ALENQUER
“um sorriso de deus feito cidade”
Escorço histórico do Município de Alenquer
CAPÍTULO I
FUNDAÇÃO
Alenquer situa-se na Calha Norte do rio Amazonas, banhada
pelo igarapé ou paraná Surubiú, um braço do grande rio que,
mais ou menos duas léguas abaixo de Óbidos, desvia-se pela
esquerda, formando uma alça que, após fertilizar as verdejantes várzeas alenquerenses e receber as águas do igarapé
Itacarará, deságua de novo no rio Amazonas um pouco abaixo
da cidade de Santarém.
Logo depois de fundada a cidade de Belém, em
1616, e uma vez criada a Capitania-Geral do GrãoPará e Maranhão, tornou-se necessário iniciar a
efetiva ocupação da riquíssima região (que hoje
corresponde aos Estados do Pará e Amazonas). Ao
lado das expedições militares, a catequese dos
indígenas foi de suma importância para a posse
definitiva desse vastíssimo território, como bem
ressaltou o historiador João de Palma Muniz. 1
Na história do Brasil, quando se fala ou se escreve
sobre as missões religiosas, destacam-se em primeiro lugar os padres da Companhia de Jesus, os
jesuítas, como Manoel da Nóbrega, José de
Anchieta, Antônio Vieira, Philippe Bettendorf e
outros que, realmente, muito fizeram pelos seus
protegidos, os índios brasileiros.
Mas não se pode ignorar que os franciscanos
foram os primeiros sacerdotes a pisarem o solo
brasileiro e também os primeiros religiosos a pre-
garem o Evangelho nas vastas florestas virgens da
Amazônia. A história das missões franciscanas na
Amazônia começa, de fato, com a jornada de Francisco Caldeira Castelo Branco e, nos primeiros
anos, a presença desses religiosos está mais ligada
à fundação e à história da cidade de Belém.
Com efeito, numa primeira fase, chegaram ao
Grão-Pará, vindos de Portugal, em 1616, ou 1617,
os franciscanos da Província de Santo Antônio.
Mais tarde, em 1692, ou 1693, vieram os franciscanos da Província de Nossa Senhora da Piedade. E,
numa terceira etapa, já por volta de 1706, também
chegaram à Amazônia os padres franciscanos da
Província de Nossa Senhora da Conceição, conhecidos como os Antoninhos da Conceição da Beira e
Minho.
A Metrópole portuguesa, no intuito de regularizar
a entrada desses religiosos na bacia amazônica,
segundo relata Palma Muniz, estabeleceu uma
espécie de divisão do respectivo território, com o
objetivo de melhor aproveitar o esforço catequista.
Reservou-se, pois, aos frades capuchos da Província
de Nossa Senhora da Piedade, “grande parte da
margem esquerda do Rio Amazonas.” 2
O sistema de catequese dos franciscanos era o de
aldeamentos, mediante a descida ou descimento dos
índios arrebanhados pelas vizinhanças e levados
para lugares sob a proteção dos religiosos, chamados missões, com a finalidade precípua de resgatar
os nativos escravizados pelos colonos portugueses
ou aprisionados por tribos rivais.
Em fins do século XVII, os capuchos da Província
de Nossa Senhora da Piedade já haviam fundado,
no baixo Amazonas, uma missão à margem
esquerda da garganta (a parte mais estreita) do rio
Amazonas, aí concentrando os índios Pauxís, bem
como a missão do Curuá, reunindo os índios Barés
ou Abarés, à margem esquerda do rio com esse
nome, pouco acima de sua foz.
Fulgêncio Firmino Simões, o notável historiador
alenquerense, em seu magnífico estudo sobre o
município de Alenquer 3; João de Palma Muniz, na
sua obra supra citada, e, sem querer ombrear-me
com tão ilustres vultos, eu próprio, em textos que
Fundação
alenquer – “um sorriso de deus feito cidade”
escrevi quando ainda muito jovem, confundimos
os capuchos da Piedade com os capuchinhos. No
entanto, como bem elucida um documento oficial
da Cúria Prelatícia de Santarém, “naqueles tempos, os padres franciscanos foram chamados de
capuchos e assim são citados nos documentos,
razão porque, muitas vezes, historiadores modernos, enganadamente, os tomam pelos capuchinhos
de hoje, os quais, por sua vez, outrora eram
denominados barbadinhos.” 4
Os capuchos, na verdade, são uma reforma saída
dos Franciscanos Observantes, com o escopo de
vivenciar mais ortodoxamente as Regras de São
Francisco de Assis. Instalaram-se em conventos ou
ermitérios fora das povoações e formaram Províncias dependentes apenas do Geral dos Observantes. Propagaram-se pela Europa, recebendo o
nome de récollets na França, descalzos na Espanha e
capuchos em Portugal. A primeira Província dos
capuchos, a da Piedade, foi instalada em Portugal
em 1517 e tinha como Casa Mãe o conventinho de
Nossa Senhora da Piedade, em Vila Viçosa.
Depois, em 1560, fundou-se a Província da Arrábida (de que se conservam os conventos da Arrábida, de Sintra e da Caparica), e, em 1568, a de
Santo Antônio, que tinha a Casa Mãe no edifício
do Hospital de Santo Antônio dos Capuchos, em
Lisboa.
Os capuchinhos, por seu turno, são de uma ordem
mais nova, que somente mais tarde estabeleceu-se
em Portugal. Em Lisboa, viveram os capuchinhos
estrangeiros, que, por causa da barba que usavam,
o povo os chamava de barbadinhos.
As fundações das missões de Pauxís e do Curuá
ocorreram provavelmente entre os anos de 1692,
ou 1693, data da chegada dos franciscanos de Nossa Senhora da Piedade à bacia amazônica, e o ano
de 1697, quando Manoel da Motta e Siqueira, que
acabara de construir o Forte do Tapajós (Santarém), iniciou, por ordens do Capitão-General do
Grão-Pará e Maranhão, Antônio Albuquerque
Coelho de Carvalho, a construção de uma outra
fortificação, na secção mais estreita do rio Amazonas, que recebeu o nome de Pauxís (Óbidos), nome
este emprestado dos índios ali já aldeados pelos
religiosos.
Segundo Fulgêncio Simões, ao reunirem, na margem esquerda do rio Curuá, os índios Barés ou
Abarés, formando a missão do Curuá ou aldeia dos
Barés ou Abarés, os capuchos da Província de Nos-
Luiz Ismaelino Valente
sa Senhora da Piedade batizaram o novo aldeamento com o nome de Arcozellos – “que é o de
uma localidade portuguesa, d’onde talvez fosse
natural o chefe ou algum dos ditos capuchinhos.” 5
Além da confusão que Fulgêncio faz entre capuchos
e capuchinhos, documentos históricos oficiais esclarecem, porém, e com a máxima clareza, que a
denominação de Arcozellos somente foi dada à
missão do Curuá ou aldeia dos Barés ou Abarés
cerca de sessenta anos mais tarde, em 1758, pelo
governador Capitão-General Francisco Xavier de
Mendonça Furtado. 6
O primitivo nome da aldeia dos Barés ou Abarés
ficou perpetuado na denominação de um pequeno
canal que liga o rio Curuá ao rio Macurá, que os
padres fundadores da missão mandaram fazer e
que existe até hoje – o chamado furo do Baré.
A região da missão do Curuá em nada lembrava,
contudo, a lendária imagem de um Eldorado
incrustado coração da Amazônia. Sabe-se, com
efeito, segundo escreveu Fulgêncio Simões, que se
caracterizava essa região pelas “dificuldades de
comunicação, aumentadas, no tempo do verão,
pela deficiência de água nos dois estreitos canais
da boca do rio Curuá, aliadas às endemias de
sezões ali reinantes.” 7
A todas essas vicissitudes somavam-se ainda os
constantes desentendimentos, cada vez mais violentos, entre os colonos do vizinho Forte Pauxís e
os religiosos do Curuá, cujos interesses colocavamnos em campos diametralmente opostos: de um
lado, os colonizadores lusitanos, que utilizavam o
trabalho dos índios em situação análoga à de
escravos, fazendo deles meros animais de carga, e,
do outro lado, os capuchos, empenhados em livrar
os indígenas dessa exploração.
Valiam-se, então, os religiosos, dos chamados descimentos ou descidas de índios para lugares mais
remotos, onde os portugueses ou as tribos rivais
não os pudessem capturar com facilidade.
Foi com esse preciso escopo que os capuchos do
Curuá promoveram o descimento dos Barés ou
Abarés e de mais alguns índios do rio Trombetas
para “o local sadio e farto” – na feliz e correta
expressão de Fulgêncio Simões –, situado à margem do Surubiú (que, então, se pensava que fosse
um lago), na sua confluência com o igarapé Itacarará, que nele deságua, onde fundaram a missão do
Surubiú ou Surubijus, que deu origem à atual
cidade de Alenquer.
2
Fundação
alenquer – “um sorriso de deus feito cidade”
Os descimentos de índios eram considerados crimes
contra os interesses da Coroa portuguesa e foram
denunciados ao Rei de Portugal pelo governador
do Grão-Pará e Maranhão, Capitão-General Alexandre de Souza Freire, por ofício de 3 de outubro
de 1729, como “um ato criminoso e desrespeito às
ordens reais”, o que levou Dom João V a editar a
Carta Régia de 17 de maio de 1730, ordenando ao
governador que fizesse “recolher ao Reino” esses
catequistas tidos como criminosos.
Essa famosa Carta Régia 8
mencionava que “... todos
esses Missionários se ocupam em fazer descimentos
para os Lugares mais desviados do concurso das
canoas, como foi uma que
povoaram no Lago do
Surubiô baixando os Indios
do Rio das Trombetas disO Rei Dom João V – O
Magnânimo –, ordenou,
tante do mesmo Lago de
pela Carta Régia de
que os Indios não tinham
17/05/1730, a expulsão dos
noticia para pedir aquele
capuchos do Curuá, pelo
crime de haverem fundado,
sitio para aldear-se (...).”
anos antes, a missão do
Os documentos históricos
Surubiú, origem da atual
cidade de Alenquer.
conhecidos não registram o
ano em que se deu a fundação da missão do Surubiú. Como observou o historiador João Veiga dos Santos, os franciscanos não
tinham cronistas tão bons como os jesuítas, que
registravam minuciosamente os eventos das suas
missões. Fulgêncio Simões, com base no trecho
acima transcrito da Carta Régia de 1730, e “atendendo à prontidão com que eram comunicados à
metrópole os mais insignificantes acontecimentos”, aventa que a descida dos Barés ou Abarés da
Luiz Ismaelino Valente
missão do Curuá e de índios do rio Trombetas para
a nova povoação do Surubiú “teve lugar em 1729”,
e que, “sendo certo que os missionários escolhiam
para patrono das aldeias os santos do dia em que
as fundavam, pode-se inferir que Alenquer foi
fundada a 13 de junho desse ano de 1729, dia de
Santo Antônio, que os mesmos missionários escolheram e ainda é o orago da localidade.” 9
Em que pese o agudo raciocínio do grande historiador chimango, é certo que a Carta Régia de 17
de maio de 1730 e o ofício de 3 de outubro de 1729
não revelaram, expressamente, o ano em que ocorreu o crime da fundação da missão do Surubiú. Por
seu lado, o documentário da Prelazia de Santarém,
que é minuciosa fonte de informação sobre o trabalho dos franciscanos na bacia amazônica, dá-nos
conta que, “no relatório das missões do Pará de
1720, já figura o nome da missão de Surubiju”, e
que “como padroeiro da missão foi escolhido
Santo Antônio, ao qual também foi dedicada a
igreja.” 10 Frei Protásio Frikel, num estudo histórico muito interessante, também confirma claramente que, “antes de 1720, a missão do Curuá foi
transferida para o Surubiú.” 11
Pode-se, assim, concordar plenamente com Fulgêncio Simões quanto à sua afirmação relativa ao
dia da fundação de Alenquer, pois era de fato costume dos franciscanos darem às missões por
padroeiros o santo do dia em que as fundavam.
Quanto ao ano desse tão curial acontecimento,
forçoso é convir que o mais certo e provável é que
tenha se verificado antes de 1720 – ou seja, cerca
de uma década anterior a 1729, ano que os alenquerenses, confiando nos ensinamentos, embora
equivocados, do seu grande historiador, acreditam
ser o da fundação da sua querida cidade.
1
MUNIZ, João de Palma. Delimitação Óbidos-Alenquer. Belém: Oficinas Gráficas do Instituto Lauro Sodré, 1923, p. 5.
Idem, idem, p. 6.
3
SIMÕES, Fulgêncio Firmino. O Município de Alenquer – Seu desenvolvimento moral e material e seu futuro – Estudos históricos e geográficos. Belém: Tipografia, Editora e Livraria Loyola, 1908.
4
Cinquentenário da Prelazia de Santarém. Apontamentos publicados pela Cúria Prelatícia. Petrópolis/RJ: Vozes, 1953, p. 12.
5
SIMÕES, Fulgêncio Firmino. Op. cit., p. 14.
6
Cinquentenario da Prelazia de Santarém. Op. cit.,p. 44. MUNIZ, João de Palma. Op. cit., p. 7.
7
SIMÕES, Fulgêncio Firmino. Op. cit., p. 14.
8
Anais da Biblioteca e Arquivo Público do Pará. Tomo III, p. 303-304.
9
SIMÕES, Fulgêncio Firmino. Na introdução de sua obra já citada e datada de setembro de 1908, e, também, à p. 16.
10
Cinquentenário da Prelazia de Santarém. Op. cit., p. 44.
11
FRIKEL, Frei Protásio. A antiga Missão no Curuá – Santo Antônio. In Revista da Província Franciscana de Santo Antônio do
Brasil. Recife: 1943.
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