômico... que forjaram as características fundamentais da sua humanidade” (8). Atualmente, persiste na ciência biológica, na medicina e na política a prática de se identificar diferenças orgânicas, psicológicas e culturais entre os seres humanos, classificando-os em raças e etnias (9,10). “Mudam os termos do debate, de raça para etnia, mas, de alguma maneira, continuamos presos a uma lógica positiva de estabelecimento de hierarquias ontológicas” (11). Ou seja, o discurso kardequiano não está tão utrapassado como a nota explicativa da TAC sugere. 2) Sobre as limitações culturais dos povos. Muitos povos tribais se mantiveram tribais até a intervenção dos povos "civilizados". Se estes povos tribais não eram / são atrasados em relação aos povos civilizados, por que não transformaram suas sociedades tribais em sociedades mais capazes de transformar a natureza? Aparentemente, o desempenho de negros africanos, indígenas mexicanos e brasileiros dentro de uma sociedade “civilizada” aumenta conforme este indivíduo “absorve” socialmente a cultura "civilizada". Continuaremos assumindo a existência de uma hierarquia cultural ou não? 3) Sobre a teoria evolucionista. Podemos negar que a sociedade civilizada seja mais evoluída do que a tribal. Uma dificuldade em sustentar esta negativa é que a sociedade européia já foi tribal, feudal, etc, ou seja, tem uma história de passagem e superação destas etapas. Este conhecimento foi utilizado por Herculano Pires para descrever a evolução do Espírito em “O Espírito e o Tempo”. Podemos argumentar que os avanços americano-europeu no controle da energia subatômica não indicam evolução maior do que dos povos que não dominam sequer os metais. Podemos excluir a teoria evolucionista, mas, neste caso, estaremos ignorando um pilar da Doutrina Espírita. Como via alternativa, podemos redesenhar o modelo evolucionista. Neste redesenho podemos negar a proposta kardequiana de que o progresso intelectual leva ao progresso moral, e reclassificar as várias facetas da evolução humana em habilidades mais diversificadas do que apenas intelectual e moral. Podemos redimensionar a importância e a extensão do tempo como demarcador de diferenças significativas na evolução do Homem. Ou seja, o período histórico de 2000 anos da sociedade européia pode não ser suficiente para identificar a verdadeira evolução do Homem e do Espírito. Proponho, neste rearranjo do modelo estrutural de evolução, substituirmos as analogias visuais de escadas e degraus pela evolução como uma rede, com um ponto inicial comum, ramificações infinitas de acordo com as possibilidades probabilísticas, e cruzamentos destes caminhos até atingir um ponto final de atração. 4) Sobre a teoria da igualdade. Kardec fundamenta a igualdade na tese da origem comum e fim comum, e a tolerância e aceitação das diferenças se deve a conclusão de que estas diferenças são transitórias. Apesar de defender a vida em sociedade como necessidade de unirmos nossas diferenças para o bem coletivo, defende uma postura professoral dos povos civilizados (O Livro dos Espíritos, diálogo 831). Podemos rever a teoria da igualdade, para valorizar as diferenças. Uma proposta de redefinição do que é a igualdade é nos aproximarmos das propostas ecológicas. Nossa igualdade intra-humana e inter seres vivos se baseia na realidade de nossa inter-dependência com os demais seres vivos, humanos e não-humanos, e não no início uo fim comum. 6) Sobre a teoria do Belo. Qual alternativa podemos oferecer a proposta do belo objetivo e real, que flui do Espírito e de Deus para o corpo e para a Natureza? Se adotarmos o conceito filosófico, dominante no atual mundo contemporâneo pós-moderno, de que a beleza é relativa ao ponto de vista de cada um, entraremos em confronto com a premissa da existência da forma perfeita divina a qual atingiremos através da evolução. Estaremos negando, novamente, a evolução. Proponho, como alternativa, um modelo em que o belo quantifica-se através dos processos informacionais, da habilidade de inter-comunicação e de reconhecimento do ambiente externo e interno, e não em suas formas anatômicas. Proponho, ainda, que esta habilidade comunicativa se manifesta em através de diferentes caminhos, com comparável eficácia, nos remetendo ao modelo evolucionista em rede, em oposição ao modelo evoluionista da escada. Conclusão Unindo as 3 propostas descritas acima (da evolução em rede, da igualdade caracterizada pela inter-dependência e do belo que emerge da capacidade de intercomunicação) podemos reconstruir nosso argumento lógico, conciliando, menos conflituosamente, a defesa da alteridade com o princípio da evolução. Mas isto exige algumas alterações dos paradigmas espíritas vigentes enumerados acima. Reconhecemos que esta teoria apresenta as limitações inerentes de toda teoria nova: não é robusta o suficiente para nos garantir que seja melhor do que a antecessora. Podemos ignorar toda a discussão deste artigo, e argumentar que o importante é a caridade. Mas não sejamos inocentes, a caridade é fruto da busca do melhor para o próximo. Baseia-se na crença de que exite um modelo do melhor que precisa ser perseguido. Deste modo, ter clareza sobre o que é o melhor, é fundamental mesmo para os que defendem a inutilidade desta discussão. Neste artigo, para solucionarmos o conflito “supostamente discriminatório e preconceituoso” dos textos kardequianos, adentramos no paradigma espírita que explica a realidade e o futuro humanos. Discussão que as editoras espíritas evitaram adentrar, mas a impôs como pauta urgente da sociedade espírita ao aceitarem a crítica defendida pelo TAC. Não podemos acomodar o corpo doutrinário a interesses e opiniões pessoais momentâneos. Oferecer alternativas confiáveis para este conflito do paradigma kardequiano com o senso comum atual é desafio hercúleo e tarefa de toda comunidade espírita. Exige uma capacidade reflexiva humilde e responsável que a comunidade espírita ainda não exercitou, mas efetivará o diálogo do conhecimento espírita com os novos conhecimentos humanos não-espírita e aceitará a possibilidade de elaboração de novas propostas espíritas. Neste tema em particular, se levado a adiante a sua discussão, produzirá conseqüências benéficas diretamente na habilidade espírita de julgar e de se relacionar com o semelhante e com a Natureza. 1) Assinaram o TAC, procedimento administrativo n° 1.14.000.000835/2006-12, a Federação Espírita Brasileira, Federação Espírita do Estado de São Paulo, Centro Espírita Léon Denis, Fundação Espírita André Luiz, Editora EME, Instituto de Difusão Espírita, Petit Editora e Distribuidora Ltda, Livraria Allan Kardec Editora e Editora Cultural Espírita Edicel Ltda. 2) As obras de Allan Kardec em que as Notas Explicativas devem ser adicionadas: O Livro dos Espíritos, O Livro dos Médiuns, O Evangelho Segundo o Espiritismo, O Céu e o Inferno, A Gênese, Obras Póstumas, O Que é o Espiritismo, O Espiritismo na sua Expressão Mais Simples, Viagem Espírita em 1862, Revista Espírita de 1858 a 1869. 3) e em todas as Revistas Espíritas de 1858 a 1869. Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, Novo Aurélio Século XXI: o dicionário da língua portuguesa, Ed. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1999. 4) Heraldo H. Vianna, Capítulo II: Planejamento de Testes, In: Testes em Educação, IBRASA, São Paulo, 1985. 5) Textos de Allan Kardec sobre os povos andinos (“O Livro dos Espíritos entre os selvagens”, Revista Espírita 1859), os incas (“Destruição dos aborígenes do México”, Revista Espírita 1864), os árabes (“A fome na Argélia”, Revista Espírita 1868) e os negros (“Frenologia espiritualista e espírita: perfectibilidade da raça negra”, Revista Espírita 1860). 6) Yurij Castelfranch, Os Oblíquos Caminhos do Belo, Com Ciência – Revista eletrônica de jornalismo científico do SBPC, http://www.comciencia.br/comciencia/handler.php?section=8&edicao=15&id=138 7) Simone Villas Ferreira Cid, O Caminho Estético de Friedrich Schiller: primórdios de um programa de educação estética no ensino regular, www.ichs.ufop.br/conifes/anais/FES/fes0403.htm 8) Clifford Geertz, Transição para a Humanidade, In: O Papel da Cultura nas Ciências Sociais, Porto Alegre, Editorial Villa Martha, 1980. 9) Sérgio D. J. Pena, Razões para Banir o Conceito de Raça da Medicina Brasileira, História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v. 12, n. 2, p. 321-46, Rio de Janeiro, 2005. 10) Sérgio D. J. Pena e Maria Cátira Bortolini, Pode a genética definir quem deve se beneficiar das cotas universitárias e demais ações afirmativas?, Estudos Avançados, 18 (50), 2004. 11) Lilia Moritz Schwarcz, Dos Males da Medida, Psicol. USP, vol. 8, n. 1, São Paulo, 1997.