Rio Setecentista, quando o Rio virou capital
[Institucional]
No século XVIII, o Rio de Janeiro torna-se capital do vice-reino do Brasil e
efetivamente se transforma na grande cidade que conhecemos: área de encontro
entre cultura e comércio, polo de urbanidade e símbolo privilegiado de brasilidade
frente ao mundo. Com a exposição Rio Setecentista, quando o Rio virou capital, o
MAR comemora os 450 anos de fundação da cidade propondo um trajeto visual
para adentrar esse século de sua história.
Do Rio setecentista, do Rio do ouro, do barroco e rococó, dos escravos do
Valongo e do Paço dos Vice-reis restam sobrevivências. O que desse Rio foi
destruído, o que é herança ingrata? Certamente foi no século XVIII que o Rio
assegurou sua fama estética. A cidade maravilhosa une beleza natural a beleza
urbana, ideia recorrente em propagandas, propostas políticas ou mesmo críticas.
Também naquele momento, a população negra expandiu-se, ainda que sempre à
margem, e os índios, tão importantes na luta pela posse e fundação da cidade
junto aos portugueses, simplesmente desapareceram do registro do
desenvolvimento carioca.
O encontro da cidade com o poder público é um dos aspectos mais fortes de sua
história setecentista: capital por quase 200 anos, o Rio percebeu o envolvimento
do poder com o dinheiro, com a religião, com a cultura e com a exclusão social.
Deixamos de ter vice-reis ou eles apenas mudaram de nome? Mais de um século
após a abolição, estamos livres das sombras da escravidão? Essas são perguntas que
esta exposição não permite calar, questionando qualquer pretensão a uma ordem
natural das coisas. O Rio de Janeiro é um lugar privilegiado por natureza, mas é
também reflexo de sua complexa e contraditória história.
Carlos Antônio Gradim
Diretor-Presidente do Instituto Odeon
Museu de Arte do Rio - MAR
[Curatorial]
A cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro é marcada por sonhos e guerras desde
seu nascimento. Tornou-se entreposto colonial de importância e metrópole
religiosa já em fins do século XVII. A cidade segue, a partir do século XVIII, uma
nova ordem. A descoberta das minas de ouro no país, a expulsão dos jesuítas, a
transferência da capital de Salvador para o Rio de Janeiro, a execução de
Tiradentes são momentos fortes desse processo.
Os mitos de desvelamento do território têm fim diante de uma racionalidade cada
vez mais presente. Ao longo do século XVIII, as utopias e visões edênicas
associadas à Baía de Guanabara, que haviam estimulado a arte, a arquitetura e a
construção de cidades no Ocidente, são cada vez mais substituídas pela razão e pela
geometria dos homens. Pouco a pouco, a monumentalidade militar e religiosa do
século anterior dá lugar à expressão da sociedade civil em inúmeras realizações e
projetos de melhoramentos urbanos. A escravidão é seu pano de fundo.
Tempo de mutações: o Rio setecentista e sua baía viveram o fim de um tempo e o
início de outro, que trouxe consigo os esplendores sombrios dos interiores
barrocos e das linhas delicadas das fachadas rococós de suas igrejas. Tempo de
lenta transformação do Império Luso e de especulações e nascimentos de outros
impérios, em que recrudesce o sistema colonial e a centralização administrativa da
metrópole se faz sentir. Tratados entre Portugal e Espanha consolidam a quase
totalidade dos vastos limites do Brasil. Os gestos de ilustração são acompanhados
de delações, obscurantismo, devassas, medo.
Multiplica-se a população da cidade e cria-se novo perfil étnico e cultural.
Portugueses de Goa ou Macau introduzem novas tintas às cores locais e cruzam,
agora, com uma nova leva de colonos oriundos das diversas regiões da metrópole e
com todo tipo de “forasteiros”. Ao mesmo tempo, cresce exponencialmente o
comércio de escravos, vindos de todas as Áfricas. Contudo, o Rio de Janeiro que
compra, vende, delata e pune também educa seus filhos e se alinha às lutas por
liberdades.
Nomear um território
A fundação da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, em 1º de março de
1565, marcou uma inflexão que deve ser pensada para além de um gesto político
da Coroa portuguesa. Desenhou uma ordem econômica claramente mundial e
uma visão científica, estética e ética radicalmente novas.
A ação fundadora de Portugal ilustrou um momento cultural do Ocidente, agora
centrado na racionalidade e na conquista dos homens, mas também herdou uma
fascinante soma de saberes, dúvidas, perplexidades, desejos e sonhos acumulados
desde a Idade Média. A era das navegações e seus relatos identificou
geograficamente um Novo Mundo e amplificou as conquistas científicas e sociais.
__
Reconhecer paisagens desconhecidas com novos instrumentos, descrever e dar
nome a acidentes geográficos e sítios, observar estrelas e o ritmo das estações, ouvir
o canto de novos pássaros: é assim que o nome do Rio de Janeiro, antes mesmo da
criação da cidade, se associa ao nome de Américo Vespúcio. Ele foi o primeiro a
descrever a região de Cabo Frio e do Rio de Janeiro. A Baía de Guanabara é parte
da terra vista e descrita por Américo: é ela própria a primeira América. Ao longo
do século XVI, esse topônimo passou a designar o que seria a quarta parte do
mundo e o conjunto de terras que iam sendo descritas por viajantes de inúmeras
partes da Europa.
Os textos de Vespúcio tiveram um impacto maior do que se supõe em todo o
Ocidente e na própria cultura brasileira. Em 1507, os relatos de suas duas viagens
(1501-1502 e 1503-1504) às terras sem nome fixo que chamamos hoje de Brasil já
possuíam 23 edições em várias línguas. Eles reacenderam a busca do local onde
estaria situado o paraíso terrestre descrito na Bíblia. Também inspiraram os sonhos
de construção de sociedades fraternas, alimentados pela visão de um índio nômade
e desapegado dos bens materiais – o primeiro deles é o livro de Thomas More,
Utopia (1516).
Ver mais do quer ter
A partir das viagens de Vespúcio, a boca da baía do rio de Janeiro – nomeado de
modo vago na primeira expedição exploratória da costa, em 1502 – passou a ser
lentamente identificada. Por volta de 1511, apenas os poucos homens por ele aqui
deixados em 1504 chamavam a vasta baía como seus primitivos habitantes tupis:
Guaná-pará (seio do mar) em seu lado ocidental e Nhê-teróy (água escondida) em
seu lado oriental. Em 1519, a expedição de Fernão de Magalhães fez referência ao
rio de Janeiro, mas nomeou-o baía de Santa Luzia.
Em meados do século XVI, as terras do Rio encontravam-se abandonadas,
tornando-se alvo dos franceses, que vinham negociando pau-brasil com os índios
desde o início do século. O desembarque de Nicolau Durand de Villegaignon com
colonos católicos e protestantes na embocadura da baía em 1555 e a criação da
França Antártica materializaram interesses políticos e econômicos e o desejo de
construção de uma sociedade harmoniosa em meios aos conflitos religiosos da
época. O franciscano André Thevet (1557) e o calvinista Jean de Léry (1578)
descreveram o cotidiano da Guanabara nesses anos.
__
A conquista e fundação da cidade
Desde 1560, o governador-geral do Brasil, Mem de Sá, secundado por Estácio de
Sá, vinha guerreando sem sucesso com franceses e índios Tamoios, seus aliados.
Com a ajuda dos jesuítas e dos Temiminós chefiados por Arariboia, Estácio
lograria sua expulsão definitiva com o reforço de 11 navios trazidos de Salvador
por Mem de Sá, no início de 1567. Em 20 de janeiro – festa de São Sebastião –,
foi destruída a paliçada de defesa de Uruçu-Mirim, construída pelos Tamoios na
praia do Flamengo, livrando de ameaças a primitiva cidade instalada por Estácio
aos pés do Morro Cara de Cão, em 1565. A vitória da batalha seria portuguesa,
mas Estácio de Sá morreria ferido por uma flecha envenenada. A ocupação
francesa de 12 anos do Rio de Janeiro terminaria com a conquista de Paranapecu,
último reduto dos Tamoios.
Mem de Sá transferiu o primitivo núcleo para um morro no interior da baía e que
melhor a dominava, posteriormente chamado do Castelo, devido ao forte que ali se
construiu. Mandou cercar de muros a nova cidade, com muitos baluartes e fortes
de artilharia, e construir seus principais edifícios – a Sé, o Colégio dos Jesuítas, as
Casas de Câmara e Cadeia, e os Armazéns. Nomeou Salvador Corrêa de Sá (15691572) como novo governador, que deu posse ao alcaide-mor, proveu cargos de
administração e justiça, muitos pela interferência do jesuíta padre Manuel da
Nóbrega. A partir da distribuição de sesmarias, a cidade logo estenderia seus
domínios para além do morro, na várzea.
São Sebastião, cidade episcopal
O interesse dos franceses no Novo Mundo persistiria até o século XVIII, com
expedições de conquista, retaliações ou busca de informações comerciais. Em 1695,
o engenheiro francês François Froger deixou registros sobre a baía e a cidade, que
considerou “uma das mais seguras e agradáveis da América”. Seus relatos teriam
êxito na Europa, entusiasmada com a descoberta de minérios.
A “cidade episcopal” descrita por ele parecia imersa em um tempo religioso. Além
do núcleo inicial no Castelo, a cidade já ocupava a planície e ruas retas já
demarcavam um quadrilátero balizado pelos morros do Castelo, de São Bento, de
Santo Antônio e de Nossa Senhora da Conceição, coroados por conventos e igrejas.
Uma década depois, o Rio de Janeiro visto por Froger já não seria o mesmo,
quando passou a ser alvo das tensões na Europa, sobretudo devido ao volume
crescente de ouro que chegava a seu porto. As invasões francesas de Jean-François
Duclerc (1710) e de René Duguay Trouin (1711) foram os primeiros sintomas
dessa mudança de posição da cidade, que se abriu para um mundo cada vez mais
complexo e heterogêneo.
__
Bem antes de a Igreja Católica proclamar o dogma da Imaculada Conceição de
Maria, em 1854, os cristãos já acreditavam na pureza da mãe de Jesus que, por
gerar o filho de Deus, haveria sido concebida sem o pecado original. É também
chamada de Mulher do Apocalipse, a que fez entrar a salvação, em oposição a Eva,
a que fez entrar o pecado. Sua representação tradicional é a de uma linda jovem,
de pé, com as mãos postas em oração e em estado de “glória” – cercada de nuvens
e querubins. Tem uma cabeleireira farta aparente (símbolo da fertilidade), às vezes
sob véu curto. Veste uma túnica branca (símbolo da pureza) e manto azul
(símbolo da realeza). Seus pés estão sobre o globo terrestre. Calcam uma lua
crescente (símbolo turco, identificado como heresia) e uma serpente (símbolo do
pecado).
__
Em Portugal, a devoção a Imaculada Conceição foi sempre bem disseminada pela
Igreja. Entretanto, sua instituição oficial como rainha de Portugal e de suas
colônias deu-se com dom João IV, após a retomada do reino sob a Coroa da
Espanha. A partir de então, seus soberanos não são representados coroados. No
Brasil, as ordens religiosas, notadamente a franciscana e a jesuíta, foram as grandes
divulgadoras desse culto, consagrando-o em inúmeras capelas e igrejas que
construíram. A tal ponto que, desde fins do século XVI, representa a mais popular
das festas marianas aqui celebradas.
__
A Companhia de Jesus, ordem fundada em 1534 pelo espanhol Inácio de Loyola,
surgiu como cruzada apostólica revolucionária em plena crise da cultura
antropocêntrica e católica do século XVI. Propagando a fé sob um novo olhar, o
de um mundo aberto, infinito e questionável, seu discurso doutrinário de
Contrarreforma permitiu aos então senhores dos mares – Portugal e Espanha –
continuar a exercer sua política de expansão mercantil nas terras do Novo Mundo.
No Brasil, desde sua chegada em 1549, com Tomé de Souza, para a unificação
territorial por meio de um governo-geral e da fundação de uma capital, a ação
missionária dos jesuítas mostrou-se essencial nessa nova estratégia política.
Marcou-se pela fundação de colégios nas principais vilas e cidades brasileiras, que
faziam parte do projeto de expansão urbana; de aldeamentos, que faziam parte do
projeto de interiorização territorial; e de quintas, engenhos, fazendas e currais, que
faziam parte do projeto de viabilidade econômica. Mas o projeto missioneiro
acabou por conflitar com o colonial, o que determinou a queda e a expulsão dos
religiosos dos territórios portugueses, em 1759, e a extinção da Ordem, em 1773.
__
Os edifícios do Colégio de Jesus e da igreja de Santo Inácio do Morro do Castelo
foram projetados pelo arquiteto português Francisco Dias. Construídos junto ao
forte, Casa do Governador, Casa de Câmara e Cadeia, Armazém e Sé, eles ali
permaneceram até o arrasamento do morro, em 1922. Visando expressar o espírito
jesuíta de promover a unidade na diversidade, o colégio foi concebido a partir da
distribuição em quadra, com quatro áreas distintas de utilização – de culto, de
ensino, de residência e de subsistência.
No século XVIII, iniciou-se a construção de uma nova igreja para o colégio,
demandada pelo grande desenvolvimento da cidade, devido à importância
crescente de seu porto como escoadouro natural do ouro da região das Gerais. O
templo seria consagrado à Santa Cruz. Mas a expulsão dos religiosos, em 1759,
impediu a conclusão daquele grandioso projeto.
__
A igreja da Irmandade Príncipe dos Apóstolos São Pedro do Rio de Janeiro, vulgo
“dos clérigos”, situada nas imediações da Igreja da Candelária, foi construída em
1733, obra atribuída ao arquiteto português João Ramalho. Era o único exemplar
de planta barroca de forma polilobada da cidade, tinha cúpula no cruzeiro e o
interior ornamentado por uma talha refinada, predominantemente rococó, de final
do século XVIII, do consagrado escultor Mestre Valentim. Infelizmente, não pode
ser mais contemplada: durante o Estado Novo, após seis anos de luta do Sphan, da
imprensa e da opinião pública para preservá-la, em 1943 a igreja teve seu
tombamento cancelado por decreto presidencial e foi demolida no ano seguinte,
no rol da avalanche efetuada para a abertura da Avenida Presidente Vargas. Seu
precioso acervo foi vendido a antiquários e colecionadores particulares. À
irmandade foi doado um terreno na Avenida Paulo de Frontin, onde construiu sua
nova igreja.
América: um continente e uma alegoria
Com a era das navegações, a observação da natureza – plantas, bichos, fenômenos
celestes – e de outras formas de vida social foi inseparável da arte de aprender a ver
e dar nome ao parecido, ao insólito, ao francamente diferente. Vespúcio foi quem
melhor retratou esse mundo novo onde considerava que os homens viviam sem
pecado nem culpa. Até o canibalismo, embora suscitando medo, se justificava,
colocando em crise uma Europa ávida de poder, prestígio e riqueza. A nudez dos
corpos, a liberalidade, a solidariedade e a violência da antropofagia das sociedades
indígenas, o clima nem quente nem frio, a ausência de hierarquias, inveja ou
desejo de conquista, os inúmeros bens da natureza. Américo anotou todas as
singularidades da região da Guanabara, onde viveu durante mais de cinco meses
entre 1503-1504.
Até meados do século XVI, a América foi vista como um lugar específico, isto é, as
terras descritas por Américo na região da Guanabara, mas lentamente o termo
passou a designar o novo continente que foi sendo desvelado e conquistado. No
final daquele século, criou-se uma alegoria da América: uma índia coroada com
plumas, segurando um arco e tendo flechas em um cesto. Às vezes, ela seria
representada deitada em uma rede, dominando um tatu ou um crocodilo, em uma
paisagem sem cidades, em que apareceriam.
América invadida, América canibalizada
Jean de Léry mencionou 22 povoações indígenas tupinambás situadas nas margens
da Guanabara. Conviviam com o assentamento de Kariauc (Carioca), que ficava
situado às margens do rio de mesmo nome, próximo aos vestígios de construções
dos primeiros europeus na baía. Designava, além do rio, os habitantes brancos da
orla que dele se abasteciam.
Tanto o comércio do pau-brasil pelos franceses quanto a aventura da França
Antártica ou a própria fundação da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro
pelos portugueses seriam impossíveis sem a contribuição ativa dos indígenas. Ao
lado dos padres da Companhia de Jesus, eles foram pilares da colonização em uma
relação ambígua de aliança, respeito e colaboração, mas também de domínio e
aniquilamento, às vezes justificados pelas “guerras justas”.
Idealizando, mas também domesticando os índios, os jesuítas aproveitaram seu
nomadismo para promover “descimentos” de nações tupis que habitavam o sul ou
os sertões para “aldeias” ao norte: isto é, transferindo-os, por persuasão, a pontos
de controle estratégico da costa.
Os “descimentos” e a fuga dos índios provocaram verdadeiras misturas entre
grupos tupis, às vezes muitas léguas acima, abaixo ou para dentro do país,
moldando culturas novas no Alto Xingu, no Alto Rio Negro. Dizimado e
despossuído de suas culturas, em dois séculos de conquistas o grande tronco tupiguarani fecundou, no entanto, simbólica e efetivamente, parte da população
carioca, que os canibalizaria e os integraria como parte de si.
__
“Baste a quem baste o que Ihe basta
O bastante de Ihe bastar!
A vida é breve, a alma é vasta:
Ter é tardar.”
(Fernando Pessoa, Mensagem)
A mais antiga representação iconográfica hoje conhecida da costa brasileira – o
Planisfério da Casa d’Este ou de Cantino (1502) – pertenceu ao duque Hércules
de Ferrara. Graças às informações secretas da primeira expedição exploratória da
costa recém-descoberta obtidas em Lisboa por Alberto Cantino, seu secretário,
pela primeira vez estavam marcadas a linha do equador e as dos trópicos. Iniciavase uma nova tradição de representação cartográfica, que incluía latitudes e
longitudes.
Ora, a precisão que se vinha alcançando nos anos 1480 pelos cartógrafos começou
a ser ultrapassada a partir das viagens de Colombo a cada expedição que procurava
o caminho das Índias e da Ásia. As informações sobre as terras no Atlântico Sul
passaram por contínuas revisões com as observações de Cabral, Vespúcio e Coelho.
Os debates entre os eruditos da época giravam em torno da perturbadora ideia,
trazida pelo novo olhar científico, de que as terras abordadas a oeste não
mostravam a costa ocidental da Índia, mas uma nova parte do mundo – um
mundo novo. Havia uma quarta parte do globo habitada e até então desconhecida,
como Vespúcio passou a afirmar. Ao longo do século XVI, multiplicaram-se cartas,
planisférios, atlas, globos e mapas-múndi mais ou menos atualizados das novas
terras, com objetivos científicos, econômicos e teológicos.
__
O país de Américo
No livro Cosmographiae Introductio (Saint-Dié, Lorena, 1507), os territórios
percorridos e descritos por Vespúcio ganharam nome: América. A publicação da
Cosmographiae pelo editor Vautrin Lud respondeu ao desejo de atualização dos
conhecimentos, deslocando verdades solidamente estabelecidas durante milênios.
A obra era composta de três peças “geográficas”. Primeiramente, o Planisfério de
Waldseemüller, que mostrava “a aparência do mundo, colocando as descobertas
dos antigos e acrescentando o que desde então havia sido descoberto pelos
modernos” em uma Cosmographiae Universalis. Em segundo lugar, por uma versão
em miniatura desse mesmo planisfério, impressa como uma série de gomos de
laranja para recortar e colar, formando um globo. Por fim, textos redigidos pelo
poeta Matthias Ringmann, explicando esses documentos, e a reprodução de uma
carta que Vespúcio teria enviado ao duque René da Lorena, com novas descrições
do Novo Mundo que havia encontrado.
__
A Ordem Franciscana foi fundada por São Francisco de Assis em 1213 e defendia
uma vida de humildade, penitência, misericórdia e de relação com a natureza. Em
1221, o santo fundou a Ordem Terceira dos Irmãos Penitentes, aberta a leigos que
desejassem levar uma vida cristã intensa, mas sem se afastar de suas famílias e de
seus afazeres cotidianos. Ordem de grande aceitação, logo se propagou mundo
afora. Em Portugal, um de seus maiores divulgadores foi Santo Antônio, de Lisboa.
No Brasil, os franciscanos fixaram seu primeiro convento em 1587, em Olinda,
vila-sede da capitania de Pernambuco, a mais próspera da colônia.
O Convento de Santo Antônio do Rio de Janeiro foi implantado em 1608, no
Morro de Santo Antônio, fora dos limites da cidade. Os franciscanos visavam a
um maior contato com a natureza e com as zonas de penetração para o interior, no
entanto, em contrapartida a esse processo, criavam também um novo foco de
atração urbana. Em 1619, foi fundada a Ordem Terceira de São Francisco da
Penitência, que funcionou inicialmente numa capela ligada à igreja conventual e
mais tarde numa igreja própria, contígua à de Santo Antônio. Essas duas entidades
transformaram a paisagem do sítio carioca, demonstrando que a ocupação do
morro deu-se pari passu com o crescimento da cidade que se modernizava.
__
Na época da implantação do convento franciscano no Morro de Santo Antônio até
os inícios do século XVIII, o eixo central do Rio de Janeiro situava-se entre os
morros do Castelo e de São Bento. As plantas da cidade ilustram, ao longo dos
anos, como o Convento de Santo Antônio, isolado em seu início, influenciou o
crescimento urbano ao seu redor.
Nas primeiras décadas do século XIX, era grande o prestígio da Ordem
Franciscana junto à Casa de Bragança. No Rio de Janeiro, isso é comprovado pela
nomeação de dois religiosos como pregadores da Capela Real e pela promoção da
imagem de Santo Antônio a patentes do exército, em comemoração ao centenário
da expulsão dos franceses da cidade, recebendo soldo mensal. Dom João passava o
dia da festa de São Francisco no convento, almoçava com os frades, servia-se da
mesma comida e usava os mesmos talheres. Mas o Segundo Império testemunhou
o declínio dos franciscanos no Brasil, assim como das demais ordens religiosas,
com a campanha desencadeada para extingui-las, visando passar seus bens para o
patrimônio do Estado.
__
No século XVIII, surgiu um surpreendente número de invocações a Virgem Maria
relacionadas às imagens devocionais cariocas cultuadas nas igrejas e em oratórios
particulares: são mais de 30 nomes diferentes. Entre as que tiveram irmandade ou
capela própria na cidade, estão Nossa Senhora da Ajuda, Amparo, Boa Morte,
Bonsucesso, Cabeça, Candelária, Carmo, Conceição, Dores, Graça, Glória,
Lampadosa, Lapa, Livramento, Loreto, Mãe dos Homens, Mercês, Misericórdia,
Montesserrate, Navegantes, do Ó, Parto, Pena, Penha, Piedade, Remédios,
Rosário, Soledade, Terço e Vitória.
Todas as devoções citadas estão representadas em imagens nas igrejas do Rio de
Janeiro construídas no período colonial e, particularmente, no século XVIII,
quando as irmandades leigas – elemento vital de articulação da sociedade colonial,
às quais mesmo os escravos eram filiados – tiveram seu maior desenvolvimento. A
maioria dessas imagens é de origem portuguesa, requinte possibilitado pela
situação econômica privilegiada da capital dos vice-reis, porto escoadouro de ouro
e diamantes de Minas Gerais.
__
As imagens religiosas chegaram ao Rio de Janeiro com os colonizadores
portugueses. Uma das primeiras foi, sem dúvida, a do padroeiro São Sebastião,
trazida por Estácio de Sá e entronizada na matriz do Morro do Castelo. Com seu
desmonte em 1943, a imagem foi transferida para a igreja de São Sebastião, na
Tijuca, onde se encontra atualmente. São também desse tempo as imagens de
Santa Luzia e Santa Rita em exposição nas sacristias das atuais igrejas dessas
invocações.
As igrejas não desempenham nos dias atuais o mesmo papel que tinham na
sociedade setecentista, em que, além da função religiosa, também funcionavam
como centros de convívio e de articulação da vida social em todas as suas instâncias,
do nascimento à morte dos indivíduos. Ninguém saía à rua sem penetrar em uma
ou várias dessas igrejas permanentemente abertas, com os altares iluminados e
decorados com flores frescas em profusão. É interessante observar a popularidade
dos santos, especialmente os franciscanos, assim como a variedade de
denominações apresentadas nesta vitrine.
__
São Sebastião é o padroeiro do Rio de Janeiro e, junto a São Jorge, tem a
devoção e a simpatia dos cariocas, perpassando o cotidiano da cidade em suas
dimensões religiosas e profanas. O culto que lhe é devotado está relacionado à
história de fundação da cidade, que recebeu o nome de São Sebastião do Rio de
Janeiro por ter “nascido” em 20 de janeiro de 1565 – dia de São Sebastião –,
numa reunião na qual a Coroa Portuguesa decidiu enviar Estácio de Sá ao Brasil
para expulsar os franceses que haviam invadido a Ilha de Villegagnon e ali
pretendiam fundar uma colônia calvinista. São Sebastião foi também inserido no
nome do Rio de Janeiro em homenagem ao rei-menino de Portugal, dom
Sebastião, sublinhando o domínio português diante da invasão francesa. Assim,
essa inscrição fortaleceu simbolicamente a missão que deveria expulsar os invasores,
cujo sucesso permitiu que a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro fosse
finalmente fundada em 1º de março daquele ano, data de melhor augúrio.
Celebra-se aqui esta história com uma coleção de representações de São Sebastião
no campo das imagens sacras, artísticas, decorativas e antropológicas.
A prata marcou a colonização da América do Sul, tornando-se um dos principais
produtos da economia mercantil e simbólica do período. O emblema desse
processo foi a cidade de Potosí (Bolívia), de cuja montanha, Cerro Rico, saíram
mais de 30 mil toneladas do metal, entre os séculos XVI e XIX – o que fez
Eduardo Galeano afirmar que o mundo deveria pedir desculpas àquela cidade.
Embora a ênfase de nossa mineração estivesse no ouro e nas pedras preciosas, a
prata saída da Bolívia circulava no Rio por meio de objetos manufaturados de
diversas procedências desde fins do século XVII. O metal também alimentou
nossas primeiras ourivesarias e fundições nas últimas décadas do século XVIII,
graças ao comércio entre o Rio e Buenos Aires, e, com a colônia do Sacramento, às
margens do Rio da Prata, por onde o metal era exportado.
A utilização da prata foi largamente difundida no âmbito da vida civil – sobretudo
em objetos de uso cotidiano, como paliteiros, talheres, pequenas caixas, adornos e
moedas. No contexto religioso, ela serviu de matéria prima para objetos litúrgicos,
como resplendores, custódias, crucifixos, oratórios, castiçais, coroas e cetros de
cerimônias de congadas. Estes objetos de prata oriundos da coleção do museu
compunham a vida do século XVIII no Rio de Janeiro, ajudando a revelar os
diversos usos da prata no Brasil. São notáveis os parâmetros estéticos alcançados na
lavra do metal, que sublinham as dinâmicas de distinção social entre membros do
clero, das irmandades ligadas à nobreza da terra, dos governantes, mas também das
comunidades afro-brasileiras que conquistam sua liberdade.
A escravidão e suas faces: resistência e cultura
A população de origem africana foi aquela que mais contribuiu, em sua
diversidade de origem, para alimentar o novo perfil da cultura carioca no século
XVIII, mantendo, assim, seus traços cosmopolitas. No mesmo porto que escoava
minérios, adrentavam milhares de pessoas escravizadas, trazidas da Costa da Mina,
Guiné, Luanda e até zulus do Cabo. Entre 1700 e 1740, o movimento negreiro no
porto carioca quase triplicou: de cerca de 28.000 africanos entre 1700-1710,
passou para cerca de 66.000 entre 1731-1740. Na década de 1750, passaram
75.000 cativos pelo Rio e, na seguinte, foi ultrapassada a marca de 80.000 pessoas,
o que fez do Rio o maior porto de escravos do mundo. Embora as taxas de
desembarque de cativos diminuam em certos períodos, como entre 1750 e 1775, e
o Rio constitua no século XVIII as bases de sua cultura plural e mestiça, a
escravidão como prática social se enraizaria no país, com consequências até a
atualidade – seus filhos jovens e negros são, ainda hoje, os que esta cidade mais
alija e mata.
Homens, mulheres e crianças desembarcavam neste porto e eram levadas ao
mercado de escravos situado na Rua do Valongo (hoje, Rua Camerino), a poucos
quarteirões daqui. Muitos daqueles que não resistiam à longa e desumana viagem
eram conduzidos ao Cemitério dos Pretos Novos, recentemente redescoberto e
aberto à visitação. Registros das arbitrariedades e lutas visibilizam-se em
documentos, gravuras, objetos, mapas, figuras e práticas religiosas, que ajudam a
desvendar rotas do comércio de escravos, valores de compra e venda, negociações
para alforria, formas de religiosidade, castigos sofridos, mas também resistências –
simbólicas e políticas. Em meio à catástrofe, emerge a força da população de
origem africana e de seus descendentes: na música, na dança, nas artes, na política
e no prazer da festa e da vida pública. A história e a atualidade de nosso país não
são inteligíveis sem a profunda compreensão de como as culturas afrodescendentes,
violentamente transpostas, transformando-se, inventaram-nos, a todos, como
cidade.
Os engenheiros do rei entre a métrica e a proporção
A prática da arquitetura e da engenharia no Rio acompanha o paulatino
desenvolvimento de aulas e ciclos de formação básica de oficiais militares que
culmina com a criação da Real Academia de Artilharia, Fortificação e Desenho, em
1792 – primeira escola de engenharia das Américas e terceira do mundo. Até o
início do século XVIII, as fortificações funcionavam como um sistema aberto, e
baterias e fortes complementavam-se uns aos outros: de Santa Cruz a São João, de
São Bento ao Castelo, de Santa Cruz a Santa Margarida e São Thiago, na várzea,
repicando ainda em Villegagnion, Santa Luzia, Glória e, do outro lado da baía,
em Boa Viagem ou Gragoatá. As invasões francesas (1710-1711) abalariam a lenda
de que o Rio era uma cidade inexpugnável, e sucessivas gerações de engenheiros
farão propostas, que não saem do papel, para “fechar” a cidade com muralhas,
ignorando a abertura secular do Rio para a Guanabara e para o comércio
multilateral.
Contudo, é inegável a contribuição de dezenas de engenheiros militares e
particularmente o papel do comandante João Henrique Böhn na defesa dos limites
meridionais do país. Suas obras introduzirão uma nova monumentalidade nos
edifícios civis e religiosos, como faz o sargento-mor José Fernandes Pinto Alpoim
no Largo do Paço e como ilustram a Igreja da Gloria (atribuída ao tenente coronel
J. Cardoso de Ramalho) ou a Igreja da Candelária (F. J. Roscio). Entretanto, seu
maior legado é a nova cientificidade que constrói a cidade como capital política,
administrativa e laica. Mesmo as representações gráficas do Rio, que insistiriam em
alimentar a imagem de uma Civitas Dei na terra, serão articuladas de outro modo:
o ponto de vista é estabelecido a partir da posição definida de um sujeito.
A construção de uma capital
O reino de dom João V (1707-1750) foi um marco na história do Rio de Janeiro.
A abertura da Estrada Real, em 1707, possibilitou que seu porto rapidamente se
tornasse o mais importante centro de exportação das riquezas extraídas das minas
de ouro e diamantes. Artes, ofícios e, particularmente, atividades mercantis ligadas
ao abastecimento interno e à mineração tomaram grande impulso. Centenas de
imigrantes metropolitanos e de além-mar instalaram-se nas regiões mineradoras,
mas um grande número se fixou no Rio de Janeiro.
Os novos grupos sociais alimentaram uma febre construtiva que multiplicaria
igrejas de irmandades e de ordens religiosas que, à parte a fé, demonstrariam a
força econômica da cidade. No campo administrativo, obras civis havia muito
reclamadas, como o abastecimento d’água e a construção do primeiro Chafariz da
Carioca pelo governador Aires Saldanha (1719-1725), passaram a ser
empreendidas pela Coroa.
Contudo, é no governo de Gomes Freire de Andrade, conde de Bobadela (17331763), que a centralidade administrativa, econômica e comercial do Rio de Janeiro
se impõe. A ação da Coroa, do governador e de seus engenheiros melhoraria e
ampliaria as instalações portuárias, embelezando e dotando a cidade de novas
infraestruturas e preparando-a para exercer, em breve, seu novo papel de sede do
Governo-Geral do Brasil, a partir de 1763.
Uma centralidade aberta
Em 1743, foi inaugurada a nova Residência dos Governadores no Largo do Paço
(atual Praça XV de Novembro), que se tornou o centro da vida civil do Rio.
Projeto do sargento-mor José Fernandes Alpoim, ocupava parte de um edifício
onde se localizavam outros serviços administrativos: a Sala dos Despachos dos
Governadores, o Armazém d’El Rey, a Provedoria da Fazenda Real, a Residência
do Provedor e a Casa da Moeda. Alpoim também projetou para os Telles de
Menezes um grande sobrado, do qual hoje resta o Arco do Telles, garantindo a
simetria do conjunto. Um chafariz reforçava a ideia de centralidade do largo.
A presença do Estado e do poder civil imporia uma visão hierarquizada e
totalizadora aos espaços públicos e às construções, inclusive religiosas. Contudo, a
prioridade de reconstrução de Lisboa, que se recuperava do terremoto de 1755,
pesou sobre o orçamento da Coroa, deixando muitas obras do período de
Bobadela inconclusas. Foi o caso da nova Sé e residência do bispo dom Antonio
do Desterro.
As construções luso-brasileiras do período e, particularmente, a regularidade do
Largo do Paço provocaram impactos no pensamento urbanístico português, como
se percebe no Tratado de Ruação, de José de Figueiredo Seixas (c. 1760). O Largo
do Paço precederia e dialogaria com a racionalidade da Praça do Comércio,
concebida por Eugenio dos Santos e Carlos Mardel. No Rio e em Lisboa, esses
espaços públicos celebravam uma mesma centralidade que já não poderia ser
contida e mostrava-se aberta ao além-mar.
__
O modelo urbano que dom Luiz de Vasconcellos buscou imprimir no Rio de
Janeiro durante sua gestão (1779-1790) baseou-se no da imagem das Luzes,
instituído por Marquês de Pombal para a reconstrução de Lisboa, após o
terremoto de 1755. Pela obra do Mestre Valentim – considerado, então, o escultor
mais importante do Rio –, foi construído o Passeio Público, o primeiro local de
lazer do carioca. Ele buscou situá-lo no limite sul da cidade, de áreas mais frescas e
belas, no ponto em que se divisava seu mais esplêndido panorama – a entrada da
Baía de Guanabara. Dentro desse programa iluminista, Valentim construiu ainda
quatro monumentais chafarizes para o abastecimento urbano de água.
O Passeio Público foi projetado como um jardim cortesão, cuja função social era
de cerimônia e lazer. Aproximou-se do gosto aristocrático dos jardins do Palácio de
Queluz, residência de verão dos reis de Portugal. Organizado segundo a estética do
barroco, o jardim carioca tinha a forma de um hexágono irregular e seus canteiros
e aleias eram ordenados segundo um traçado geométrico de linhas paralelas,
perpendiculares e diagonais, submetidas a um eixo central. De sua antiga aparência,
restam o conjunto portal/portão, as pirâmides comemorativas, a Fonte dos Amores
e parte do terraço.
Um Rio de festas e de arquiteturas efêmeras
Muitas festas que acompanharam as mudanças na cultura carioca com a febre do
ouro permanecem até hoje: do culto a São Cosme e Damião a São Jorge; da festa
de São Sebastião aos ritos, danças e jogos de origem africana. De início,
predominaram festas religiosas, organizadas pelas irmandades, confrarias e até pela
Câmara, como a procissão de Corpus Christi.
A partir de Bobadela (1733-1763), os eventos civis, privados e públicos, tomaram
a cidade: inaugurou-se a Casa de Ópera do Padre Boaventura (1747-1767), a
Nova Opera de Manoel Luiz (1776-1813) e festejaram-se com pompas o
casamento de dona Maria e dom Pedro (1760), o nascimento do Príncipe da Beira
(1762), a chegada do Marquês de Lavradio (1769). Realizavam-se tríduos solenes
na catedral, com luminárias, fogos de artifícios, representações de farsas, danças e
óperas, corridas de touros e cavalhadas. A cultura erudita e popular do Rio se
exportava e se afirmava: João Seixas da Fonseca está na publicação da primeira
coletânea de peças para piano-forte em Florença (1732), Domingos Caldas
Barbosa teve suas modinhas publicadas em Lisboa (1798). Tornaram-se célebres o
padre José Maurício e a cantora Joaquina Maria da Conceição Lapa.
Telas de Leandro Joaquim celebraram esse prazer das festas (Vista da esquadra
inglesa, Procissão marítima e Revista militar no Largo do Paço). O maior desses
eventos ocorreu em 1786, nos festejos pelo enlace de Carlota Joaquina e dom
João, quando o Rio dançou por três dias animado por majestosos carros
alegóricos. Em 1793, a população que vinha se orgulhando do talento de seus
artistas, compositores, cantores e arquitetos, mestiços e de diferentes credos,
atônita contemplou o fim dos tempos de luzes com uma nova onda de
radicalização da barbárie: o esquartejamento de Tiradentes.
O caminho das águas
Em 1673, o Rio Carioca foi represado na parte alta e suas águas passaram a
deslizar, em canais de telhas e pequenos arcos de pedra e cal, pelas encostas dos
morros de Laranjeiras e Desterro. Na administração de Antônio de Brito, a
canalização chegou aos terrenos do Convento da Ajuda.
O governador Aires Saldanha mandou conduzir as águas daqueles arcos até o
Largo de Santo Antônio e ali instalar uma fonte de mármore com bicas de bronze,
importada de Lisboa – o Chafariz da Carioca (1723). Para escoar a água excedente,
complementou a obra com a abertura de duas valas: uma desaguando na Prainha
(atual Praça Mauá), outra em direção ao Largo do Carmo (atual Praça XV). No
governo de Gomes Freire, foram construídos os Novos Arcos da Lapa, obra do
militar Alpoim (1750), que consistia numa dupla e robusta arcaria a 17,60 m
acima do nível do solo, para suporte do aqueduto direto do Morro do Desterro ao
de Santo Antônio. Mandou construir ainda um duto de pedra na Rua da Vala
(atual Uruguaiana), que distribuía água em duas esquinas e na Prainha, e outro, de
ferro, na Rua do Cano (atual Sete de Setembro), para alimentar a primeira fonte
do Largo do Carmo (1752). Mal conservada, ela acabou sendo substituída, em
1789, pelo imponente Chafariz da Pirâmide.
__
A Santa Casa da Misericórdia, instituição laica e beneficente, é considerada o
primeiro hospital da cidade. Ergueu-se na praia de Santa Luzia, no sopé do Morro
do Castelo. Segundo a tradição, foi fundada pelo jesuíta José de Anchieta (1582),
que teria mandado construir um barracão de palma coberto de sapé para acudir
uma esquadra espanhola que aqui aportara com a tripulação acometida de
epidemias.
As Santas Casas eram regidas pelo “Compromisso” da Misericórdia de Lisboa
(1618), com o propósito de acolher os presos, alimentar os pobres, curar os
doentes, asilar os órfãos, sustentar as viúvas, enfim, ser a casa a serviço dos mais
carentes e desassistidos. O cargo de provedor foi sempre ocupado por políticos
influentes, nobres titulares ou ricos comerciantes. Ao longo da República, esse
“Compromisso” vem sofrendo alterações, ajustando-se a necessidades muitas vezes
de caráter econômico e financeiro.
O Chafariz das Marrecas, construído por Mestre Valentim, situava-se na Rua
dos Barbonos (atual Evaristo da Veiga). Estava voltado para a Rua das Marrecas,
em direção ao portal do Passeio Público. O monumento possuía três tanques: um
destinava-se aos animais, outro, à lavagem de roupa e o último, à utilização
popular, servido através de quatro bicas de bronze na forma de marrecas. As
primeiras esculturas fundidas no Brasil, representando a ninfa Eco e o caçador
Narciso, ornavam as pilastras que flanqueavam a fachada do chafariz. Com suas
esculturas naturalistas e alegóricas de deuses pagãos e da fauna carioca, a obra
produziu um sentido laico no espaço da comunidade carioca, tão carregado de
religiosidade. Foi demolida em 1896. Atualmente suas esculturas encontram-se no
Jardim Botânico.
O Chafariz do Lagarto foi construído em 1786, no caminho de Mata-Porcos
(atual Frei Caneca), mais utilizado pelos viajantes. A água provinha do Aqueduto
do Catumbi. O novo chafariz foi a menor e mais simples obra civil de Mestre
Valentim, em lugar modesto e pouco habitado (até hoje pode ser visto no final da
Rua Frei Caneca).
O Chafariz da Pirâmide, última obra de Vasconcelos, foi construído no Largo
do Paço. Era o mais imponente de todos os chafarizes da cidade, com a dupla
função de aguada dos navios e abastecimento da população. O engenheiro Jacques
Funck, contratado pelo vice-rei para fazer melhorias naquele local, apresentou três
desenhos para o novo chafariz. O vice-rei não aceitou nenhuma das versões,
preferindo a de Mestre Valentim.
O Chafariz das Saracuras foi a última obra de caráter civil de Mestre
Valentim, encomendado pelas freiras clarissas para abastecer o Convento da Ajuda
(atual Cinelândia), por ordem do novo vice-rei, Conde de Resende. O chafariz foi
construído em 1795 para o pátio interno do edifício, conforme mostra uma rara
foto de Augusto Malta, datada de 1911. Hoje, esse monumento encontra-se na
Praça General Osório, em Ipanema.
Os primeiros círculos literários cariocas
Expressão de uma elite administrativa e econômica em consolidação, os primeiros
círculos literários da cidade demonstravam um desejo de conhecimento que,
durante todo o século, não encontrou espaço diante do sistema de censura e
repressão da época. A primeira delas foi a Academia dos Felizes (1736-1740),
seguida pela Academia dos Seletos (1752). Na segunda metade do século XVIII,
surgiram a Academia Científica do Rio de Janeiro (1772-1779) e a Sociedade
Literária do Rio de Janeiro (1786-1794). Seus membros eram advogados, médicos,
engenheiros militares e funcionários da Coroa, além de jovens brasileiros que se
formavam em Coimbra, já que no Brasil universidades eram proibidas.
O governador Gomes Freire (Bobadela) receberia homenagem da Academia dos
Seletos, documentada em Júbilos da América. Nessa obra, um poema dedicado a
ele, de autoria da poetisa cega Angela do Amaral Rangel, mostra um
reconhecimento da figura feminina incomum à época. Ler, escrever e contar era
privilégio de uma minoria. Às mulheres negava-se mesmo o acesso aos colégios
conventuais e elas aprendiam a ler, eventualmente, em casa. Com a expulsão dos
jesuítas, desarticularam-se também os hábitos de leitura nas bibliotecas
conventuais. Essas bibliotecas guardavam livros censurados e considerados
perigosos para a estabilidade da monarquia e para o estatuto colonial, que seria
cada vez mais controlado no reinado de dom José I por seu ministro Sebastião José
de Carvalho e Melo (1750-1777), o futuro Marquês de Pombal.
Manuel Dias de Oliveira e a oficialização do ensino artístico no
Brasil
O ensino artístico no Brasil, até então transmitido por artistas e artesãos
provenientes de oficinas religiosas ou laicas, foi oficializado em 1800 com a
fundação, no Rio de Janeiro, da Escola Pública de Desenho e Figura, sendo
nomeado professor régio o pintor fluminense Manuel Dias de Oliveira.
Seus estudos foram aperfeiçoados em Lisboa, onde frequentou as aulas de desenho
e pintura e da Academia do Nu da Real Casa Pia e depois, como bolsista, da
Academia de Portugal em Roma. Já no Rio, no cargo que exerceu por mais de 20
anos, Manuel Dias abandonou o recurso didático colonial da cópia de estampas e
de gravuras e desenvolveu o estudo do desenho do natural e das aulas de modelo
vivo. Seus quadros e trabalhos ornamentais eram muito desejados desde a chegada
da família real, quando foi responsável por grande parte das decorações para
recepcioná-la. O pintor foi agraciado por dom João VI com a Ordem de Cristo,
mas seu prestígio declinou com a chegada da Missão Artística Francesa ao Brasil,
em 1816, e a fundação da Real Escola de Ciências, Artes e Ofícios. Em 1822, ele
foi aposentado, sendo substituído pelo pintor português Henrique José da Silva.
__
Joaquim José da Silva Xavier, conhecido como Tiradentes, foi o mártir da
Inconfidência Mineira, o único entre os conspiradores a pagar com a vida a
fracassada rebelião republicana e anticolonialista que visou acabar com o domínio
português no Brasil.
Além dele, foram líderes do levante o desembargador Tomás Antônio Gonzaga, o
tenente-coronel Inácio José de Alvarenga Peixoto, o advogado Claudio Manoel da
Costa e o padre Carlos Correa de Toledo. Foi denunciado em 15 de março de
1789, pelo coronel Joaquim Silvério dos Reis ao governador de Minas Gerais, que
o revelou ao vice-rei, dom Luiz de Vasconcellos. A partir daí, foram realizadas
“devassas” e todos os envolvidos foram presos e punidos por decreto real,
Tiradentes sentenciado com a morte, os demais com o exílio. Ele foi enforcado em
21 de abril de 1792, no Largo da Lampadosa (atual Praça Tiradentes). Seu corpo
foi conduzido à Casa do Trem, esquartejado e transportado para ser exposto a
visitação pública: a cabeça foi colocada no alto de um poste no centro de Vila Rica
e outras partes de seu corpo, na entrada do Caminho do Ouro. Sua casa foi
demolida e o terreno, salgado.
O Caminho do Ouro
A descoberta de minas, a partir de 1697, foi uma segunda “fundação” do país, que
fixou alguns de seus contornos. Centenas de povoações foram surgindo ao longo
dos caminhos abertos pelo ouro e pelo diamante, entre São Paulo, Salvador, Rio
de Janeiro e a região das minas nas Gerais, em Goiás e em Mato Grosso.
A primeira estrada para o sertão das Gerais saía do Rio passando por Paraty ou
Angra dos Reis (alcançados por mar ou terra) e cruzava a Serra do Mar. A travessia,
que durava cerca de três meses, era ameaçada por índios bravios e piratas. Em
1699, foi dada carta régia a Garcia Rodrigues Paes para a abertura de uma Estrada
Real, inaugurada em 1707, que levava apenas um mês para ser percorrida.
A maioria dos viajantes alcançava a nova estrada navegando do Cais dos Mineiros
(diante da Igreja da Candelária) até o Rio Pilar (hoje em Duque de Caxias),
afluente do Rio Iguaçu. Desse porto no fundo da Baía de Guanabara, seguia-se
pelo Caminho do Couto, atravessando a serra entre Xerém e Paty do Alferes. Uma
vez no planalto, cruzavam-se, enfim, os rios Paraíba do Sul e Paraibuna e
adentrava-se a região das minas. Para evitar o trecho serrano mais perigoso do
Caminho de Garcia Paes, onde se perdiam animais e cargas nos despenhadeiros,
foram abertos o Caminho de Tinguá e o Caminho de Inhomirim.
Tempo de resplendor, o “Rio do ouro” traz riqueza e crescimento para a cidade.
Faz dela um centro econômico que interage com a produção de todo o Império
Português, mas semeia cobiça, devassas, arbítrio e medo.
O Rio de Janeiro cosmopolita
O Rio de Janeiro nasceu em meio a cidades e redes de intercâmbio: entre Lisboa,
Florença, Sevilha e Lyon, entre Paris, Rennes e Genebra, entre Mazagan, a costa
da Guiné e Goa. Nasceu urbano e cosmopolita, graças à visão política, científica e
comercial dos portugueses e a uma forte rede de armadores, banqueiros e
comerciantes de cultura ou religião judaica, os sefaradis. Esses judeus, expulsos da
Espanha pelos reis católicos em 1492, refugiaram-se em Portugal, convertendo-se,
entretanto, ao catolicismo em 1497, forçados por dom Manuel. Chamados
também de “cristãos-novos”, participaram da colonização do Brasil, instalando-se
nas cidades, cruzando os mares do Sul e fomentando redes de comércio e a
circulação internacional de ideias, conhecimentos, mercadorias e objetos de
consumo – marfins, prata, mobiliário, joias, livros, tecidos, adornos femininos,
entre outros.
A população de origem judaica, embora socialmente heterogênea, constituiu um
grupo cultural e econômico forte no Rio de Janeiro. Em fins do século XVII, já
eram proprietários de terras, senhores de engenho, mercadores de escravos,
advogados, médicos, contratadores de ouro e pedras preciosas, funcionários da
Câmara e da Alfândega ou artífices. Em 1695, segundo Froger, mais de três
quartos da população do Rio eram “originariamente judeus”. Com suas ligações
familiares em várias partes do mundo, casados com cristãos velhos, “hereges” ou
realmente conversos, mas unidos pela língua e pela cultura, os cariocas de
ascendência judaica formaram as bases da cultura carioca. Além dos sefaraditas,
oriundos da Pensínsula Ibérica, Ásia e África, há judeus asquenazitas, procedentes
da Europa Central e do Leste. Há judeus ateus. E há judeus com diferentes
posições, histórias de migração e perseguição em seus países de origem.
Malgrado o fechamento dos portos até 1808, a baía privilegiada do Rio foi um
ponto importante nas rotas entre a Europa, África e Ásia. Espaço de trocas de
mercadorias e de encontros entre pessoas e culturas, nesta cidade diversas regiões
da Europa, diferentes Áfricas e as significativas presenças indígenas deslocaram-se e
sobrepuseram-se, transformando-se, para moldar línguas, gostos e costumes.
O Rio das devassas
Os mais produtivos dos 130 engenhos do Rio no início do século XVIII eram de
propriedade da população de origem judaica. Em suas 22 moendas, trabalhavam
cerca de 1.280 escravos e famílias de índios. Formados em Coimbra como médicos
e advogados, os senhores de engenho cristãos-novos ocupavam funções relevantes
na cidade, inclusive na Câmara, onde lutavam pelos interesses locais, embora os
cargos públicos fossem proibidos aos que não atestassem “limpeza de sangue” –
como também os ciganos, descendentes de mouros ou africanos. Viviam sem se
preocupar com o tribunal da Inquisição, instalado em Lisboa em 1536 para,
sobretudo, punir práticas judaizantes dos convertidos cristãos.
A valorização de seus engenhos nos eixos Irajá-Miriti e Inhomirim-Itaboraí-São
Gonçalo (as “bandas do além”), desvelados pelos caminhos das minas, além do
conflito entre seus interesses e os dos novos imigrantes portugueses na Câmara,
provocou 392 delações e 271 prisões e confiscos de bens entre 1703 e 1730, que
foram vendidos a terceiros. Enviados a Portugal para interrogatório, os presos
foram condenados a diferentes penas – cárcere, hábito penitencial (o sambenito)
ou relaxados, isto é, queimados vivos em praça pública. As devassas desarticularam
famílias e redes econômicas seculares, impondo silêncio sobre o estatuto do país. O
crescente volume de riquezas das minas conseguiria, por um momento, fazer
esquecer essas perdas, refundando a cidade. Entretanto, amplificava-se outra forma
de violência: a escravidão.
Download

Rio Setecentista, quando o Rio virou capital