Considerações sobre a Posse Nominal em Wapichana Manoel Gomes dos Santos Departamento de Língua Vernácula -Universidade Federal de Roraima (UFRR) PG/Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) [email protected] Abstract. This paper aims at discussing the possession in Wapichana, based on the Nichols’s typological survey of alienable and inalienable possession. I present evidences that this language distinguishes alienable and inalienable possessions and it can be considered head-marked pattern. Alienable possession is marked by suffix, while inalienable possession isn’t marked. Keywords. possession; alienable and inalienable; indigenous language; Wapichana. Resumo. Este artigo objetiva investigar a posse em Wapichana, à luz da análise tipológica de posse alienável e inalienável, basicamente nos termos de Nichols (1986) e (1988). Apresento evidências de que essa língua faz a distinção entre posse alienável e posse inalienável e pode ser considerada como pertencendo ao padrão núcleo-marcado. A posse alienável é marcada por sufixo, enquanto a posse inalienável não é marcada. Palavras-chave. posse; alienável e inalienável; língua indígena; Wapichana. 1. Introdução O propósito principal deste trabalho é apresentar, basicamente nos termos de Nichols (1986) e (1988), uma análise preliminar das construções possessivas na língua Wapichana1. O estudo também considera informações já comprovadas em outras línguas pertencentes à mesma família dessa língua, tais como aquelas obtidas acerca da língua Arawak das Guianas ou Lokono (Patte, 2000) e acerca da língua Apurinã (Facundes, 2000). Os resultados da análise indicam que a língua Wapichana, como ocorre com as línguas Arawak em geral, exibe a distinção entre nomes de posse alienável e nomes de posse inalienável e pode ser considerada como pertencente ao padrão núcleo-marcado, uma vez que a marca de posse é localizada no núcleo (nome possuído) da construção possessiva e não no modificador ou dependente (possuidor). Assim, nomes alienáveis quando possuídos levam normalmente um sufixo marcador de posse; enquanto, os nomes inalienáveis ocorrem sem esse marcador. 2. Perspectiva teórica Conforme Nilchols (1986:56), as relações gramaticais em geral podem ser marcadas morfologicamente no constituinte nuclear (núcleo-marcado), no constituinte dependente (dependente-marcado), em ambos os constituintes (dupla-marca), ou, finalmente, não apresentar qualquer marca em nenhum dos dois constituintes. Outra possibilidade é que uma língua apresente um sistema cindido, de forma que, para alguns Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 539-544, 2005. [ 539 / 544 ] tipos de construção exiba o padrão núcleo-marcado e, para outros, o padrão dependentemarcado. Assim, as relações gramaticais de todas as línguas podem ser classificadas de acordo com sua tendência para o emprego de um desses tipos de marca. De acordo com a autora (ib id: 72), possivelmente, nenhuma língua exibe exclusivamente apenas um dos tipos. Entretanto, há algumas características que favorecem mais um tipo em detrimento de outro(s). Assim, no que tange à ordem dos constituintes da oração, a ordem verbo inicial (incluindo SVO como uma de suas variantes) favorece o padrão núcleo-marcado; enquanto a ordem verbo final favorece outros tipos (dependente-marcado, cindido, dupla-marca) que tenham forte tendência para o padrão dependente-marcado (ib id: 104). No que se refere ao vínculo sintático, nas relações dependente-marcado, o vínculo é bilateral, quer dizer, o núcleo requer o dependente e o dependente requer o núcleo. Na relação núcleo-marcado, por outro lado, há um vínculo unilateral, isto é, o dependente requer o núcleo, mas o núcleo pode ocorrer sozinho com a mesma referência, portanto, não requer o dependente. Assim, em línguas com consistente padrão núcleo-marcado em nível oracional, o verbo em si, regularmente, constitui uma sentença completa; de forma que NPs plenos são incluídos apenas por motivo de ênfase, foco, etc. (ib id: 107). No que tange às construções especificamente possessivas, isto é, NPs com significado possessivo, conforme Nichols (1988:558), tais construções exibem uma única e mesma estrutura, translingüisticamente, que é endocêntrica (o núcleo tem a mesma distribuição que a construção integral) e envolve um nome possuído como núcleo e um possuidor (nome ou pronome) como modificador ou dependente desse núcleo. Do ponto de vista da estrutura, a autora entende que a identificação do lugar ocupado pelo marcador de posse constitui um parâmetro suficiente para que se determine a distribuição das oposições alienável/inalienável. Assim, sua abordagem é preferencialmente formal, antes que semântica. Conforme Nichols (1988:568), do ponto de vista semântico, a posse alienável é direito de propriedade adquirido social e economicamente, enquanto a posse inalienável é inata, inerente, não adquirida. Todavia, a noção de inalienabilidade não é semanticamente uniforme, mas varia de língua para língua (certos objetos considerados inalienáveis em uma cultura não o são em outra), fato que aponta o caminho formal como um terreno mais firme, pois, deste ponto de vista, inalienável rotula um conjunto limitado de nomes com marca de posse obrigatória. Deste ângulo, há apenas dois lugares em que se pode situar o marcador de posse: no núcleo (possuído), caso em que, normalmente, ocorre em forma de afixo possessivo e constitui o padrão núcleo-marcado, ou no nome ou pronome dependente (possuidor), caso em que tipicamente ocorre em forma de um caso chamado genitivo ou possessivo e constitui o padrão dependente-marcado. Além desses dois padrões, as línguas podem exibir mais outros três: duplamarca, em que ambos os membros da construção portam marcadores; outro em que nenhum dos membros é marcado e, finalmente, o sistema cindido, que exibe tanto o padrão núcleo-marcado quanto o padrão dependente-marcado. 3. Relações de posse em Wapichana: padrão núcleo-marcado Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 539-544, 2005. [ 540 / 544 ] Considerando como parâmetro a identificação do lugar onde ocorre o marcador de posse, como o faz Nichols (1988:558), pode-se classificar o Wapichana como uma língua do tipo núcleo-marcado, uma vez que essa língua exibe a marca de posse no núcleo da construção possessiva, como se pode observar nos exemplos2 de (1) abaixo: (1) yryy sumara-n ‘arco dele’ 3sgm arco-POSS Em (1), portanto, a marca de posse, o sufixo –n, é localizada no constituinte possuído sumara ‘arco’ e o constituinte dependente yryy ‘ele’ não apresenta qualquer marcador. Outros aspectos apontam esse fato. Assim, no que tange à ordem dos constituintes de sentença simples declarativa, essa língua exibe regularmente a seqüência SVO, logo, uma das variantes da ordem verbo inicial que, conforme Nichols (1986:104), caracteriza o padrão núcleo-marcado. Os exemplos de (2) abaixo ilustram isso: (2) a. inhawyz kubaw-y-p-a-n kupay-nau ‘o irmão estava pescando peixes’ irmão anzol-?-CON-EP-MR peixe-PL b. chapi’ik y-tykap-a-zu-n zyn ‘cedo ele queria ver a mulher’ cedo 3sgm-ver-EP-DES-MR mulher Em (2a), a sentença apresenta verbo e argumentos como constituintes isolados; (2b) ilustra sentença cujo sujeito ocorre em forma de prefixo; em ambas, a ordem é SVO. Também, com relação ao vínculo sintático, o Wapichana comporta-se como uma língua de padrão núcleo-marcado, revelado pela unilateralidade da construção: o dependente requer o núcleo, mas o núcleo não requer o dependente, de forma que, em nível de sentença, o núcleo verbal pode prescindir dos NPs plenos, como atesta o exemplo de (3): (3) a. daunaiur tyk-p-a-n wyrada homem ver-CON-EP-MR jaboti b. yryy tyk-p-a-n yryy 3sgm ver-CON-EP-MR 3sgm ‘o homem está vendo o jaboti’ ‘ele o está vendo’ O verbo núcleo da construção de (3b) pode ocorrer só com a mesma referência da construção integral, conforme se pode verificar na construção correspondente (4): (4) a. y-tyk-p-a-n-yz 3sgm-ver-COM-EP-MR-3sgm b. *yryy yryy /*yryy -yz /*y- -yz ‘ele o está vendo’ Em (4a), sujeito e objeto assumem as formas de afixo verbal, assim, o conteúdo referencial da construção de (3b), formada de constituintes isolados, é expresso em apenas uma palavra verbal. Já a omissão do constituinte nuclear verbal não é permitida, como demonstrado por (4b). 4. Construção possessiva Consoante Nichols (1988:558), construção possessiva é aquela que apresenta significado de posse e é constituída de um nome possuído (núcleo) e um nome ou pronome possuidor (modificador ou dependente). Os exemplos do Wapichana em (5), abaixo, ilustram esse fato: Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 539-544, 2005. [ 541 / 544 ] (5) a. pygar kamich-a-n ‘tua roupa’ 2sg camisa-EP-POSS b. atury daku ‘boca do jacaré’ jacaré boca Em (5a) e (5b), as palavras iniciais das construções, pygar ‘tu’ e atury ‘jacaré’ são os constituintes possuidores (dependentes); as palavras à direita, kamichan ‘camisa’ e daku ‘boca’ são os constituintes possuídos (núcleos) das respectivas construções possessivas. 5. Categorias de posse Como ocorre com as línguas Arawak em geral, o Wapichana também exibe a distinção entre nomes alienavelmente possuídos e nomes inalienavelmente possuídos. Na subseção (5.1) analiso os nomes alienavelmente possuídos e, na seguinte (5.2), os nomes inalienavelmente possuídos. 5.1. Nomes alienáveis Do ponto de vista semântico, os nomes alienáveis do Wapichana fazem referência à maior parte dos objetos e utensílios, animais e vegetais. Do ponto de vista da estrutura, esses nomes, quando não possuídos não apresentam qualquer marca e, quando possuídos, exibem um sufixo caracterizador de posse. Fato semelhante foi observado por Patte (2000:27) em relação a construções de posse na língua Lokono (ou Arawak das Guianas). Nesta língua, entretanto, há um único sufixo -n que marca a posse, conforme essa autora. Em Wapichana o estágio atual dos estudos ainda não permite registrar com precisão o número de sufixos marcadores de posse, mas, além do sufixo –n, há pelo menos mais um sufixo –t, como demonstram os exemplos a seguir: (6) a. baru b. y-baru-n / yryy baru-n 3sgm-machado-POSS 3sgm machado-POSS c. daunaiura baru-n homem machado-POSS ‘machado’ ‘machado dele’ (7) a. baydukury b. y-baydukury-t 3sgm-onça-POSS ‘onça’ ‘onça dele’ ‘o machado do homem’ (8) a. syyz ‘banana’ b. py-syyz-y-n / pygary syyz-y-n ‘tua banana’ 2sg-banana-EP-POSS 2sg banana-EP-POSS c. py-syyz-y-n-bau ii kainha’ irib uraianta 2sg-banana-EP-POSS-COL em ter muito banana-rocha ‘no teu bananal tem muita banana-rocha’ Nos exemplos de (6a), (7a) e (8a) são apresentadas formas não possuídas de nomes alienáveis representativos, respectivamente, de objetos (baru ‘machado’), animais (baydukury ‘onça’) e vegetais (syyz ‘banana’). (6b), (7b), (8b), (6c) e (8c) ilustram as formas possuídas desses mesmos nomes, como demonstram as presenças dos sufixos marcadores de posse: –n, agregado às bases nominais de (6b-c), (8b-c); e –t, agregado à base nominal de (7b). Nos exemplos de (6b), (7b) e (8b), o possuidor é representado por Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 539-544, 2005. [ 542 / 544 ] formas pronominais dependentes (prefixos) e independentes; e, nos exemplos de (6c) e (8c), por nominais. 5.2. Nomes inalienáveis Do ponto de vista semântico, os nomes inalienáveis do Wapichna fazem referência a partes do corpo, a termos de parentesco e a alguns objetos culturais. No que diz respeito ao aspecto formal, quando não apresentam um possuidor especificado, a maioria dos nomes referentes a partes do corpo, parte dos termos de parentesco e alguns objetos culturais são marcados pelo sufixo –i, que é chamado por alguns autores de absoluto; neste trabalho, entretanto, sigo Facundes (2000:156), glosando tal sufixo como NPOSS (não possuído) e o nome inalienável como ‘N of’ (nome de) para indicar sua inalienabilidade lexicalmente inerente. Quando os nomes inalienáveis trazem explícito um possuidor, não apresentam um sufixo marcador de posse, como ilustrado abaixo: (9) a. idib-e-i nariz de-EP-NPOSS b. u-idib / ruu idib 3sgf-nariz de 3sgf nariz c. zyn idib mulher nariz de ‘nariz’ ‘nariz dela’ ‘o nariz da mulher’ (10) a. dary-i ‘pai’ pai de-NPOSS b. un-dary de / ungary dary ‘meu pai’ 1sg-pai de 1sg pai de c. kuraidiaunaa dukubat pa-dary ‘a criança agarrou-se ao pai’ criança agarrar REFL/POSS-pai de (11) a. bairi-i ‘flecha’ flecha de-NPOSS b. un-kunaynam-d-a-n un-bairi xakuu kytyb id 1sg-enfeitar-TRAS-EP-MR 1sg-flecha de arara-canindé asa de ‘enfeitei minha flecha com penas de arara-canindé’ c. zyn kyzy-a-n bairi-i mulher furar-EP-MR flecha de-NPOSS ‘a mulher furou a flecha’ (9a), (10a) e (11a) ilustram nomes inalienáveis sem possuidores explícitos representativos, respectivamente, de partes do corpo (idibei ‘nariz de’), termos de parentesco (daryi ‘pai de’) e objetos culturais (bairii ‘flecha de’), como comprovado pela presença do sufixo ‘não possuído’. (9b-c), (10b-c) e (11b-c) exemplificam esses mesmos nomes em construções com possuidores explícitos, razão pela qual as formas nominais aparecem despidas do sufixo absoluto. Os exemplos de (9b), (10b) e (11b) trazem possuidores representados por formas pronominais dependentes ou independentes; enquanto os de (9c) e (10c) apresentam possuidores nominais. Finalmente, (11c) ilustra o nome inalienável bairii ‘flecha de’ sem possuidor explícito no interior de uma sentença, motivo por que recebe o sufixo não possuído. Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 539-544, 2005. [ 543 / 544 ] 6. Considerações finais O trabalho demonstra que o Wapichana é uma língua do tipo núcleo-marcado. Três características dessa língua asseguram esse fato: a ordem dos constituintes da sentença, que é do tipo verbo inicial; sua unilateralidade em termos de vínculo sintático e, fundamentalmente, o fato de exibir a marca de posse no núcleo da construção possessiva. Todavia, o estágio atual dos estudos acerca da estrutura dessa língua ainda não permite uma análise mais sistemática do fenômeno da posse. Notas 1 A língua Wapichana pertence à família Arawak (Rodrigues, 1986: 69) e é falada pelo grupo étnico de mesmo nome. A população Wapichana é estimada entre dez e onze mil indígenas que habitam o Estado de Roraima e a República Cooperativa da Guiana (Farage, 1997: 18). 2 O Wapichana exibe as seguintes consoantes: p, b, t, d, k, s, z, ch, x, r, m, n, nh, w, ‘. “ch” corresponde a /tS/; “x” corresponde a /S/; “nh” corresponde a /¯/ e o apóstrofo “ ‘ “ corresponde a ///. As vogais são as seguintes: a, e, i, u, y. “y” corresponde a /ˆ/. As seguintes abreviaturas são usadas neste trabalho: COL: coletivo, CON: contínuo; DES: desiderativo; EP: epentético; MR: modo real; NPOSS: não possuído POSS: possuído; 1sg, 2sg, 3sgm, 3sgf correspondem respectivamente à seguintes pessoas: a primeira, segunda, terceira do singular masculino e terceira do singular feminino; PL: plural; REFL/POSS: reflexivo possessivo; TRAN: transitivizador. 7. Referências bibliográficas FACUNDES, S. da Silva. The Language of the Apurinã People of Brazil (Maipure/Arawak). 2000. 693 f. Tese (Doctor of Philosophy) –Department of Linguistics, University of New York at Buffalo, Buffalo. FARAGE, N. As Flores da Fala: Práticas Retóricas entre os Wapishana. 1997. 143 f. Tese (Doutorado na Área Estudos Comparativos em Literaturas de Língua Portuguesa) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo. NICHOLS, Johana. Head-marking and dependent-marking grammar. Language, Baltimore, v.62, n.1, p.56-119, mar.1986. _____. On alienable and inalienable possession. In: SHIPLEY, William (org.). In Honor of Mary Haas – From the Haas Festival Conference on Native American Linguistics. Berlin: Mounton de Gruiter, 1988. p.557-609. PATTE, Marie-France. –n, localisateur general dans la langue arawak des Guyanes. Ameríndia, v.25, p.25-47, 2000. RODRIGUES, A. Dall’igna. Línguas Brasileiras – para o conhecimento das línguas indígenas. São Paulo: Edições Loyola, 1986. Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 539-544, 2005. [ 544 / 544 ]