1 O ESPAÇO URBANO NA LITERATURA José Luiz M. Menezes HISTÓRIA URBANA E LITERATURA Na elaboração da História de uma cidade, dos seus espaços urbanos, umas das fontes mais importantes são as descrições literárias, que desse espaço da cidade faz um escritor, quando no seu texto existe interesse em situar sua narrativa em lugares reais, por construídos, e de seu conhecimento. O interesse nessa reconstituição ainda teria de considerar e avaliar a percepção pessoal que do lugar tem cada autor de texto. Na literatura tal espaço de vida pode ser considerado historicamente contemporâneo do autor e ele o descreve, na maioria dos casos, a partir de sua percepção pessoal ou, ainda, um espaço por ele criado e assim afastado de uma situação dele conhecida - um lugar por ele imaginado, mas que ainda poderia ter nele partes de seu ambiente de vida. Situação esta que exige do historiador toda uma compreensão do então criado em seus detalhes. Na narrativa histórica, considerada enquanto literatura, a preocupação com o espaço urbano descrito pelo narrador tem de ser mais cuidadosa, uma vez que essa descrição, sendo fator fundamental na criação da estória pode conduzir o leitor ao perigo de uma falsa verdade sobre pessoas e cenas, incertezas possíveis quando do uso da licença poética, que poderá conduzir a uma imagem de um lugar capaz de destruir um feito da história documentada. O entendimento dessa realidade recriada está diretamente ligado aos interesses do autor com relação a um espaço onde existem cenários e atores. A preocupação se encontra no feito de que a História constrói conjecturas baseadas em documentos, também factíveis de fugir ao que ocorreu. Na literatura histórica coisa pior pode acontecer, quando aquela licença poética configurar espaço urbano ou da arquitetura capaz de conduzir a recriações possíveis de se tornar fontes confiáveis para a história urbana e da arquitetura.1 O importante no caso da 1 A ficção em determinados casos pode partir de um feito histórico, mas nesse caso ela é será sempre ficção e não História, uma vez que foge ao desejado pelo historiador, ou seja, a busca da verdade dos acontecimentos, malgrado toda a subjetividade dessa procura. É um espaço que tem de ser tratado pelo historiador urbano com muito cuidado, uma vez que o autor das descrições que possam existir no texto se valeu de uma percepção sua da cidade onde se deram os feitos e não dela enquanto objeto da história urbana. 2 literatura histórica é que ela, ao se situar em um espaço que existiu, tenha o autor conhecimentos de suas transformações e realidades. A descrição de um espaço, do urbano ou da arquitetura, construída pelo autor de um texto, com as ressalvas feitas, seria então para o historiador do urbano e da arquitetura uma das fontes a qual se alia outra, representada pela cartografia histórica. Forma esta de representação que, por científica, seria mais precisa, apesar de nem sempre tal exatidão ter sido observada quando da elaboração dos mapas. A essa segunda fonte se somam imagens produzidas por qualquer meio, seja o desenho, a pintura desde o natural ou a fotografia. Tal caminho tem dupla entrada, quer para o historiador ou o escritor, que deseje criar os lugares de suas cenas. Os tempos históricos, com as diversas intervenções do homem, alteram o espaço urbano e assim a história da ocupação e da produção urbanas. As descrições, as representações em imagens e outras fontes que concorrem para a reconstituição do urbano e o interesse de uma melhor análise condiciona ser os tempos cronologicamente semelhantes, senão iguais, para que o resultado possa ter a necessária validade. Tempos diferentes levam a uma visão descritiva descontínua e não a um melhor conhecimento da maneira como evoluiu o lugar. OLINDA E O RECIFE – LITERATURA E CIDADES Partindo de lugares conhecidos e bem documentados, a cidade de Olinda e a do Recife, teceremos considerações acerca de suas descrições literárias mais conhecidas, em confronto com a História urbana e, ainda, as imagens conhecidas delas. Olinda e o Recife são referidos em quatro narrativas mais antigas: uma primeira foi escrita por um colono residente no Brasil, Gabriel Soares de Souza, em 1587; a segunda encontra-se na História do Brasil de Frei Vicente do Salvador; a terceira podemos ler em um manuscrito que tem por título Diálogos das Grandezas do Brasil; finalmente, a última é um registro da tomada de Olinda e do Recife e seu o autor era um religioso que veio na armada da Companhia das Índias Ocidentais que, em 1630, conquistou Pernambuco. A primeira narrativa, modelo para outras de origem lusitana posteriores e as completam, tem início com a descrição do “Tamanho da Vila de Olinda e da grandeza de seu termo e quem foi o primeiro povoador dela”. Na forma de costume a descrição refere-se primeiro à chegada do donatário a Pernambuco, seguida da descrição da doação do lugar; finalmente vem a referência ao donatário e às lutas para o estabelecimento de vilas e povoações em lugares onde viviam índios hostis. 2 Na descrição do porto a explicação do nome Pernambuco é 2 “pediu a S.A. que lhe fizesse mercê de uma capitania nesta costa, que logo lhe concedeu, abalizando-a da boca do rio de S. Francisco da banda do noroeste e correndo dela pela costa cinqüenta léguas contra Itamaracá que se acabam no rio de Igaraçú, como já fica dito; e como a este valoroso capitão sobrava sempre espíritos para cometer grandes feitos, não lhe faltaram para vir em pessoa povoar e conquistar esta sua capitania, aonde veio com uma frota de navios que armou à sua custa, em a qual trouxe sua mulher e filhos e muitos parentes de ambos; e outros moradores, com a qual tomou este porto que se diz de Pernambuco por uma pedra que junto dele está furada no mar, que quer dizer pela língua do 3 depois empregada por outros autores depois de Gabriel. No texto, o autor diz o que sabia a respeito da escolha do sitio e sobre os primeiros assentamentos: “Chegando Duarte Coelho a este porto desembarcou nele e fortificou-se, onde agora está a vila, em um alto livre de padrastos, da melhor maneira que foi possível, onde fez uma torre de pedra e cal, que ainda agora (c. 1585) está na praça da vila, onde muitos anos tiveram grandes trabalhos de guerra com os gentios e franceses...” A presença da torre, de pedra e cal, tem um significado dos mais importantes na organização e disposição, em desenho urbano, da vila criada e suas edificações mais importantes. Sendo o centro de interesse, a torre era um lugar símbolo do poder, materializando uma forma de apropriação do espaço fiel a uma visão das relações entre senhorio e povoadores, significado trazido pelo donatário ainda da Idade Média. Ao longo da cumeada seguia, na direção do poente, o casario, tudo protegido por provável paliçada dos índios e garantido por tal torre de Menagem. Sobre a Vila assim escreve o autor do Roteiro Geral (Notícias do Brasil): “Esta vila de Olinda terá setecentos vizinhos pouco mais ou menos, mas têm muitos mais no seu termo, porque em cada um destes engenhos vivem vinte e trinta vizinhos, fora os que vivem nas roças, afastados deles que é muita gente de maneira que, quando for necessário ajuntar-se esta gente com armas, por-se-ão em campo mais de três mil homens de peleja com os moradores da vila de Cosmos, entre os quais haverá quatrocentos homens de cavalo”. A vila, na altura em que escreve Soares de Souza possuía cerca de 140 habitações, considerando uma média de cinco pessoas por casa. O mais interessante é a informação sobre a relação cidade x campo o que dá ao lugar bem mais gente 3 quando necessário se armar. Por outro lado, a descrição deixa entender haver uma ligação entre a vila e as plantações à volta, além daquela com o porto. A representação em desenho, aquarelado da Vila de Olinda e do porto e povoação do Recife, que pode dar apoio à narrativa, encontra-se, em linhas gerais, sem detalhamento de ruas e sim um mero esboço delas, no mapa manuscrito do Roteiro de Todos os Sinais, 4 datado de entre 1585-1590. O Roteiro é do cartógrafo Luís Teixeira. No desenho alusivo a Pernambuco, mostrando Olinda e o Recife, a entrada da barra está bem identificada, inclusive o acesso ao ancoradouro interno e deste até o Varadouro, porto fluvial de Olinda. Pelo que se percebe a organização urbana do lugar, compreendendo a perfeita solução à luz da época para os lugares da administração, plantação e porto deixa entrever um raciocínio fiel ao mercantilismo nascente e de uma logística invejável. 5 gentio, mar furado”. A narrativa segue um padrão no qual o autor trata do assunto seguindo uma narrativa racional em que o fator histórico, reunindo notícias colhidas ou vividas, se encontra, às vezes, associado a princípios religiosos quando não milagres. (NA) 3 Os primeiros engenhos empregavam muita gente quer homens da fábrica ou negros escravizados para o plantio e cozimento do mel que produzia o açúcar. 4 , TEIXEIRA, Luís. Roteiro de Todos os Sinais, conhecimentos, fundos, baixos, alturas e derrotas que há na Costa do Brasil, desde o Cabo de Santo Agostinho até o estreito de Fernão Magalhães ( Ca. 15851590) Biblioteca Nacional de Portugal, Lisboa. 5 A parte mais antiga da vila situava-se a uma altura de cerca de 50 metros acima do nível do mar. Dessa parte elevada se descia duas principais ladeiras a que passava à frente do convento dos franciscanos e 4 O segundo texto que encontra-se no Capítulo Oitavo da História do Brasil, de Frei Vicente do Salvador, (c. 1618) que ao tratar do porto da Capitania de Pernambuco assim o descreve o frade: “E também se poderá assim chamar em respeito ao porto principal desta capitania que é o mais nomeado e freqüentado do Brasil, ao qual se entra pela boca de um recife de pedra tão estreito que não cabe mais de uma nau enfiada após outra e, entrando na barra ou recife para dentro, fica logo ali um poço ou surgidouro, aonde vem acabar de carregar as naus grandes, e nadam as pequenas carregadas de cem toneladas ou pouco mais, para o que está ali uma povoação de duzentos visinhos com uma freguesia do Corpo Santo, de quem são os mareantes mui devotos, e muitas vendas e tabernas e os paços de açúcar, que são umas lojas grandes onde se recolhem os caixões até se embarcarem os navios”. A descrição é de quem conhecia bem o lugar, inclusive com detalhamento da entrada da barra e das dificuldades de acesso, tudo em detrimento da descrição da povoação não desprezível por conter, já no principio do século XVII, cerca de duzentos visinhos ou, em media, quarenta habitações além dos armazéns. Tal povoação está representada em uma bela e acreditamos imagem de cerca de 1630, que ilustra o livro de Joanes de Laet, (1581-1649) sobre a Companhia das Índias Ocidentais. 6 Também os referidos armazéns podem-se ver em duas representações da tomada de Olinda e do Recife que ilustra versões do Relatório do Almirante Lonck (1630). Nas gravuras da tomada se percebe os armazéns ainda em pleno incêndio. 7 Sobre o desenho urbano das ruas e praças, além da fortificação que envolvia em defesa a povoação em 1629, um mapa de Albernaz I (1631) 8 nos informa com relativa precisão. Frei Vicente pouco refere-se a Olinda. Informa mais sobre o acesso que a ela se dava desde o Recife. 9 Para o cronista, talvez, a vila de Olinda era de conhecimento de muitos e sua descrição nada acrescentaria de novo ao seu texto. No terceiro texto, em forma de diálogo o escritor fala sobre o Brasil e suas várias interfaces. Tem por atores Alviano e Brandônio. O modelo seguido pelo autor 10 é o da conversação e dela chegava ao Rocio e à praia e a outra que ficava ao pé da igreja da Misericórdia e seguia para a igreja de São Pedro e daí para o Varadouro. Um anel que tinha um sentido de racionalidade de grande interesse. 6 LAET, Johannes. de. Iaerlijcke Verhael van de Verrichtingen der Geoctroyeerd West-Indische Compagnie. Ed S.P. Naber The Hague, 1934. Além dessa edição holandesa, existe uma edição em português. 7 A representação foi tomada “do natural”, isto é o desenhista se colocou nos arrecifes ou a bordo de um navio e daí tomou o instantâneo da tomada para o Relatório enviado e depois gravado para conhecimento da gente da WIC e outros. 8 Albernaz I. ... 1631 9 Esta povoação, que se chama do Recife, está em oito graus, uma légua da Vila de Olinda, cabeça desta capitania, aonde se vai por mar e por terra, porque é uma ponta de areia como ponte, que o mar da costa que entra pala dita barra cinge ao Leste, e voltando pela outra parte faz um rio estreito que a cinge ao Loeste, pelo qual rio navegam com a maré muitos batéis e as barcas que levam as fazendas ao varadouro da vila, onde está a alfândega. 10 Acreditado pela maioria dos historiadores como Ambrósio Fernandes Brandão. 5 surgem informações, que levam o leitor a perceber as grandezas do Brasil. O cenário onde ocorre tal diálogo seria Pernambuco. A descrição de Olinda é bem de acordo com a intimidade do escritor com o lugar. Fala e escreve sobre a vila como quem estava habituado a percorrer suas ruas e não da maneira um tanto vaga de outras descrições conhecidas: “Está esta vila situada em uma enseada, da qual saem duas pontas ao mar; de uma delas se forma o cabo tão conhecido no mundo, por de Santo Agostinho, e a outra se chama a Ponta de Jesus, por nela estar situado um formoso templo dos Padres da Companhia, chamado do mesmo nome. Dentro na Vila de Olinda habitam inumeráveis mercadores com suas lojas abertas, colmadas de mercadorias de muito preço, de toda a sorte, em tanta quantidade que assemelha uma Lisboa pequena. A barra do seu porto é excelentíssima, guardada de duas fortalezas bem providas de artilharia e soldados, que as defendem; os navios estão surtos da banda de dentro, seguríssimos de qualquer tempo que se levante, posto que muito furioso, porque tem para sua defensão grandíssimos arrecifes, aonde o mar quebra. Sempre se acham nele ancorados, em qualquer tempo do ano, mais de trinta navios, porque lança de si, em cada um ano, passante de cento e vinte carregados de açúcares, pau do Brasil e algodões. A vila é assaz grande, povoada de muitos e bons edifícios e famosos templos, porque nela há o dos Padres da Companhia de Jesus - o dos padres de São Francisco da Ordem Capucha de Santo Antônio, o mosteiro dos Carmelitas e o mosteiro de São Bento, com religiosos da mesma ordem; em todos esses mosteiros assistem padres de muita doutrina, letras e virtudes. De pouco tempo a esta parte a dividiu Sua Santidade, com as mais Capitanias de Itamaracá, Paraíba e Rio Grande, do Bispado da Bahia de Todos os Santos, criando nelas novamente por Administrador, Antônio Teixeira Cabral, melado mui consumado nas letras e virtudes, com título de Administrador da Paraíba. Acha-se mais na vila um recolhimento para mulheres nobres, com nome de mosteiro de freiras, posto que até o presente vivam sem regra”. Ao se confrontar tal descrição com o mapa da vila contido na obra de Gaspar Barléus, (1647) 11 pode-se verificar a exatidão do descrito e aquela relação de contigüidade do autor com o assentamento urbano, inclusive a maneira de seguir de um lugar ao outro. A ordem de citação das casas religiosas, desde a dos jesuítas até a dos carmelitas, tem o sentido natural de descida da ladeira do alto da Matriz até o Rocio. Também é precisa a correspondência entre a paisagem urbana em relação ao litoral e a cartografia coeva. Brandônio não tem o menor apreço pelo povoado do Recife e dele pouco refere enquanto objeto de grandeza. O último texto pertence ao Reverendo João Baers. Não tem a forma literária que pode-se perceber no autor dos Diálogos. A intenção do pastor é a de descrever (Relato) para uma empresa mercantil sobre o encontrado nos dois assentamentos urbanos. Tal circunstância está clara na descrição. O texto descreve a realidade vista pelo autor, onde a emoção tem pouco lugar no escrito. Ao tratar da beleza dos interiores não tece maiores considerações do que a de uma mera referência. A realidade descrita pelo pastor tem um formato bem de um relatório de conquista, com os louvores habituais nas entrelinhas 12. Não é uma descrição de quem é do 11 12 BARLÉUS, Casper, ... Rerum per octenium ...Amsterdam, 1647. “Como se estivesse resolvido a tomar a praça forte ou morrer com honra em frente dela, após o desembarque mandou afastar da praia as chalupas e botes, seguindo assim o exemplo do Principe 6 lugar, mas ver o local com o cuidado e a minúcia requerida pelo momento vivido e sua história. A descrição da tomada de Olinda desce a minúcias com relação às lutas. 13 Há uma preocupação com a verdade da narrativa, uma vez que ela tem que ser fiel à própria verdade defendida pela religião professada pelo autor. Existe, inclusive, certo tom de pregação e moral em partes do texto. A descrição da Vila de Olinda é um dos documentos mais interessantes pelo que de cuidado e respeito se percebe no escrito: “está situada em forma de angulo no dorso de um alto monte, do qual uma extremidade é mais elevada do que a outra. No extremo mais alto do monte achase o Convento dos Jesuítas, sendo o extremo norte do lugar formado pelas encostas do mesmo monte; para o lado sul encontra-se o Convento dos Franciscanos, que tem um bonito pátio com uma bela fonte onde o povo vai buscar água para beber”. O cuidado com a descrição, quase fotográfica, deixa também lugar ao autor para a informação sobre a fonte, ainda existente hoje, onde a gente buscava água para beber. 14 Depois escreve Baers: “Descendo o monte, a partir do Convento ( Colégio) dos Jesuítas, deparase novamente com uma eminência sobre a qual se eleva a principal igreja paroquial do lugar, chamada Salvador, a Casa da Câmara, debaixo da qual se acha o açougue, e à direita acima dela a prisão, e uma grande parte da cidade, sendo a eminência em cima plana e igual: também ali existe uma bela e larga rua ultimamente chamada Rua Nova, que foi a primeira rua da cidade. 15 Porem, no extremo meridional, onde está situado o hospital chamado Misericórdia, desce o monte com tão áspero declive, que quase não se pode subi-lo sem grande esforço e trabalho nem descê-lo sem perigo de cair-se, apesar de ver-se diante de si. Chegandose em baixo no vale onde se acha uma encruzilhada na qual os mercadores se reúnem e costumam constituir a bolsa, sobe-se logo de novo outra eminência, mas, não empinada nem tão alta, e ali se encontra a outra igreja paroquial chamada igreja de S. Pedro, e ali em volta acham-se muitas belas casas e muitos armazéns, porque este é o extremo da praça, aonde o Maurício, de muito ilustre memória, que, na batalha de Flandres, fez retirar de terra todos os navios e chalupas, dizendo à sua gente que devia combater ou afogar-se no mar”. 13 E à tarde ficamos senhores dos dois fortes e do porto. No dia seguinte foi julgado conveniente e enviou-se ordem ao Tenente Coronel Sr. Van Steyn Callenfels que fizesse uma expedição à ilha de Santo Antônio ou Antônio Vaz, situada em frente à aldeia do Recife, onde entre outros edifícios havia um convento e alguns armazéns, a qual executou seguindo com alguma gente em chalupas e botes”. 14 A estampa Marin d”Olinda é o melhor documento para se confrontar a descrição do reverendo com a a cidade que os holandeses encontraram. A gravura é de um anônimo artista certamente bem conhecedor do lugar e tem seu tempo determinada como de antes de 1631, quando a vila foi incendiada. 15 A descrição tem por início o Colégio dos Jesuítas onde possivelmente estava abrigado o reverendo em 1630. O sentido leste - Oeste indica o caminho percorrido pelo autor do texto e sobre o qual fez as anotações. 7 rio vindo do Recife (do qual ainda falaremos) chega e corre pela parte ocidental. 16As casas não são baldas de conforto, mas, cômodas e bem feitas, arejadas por grandes janelas, que estão ao nível do sótão ou celeiro, mas sem vidros, com belas e cômodas subidas, todas com largas escadarias de pedra, por que as pessoas de qualidade moram todas no alto. Os umbrais de todas as portas e janelas são de pedra dura e pesada. A cidade tem como já disse duas igrejas paroquiais, pois, enquanto que a principal é chamada Salvador, a outra tem o nome de S. Pedro; e possui cinco conventos: dos Jesuítas, dos Franciscanos, dos Carmelitas, dos Beneditinos, e o Convento das Freiras. A todos excede o Convento. dos Jesuítas, que é muito grande e de bela construção, em forma de quadrado, e tem no centro um pátio; é alto de dois andares com galerias duplas ao longo dos mesmos, dos quais se entra em todos os quartos situados ao redor, em número aproximadamente de quarenta. Existem ainda alguns conventos e igrejas junto a Olinda, como que nos arrabaldes; há ali uma igreja denominada N. S. do Amparo; outra chamada S. João; ainda outra de nome N. S. de Guadalupe e outro em cima do monte e por isso chamada N. S. do Monte. A igreja paroquial e as Igrejas dos conventos são ricamente ornadas com dourados e muitos altares, mas sem quadros preciosos nem outros”.17 O caminho percorrido pelo autor do texto segue direção contrária àquela dos Diálogos. Tratase de uma forma de descrição que leva em consideração o sentido Leste-Oeste até atingir o porto fluvial do Varadouro e não o habitual de quem desce para o Rocio. Este inclusive é ignorado pelo autor do texto. A casa dos franciscanos e dos religiosos carmelitas encontram-se citadas em conjunto e não tendo por sentido o caminhar natural pelo lugar. Chamou a atenção do reverendo a ausência de vidros nas janelas e os umbrais de pedra das casas. Uma observação tem interesse e se encontra relacionada com o sobrado, onde no alto estariam as pessoas de importância. A ornamentação das igrejas é fato observado com muita atenção pelo autor. Uma preocupação do autor refere-se aos bens dos portugueses residentes. 18 Sobre o Recife o autor pouco escreve e assim nos informa: “Tratando agora do Recife diremos que é um arrecife, o que também significa na língua dos Portugueses, e é o nome do lugar; ao sul de Olinda estende-se um banco de areia; geralmente largo de trinta e seis a quarenta passos, e assaz alto, contra o qual bate o mar; seguindo-se uma hora grande ou mais de caminho pelo banco de areia acha-se uma aldeia, e a um tiro de canhão d'esta aldeia para o lado de Olinda está sobre o mesmo banco de areia um castelo ou forte, de cujo sitio e 16 O autor segue da igreja de São Pedro até o Varadouro, o porto fluvial, onde terminou a caminhada. Daí em diante detalhou no texto o visto em suas linhas principais. 17 18 Noutro momento ele toma conhecimento das demais igrejas de Olinda em outras caminhadas. Também foram achados poucos móveis, como cadeiras e bancos, caixões e arcas, e outras obras de madeira e objetos domésticos, pouca prata ou dinheiro amoedado, e outras alfaias preciosas ou jóias, apesar de presumirmos haver ali muitos que possuíam mais do que deviam descobrir-nos ou nos dizernos. Eles, ao que parece, fugiram com os seus tesouros, e a maior parte dos bens para as aldeias, montes e engenhos do interior do país, tendo sido prevenidos da nossa chegada com alguma antecedência. Achamos ali quinhentas pipas de vinho de Espanha, noventa caixas de açúcar, e também alguns barris e sacos com farinha de trigo e algum azeite. 8 conquista já falamos. 19 Em frente deste castelo, para o lado do sul que é o lado do mar, está também um banco igual, estendendo-se de Olinda para o sul também uma hora de caminho ou mais, porem, nem tão alto nem tão largo como o outro; no dorso d'este banco, bem defronte do castelo ou forte atrás mencionado, acha-se um outro castelo, que é uma torre octogonal; entre dois castelos, onde água tem a largura de um tiro de canhão; entram os navios e fundeiam em um bom cais com pouco fundo entre os dois bancos, e carregam e descarregam na aldeia situado no extremo de um dos bancos ,onde achavam-se muitos armazéns”. A descrição tem importância para a empresa, que podia deste modo avaliar o estado de defesa do porto e da aldeia quando da conquista. Os textos, analisados e confrontados com mapas e representações podem ser confiáveis, uma vez que a as comparações e análises consideraram a cronologia dos feitos e dos lugares. A história urbana de Olinda e do Recife tem considerado os textos citados e faz neles uma crítica interna, retirando deles o essencial para a construção da História desde tais memórias e relatos. O escritor, em seu romance, sendo ele baseado em espaço urbano antes existente, deve ter o cuidado com tal cronologia e com os documentos que consulte. O romance histórico, como se chama de um modo geral, tem que se fundamentar em espaço que existiu, embora possa nele conviver atores, que a licença poética queira reconstruir ou criar. O Historiador do urbano, diante do exposto, pode ter na literatura um suporte de grande importância, enquanto fonte de informação para o conhecimento do lugar onde vivia a gente.20 Mas a literatura fornece mais que a simples descrição. Nela encontra-se contida a alma do lugar. Alma no entendimento da essência espiritual da criação do lugar. Uma cidade é fruto da criação coletiva, sobre a qual os urbanistas tentam o controle e a organização, além das previsões as mais diversas sobre seu destino. Quem não conhece a situação de Brasília, cujo crescimento seria contido e hoje nada tem tão diverso de sua origem quanto a forma e o resultado da ação coletiva. Quando o poeta nos diz: Ó cidade noturna! Velha, triste, fantasma cidade! Desta humilde trapeira sem flores, sem poesia, Alongo a vista sobre as águas, Sobre os telhados. Luzes das pontes e dos cais Refletindo em colunas sobre o rio Dão a impressão de uma catedral imersa, 19 Em parte anterior da descrição o autor refere-se às lutas para conquistar o Recife, isto por conta do Forte de São Jorge. 20 De grande interesse são as Denunciações ao Santo Ofício, (1593). No caso os denunciados relatam situações vividas nas casas e as identificam no todo urbano. 9 Imensa, deslumbrante, encantada, Onde, ao esplendor das noites velhas, Quando a noite está dormindo, Quando as ruas estão desertas, Quando, lento, um luar transviado envolve o casario, As almas dos heróis antigos vão rezar. 21 .....Joaquim Cardoso Ele tem diante de si um espaço real que a sua poética reconstrói. Nesse texto de Cardoso e de outros poetas, há mais do que uma simples descrição de um lugar. Na poesia acima, existe contida nela a leitura poética da alma do Recife, que construído por muitos e em um tempo longo, plasmou o espírito de sua gente, um misto de lusitano, cuja terra transformou e de muitas e diversas etnias, numa mistura que na construção da cidade deixou fluir os resultados. Literatura, espaço urbano e da arquitetura estão intimamente interligados. Arquitetos, urbanistas e escritores são partes de uma mesma árvore: a da vida com suas estranhas e belas representações. José Luiz Mota Menezes – arquiteto 21 CARDOSO, Joaquim, Recife de Outubro, trecho da poesia, In Poesias Completas, Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira S.A. 1971, p 13