Música e cultura religiosa em Itu (II)
Luís Roberto de Francisco
Na primeira metade do século XVIII1 a vila de Nossa Senhora da Candelária de Itu
tornara-se um ponto regional de pouso àqueles que estavam em trânsito entre as diversas
regiões da Capitania e o caminho das monções, partindo de Porto Feliz às minas de Cuiabá.
A vida na vila, bastante simples, bastante rural se caracterizava, como já foi dito no primeiro
artigo, por uma motivação social ligada à religião católica, aliás uma constante em toda a
colonização ibérica.
Notamos que, paralelamente à aparição dos primeiros engenhos de cana-de-açúcar
- o torna-viagem dos que conseguiram fazer fortuna nas minas - vão crescendo as formas
de organização sócio-religiosa na localidade. Em 1716 é fundada a Ordem Terceira de
Nossa Senhora do Carmo, já contando com uma capela construída por devotos.2 São dois
grupos de leigos organizados junto a comunidades religiosas, pois a Ordem Terceira de São
Francisco já existia desde final do século XVII. Além dela, funcionava na mesma igreja de
São Luís de Tolosa, desde 1710, a Irmandade de São Benedito3. Fazendo um balanço,
temos então dois conventos, com suas Irmandades próprias, a igreja do Bom Jesus,
também com confraria de seu orago e na Igreja Matriz três outros grupos (Nossa Senhora
do Rosário, Nossa Senhora do Pilar e São Miguel das Almas). A relevância dessa
organização para nossa análise está no fato de que são elas – Irmandades, Confrarias e
Ordens Terceiras – que promovem festividades próprias de suas devoções e, portanto, que
contratam músicos para sua realização.
O período que delimitamos para análise neste artigo (primeira metade do século
XVIII) ainda não nos oferece informações a respeito de repertório: nem de execução e muito
menos de produção, ou seja, não é possível sabermos se havia compositores na vila ituana.
Em 1719 é definitivamente construído o germe do Convento do Carmo, mesmo sem
autorização de el-rei de Portugal para grande descontentamento dos franciscanos, pois em
alguns anos virá a ampliação da capela do Carmo concorrendo com os seráficos.
O primeiro Mestre-de-Capela que a documentação nos mostra, no século XVIII, é
Bartolomeu de Quadros, filho de pai homônimo, natural de Santana de Parnaíba e de Ana
Corrêa, de Itu. Bartolomeu era bastante ligado à localidade, pois seu tio, padre Bernardo de
Quadros, fora o primeiro vigário encomendado da vila.
O pesquisador Prof. Regis Duprat encontrou, no inventário de Lucrécia Leme, um
recibo passado por Bartolomeu em 22 de dezembro de 1706, no valor de oito mil réis pelo
acompanhamento e ofício de suas exéquias.4
Bartolomeu de Quadros faleceu em 1729 e deixou testamento pedindo para que
fosse sepultado na capela dos franciscanos. Certamente até dez anos antes, 1719, atuava
como músico, pois outro recibo, com data de 28 de maio desse ano mostra sua atividade
recebendo três patacas por um memento, cantado no enterro do capitão Estevão Cardoso
Negreiros.5
O padre Miguel Dias Ferreira, coadjutor da paróquia de Itu, serviu também como
cantor e harpista em cerimônias de exéquias, como ainda nos descreve Duprat. Era natural
da vila de Piratininga (1693) e serviu como auxiliar do pároco por muitos anos. Com o
falecimento do Padre Felix Nabor de Camargo, titular da matriz de Itu, em 1730, assume a
direção da paróquia.6
1
2
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Este artigo é o segundo de uma série sobre a produção e reprodução de música sacra em Itu em quatro séculos de história.
É uma reflexão acerca do ambiente musical ituano na primeira metade do século XVIII.
NARDY FILHO, Francisco. Op. cit., 1951, p. 25.
Idem, p. 24.
DUPRAT, Regis. Op. cit., 1985, p. 53. O autor se valeu de pesquisas realizadas no Arquivo do Estado de São Paulo
(DAESP).
Idem, p. 54.
NARDY FILHO, Francisco. Op. cit., 1950, p. 22.
1
Em 1722 a paróquia de Nossa Senhora da Candelária é elevada à categoria de
Câmara Eclesiástica, uma condição de responsabilidade pela organização regional dos
negócios da Igreja. Surge então o cargo de Vigário da Vara, que será ocupado pelo padre
músico Miguel Ferreira até sua morte, em 1750. Mas a distinção da paróquia e o elevado
número de habitantes em Itu, oitocentos casais em 1726, não significam riqueza local. Em 9
de novembro de 1732 a Câmara da Vila oficia a el-rei de Portugal pedindo isenção da
contribuição obrigatória para o casamento real, dada a pobreza local, a quantidade de
homens que têm que vender suas ferramentas e as mulheres, suas próprias roupas, para
poder contribuir como é mandado.7 Não serão tantos os serviços e portanto escassas as
atividades. A vila é privilegiada do ponto de vista político, mas economicamente ainda é
despretenciosa.
O Padre Miguel Ferreira, segundo pesquisa do Prof. Marcos Júlio Sergl, não
exerceu cargo de mestre-de-capela, pois Bartolomeu de Quadros foi substituído por Antônio
Corrêa Meireles. A única informação a seu respeito vem de um recibo de 2 de novembro de
1725, inserido no inventário de Antônio Antunes Maciel, quando canta e toca harpa em um
memento, ganhando por esse serviço seis patacas, e mais quatro patacas por cantar
também na missa de corpo presente.8
A partir de 1740 os franciscanos abrem, em seu convento, uma escola de gramática,
ler, escrever e contar9, o que faz da vila de Itu um ambiente mais propício ao florescimento
das artes.
Com a substituição do pároco da Candelária pelo Padre João de Mattos Monteiro,
entre 1749-1755, desenvolve-se uma interessante querela que serve para nos revelar o
contexto das relações político-sociais que envolviam o músico no período colonial.
Deu-se que Francisco Vaz Teixeira foi nomeado Mestre-de-Capela pelo bispo do
Rio de Janeiro conforme disposições de época: as provisões de mestre-de-capela eram
emitidas cada ano pelo bispo do Rio de Janeiro, à cuja jurisdição pertenceu a matriz de São
Paulo [bem como a paróquia de Itu] até a criação do bispado desta cidade. Provisões
renováveis sob requerimento do interessado e anuláveis conforme conveniência e
determinação do Bispado.10
Ora, criada a Diocese de São Paulo, em 1745, o seu primeiro bispo, D. Bernardo
Rodrigues Nogueira, português, deliberou promover entre os mestres-de-capela o “estanco
da música” ou seja o monopólio da manutenção e execução do serviço musical religioso
das igrejas matrizes, nas mãos de um único músico, nomeado por ele. Este músico ficava
obrigado a uma contribuição à diocese, como forma de reconhecimento dessa distinção.
Como nos mostra o Prof. Duprat, na linguagem do tempo: ‘estancar’ a música, [era]
única forma econômico-social de sobreviver profissionalmente e apresentar um bom serviço
de música na matriz; dispositivo não constante de provisão porque ilegal: não obstante,
praticada. Envolve-a – a prática – em manto protetor, a necessidade indiscutível, legalíssima
de salvaguardar o templo da penetração estética profana.11
O bispo, por seu zelo pastoral em não permitir abuso acerca do repertório da
música sacra ou, ainda, criar vínculo maior com a produção da música e com a pessoa do
mestre-de-capela, lança determinação acatada pelo vigário ituano e praticada por Francisco
Vaz Teixeira com bastante interesse.
Contestando tal dispositivo a Câmara da Vila de Itu oficia a el-rei de Portugal, D.
José I, pressionada por outros músicos da localidade, que se viam prejudicados, pois,
certamente a quantidade de atividades na igreja matriz era maior e mais interessante, do
ponto de vista da remuneração, que as capelas e conventos. O requerimento diz, entre
outras coisas, que os outros músicos locais ...deixarão de assinar esta arte, sendo proibidos
7
Idem, 1951, p. 36.
SERGL, Marcos Júlio. Op. cit., p. 47. O autor cita como fonte o Arquivo do Estado de São Paulo - DAESP 30, v. 26, p. 435/6).
NARDY FILHO, Francisco. Op. cit., 1951, p. 43. Há estudos dos franciscanos afirmando que desde 1733 já existiam tais
aulas. Veja RÖWER, Frei Basílio. Op. cit, p. 412.
10
DUPRAT, Regis. Op. cit., 1995, p. 30.
11
IDEM, p. 31.
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2
pelo Ecleziastico uzar dela e os festeiros obrigados por força a levar a Muzica do tal Mestre
da Capela, q alem de não ser capaz a do prezente se paga como quer...12
Então a Câmara considera que Francisco Vaz Teixeira não está qualificado para a
atividade de Mestre-de-Capela, talvez por não saber ensinar, talvez por não ser bom
compositor ou ainda um intérprete medíocre. E mesmo assim, pelo monopólio, cobra o
quanto quer das Irmandades!
Vemos aí a existência de um número interessante de músicos em Itu, mesmo que
não saibamos quantos, pois há disputa por um cargo de relevância no contexto social da vila.
El-rei, através do Conselho Ultramarino, pede ao governador da Capitania do Rio
de Janeiro um parecer do bispo paulista. Responde a solicitação o próprio bispo de São
Paulo, afirmando que o pedido dos músicos ituanos era, na verdade, intriga do juiz de fora,
pouco afeto ao bispo do Rio de Janeiro, anterior a ele, que nomeara o mestre. A
documentação selecionada e citada por Duprat, nos revela a preocupação institucional da
Igreja por manter a formação de músicos para o serviço religioso, a fim de criar novas
gerações de compositores e intérpretes. O papel da música sacra é relevante, interativo, no
contexto das práticas culturais e revelador da expressividade dela – música – na vida
paulista de então. É uma expressão social fundamental.
O caso se estende por vários anos. Em 1752, já falecido o bispo D. Bernardo, que o
nomeara, Francisco Vaz Teixeira responde ao procurador do Bispado nestes termos: ...
nuncha prohyby cantar nem levar menos menos (sic), nem mais do ajustado que ajustava
(sic) com os ajuizes das festividades...13 Um parecer do Procurador da Fazenda, de Lisboa
dando justiça aos músicos ituanos, afirmou que o bispo não podia dar preferência a
qualquer músico em detrimento de outros. Deu-se assim por concluída a questão.
Não há dúvida, portanto, que o ambiente musical de Itu é próspero e seus artífices
são parcela valorizada da sociedade, seja pelo aspecto cultural extremamente relevante
para a Igreja, pois o canto faz parte da liturgia, como pelo denominador social, pois a
formação de novas gerações de músicos, figuras de destaque no ambiente, sugere a
continuidade e manutenção de um serviço de interesse para a comunidade. Como ser
comunidade sem festa religiosa? Como fazer festa religiosa sem música sacra?
Um músico que pode ter motivado o requerimento da Câmara a el-rei, no caso do
estanco da música, é Inácio Pinto Rodrigues. Duprat encontrou recibo de seu serviço em
1727 no enterro de Catarina Pinheiro.14 Mais nada sabemos dele.
Outro, Manoel Pinto Rodrigues, nascido em 1724, em São Paulo, exerceu função
de advogado e músico em Itu. Duprat e Sergl consideram ambos – Inácio e Manoel Mestres-de-Capela, porém não citam documentos em que os músicos assinam como tais.
Um filho de Manoel, Inácio Pinto Rodrigues II (não há fontes suficientes para
determinar se existe parentesco deste e seu pai com o homônimo Inácio, de 1727) será
Mestre-de-Capela, comprovado por testemunho de João José Garcia, no processo de
Genere et Moribus do Padre Jerônimo Pinto Rodrigues, seu filho.15 Inácio viveu em Itu e em
São Paulo. Casou-se lá com Maria Gertrudes da Anunciação Borges em 1787. Segundo
pesquisa do Prof. Sergl teve pelo menos quatro filhos músicos, Jerônimo, Vítor Antônio,
Joaquim e João Dias.16
No campo das suposições, sem qualquer documento que possa realmente
comprovar, podemos sugerir que Inácio Pinto Rodrigues, estando em São Paulo, teve
contato com o Mestre-de-Capela André da Silva Gomes. É bastante possível que tenha
sofrido influência do ambiente paulistano e tê-la trazido para sua terra.
Desde 1773 dominava a música na vila de São Paulo o compositor lisboeta André
da Silva Gomes, nascido em 1752. Veio para cá com o terceiro bispo desta diocese.
Segundo Duprat, Gomes representa um florescimento musical para a vila paulistana.
12
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16
Idem, 1985, p. 57. O documento citado foi extraído do Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa.
Ibidem, p. 58.
Ibidem, p. 58.
Ibidem, p. 59.
SERGL, Marcos Júlio. Op. cit., p. 50.
3
Sua educação musical é praticamente desconhecida, porém os compositores
lisboetas de então, como João de Souza Carvalho (1745-1798) são bastante influenciados
por compositores italianos, como Pergolesi, Cimarosa e Piccinni.17 Daí, certamente, vêm
suas influências.
André da Silva Gomes passa a compor em São Paulo em 1774 acentuando-se a
qualidade e a quantidade de composições no limiar do século XIX e dele conhecemos
dezenas de obras, preservadas no Arquivo da Cúria Metropolitana de S. Paulo e no Arquivo
Carlos Gomes, de Campinas. Não resta dúvida que sua obra se aproxima dos compositores
portugueses.
Estilisticamente busca uma conformidade entre o Barroco, ainda praticado em
Portugal (seu característico solo cantado, acompanhado de contínuo e os coros
homofônicos) e a economia de ornamentos e contrastes própria do Clássico. Talvez possa
ser considerado pré-Clássico.
A quantidade de instrumentos, característica ibérica, será adaptada à realidade
paulista. Violinos, flautas, clarinetes, trompas e baixo contínuo, órgão ou harpa certamente
eram utilizados por Gomes.
Estando, a partir de 1787 em São Paulo, ou mesmo antes disso, não poderia ter,
Inácio Pinto Rodrigues II convivido com Silva Gomes? Tendo envolvimento com ele, não
poderia ter adquirido um aprendizado mais interessante, do ponto de vista do conhecimento,
da harmonia, do contraponto e, enfim, da arte de compor? São idéias.
Inácio certamente atuou como Mestre-de-Capela até início do século XIX. Há
registro de recibos de serviço fúnebre entre 1806-1815, quando atuou cantando e tocando.
Voltando ao campo das suposições, podemos imaginar que o repertório utilizado
por André da Silva Gomes possa ter sido reproduzido em Itu. Talvez, possa ser também um
modelo de produção, uma imagem para os possíveis compositores locais.
Então, haveria uma comunicação entre Itu e São Paulo, como haverá nos anos de
1810, entre São Paulo, Campinas e Itu? Ainda não temos documentos suficientes para tais
afirmativas, mas é bastante possível.
Existe um florescimento considerável da vida urbana em Itu, a partir de 1770. É
resultado dos engenhos de cana-de-açúcar que crescem a olhos vistos na região. Dezenas
de fábricas de melaço vão promovendo uma reorganização da vila. O crescimento é
tamanho que, por questões de organização, a Câmara divide o espaço urbano em duas
partes, a vila de cima e a vila de baixo, tendo como referência o beco do inferno, hoje
chamado becão.
Na vila de baixo, a igreja do Bom Jesus passa por ampla reforma, quase uma
reconstrução, promovida pelo latifundiário Padre Manoel da Costa Aranha. Inaugurada em
1765. No ano seguinte é fundada outra irmandade, a da Senhora da Boa Morte, funcionando
na igreja do Carmo.
Em 1773 a vila ituana tem cerca de dez mil habitantes, praticamente o dobro de dez
anos antes. A grande quantidade de escravos denota um enriquecimento que será logo
transferido para o campo das artes. Nos anos de 1780 a presença do santista Jesuíno
Francisco de Paula Gusmão em Itu irá transformar o ambiente musical.
Referência Bibliográfica
CAMARGO. Paulo Florêncio da Silveira. A instalação do Bispado de São Paulo e seu
primeiro Bispo. São Paulo: 1945.
DUPRAT, Régis. Garimpo Musical. São Paulo: Ed. Novas Metas, 1985.
___________. Música na Sé de São Paulo Colonial. São Paulo: Ed. Paulus, 1995.
MARIZ, Vasco. História da música no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981.
17
DUPRAT, Regis. Op. cit., 1995, p. 62.
4
NARDY FILHO, Francisco. A Cidade de Itu - Cronicas Históricas. São Paulo : Esc.
Profissionalizantes Salezianas, 1950, vol. 3.
___________. A Cidade de Itu - Cronologia Ituana. São Paulo : Escolas Profissionalizantes
Salezianas, 1951.
___________, Francisco. A cidade de Itu. Itu: Ed. Ottoni, 2000, vol. 5
PRIORE, Mary Del. Religião e religiosidade no Brasil colonial. São Paulo: Ed. Ática, 1995.
REZENDE, Carlos Penteado de. Cronologia Musical de São Paulo (1800-1870). Revista do
Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, 1954, separata.
RÖWER, Frei Basílio. Páginas da História Franciscana no Brasil. Petrópolis: Ed. Vozes,
1957.
SERGL, Marcos Júlio. Ópera e música sacra em Itu. Tese de Doutoramento, São Paulo :
Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, 1999.
VASCONCELLOS-CORRÊA, Sérgio. Música Colonial Brasileira. Barroco (?) Brasileiro In:
TIRAPELI, Percival (org.). Arte Sacra Colonial. São Paulo: Imprensa Oficial/Ed. Unesp, 2002.
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