João Santa-Rita Arquitecto no atelier SANTA-RITA ARQUITECTOS O urbanismo em prol de uma melhor qualidade de vida 67 As cidades diferem muito na sua estrutura, na sua topografia, nas suas construções e finalmente nos seus espaços, naquilo em que a cidade é verdadeiramente percorrível e utilizável por todos quantos a habitam e visitam. As cidades são tanto mais marcantes e ricas quanto o carácter da cultura dos seus habitantes e, como tal, reflectem as diversidades culturais que presidiram à sua génese. Revelam ainda as diferentes geografias nas quais se inserem, bem como os motivos que originaram a sua fundação. O urbanismo é uma acção complexa, que lida com múltiplos condicionantes, aspectos e interesses, que procura incorporar os hábitos e costumes que caracterizam cada época e tempo, é um exercício que acima de tudo programa, estabelece princípios e antecipa realidades vindouras, cujo êxito depende do modo como esses aspectos são actualizados, tomados e interpretados na construção e na ocupação dos diversos locais. 68 Cities differ sharply in their structures, topography, buildings and, finally in their spaces, in that which in the city is truly able to be walked upon and usable by all who inhabit and visit it. Cities are all the more striking and rich as the character of the culture of their inhabitants and, as such, reflect the cultural diversities that have presided over their genesis. They also reveal the different geographies in which they are placed in, as well as the motives that gave origin to their foundation. Urbanism is a complex action dealing with multiples conditioning factors, aspects and interests, seeking to incorporate the habits and ways that characterize each era and time; it is an exercise that above all looks for programmes, establishes principles and anticipates realities to come, the success of which depends on the way those aspects are updated, taken in and interpreted in the construction and occupation of the diverse locations. N um filme de recente produção acerca da intervenção de Le Corbusier em Chandigarth, na Índia, Bernard Huet, crítico e arquitecto, comentava no mesmo que a cidade se revelava desinteressante porque nesta «tout se pareille». São escassas as cidades de fundação recente, sendo também curta a experiência de vivência das mesmas e, como tal, a sua crítica e análise fazem‑se naturalmente quase em simultâneo com o tempo da sua realização e da sua construção. As cidades diferem muito na sua estrutura, na sua topografia, nas suas construções e finalmente nos seus espaços, naquilo em que a cidade é verdadeiramente percorrível e utilizável por todos quantos a habitam e visitam. As cidades são tanto mais marcantes e ricas quanto o carácter da cultura dos seus habitantes e, como tal, reflectem as diversidades culturais que presidiram à sua génese. Revelam ainda as diferentes geografias nas quais se inserem, bem como os motivos que originaram a sua fundação. As cidades são, como tal, muito diversas oferecendo ambientes e qualidades singulares. As cidades, que hoje conhecemos e que possuem vida própria, são as grandes cidades, as que permanecem desde há séculos e milénios, as que sobreviveram às alterações políticas, sociais e económicas e ainda às tragédias e acidentes naturais, provando saber adaptar-se e ultrapassar os constrangimentos e obstáculos que ao longo dos tempos se interpuseram no desenrolar da sua história. Essas cidades vitoriosas souberam também consolidar e cativar habitantes, sedimentar e captar novos usos e riquezas, bem como modernizar-se de forma a acomodar as novas exigências. Será difícil pensar exigir-se mais a uma Cidade Histórica do que o esforço que representa a instalação sob o seu solo de uma qualquer Rede de Metropolitano. As cidades são tanto mais atractivas quanto oferecem diversos níveis e possibilidades de realização e de prazer os quais vão desde a oportunidade de trabalho, às actividades culturais, à oferta de conhecimento e aprendizagem, aos seus ambientes, valores patrimoniais e paisagem. O prazer e a qualidade de vida numa cidade mede-se e conquista-se de muitas formas e que implica com a sua estrutura e o modo como esta proporciona uma vivência mais ou menos enriquecedora. Resultando a felicidade de cada um porventura de uma complexa trama de relações para a qual concorre todo um conjunto de aspectos. Chandigarth poderá parecer uma cidade pouco estimulante, decorrente de um acto de Urbanismo Funcionalista, em que tudo está próximo e distante de acordo com a compartimentação da mesma em áreas com utilizações específicas, como a habitação, a indústria, o conhecimento, entre outros. No entanto, e apesar dessa leitura mais crítica, o filme revelava uma outra cidade na qual as suas qualidades pareciam residir no modo como os seus habitantes, de todas as idades criavam vivências e modos diversos de apropriação e de utilização dos seus espaços. Assim, transparecia no decorrer do filme a felicidade das crianças que brincavam nos espaços próximos das habitações, a vivacidade dos mercados e das áreas comerciais. Parecia que apesar da rigidez da Estrutura Urbana de Chandigarth, os seus habitantes tinham sabido sobrepor e transformar essa realidade em seu proveito e em favor das suas necessidades, bem como do seu modo de vida, humanizando‑a e conferindo-lhe o carácter e a intensidade de uma cidade do Oriente apesar de influenciada pela cultura do Ocidente. É certo que o urbanismo, enquanto disciplina, é coisa recente, sem esquecer contudo as experiências do passado, as idealizadas, as edificadas e o contributo de muitas culturas e civilizações, como seja o exemplo da civilização romana. O urbanismo é cada vez mais uma acção complexa que lida com múltiplas condicionantes, aspectos e interesses, a qual procura incorporar os hábitos e costumes que caracterizam cada época e tempo. Veja-se o caso recente da necessidade de implementação de ciclovias nas cidades, a qual estando ainda longe de ser concretizada já se vê confrontada com a eventualidade de criação de corredores para novos modos de transporte, como seja o caso do Segway. O homem é como tal uma fonte inesgotável de invenção, que informa e condiciona a estrutura das cidades. As cidades são realidades criadas pelo homem, proporcionando o seu relacionamento e a cons- 69 trução de hábitos comuns. Em cada momento procuram uma resposta aos problemas com os quais se deparam, projectando-se no futuro. Lisboa por exemplo é um patchwork que se foi consolidando e revelando ao longo do tempo. A minha experiência de habitar Lisboa é possivelmente idêntica à de tantos outros e revela o modo, como por detrás de tantas estruturas da cidade, se consolidam vivências e prazeres que se traduzem na qualidade do habitar. Habitei em diversos locais da cidade, quase sempre na procura da qualidade que ambicionava em cada momento – uma maior proximidade da história, uma maior proximidade do centro tradicional, uma maior proximidade do trabalho, etc. Esse facto atesta em si uma qualidade associada à diversidade de ambientes e de paisagens e dos usos que a cidade possibilita. Cresci na fronteira entre uma ocupação remota e uma área de expansão a seu tempo nova – a abertura da Avenida Infante Santo. Hoje compreendo como essas duas realidades da cidade, apesar de distintas no tempo de construção e na sua forma, proporcionavam no entanto qualidades muito similares. O urbanismo poderá ser uma acção mais ou menos participada e por isso poderá reflectir diferentemente as expectativas da sociedade, sobre um determinado local. Mas o urbanismo não deixa de ser um exercício que acima de tudo programa, estabelece princípios e antecipa realidades vindouras, cujo êxito depende do modo como esses aspectos são actualizados, tomados e interpretados na construção e ocupação dos diversos locais. A relação que poderá existir entre o urbanismo e o seu sucesso, enquanto realidade edificada, traduz-se na capacidade de produzir bem‑estar, no sentido mais abrangente do termo. A qualidade não parece ser tanto algo que se possa determinar mas antes algo para o qual se poderá caminhar através de estratégias de inclusão, de incorporação, ainda que de um novo modo, de valores, de hábitos e de tradições. O urbanismo deverá ser uma acção de abertura e não de selecção – é diferente afirmar isto vai ser assim, do que isto poderá vir a ser assim – e nesse sentido ser uma acção que tal como as cidades, incorpore os valores que se enunciam em cada tempo. O urbanismo tenderá a ser um exercício muito menos quantitativo e muito mais qualitativo. Significando tal que as quantidades se deverão estabelecer prioritariamente em função das necessidades e das qualidades desejadas para um local. A cidade tem por obrigação promover bem‑estar e qualidade, ou seja, possuir uma estrutura não importa qual, adaptada e adaptável. Cabe aqui lembrar como as construções dos conventos proporcionaram tantos usos e continuam a proporcionar transformando-se em excelentes museus, memoráveis pousadas, intensos locais de ensino, nobres sedes de instituições, etc. O urbanismo poderá ser um motor da qualidade, porquanto ao invés de uma apropriação mais espontânea do território guiada e editada muitas vezes pela necessidade do momento, contém a possibilidade da programação e da definição de estratégias de actuação, ou seja pode ser uma acção dinâmica e reformulável no tempo. A qualidade e o bem-estar estão de facto associados à estrutura da cidade e ao modo como esta poderá proporcionar e promover as diferentes acções que constituem e caracterizam os diferentes modos de habitar. O urbanismo poderá ser uma acção mais ou menos impositiva, autoritária, mas apesar disso não será menos potenciadora de qualidades (veja-se o caso de Paris do barão Haussman). Chandigarth é uma estrutura construída de raiz, para a qual Le Corbusier ambicionava certamente proporcionar uma determinada qualidade a todos quantos iriam habitar a cidade. Neste caso, como aliás em tantos outros, o urbanismo tende a ser uma entidade que controla a realidade, revelando simultaneamente o confronto existente entre o momento de pensar e o momento de habitar.