VOLUME NÚMERO 7 2 ISSN 1981-9862 www.revistaagendasocial.com.br O MIGRANTE NA REESTRUTURAÇÃO DO MERCADO DE TRABALHO NA ZONA DA PRODUÇÃO PRINCIPAL DA BACIA DE CAMPOS FERNANDES, Joseane (UENF); TERRA, Denise (UENF); CAMPOS, Mauro (UENF). CONSIDERAÇÕES SOBRE A APLICAÇÃO DOS ROYALTIES DO PETRÓLEO NO BRASIL FRANKENFELD, Karoline (UERJ); SILVA, Elmo (UERJ); MATTOS, Ubirajara (UERJ). A ESCOLA PÚBLICA BRASILEIRA: DIVERSIDADE E AUTONOMIA. SILVA, Wanderley da (UFFRJ). POLÍTICAS PÚBLICAS EDUCACIONAIS E EDUCAÇÃO INTEGRAL NO CONTEXTO DA GLOBALIZAÇÃO NEOLIBERAL. SANTOS, Fernanda Marsaro dos (UCB). O PAPEL DAS INSTITUIÇÕES NO DESENVOLVIMENTO E O RESGATE DA POLÍTICA NAS POLÍTICAS PÚBLICAS. KARAM, Ricardo (UFRJ). O MOVIMENTO AMBIENTAL E O PODER DA COMUNICAÇÃO NA SOCIEDADE EM REDE: ANÁLISE DO INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL ALMEIDA, Mariana (UFABC); SILVEIRA, Sérgio (UFABC). UMA ANÁLISE DA INCLUSÃO DE ATIVIDADES FÍSICAS PROGRAMADAS NA POLÍTICA PÚBLICA DE SAÚDE *19819862* RAMSAUER, Eduardo (UNIVALI); ; REIS, Maria José (UNIVALI e UFSC); JOHNSON, Guilhermo (UFGD). Passeio de sombrinhas: poéticas urbanas, subjetividades contemporâneas e modos de estar na cidade. AZEVEDO, Maria Thereza (UFMT). JOVENS: NOVOS SUJEITOS DE DIREITO. BADARÓ, Lúbia (UFF). INOVAÇÃO E ESTRUTURA DE GOVERNANÇA EM AGLOMERADO TERRITORIAL: O CASO DA PRODUÇÃO ARTESANAL DE BORDADO EM PASSIRA - PE. SILVA, Gleiciane (UFRPE)); XAVIER, Maria Gilca (UFRPE). SOBRE A POSSIBILIDADE DE ATIVIDADES EDUCATIVAS DE CARÁTER EMANCIPADOR SOUZA, Iael (UFPI). TRABALHO FLEXÍVEL E METRÓPOLE CONTEMPORÂNEA: JUVENTUDE E A RESSIGNIFICAÇÃO DA IDENTIDADE OPERÁRIA ARAÚJO, Renan (UEPR). SOBRE A REVIStA Revista semestral interdisciplinar voltada para a publicação de artigos científicos que contemplem as seguintes áreas: 1. Estado, Trabalho, Sociedade e Território; 2.MeioAmbiente,EstratégiasdeApropriaçãoeConflitos; 3. Política, Cultura e Conhecimento; 4. Educação, Política e Cidadania. A EQUIPE EdItORES SÊNIORS ediTOr-CHefe Dr. Geraldo Márcio Timóteo, UENF EdItORES Dra. Keila Pinezi, UFABC Dr. Casimiro Balsa, UNL - Portugal Dra. Silvia Alicia Martinez, UENF Dra. Jussara Freire, UFF Campos Dra. Simonne Texeira, UENF Dra. Teresa Peixota Faria, UENF EdItORES dE SEçãO Dra. Lilian Cezar Ságio, UENF Dr. Fernando J. Remedi, Universidad Nacional de Córdoba, Argentina Dr. Rodrigo da Costa Caetano, UENF Dr. José Carlos Oliveira, UFRJ Dra. Silvia Alicia Martinez, UENF Dra Lucilia Regina De Souza Machado, UNA Dr. Giovane do Nascimento, UENF Dr. Marcos Antonio Pedlowski, UENF Dra. Marília Ramos, UFRGS Dra. Sonia Nogueira, UENF Dr. Sérgio Arruda de Moura, UENF Dr. Luiz de Pinedo, IFF Dr. Gil Sevalho Dra. Keila Pinezi, UFABC - Brasil Dr. Leandro Garcia Pinho, UENF Dr. Carlos Augusto Silva, UFRJ Dr. Marcos Vinicius Pó, UFABC Dra. Maria Gabriela M S C Marinho, UFABC Dr. Renan Bandeirante Araújo, Unespar/Campus Paranavaí Dr. Mauro Macedo Campos, UENF Dra. Marilda Menezes, Incluir Dr. Donizete Rodrigues, Incluir EdItORES JUNIORS EdItORES dE LAYOUt MSc.TeófiloAugustodaSilva,UNIFLU Carolina Viana, UENF Nicole Manhães Azeredo Pires, UENF / IFF, Brasil EdItORES dE tEXtO MSc. Anna Beatriz Esser, UFRJ - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil Demian Sousa Costa e Silva, UENF, Brasil MSc. Cristiano Ferreira, UENF e UFFRJ Licença Creative Commons este trabalho está licenciado sob uma Licença Creative Commons attribution 3.0 . Todos os artigos publicados nesta revista foram enviados por seus autores que concordaram com os termos e os adequaram as normas da publicação. Todos os textos foram avaliados por membros da comissão da revista e entendidos como aptos à publicação. Toda a cópia do material deve ter como referência o conteúdo desta publicação. INStItUIçÕES ENVOLVIdAS Programas de Pós Graduação em Políticas Sociais da Universidade Estadual do Norte fluminense darcy ribeiro (Uenf) Programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas e sociais da Universidade federal do aBC (UfaBC) Programa de Pós-Graduação em desenvolvimento, sociedade e Cooperação Internacional da Universidade Nacional de Brasília (UnB). Programa de Pós-graduação em desenho: Mestrado em desenho, Cultura e Interatividade, da Universidade Estadual de feira de santana-Ba (Uefs) aBOUT THe JOUrnaL Revista semestral interdisciplinar voltada para a publicação de artigos científicos que contemplem as seguintes áreas: 1. Estado, Trabalho, Sociedade e Território; 2.MeioAmbiente,EstratégiasdeApropriaçãoeConflitos; 3. Política, Cultura e Conhecimento; 4. Educação, Política e Cidadania. a eQUiPe -THe sTaff SENIORS EdItOR CHief-ediTOr Dr. Geraldo Márcio Timóteo, UENF EdItOR Dra. Keila Pinezi, UFABC Dr. Casimiro Balsa, UNL - Portugal Dra. Silvia Alicia Martinez, UENF Dra. Jussara Freire, UFF Campos Dra. Simonne Texeira, UENF Dra. Teresa Peixota Faria, UENF seCTiOn ediTOr Dra. Lilian Cezar Ságio, UENF Dr. Fernando J. Remedi, Universidad Nacional de Córdoba, Argentina Dr. Rodrigo da Costa Caetano, UENF Dr. José Carlos Oliveira, UFRJ Dra. Silvia Alicia Martinez, UENF Dra Lucilia Regina De Souza Machado, UNA Dr. Giovane do Nascimento, UENF Dr. Marcos Antonio Pedlowski, UENF Dra. Marília Ramos, UFRGS Dra. Sonia Nogueira, UENF Dr. Sérgio Arruda de Moura, UENF Dr. Luiz de Pinedo, IFF Dr. Gil Sevalho Dra. Keila Pinezi, UFABC - Brasil Dr. Leandro Garcia Pinho, UENF Dr. Carlos Augusto Silva, UFRJ Dr. Marcos Vinicius Pó, UFABC Dra. Maria Gabriela M S C Marinho, UFABC Dr. Renan Bandeirante Araújo, Unespar/Campus Paranavaí Dr. Mauro Macedo Campos, UENF Dra. Marilda Menezes, Incluir Dr. Donizete Rodrigues, Incluir JUNIORS EdItORS LAYOUt EdItOR MSc.TeófiloAugustodaSilva,UNIFLU Carolina Viana, UENF Nicole Manhães Azeredo Pires, UENF / IFF, Brasil tEXt EdItOR MSc. Anna Beatriz Esser, UFRJ - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil Demian Sousa Costa e Silva, UENF, Brasil MSc. Cristiano Ferreira, UENF e UFFRJ Licença Creative Commons este trabalho está licenciado sob uma Licença Creative Commons attribution 3.0 . Todos os artigos publicados nesta revista foram enviados por seus autores que concordaram com os termos e os adequaram as normas da publicação. Todos os textos foram avaliados por membros da comissão da revista e entendidos como aptos à publicação. Toda a cópia do material deve ter como referência o conteúdo desta publicação. sTaKeHOLders insTiTUCiOns Programas de Pós Graduação em Políticas Sociais da Universidade Estadual do Norte fluminense darcy ribeiro (Uenf) Programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas e sociais da Universidade federal do aBC (UfaBC) Programa de Pós-Graduação em desenvolvimento, sociedade e Cooperação Internacional da Universidade Nacional de Brasília (UnB). Programa de Pós-graduação em desenho: Mestrado em desenho, Cultura e Interatividade, da Universidade Estadual de feira de santana-Ba (Uefs) POLÍTiCas de PUBLiCaçÃO A Agenda Social publica artigos nos idiomas Português, Espanhol, Inglês e Francês. Os artigos em português deverão vir acompanhados de um resumo em português e de um abstract. O artigo submetido em qualquer outro idioma deverá apresentar um resumo na língua original e outro em português. • Preparação dos originais - Os artigos deverão ter, no máximo, 20 páginas em formato A4, incluindo desenhos, figuras, tabelas, fotos, notas e referências bibliográficas. Figuras, desenhos, tabelas e fotos deverão inserir cabeçalho (se for o caso), créditos e legendas. Se as ilustrações enviadas já tiverem sido publicadas, mencionar a fonte e a permissão para reprodução. Se forem utilizadas fotos com pessoas, mesmo não identificadas, devem vir acompanhadas da permissão por escrito das pessoas fotografadas. No caso de crianças ou adolescentes, suas fotos deverão estar acompanhadas da autorização dos pais ou responsáveis. As resenhas críticas e entrevistas deverão ter, no máximo, cinco páginas em formato A-4. Os trabalhos enviados deverão estar rigorosamente revisados, conforme as normas gramaticais vigentes. O parecer sobre a aceitação ou não dos artigos será comunicado aos autores. Excepcionalmente serão aceitos trabalhos já publicados (seja em versão impressa ou virtual), desde que devidamente autorizados pelo autor e pelo Conselho Diretor do veículo em que o trabalho tenha sido originalmente publicado. As opiniões e conceitos emitidos nos artigos, bem como a exatidão, adequação e procedência das citações e referências, são de exclusiva responsabilidade dos/as autores/ as, não refletindo necessariamente a posição do Conselho Editorial Executivo. A Agenda Social não remunera os(as) autores(as) que tenham seus artigos nela publicados. Agenda Social utiliza-se da avaliação do tipo Duplo Cego. Padrão de apresentação: Os trabalhos devem seguir os critérios da Associação Brasileira de Normas Técnicas-ABNT, que, durante a editoração, serão adaptados ao projeto e ao formato editorial do periódico Agenda Social. Para autores estrangeiros é permitido o uso das normas da American Psychological Association-APA, que, na editoração, serão convertidas à ABNT. Os trabalhos devem ser, exclusivamente, enviados por meio do site: www.revistaagendasocial. com.br. Deve ser utilizado o Editor Word for Windows, seguindo a configuração: fonte Times New Roman tamanho 12, papel tamanho A-4, espaço interlinear de 1,5 cm, margens esquerda e superior de 3 cm e direita e inferior de 2 cm. Todas as folhas devem ser numeradas na margem superior direita, excetuando a primeira página embora esta deva ser contabilizada como página nº 1. PUBLiCaTiOn POLiTiCs Agenda Social publishes articles in Portuguese, Spanish, English and French. Articles in Portuguese should be accompanied by an abstract in Portuguese and English. The article submitted in any other language must present an abstract in the original language and in Portuguese. • Preparation of documents - Articles should be no more than 20 pages in a format A4, including drawings, figures, tables, photos, notes and references. Figures, drawings, tables and photographs should insert a running head (if it is the case), credits and captions. If illustrations submitted have been already published, it’s important to mention the source and permission for reproduction. If photos with people, even if not identified are used, they must be accompanied by the written permission of the people photographed. In the case of children or teenagers, your photos should be accompanied by parents or guardians permission. The critical reviews and interviews should take no more than five pages in A4 format. The articles submitted must be rigorously reviewed, according to current grammatical rules. The acceptance or rejection of articles will be communicated to authors. Exceptionally will be accepted articles already published (whether printed or virtual version), duly authorized by the author and by the board of the institution in which the work was originally published. The opinions and concepts expressed in the articles, as well as the accuracy, adequacy and correctness of quotes and citations are the sole responsibility of the authors and do not n reflect the position of the Executive Editorial Board of Agenda Social. Agenda Social does not pay the authors that have their articles published. Agenda Social uses Double-Blind evaluation. Standard for submission: Papers must follow the criteria of Associação Brasileira de Normas Técnicas-ABNT, that during editing, will be adapted to the design and editorial format of Agenda Social. Foreign authors are authorized to use the standards of the American Psychological Association-APA, that in publishing, will be converted to ABNT. Entries must be exclusively sent by the website: www.revistaagendasocial.com.br. It must be in Word for Windows, with the following configuration: Times New Roman size 12, A4 size paper, interlinear space of 1.5 cm, left and top margins of 3 cm and inferior and tight margins of 2 cm. All sheets must be numbered in the upper right margin, except the first page, but this should be counted as page number 1. Agenda Social ELETRONIC JOURNAL VOLUME NÚMERO 7 2 ISSN 1981-9862 www.revistaagendasocial.com.br EdItORIAL Com as boas-vindas aos leitores que prestigiam esta versão da Revista Agenda Social em seu sétimo ano. Esta edição, particularmente, inaugura novas linhas estéticas tanto para a versão completa em PDF, que passamos a disponibilizar ainda no Volume 6, Número 1, quanto mudanças no layout do site. A revista passa a ser semestral, com doze artigos por número, dois números por volume, por ano, aberta, ainda, a números especiais temáticos, em edição extra. Cabe reforçar que o recebimento dos trabalhos a serem analisados é aberta permanentemente, requerendo, apenas, o cadastramento como autor no site da revista. O primeiro artigo, “O migrante na reestruturação do mercado de trabalho na zona da produção principal da bacia de campos”, escrito por joseane de souza fernandes; denise cunha tavares terra e mauro macedo campos, apresenta um estudo sobre a região norte-fluminense, que desde sua entrada no mercado da produção do petróleo em larga escala sofreu mudanças sociais, ambientais e culturais, principalmente se tomarmos em conta o papel que a migração tomou neste impacto. A atividade petrolífera após o início da exploração da região do Pré-sal, exigiu trabalhadores mais qualificados e esta demanda é suprida pela migração. No artigo “Considerações sobre a aplicação dos royalties do petróleo no Brasil”, os autores Karoline Pinheiro Frankenfeld, Elmo Rodrigues da Silva e Ubirajara Aluizio Mattos, dão sequência à temática de estudos em torno da exploração do petróleo, discutindo o caso dos royalties e sua conversão em apoio ao desenvolvimento estrutural nos municípios arrecadadores. Os autores chamam, ainda, a atenção para o fato de que não há uma estatística determinada para relacionar o pagamento dos royalties e o IDH dos municípios afetados, clamando, portanto, por uma aplicação destes pagamentos em melhorias sociais. Wanderley Silva apresente em “A escola pública brasileira: diversidade e autonomia” uma mudança sentida e apresentada pela educação básica no Brasil com relação ao público alvo ue crescentemente visualiza a entrada e manutenção de crianças provenientes das camadas menos abastadas. Estas, de acordo com Wanderley, eram afastadas de maneira direta ou indireta dos bancos escolares. Apesar da entrada cada vez maior destas crianças, a educação, que já passa por anos de abandono e descaso, não consegue se adaptar às necessidades e características deste público, resultando em baixos desempenhos destas escolas em exames de avaliação. O autor coloca, então, que é necessário para o respeito à diversidade, uma mudança curricular e na forma de avaliação destes desempenhos individuais e de grupo dentro das escolas da educação básica no Brasil. No quarto artigo, temos a continuação da temática da educação como política social. Fernanda Marsaro dos Santos pretende no texto “Políticas públicas educacionais e educação integral no contexto da globalização neoliberal” discutir as implicações de ideias liberais no processo educacional frente as exigências da globalização, resultando em obstáculos ao próprio crescimento e desenvolvimento brasileiro, uma vez que a escola é falha em criar alunos críticos, capazes de pensar sobre seu papel no mundo em que vivem. O principal objeto de estudo deste artigo é o programa “Mais Educação” do Governo Federal que tem como objetivo capacitar de maneira multidisciplinar os alunos da educação fundamental e media colocando a escola à disposição da sociedade oferecendo suporte integral, buscando desenvolver habilidades e competências diferentes daquela exigida pela escolar tradicional no contra turno. A questão neoliberal retorna com o artigo de Ricardo Antônio de Souza Karam (“O papel das instituições no desenvolvimento e o resgate da política nas políticas públicas”). O autor afirma que as políticas neoliberais estão esgotadas e por isso o debate acadêmico procura resgatar o papel das instituições no desenvolvimento de um país, e, assim, influenciando a própria questão do desenvolvimento por ideias sobre a natureza das instituições e seu aspecto histórico-social na concepção da própria sociedade brasileira. Mariana Eunice Alves de Almeida e Sérgio Amadeu da Silveira, em seu artigo, apresenta reflexões sobre o uso dos meios de comunicação, em especial a Internet, e sua contribuição para os movimentos ambientais na atualidade. A partir da perspectiva de Manuel Castells o texto discute as potencialidades e o poder dos meios de comunicação para divulgação e persuasão do tema ambiental na sociedade contemporânea. É feita uma análise do site do Instituto Socioambiental, organização não-governamental que atua na defesa de bens e direitos sociais e ambientais. Entende-se que os movimentos sociais em geral, e o ambiental, em particular, potencializam o alcance de seus objetivos por meio da comunicação de seus valores. Na teorização de Castells, o poder da comunicação está na transformação das mentes das pessoas. Gleiciane teodoro da silva e maria gilca pinto xavier desenvolvem em “Inovação e estrutura de governança em aglomerado territorial: o caso da produção artesanal de bordado em passira-pe” um estudo sobre a produção de artesanato de bordado manual na cidade de passira, levando em consideração as transformações causadas pelo incentivo à capacitação e o trabalho cooperativo, elevando a produção e a capacidade de venda. Por meio de entrevistas e observações os autores foram capazes de analisar dados qualitativos e quantitativos, sendo estes últimos interpretados por meio do programa SPSS. O artigo “JOVENS: novos sujeitos de direitos” da autora, Lúbia Badaró, procura refletir a respeito da Política Nacional de Juventude, que surgiu após o Estatuto da Criança e do Adolescente e passou a garantir direitos aos jovens de 15 a 29 anos. Ao promover uma apreciação sobre o processo de construção de uma Política de Juventude, foi traçado um pequeno percurso histórico para entender como se deu o atendimento infanto-juvenil antes das leis que hoje lhes garantem direitos. Foram ressaltados os fatores que fizeram os jovens com maioridade penal terem sido alijados do Estatuto da Criança e do Adolescente e quais os propulsores da elaboração, mais tarde, de uma legislação exclusiva para a juventude. Discutiu-se, ainda, o formato institucional adquirido pela Política da Juventude. Eduardo Ramsauer, Maria José Reis e Guilhermo Alfredo Johnson abordam em “Uma análise da inclusão de atividades físicas programadas na política pública de saúde” como seria possível dentro do Sistema Único de Saúde (SUS) a implantação de atividades físicas como medidas preventivas de doenças e limitações físicas promovidas pelo envelhecimento do corpo. Frente a uma aprovação geral dos entrevistados quanto ao papel do educador físico nestes Núcleos de Saúde Integral (postos de atendimento preventivos e remediadores), os autores discutem as possibilidades de modificação das políticas públicas para desenvolvimento de outros centros como os apresentados em outras regiões brasileiras. Iael souza, “Sobre a possibilidade de atividades educativas de caráter emancipador”, um texto centrado em discussões ontológicas sobre a educação e sua relação com a autoconstrução humana, apresenta uma leitura reflexiva sobre esta formação humana e a perspectiva do trabalho contra a do capital. E em “Passeio de sombrinhas: poéticas urbanas, subjetividades contemporâneas e modos de estar na cidade” de Maria Thereza Azevedo parte de uma ação do Coletivo à deriva da UFMT e dos escritos de Deleuze e Guattari para refletir sobre subjetivação e singularização engendradas por ações e intervenções artísticas. Finalmente, em “Trabalho Flexível e Metrópole Contemporânea: Juventude e a A Ressignificação Da Identidade Operária” de Renan Araújo retoma a questão do jovem dentro do espectro da influência na produção operária após processo de reestruturação produtiva desencadeada na região do ABC paulista a partir de 1992, produzindo um novo contexto cultural. A extensão das temáticas dos artigos aqui publicados é um exemplo claro do acerto em apostarmos em leitura interdisciplinar da realidade social. As matrizes teóricas utilizadas permitem vislumbrarmos um mundo mais complexo, mais dinâmico, mais interconectado que para ser compreendido requer de nós a abertura a novos e mais precisos argumentos que só poderão ser construídos à medida em que nossa percepção ultrapassar a fina linha que divide o saber entre ortodoxo e heterodoxo; avançado de retrogrado; autômato de autônomo; entre pseudos entendimentos e entendimentos capazes de nos auxiliar de fato a agirmos no mundo. Essa busca não tem mapa, nem verdades absolutas, mas, fatalmente, não se fará sem a publicação dos resultados encontrados pelos nosso pesquisadores. Assim, a Revista Agenda Social espera poder estar contribuindo para realizar, o ainda precário, movimento de divulgação científica no Brasil. Tenham uma ótima leitura! Teófilo Augusto da Silva Editor-Júnior Chefe da Equipe de Layout SOBRENOME, Nome; SOBRENOME, Nome; SOBRENOME, Nome. Agenda Social ELETRONIC JOURNAL VOLUME NÚMERO 7 2 ISSN 1981-9862 www.revistaagendasocial.com.br O MiGranTe na reesTrUTUraçÃO dO MerCadO de TraBaLHO na ZOna da PrOdUçÃO PrinCiPaL da BaCia de CaMPOs The migrant role in the restructuring of the labour market of the production chief area in Basin of Campos. fernandes, Joseane de souza (1); Terra, denise Cunha Tavares (2); CaMPOs, Mauro Macedo (3). 1.DoutoraemDemografiapeloCedeplar/UFMG.ProfessoraAssociadadaUENF(josouza_bh@hotmail. com).2.DoutoraemGeografiapelaUFRJ.ProfessoraAssociadadaUENF([email protected]). 3.DoutoremCiênciaPolíticapeloDCP/UFMG.ProfessorAssociadodaUENF ([email protected]) RESUMO aBsTraCT No estado do Rio de Janeiro, a atividade petrolífera tem deixado marcas irreversíveis na paisagem econômica, social, ambiental e cultural nos municípios onde vem sendo desenvolvida. Dentre as mudançasqueaatividadepetrolíferatem gerado, interessa-nos, particularmente, a reestruturação pela qual vem passando o mercado de trabalho da região da Ompetro. Este mercado tem se tornado mais seletivo e exigido trabalhadores mais qualificados. Apesar da possibilidade de transferênciaintersetorialdamãodeobra, grande parcela da nova demanda vem sendo suprida através de movimentos migratórios(intraestaduais,interestaduais e, inclusive, internacionais). Nesse sentido, esseartigosepropõeaverificaropapelda mão de obra local e migrante no processo de reestruturação do mercado de trabalho na região da Ompetro, admitindo a existência de significativas diferenças relativas aos papéis exercidos pelos naturais e pelos migrantes no novo mercado de trabalho queseconfiguranaregião. In the Rio de Janeiro, the oil activity has left its mark on the landscape irreversible economic, social, environmental and cultural in the municipalities where it has been developed. Among the changes that the oil activity has generated, we are interested in, particularly, has been undergoing restructuring in which the labor market in the region of Ompetro. This market has become more selective and required more skilled workers. Despite the possibility of intersectoral transfer of labor, a large portion of new demand is being met through migration (intrastate, interstate and even international). Accordingly, this article proposes to examine the role of local labor and migrant in the process of restructuring of the labor market in the region Ompetro, admitting the existence of significant differences concerning the roles played by the natives and migrants in the new market work that is configured in the region. PaLaVras-CHaVe Trabalho; Migração; Produção de Petróleo. KEY-WORdS Labor; Migration; Oil Production. 13 Introdução A ocupação do Norte Fluminense (NF) - região que atualmente corresponde aos municípios de Campos dos Goytacazes, São João da Barra, Macaé, São Fidélis, Conceição de Macabu, Quissamã, Cardoso Moreira, Carapebus e São Francisco do Itabapoana, no estado do Rio de Janeiro (ERJ) - se iniciou na primeira metade do século XVII e, de meados do século XVIII até praticamente meados dos anos 1970, esteve relacionada à produção de cana de açúcar. Nos anos 60, a economia do NF se encontrava estagnada devido à redução da produtividade da indústria sulcroalcooleira relacionada à depreciação das máquinas e equipamentos; à falta de investimentos na modernização do setor; e à perda de competitividade no mercado interno, frente ao desenvolvimento da produção de cana de açúcar no interior de São Paulo. Na década de 70, o preço do açúcar no mercado internacional ficou significativamente elevado devido à guerras localizadas e mudanças no parque industrial europeu, reduzindo os estoques internacionais de açúcar. Em decorrência deste fato, bem como das iniciativas do Instituto de Acúcar e do Álcool (IAA)1, o preço do açúcar se torna elevado e estimula a produção, a fusão de usinas e a ampliação do crédito subsidiado para a expansão da produção, sem maior controle dos órgãos fiscalizadores. Além destas facilidades houve também o estímulo à indústria sucroalcooleira proporcionado pelo Programa Brasileiro de Álcool ( Proálcool), que criou um superdimensionamento do parque industrial sem a devida contrapartida na expansão da produção no campo e, consequentemente, um endividamento do setor, comprometendo o seu dinamismo. A década de 80 e 90 foram críticas para a economia açucareira no NF, reduzindo drasticamente a produção, elevando a precarização das relações trabalhistas e o desemprego na região, culminando com o fechamento de diversas usinas. Este cenário econômico só não foi pior devido a implantação da Petrobrás em Macaé, em 1974, e o início da exploração do petróleo na Bacia de Campos - bacia sedimentar situada na costa norte do ERJ estendendo-se até o sul do estado do Espírito Santo. Para Piquet (2011), a atividade petrolífera tem deixado marcas irreversíveis na paisagem econômica, social, ambiental e cultural nos territórios onde vem sendo desenvolvida. No caso da Bacia de Campos, os impactos da atividade petrolífera não se dão somente sobre os municípios do norte fluminense; nessa região, apenas aqueles localizados na região litorânea e produtores de petróleo – São João da Barra, Campos dos Goytacazes, Quissamã, Carapebus e Macaé - sofreram impactos significativos Macaé devido a instalação da base terrestre de operações da Petrobras e os demais municípios, principalmente por terem se tornado beneficários das compensações financeiras (royalties do petróleo e participações especiais) que cresceram significativamente principalmente a partir de 1997, com o novo marco regulatório e a quebra do monopólio da exploração e produção de petróleo. Por outro lado, municípios produtores de petróleo na Bacia de Campos, mas não pertencentes à região norte fluminense – Rio das Ostras, Casimiro de Abreu, Cabo Frio, e Armação de Búzios – também devem ser mencionados pelos impactos da atividade petrolífera e por serem beneficiários dessas compensações financeiras. A partir de 2001 estes municípios passaram a constituir a Ompetro - Organização dos Municípios Produtores de Petróleo, e Gás e Limítrofes da Zona de Produção Principal da Bacia de Campos. Atualmente, além destes fazem parte da Ompetro também os municípios de Niterói e Arraial do Cabo. No caso específico da Ompetro, segundo Piquet (2003) e Monié (2003), as principais mudanças decorrentes do desenvolvimento da atividade petrolífera, são: 1 14 Neste período, os principais objetivos do IAA consistiam em assegurar o equilíbrio interno da produção e a exportação do produto, por meio de pressões políticas sobre o Congresso Nacional, que redundavam na promulgação de legislações específicas que regulassem o setor sucroalcooleiro (Silva e Carvalho, 2004). (1) Reestruturção da atividade produtiva e do mercado de trabalho. (2) Sofisticação e diversificação da produção, dos serviços, do comércio e do consumo. (3) Mudança na dinâmica demográfica regional, com a aceleração do ritmo de crescimento populacional, devido aos movimentos migratórios rurais-urbanos; intraestaduais; interestaduais e, inclusive, internacionais. (4) Recrudescimento dos movimentos pendulares entre os municípios da região. (5) Mudança no centro de gravidade da economia regional, devido ao surgimento de novos espaços economicamente dinâmicos, propiciado pelo desenvolvimento da indústria extrativa mineral que atraiu, por efeito multiplicador, empresas privadas de capital nacional e multinacionais direta e indiretamente ligadas à indústria petrolífera. Vale ressaltar que Campos dos Goytacazes, historicamente o pólo econômico regional, permanece ocupando posição de destaque, mas perde importância relativa no âmbito regional e estadual. (6) Acirramento das desigualdades intraregionais2; e (7) Nova configuração espacial, com a emancipação de alguns municípios3. Segundo Piquet (2003), estas emancipações relacionam-se principalmente, à crescente produção de petróleo e ao pagamento dos royalties aos municípios produtores, que vem estimulando uma competição intraregional pelo recurso. Dentre as mudanças que a atividade petrolífera tem gerado, interessanos, particularmente, aquelas relacionadas ao mercado de trabalho. No processo de reestruturação produtiva as atividades intensivas em mão de obra estão sendo paulatinamente substituídas por aquelas intensivas em capital. Nesse processo o mercado de trabalho se torna mais seletivo, demandando trabalhadores mais qualificados. Essa nova demanda pode ser suprida através da transferência intersetorial da mão de obra dos setores estagnados para os mais dinâmicos e/ou através de movimentos migratórios. Nesse sentido, esse artigo se propõe a verificar o papel da mão de obra local e migrante no processo de reestruturação do mercado de trabalho na região da Ompetro, admitindo a existência de significativas diferenças relativas aos papéis exercidos pelos naturais e pelos migrantes no novo mercado de trabalho que se configura na região. Caracterização da região da Ompetro Criada em 2001, a Ompetro é atualmente formada pelos seguintes municípios, todos eles pertencentes à zona de produção principal da Bacia de Campos: São João da Barra, Campos dos Goytacazes, Quissamã, Carapebus e Macaé, do norte fluminense; Rio das Ostras, Casimiro de Abreu, Cabo Frio, Armação de Búzios e Arraial do Cabo, na região das Baixadas; e Niterói, pertencente à região metropolitana do Rio de Janeiro (Mapa 1). O principal objetivo da organização é representar os municípios no Conselho Nacional de Política Energética, assim como nas discussões sobre a exploração e produção de petróleo realizadas pelo governo do Estado do Rio de Janeiro. 2 Primeira onde de investimentos foi realizada pela Petrobrás, entre 1970 e 1990. A segunda onda de investimentos, inicia-se em 1997, quando o fim do monopólio sobre a prospecção e extração do petróleo levou várias firmas nacionais e estrangeiras a realizarem investimentos na região. 3 Armação de Búzios (1995), Rio das Ostras (1992), Carapebus (1997) e São Francisco do Itabapoana (1997), antes distritos de Cabo Frio, Casimiro de Abreu, Macaé e São João da Barra, respectivamente. 15 Mapa 1 Municípios pertencentes à Ompetro, 2012 Fonte: IBGE – Censo Demográfico de 2010 16 Até meados dos anos 70, naqueles municípios localizados ao norte predominavam como atividades econômicas basicamente a produção sulcroalcooleira e a pecuária bovina; na região das baixadas, o turismo e a indústria salineira. Segundo Monié (2003), a decadência das atividades econômicas tradicionais implicou em um esvaziamento demográfico da região. Com a instalação da Petrobras em Macaé, em 1974, e com o início das atividades de exploração, em 1977, este panomara se altera, inicialmente pelas atividades relacionadas à indústria do petróleo, com impactos mais significativos em Macaé, e, posteriormente, devido ao volume de recursos que os municípios confrontantes com os poços passam a receber e administrar, a título de compensações financeiras. O critério de rateio das compensações financeiras em vigor está baseado na Lei Federal nº 9.478/974, que estabelece os critérios do regime de concessão, e que mantém os royalties de 5% previstos na lei nº 7.990/89 e os critérios ali estipulados e introduz, dentre outras compensações, o pagamento de royalties excedentes a 5%, aumentando consideravelmente o pagamento das compensações financeiras. Cabe aqui destacar que a Lei do Petróleo não estabeleceu restrições aos estados e municípios quanto à aplicação dos recursos dos royalties do petróleo e nem vinculações a nenhum tipo de gasto, nem mesmo nenhum mecanismo de controle social destes gastos, como a exigência de um conselho ou fórum para discussão e deliberação de prioridades para o uso de recursos que são finitos e que deveriam ser utilizados prioritariamente para investimentos, direcionando os recursos e orientando políticas públicas com o objetivo de diversificação produtiva e desenvolvimento sustentado de suas economias. Além disso, a concentração de mais de 80% da produção nacional de petróleo e gás na Bacia de Campos resultou na conformação de uma região composta por municípios “petro-rentistas” com recursos diferenciados em relação à média dos demais municípios brasileiros. A título de ilustração, em 2011, 1.031 municípios brasileiros (18,5%) eram beneficiários das rendas petrolíferas e receberam uma receita total de R$5,443 bilhões provenientes de royalties e participações especiais (Tabela 1). É notória a concentração de 64,95% desses recursos em 87 municípios fluminenses - principalmente, naqueles pertencentes à Ompetro. Na região da Ompetro, os maiores beneficiários das rendas 4 A Lei do Petróleo dispõe sobre a política energética nacional, o monopólio do petróleo, institui o Conselho Nacional de Política Energética e a Agência Nacional do Petróleo. petrolíferas são: Campos dos Goytacazes, que sozinho recebeu R$1,051 bilhão (40,44% do total da renda petrolífera da região), Macaé (17,83%) e Rio das Ostras (11,10%). Tabela 1 Brasil – Distribuição das Rendas Petrolíferas entre municípios, 2011 Distribuição das Rendas Petrolíferas Municípios do Brasil Municípios do RJ Municípios da Ompetro Nº municípios beneficiários 1031 87 11 Royalties 4.441.624.101,01 2.659.886.211,23 1.725.256.503,26 Participações Especiais 1.002.085.199,23 875.950.389,32 875.950.389,32 Fonte: www.royaltiesdopetroleo.ucam-campos.br, tabela elaborada a partir de dados da ANP. Total Absoluto % 5.443.709.300,24 3.535.836.600,55 2.601.206.892,58 100 64,95 47,78 Com maior dinamismo econômico, alguns municípios da região, antes expulsores de população, vêm se tornando mais atrativos para a população migrante, principalmente para aquela à procura de novas e melhores oportunidades no mercado de trabalho. Outro efeito, não menos importante do maior dinamismo econômico é a elevação do poder de retenção populacional por parte desses municípios. A região da Ompetro que em 1980 tinha 905.641 habitantes, contabilizava, em 2010, 1.606.894 habitantes o que correspondia a 10,5% da população do Estado. Observase, na Tabela 2, que desde os anos 80, esta região vem apresentando ritmo de crescimento médio anual superior à média estadual e que este vem se tornando mais acelerado, tendo aumentado de 1,64% entre 1980-1991, para 1,68% entre 1991-2000 e para 2,33%, entre 2000-2010. Como reflexo desta aceleração, a participação relativa dos municípios da Ompetro no incremento populacional absoluto do Rio de Janeiro aumentou de 12,4%, entre 1980-1991, para 20,66% no período 2000-2010. Tabela 2 Rio de Janeiro e Ompetro – População, Taxa de crescimento e participação relativa no incremento absoluto, 1980-2010 População 1980 1991 2000 2010 Ompetro 905.641 1.083.116 1.276.582 1.606.894 Rio de Janeiro 11.378.796 12.807.706 14.391.282 15.989.929 Ompetro/RJ 7,96 8,46 8,87 10,05 Taxa de Crescimento 1980-1991 1991-2000 2000-2010 Ompetro 1,64 1,88 2,33 Rio de Janeiro 1,08 1,33 1,06 Participação relativa no Incremento Absoluto 1980-1991 1991-2000 2000-2010 Ompetro-RJ 12,4 12,22 20,66 Fonte: IBGE - Censos Demográficos 1980, 1991, 2000 e 2010 Vale ressaltar que os ritmos de crescimento variaram significativamente entre os municípios da Ompetro, entre 1980 e 2010. Como se pode observar no Gráfico 1, nos anos 80, cresceram mais aceleradamente os municípios de Rio das Ostras (5,54%), Macaé (4,18%) e Cabo Frio (3,99%). No período 1991-2000, com exceção de Arraial do Cabo, Campos, Niterói e Macaé verifica-se, nos demais municípios, uma aceleração no ritmo de crescimento, destacando-se Buzios (8,85%), Rio das Ostras (8,17%) e Cabo Frio (5,95%). Entre 2000-2010, com exceção de 4 municípios – Búzios, Arraial do Cabo, Cabo Frio e São João da Barra – em todos os outros a taxa de crescimento populacional aumentou em relação ao período 1991-2000; as maiores variações se verificaram em Carapebus e Rio das Ostras, cujas taxas de crescimento se elevaram de 2,06% e 8,17% entre 19912000 para 4,42% e 11,24%, respectivamente. Búzios e Cabo Frio, apesar de terem experimentado um arrefecimento em seu ritmo de crescimento continuaram dentre 17 aqueles de crescimento populacional acelerado. Gráfico 1 Ompetro – Ritmo de crescimento populacional médio anual, por município 1980-1991, 1991-2000 e 2005-2010 12,00 10,00 8,00 6,00 4,00 2,00 1980-1991 1991-2000 S.J.Barra R.Ostras Quissamã Niterói Macaé C.Abreu Campos Carapebus Cabo Frio A.Cabo Búzios 0,00 2000-2010 Fonte: IBGE – Censos Demográficos de 1980, 1991, 2000 e 2010 A exemplo de outras experiências brasileiras, outro efeito do desenvolvimento das atividades petrolíferas foi a aceleração do processo de urbanização. Mesmo nos municípios menos industrializados, como Quissamã, Carapebus e Rio das Ostras, a maior parcela da população reside em áreas urbanas (Gráfico 2). Segundo o Censo 2010, um total de 92% da população da Ompetro reside em áreas urbanas. Gráfico 2 Ompetro – Grau de urbanização segundo o município, 2010 100,00 90,00 80,00 70,00 60,00 50,00 40,00 30,00 20,00 10,00 S.J.Barra R.Ostras Quissamã Niterói Macaé C.Abreu Campos Carapebus Cabo Frio A. Cabo Búzios 0,00 Fonte: IBGE – Censos Demográficos de 1980, 1991, 2000 e 2010 18 Para Monié (2003), este processo de urbanização é marcado por grande segregação sócio-espacial da população, percebida pela sua distribuição espacial. Em 1980, a população residente na região da Ompetro encontrava-se concentrada em apenas quatro municípios – Niterói (43,85%), Campos (35,43%), Macaé (6,59%) e Cabo Frio (5,47%). Trata-se de municípios com características completamente distintas: Niterói dista 10,9 km da atual capital fluminense, já foi capital antes da fusão do ERJ com a Guanabara, em 1975 e, atualmente, integra a região metropolitana no Rio de Janeiro. Campos dos Goytacazes é o município com maior extensão territorial do estado e o maior beneficiário das compensações financeiras da atividade petrolífera. Macaé é a base de operações da Petrobras e das demais empresas petrolíferas e parapetrolíferas. Cabo Frio é município turístico, na Região dos Lagos, e que tem crescido significativamente por se encontrar na franja metroplitana. Os Censos Demográficos posteriores confirmam essa tendência (Gráfico 3), mas revelam a redução paulatina e contínua do grau de concentração populacional nesses municípios, de 91,34%, em 1980, para 83,66%, em 2010. Estes Censos revelam, ainda, que a menor concentração populacional em Niterói e Campos foi parcialmente compensada pelo aumento da concentração em Macaé, Cabo Frio e, inclusive, Rio das Ostras. Gráfico 3 Ompetro – Distribuição espacial da população (%), 1980-2010 100% 90% 80% 70% 60% 50% 40% 30% 20% 10% 0% 1980 1991 2000 2010 Arm ação de Búzios Arraial do Cabo Cabo Frio Carapebus Cam pos dos Goytacazes Quis s am ã Cas im iro de Abreu Rio das Os tras Macaé São João da Barra Niterói Fonte: IBGE – Censos Demográficos de 1980, 1991, 2000 e 2010 Pode-se constatar no Gráfico 4, que Campos, Niterói, Cabo Frio e Macaé são os municípios que mais contribuem para o incremento populacional absoluto na região da Ompetro. A participação relativa desses municípios no incremento populacional absoluto da região da Ompetro, que era de 87,37%, entre 1980-1991, reduziu-se para 64,58%, na última década, refletindo a aceleração do ritmo de crescimento de outros municípios, notadamente de Rio das Ostras que, inclusive, teve sua participação relativa aumentada de 4,56%, entre 1980-1991, para 20,97%, entre 2000-2010. Gráfico 4 Ompetro - Participação relativa dos municípios no incremento absoluto, 1980-2010 100% 80% 60% 40% t 20% 0% 1980-1991 1991-2000 2000-2010 Arm ação de Búzios Arraial do Cabo Cabo Frio Carapebus Cam pos dos Goytacazes Cas im iro de Abreu Macaé Niterói Quis s am ã Rio das Os tras São João da Barra Fonte: IBGE – Censos Demográficos de 1991, 2000 e 2010 Imigrantes na Ompetro Para analisarmos o papel da mão de obra no mercado de trabalho, na região da Ompetro, consideramos importante segmentar a população em idade ativa em: naturais que nasceram no município e nunca residiram em outro; e imigrantes. Neste trabalho considerou-se os dados de migração data-fixa, que leva em conta apenas as mudanças de residência ocorridas entre duas regiões em dois momentos distintos e fixos no tempo. Como os quesitos de migraçao data-fixa foram introduzidos no Censo Demográfico de 19 1991, a partir dessa seção só serão analisados os dados dos Censos de 1991, 2000 e 2010. Note, na Tabela 3, que a região da Ompetro vem atraindo um número cada vez maior de imigrantes, tendo recebido 77.511 imigrantes no quinquênio 1986-1991; 114.903, entre 1995-2000; e 208.729, entre 2005-2010. Reafirmando o importante papel da proximidade geográfica, apontado por Rigotti e Amorim (2002), no processo de expansão urbana da região da Ompetro, a migração intra-estadual é a mais significativa, embora os movimentos interestaduais sejam também expressivos. Apesar do significativo aumento do número de imigrantes internacionais, estes continuam representando uma parcela reduzida dos fluxos migratórios em direção à Ompetro. Origem Intraestadual Interestadual Internacional Total Tabela 3 Ompetro – Imigrantes, segundo a origem 1986-1991, 1995-2000, 2000-2005 1986-1991 56.711 20.014 786 77.511 % 73,17 25,82 1,01 27 Período 1995-2000 (%) 86.604 75,37 26.656 23,20 1.643 1,43 114.903 25 Fonte: FIBGE - Censos Demográficos de 1991, 2000 e 2010 2000-2010 162.358 44.006 2.365 46.371 (%) 350,13 94,90 5,10 100,00 Dentre o migrantes interestaduais predominam, nos três quinquênios, aqueles provenientes das regiões Sudeste e Nordeste (Gráfico 5). No Sudeste, destacam-se como principais origens os estados de Minas Gerais e São Paulo, nos quinquênios 1986-1991 e 1995-2000. No quinquênio 2005-2010, apesar do aumento absoluto dos imigrantes provenientes de São Paulo, Minas Gerais praticamente se isola como principal fornecedor de população para a Ompetro, sendo a origem de 23,06% dos imigrantes daquele período. No Nordeste, a Bahia aumentou sua participação relativa de 9,32%, no quinquênio 19861991, para 11,53%, entre 1995-2000, e para 14,52% entre 2005-2010. Destacam-se ainda os estados da Paraíba, Ceará e Pernambuco e, nos dois primeiros quinquênios, também o Rio Grande do Norte. Gráfico 5 Ompetro – Imigrantes interestaduais segundo a macrorregião de origem 1986-1991, 1995-2000 e 2005-2010 100% 90% 80% 70% 60% 50% 40% 30% 20% 10% 0% 1986-91 Norte 2000-05 1995-2000 Nordeste Sudeste Sul Centro Oeste Fonte: IBGE – Censos Demográficos de 1991, 2000 e 2010 20 Nos 3 quinquênios analisados, apesar das diferenças relativas, dentre as 18 microrregiões do estado do Rio de Janeiro, apenas 5 aparecem como regiões de origem dos imigrantes intraestaduais na Ompetro: Campos dos Goytacazes, Macaé, Bacia de São João, Lagos e Rio de Janeiro. A microrregião do Rio de Janeiro, que se destacara como origem de 40,60% dos imigrantes intraestaduais no quinquênio 1986-1991, teve sua participação no fluxo reduzida para 24,68%, no último quinquênio (Mapa 2); naquele período destacam-se também as microrregiões Lagos e Macaé como importantes áreas de origem. Estes dados sugerem fluxos migratórios intraregionais significativos. Mapa 2 Ompetro – Imigrantes intraestaduais, segundo a microrregião de origem Fonte: IBGE – Censo Demográfico de 2010 Como a emancipação de alguns distritos se deu em meados dos anos 90, e no Censo de 1991 não há como estimar migração por distritos, não foi possível analisar o destino dos imigrantes considerando-se a atual formação da Ompetro. De forma a garantir a comparabilidade, seria necessário, então, somar os dados relativos aos municípios emancipados na década de 90 aos dados daqueles que lhes deram origem. Ao assim procedermos perde-se detalhes importantes para esta análise. Considerando-se apenas os resultados dos Censos de 2000 e 2010, nos quais constam informações desagregadas para todos os municípios que atualmente pertencem à Ompetro (Gráfico 6), percebe-se que a migração se concentra em apenas 5 municípios: Niterói, Cabo Frio, Macaé, Campos e Rio das Ostras. Não nos surpreende o fato de Niterói, atrair um significativo número de imigrantes, dada a sua proximidade espacial da Capital estadual, seu desenvolvimento socioeconômico e a elevada qualidade de vida de sua população. No entanto, apesar de permanecer como importante área de atração, não mais se isola, na região da Ompetro como área de absorção dos migrantes interestaduais, intraestaduais e internacionais, tendo perdido significativamente o seu poder de atração populacional ao longo do período5. Os dados Censitários revelaram, ainda, que Macaé, a capital do Petróleo, e Campos dos Goytacazes, o maior município do Norte Fluminense, que se sobressai pelo setor de serviços relativamente desenvolvido, apesar de se destacarem como importantes destinos, também perderam poder de atração, de 2000-2005 para 2005-2010. O aumento do poder de atração de Cabo Frio e, principalmente de Rio das Ostras que no último quinquênio recebeu 21,17% dos imigrantes, praticamente compensam estas perdas relativas. Significa dizer que apesar da migração permanecer concentrada em apenas poucos municípios, digamos que ela se encontra melhor distribuída. 5 Segundo o Censo Demográfico de 1991, Niterói atraiu 42,6% dos migrantes do quinquênio 1986-1991, isolando-se como região de atração populacional. 21 Gráfico 6 Ompetro – Município de destino dos imigrantes – (%) - 1995-2000, 2005-2010 S.J.Barra R.Ostras Quissamã Niterói Macaé C.Abreu Campos Carapebus Cabo Frio A.Cabo Búzios 0,00 5,00 10,00 15,00 1995-2000 20,00 25,00 30,00 35,00 2005-2010 Fonte: IBGE – Censos Demográficos de 2000 e 2010 O cenário acima descreve muito bem o destino dos migrantes intra e interestaduais, mas quando analisamos separadamente o destino dos imigrantes internacionais destacase também Armação de Búzios, município turístico, com belas praias e cuja exploração turística e ocupação imobiliária tiveram início nos anos 60. Mercado de Trabalho na região da Ompetro Para efeito analítico da participação dos indivíduos no mercado de trabalho, não nos preocupamos em separar imigrantes naturais dos não-naturais, partindo-se do pressuposto de que há significativas diferenças entre a qualidade da mão de obra dos naturais e dos imigrantes, sejam eles migrantes de retorno – para o município ou para a região da Ompetro - ou não. Por detrás deste pressuposto admite-se que o fato de o indivíduo ter residido em município diferente do de nascimento altera a qualidade de sua mão de obra. Utilizamos, então, a seguinte estratificação da população: naturais, imigrantes intraestaduais, interestaduais e internacionais. Julgamos importante analisar, primeiro, a qualidade da mão de obra que está inserida nesse mercado de trabalho. Para tanto, serão utilizados indicadores de escolaridade. Para efeitos dessas análises considerou-se apenas os indivíduos com 20 anos ou mais de idade; foram excluídos os adultos em programas de alfabetização e o item ‘não determinado’. Na região da Ompetro, entre 1986-1991, o grau de alfabetização dos naturais era relativamente baixo e, praticamente, 15% desta população não sabia ler nem escrever um simples bilhete em nosso próprio idioma (Tabela 4). Em todos os períodos o grau de alfabetização dos imigrantes apresentou-se mais elevado, apesar das diferenças, segundo o status migratório (migrante intraestadual, interestadual ou de origem internacional). Além disso, o grau de alfabetização dos naturais e dos imigrantes se elevou, ao longo do tempo. Tabela 4 Ompetro – Grau de alfabetização, segundo o estrato populacional 1986-1991, 1995-2000 e 2005-2010 Período 1986-1991 1995-2000 2005-2010 Intraestadual 91,97 95,09 97,76 Imigrante Interestadual 90,67 93,99 96,48 Internacional 100 99,19 100 Fonte: FIBGE - Censos Demográficos de 1991, 2000 e 2010 22 Naturais 85,34 91,77 94,32 Esse não é o melhor indicador da escolaridade de uma população, principalmente quando se deseja utilizar esse indicador para inferências sobre o processo de seletividade no mercado de trabalho. Como se mencionou anteriormente, o mercado de trabalho na região da Ompetro vem sofrendo significativas mudanças: as estruturas produtivas intensivas em mão de obra estão sendo substituídas por aquelas intensivas em capital. Em função disso, o mercado de trabalho moderno exige um trabalhador cada vez mais qualificado; capacitado para manusear as novas tecnologias. Os Censos Demográficos de 1991 e 2000 nos permitem avaliar a escolaridade através da variável ‘anos de estudo’. No período 1986-1991, 50% dos naturais eram considerados, analfabetos funcionais, do ponto de vista do mercado de trabalho; a escolaridade média era de apenas 7,23 anos de estudo (Tabela 5). As curvas da escolaridade dos imigrantes intraestaduais e interestaduais apresentam estruturas mais suavizadas (Gráfico 7), indicando uma maior proporção de indivíduos nas faixas de escolaridade mais elevadas. A escolaridade média dos imigrantes intra e interestaduais é significativamente superior: 8,68 e 9,11 anos de estudo, respectivamente. A curva de escolaridade dos imigrantes internacionais é notoriamente diferenciada: mais de 70% declararam no mínimo 12 anos de estudo sendo a escolaridade média bastante elevada (13,82 anos de estudo). Deve-se ressaltar que, o fluxo de migrantes internacionais é pouco significativo. Gráfico 7: Ompetro – Anos de estudo, segundo o estrato populacional 1986-1991 e 1995-2000 1986-1991 40,00 1995-2000 40,00 35,00 35,00 30,00 30,00 25,00 25,00 20,00 20,00 15,00 15,00 10,00 10,00 5,00 5,00 0,00 0,00 0 Naturais 1a4 5a8 Interestadual 9 a 11 Intraestadual 12 a 16 17 + Internacional 0 Naturais 1a4 5a8 Interestadual 9 a 11 12 a 16 Intraestadual 17 + Internacional Fonte: IBGE – Censos Demográficos de 1991 e 2000 Entre 1986-1991 há mudanças significativas. Entre os naturais, em termos relativos, verifica-se uma redução do analfabetismo funcional, embora este ainda permaneça elevado (36,81% dos naturais declararam escolaridade máxima de 4 anos de estudo), e uma pequena elevação da escolaridade média para 7,9 anos de estudo. Entre os imigrantes intra e interestaduais, observa-se uma elevação da proporção daqueles nas faixas de escolaridade mais elevadas e apesar das variações no nível médio de escolaridade serem irrisórias, sinalizam uma tendência para o aumento da mesma. A associação da escolaridade média com as distribuições relativas dos imigrantes segundo os anos de estudo nos permitem inferir que o mercado de trabalho da Ompetro tem se tornado mais seletivo, ao longo do tempo. Considerando os imigrantes internacionais, a mudança também é notória: houve uma redução da participação relativa daqueles com 17 anos ou mais de escolaridade, no fluxo, compensada pelo aumento da participação relativa daqueles com 9 a 11 anos de estudo. Supõe-se que a grande demanda por técnicos, de nível médio, devido a expansão da atividade de exploração e produção de petróleo e gás e a falta de mão de obra local especializada tenha propiciado esta alteração do perfil dos imigrantes na região. Há um esforço conjunto do Goveno Federal, Estadual e setor privado no enfrentamento desta questão, tendo sido implantadas, nos últimos anos, diversas escolas técnicas nos municípios produtores no intuito de preparar e qualificar a mão de obra para o desafio dos novos investimentos na atividade de exploração e produção de petróleo e gás no 23 litoral brasileiro. A consequência dessa mudança foi a redução da escolaridade média dos imigrantes internacionais – para 12,54 anos – embora estes continuem apresentando uma escolaridade extremamente elevada, se comparado aos outros estratos populacionais aqui considerados. Tabela 5 Ompetro - Escolaridade média, segundo o estrato populacional 1986-1991 e 1995-2000 Período Intraestadual 8,68 9,08 1986-1991 1995-2000 Imigrante Interestadual 9,10 9,11 Fonte: IBGE - Censos Demográficos de 1991 e 2000 Internacional 13,82 12,54 Naturais 7,23 7,9 Como no Censo Demográfico de 2010 não há a informação direta referente aos ‘Anos de Estudo’ dos indivíduos, optou-se por utilizar, naquele Censo a variável ‘Nível de Instrução’ para se avaliar a escolaridade dos naturais e dos imigrantes, na região da Ompetro. Apesar da impossibilidade de comparações diretas, algumas inferências podem ser feitas. Observa-se, em primeiro lugar, a redução, na região da Ompetro, do número de indivíduos – naturais e imigrantes - que não receberam educação formal (0 anos de estudos, nos Censos Demográficos de 1991 e 2000 e ‘sem instrução, no Censo Demográfico de 2010), apesar de 25.180 naturais (4,32%) permanecerem na condição de indivíduos sem instrução. No Gráfico 8, a curva que representa o nível de escolaridade dos naturais, assim como nos gráficos anteriores, apresenta maior concentração de indivíduos nos níveis mais baixos. As curvas de escolaridade dos migrantes intra e interestaduais, coincidentes, confirmam a convergência da escolaridade do migrante intraestadual para a do migrante interestadual, já apontada pelos Censos anteriores. No caso dos imigrantes internacionais, no quinquênio 2005-2010, há, dentre estes, indivíduos sem instrução, além de um maior número de indivíduos com baixo nível de escolaridade. É possível que as escolaridades médias de todos os estratos populacionais tenham aumentado, mas pelo Gráfico 8 é possível inferir a persistência das diferenças, ainda que em menor magnitude, entre as escolaridades médias dos imigrantes e dos naturais permanecendo, estes últimos, com níveis de escolaridade mais baixos. Gráfico 8 Ompetro – Nível de instrução, segundo o estrato populacional, 2010 60,00 50,00 40,00 30,00 20,00 10,00 0,00 Sem instrução Intraestadual Fundamental incompleto Fundamental completo e médio incompleto Interestadual Médio completo e superior incompleto Internacional superior completo Natural Fonte: IBGE – Censo Demográfico de 2010 24 Para avaliarmos os setores de atividade, as ocupações e os rendimentos dos indivíduos no mercado de trabalho da Ompetro, tomaremos, daqui por diante, como referência apenas o Censo de 2010 (que, por ser o mais recente, ilustra com fidedignidade a atual situação desse mercado de trabalho) e a população com 10 anos ou mais de idade. Em 2010, 46,49% dos naturais, com 10 anos ou mais de idade, exerceram trabalho remunerado no período de referência. Os percentuais de trabalhadores entre os imigrantes interestaduais, intraestaduais e internacionais, do quinquênio 2005-2010 foram, respectivamente, 57,65%, 52,93% e 51,34% (Gráfico 9). Gráfico 9 Ompetro – Trabalho remunerado, no período de referência, segundo o estrato populacional, 2010 Naturais Internacional Interestadual Intraestadual 0,00 10,00 20,00 30,00 40,00 50,00 60,00 Fonte: IBGE – Censo Demográfico de 2010 A grande maioria dos trabalhadores – independentemente do estrato populacional – era em 2010, empregado com carteira assinada. Todavia, é notória a elevada participação de trabalhadores informais e por conta própria, naquele mercado de trabalho (Gráfico 10). Entre os 72.223 trabalhadores naturais por conta própria, 18.744 (28,41%) indivíduos exerciam alguma atividade no grupo ocupacional ‘trabalhadores qualificados, operários e artesãos da construção, das artes mecânicas e outros ofícios’, destacando-se dentre as ocupações pertencentes a esse grupo os pedreiros, pintores e costureiros; 13.923 (21,10%), no grupo ‘ trabalhadores dos serviços, vendedores dos comércios e mercados’, onde se destacam os vendedores ambulantes. Se somarmos a esses, trabalhadores por conta própria inseridos em outras ocupações que exigem baixo nível de escolaridade, tais como as ‘ocupações elementares’ (serviços domésticos, serventes de pedreiro, ajudantes de cozinha, etc), ‘operadores de instalação de máquinas e equipamentos’, ‘trabalhadores qualificados da agropecuária, florestais, da caça e da pesca, e os ‘trabalhadores de apoio administrativo, temos 78% dos trabalhadores naturais. Dentre estes, apenas 11.669 (17,69%) eram profissionais das ciências e intelectuais e 3.372 (5,11%) eram técnicos e profissionais de nível médio. Gráfico 10 Ompetro – Posição na ocupação, segundo o estrato populacional, 2010 Naturais Internacional Interestaduais Intraestaduais 0% 20% 40% 60% 80% 100% Empregado com carteira assinada Forças Armadas Funcionário Público Empregado sem carteira de trabalho assinada Conta própria Empregador Fonte: IBGE – Censos Demográficos de 2010 Analisando os setores de atividade em que estão inseridos os trabalhadores naturais com carteira assinada destacam-se, além do setor de comércio e reparação de 25 veículos automotores e motocicletas (18,76%) onde estão empregados principalmente como caixas e expedidores de bilhetes, balconistas e vendedores de lojas; os setores de educação (professores do ensino pré-escolar e do ensino fundmental); indústria de transformação, atividades administrativas e serviços complementares (recepcionitas, secretários, escriturários), saúde humana e serviços sociais (trabalhadores de cuidados pessoais em instituições), construção (pedreiros e trabalhadores elementares da construção de edifícios), serviços domésticos, administração pública, defesa e seguridade social; e Transporte, Armazenagem e Correio (condutores de automóveis, taxis e caminhonetes, mensageiros, carregadores de bagagens e entregadores de encomendas (Gráfico 11 e Gráfico 12) Além das ocupações mencionadas, merecem destaque na absorção da mão de obra natural as ocupações de cozinheiros, porteiros e zeladores, guardas de segurança, e os trabalhadores de limpeza de interior de edifícios, escritórios, hotéis e outros estabelecimentos. Este conjunto mencionado de ocupações que, como se pode notar demandam, em geral, trabalhadores com baixa qualificação profissional, encontram-se 44,56%. Os imigrantes internacionais estão inseridos, principalmente, na indústria extrativa; nos organismos internacionais e outras instituições extraterritoriais; alojamento e alimentação; comércio e reparação de veículos automotores e motocicletas; indústria de transformação; atividades profissionais, técnicas e científicas; educação; e saúde humana e serviços sociais. Dentre esses destacam-se os profissionais das ciências (engenheiros químicos e eletricistas), diretores e gerentes – da indústria da transformação, de políticas e planejamento e de vendas e comercialização - técnicos e profissionais de nível médio (classificadores e provadores de produtos, exceto de bebidas e alimentos); eletrotécnicos, perfuradores e sondadores de poços; trabalhadoers dos serviços, vendedores do comércio e dos mercados, como profissionais da publicidade e da comercialização, balconistas e vendedores; e os trabalhadores de apoio administrativo como secretários executivos e administrativos, recepcionistas, escriturários, Apesar de serem absorvidos pelos mesmos setores de atividade existem diferenças significativas entre as ocupações exercidas pelos imigrantes inter e intraestaduais. De modo geral, em termos relativos, predominam imigrantes intraestaduais nas ocupações com maior qualificação e imigrantes interestaduais naquelas com menor qualificação. Gráfico 11 Ompetro – Grupos de atividade6, segundo o estrato populacional (%), 2010 25,00 20,00 15,00 10,00 5,00 0,00 I II III IV Naturais V VI VII VIII IX Internacional X XI XII XIII XIV Interestadual XV XVI XVII XVIII XIX XX XXI Intraestadual Fonte: IBGE – Censos Demográficos de 2010 26 6 Grupos de Atividade: I- Agricultura, pecuária, produção florestal, pesca e aquicultura; II – Indústrias extrativas; III – Indústrias de Transformação; IV – Eletricidade e Gás; V – Água, Esgoto, atividades de gestão de resíduos e descontaminação; VI – Construção; VII – Comércio; reparação de veículos automotores e motocicletas; VIII – Transporte, Armazenagem e Correio; IX – Alojamento e Alimentação; X – Informação e Comunicação; XI – Atividades financeiras, de seguros e serviços relacionados; XII – Atividades Imobiliárias; XIII – Atividades profissionais, científicas e técnicas; XIV – Atividades administrativas e serviços complementares; XV – Administração pública, defesa e seguridade social; XVI – Educação; XVII – Saúde humana e serviços sociais; XVIII – Artes, cultura, esportes e recreação; XIX – Outras atividades de serviços; XX – Serviços domésticos; XXI – Organismos internacionais. Gráfico 12 Ompetro – Grupos ocupacionais , segundo o estrato populacional (%), 2010 7 40,00 35,00 30,00 25,00 20,00 15,00 10,00 5,00 0,00 II I III Intraestadual V IV VI VII VIII Internacional Interestadual IX X Naturais Fonte: IBGE – Censos Demográficos de 2010 As diferenças em relação ao setor de atividade e ocupação entre os trabalhadores dos diferentes estratos populacionais se refletem no rendimento dos mesmos. Como se pode notar no Gráfico 13, praticamente 68% dos naturais, 59,43% dos imigrantes interestaduais e 54,2% dos imigrantes intraestaduais tinham, em 2010, uma renda de, no máximo, 2 salários mínimos, enquanto entre os imigrantes internacionais a distribuição relativa apresenta-se mais suavizada. Ressalta-se, ainda, nas primeiras faixas de rendimento a curva de rendimento dos imigrantes interestaduais se sobrepõe à dos imigrantes intraestaduais, havendo uma inversão nas faixas mais elevadas de rendimento. Gráfico 13 Ompetro – Rendimento, em faixas de salários mínimos, segundo o estrato populacional (%), 2010 45,0 40,0 35,0 30,0 25,0 20,0 15,0 t 10,0 Intraestadual Interestadual Internacional 20 ou + +15 até 20 +10 até 15 + 5 até 10 +3 até 5 +2 até 3 +1 até 2 0,0 0a1 5,0 Naturais Fonte: IBGE – Censo Demográfico de 2010 Os imigrantes internacionais do quinquênio 2005-2010 tinham um rendimento 7 Grupos de Ocupação: Diretores e Gerentes; II – Profissionais das ciências e intelectuais; III – Técnicos e profissionais de nível médio; IV – Trabalhadores de apoio administrativo; V – Trabalhadores dos serviçs, vendedores dos comércios e mercados; VI – Trabalhadores qualificados da agropecuária, florestais, da caça e da pesca; VII – Trabalhadores qualificados, operários e artesãos da construção, das artes mecânicas e outros ofícios; VIII – Operadores de Instalações e máquinas e montadores; IX – Ocupações elementares; X – Membros das forças armadas, policiais e bombeiros militares. 27 médio de R$3.955,91 enquanto a renda média dos imigrantes interestaduais era de R$2.047,26 e a dos imigrantes intraestaduais era de R$1.950,48. O rendimento médio dos naturais era significativamente mais baixo e igual a R$1.456,57. Considerações finais Os municípios pertencentes à Ompetro vêm passando por intensas mudanças demográficas e socioeconômicas decorrentes dos crescentes investimentos – diretos e indiretos - relacionados à atividade petrolífera e parapetrolífera. Em relação à dinâmica demográfica nos chama a atenção a elevação do ritmo de crescimento populacional; atualmente a população da região da Ompetro cresce mais aceleradamente do que a população ERJ, implicando no aumento da concentração da população nesta região e da sua participação relativa no incremento absoluto estadual. Internamente, os municípios apresentam crescimento populacional diferenciado destacando-se entre eles, Rio das Ostras que, na última década apresentou crescimento médio anual de 11,24%. Concomitantemente a esse crescimento populacional, verificouse, a exemplo de outras regiões brasileiras, um intenso processo de urbanização, nas últimas décadas. O mercado de trabalho, por sua vez, vem se tornando mais formalizado e seletivo, exigindo um trabalhador mais qualificado. Apesar da possibilidade de transferência intersetorial da mão de obra, parte da oferta das vagas vem sendo ocupada por imigrantes – interestaduais, intraestaduais e internacionais – já que muitas vezes os naturais não apresentam nível de escolaridade suficiente para ocupá-las. No entanto, já é perceptível o efeito desta maior seletividade sobre a mão de obra dos naturais, que vem buscando ampliar seus níveis de escolaridade para se inserirem ou se manterem nesse novo mercado de trabalho. Constatou-se um aumento significativo da imigração em direção aos municípios da Ompetro entre 1986-1991 e 2005-2010. No último quinquênio foram mais de 200 mil imigrantes, dentre os quais se sobressaem os intraestaduais. Estes apresentam nível de escolaridade maior do que o dos naturais, similar ao migrante interestadual e inferior ao imigrante internacional. As diferenças de escolaridade entre os estratos populacionais se refletem nas ocupações que estes indivíduos exercem no mercado de trabalho e nos rendimentos auferidos. As análises, aqui realizadas de forma agregada, abrem espaço para novas pesquisas que considerem estudos sobre movimentos pendulares entre os municípios da Ompetro, bem como os fluxos migratórios por município, tendo em vista as significativas diferenças socioeconômicas e demográficas. Referências BAENINGER, R. e OJIMA, R. Novas Territorialidades e a sociedade de risco: evidências empíricas e desafios teóricos para a compreensão dos novos espaços da migração.Papeles de Población. Nueva Época, Ano 14, N.58, Octubre-diciembre, 2008. 28 BRITO, Fausto e SOUZA, Joseane. Os Emigrantes: Minas no Contexto das Migrações Internas no Brasil. In Seminário sobre a Economia Mineira, 7, 1995. Diamantina. Vol. 1. Belo Horizonte, CEDEPLAR/UFMG, 1995. p. 249-272. CARVALHO, Ailton Mota e SILVA, Érica Tavares. Dinâmica demográfica no norte fluminense. In CARVALHO, A. M e TOTTI, M. E. F (orgs). Formação Histórica e Econômica do Norte Fluminense. Rio de Janeiro. Garamond, 2006. CARVALHO, J.A.M, et al. Tipologia dos Imigrantes e Emigrantes Interestaduais segundo o Censo Demográfico de 1991 tomando-se como referência o estado de Minas Gerais. In: II Encontro Nacional de Migrações, Ouro Preto, 1999. p.35-57. FIBGE – Censo Demográfico de 1991. FIBGE – Censo Demográfico de 2000. FIBGE – Censo Demográfico de 2010. OLIVEIRA, A. T. R. Perfil dos Migrantes na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, no período 1981/1991. In Encontro Nacional sobre Migração, 2, 1999, Ouro Preto. Belo Horizonte: ABEP, 2000. p. 407-419. PIQUET, Rosélia. Da Cana ao petróleo: uma região em mudança. In PIQUET, Rosélia (org.). Petróleo, royalties e região. Rio de Janeiro: Garamond, 2003. PIQUET, Rosélia. 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Tese de Doutorado defendida no Departamento de Demografia da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais (CEDEPLAR/FACE/UFMG) em 27 de Fevereiro de 2008. 29 Agenda Social ELETRONIC JOURNAL VOLUME NÚMERO 7 2 ISSN 1981-9862 www.revistaagendasocial.com.br COnsiderações sOBre a aPLiCaçÃO dOs rOYaLTies dO PEtRÓLEO NO BRASIL Considerations about the petroleum royalties’ application in Brazil franKenfeLd, Karoline Pinheiro (1); siLVa, elmo rodrigues da (2); MaTTOs, Ubirajara aluizio (3). 1.DoutorandaemMeioAmbientepelaUERJ([email protected]).2.DoutoremSaúde PúblicapelaFundaçãoOswaldoCruz(1998).ProfessorAdjuntodaUERJeCoordenadorAdjuntodos ProgramasdePós-Graduação:MeioAmbiente(DoutoradoMultidisciplinar)eEngenhariaAmbiental (MestradoProfissional)-([email protected]);3.DoutoremArquiteturaeUrbanismopelaUSP (1988).ProfessortitulardaUERJ.CoordenadordoProgramadePós-graduaçãoemEngenhariaAmbiental. Email:[email protected] RESUMO Este artigo analisa a distribuição dos royalties e participações especiais repassados pela indústria do petróleo para os estados brasileiros e sua correlação com o crescimento social destes, utilizando o IDH(índicededesenvolvimentohumano) como valor comparativo. Discutemse, assim, a forma de distribuição dos recursos provenientes do petróleo ditada na lei 9.478 de 1997, mais conhecida como lei do petróleo, e a proposta de sua aplicação para as jazidas do pré-sal. Foi feita uma pesquisa documental relativa aosmontantesderoyaltieseparticipações especiais recebidos por cada estado e seus respectivos municípios entre 2000 e 2005 e os índices de IDH de cada estado no mesmo período. Posto que não foi possível verificar a relação direta entre o recebimentodosroyaltieseparticipações especiais e o índice de desenvolvimento humanodasregiõesbeneficiadas,sugerese que a lei do petróleo deve predeterminar a aplicação dos recursos para permitir efetivasmelhoriassociais. 30 PaLaVras-CHaVe ROYALTIES; PETRÓLEO; IDH; PRé-SAL; LEI 9478. aBsTraCT This article presents an analysis of “royalties” and “participações especiais” that were distributed for the Brazilian states, by the oil industry, from 2000 to 2005, and its correlation with each state social development, using the IDH (índice de desenvolvimento humano) as the comparative value. The discussion is based on the model of the oil industry resources distribution that is established by law 9.478, 1997 known as Oil law and the proposal of its application for the pré-sal oil discoveries. A documental research related to the monetary value of royalties and “participações especiais” that each state received between 2000 and 2005 and the IDH of each state during the same period was developed. Although it was not possible to prove a direct relation between royalties and “participações especiais” distribution with the human development index of the regions that received the benefit, this article suggests that the oil law should determinate the resources application to allow effective social development. KEY-WORdS ROYALTIES; PETROLEUM; IDH; PRE-SALT; LAW 9478. 1. INTRODUÇÃO A descoberta de hidrocarbonetos na camada do pré-sal (área localizada abaixo da camada de sal, com cerca de 800 quilômetros de extensão e 200 quilômetros de largura em águas ultraprofundas, estando a 300 quilômetros da costa brasileira) irá trazer para o Brasil, além de muita riqueza, uma nova discussão sobre a divisão destes recursos. Hoje, as três esferas do poder público estão em busca da regulamentação da exploração desta nova jazida e dos recursos financeiros que ela irá proporcionar em forma de royalties para o país, estados e municípios. Existe hoje a lei 9.478 de 1997 que define a divisão dos royalties do petróleo entre federação, estado, município e Ministério da Marinha e que garantiu para o estado do Rio de Janeiro a arrecadação de 68,71% deste recurso em 2008. Os 31,29% dos recursos restantes foram destinados aos demais 26 estados brasileiros, o que pode aumentar o desequilíbrio entre o desenvolvimento dos estados, e a dificuldade em suprir o acesso ao serviço público por todos os cidadãos, por não haver equidade na distribuição (PRADO, 2005). A distribuição dos royalties no Brasil entre os anos de 2000 a 2005 e o índice de desenvolvimento humano (IDH) dos estados neste período é o objeto desta análise. O IDH de cada estado serviu como base de investigação preliminar para verificar se os recursos ajudaram no crescimento da qualidade de vida das localidades beneficiadas, e assim repensar a distribuição dos royalties do pré-sal de forma diferente do que rege a lei 9.478. 2. Revisão da Literatura A camada pré-sal é uma descoberta geológica recente. Muitos especialistas acreditam que a quantidade de hidrocarbonetos desta jazida é superior a daquelas previamente conhecidas no Brasil. Estima-se que as reservas contidas nesta camada em águas ultraprofundas, que se estende desde o estado de Santa Catarina até o estado do Espírito Santo, variem entre 50 e 150 bilhões de barris de petróleo (BERMANN, 2009). A descoberta desta nova jazida despertou a discussão sobre a exploração destes recursos e também sobre a divisão desta riqueza. A lei 9.478 de 1997, conhecida como Lei do Petróleo, estabelece que as empresas que exploram hidrocarbonetos em território brasileiro (tanto em terra como no mar) são obrigadas a pagar royalties e participações especiais para Município, Estado e Federação. Royalties são, na verdade, compensações financeiras com o intuito de remediar os impactos ambientais negativos que a indústria do petróleo causa nas localidades onde se aloja. Já as participações especiais constituem compensação financeira extraordinária devida pelos concessionários de exploração e produção de petróleo ou gás natural, nos casos de grande volume de produção ou de grande rentabilidade. Os royalties são pagos mensalmente enquanto que as participações especiais são pagas por trimestre, sendo aplicadas sobre a receita bruta da produção, após dedução do valor pago de royalties, dos investimentos na exploração, dos custos operacionais, da depreciação e dos tributos previstos na legislação em vigor (ANP, 2009). Em relação à exploração em plataformas continentais, que é o objeto deste trabalho, a lei garante à ANP (Agência Nacional do Petróleo) a responsabilidade pelo gerenciamento dos 31 blocos que serão explorados e pela determinação da porcentagem de royalties que as empresas concessionárias desembolsarão. A determinação deste percentual é feita no edital de licitação dos blocos, e dependerá dos riscos geológicos e expectativas de produção da área, mas não poderá ser menor que 5% da produção. No caso de a compensação ser igual a 5%, o montante é devido aos Estados, Distrito Federal e Municípios confrontantes à área do bloco. A proporção, neste caso, é a seguinte: 1,5% do valor da produção devem ser pagos aos Estados confrontantes e Distrito Federal, 0,5% aos Municípios onde se localizarem instalações marítimas ou terrestres de embarque ou desembarque para apoio a produção, 1,5% aos Municípios produtores e suas respectivas áreas geoeconômicas, 1% ao Ministério da Marinha, para atender aos encargos de fiscalização e proteção das atividades econômicas dos blocos e 0,5% será destinado para constituir um fundo especial a ser distribuído entre os Estados, Territórios e Municípios brasileiros (lei 9.478). Caso a ANP tenha determinado que a área deva ter um percentual de royalties mais elevado, a divisão se modifica e acontece da seguinte forma: 22,5% do valor da porcentagem estipulada da produção deve ser pago aos Estados produtores confrontantes. Outros 25% para os Municípios produtores confrontantes, 15% para o Ministério da Marinha pelas mesmas razões já citadas acima, 7,5% para os Municípios que sejam afetados pelas operações de embarque e desembarque de petróleo e gás natural (de acordo com os critérios estabelecidos pela ANP), 7,5% para o Fundo Especial, também distribuído entre todos os Estados, Territórios e Municípios brasileiros e 25% ao Ministério da Ciência e Tecnologia. Esse último deve utilizar os recursos para financiar programas de amparo à pesquisa científica e ao desenvolvimento tecnológico aplicados à indústria do petróleo, do gás natural, dos biocombustíveis e à indústria petroquímica de primeira e segunda geração, bem como para programas de mesma natureza que tenham por finalidade a prevenção e a recuperação de danos causados ao meio ambiente por essas indústrias. Em outras palavras, para os blocos que geram arrecadação maior que 5% da produção em forma de royalties, apenas 7,5% do valor é direcionado para o fundo especial que tem como objetivo dividir o recurso entre todos os estados e municípios brasileiros. A grande parte do valor é direcionada aos municípios produtores e possuidores de infraestrutura voltada para o chamado mercado offshore. Em relação às participações especiais, 40% do recurso é destinado ao Ministério de Minas e Energia, 10% são destinados ao Ministério do Meio Ambiente; 40%, aos Estados produtores ou confrontantes com a plataforma continental onde ocorrer a produção; e 10%, aos Municípios produtores ou confrontantes (ANP, 2009). De acordo com FERNANDES, 2007 a destinação destes recursos para os municípios vem gerando desenvolvimento econômico e social para a localidade. Uma das formas de medir esse desenvolvimento é através do uso de indicadores sociais como, por exemplo, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Este índice foi criado pelo economista paquistanês Mahbub ul Haq com a colaboração do economista indiano Amartya Sen, com o objetivo de oferecer um índice mais completo que o Produto Interno Bruto (PIB) per capita, que considera apenas a dimensão econômica do desenvolvimento de uma localidade (PNUD, 2009). Este índice 32 leva em consideração três variáveis que possuem o mesmo peso: o PIB per capita, depois de corrigido pelo poder de compra da moeda de cada país, a longevidade da população que habita a localidade e a educação destas pessoas. A longevidade é medida através de números de expectativa de vida ao nascer; e a educação, pelo índice de analfabetismo e taxa de matrícula em todos os níveis de ensino. A renda é mensurada pelo PIB per capita em dólar. Este índice pode variar de 0 (pior) a 1 (melhor) e hoje em dia é utilizado mundialmente para entender o nível de desenvolvimento das localidades do globo. 3. Metodologia Para verificar se existe relação entre a arrecadação de royalties e participações especiais e o índice de desenvolvimento humano dos estados brasileiros, foi posta em prática uma pesquisa documental e posterior análise dos dados coletados. Foram verificados os montantes de royalties e participações especiais arrecadados entre os anos de 2000 e 2005 além dos IDHs dos estados no ano de 2000 e 2005 para possibilitar a geração de uma análise comparativa. Além disso, foram recolhidos dados de arrecadação mais recentes para exemplificar a distribuição não equalizada dos recursos. Tomando o estado do Rio de Janeiro como exemplo, R$ 1.563.533.881,34 foram arrecadados em forma de royalties no ano de 2007. Ora, este valor representou 68,23% de todos os royalties recebidos pelos Estados brasileiros durante o período, já que o total arrecadado foi de R$ 2.291.236.321,95. Restaram, portanto, 31,76% do recurso para ser distribuído para os demais 25 Estados e o Distrito Federal. Levando-se em consideração que apenas 10 Estados brasileiros (Alagoas, Amazonas, Bahia, Ceará, Espírito Santo, Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, São Paulo e Sergipe) cumprem com os requisitos da Lei 9.478 para serem beneficiados como “estados produtores confrontantes”, 17 Estados1 não receberam o benefício de maneira direta e, caso fossem beneficiados, seria via Fundo Especial. No ano de 2007, o Fundo Especial arrecadou um total de R$ 576.573.032,42, valor que representa 36,87% do montante de royalties destinados ao estado do Rio de Janeiro. Se trabalharmos estes números de acordo com a distribuição per capita, o Estado do Rio de Janeiro recebeu R$ 101,39 por pessoa no ano de 2007, enquanto que os Estados brasileiros beneficiados via Fundo Especial receberam de forma per capita, no máximo, o valor de R$ 3,42 (utilizando dados populacionais do ano de 2007 disponibilizados pelo IBGE). Apesar de a Lei 9.478 não especificar como os recursos dos royalties devem ser aplicados (apenas proíbe que sejam gastos com folha de pagamento de pessoal e dívidas), espera-se que estes recursos venham, de alguma forma, impactar positivamente a vida dos moradores das localidades que o recebam e não apenas aumentar o Produto Interno Bruto (PIB) da localidade. Para entender o impacto social que o repasse de royalties e participações especiais causa nas localidades beneficiadas pelos recursos, foi feita uma comparação do IDH de todos os estados brasileiros entre 2000 e 2005 levando-se em consideração o montante de royalties e participações especiais pagos para estes estados neste período. Foram utilizados os dados de 1 Para facilitar a análise, o Distrito Federal está sendo considerado como o 27º estado brasileiro. 33 IDH do PNUD dos anos 2000 e 2005 e dados de repasse dos royalties e participações especiais da ANP, considerando o ano de 2000 como ponto de partida e o ano de 2005 como índice comparativo. Ceará Espírito Santo Estado IDHM-Renda IDHM-Longevidade IDHM-Educação, Paraná IDHM-Total Distrito Federal 0,842 0,756 0,935 0,844 Santa Catarina 0,75 0,811 0,906 0,822 São Paulo 0,79 0,77 0,901 0,82 Rio Grande do Sul 0,754 0,785 0,904 0,814 Rio de Janeiro 0,779 0,74 0,902 0,807 Paraná 0,736 0,747 0,879 0,787 Mato Grosso do Sul 0,718 0,751 0,864 0,778 Goiás 0,717 0,745 0,866 0,776 Mato Grosso 0,718 0,74 0,86 0,773 Minas Gerais 0,711 0,759 0,85 0,773 Espírito Santo 0,719 0,721 0,855 0,765 Amapá 0,666 0,711 0,881 0,753 Roraima 0,682 0,691 0,865 0,746 Rondônia 0,683 0,688 0,833 0,735 Pará 0,629 0,725 0,815 0,723 Amazonas 0,634 0,692 0,813 0,713 Tocantins 0,633 0,671 0,826 0,71 Pernambuco 0,643 0,705 0,768 0,705 Rio Grande do Norte 0,636 0,7 0,779 0,705 Ceará 0,616 0,713 0,772 0,7 Acre 0,64 0,694 0,757 0,697 Bahia 0,62 0,659 0,785 0,688 Sergipe 0,624 0,651 0,771 0,682 Paraíba 0,609 0,636 0,737 0,661 Piauí 0,584 0,653 0,73 0,656 Alagoas 0,598 0,646 0,703 0,649 Maranhão 0,558 0,612 0,738 0,636 A tabela 1 mostra a situação de cada um dos 27 Estados em relação a cada um dos três componentes do índice de desenvolvimento humano (renda, longevidade e educação). Como as três variáveis possuem o mesmo peso, o IDH da localidade também é mostrado na planilha, sendo a média destas componentes. Os estados destacados representam aqueles que recebem diretamente os repasses dos royalties do petróleo por, de alguma maneira, se enquadrarem no que dita a lei 9.478 em relação aos estados confrontantes. De acordo com dados da ANP, entre o período de 2000 a 2005 estes recursos foram distribuídos como mostram as tabelas 2 e 3 abaixo. 34 Amazonas Bahia Tabela 1 – IDH dos estados brasileiros em 2000 Estad Alagoas Rio de Janeiro Rio Grande do Santa Catarina São Paulo Sergipe Total Estad Alagoas Amazonas Bahia Espírito Santo Rio de Janeiro Rio Grande do N Sergipe Total dos o o Norte a dos Norte Tabela 2 – Distribuição dos Royalties de Petróleo entre 2000 e 2005 para os estados 2000 2001 2002 2003 2004 2005 Total 9.462.992,37 11.741.610,98 14.398.015,15 23.036.530,39 29.052.581,13 34.824.135,24 122.515.865,26 48.561.015,07 59.678.885,39 70.308.347,88 90.479.836,67 113.977.881,75 143.045.522,15 526.051.488,91 58.856.592,54 70.989.516,11 77.688.695,95 114.992.895,59 129.685.784,63 148.110.842,26 600.324.327,08 6.688.088,56 8.578.701,25 9.356.902,06 14.153.663,74 13.734.716,54 13.950.026,37 66.462.098,52 13.918.807,65 24.346.893,54 31.131.343,46 59.278.535,24 51.617.198,56 57.283.546,37 237.576.324,82 2.150.761,01 1.496.431,85 660.016,46 3.016.769,17 7.502.554,93 8.687.952,91 23.514.486,33 367.806.085,64 461.457.781,38 671.655.955,60 907.744.089,66 1.041.661.371,24 1.318.598.335,87 4.768.923.619,39 85.150.381,56 90.134.325,74 103.435.336,47 140.945.914,14 163.847.977,58 181.023.305,03 764.537.240,52 52.959,32 39.549,18 18.337,08 N/A N/A N/A 110.845,58 28.799.731,06 31.831.314,79 2.496.987,74 4.000.068,61 3.947.396,44 4.147.896,64 75.223.395,28 1.839.492,95 2.183.721,34 39.809.993,76 55.525.782,13 63.658.855,79 74.657.859,01 237.675.704,98 623.286.907,73 762.478.731,55 1.020.959.931,61 1.413.174.085,34 1.618.686.318,59 1.984.329.421,85 7.422.915.396,67 Tabela 3 – Distribuição das Participações Especiais entre 2000 e 2005 para os estados 2000 2001 2002 2003 2004 2005 Total 0 0 0 0 0 1.501.394 1.501.394 5 4.987.151 6.374.779 21.764.883 26.908.031 33.705.666 93.740.516 0 0 0 0 4.356.133 3.547.541 7.903.673 0 97.445 2.067.847 8.379.876 11.272.743 13.844.094 35.662.005 415.495.228 682.945.848 995.630.018 1.961.296.962 2.044.674.137 2.699.306.000 8.800.282.648 0 788.500 0 7.532.118 21.527.197 25.969.238 55.817.052 0 0 0 0 52.602 7.990.656 8.043.259 415.495.233 688.818.944 1.004.072.644 1.998.973.839 2.108.790.843 2.785.864.589 9.002.950.547 Tabela 4 – IDH dos estados brasileiros em 2005 Estado Distrito Federal Santa Catarina São Paulo Rio de Janeiro Rio Grande do Sul Paraná Mato Grosso do Sul Espírito Santo Minas Gerais Goiás Mato Grosso Amazonas Amapá Rondônia Tocantins Pará Acre Roraima Sergipe Bahia Rio Grande do Norte Ceará Paraíba Pernambuco Piauí Maranhão Alagoas IDHM-Renda, 2005 0,824 0,756 0,768 0,758 0,748 0,739 0,709 0,715 0,702 0,712 0,702 0,648 0,676 0,685 0,647 0,632 0,647 0,629 0,643 0,621 0,657 0,616 0,638 0,632 0,608 0,57 0,589 IDHM-Longevidade, 2005 0,835 0,83 0,812 0,793 0,827 0,809 0,802 0,802 0,819 0,797 0,793 0,766 0,744 0,759 0,761 0,772 0,763 0,736 0,756 0,775 0,747 0,744 0,723 0,71 0,72 0,696 0,683 IDHM-Educação, 2005 0,962 0,934 0,921 0,945 0,921 0,913 0,894 0,887 0,878 0,891 0,898 0,925 0,919 0,885 0,86 0,861 0,844 0,885 0,827 0,83 0,81 0,808 0,793 0,811 0,779 0,784 0,759 IDHM, 2005 0,874 0,84 0,833 0,832 0,832 0,82 0,802 0,8 0,8 0,8 0,796 0,78 0,78 0,776 0,756 0,755 0,751 0,75 0,742 0,742 0,738 0,723 0,718 0,718 0,703 0,683 0,677 35 Tabela 5 – Movimento do Ranking do IDH dos estados brasileiros Estado Movimento no Ranking Distrito Federal Sem movimento Santa Catarina Sem movimento São Paulo Sem movimento Rio de Janeiro Subiu uma posição Rio Grande do Sul Desceu uma posição Paraná Sem movimento Espírito Santo Subiu quatro posições Mato Grosso do Sul Desceu uma posição Goiás Desceu uma posição Minas Gerais Sem movimento Mato Grosso Desceu duas posições Amapá Sem movimento Amazonas Subiu três posições Rondônia Sem movimento Tocantins Subiu duas posições Pará Subiu uma posição Acre Subiu quatro posições Roraima Desceu cinco posições Bahia Subiu três posições Sergipe Subiu três posições Rio Grande do Norte Desceu duas posições Ceará Desceu duas posições Pernambuco Desceu cinco posições Paraíba Sem movimento Piauí Sem movimento Maranhão Subiu uma posição Alagoas Desceu uma posição O fato de apenas 50% dos estados que recebem royalties terem subido no Como pode ser observado, o estado do Rio de Janeiro recebeu 64% do valor total de royalties repassado aos estados durante o período de 2000 a 2005 e 97,74% do valor repassado em participações especiais. O Rio Grande do Norte, segundo colocado no repasse de royalties, recebeu 10,2% do valor total e 0,62% do repasse de participações especiais. Como possuem mais recursos financeiros, gerando aumento da renda per capita, e possibilidades de investimento em educação e saúde, era esperado que estes estados alcançassem um melhor IDH no ano de 2005. A tabela abaixo mostra o IDH dos estados no ano de 2005. ranking do índice de desenvolvimento humano no período de 2000 a 2005 gerou a necessidade de rever a análise de distribuição dos royalties como um todo, já que foi levada em consideração, nesta primeira análise, apenas a captação direta dos estados. Ora, o recebimento de royalties e participações especiais pelos municípios que formam geograficamente os estados deveria influir diretamente no desenvolvimento dos estados. Sendo assim, foram levantados os valores de royalties e participações especiais recebidos pelos municípios formadores de cada estado para entender se a arrecadação dos municípios é muito representativa frente à arrecadação dos estados, podendo, desta forma, haver uma influência no montante final real recebido por cada estado e, com isso, uma influência no desempenho do IDH. 36 Tabela 6 – Arrecadação dos Estados, Municípios, Arrecadação Geral e IDH. Estado Rio de Janeiro Rio Grande do Norte Bahia Amazonas Sergipe Espírito Santo São Paulo Alagoas Ceará Santa Catarina Rio Grande do Sul Paraná Pernambuco Minas Gerais Paraíba Pará Amapá Distrito Federal Mato Grosso do Sul Goiás Mato Grosso Rondônia Tocantins Acre Roraima Piauí Maranhão Royalties e *PEs Acumulados de 2000 a 2005 (Estados) Royalties e *PEs Acumulados de 2000 a 2005 (Municípios) R$ 13.569.206.267,39 R$ 7.418.204.801,94 R$ 820.354.292,52 R$ 608.228.000,08 Total Acumulado 2000 a 2005 Ranking R$ IDH R$ 20.987.411.069,33 1 4 R$ 514.210.604,80 R$ 1.334.564.897,32 2 21 R$ 400.080.636,29 R$ 1.008.308.636,37 3 19 R$ 619.792.004,91 R$ 229.583.094,72 R$ 849.375.099,63 4 13 R$ 245.718.963,98 R$ 267.956.412,74 R$ 513.675.376,72 5 20 R$ 273.238.329,82 R$ 252.211.466,78 R$ 525.449.796,60 6 7 R$ 75.223.395,28 R$ 427.821.947,26 R$ 503.045.342,54 7 3 R$ 124.017.259,26 R$ 98.268.668,57 R$ 222.285.927,83 8 27 R$ 66.462.098,52 R$ 94.829.937,86 R$ 161.292.036,38 9 22 R$ 110.845,58 R$ 101.102.729,65 R$ 101.213.575,23 10 2 R$ 0,00 R$ 96.409.673,46 R$ 96.409.673,46 11 5 R$ 23.514.486,33 R$ 27.833.206,83 R$ 51.347.693,16 13 6 R$ 0,00 R$ 42.264.138,19 R$ 42.264.138,19 12 23 R$ 0,00 R$ 19.436.884,68 R$ 19.436.884,68 14 10 R$ 0,00 R$ 4.318.607,79 R$ 4.318.607,79 15 24 R$ 0,00 R$ 3.987.847,81 R$ 3.987.847,81 16 16 R$ 0,00 R$ 703.596,67 R$ 703.596,67 17 12 1 8 9 11 14 15 17 18 25 26 * Participações Especiais Como pode ser observado na tabela 6, a arrecadação dos municípios é muito significativa e, muitas vezes, ultrapassa a arrecadação do estado, como é o caso de Sergipe, São Paulo, Ceará, Rio Grande do Sul, Paraná, Minas Gerais, Amapá, Pará, Pernambuco e Paraíba. Levando a arrecadação municipal em consideração, o número de estados beneficiados sobe de 10 para 17, modificando substancialmente o panorama anterior. Dividindo-se os 27 estados do Brasil em 3 grupos de nove estados, sendo o grupo 1 representado pelos estados que possuem maior IDH, o grupo 2 representado pelos estados que possuem IDH intermediário e o grupo 3 representado pelos estados com menor IDH, é possível verificar que, dentro do grupo 1, 66,7% dos estados recebem royalties. No grupo 2, 44,4% dos estados recebem royalties, e no grupo 3, 77,7% dos estados recebem royalties. Esta informação confunde, já que vai de encontro à primeira hipótese deste trabalho, que supunha que o recebimento de royalties ajudaria na melhora da qualidade de vida da população e, por conseqüência, em uma melhora do IDH. O fato é que as diferenças sociais entre uma localidade e outra podem ser tão significativas que, mesmo com os investimentos pesados dos royalties, cinco anos pode não ser um período suficiente para colocar as localidades menos desenvolvidas (no sentido social) em posição de concorrer com localidades mais desenvolvidas. Para tentar 37 comprovar essa teoria, foi feito o cálculo do crescimento de IDH entre 2000 e 2005 de cada localidade de forma individual, para compreender seu crescimento. Tabela 7 – Crescimento de IDH por localidade entre 2000 e 2005 38 Estado Melhora Amazonas Sergipe Paraíba Bahia Maranhão Piauí Tocantins Acre Rondônia Espírito Santo Rio Grande do Norte Pará Alagoas Paraná Amapá Distrito Federal Minas Gerais Ceará Rio Grande do Sul Goiás Mato Grosso do Sul Mato Grosso Rio de Janeiro Santa Catarina Pernambuco São Paulo Roraima 1,093969 1,087977 1,086233 1,078488 1,073899 1,071646 1,064789 1,057746 1,055782 1,048366 1,046809 1,04426 1,043143 1,041931 1,035857 1,035545 1,034929 1,032857 1,030979 1,030928 1,030848 1,029754 1,022113 1,021898 1,01844 1,015854 1,005362 Grupo A A A A A A A A A B B B B B B B B B C C C C C C C C C A análise da tabela 7 mostra uma realidade um pouco distinta. Dividindo-se novamente os 27 estados em 3 grupos de 9 estados, sendo o grupo A representado pelos estados que alcançaram maior crescimento do IDH, o grupo B representado pelos estados que alcançaram crescimento intermediário e grupo C representado pelos estados que alcançaram menor crescimento, é possível verificar que, dentro do grupo A, os 4 estados que apresentam maior crescimento do IDH recebem royalties do petróleo (Amazonas – quarta posição no recebimento de royalties, Sergipe – quinta posição no recebimento de royalties, Paraíba – décima quinta posição no recebimento de royalties e Bahia – terceiro colocado no recebimento de royalties). Apesar disso, neste grupo, apenas 44,4% dos estados recebem o benefício. Já no grupo B, que demonstra crescimento intermediário, 88,8% dos estados recebem royalties. No grupo C, 55% dos estados recebem royalties. É importante notar que o grupo C, apesar de conter os estados com menor índice de crescimento no período, possui 4 estados que estão dentre os primeiros 5 colocados no ranking do IDH de 2005 (estes 4 estados recebem royalties e participações especiais). Essa informação mostra que o recebimento dos royalties pode impactar de maneira positiva nas variáveis utilizadas para o cálculo do IDH, já que demonstra um crescimento expressivo na melhora desse índice da maioria dos estados que recebem royalties (70% deles apresentaram maior crescimento ou crescimento intermediário no IDH entre 2000 e 2005). No grupo A, ainda é possível localizar o terceiro, quarto e quinto estados que mais receberam royalties no período. O curioso é notar que os dois estados mais bem “pagos” no período estão no grupo C (Rio de Janeiro e Rio Grande do Norte). Este fato pode se dar por vários motivos, entre eles, aplicação dos recursos em segmentos que não são utilizados no cálculo do IDH e inadequação na aplicação dos recursos, já que a lei do petróleo não prédetermina em que segmentos o recurso deve ser aplicado. 3. Conclusão A lei do petróleo define que os estados e municípios brasileiros que abrigam infraestrutura necessária para a realização de atividades relacionadas com a indústria do petróleo (gasodutos, oleodutos, portos, aeroportos, entre outros) devem receber uma compensação financeira para remediar os impactos negativos que esta indústria possa vir a causar na localidade. A questão é que alguns estados e a maioria dos municípios não se encaixam nas condições estipuladas pela lei, não sendo, por isso, elegíveis ao recebimento de royalties e participações especiais, gerando assim uma distribuição desigual dos recursos entre as várias localidades brasileiras. A forma escolhida para mostrar que o recebimento de royalties e participações especiais impacta no desenvolvimento social da localidade foi a verificação do IDH. Foram levantados os valores das compensações recebidas pelos 27 estados brasileiros no período de 2000 a 2005 e das compensações recebidas por cada um deles. Foi constatado que apesar de apenas 10 estados brasileiros terem direito de receber compensações da indústria do petróleo de forma direta (valores repassados diretamente para os governos estaduais), vários municípios recebem os benefícios. Este dado é importante e muda o panorama da distribuição, já que, quando os municípios formadores dos estados são considerados, o número de estados beneficiados muda de 10 para 17. Dos 17 estados beneficiados, 6 deles estão entre os 9 estados com maior IDH no ano de 2005. Além disso, 4 deles obtiveram o maior crescimento de IDH no período avaliado. Dos 9 estados que obtiveram crescimento intermediário, 8 deles recebem royalties do petróleo. Dos 9 estados com menor crescimento, 4 estados recebem royalties, sendo que o Rio de Janeiro, estado que recebe o maior percentual, se encontra neste grupo. Sendo assim, é possível concluir que, apesar de o Rio de Janeiro não ter obtido um grande crescimento no IDH e se encontrar na vigésima terceira posição no ranking de crescimento do IDH no período de 2000 a 2005, a maioria dos estados que receberam royalties e participações especiais relativas à indústria do petróleo se posicionou dentro dos grupos de crescimento maior e intermediário. Além disso, apenas 30% dos estados que não recebem royalties ou participações especiais conseguiram se movimentar no ranking do IDH de 2005. Os 70% restantes não conseguiram se movimentar no ranking ou desceram de posição. Este panorama mostra que de alguma forma os valores provenientes dos royalties e participações especiais da indústria do petróleo podem estar ajudando no desenvolvimento 39 social dos estados captadores, e que, por isso, este montante deve ser distribuído de forma mais igualitária para os estados e municípios brasileiros. Para que fosse possível relacionar de maneira direta o IDH dos estados com o recebimento dos royalties e participações especiais, os valores provenientes destas fontes (ou parte expressiva destes) deveriam ser aplicados somente em variáveis que impactem na longevidade da população e na educação (principalmente no que se refere à diminuição do analfabetismo e aumento da taxa de matrícula de estudantes das localidades). Por isso, conclui-se que se faz necessária uma modificação não somente na distribuição dos royalties, mas também na lei 9.478, que deve pré-determinar em que segmentos os valores dos royalties e participações especiais devem ser aplicados. 5. 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Agenda Social VOLUME NÚMERO 7 2 ISSN 1981-9862 ELETRONIC JOURNAL www.revistaagendasocial.com.br a esCOLa PÚBLiCa BrasiLeira: diVersidade e AUtONOMIA The brazilian public school: diversity and autonomy SILVA, Wanderley da (1). RESUMO 1.UFRRJ([email protected]). A escola pública brasileira sofreu transformações profundasdurantetodoperíodorepublicano,sobretudo em relação ao acesso à educação básica. As camadas menos favorecidas economicamente eram, direta ou indiretamente,afastadasdosbancosescolares.Todavia, nas últimas quatro décadas, o perfil do alunado da escola pública vem se modificando, e as crianças e jovens das camadas mais pobres da sociedade já são a maioria na escola pública básica brasileira. O processo de modificação do perfil do aluno da escola pública brasileira coincide com uma contestação cada vez maior da instituição escolar, evidenciada no baixo desempenho dos alunos das redes públicas nos exames de avaliação do desempenho escolar. O baixo desempenho da escola pública nos exames é objeto de críticas constantes sobre a falta de eficiência e eficácia das redes públicas de ensino, marcando a suposta decadência da escola. Uma das ilações correntes a respeito dessa coincidência é de que, a queda da qualidade do ensino da escola pública tem relação direta com a entrada maciça das classes menos favorecidas no espaço escolar, conclusão que rejeitamos. O presente texto procura caracterizar o processo de aumento gradual da entrada das camadas populares na escola pública brasileira, permeado por um persistente preconceito contra os mais pobres e pelo acelerado abandono do poder público, materializado em políticas educacionais incapazes de acompanhar as necessárias mudanças exigidas pelos novos alunos da escola. Além de expor algumas mazelas do processo de instituição da escola pública brasileira, a principal intençãodestetrabalhoédefenderarealpossibilidadede umespaçoescolarquefavoreçaoprocessodecriaçãoda autonomia acadêmica e intelectual do aluno. O respeito àdiversidadeeaosreferentesculturaisdosalunos,são aqui tomados como pilares para uma nova concepção curricular interdisciplinar, que ajude a ultrapassar os preconceitos saudosistas contra a instituição pública e contribua para a elucidação do tema da construção da autonomia discente. PaLaVras-CHaVe ESCOLA; DIVERSIDADE; AUTONOMIA. aBsTraCT The public school has suffered deep transformations throughout all the republican era, mainly in relation to primary and high school access. The economic disadvantaged layers of society had been, direct or indirectly, removed from scholastic environment. However, on the last four decades, public school students’ profiles have been modified, and the children and youth from the disadvantaged layers of society happen to be nowadays the majority at the Brazilian public primary and high schools. The process of transformation of the public school student’s profile in Brazil concurs with a growing contestation by the scholastic institution, seen on the low performance results got in academic performance exams. The low performance of public schools is usually object for constant critique on the lack of efficiency and efficacy of public schools networks, marking a supposed decay of school. One of the current illations towards this coincidence is that the decline on teaching quality at public schools has a direct relation with the massive access of the disadvantaged classes into scholastic space, inference we reject. The present text aims at characterizing the process of gradual increase of the access of the lower layers of society into Brazilian public schools, a fact that is permeated not only by the prejudice against the poorest but also by the accelerated neglect of the public authorities, materialized in educational politics unable to accomplish the changes demanded by those new students at the public schools. Besides exposing some wounds on the process of institutionalizing the Brazilian public school, the main intention of this work is to defend the real possibility of a scholastic space that favors the process of creation of academic and intellectual autonomy. The respect towards diversity and the students’ cultural referential are taken here as the pillars for a new interdisciplinary curriculum conception that helps overtake the late prejudice against public institutions and that may contribute for elucidating the issue of students autonomy construction. KEY-WORdS SCHOOL; DIVERSITY; AUTONOMY. 41 Introdução O tema da escola pública brasileira apresenta, felizmente, uma bibliografia bastante vasta e condizente com a sua importância. Variadas análises dão relevo às forças históricas que atuaram na construção dessa instituição fundamental da sociedade, e apresentam suas mazelas e possibilidades em um grande esforço de elucidação. Com o objetivo de contribuir para esse esforço de elucidação, o presente texto busca analisar o recente aumento do acesso das classes populares à educação básica, com destaque para o ensino médio, e identificar alguns dos novos desafios que envolvem a construção do projeto de autonomia na escola pública. A primeira parte do texto é dedicada a uma caracterização pontual de algumas das políticas públicas educacionais brasileiras do Período Republicano, com a intenção de evidenciar o escopo dualista presente historicamente nas legislações que tratam da matéria. Ainda nessa seção, argumenta-se que a noção corrente de escola pública, muito provavelmente sustentada por fragmentos de significações imaginárias ainda presentes em nossa sociedade, oscila entre o pessimismo e o saudosismo; amálgama que pouco beneficia a instituição de um espaço propício para a construção de uma escola autônoma. A segunda seção aborda a relação entre a mudança do perfil socioeconômico dos alunos do ensino médio e as possibilidades de construção de um espaço de autonomia na escola. No primeiro segmento da seção, é apresentado um pequeno conjunto de dados estáticos que objetivam caracterizar o perfil socioeconômico dos alunos e, em seguida, sugere a importância das experiências vivenciais dos estudantes integradas ao currículo escolar. Já no segundo segmento, é apresentado o conceito de autonomia que fundamenta as análises do texto. O terceiro segmento é dedicado à defesa da participação dos alunos no processo de construção da autonomia na instituição escolar. Os argumentos que arrematam o texto procuram evidenciar um persistente incômodo em relação ao acesso das classes populares à escola pública, presentes na melancólica imagem que associa diretamente o fracasso e a decadência da escola pública à massificação do ensino. E, por fim, as considerações textuais apresentam uma defesa à criação da autonomia na escola pública vinculada à participação dos alunos, incorporando os seus referentes culturais e contextos socioeconômicos em uma nova concepção curricular interdisciplinar. 1. Sentidos da escola pública brasileira 42 A noção corrente de escola pública no Brasil apresenta, entre outros sentidos, uma sugestiva dicotomia amalgamada pelo saudosismo e pessimismo. Em um primeiro sentido, remete ao saudosismo de uma escola de excelência e reservada a um pequeno grupo, perdida em um passado sem uma datação precisa; seu segundo sentido, majoritário e atual, associa a instituição ao fracasso escolar e ao pessimismo quanto ao futuro. A referida dicotomia sugere um processo de decadência da escola pública brasileira, que coincide com o acesso das camadas populares à instituição escolar. A associação da escola pública brasileira a um processo de desestruturação e perda da qualidade não é um equívoco completo, pois as políticas públicas historicamente não encararam a educação como uma prioridade e pouco investiram no seu fortalecimento. Iremos, no entanto, contestar a ilação do fracasso escolar como consequência da entrada das camadas populares na escola pública. Temos informações históricas que ajudam a contestar a referida ilação, pois demonstram um crescimento de vagas e matrículas na educação pública básica, porém, desassociado de um projeto de melhoria das condições estruturais da escola, da formação de professores, da carreira docente, entre outras questões fundamentais. Neste texto usaremos o conceito de escola pública estatal, isto é, “da escola organizada e mantida pelo Estado e abrangendo todos os graus e ramos do ensino” (SAVIANI, 2003. p. 185), com o propósito de situar historicamente os nossos argumentos. Podemos dizer grosso modo que, até o final do século XIX, o modelo de educação pública brasileira esteve ligado às ordens religiosas e aos movimentos de instrução pública nos séculos XVIII e XIX, esses últimos foram estabelecidos por iniciativas estatais, porém sem continuidade ou abrangência (Ibid.). Ainda no final do século XIX, as ideias positivistas e evolucionistas tomaram corpo e influenciam a cultura brasileira, inclusive na construção de uma “escola pública imaginária” (VALLE, 1997), que supostamente serviria de sustentação para a criação de uma nação brasileira afinada com os ideais liberais. Todavia, o projeto de emancipação da educação republicana brasileira não incluía toda a população, apenas o estabelecimento e aprimoramento de uma elite intelectual dirigente, condizente com as teses liberais da época. Em um arranjo dualista, as políticas educacionais subsequentes deram à escola pública um direcionamento eminentemente dicotômico, reservando uma formação laboral aligeirada para uma pequena parcela das classes populares. Intenção manifesta em várias “reformas” republicanas da educação. A década de 1930 é bastante emblemática a respeito do estabelecimento formal do dualismo pedagógico na educação brasileira. O ministro Francisco Campos realizou uma grande reforma em todos os níveis de ensino e centralizou as políticas publicas da educação sob a iniciativa do governo federal. Campos, por meio de decretos, ampliou o tempo de duração do ensino secundário de cinco para sete anos, em dois ciclos. Apensar do aumento significativo do tempo de escolarização, a reforma Francisco Campos estabeleceu uma cisão no ensino secundário, criando uma verdadeira barreira para que as classes populares pudessem seguir seus estudos. Com um currículo “enciclopédico”, com uma média de 102 disciplinas anuais e mais de 80 arguições e provas mensais, o ensino secundário propedêutico contrastava com o ensino profissionalizante, que nem mesmo possibilitava a progressão do aluno ao curso superior. De fato, para um contexto social que começava a despertar para os problemas do desenvolvimento e da educação, numa sociedade cuja maioria vivia na zona rural e era analfabeta e numa época em que a população da zona urbana ainda não era totalmente atingida, nem sequer pela educação primária, pode-se imaginar a camada social para a qual havia sido elaborado um currículo assim tão vasto (ROMANELLI, 1999, p. 136). As políticas públicas para educação no período do nacional desenvolvimentismo (1946/1964), menos claras em suas intenções dicotômicas e classistas, não avançaram na construção de uma escola democrática. Já consolidados na Constituição de 1946, os princípios “liberais democráticos” também foram trazidos para a discussão da primeira Lei de Diretrizes e Bases (LDB) que culminaria, depois de mais de uma década de discussões parlamentares, na Lei 4024/61. Um dos reflexos desses princípios liberais na educação foi a manutenção do financiamento público para os estabelecimentos privados, em forma de bolsas de estudos, com a consequente perda de verbas para os investimentos públicos na educação. Durante o período da Ditadura Militar brasileira (1964/1984), as reformas educacionais garantiram a expansão da rede privada com o financiamento público de bolsa e renuncias fiscais por parte do governo (ROMANELLI, 1999). Coincidentemente, o aumento do número de vagas e matrículas na educação básica já no início da década de 1970 gerou maior demanda por vagas no ensino superior, fomentando uma disputa acirrada entre estudantes nos vestibulares. Como os problemas estruturais da educação básica não foram enfrentados e não se percebeu significativo aumento de vagas no ensino superior, a solução encontrada pelos estudantes foi recorrer à intensificação do treinamento nos cursos pré-vestibulares, como forma de alcançar uma vaga na universidade. No conjunto, um dos graves problemas das reformas empreendidas no período militar foi o favorecimento da expansão da rede privada de ensino e o pouco investimento na pública. Podemos realçar, por exemplo, o crescimento dos “cursinhos” pré-vestibulares, por variados motivos. A competição para o ingresso ao ensino superior tornou-se bem mais acirrada, tanto pelas demandas sociais e econômicas como pela oferta insuficiente de vagas (VEIGA, 2007, p. 315). Obviamente, a grande concorrência entre os alunos do ensino médio por uma vaga no 43 ensino superior agravou ainda mais a segmentação interna no processo de escolarização, pois as empresas de ensino que ofereciam os cursos pré-vestibulares mais eficientes, com maior índice de aprovação nos vestibulares, cobravam altas mensalidades, o que ainda permanece atualmente. Os altos custos financeiros dos cursos pré-vestibulares mais eficientes eram inviáveis às camadas populares; um mecanismo que ajudou a afastar os mais pobres das vagas universitárias, mantendo e reforçando por essa via o traço dualista da educação nacional. No final da década de 1980 e durante os anos de 1990, acompanhado o processo de transformações políticas no cenário nacional, a educação de modo geral foi alvo de muitas reformas e debates parlamentares e da sociedade civil. Em meio a um quadro de grandes transformações e instabilidades políticas, como o fim do regime militar, as lutas por eleições diretas, a cassação do primeiro presidente eleito por voto direto depois da ditadura de 1964, a disparada da inflação e um sem número de crises, a implantação de princípios neoliberais na educação foi um dos principais componentes das políticas públicas durante o período. Entre as mudanças na gestão das políticas públicas, evidenciou-se a analogia proposta entre a educação e os negócios empresariais, paralelismo que atribuiu à escola a forma de uma empresa capitalista, ao menos no que dizia respeito à noção de “qualidade” da educação. A qualidade da educação passou a ser entendida como capacidade de produção, isto é, mediada pela suposta eficiência e eficácia do processo de formação de novos indivíduos, capazes de ingressar no mercado de trabalho. A “fórmula” era simples: mais vagas nas escolas, maior índice de aprovação, resultando em qualidade. A escola com o maior índice de aprovação seria a melhor. Para a escola pública, o aumento repentino do percentual de alunos aprovados em muitos casos foi apenas um engodo estatístico, que objetivava a manutenção e/ou o aumento de verbas oferecidas para os municípios brasileiros pelos órgãos nacionais e internacionais de financiamentos, entre eles, o Banco Mundial. A chamada “aprovação automática”, nos anos 2000, foi uma das estratégias disseminadas para equacionar o problema da distorção do fluxo série/idade causado pelo grande percentual de reprovações na educação básica registrado nas décadas de 1980/1990 (LEON; MENESES-FILHO, 2003). O resultado dessa operação foi desastroso, provocando um enorme contingente de analfabetos funcionais, com reflexos nos anos seguintes que, provavelmente, ainda ajudou a alimentar os baixos índices de desempenho dos alunos do ensino médio brasileiro registrado já no final da primeira década dos anos 2000 (BRASIL, 2012b). Como a intenção de compensar os efeitos nocivos de um sistema de ensino incapaz de oferecer uma educação de qualidade para a maioria dos estudantes, o governo federal regulamentou sob o princípio das políticas de ações afirmativas, um sistema de cotas nas universidades para alunos das escolas públicas no final dos anos de 1990. Como se observa, o Brasil vem assumindo políticas de ações afirmativas, tendo um histórico que não prioriza as necessidades sociais na sua íntegra. Em 1999, a questão racial integra as políticas educacionais mediante o Projeto de Lei nº 73/99, pelo qual fica instituído o Sistema Especial de Reserva de Vagas para estudantes egressos de escolas públicas, em especial negros e indígenas, nas instituições públicas federais de educação superior (PREREIRA; ZIENTARSKI, 2011, p. 503). 44 As políticas de ação afirmativas no Brasil não apresentam historicamente um compromisso com a correção das desigualdades sociais, como no caso da chamada “Lei do boi”, Lei nº 5.465/68, já revogada (BRASIL, 1968). A mencionada lei, com o pretexto de assegurar vagas na universidade pública para agricultores e seus filhos, na prática só privilegiou ainda mais as elites rurais que usufruíram de maiores facilidades para o ingresso nas instituições públicas (PREREIRA; ZIENTARSKI, 2011). Sem entrar no contraditório sobre as atuais políticas de cotas sociais na educação brasileira, podemos constatar que a própria existência do sistema de cotas evidencia o grave problema da educação básica, incapaz de permitir o acesso da maioria dos estudantes à universidade sem mecanismos “protetores”. Vilipendiados em seus direitos por uma educação de qualidade, os estudantes da escola pública são “compensados” no processo seletivo no qual concorrem entre si por uma vaga na universidade. Parece evidente que tais mecanismos capazes de aumentar a presença dos alunos das classes populares na universidade, não resolvem os problemas de uma educação básica que ainda não é capaz de oferecer recursos necessários para autoformação dos seus estudantes. Um dos efeitos perceptíveis dessa política governamental é o reconhecimento, a esmo, de duas redes de ensino: da escola pública (destinada às classes populares, que tem acesso pelas cotas); e a das instituições privadas (composta pelos alunos das classes mais abastadas, sem direito às cotas). Para o nosso esforço de esclarecimento sobre a situação atual da escola pública brasileira, importa, após essa breve caracterização do escopo dualista impresso historicamente pelas políticas públicas para a educação, analisar mais especificamente o novo perfil do aluno do ensino médio brasileiro e algumas possibilidades que a escola dispõe para oferecer um espaço de autonomia para seu aluno. 2. Os novos alunos da escola pública e a construção da autonomia Os alunos do ensino médio brasileiro representam a parcela dos estudantes que conseguiram superar as barreiras sociais e concluir a educação básica, tarefa historicamente bastante difícil. Como o nosso tema é a escola pública, parece razoável destacar o perfil socioeconômico desses estudantes para melhor entender as suas demandas e possibilidades; com essa intenção, usaremos os dados oficiais disponíveis sobre evolução do número de matrículas e a renda familiar desses estudantes entre os anos de 1970-2010. Após essa rápida caracterização, segue uma apresentação sobre o conceito de autonomia que fundamenta as análises presentes no texto; assim como uma defesa à inclusão de uma dinâmica curricular interdisciplinar, que seja capaz de garantir um espaço para a autoformação dos alunos da escola pública. 2.1 Breve caracterização socioeconômica dos alunos do ensino médio brasileiro Os dados referentes ao ensino médio no Brasil permitem constatar um aumento considerável na oferta e matrículas no período de 1971-1994. Passamos de 1.119.421 alunos matriculados em 1971, para 5.073.307 em 1994, um crescimento de 353% no período, cobrindo 32,2% da faixa etária de 15 a 19 anos (ZIBAS; FRANCO, 1997). No mesmo período, as matrículas nas escolas estaduais avançaram 578%; já as escolas privadas diminuíram sua participação, de 43% em 1971, para 20,8% em 1994. Por último, ainda devemos destacar que 60% das matrículas dos alunos no ensino médio de 1989-1994 foram efetivadas no turno da noite, majoritariamente por alunos trabalhadores de baixa remuneração e fora da faixa etária considerada adequada para esse grau de ensino (Ibid., p.37). O crescimento do ensino médio foi acelerado ainda na década de 1990, já que de 1991 até 1998 houve um crescimento de 84% no número de matriculas (BRASIL, 1998). As matrículas nos anos 2000 continuaram crescendo 10,3% entre 2000-2003, mas sofreu uma retração entre 2004-2008, de menos 8,8%, passando de 9.169.357 alunos matriculados em 2004, para 8.366.100 em 2008 (BRASIL, 2011b). Segundo os dados do Censo da Educação Básica 2011, o ensino médio contava em 2009 com 8.357.675 alunos matriculados, desse total, 85,9% estudava nas redes estaduais de ensino público. Em 2010, aproximadamente um terço dos alunos estudou no turno da noite (BRASIL, 2012). Conclui-se então que houve uma diminuição considerável no número de alunos matriculados nos cursos noturnos; de 60% em 1994, para pouco mais de 30% em 2010, porém, mantendo um contingente enorme de quase 3 milhões de alunos. Se considerarmos os alunos matriculados na educação de jovens e adultos no ensino médio (EJA), acrescentaríamos aproximadamente mais 1 milhão de alunos ao curso noturno (Ibid.). A mudança do perfil socioeconômico dos alunos das escolas públicas do ensino 45 médio fica evidenciada também nos dados do IBGE (2010), que demostram que apenas 9,9 % dos alunos de famílias de baixa renda (1º e 2ª quintos de renda per capita por família) estão matriculados nas escolas particulares, contra 47,1% nas escolas públicas. Já em relação às famílias de mais alta renda (5º quinto), existe uma abruta inversão: 9,4% estão matriculados nas escolas públicas, contra 52,7% nas escolas privadas. Assim, podemos caracterizar a maior parte dos alunos do ensino médio brasileiro como moradores das periferias, pertencentes às famílias com renda de até dois salários mínimos, sendo que um terço desses alunos são trabalhadores e estudam no curso noturno. Os dados apresentado até aqui tem a finalidade de caracterizar a mudança no perfil socioeconômico do aluno da escola pública, pois, essa mudança demanda uma nova relação da escola pública com os seus estudantes. Pela primeira vez na historia da educação brasileira, uma parcela significativa dos alunos das camadas mais pobres consegue chegar ao final da educação básica; porém, esse movimento causa um descompasso entre a antiga concepção de escola pública e as novas demandas e referentes culturais dos alunos. Essas dificuldades, cada vez mais evidentes, estão presentes e percebidas no cotidiano escolar. Em inúmeros momentos de trabalho com docentes de redes estaduais e municipais, em diferentes cidades do país, temos sido confrontados com perguntas que nos evidenciam a dificuldade presente entre o professorado, tanto de tornar a cultura um eixo central do processo curricular, como de conferir uma orientação multicultural às suas práticas. São frequentes, nesses encontros, indagações relativas ao (à) aluno (a) concreto (a) que usualmente está presente na sala de aula: como lidar com essa criança tão “estranha”, que apresenta tantos problemas, que tem hábitos e costumes tão “diferentes” dos da criança “bem educada”? Como “adaptá-la” às normas, condutas e valores vigentes? Como ensinar-lhe os conteúdos que se encontram nos livros didáticos? Como prepará-la para os estudos posteriores? Como integrar a sua experiência de vida de modo coerente com a função específica da escola? (CANDU, 2003, p.1). Para o objetivo deste texto, nos concentraremos na última interrogação da citação acima, “como integrar a sua experiência de vida [do aluno] de modo coerente com a função específica da escola?”. A pergunta sobre a experiência de vida dos alunos e a sua possível integração pela escola, pode ter o mérito de abrir a instituição escolar para o outro e ajudar o processo de ressignificação da ideia de escola pública, para além do saudosismo e do pessimismo correntes. Antes de tudo, é importante sugerir uma demarcação de sentido sobre a noção de autonomia. 2.2 A construção da autonomia na escola pública A escola pública, assim como as demais instituições sociais, tem a sua origem em significações imaginárias (CASTORIADIS, 1986). As origens dessas significações não estão disponíveis ao entendimento para serem mudadas por um ato de vontade ou escolha, pelo fato do entendimento ser “parte do legein” e não é, por conseguinte, criador de novas significações. Tudo isso, é claro, é apenas outra maneira de dizer que o legein é instituição primordial, e que, neste nível, a lógica identitária não pode captar a instituição, porque a instituição não é nem necessariamente nem contingente, porque sua emergência não é determinada, mas a partir de que, em que e através de que somente o determinado existe (Ibid., p.299). 46 Quando pensamos na necessidade de criar uma nova escola pública não podemos acreditar que o novo pode ser fundado apenas pela tomada de conhecimento, pela constatação dos problemas e aplicação de normas e regras legais. Se a escola pública ainda permanece como uma instituição permeada pelos sentimentos de saudosismo e pessimismo, é porque existe uma sustentação imaginária que une a sociedade em torno dessas significações. A criação de uma nova escola pública, então, requisita a instituição de um novo projeto de formação humana, criado a partir da participação social. Se a mudança não é possível apenas pelo esclarecimento, por um ato da razão; ela, no entanto, seria facilitada pela construção de modelos de formação coerentes com seus fins. Acreditamos que o fim da educação é a criação de sujeitos autônomos capazes de construir e manter uma sociedade democrática. A superação de um modelo anacrónico de escola pública requisita um espaço escolar que permita o acolhimento e reforce o pertencimento de cada estudante em seu processo de autoformação, criando condições para a construção da sua autonomia. A autonomia do sujeito, por sua vez, não é obra da razão emancipada, mas uma criação social histórica de sujeitos que aprendem juntos, na prática de deliberação e de interrogação sobre um mundo já instituído, como enuncia Cornélius Castoriadis: A autonomia não é a liberdade cartesiana, menos ainda a sartriana, a fulguração sem engajamento. A autonomia no plano individual significa o estabelecimento de uma nova relação entre o eu e seu inconsciente, não para eliminar este último, mas para conseguir filtrar a parte dos desejos que passa nos atos e palavras. Esta autonomia individual tem pesadas condições instituídas. Precisamos, pois, de instituições da autonomia, de instituições que deem a cada um uma autonomia efetiva enquanto membro da coletividade, e que lhe permita desenvolver sua autonomia individual. Isto só é possível pela instauração de um regime verdadeiramente – e não apenas em palavras – democrático (CASTORIADIS, 2002, p.254). Nas palavras do filosofo grego, fica evidenciado que a autonomia não é o apagamento do outro, sob uma noção de igualdade que esconde traiçoeiramente a transformação do outro no mesmo. Essa “nova relação entre o eu e seu inconsciente”, permitiria a criação de uma “cultura da responsabilidade” (CASTORIADIS, 1987), na qual o sujeito autônomo assume simultaneamente os seus desejos e responsabilidades; o outro, a alteridade, é um aliado e não um obstáculo para esse processo. A autonomia é um tipo de criação particular, inseparável da democracia e da filosofia; o que nos permite afirmar que os três conceitos são complementares, ou nas palavras do autor, eles “cossignificam” o sentido de criação nas sociedades autônomas (CASTORIADIS, 1992). A filosofia e a democracia são práticas de interrogação e deliberação que constituem o que Castoriadis põe no cerne do conceito de autonomia, isto é, a autocriação do sujeito e a autoinstituição da sociedade como um movimento político educativo (CASTORIADIS, 2002b). A autonomia exige a educação, pois ela não é uma construção natural de um sujeito isolado em sua introspecção, mas, como autocriação “sua finalidade, é o próprio exercício da lucidez e da deliberação. Na educação, portanto, o fim corresponde à própria atividade que o produz: a autocriação” (VALLE, 2002, p.272). Em uma sociedade autônoma, a educação é um permanente trabalho de questionamento, de reflexão aberta, de autocriação humana; em uma sociedade heterônoma, porém, a educação está presa à aplicação de teorias e reduzida a procedimentos e técnicas, cujo propósito é ocultar o poder criador inerente ao humano. Em nossa sociedade heterônoma, a criação da autonomia na escola pública precisa, então, superar os mecanismos de controle da escola estatal dualista. Mecanismos como a transmissão do conhecimento de modo compartimentado, sem espaço para a construção das interrogações; ou o apagamento do outro, como suposta forma democrática de defesa da igualdade como princípio abstrato. 1.3 Estratégia interdisciplinar para uma nova escola pública A superação da mera transmissão do conhecimento, na forma de um currículo compartimentado, pode ser construída pelo diálogo entre as diversas disciplinas materializado sob uma dinâmica interdisciplinar; definida de modo bastante amplo como “interação existente entre duas ou mais disciplinas” (FAZENDA, 2008, p.18). Nos documentos oficiais referentes à educação, a interdisciplinaridade funcionaria como um princípio que catalisador entre as muitas possibilidades de ação em torno de uma necessidade comum, e, por esse motivo: 47 A interdisciplinaridade supõe um eixo integrador, que pode ser o objeto de conhecimento, um projeto de investigação, um plano de intervenção. Nesse sentido, ela deve partir da necessidade sentida pelas escolas, professores e alunos de explicar, compreender, intervir, mudar, prever, algo que desafia uma disciplina isolada e atrai a atenção de mais de um olhar, talvez vários (BRASIL, 2002, p. 88-89, grifos do autor). Segundo Irani Fazenda, a noção de interdisciplinaridade possui uma dupla acepção de ordens substancialmente diferentes, “porém complementares, de compreender uma formação interdisciplinar de professores, uma ordenação cientifica e uma ordenação social” (FAZENDA, 2008, p. 18). A ordem científica abriria uma nova perspectiva para cada professor reavaliar os conceitos presentes em seu campo disciplinar e exercitar a comunicação com os outros campos do conhecimento, pois obrigaria “o professor a rever suas práticas e a redescobrir seus talentos, no momento em que ao movimento da disciplina seu próprio movimento for incorporado” (Ibid.). Já a segunda ordem, a social, seria responsável por construir um diálogo entre as diversas áreas do conhecimento com as demandas sociais mais prementes, fazendo uma ligação entre a teoria e a prática, assim, “tenta captar toda complexidade que constitui o real e a necessidade de levar em conta as interações que dele são constitutivas” (Ibid., p.19). A superação da noção mecânica de interdisciplinaridade, suposta como mero “agrupamento de disciplinas” facilitaria a construção de um ambiente dialógico entre os diversos professores e, consequentemente, campos do saber. Em um ambiente dialógico, haveria maiores possibilidades de garantir um tratamento mais plural às diversas possibilidades de encontros entre os docentes e a diversas áreas; postura que exige “abrir mão dessa crença de que o processo ensino\aprendizagem é uma via de mão única e paradas obrigatórias – de maior ou menor duração – de acordo com o status científico de cada disciplina” (CONTALDO, 2004, p.52). A ordenação científica seria útil para a superação de uma tradição hierárquica entre as disciplinas e abriria o caminho para a construção de um grande diálogo entre as várias áreas do conhecimento, beneficiando a curiosidade e a construção das próprias interrogações dos alunos. Simultaneamente, sobre o espaço dialógico, a ordenação social interdisciplinar avançaria na criação de um currículo que compreendesse melhor a complexidade de cada escola, de cada lugar, de cada região. O pertencimento social de cada estudante, seus referentes culturais, as forças que afetam a sua vida cotidiana, são componentes que precisam integrar o currículo de alguma maneira. Para elucidar a questão proposta, ou seja, “como integrar a sua experiência de vida [do aluno] de modo coerente com a função específica da escola?”, é necessário ouvir esse aluno, entender quais são seus referentes culturais, suas demandas existenciais e suas necessidades mais cotidianas. Muitos desses alunos são cerceados no seu direito de ir e vir, sua noção de espaço muitas vezes é restrita às áreas conflagradas pela criminalidade; seus códigos linguísticos, marginalizados; sua estética, depreciada. Muitos alunos da escola pública brasileira, sobretudo aqueles que vivem nos grandes centros urbanos como o Rio de Janeiro, frequentam apenas locais muito próximos as suas moradias. Não é incomum, em comunidades de baixa renda da zona oeste da capital carioca, por exemplo, jovens de 18, 19, 20 anos ou mais que nunca saíram da sua comunidade e curiosamente, os passeios escolares são seus primeiros vislumbres da sua própria cidade. Mais curioso ainda, é como a escola perde essa oportunidade de incluir tais reflexões e práticas em seus currículos; problematizar a aparição do outro diante de cada um desses jovens, do choque entre as várias culturas espalhadas pela cidade, entre linguagens variadas e enriquecedoras. O esforço para a construção de uma escola pública democrática inclui a visão de mundo 48 dos seus alunos, assim como as suas experiências vividas, pois o processo de autoformação discente requisita a criação de um ambiente escolar capaz de significar a situação social dos estudantes com a dignidade que eles merecem. Precisamos partir do suposto que não conhecemos esses novos alunos da escola pública, para o estabelecimento de um diálogo que poderá ser a base de uma nova forma de compreender a escola pública, de maneira positiva, realista, democrática e, fundamentalmente, significativa para os seus estudantes. Considerações finais A escola pública no Brasil foi idealizada para oferecer aos seus alunos um determinado tipo de formação que fosse capaz de sustentar a sociedade republicana do início do século XX. Uma sociedade que possuía um conjunto de significações imaginárias capazes de justificar um determinado tipo de civismo, de relação com o trabalho, com a religião etc. Naquele conjunto de representações, o aluno não possuía direito à voz, a sua relação com a escola era de subserviência ao conhecimento, compartimentado e cuidadosamente hierarquizado. Um traço comum a essa origem da escola pública brasileira foi o apagamento do outro, da alteridade, já que a educação pública não era para todos. O dualismo pedagógico característico das políticas públicas aplicadas à educação parece, atualmente, reforçar o traço dicotômico da noção corrente de escola pública, marcada pelo pessimismo e pelo saudosismo. Como se um horda bárbara irrompesse sobre os muros da escola, muitos assistem o acesso das classes populares como se fora um processo de decadência do saber na escola, pela “inadequação” dos mais pobres ao conhecimento universal. Nossa afirmação anterior é propositalmente exagerada, porém, temos registros de análises bastante contundentes contra a entrada das classes populares na escola pública em nosso país, como as de José Ricardo Pires de Almeida, no final do século XIX, ou de Ofélia Boisson Cardoso, já na década de 1940. Pires de Almeida, por exemplo, observava que os pais dos alunos de famílias mais abastadas no Período Monárquico evitavam matricular seus filhos nas escolas públicas por medo da “contaminação” pela imoralidade dos mais pobres. Expediente defendido pelo autor, já que o mesmo afirmava a existência de duas classes distintas habitando o Rio de Janeiro no final do século XIX, uma “classe média inteligente e, em geral, voltada para o bem” e uma classe inferior “miscigenada” que possui “um fundo hereditário de depravação” (ALMEIDA, 1989, p.93). Por sua vez, Ofélia Boisson Cardoso analisando o comportamento das crianças que moravam nos morros cariocas na década de 1940, não considerava promissora a inclusão delas na escola pública, já que “a escola aconselha as boas maneiras, procura difundir bons hábitos sociais de polidez”, mas os valores escolares não surtem efeito, pois nos morros “na casa de cômodos, isso [civilidade] nada exprime e até se torna ridículo empregar “com licença”, “desculpe”, “muito obrigado” (CARDOSO, 1949, p.83). Os relatos acima citados têm como objetivo reafirmar que esses autores, entre tantos outros, que expressaram o incomodo contra a entrada das classes populares na escola pública não o fazem sem razão, pois essa posição tem origem em um conjunto de significações sociais que justificavam um determinado projeto de formação, que obviamente não incluía a maioria da população. Essas significações imaginárias enfraqueceram, e a prova desse enfraquecimento é que atualmente quaisquer dos argumentos citados anteriormente seriam criminalizados, porém, não ruíram por completo e parecem sustentar a noção corrente de escola pública. A noção de escola pública é associada à melancólica imagem de uma instituição perdida, composta no pretérito por uma excelência acadêmica, pautada na disciplina sacerdotal, na qualidade professoral de seus mestres eruditos, na assepsia do espaço escolar. Contrastando com essa imagem, nos defrontamos, na escola ordinária, com a falta de professores, com prédios inapropriados, currículos pouco capazes de atender as demandas discentes e, principalmente, 49 com os alunos que não se adequam aos projetos de formação do passado. Esse choque é capaz de levar a açodada conclusão de que os alunos é que não se adaptam à boa escola, todavia, não seria o contrário? A superação dessa imagem melancólica não está à disposição de um mero ato de vontade, passível de alteração por uma legislação que decretasse que a partir daquele momento a escola passaria a ser democrática, crítica, promotora da cidadania. Se o que sustenta o sentido da escola pública são suas significações sociais, não parece excessivo afirmar que somente a partir do estabelecimento de um espaço de diálogo interdisciplinar, afeito a autoformação e capaz de favorecer o processo de autonomia individual e coletiva, é que a escola pode ser ressignificada. Devemos afinal reconhecer que a escola pública é uma instituição com muitas faces e deve atender a toda a sociedade, e, para esse fim, cada escola deve construir a sua autonomia, baseada em suas especificidades locais, culturais e históricas, pois não há um modelo de escola que seja adequado à rica diversidade cultural e social do nosso país. Como princípio, no entanto, a escola publica autônoma deve estar a serviço da autoformação do estudante, em qualquer região, contexto sociocultural ou econômico. Referências bibliográficas ALMEIDA, José Ricardo Pires de. História da Instrução Pública no Brasil (1500-1889) – História e Legislação. São Paulo: INEP/PUC, 1989. BRASIL. Diário Oficial da União. Brasília, Impressa Federal, Seção 1 - 4/7/1968, Página 5537. ______. Diário Oficial da União. Lei 4.024 de 27/12/1961. Brasília, Impressa Federal, Seção 1 - 27/12/1961, Página 11429. ______. Ministério da Educação. IDEB 2012. Disponível em: http://ideb.inep.gov.br/. Acesso em 10/09/2012b. ______. Ministério da Educação. Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seed/arquivos/ pdf/tvescola/leis/lein9394.pdf. Acesso em 28/08/2012. ______. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Média e Tecnológica.Parâmetros Curriculares Nacionais: Ensino Médio. Brasília: Ministério da Educação, 2002. ______. 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O trabalho consiste em análise documental e pesquisa bibliográfica, em uma perspectiva crítica. Constitui-se, dessa forma, num relevante instrumentodereflexãoepesquisasobre políticas educacionais. Como se trata de pesquisa bibliográfica, por ora, tem-se um olhar crítico de conclusão parcial, ou seja, o programa Mais Educação, assim como outras políticas educacionais, sofre influênciasdiretasdosideaisneoliberais. PaLaVras-CHaVe EDUCAÇÃO INTEGRAL; GLOBALIZAÇÃO NEOLIBERAL; POLÍTICAS PÚBLICAS. 52 aBsTraCT This article aims to explore, in literature and relevant legislation, the educational historical context in front of the neoliberal globalization in Brazil, as well as contribute in a critical way, with the debate on public policy. It discusses the “Mais Educação” Program, in an integral education perspective, and the possible influences experienced by the neo-liberal policies. It seeks to confront the program in light of the globalization hegemonic ideas, addressing their agreements and disagreements. This work consists in document analysis and literature research, in a critical perspective. It constitutes in an important tool for reflection and research on education policy. For now, there is a critical part of completion, the “Mais Educação” program, as well as other education policies, suffer direct influences of neo-liberal ideals. KEY-WORdS INTEGRAL EDUCATION; NEOLIBERAL GLOBALIZATION; PUBLIC POLITICS. Introdução O percurso histórico das políticas educacionais no Brasil evidencia a supremacia hegemônica das ideias liberais sobre a sociedade. A influência de órgãos internacionais como o FMI e o Banco Mundial (ABDI, 2008; TOORES & BURBLES, 1999) somada a diminuição do Estado brasileiro diante das questões sociais e supervalorização dos interesses mercadológicos, refletem diretamente sobre a educação. O mundo passa por profundas crises, que demonstra a falta de limites e as incoerências dos grupos dominantes. As tendências liberais sugerem a educação como prioridade e acreditam que apenas com ela alcançaremos crescimento social e teremos oportunidades para todos, sem exclusão ou diferenças. Entretanto, o espaço escolar ainda sofre com as diferenças culturais e econômicas, o que afetam as políticas públicas no âmbito educacional. A esse exemplo, cita-se Guimaraes-Losif (2009), que corrobora salientando que a educação brasileira está em crise, melhor dizendo, a educação no Brasil sempre esteve em crise. O país nunca soube cuidar com propriedade da educação do seu povo e agora começa a pagar um alto preço. A educação atual não consegue fazer com que grande parte dos alunos aprenda a ler e escrever e, muito menos, formar sujeitos críticos e capazes de se organizar coletivamente em prol dos direitos de cidadania democrática, efetivamente para todos. O resultado, segundo a autora, é que nosso sistema educacional colabora para o desenvolvimento de uma sociedade extremamente desigual, ao invés de democrática, onde um pequeno grupo de cidadãos passa a gozar de mais direitos que a grande maioria. O presente artigo esta dividido em três partes. A primeira analisa as concepções contemporâneas da globalização neoliberal e políticas públicas; a segunda questiona como a educação se apresenta no contexto do neoliberalismo; a terceira e ultima parte, estabelece um diálogo crítico entre as diretrizes do programa vinculado à educação integral, o MAIS EDUCAÇÃO e o neoliberalismo. Esse trabalho tem como objetivo refletir sobre o neoliberalismo e as políticas públicas educacionais. Somado a isso, estabelece-se um diálogo sobre a educação integral e a situação atual do Programa MAIS EDUCAÇÃO, como política pública, no Brasil. Por fim, buscando-se maior conhecimento em relação às políticas neoliberais de educação, procuram-se analisar seus desafios e avanços. 1. A Proposição de Globalização Neoliberal – Contexto Histórico Educação numa perspectiva integral, qualidade na escola pública, ampliação da jornada escolar, adequação do sistema público às perspectivas mercadológicas, competitividade, produtividade. Até que ponto esses termos estão ligados ao discurso neoliberal? Quais são os seus significados? Como ocorreu a proliferação das ideias neoliberais no cenário educacional? Para O’Neill et al. (2004) a proposição de globalização neoliberal não é um fenômeno novo, mas está se difundindo e se tornando cada vez mais complexo com o advento de novas tecnologias e com a expansão dos mercados globais. Alguns estudiosos (BOBBIO, 1992; HELD, MCGREW, 2001) afirmam que o 53 54 neoliberalismo surgiu na década de 70, tendo como aporte os países de capital mais avançado. Nesse sentido, o neoliberalismo foi uma reação teórica e política ao modelo de desenvolvimento, fortemente influenciado pelas intervenções do Estado, que passou a ser visto como uma peça central na estruturação do processo de geração de capital e desenvolvimento social (ANDERSON, 1995). Primeiramente, precisamos compreender o contexto histórico do surgimento das ideias neoliberais. As mudanças que se direcionavam ao ordenamento da política do Estado de Bem Estar procuravam desenvolvimento social e econômico. As estratégias eram de cunho político e visavam emprego gerando renda, produção e consumo. Para tanto, foram adotadas algumas estratégias: políticas salariais, emprego, serviços sociais, aposentadoria, seguro desemprego, pensões e regulamentação das leis trabalhistas (CUNHA, 1991). Segundo o mesmo autor, essas estratégias não tiveram sucesso por muito tempo. As crises econômicas surgiram e com elas o aumento da inflação, desemprego e, consequentemente, o baixo crescimento econômico. Assim, a difusão e disseminação da ideologia neoliberal aconteceram com maior intensidade a partir da crise capitalista de 70, quando o discurso neoliberal julgava o Estado como responsável pelo aumento da inflação. Os ideais neoliberais propunham uma mudança ao papel do Estado, acreditavam que o mercado substituiria a política, assim definiram algumas estratégias para solucionar a crise de 70, são elas: privatização do setor público, diminuição do quadro de funcionários da administração pública e retirada do governo das decisões econômicas (CUNHA, 1991). Em seguida, precisamos conceituar neoliberalismo no contexto educacional. Este texto visa contribuir no debate e incidir sobre o tema. Segundo Cunha (1979) neoliberalismo origina-se da palavra liberalismo e pode ser definido como código de crenças e convicções pré-determinadas, que formam um corpo de sua doutrina ou de ideias nas quais ele se baseia, constituindo uma ideologia. O neoliberalismo “é aquilo que se poderia chamar de ideologias de mercado”, em outras palavras, as propostas neoliberais focalizavam nos aspectos econômicos das propostas liberais. No neoliberalismo, não se valoriza a igualdade de valores ou direitos, priorizavam-se apenas as reinterpretações econômicas (BALL, 1998, p. 126). Para Martens; Rusconi; Leuze (2007), os processos desencadeados pela globalização neoliberal e os desafios vindos de uma sociedade baseada no conhecimento e no desenvolvimento do mercado de trabalho levaram às dinâmicas internacionais no campo da educação. Como forte consequência disso, o Estado não é mais o único ator que dita e modela a política educacional, ao contrário, os agentes de mercado e agentes internacionais estão se infiltrando cada vez mais nas decisões relacionadas a educação. Na perspectiva neoliberal, o individualismo pregava que somos seres livres, desde que nos comportemos da mesma forma, visando um modelo único de harmonia, ou seja, comportar-se da mesma forma significa desejar o mesmo tipo de coisa, almejar ganhos, lucros e consumo. Assim, esse princípio apenas se detinha na liberdade econômica dos organismos que possuíam o poder financeiro. Dessa forma, indaga-se: E como isto se vincula à educação? Tomando como referência pesquisas realizadas pelo Banco Mundial, podemos destacar duas tarefas importantes ao capital que estão colocadas à educação: a) ampliação do mercado consumista, apostando na educação como geradora de emprego, consumo e cidadania (aumentar o número de cidadãos consumistas); b) criação de estabilidade política nos países subordinados aos processos educativos e aos interesses (visando governabilidade) da reprodução das relações sociais capitalistas (GENTILI; SILVA, 1996). No Brasil, citam-se alguns exemplos de governo que adotaram políticas econômicas neoliberais: Fernando Collor de Melo (1990 - 1992), Fernando Henrique Cardoso (1995 2003), Luiz Inácio Lula da Silva (2003 - 2010) e Dilma (atual). No contexto educacional, o modelo neoliberal visa mudanças significativas na educação pública, uma vez que o Estado deixa de participar economicamente dos processos educacionais, o que, de fato, pode prejudicar a população, ou seja, restringe-se a ação do Estado à garantia da educação básica, deixando os outros níveis de escolarização sujeitos às leis mercadológicas de oferta e procura. Considerando o contexto neoliberal, segundo Giron (s.d), quando se atribui a oferta escolar para a iniciativa privada, ocorre fragilização e desagregação da escola pública (estabelecendo acesso às melhores escolas somente os que detêm poder aquisitivo mais alto), ou seja, rotula-se a escola pública como acolhedora dos menos favorecidos e contemplam com o ensino privado os mais ricos. Assim, questiona-se: Onde fica a garantia de acesso à educação como direito de todos? Por que uns recebem tratamento diferenciado? Existe necessidade de modificação do padrão de ensino público, urge uma educação integral que contemple a diversidade, pois existe a necessidade de adequar o currículo às exigências do mercado e do mundo. Em outras palavras, quando o Estado privatiza a escola pública, nega, de certa forma, o direito à educação a maioria da população, aprofundando os mecanismos de exclusão social aos quais estão submetidos às classes populares. 2. Políticas Públicas Educacionais – O Programa MAIS EDUCAÇÃO A implantação de políticas públicas que visam à melhoria da qualidade do ensino nas escolas públicas no Brasil vem crescendo após a constituição de 1988 e passam ser uma proposta de construção coletiva entre as instâncias governamentais e setores da sociedade civil organizada. Para fundamentar essa posição é importante delimitar o que seja uma política pública. Para Bonafont (2004), política pública é um conjunto de ações articuladas que norteiam um governo e visam alcançar um objetivo em relação a um problema de conflito social e econômico. Segundo a autora, o governo é o elemento chave, sem ele não se podem discutir políticas públicas. Segundo Bottery (2006), em um mundo globalizado, os líderes educacionais precisam adaptar o seu trabalho às tendências atuais, pois existe uma série de forças em nível global que afetam profundamente as políticas de educação e resultam em tensões significativas no trabalho dos líderes educacionais. Outro ponto importante, segundo o mesmo autor, está diretamente relacionado à compreensão da natureza global das questões políticas e do impacto sobre o trabalho educacional. Existe uma grande necessidade de incorporação da concepção dos papéis e responsabilidades dos líderes educacionais com a nação. Para Azevedo (2001), as políticas públicas reforçam a intervenção do Estado, mas não do governo. Para ela, as políticas públicas representam o Estado colocando em prática 55 os projetos de governo por meio de programas e ações articuladas para os diversos setores da sociedade. Assim, a autora corrobora salientando que as políticas públicas educacionais referem-se a ações que visam beneficíos sociais, afim de dimunir as desigualdades sociais. É nessa perspectiva que surgem as politcas de educacao integral. O Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), criado em 2007, por exemplo, cuja finalidade é traçar um paralelo entre os princípios constitucionais e o Plano Nacional da Educação (PNE), visa garantir uma educação de qualidade, inclusiva, que permita a construção da autonomia das crianças e adolescentes e o respeito à diversidade (BRASIL, 2009b). O PDE é um plano executivo organizado em torno de quatro eixos: educação básica, superior, profissional e alfabetização. Este é composto ainda por mais de quarenta programas e ações, entre eles o MAIS EDUCAÇÃO, objeto de analise nesse artigo. O Programa conta com recursos provenientes do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB), o qual repassa para o ensino fundamental 25% e para o ensino médio 30% a mais do custo por aluno anualmente (BRASIL, 2007). A esse respeito, cabe ressaltar os marcos legais que orientam a oferta de educação integral. A Educação Integral sustenta-se na Constituição Federal (1988), Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90) e Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9.394/96), que norteiam o planejamento das políticas públicas e garantem direito à proteção integral de crianças e adolescentes. Para tanto, questiona-se: E esses direitos buscam a base integral aos seres humanos? As leis que regem nosso país precisam respeitar a formação completa do indivíduo. A Lei nº 11.494/2007, que instituiu o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB), determina que um regulamento disponha sobre a educação básica em nível integral (Art. 10 §3º), para fins de repasse de verba pública. Nesse sentido, o Decreto nº 6.253/07 considera “educação básica em tempo integral, a jornada escolar com duração igual ou superior a sete horas diárias, durante todo o período letivo”. No Brasil já existem leis, mas por que não são cumpridas? O Programa MAIS EDUCAÇÃO, instituído pelas Portarias Normativas Interministeriais nº 17 e nº 19, de 24 de abril de 2007 (BRASIL, 2007), integra o Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE) e é um dos componentes do Plano de Ações Articulada (PAR), estruturando ações em parceria com os ministérios da Educação, da Cultura, do Desenvolvimento Social e do Esporte, cujo objetivo é o atendimento de crianças e adolescentes em tempo integral (BRASIL, 2009b). O objetivo do Programa é a conquista efetiva da escolaridade dos estudantes, por meio da experiência da ampliação do horário escolar (BRASIL, 2009c). Entende-se que o Programa MAIS EDUCAÇÃO pretende ser um projeto multidimensional para atender o ser humano na sua integralidade. No entanto, é importante questionar até que ponto a oferta de uma jornada escolar estendida, com uma escola pública defasada e precária de estrutura física, pode comprometer os ideais do programa? É nessa vertente que se insere o risco na promoção da violência. Espera-se cidadania e tem-se, ao contrario, os conflitos econômicos e culturais. 56 Educação Integral e escola em tempo integral traduzem esse compromisso com o sujeito porque incorpora a ideia que amplia as oportunidades que respondem e complementam lacunas no processo de atividades pedagógicas inseridas na Educação Integral (BRASIL, 2009c). Assim, o principal critério de seleção para regiões e escolas a participarem do programa é o baixo índice no IDEB - Índice de Desenvolvimento da Educação Básica1. Este apontou que, nas escolas públicas Municipais e Estaduais com base nos anos finais do ensino fundamental, foram apresentadas as piores escalas que variavam de 3,4 a 3,6 no ano de 2007. Na etapa seguinte (2009), as escalas variaram de 3,6 a 3,8 (INEP, 2010). Essa discrepância revela profundas desigualdades nas condições de acesso, permanência e aprendizagem na educação escolar, refletindo a complexidade de um processo que envolve interesses sociais, políticos e econômicos. IDEB 2005, 2007, 2009 e Projeções para o BRASIL TOTAL IDEB - Resultados e Metas Anos Iniciais do Ensino Fundamental Anos Finais do Ensino Fundamental Ensino Médio IDEB Observado Metas IDEB Observado Metas IDEB Observado Metas 2005 2007 2009 2007 2009 2021 2005 2007 2009 2007 2009 2021 2005 2007 2009 2007 2009 2021 3,8 4,2 4,6 3,9 4,2 6,0 3,5 3,8 4,0 3,5 3,7 5,5 3,4 3,5 3,6 3,4 3,5 5,2 Dependência Administrativa Pública 3,6 4,0 4,4 Estadual 3,9 4,3 4,9 Municipal 3,4 4,0 4,4 Privada 5,9 6,0 6,4 Fonte: Saeb e Censo Escolar. 3,6 4,0 3,5 6,0 4,0 4,3 3,8 6,3 5,8 6,1 5,7 7,5 3,2 3,3 3,1 5,8 3,5 3,6 3,4 5,8 3,7 3,8 3,6 5,9 3,3 3,3 3,1 5,8 3,4 3,5 3,3 6,0 5,2 5,3 5,1 7,3 3,1 3,0 2,9 5,6 3,2 3,2 3,2 5,6 3,4 3,4 5,6 3,1 3,1 3,0 5,6 3,2 3,2 3,1 5,7 4,9 4,9 4,8 7,0 Os indicadores do IDEB – Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (MECINEP, 2005) mostram, claramente, dificuldades e poucos avanços no modelo atual da educação. No contexto geral, os índices ainda estão muito mais baixos. Por exemplo, nos anos finais do ensino fundamental, a escola pública Municipal (3,1) é que a apresenta piores resultados em 2007. Uma clara demonstração de que mudanças são necessárias e imediatamente. Nessa linha, o projeto de Educação Integral tem como desafio estabelecer um diálogo entre escolas e comunidades. Assim, o programa MAIS EDUCAÇÃO propõe uma metodologia de trabalho capaz de fazer dos programas de governo que integram esta ação, um instrumento sensível de produção de conhecimento e cultura, pois considera a diversidade dos saberes que compõem a realidade social brasileira (BRASIL, 2009c). O programa MAIS EDUCAÇÃO pretende contribuir para a formação integral de crianças, adolescentes e jovens por meio da articulação de ações, de projetos e de programas do Governo Federal e suas atribuições propostas, visões e práticas curriculares das redes públicas de ensino, alterando o ambiente escolar e incluindo campos mais produtivos e interessantes aos alunos (BRASIL, 2009a). Assim, o projeto se realiza por meio de parcerias entre as escolas, comunidade, famílias, órgãos públicos e organizações sociais em torno de um objetivo comum: uma metodologia diversificada de ensino-aprendizagem com vistas à formação de cidadãos atuantes e responsáveis. 1 Segundo Fernandes (2007), o Ideb é um indicador de qualidade educacional que combina informações de desempenho em exames padronizados (Prova Brasil ou Saeb) – obtido pelos estudantes ao final das etapas de ensino (4ª e 8ª séries do ensino fundamental ou 5º e 9º anos e 3ª série do ensino médio) – com informações sobre rendimento escolar (aprovação). I 57 2.1 Concepções de Educação Integral O tema “educação integral” retoma o cenário brasileiro após alguns anos, como tentativa de garantir uma educação pública de qualidade. Pesquisas relacionadas à educação em tempo integral não são mais consideradas novidades no âmbito da educação brasileira. Desde Anísio Teixeira, na década de 80, os Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs), situados no Rio de Janeiro, assim como a Escola Parque (Centro Educacional Carneiro Ribeiro), em Salvador, adotavam o projeto de escola pública em tempo integral. Ressalta-se que tais projetos não obtiveram êxito devido à forte tendência em considerar as escolas em tempo integral em “escolas abrigo” das classes menos favorecidas (PARO, 1988). Segundo Paro (1988, p.189) a ideia de educação integral já está presente no Brasil desde o início do século XX, porém com características distantes das apresentadas atualmente. Segundo o autor, as transformações do modelo de produção brasileiro, que acabou gerando um modelo urbano-industrial, trouxeram novas necessidades sociais, entre elas a educação. Nesse sentido, para construção de uma nação rica e democrática, acreditava-se ser necessário universalizar a escola. Preocupava-se com o número de alunos inseridos no sistema educacional e com a qualidade do ensino nas escolas, que eram os ideais da Escola Nova. Essas propostas defendiam uma formação que propiciasse uma educação integral. Paro (1988, p. 190) ressalva: “... mas o adjetivo integral ainda não diz respeito à extensão do período diário de escolaridade e sim ao papel da escola em sua função educativa”. O autor refere-se aqui ao tipo de homem que se desejava formar, um “cidadão” capaz de participar da vida política e contribuir para a riqueza da nação. Em relação à vasta literatura sobre educação integral, podemos assegurar que a grande maioria das experiências de educação integral no Brasil está diretamente relacionada com a ampliação do tempo de permanência dos alunos na escola, popularmente conhecida como jornada em tempo integral. Ou seja, um formato diferenciado e predominante no sistema público de ensino em que, pela manhã, o alunado tenha contato com o currículo formal e no turno contrário, com projetos e atividades diversificadas. Segundo a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (BRASIL, 1996), em seu artigo 34, “a jornada escolar de Ensino Fundamental será pelo menos de quatro horas de trabalho efetivo em sala de aula, sendo progressivamente ampliado o período de permanência na escola”. O parágrafo segundo do mesmo artigo estabelece que “o ensino fundamental será ministrado progressivamente em tempo integral, a critério dos sistemas de ensino”. O percurso delineado pelas políticas públicas de Educação Integral permitem afirmar que esta se caracteriza por uma formação “mais completa possível” do ser humano (COELHO, 2009). Nela, fortalecem-se as bases para implantação de uma educação de qualidade, ampliandose os espaços, cabendo à escola assumir uma abrangência que, para uns a desfigura e, para outros, torna-a realmente acessível e democrática. Nesse sentido, a escola pública passa a incorporar um conjunto de responsabilidades que não eram vistas como tipicamente escolares, mas que, se não estiverem garantidas, podem inviabilizar o trabalho pedagógico, ou seja, se as famílias se omitem, a escola precisa agir (BRASIL, 2009a). Nesse sentido, qual é a concepção de educação integral discutida hoje? 58 Segundo Paro (1988a), a educação em tempo integral ressurge como uma proposta para a rede pública de ensino. Ele acredita que com esse novo modelo de educação, as escolas passam a formar “cidadãos” inseridos em uma sociedade democrática-burguesa. Moll (2008) defende que o patamar a partir do qual se organiza uma escola que pensa e propõe educação integral precisa considerar os saberes, as histórias, as trajetórias, as memórias, as sensibilidades dos grupos e dos sujeitos com os quais trabalha, tecendo as universalidades expressas nos campos clássicos de conhecimento. Para Gadotti (2009), a escola de tempo integral deve ter como objetivos: educar para e pela cidadania; criar hábitos de estudo e pesquisa; cultivar hábitos alimentares e de higiene; suprir a falta de opções oferecidas pelos pais ou familiares; e ampliar a aprendizagem dos alunos além do tempo em sala de aula. Assim, o sentido da palavra integral em sua totalidade significa inteiro, completo e total. Nesse espectro, segundo Abdi (2008), a educação é, sem dúvida, um dos elementos mais onipresentes na vida das sociedades. Por isso, buscar uma educação integral é ousar uma educação completa, que pense o indivíduo por completo, em todas as suas dimensões. Não basta somente ampliar a quantidade, é preciso junto melhorar a qualidade. Portanto, precisase estender as aulas, melhorar sua qualidade, garantindo a promoção e o direito a diversas atividades: tecnológica, arte, esporte, lazer, cultura, conteúdos pedagógicos, científicos, música, língua estrangeira, profissionalização, entre outras atividades. A formação integral visa à construção de valores, cidadania, ética, na valorização da identidade étnica, cultural, local, de gênero, valores estes essenciais para construção uma sociedade justa e sustentável. 3. O Programa MAIS EDUCAÇÃO X Neoliberalismo No pensamento neoliberal, segundo Marrach (1996); O’Neill; Codd; Olssen (2004), a educação assume compromissos estratégicos e se configura a partir dos enfoques economicistas da teoria do capital humano, em que a educação é vista como transmissora de conhecimentos e saberes voltados a ações individuais que visam competitividade econômica, ou seja, mercado de trabalho. Entre os compromissos estratégicos podemos citar: Preparar o indivíduo para adaptar-se ao mercado de trabalho, ressaltando que o mundo mercadológico necessita de mão de obra qualificada para competir no mercado nacional e internacional; Cultivar na escola a ideologia dominante e os princípios doutrinários do neoliberalismo, com intuito de garantir a reprodução desses valores; Estimular que a escola funcione de forma na mesma linha do mercado, adotando técnicas de gerenciamento empresarial, com intuito de garantir a consolidação da ideologia neoliberal na sociedade; Estabelecendo relações entre o modelo neoliberalista e as políticas que norteiam o Programa MAIS EDUCAÇÃO, nota-se que, sendo o projeto em tempo integral, ou seja, em horário ampliado, incluindo espaço reservado para almoço e demais lanches, os alunos acabam tendo contato com diferentes atividades: aulas de informática, corte e costura, bordado, canto, 59 coral, língua estrangeira, o que se aproxima do modelo neoliberal que estabelece formação voltada ao mercado de trabalho. Assim, a ampliação da carga horária nas unidades que aderirem o programa, vem acompanhada de alterações curriculares, consequentemente, mudanças no cotidiano escolar, ou seja, alterações no âmbito social (mão de obra qualificada) e econômico. Partindo do entendimento que o número de atividades enriquece o currículo escolar, o planejamento das políticas públicas e das atividades escolares, numa perspectiva integradora, é uma tarefa desafiadora. As escolas precisam ir além das atividades escolares tradicionais, elas precisam ser integradas a comunidade, bairro, igrejas e diferentes manifestações culturais e artísticas. O alargamento do currículo, com um número tão diversificado de atividades, possibilita troca de experiências e desenvolvimento de atividades educativas, que norteiam o mundo contemporâneo. A esse exemplo, podem-se considerar as oficinas que preparam para o mercado de trabalho. Em contra partida, segundo Gadotti (2009), na perspectiva de oferta de educação integral, exige-se um nível cuidadoso e aprofundado de articulações políticas, sociais, culturais, ambientais e econômicas, o que impossibilita o cultivo, dentro do espaço escolar, de ideologias dominantes e princípios doutrinários do neoliberalismo, com intuito de garantir a reprodução desses valores. Depreende-se da leitura de Bairro Escola (s.d.) que a finalidade da educação é capacitar os indivíduos não para acumular, mas para navegar no conhecimento acessando-o à medida que se torne necessário e faça sentido para suas vidas. Assim, cabe ressaltar, ainda, a importância da Educação Integral na vida dos alunos. Esta desenvolve liberdade, autonomia e responsabilidade no educando. Trata-se, com base na mesma obra, de uma educação capaz de promover a formação integral e preparar indivíduos para serem agentes do seu próprio conhecimento, ou seja, mais uma vez, os ideais neoliberais se aproximam dos moldes da educação integral, visto que ela enfatiza que não funciona na linha mercadológica, mas na prática, acaba consolidando os ideais neoliberais. A educação na perspectiva integral, em conformidade com o programa, prevê diversas ações aliadas ao processo de escolarização, em articulação com o projeto pedagógico das unidades de ensino, tendo como principal objetivo proporcionar às crianças e aos adolescentes uma melhoria no aprendizado (BRASIL, 2009b). Mesmo não sendo uma regra, a educação tem realizado mudanças em seu currículo, tornando a escola mais real, significativa e próxima da vida. Nesse sentido, aproximar o currículo com as necessidades diárias do alunado garante ampliação do conhecimento e melhoria na qualidade do ensino. O discurso educacional neoliberal também prevê qualidade no ensino, mas na prática só preocupa se a escola é eficiente para inserir no mercado de trabalho profissionais competitivos, ou seja, alunos bem “treinados”, deixando de lado a excelência do ensino, professores altamente qualificados e atualizados. Nesse sentido, corrobora Guimaraes-losif: 60 “inúmeros são os fatores externos e internos que contribuem para os problemas educacionais brasileiros, tais como: políticas públicas focalizadas; gestão educacional pouco democrática; febre consumista; processo neocolonizador da globalização; influências neoliberais na educação e demais políticas sociais; pobreza, desigualdade social; redução de verba no setor público; sociedade que pouco exige do estado educação pública de qualidade [...]” (2009, p.25) Apesar de o modelo neoliberal basear-se na desigualdade social, a escola comercializa a idéia de que o sucesso depende do desempenho de cada um, reafirmando a visão de que, numa sociedade moderna e contemporânea, só vencem os melhores e que, se o aluno não consegue atingir os resultados esperados, a culpa não é da escola (ou da sociedade), mas dele, que não teve competência para atingir os objetivos propostos. Gadotti (2009) tem visão contrária. Segundo ele, a escola pública precisa ser integral, integrada e integradora. Integrar ao projeto pedagógico das escolas a comunidade (igrejas, ONGs, quadras de esporte, clubes, parques, telecentro, academias de dança, museus, cinemas, universidades), ou seja, agregar todas as ações pedagógicas. Não estabelecendo fracassos individuais. Segundo Foucault (1999), o discurso é uma prática que relaciona a língua com “outras práticas” no campo social. Assim, o discurso deve ser pensado, portanto, enquanto “prática discursiva”. Não podemos confundir com a operação expressiva pela qual o indivíduo formula uma ideia, um desejo, uma imagem; nem com a atividade racional que pode ser acionada num sistema de inferência; nem com a “competência” de um sujeito falante quando constrói frases gramaticais; é um conjunto de regras animais, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram, numa dada época, e para uma determinada área social, econômica, geográfica ou lingüística, as condições de exercícios da função enunciativa (FOCAULT, 1999, p.136). Assim, indaga-se: Que educação pública integral é essa? Que qualidade de tempo é esse? Uma proposta de escola pública em tempo integral tem como meta ampliar progressivamente a permanência dos alunos em, no mínimo, sete horas diárias, por meio de atividades curriculares integradas. Contudo, fazem-se necessárias parcerias e envolvimento de entidades que compartilhem com os princípios desta proposta. Em síntese, há uma forte necessidade em normatizar algumas mudanças no âmbito curricular. Segundo dados da OECD (2011), o tempo de instrução em sala de aula formal é responsável por grande parte do investimento público na aprendizagem do aluno e é um componente central de escolaridade eficaz. A quantidade de tempo de instrução e aulas disponíveis para os alunos é um importante indicativo de oportunidades dos alunos para aprender. Adaptar os recursos com as necessidades dos alunos otimizando o uso do tempo são fundamentais para a política de educação. Os principais custos da educação são o uso e implantação de professores, manutenção institucional e outros recursos educacionais. O período de tempo durante o qual esses recursos são disponibilizados aos alunos é, portanto, um fator importante na determinação de como os fundos para a educação são alocados. Para Jakobi (2007) o papel da educação como instituição do estado está sendo questionado. No papel, promove-se a aprendizagem para o longo da vida, mas na prática, as atividades refletem tendências da educação como um investimento particular e pessoal. Assim, nota-se que as diretrizes do programa MAIS EDUCAÇÃO, na maioria das vezes, se aproxima dos ideais neoliberais. 61 4. Conclusões O cenário atual da educação revela um momento de dinamismo no que se refere à Educação de tempo integral no Brasil, evidenciando a necessidade de políticas e ações que subsidiem os projetos em andamento e estimulem novas experiências, contribuindo para reduzir as desigualdades e para qualificar as ações, tendo em vista a garantia do direito à educação numa perspectiva integral. Assim, ressalta-se a necessidade de estudos que possam colaborar para melhor entender a referida diversidade, identificando tendências predominantes, destacando especificidades, divulgando resultados e avaliando impactos. Na perspectiva neoliberal, o poder público pode e deve dividir com o setor privado as suas responsabilidades e atribuições na esfera educação, possibilitando fortalecimento do mercado e melhoria na qualidade dos serviços educacionais. Mas que tipo de divisão é essa? O que popularmente chamamos de privatização da educação. Daí surge a importância da oferta de educação integral em tempo integral. Os responsáveis, vistos como consumidores, podem escolher as unidades de ensino que melhor atinjam os interesses de seus filhos. Esse processo gera competição entre as unidades de ensino, no intuito de oferecer um “produto” diferenciado, ou seja, educação integral e de qualidade aos seus “consumidores” (pais, alunos ou responsáveis), o que possibilita melhorias no processo educativo (ampliação da jornada, alterações no currículo e na dinâmica escolar). Nas unidades de ensino que trabalham o projeto educação de tempo integral, conhecido como Programa MAIS EDUCAÇÃO, com base na literatura estudada, existem grandes possibilidades de mudança no perfil do aluno de tempo integral e o aluno que não é de tempo integral, uma vez que os pais podem contar com a escola na formação dos seus filhos. É notória a postura dos dois sujeitos, ou seja, percebe-se que o trabalho realizado pela escola de tempo integral tem surtido efeitos no ensino. A escola de tempo integral possibilita, ainda, o interesse de pais que trabalham o dia todo e veem na escola a oportunidade de deixar os filhos em local seguro, eficaz e adequado. Esta alternativa é de suma importância, primeiramente porque corresponde às expectativas de muitas famílias de baixa renda que necessitam do suporte (alimentício, psicológico e físico) e de apoio disponibilizado pelo governo no intuito de ofertar educação de qualidade. Além disso, outro fator determinante é retirar as crianças e adolescentes das ruas, evitando riscos sociais iminentes e possibilitando, ao mesmo tempo, local apropriado para recebê-los. Nesse sentido, a educação passou a ser fator de reconstrução e apoio social, cabendo à escola novas atribuições em decorrência das condições atuais de vida e de trabalho dos centros urbanizados, municípios, comunidades e famílias, com repercussões sobre a política de formação. Segundo Silva (2005), se a escola é parte da sociedade, torna-se consequência dos saberes construídos socialmente, culturalmente, subjetivamente pelas pessoas que estão fora e dentro da escola. Assim, surge a seguinte indagação: Como podemos pensar em mudanças a partir daqueles que não estão diretamente ligados a essa realidade? Alunos professores, 62 comunidades não podem figurar apenas nos papéis e nas propostas, mas devem fazer parte de reformulação do pensar a educação e a escola. Logo, a participação de todos os envolvidos no processo de implantação de políticas de educação em tempo integral é de fundamental importância para que as mudanças saiam dos papéis e materializem-se de forma eficaz. Implica-se salientar a importância das unidades de ensino de tempo integral no atual contexto nacional. 5. Referências ABDI, Ali A.; Guo, Shibao. Education and social development: global issues and analyses. Rotterdam: the Netherlands Sense Publisher, vol.1, 2008. Disponível em: http://www.sensepublishers.com/catalog/ files/9789087904401.pdf. Acesso em 27 de set. 2011. ASSOCIAÇÃO CIDADE ESCOLA APRENDIZ. Bairro-Escola passo a passo. São Paulo, s.d. ANDERSON, Perry. Balanço do neoliberalismo. In: Sader, Emir & Gentili, Pablo (Orgs.) Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. AZEVEDO, Janete M. Lins de. O Estado, a política educacional e a regulação do setor educação no Brasil: uma abordagem histórica. 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Contudo, percebe-se que tal movimento é norteado por diferentes concepções sobre a natureza das instituições e sua influência nas trajetórias nacionais. Este artigo revisita as raízes e a evolução do pensamento institucionalista, explorando algumas de suas principais vertentes, com destaque para a corrente histórica que concentra o foco de seus estudos na economia política das democracias capitalistas modernas. With the exhaustion of the neoliberal policies, the contemporary academic debate has been redeeming the role of institutions in development. However, it seems clear that this movement is guided by different conceptions of the nature of institutions and their influence on national trajectories. This article revisits the roots and evolution of institutionalist thinking by studying some of its main trends, highlighting the historical stream that focuses its studies in the political economy of modern capitalist democracies. PaLaVras-CHaVe DESENVOLVIMENTO; POLÍTICAS PÚBLICAS. KEY-WORdS DEVELOPMENT; INSTITUTIONS; POLICIES. INSTITUIÇÕES; Introdução Não foi sem motivos que o apogeu do neoliberalismo, entre as décadas de 1980 e 1990, ficou conhecido como era do pensamento único. Alheia a críticas, essa ideologia conquistou corações e mentes mundo afora declarando a política e a própria história irrelevantes, senão estorvos, na rota para o desenvolvimento. Num contexto de crise profunda do Estado keynesianofordista do pós-guerra, sua premissa central era tão simplória quanto intuitiva: a superioridade dos mecanismos de mercado sobre quaisquer outras formas institucionais de coordenação dos atores sociais e econômicos. Contudo, bem antes da crise financeira que eclodiu de forma dramática ao fim de 2008, as fragilidades dessa agenda pró-mercado já vinham sendo questionadas em todo o mundo. Longe do paraíso prometido, o balanço das últimas décadas mostra resultados decepcionantes mesmo do ponto de vista da dinamização econômica, argumento central por detrás das privatizações, flexibilizações e retrocessos nas políticas sociais. Viram-se fissuradas desde então, coalizões políticas transnacionais que incentivaram a aura de infalibilidade do receituário neoliberal. Beneficiado por esta reabertura do espaço de debates, o ambiente intelectual contemporâneo tem reafirmado o entendimento de que conceitos atemporais e generalizáveis, ainda que retoricamente influentes, são de pouca utilidade quando problemas sociais complexos surgem no horizonte. Realidades concretas frequentemente põem em xeque categorias vazias de conteúdo histórico e cultural, cobrando maior rigor analítico aos que se propõem a avançar na interpretação do mundo “realmente existente”. A renovada ênfase conferida às particularidades de trajetórias nacionais trouxe de volta ao debate categorias que no passado recente viram-se bastante desprestigiadas. Claro exemplo são as instituições e sua influência na dinâmica social, temática que tem estimulado a criação de diversos estudos combinando teoria das organizações, sociologia econômica, psicologia comportamental, sistemas jurídicos, entre outros elementos de diferentes disciplinas. Não obstante o fato de essa profusão de abordagens resultar num retrato instigante e provocador, tal ecletismo acaba por tornar o agrupamento das correntes que vêm sendo genericamente designadas “neo-institucionalistas” bastante difícil sob quaisquer critérios, não apenas em razão da natureza multidisciplinar dos programas de pesquisa, mas principalmente pela diversidade de bases epistemológicas e filiações teóricas presentes. Contudo, tal esforço mostra-se cada vez mais necessário, pois além de elucidar antagonismos entre visões de mundo em disputa, torna possível sinalizar pontos de complementaridade, fazendo avançar mais rapidamente o conhecimento sobre tema de reconhecida relevância. É nesse sentido que origens, ideias e controvérsias que marcaram a trajetória histórica do institucionalismo têm sido revisitados pela literatura, muitas vezes em perspectiva comparada, oferecendo elementos úteis à compreensão das principais proposições emergentes do debate contemporâneo. Novos e velhos institucionalismos: controvérsias, aderências e fronteiras A abordagem institucionalista tradicional tem raízes bastante antigas, tanto nos estudos econômicos quanto nas ciências sociais, remontando pelo menos ao século XIX. Para William 67 Scott (2001), no que diz respeito à atenção constante ao papel das instituições, o campo da sociologia tem precedência em relação à ciência política e à própria economia, onde sua tradição é bastante forte. Reconhecidas as inegáveis subdivisões e variações que dão origem a ênfases e vocabulários próprios, o autor observa uma continuidade nas análises sociológicas contemporâneas em relação aos trabalhos seminais de Marx, Durkheim, Weber e Spencer, sendo que a este último ele atribui a proeminência na temática institucional dentro da disciplina. Na ciência política, Scott aponta o período compreendido entre a segunda metade do século XIX e a segunda década do século XX como uma era de domínio do paradigma institucionalista nos EUA e na Europa. Na cena americana, ele ressalta o comprometimento dos principais expoentes da abordagem, entre os quais inclui Woodrow Wilson, com diligentes esforços de pesquisa relacionados a origens, controvérsias e compromissos por trás de regimes específicos, sendo algumas análises explicitamente voltadas para comparações sobre como distintos mecanismos de governança lidavam com funções e problemas centrais. Scott descreve a escola institucionalista que se desenvolve nos EUA na virada para o século XX como portadora de características bastante específicas, dentre as quais destaca a acentuada preocupação com estruturas formais e sistemas legais, a ênfase no detalhamento de como regras, direitos e procedimentos operam e se interconectam em sistemas políticos particulares, o foco na trajetória institucional passada em detrimento do interesse em prognosticar tendências, além de uma natureza predominantemente descritiva, não-teórica. Quanto à tradição institucionalista no campo econômico, Scott aponta a ambição estrutural e interdisciplinar da abordagem como a razão pela qual desde o início seus adeptos entram em conflito com o pensamento ortodoxo. Ele localiza na Alemanha e na Áustria do século XIX o nascimento dos primeiros argumentos da escola, em meio às discussões sobre o método científico nas ciências sociais. Contestando os cânones tradicionais, os institucionalistas rejeitam a ideia de que a economia poderia ser reduzida a uma série de leis universais. Liderados por Gustav Schmoller, lembra Scott, a escola identifica os processos econômicos operando numa estrutura social moldada por um leque de forças histórico-culturais, sendo as pesquisas sociais e históricas o mecanismo mais adequado para discernir propriedades distintivas de sistemas econômicos particulares, refutando assim a visão simplista do homo economicus em prol de modelos mais realistas de comportamento humano. A escola histórica alemã influencia toda uma geração norte-americana, que a partir da virada do século ganha crescente prestígio aprofundando temáticas institucionais no debate econômico. Hodgson (1998) argumenta que, ao contrário do que se consolida no imaginário contemporâneo, esse “velho institucionalismo” tem papel crucial no desenvolvimento da ciência econômica. Por volta da década de 1920, aponta ele, nomes como Thorstein Veblen, John Commons, Wesley Mitchell, John Clarke e seus seguidores são dominantes nos departamentos de economia dos EUA, gozando de tanta popularidade, influência e poder quanto seus pares neoclássicos. E. K. Hunt (2005) vê o desenvolvimento da tradição institucionalista americana influenciado por mudanças fundamentais na dinâmica capitalista, decorrentes da racionalização da produção que se acentua na virada para o século XX. Muito embora a propriedade continue 68 a representar a principal fonte de poder econômico, social e político, tem início um período de regularização e institucionalização do processo de acumulação sob o domínio das grandes corporações, evidenciando a superação do antigo modelo individualista. A nova etapa, caracterizada pela internacionalização do capital e por reestruturações no interior da classe dominante, dá origem a uma classe menor de administradores, agora responsáveis pela condução dos negócios. Representada por essa comissão executiva que defende seus interesses administrando os administradores, a classe capitalista pode permanecer majoritariamente passiva e ausente, garantindo seus ganhos puramente com base na propriedade dos meios de produção (2005: 302). Entre as análises mais completas sobre as transformações institucionais e culturais do período, Hunt cita especificamente os trabalhos de Veblen sobre contradições antagônicas que surgem na fase do capitalismo que se inaugurava, opondo os interesses dos “negócios” aos da “indústria”. Ainda que agrupados ao lado de Veblen na condição de integrantes da “velha economia institucional”, autores como Mitchell, Commons, Ayres, jamais deixaram de conservar importantes aspectos distintivos em seus programas de pesquisa, razão pela qual Rutherford (1996) defende não ser possível tratar a velha economia institucional (VEI) como um corpo de ideias uno, tanto do ponto de vista metodológico quanto do teórico ou programático. Ele ilustra seu argumento relembrando que a complementaridade entre os dois programas de pesquisa de maior relevância no âmbito dessa tradição não impediu que Commons desferisse um ataque direto à abordagem de Veblen sobre a dicotomia entre negócios e indústria, classificando-a como cínica antítese. Divergências à parte, os trabalhos identificados com a VEI distanciaramse do mainstream neoclássico em importantes aspectos. Citando Jaccoby, Scott (2001) lista entre tais disjuntivas a rejeição ao equilíbrio, a ênfase institucional na formação de preferências individuais, o uso de proposições não abstratas na análise do comportamento humano e a valorização de aspectos históricos e culturais em detrimento de generalizações atemporais. Novos (?) Institucionalismos A emergência da Nova Economia Institucional (NEI), corrente que ganha grande prestígio acadêmico e político nos últimos trinta anos, adicionou elementos ainda mais controversos ao debate sobre a natureza e o papel das instituições no desenvolvimento. A despeito de subsistirem na NEI diferenças internas provavelmente tão significativas quanto as observadas na velha tradição, a definição de Douglass North, prêmio Nobel de economia em 1993, continua paradigmática. Institutions are the humanly devised constraints that structure political, economic and social interaction. They consist of both informal constraints (sanctions, taboos, customs, traditions, and codes of conduct), and formal rules (constitutions, laws, property rights). Throughout history, institutions have been devised by human beings to create order and reduce uncertainty in exchange. Together with the standard constraints of economics they define the choice set and therefore determine transaction and production costs and hence the profitability and feasibility of engaging in economic activity. They evolve incrementally, connecting the past with the present and the future; history in consequence is largely a story of institutional evolution in which the historical performance of economies can only be understood as a part of a sequential story. Institutions provide the incentive structure of an economy; as that structure evolves, it shapes the direction of economic change towards growth, stagnation, or decline.” (NORTH, 1991: 97) 69 Rutherford (1996) identifica na abrangente historiografia econômica de North a combinação de muitos dos elementos comuns à NEI, tais como direitos de propriedade e jurisprudência, processo de escolha pública, teoria da agência, custos de transação e teoria dos jogos, mas ressalta a visão crítica do autor quanto a excessos na abordagem rent-seeking, dada a importância que confere a fatores como ideologia e senso de justiça para o entendimento das mudanças institucionais. Para Williamson (1998: 21), as aparentes tensões internas da corrente são relativizadas se consideramos que o programa de pesquisas da NEI converge para a complementaridade entre o nível mais abrangente (ambiente institucional) e o organizacional (arranjos de governança). No primeiro caso, o autor inclui os estudos sobre normas políticas, sociais e legais que regulam a produção, trocas e distribuição. No segundo, encontraríamos reflexões sobre os arranjos que determinam formas de concertação e competição entre unidades econômicas, bem como as estruturas internas que estimulam a cooperação entre seus membros. Contudo, a despeito da denominação, os estudos dela originários pouco convergem com o pensamento da antiga tradição. Como bem observa Scott (2001), a ausência de coerência lógica entre os postulados de novos e antigos institucionalistas deve-se ao fato de os pioneiros estarem intelectualmente bem mais próximos do novo institucionalismo da ciência política e da sociologia do que de seus sucedâneos na economia. Oliver Williamson (1998), um dos próceres do novo institucionalismo econômico, corrobora esse ponto de vista ao lembrar que muitas das restrições aos trabalhos da antiga tradição devem-se à natureza descritiva e historicamente específica de sua abordagem. Para os críticos1, o “fracasso” dessa escola na América deve-se à falta de uma agenda positiva de pesquisa, o que a condena a ser um amontoado de descrições em busca de uma teoria que lhe dê sentido. Nas palavras ácidas de Ronald Coase, que Williamson (1998) recorda, os velhos institucionalistas “[...]had nothing to pass on except a mass of descriptive material waiting for a theory, or a fire. […] So if modern institucionalists have antecedents, it is not what went immediately before”. De fato, o dissenso sobre instituições, para além dos meandros conceituais, comporta apreciações valorativas essencialmente diferentes. Mesmo entre os que advogam a exploração de complementaridades programáticas entre essas escolas de pensamento, há o reconhecimento de que comparações interpessoais são desconfortáveis para muitos economistas e que temas como bem-estar são de natureza explicitamente valorativa, tornando bastante difícil o estabelecimento de critérios universalmente aceitos (RUTHERFORD, 1996: 176). Quando as análises tratam de temáticas concretas, como o papel de governos e mercados, as preferências de ambos os lados sobrevêm claramente, demonstrando que se realmente as instituições foram “trazidas para dentro” dos debates sobre desenvolvimento econômico, tal processo vem se dando sob perspectivas bastante distintas e frequentemente inconciliáveis. Muito embora sobreponha os limites da ortodoxia econômica ao resgatar a importância das instituições, incorporando em seus pressupostos a racionalidade limitada dos agentes e o ceticismo quanto às possibilidades de equilíbrio, a NEI compartilha seus fundamentos utilitaristas e a ênfase microeconômica, razão pela qual alguns críticos mais severos sequer reconhecem seu caráter institucionalista, dada a proximidade com o pensamento neoclássico. 70 1 Williamson cita entre estes críticos DiMaggio & Powell, Granovetter, Stigler e R.C.O. Matthews. Para Medeiros (2001, 78), o programa teórico da NEI objetiva construir uma teoria sobre formação e evolução das instituições incorporável e compatível com o mainstream neoclássico. Nessa perspectiva, o problema central pairando sobre a obra de North ou Coase seria o papel das instituições na redução dos custos de transação entre agentes econômicos, haja vista que o ponto de partida de ambos é uma realidade concreta bastante distinta do equilíbrio inerente ao paradigma walrasiano. Mantzavinos (2004: 257), alinhado aos insights do novo institucionalismo econômico, é bem explícito quanto ao grau de distanciamento aceitável em relação à ortodoxia. Ao propor o que seria uma genuína economia política capaz de complementar as lacunas da economia neoclássica nas dimensões cognitivas, motivacionais e institucionais, ele admite a rejeição a algumas das micro-fundações desta, mas insiste no individualismo metodológico e na premissa do comportamento humano autointeressado como pontos de partida. Creditando à dinâmica do mercado papel preponderante no desenvolvimento econômico, o ambiente institucional propugnado tem como atribuição básica reduzir custos e incertezas dos agentes, garantindo fluidez e segurança às transações econômicas. Do ponto de vista das políticas públicas, o corolário da perspectiva aponta para um papel mais restrito do Estado no desenvolvimento, relegando-o, grosso modo, à condição de fornecedor de uma ambiência favorável à livre iniciativa. Como bem observa Hodgson (2005: 85), For those that cherish individual liberty, institutions are often seen as unwarranted constraints. Many economists have approached matters of policy with similar sentiments, believing that markets always work best when there is a minimum of regulation or restriction. Por representarem um avanço analítico palatável ao mainstream econômico, os postulados da NEI obtiveram grande aceitação ao longo das últimas décadas, passando inclusive a ocupar posição central na estratégia dos organismos multilaterais de aprofundamento das reformas pró-mercado nos países em desenvolvimento2. Referida na literatura como segunda geração de reformas, ou ainda consenso de Washington ampliado, essa nova agenda preconiza uma série de medidas voltadas à consolidação das medidas da primeira geração (privatização, liberalização, desregulamentação) por meio do aprimoramento e “saneamento” do ambiente institucional. John Williamson (2004: 10) aponta o reconhecimento do papel das instituições como principal feito da economia do desenvolvimento na década de 1990, razão pela qual corrobora as conclusões de Levine e Easterly quanto ao nível de desenvolvimento institucional representar a única (sic) variável capaz de apontar o grau de desenvolvimento de um país. No outro campo deste debate, figurando entre os mais contumazes críticos de alguns aspectos do novo institucionalismo econômico, Chang e Evans (2005: 102) enxergam na visão institutions as constraints um alinhamento ao mito de que mercados livres representariam a normalidade, cabendo às instituições humanas atuar apenas nos casos de falha nesta “ordem 2 A esse respeito, vale citar o trabalho “Beyond the Washington Consensus: institutions matter”, organizado por Shaid Burki e Guillermo Perry e publicado pelo Banco Mundial em 1998. Reconhecendo o relativo fracasso da primeira geração de reformas liberais na América Latina, o documento recomenda explicitamente a adoção de um programa de revitalização institucional baseado em conceitos da NEI, que são apresentados e discutidos ao longo de sete capítulos, incluindo ainda um apêndice técnico com a terminologia básica das pesquisas vinculadas à escola. 71 72 natural”. Os autores veem, assim, parte dos economistas identificados com a NEI se moverem para tão perto da ortodoxia que suas proposições acabam por perder qualquer aspecto inovador, chegando alguns de seus teóricos a defenderem que instituições existem unicamente por questões de eficiência, mas não por isso deixando de representar disfuncionalidades. Recordando a clássica frase de Oliver Williamson – “in the beggining there were markets”–, Chang (2004: 50) ressalta que mesmo os economistas neoclássicos sem inclinação neoliberal endossam essa “primazia do mercado”, naturalização que evidentemente contrasta este ente com instituições man-made substitutes. Imposto esse status a-histórico, a visão do mercado como instituição social criada e organizada para estruturar a atividade econômica se enfraquece, encorajando a proposição de que constrangimentos são exclusivamente destinados a corrigir suas imperfeições. A ideia de que o mercado em si seja uma construção social e não apenas um mero agregado de trocas individuais, capaz inclusive de moldar gostos e preferências dos atores, é simplesmente ignorada, perenizando no pensamento econômico convicções que remontam ao século XIX (HODGSON, 2005). Para Chang (2004:51), desqualificar o papel do Estado e das políticas públicas com base no argumento de que representariam interferências indevidas na racionalidade econômica significa promover uma despolitização no mínimo contraditória e no máximo desonesta, dado que o mercado é, em si, um fato político. Considerando a importância do tema na ciência econômica, Hodgson (1988) estranha a dificuldade de se encontrar na literatura corrente uma clara definição sobre o que é mercado, bem como reflexões analíticas sobre os conceitos fundamentais envolvidos numa discussão dessa natureza. Recordando contribuições de Jevons, Von Mises e Lipsey, entre outros, ele observa que, ao tratar o mercado como fenômeno atemporal, subordinado a uma perspectiva ontológica individualista e calculista, a teoria neoclássica, contraditoriamente, acaba por banalizá-lo, inviabilizando um debate mais complexo e profundo sobre as inúmeras condições institucionais necessárias a sua existência. Avançar na perspectiva de instituições como algo mais do que regras restritivas ou mecanismo de representação de grupos de interesse é uma tarefa que tem ocupado toda uma geração de estudiosos refratários ao mainstream. A despeito do ressurgimento do institucionalismo dentro e fora do pensamento econômico nas últimas décadas, Chang e Evans (2005) avaliam que ainda estamos longe de uma teoria das instituições satisfatória. Ao conceituar a mudança econômica sob a forma de enunciados passíveis de elegante formalização, o cânone econômico dominante teria incorrido numa falsa parcimônia, prejudicando sua própria capacidade de compreensão do fenômeno. Os autores propõem uma abordagem alternativa que não apenas seja capaz de oferecer uma visão mais adequada sobre como instituições moldam comportamentos e resultados econômicos, mas que propicie um entendimento geral e sistemático sobre origens e trajetórias institucionais. Um projeto dessa natureza, segundo ressaltam, deve direcionar sua ênfase aos mecanismos capacitadores pelos quais as instituições viabilizam a coordenação de esforços interindividuais em favor de objetivos coletivos, exigindo um enfoque que transcenda a visão funcionalista e instrumentalista das restrições em prol de uma visão capacitadora e constitutiva das instituições, já que estas são portadoras de valores e visão de mundo compartilhados. Trata-se de uma alternativa culturalista, segundo a qual as mudanças institucionais seriam fruto da combinação e influência mútua entre interesses estabelecidos e projetos culturais e ideológicos, suplantando assim as premissas da eficiência e da submissão a interesses exógenos. Para Chang (2004, 2003), a tarefa de superar a visão de mundo que tem dominado a agenda política e intelectual de nosso tempo requer uma economia política institucionalista que leve igualmente a sério política e instituições, rompendo as amarras impostas pela economia política neoliberal ao debate teórico sobre Estado, mercado e demais construções sociais. Enviesando a leitura da história do capitalismo e do fenômeno da globalização, a retórica dominante produziu o mito da primazia do mercado, estimulando argumentações em favor da despolitização de economia como se esta fosse possível. Ao naturalizar o modo pelo qual os mercados regulam direitos e obrigações, critérios de participação ou a escolha das mercadorias transacionáveis, condena-se à invisibilidade o complexo conjunto de instituições formais e informais responsáveis pelos próprios parâmetros de sua criação e operação, acusa Chang. A pretensa objetividade reivindicada pelo neoliberalismo não pode ser concedida a nenhuma teoria, já que tais determinações são, em última análise, oriundas do reino da política. As questões levantadas pela virada institucional no debate sobre desenvolvimento ao longo das últimas décadas são teóricas, mas há implicações práticas no campo da política e das políticas públicas, como salienta Evans (2005). O fundamentalismo do capital viu-se sobrepujado nas últimas décadas por teorias de crescimento econômico baseadas nos retornos crescentes de ativos intangíveis como ideias e conhecimento, mas não há consenso sobre o modo de lidar com a nova realidade. Recuperando a forma como Hoff e Stiglitz descreveram o impacto dessa moderna economia – “development is no longer seen primarily as a process of capital accumulation, but rather as a process of organizational change” –, Evans reconhece que o foco analítico deslocou-se para o papel dos ambientes organizacionais e institucionais no processo de desenvolvimento, mas ressalta que essa inflexão vem sendo utilizada de modo perverso por formadores de políticas globais. Como resultado, ao invés de uma abordagem mais sofisticada conectando poder e cultura com foco nos conflitos distributivos, a solução recomendada vem sendo a adoção acrítica de versões idealizadas das instituições angloamericanas (EVANS, 2005, 2003). Os desdobramentos do programa neo-institucionalista no estudo das políticas públicas O estudo sistemático das políticas públicas é relativamente recente, ganhando impulso na Europa e EUA após a Segunda Guerra Mundial. Esse campo de pesquisas nasce com a ambição de compreender, para além das dimensões morais e normativas da ação de governar, a complexidade que cerca e condiciona a atuação prática dos Estados modernos e suas relações com os cidadãos. Trata-se de um método de abordagem que se presta a análises empíricas, sendo, portanto, capaz de reconciliar teorias políticas com ambientes políticos reais (HOWLETT; RAMESH, 1995). Dominantes na cena da ciência política até tempos recentes, as abordagens marxista, neo-marxista e pluralista foram crescentemente confrontadas teórica e empiricamente por visões alternativas baseadas na influência das instituições nos resultados socioeconômicos. Tal retomada ganhou novo fôlego a partir da década de 1980, com relevantes aplicações analíticas 73 e normativas no campo das políticas públicas. Esse novo institucionalismo foi descrito como uma corrente de pensamento não unificada, composta de pelo menos três diferentes métodos de análise, sendo eles o institucionalismo histórico, o institucionalismo da escolha racional e o institucionalismo sociológico (ou da teoria organizacional)3. Ainda que compartilhem o pressuposto da centralidade das instituições na vida política e social, foram apontadas importantes diferenças quanto ao marco conceitual. Immergut (1997) atesta que o surgimento do novo institucionalismo foi marcado pelo ceticismo em boa parte da comunidade científica. A questão básica por trás dessa desconfiança residiria no fato de as instituições jamais terem deixado de ser objeto essencial no estudo da política, particularmente na Europa, razão pela qual não haveria nenhuma novidade no debate. Um fato agravante é que a retomada mostrou-se incapaz de oferecer uma definição consensual sobre seu conceito-chave, não esclarecendo exatamente o que entendia por instituição. Para a autora, o institucionalismo histórico é o menos compreendido entre os neo-institucionalismos. Hall e Taylor (2003) consideram que o institucionalismo histórico tomou “emprestados” alguns elementos dos métodos que propõe superar. Das análises em termos de grupos, seus adeptos retiveram a ideia de que a apropriação de recursos escassos é central para a vida política, dedicando, porém, especial atenção à questão da distribuição desigual desses recursos, incluindo o poder, em contextos nacionais específicos. A resposta para tais desequilíbrios foi localizada nos resultados dos conflitos envolvendo a organização institucional da comunidade política e as estruturas econômicas, embates que acabam sempre por privilegiar interesses específicos. Do método estrutural-funcional, o neo-institucionalismo histórico assume a concepção de comunidade política como sistema global formado por partes que interagem entre si. Neste caso, a divergência refere-se à tendência de considerar as características sociais, psicológicas ou culturais dos indivíduos como os parâmetros responsáveis por boa parte do funcionamento do sistema. Os neo-institucionalistas históricos, ao contrário, relacionam o comportamento coletivo à polity (economia política), privilegiando assim a influência estrutural das instituições da comunidade política em detrimento de uma perspectiva funcionalista (p. 195). Em consonância com Hall e Taylor, Immergut (1997) identifica raízes antigas nessa corrente, remontando à tradição de Durkheim e Weber. Ao contrário dos institucionalismos organizacional (sociológico)4 e da escolha racional, os precursores da vertente histórica tendem a uma visão macrossocial e orientada para o poder, concentrando-se nas relações entre política, governo e sociedade em contextos específicos. Ela recorda que o desenvolvimento dos debates devolveu ao Estado sua relevância, num contraste coerente com o pluralismo e a teoria da modernização. Hall e Taylor veem esse resgate do papel do Estado como fruto das discussões envolvendo as variantes pluralistas e neomarxistas ao longo dos anos 1970. Não mais visualizado como arena “neutra” ou agente a serviço dos interesses de uma única classe, ele passa a ser percebido como um complexo de instituições capazes de influenciar a natureza e os resultados do conflito. 74 3 Hall e Taylor (2003) reconhecem que a nova economia institucional (NEI) poderia ser apontada como uma quarta escola, mas avaliam que sua familiaridade com a escolha racional justifica dar a elas tratamento conjunto. 4 A autora utiliza a expressão “teoria das organizações” para referir-se ao que Hall chama de institucionalismo sociológico. Quanto à ironia da proposição de um “novo” método baseado nas instituições dentro da ciência política, Hall contra-argumenta esclarecendo não tratar-se de uma mera retomada da tradição legalista-constitucionalista. Assim, as premissas da atual abordagem baseiam-se numa definição mais ampla das instituições, abarcando regras formais, procedimentos consensuais e práticas padronizadas, com foco no caráter relacional. Ainda que com status mais formal do que cultural, o aspecto legal não seria tão relevante quanto na antiga abordagem. O autor salienta que os fatores institucionais cumprem dois importantes papéis nesse modelo. Por um lado, a organização do policy-making afeta o grau de poder de cada um dos atores sobre os resultados; por outro, a própria posição ocupada condiciona a definição de interesses, ao estabelecer responsabilidades institucionais e relacionamentos com outros atores. Dessa forma, fatores institucionais e organizacionais afetam tanto o grau de pressão que um ator pode trazer para a arena política quanto sua provável direção. A diversidade institucional no mundo real: Regimes Produtivos e Variedades de Capitalismo O desgaste conceitual e o descrédito empírico da hipótese de ampla convergência liberal estão no centro das explicações para o fato de programas de pesquisa neo-institucionalistas terem se tornado comuns nos meios acadêmicos. Sem ignorar que os desafios da globalização reduziram a eficácia dos arranjos sociopolíticos erigidos no pós-guerra, essa corrente vem se dedicando a compreender o modo pelo qual o binômio mudança/continuidade tem sido equilibrado nas sociedades desenvolvidas. Superada a fase em que as diferenças podiam ser confortavelmente classificadas como desvios em relação a best practices atemporais, maior atenção vem sendo direcionada justamente ao modo como essa diversidade, potencializada por complementaridades institucionais, propicia coesão social e diferenciais competitivos. Se de fato os desafios contemporâneos e a interdependência têm estimulado algum nível de convergência nas democracias capitalistas, por outro lado constata-se que os ambientes institucionais historicamente construídos mostram-se, tanto quanto no passado, indispensáveis ao equacionamento dos conflitos distributivos. A persistência de padrões próprios em meio a um cenário de turbulências coloca em relevo a influência das trajetórias nacionais (path dependence) na construção de alternativas de desenvolvimento politicamente aceitáveis, esvaziando quaisquer expectativas de cristalização de um modelo de fácil emulação. Um importante grupo de estudos sobre estruturas socioeconômicas capitalistas passou a direcionar seu interesse para os regimes produtivos das economias avançadas, entendidos como a organização da produção através dos mercados e das instituições a ele relacionadas. O foco analítico dessa corrente são os modos pelos quais os microagentes dos sistemas capitalistas – empresas, consumidores, empregados, capitalistas etc. – organizam e estruturam suas relações sob um marco institucional que estabelece as “regras do jogo”, definindo incentivos e restrições. A análise desses ambientes procura esclarecer a influência de tais configurações sobre o comportamento dos microagentes, permitindo a elaboração de teorias sobre vantagens institucionais comparativas. É nessa perspectiva que Hall e Soskice (2001) retomam a tradição dos economistas políticos no estudo das especificidades de padrões nacionais, propondo uma abordagem 75 baseada nas variedades de capitalismo. Os autores se consideram tributários dos trabalhos de três diferentes perspectivas que dominaram o estudo de capitalismo comparado nos últimos trinta anos, cada uma delas voltada para a resposta a problemas econômicos de sua época: a “abordagem da modernização”, do período pós-guerra, baseada na categorização de Estados fortes e fracos; a abordagem neocorporativista dos anos 1970, formulada num contexto de reemergência de pressões inflacionárias e por isso voltada para a avaliação da capacidade estatal em negociar acordos estáveis entre capital e trabalho; e a abordagem dos sistemas sociais de produção, cuja ênfase concentrou-se nos novos regimes produtivos pós-fordistas e respectivas instituições coletivas que dariam sustentação a tais “comunidades econômicas” em nível nacional, regional ou setorial. Reconhecendo as relevantes contribuições de cada uma destas abordagens em diversos tópicos, Hall e Soskice propõem-se a avançar sobre as fragilidades que identificam em tais modelos analíticos, recuperando aspectos que consideram pouco explorados, tais como o papel do setor privado, a relevância das organizações patronais e a importância das instituições de abrangência nacional na regulação dos regimes de produção. Salientando que a abordagem de variedades de capitalismo é centrada nos atores, os autores apontam o protagonismo de um ator específico – as firmas – em virtude de sua posiçãochave no ajustamento do desempenho econômico num contexto internacional de mudanças tecnológicas e intensa competição. Esta concepção vê as firmas como atores em busca de competências centrais e capacidades dinâmicas, desenvolvendo, produzindo e distribuindo bens e serviços lucrativamente, contudo sujeitas a problemas de coordenação em função da natureza relacional de tais capacidades. O desenvolvimento de relacionamentos voltados para a resolução de tais problemas centrais conformaria as cinco esferas às quais a abordagem das variações de capitalismo direciona seu foco: i) relações industriais, especialmente a mediação dos conflitos distributivos entre capital e trabalho, abrangendo sindicatos e entidades patronais (aqui as questões-chave são os níveis de remuneração e produtividade no nível da firma, inflação e desemprego na economia como um todo); ii) capacitação e educação, com ênfase na compatibilização entre itinerários formativos dos trabalhadores e habilidades necessárias às firmas (estando em jogo o desempenho e a competitividade geral da economia); iii) governança corporativa, fundamental para manutenção do acesso a fontes de financiamento ao propiciar maior segurança aos credores; iv) relações interfirmas, abrangendo todas as interfaces das empresas com suas cadeias de valor, além do compartilhamento de novas tecnologias, pesquisa e desenvolvimento, dos quais a competitividade da economia como um todo é bastante dependente; e v) empregados, cujo comprometimento com as trajetórias corporativas minimizaria os efeitos perversos da seleção adversa, risco moral e divulgação de segredos industriais. Dadas estas categorias de análise, a abordagem das variações de capitalismo propõe uma tipologia que permite comparações internacionais. As economias políticas se disporiam ao longo de um espectro que tem em seus extremos dois tipos-ideais: Economias de Mercado Liberais (LME)5 e Economias de Mercado Coordenadas (CME)6. O núcleo distintivo entre os dois polos é o grau de competição e o papel dos mecanismos e instituições de mercado 76 5 6 Liberal Market Economies, no original. Coordinated Market Economies, no original. na coordenação dos esforços interfirmas. Nas LME, prevaleceriam as instituições típicas de mercado, fornecendo preços que definiriam as preferências dos atores, num contexto tipicamente neoclássico. Nas CME, ao contrário, os mecanismos e relações não mercantis prevaleceriam, privilegiando interações estratégicas que forneceriam o equilíbrio necessário ao sistema. EUA, Inglaterra e países anglófonos estariam mais próximos do tipo ideal LCE, enquanto a Europa continental e Japão apresentariam características mais próximas das CME. O trabalho de Hall e Soskice foi marcante no debate sobre alternativas baseadas na diversidade institucional, alinhando-se às contestações do capitalismo de modelo único. Autores como Crouch (2005), contudo, perceberam na obra um viés determinista. Admitindo que o trabalho ajudou a definir os termos de toda uma escola de estudo, ele registra desconforto com a ideia de que as variedades de capitalismo se resumiriam a duas. Suas restrições não se dirigem especificamente ao modelo de Hall e Soskice, podendo ser direcionadas também a boa parte das obras identificadas com o método neo-institucionalista. A despeito do grande mérito de restabelecer o papel da sociologia e da ciência política no estudo dos fenômenos econômicos, observa ele, a força das análises dessa corrente tem sua origem na habilidade em identificar padrões homogêneos a partir de um retrato limitado dos arranjos institucionais. Acrescentando a isso a visão das instituições como gaiolas de ferro, profundamente resistentes à mudança, ficaria completa a natureza inflexível da abordagem. A path dependence, argumenta Crouch, deveria ser interpretada de modo mais maleável, abrindo espaço para o tratamento da mudança institucional de forma mais profunda e abrangente, o que inclui um olhar especial para uma figura que considera central nesse processo: o empreendedor institucional. Tal como um agente econômico clássico, este ator é por ele definido como um indivíduo à procura de oportunidades até então inexploradas. Sua busca e seleção, contudo, tem um horizonte mais amplo, estando voltadas para a identificação de elementos institucionais passíveis de serem recombinados em prol de mudanças estruturais. Apontando as questões relacionadas ao papel das instituições e à dinâmica das mudanças institucionais no centro do debate econômico europeu no início deste século, Amable (2003) estende as críticas de Crouch ao trabalho de Hall e Soskice. Embora reconheça que o recurso da simplificação possa facilitar análises empíricas, ele igualmente enxerga uma limitação unidimensional na metodologia, admitindo-a como provável em função de a centralização do foco nas firmas levar a uma dicotomia que não se estabeleceria caso outras instituições tomassem parte da análise. Amable defende a existência de não apenas dois, mas cinco diferentes tipos de capitalismo, cada um deles portador de formas institucionais específicas, por ele denominados Modelo Baseado no Mercado, Modelo Social-Democrata, Modelo Europeu Continental, Modelo Mediterrâneo e Modelo Asiático. As áreas institucionais relevantes seriam: i) competição produto-mercado; ii) nexo remuneração-trabalho e instituições do mercado de trabalho; iii) setor de intermediação financeira e governança corporativa; iv) welfare state e proteção social; e v) setor educacional. Sua proposta apresenta os conceitos de complementaridades e hierarquias interinstitucionais. Sob tal perspectiva, as instituições devem ser consideradas não individualmente, mas como partes de uma estrutura, dado que suas áreas de influência não são limitadas ao ambiente em que se situam. Um bom desempenho 77 econômico seria derivado da combinação e de reforços mútuos interinstitucionais, cabendo às hierarquias definir a importância relativa de cada uma delas para o todo, demarcação diretamente relacionada à relevância que lhes é conferida pelas coalizões políticas dominantes. Mais recentemente, Schneider (2008; 2009) procurou transpor as análises institucionais comparativas das variedades de capitalismo para os países em desenvolvimento, notadamente os latino-americanos. Nas considerações do autor, as tipologias consagradas no estudo de economias desenvolvidas no âmbito da OCDE não dariam conta das particularidades e idiossincrasias do capitalismo praticado naquelas nações. Sua abordagem constata uma forma distinta de coordenação econômica, compondo o que denomina Economias de Mercado Hierarquizadas (HME)7. Em sua visão, nesses arranjos o acesso das corporações a insumos essenciais de capital, tecnologia e trabalho seria condicionado por quatro características centrais dessas economias: predomínio de conglomerados empresariais nacionais diversificados; ação de empresas multinacionais; trabalho de baixa qualificação; relações trabalhistas atomizadas. A expansão tipológica proposta por Schneider pretende dar conta do que ele classifica como quarta forma de organizar a alocação de recursos e o comprometimento entre atores além do mercado (LME), da negociação (CME) e das redes (NME)8 – a hierarquia. De acordo com Schneider, o caráter hierárquico das economias latino-americanas poderia ser notado não apenas pela forma como as empresas se organizam internamente, mas também na estruturação de suas interações com outros atores dos ambientes econômico e político. O desequilíbrio seria a tônica dessa variedade de capitalismo, acentuado pela predominância de arranjos monopolistas e oligopolistas no lado do capital, que assim concentra recursos de poder sensivelmente superiores a sua contraparte no trabalho. A histórica desigualdade social na região, perenizada pelo padrão de distribuição de renda, obstaculizaria maior coesão social e comprometeria o engajamento dos atores econômicos em torno de objetivos negociados de longo prazo. Alimentado pelas disfunções do modelo, o caráter hierárquico acabaria por desincentivar investimentos incrementais em educação e capital humano em função da rentabilidade de atividades ligadas à exploração de commodities, reforçando assim a baixa produtividade da economia como um todo e a posição subalterna desses países na divisão internacional do trabalho. Uma interessante reflexão apresentada pelo autor diz respeito ao fato de as reformas liberais da década de 1990 não terem sido capazes de estimular uma transição do modelo HME rumo à forma LME. Pelo contrário, a configuração institucional desses países teria feito das reformas pró-mercado um fator de reforço ao caráter corporativo hierárquico, e não estimulado a competição e a livre concorrência. Tal constatação reforça a noção de que as HME não constituem uma etapa transitória, fadada a ser substituída por uma das variedades clássicas das economias maduras em algum momento histórico, mas uma forma própria, distinta e acabada de arranjo institucional. Do ponto de vista da implicação de tais considerações para a formulação de políticas públicas, Schneider lembra que boa parte das iniciativas estatais ao longo do século passado 78 7 8 cos. Hierarchical Market Economies, no original. Network Market Economies, no original. Nesse subgrupo estariam abarcados os países asiáti- teve como efeito reforçar o caráter hierárquico desses regimes produtivos, como no caso do estímulo à diversificação dos grupos empresariais nacionais e dos incentivos à instalação de unidades de empresas multinacionais em seus territórios. Outro efeito negativo da ação pública ostensiva foi a inibição do florescimento de estruturas sociais representativas não ligadas ao Estado ou ao mercado, instituições estas comuns às economias coordenadas. Nesse sentido, Schneider resgata os argumentos de Hall e Soskice (2001: 45) segundo os quais os formuladores de políticas deveriam se concentrar menos em induzir mudanças de comportamento e mais em estimular a cooperação entre os agentes econômicos. De acordo com essa premissa, em arenas complexas e diversas, tal como a econômica, o desenvolvimento de competências é facilitado pela coordenação de esforços. Performances econômicas superiores em nível nacional demandariam, portanto, políticas capazes de viabilizar mecanismos mais eficientes de coordenação no setor privado. Diante da constatação de que as reformas liberais levadas a cabo nos países em desenvolvimento ao longo dos anos 1990 falharam em promover o desenvolvimento sustentado e a redução das desigualdades sociais, Schneider argumenta que a abordagem de variedades de capitalismo pode jogar luz sobre lógicas internas e complementaridade inerentes ao funcionamento dessas economias, esclarecendo quais políticas seriam compatíveis e/ou complementares em termos de incentivos nos arranjos vigentes. Quanto à superação do status HME, ele pondera que, embora desejável, a cooperação envolve altos custos institucionais comparativamente às alternativas liberal e hierarquizada, demandando investimentos para muito além das capacidades das economias em desenvolvimento. Não obstante, como a experiência prática demonstrou, tampouco a desregulamentação garante uma rota segura rumo a um modelo LME, podendo mesmo reforçar a hierarquização. Ironicamente, toda uma agenda liberal pode acabar vendo seus esforços reforçarem uma forma típica de coordenação completamente alheia à lógica do mercado. Considerações finais Divergências metodológicas à parte, as contribuições das abordagens identificadas com a economia política institucionalista têm um relevante papel no debate sobre o papel das políticas públicas no desenvolvimento. Se a propalada convergência rumo a um modelo único não se confirmou, o debate sobre variações de padrões institucionais permanece fundamental e atual, lançando bases para um melhor entendimento da real natureza das instituições, seus aspectos constitutivos e o delicado equilíbrio entre mudança e continuidade. Essas distinções nos permitem compreender de que forma ambientes e contextos institucionais reais moldam a interação entre atores sociais e econômicos e conduzem a determinadas políticas públicas em detrimento de outras, reafirmando que as escolhas governamentais são, em última instância, opções políticas de uma sociedade. Avançar na compreensão dos processos sob os quais tais escolhas são negociadas, implementadas, ou eventualmente substituídas por alternativas percebidas como superiores, representa não apenas um fascinante exercício analítico, mas uma prática indispensável para a consolidação da democracia. Referências 79 AMABLE, B. The diversity of modern capitalism. Oxford University Press, 2003 CHANG, H. J.; EVANS, P. The role of institutions in economic change: in Dymski, G.; De Paula, S. Reimagining Growth. London, Zed Books, 2005 CHANG, H. J. The market, the state and institutions. In: CHANG, H. J (ed.) Rethinking Development Economics. London: Anthem Press, 2004 __________. 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Saraiva, 2004 Agenda Social ELETRONIC JOURNAL VOLUME NÚMERO 7 2 ISSN 1981-9862 www.revistaagendasocial.com.br O MOVIMENtO AMBIENtAL E O POdER dA COMUniCaçÃO na sOCiedade eM rede: anÁLise dO insTiTUTO sOCiOaMBienTaL The environmental movement and the communication power in the network society: an analysis of “Instituto Socioambiental” ALMEIdA, Mariana eunice alves de (1); siLVeira, sérgio amadeu da (2). 1. Bacharel em Administração; Licenciatura em Letras. Mestranda em Ciências Humanas e Sociais na UniversidadeFederaldoABC(UFABC).([email protected]); 2. Doutor em Ciência Política. Docente no Programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas e Sociais na UniversidadeFederaldoABC(UFABC).([email protected]) RESUMO aBsTraCT Esteartigoapresentareflexõessobreouso dos meios de comunicação, em especial a Internet, e sua contribuição para os movimentos ambientais na atualidade. A partir da perspectiva de Manuel Castells o texto discute as potencialidades e o poder dos meios de comunicação para divulgação e persuasão do tema ambiental nasociedadecontemporânea.Éfeitauma análise do site do Instituto Socioambiental, organização não-governamental que atua na defesa de bens e direitos sociais e ambientais. Entende-se que os movimentos sociais em geral, e o ambiental, em particular, potencializam o alcance de seus objetivos por meio da comunicação de seus valores. Na teorização de Castells, o poder dacomunicaçãoestánatransformaçãodas mentes das pessoas. This article presents reflections about the means of communication’s use, in special the Internet, and their contribution to environmental movements of today. From the perspective of Manuel Castells, the article presents the possibilities and the power of the means of communication to the publicizing and persuasion of the environmental theme on the contemporary society. An analysis over the site of the Instituto Socioambiental is made, a non-governmental organization that acts on the defense of social and environmental rights. It’s understood that the social movements in general, and the environmental, in particular, increase the reach of their intents by the communication of their values. In Castells’s theory, the power of communication is in the transformation of people’s minds. PaLaVras-CHaVe COMUNICAÇÃO; INTERNET; SOCIEDADE EM REDE; MOVIMENTOS SOCIAIS. KEY-WORdS COMMUNICATION; INTERNET; NETWORK SOCIETY; SOCIAL MOVEMENTS. 81 Introdução A globalização econômica, fortalecida no final do século XX, proporcionou a diminuição das distâncias entre países e mudanças nas formas das pessoas se relacionarem. A nova forma de morfologia social leva ao surgimento do que Manuel Castells (2000) denomina como sociedade em rede, que se tornou possível de existir enquanto forma predominante de organização na contemporaneidade, em grande parte, devido às novas tecnologias da informação e comunicação. Essas transformações alteraram as formas como as sociedades comunicam seus conteúdos simbólicos. Maria da Glória Gohn (2012) argumenta que no cenário de globalização pelo qual o mundo passou, em especial no final do século XX, há o surgimento de novas formas de mobilização social. Estas são influenciadas pela globalização, marcada pela crescente importância da forma organizacional em rede e do uso das novas tecnologias de informação e comunicação. Os movimentos ambientais almejam a preservação do meio ambiente e operam, basicamente, na luta para influenciar o pensamento e comportamento das pessoas e instituições da sociedade, e, consequentemente, atingir os objetivos de mudanças institucionais. A divulgação dos valores e ideias dos movimentos ambientais têm conseguido um maior alcance devido ao uso das novas tecnologias da informação e comunicação, que permitem aumentar o potencial de comunicação destes movimentos. Devido à importância da comunicação para os movimentos sociais, este artigo traz uma análise de alguns elementos fundamentais da obra de Manuel Castells no que se refere ao poder da comunicação e uso da Internet como meio privilegiado de comunicação desses movimentos. A questão do poder da comunicação é teorizada na obra de Castells, Communication Power, de 2009, ainda sem tradução para o português. O autor argumenta que, na sociedade em rede, o poder reside na capacidade de mudar a mente das pessoas, na construção e aceitação de significados. Esta forma de poder realiza-se por meio da comunicação humana, que atualmente, é influenciada em grande parte pelas tecnologias de informação e comunicação, em especial a Internet, que possibilitou o surgimento do que o autor denomina “auto-comunicação em massa”. Desta forma, os movimentos ambientais contam com o uso dos meios de comunicação da sociedade em rede para expandir sua efetividade, que consiste não apenas de mudanças de valores e comportamentos da população, mas também de mudanças institucionais. É com base na teoria sobre o poder da comunicação apresentada nesta obra que este artigo constrói suas argumentações sobre o potencial existente no uso da comunicação via Internet, ao analisar o site do Instituto Socioambiental, uma Oscip (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público) que busca propor soluções para questões sociais e ambientais, e atua na defesa de direitos sociais e do meio ambiente. 1 – O poder da comunicação na sociedade em rede Manuel Castells aponta a emergência de uma nova forma de sociedade, a sociedade em rede. Conforme já indicado, essa sociedade é: 82 [...] caracterizada pela globalização das atividades econômicas decisivas do ponto de vista estratégico; por sua forma de organização em rede; pela flexibilidade e instabilidade do emprego e a individualização da mão-de-obra. Por uma cultura de virtualidade real construída a partir de um sistema de mídia onipresente, interligado e altamente diversificado. E pela transformação das bases materiais da vida – o tempo e o espaço – mediante a criação de um espaço de fluxos e de um tempo intemporal como expressões das atividades e elites dominantes (CASTELLS, 2006, p. 17). A sociedade em rede tem sua infraestrutura baseada em redes digitais. Tal estrutura tem a capacidade potencial de ser global. Portanto, a sociedade em rede é: [...] uma sociedade global. No entanto, isso não significa que pessoas em todo mundo estão incluídas nessas redes. Mas todos são afetados pelos processos que ocorrem em redes globais que constituem a estrutura social. [...] A sociedade em rede global é uma estrutura dinâmica que é altamente maleável a forças sociais, a cultura, a política, e a estratégias econômicas. Mas o que permanece em todas as suas instâncias é sua dominância sobre atividades e pessoas que são externas a suas redes. O global se sobrepõe ao local (CASTELLS, 2009, p. 25-26, tradução nossa). A principal fonte de poder exercido na sociedade em rede é o poder da comunicação; e o surgimento da sociedade em rede é baseado nas redes de comunicação que processam conhecimento e pensamentos. As redes são formas preferenciais de organização, pois apresentam flexibilidade a adaptabilidade, ou seja, características fundamentais para sobreviver em um ambiente em constante mudança. A habilidade das redes de introduzir novos atores e novos conteúdos no processo de organização social aumentou ao longo do tempo com a mudança tecnológica e, mais precisamente, com a evolução das tecnologias de comunicação (CASTELLS, 2009). O autor aponta a existência de quatro formas distintas de poder existentes na sociedade em rede. São elas: o poder de conectar em rede (networking power), o poder da rede (network power), o poder em rede (networked power) e o poder para criar redes (network-making power). O poder de conectar em rede refere-se ao poder que opera por inclusão/ exclusão. Os atores sociais podem estabelecer sua posição de poder, constituindo uma rede que acumule recursos de valor, e depois exercendo suas estratégias de filtro para impedir o acesso daqueles que não adicionam valor à rede ou que colocam em perigo os interesses dominantes em seus programas (CASTELLS, 2009). O poder da rede é definido por Castells de acordo com a conceitualização de Grewal: A noção de poder da rede consiste de duas ideias: primeiro, que padrões de coordenação são mais valiosos quando um grande número de pessoas os usam, e, segundo, que essa dinâmica – que descrevo como uma forma de poder – pode levar à eliminação progressiva das alternativas sobre que, em outro caso, se pode exercer a livre escolha coletivamente (GREWAL apud CASTELLS, 2009, p. 43, tradução nossa). Desta forma, os protocolos de comunicação determinam as regras a serem aceitas na rede - o poder é exercido não por exclusão das redes, mas pela imposição das regras de sua 83 inclusão. O respeito a essas regras é o que possibilita a existência da rede como estrutura comunicativa (CASTELLS, 2009). Ao explanar sobre o poder em rede, o autor argumenta que o poder é a capacidade relacional para impor a vontade de um ator sobre a de outro com base na capacidade estrutural de dominação inclusa nas instituições da sociedade. Quem detém o poder nas redes da sociedade em rede pode ser muito simples de se explicar se respondermos a pergunta ao analisar a atuação de cada rede dominante concreta. Cada rede define suas próprias relações de poder em função de suas metas programadas. Mas é uma questão sem saída analítica se tentarmos respondê-la unidimensionalmente e tentarmos determinar a fonte do poder como sua entidade única. Não há, portanto, o poder, singular. Ao tratar o poder para criar redes, é importante ressaltar que a capacidade de exercer controle sobre outros depende de dois mecanismos básicos: 1) capacidade de construir redes e de programar/ reprogramar as redes segundo os objetivos estabelecidos para a rede - atividade exercida pelo que o autor conceitua como programadores; 2) capacidade para conectar diferentes redes e assegurar sua cooperação, ao compartilhar objetivos e combinar recursos, enquanto se evita a competição com outras redes, estabelecendo-se uma cooperação estratégica - atividade exercida pelo que o autor conceitua como conectores (CASTELLS, 2009). A capacidade de programar os objetivos da rede (bem como de reprogramá-la) é decisiva porque “uma vez programada, a rede atuará com eficiência e reconfigurará sua estrutura e seus nós para atingir seus objetivos” (CASTELLS, 2009, p. 45, tradução nossa). Desta forma, a habilidade para criar redes “geralmente depende da habilidade de gerar, difundir e afetar os discursos que moldam a ação humana” (CASTELLS, 2009, p. 53, tradução nossa). Os discursos são capazes de moldar a mente das pessoas, e atualmente, isso se dá pelas redes de comunicação que organizam a comunicação social. Esse fato é de grande relevância, como ressalta o autor: Porque a mente do público, isto é, o conjunto de valores e moldes que tem maior exposição na sociedade, é geralmente o que influencia o comportamento individual ou coletivo, programando as redes de comunicação na fonte decisiva de materiais culturais que alimentam esses objetivos programados de qualquer outra rede. Além disso, porque as redes de comunicação conectam o local com o global, os códigos difundidos nessas redes têm um alcance global (CASTELLS, 2009, p. 53, tradução nossa). 84 Desta forma, para que uma mensagem alcance e mude a mente das pessoas, e a partir de então, comportamentos sociais e institucionais sejam modificados, como objetivam os movimentos ambientais, é necessário estabelecer redes de comunicação eficientes, capazes de disseminar o discurso destes movimentos para o público. O meio de comunicação que se tem mostrado mais adequado a esse fim é a Internet. A Internet é o espaço preferencial de comunicação da sociedade em rede; ela é “o tecido de nossas vidas, [...] a Internet passou a ser a base tecnológica para a forma organizacional da Era da Informação: a rede” (op cit, IDEM, p. 7). É ainda “um meio de comunicação que permite, pela primeira vez, a comunicação de muitos com muitos, num momento escolhido, em escala global” (CASTELLS, 2003, p. 8). Com o crescimento do uso da Internet, emerge um novo tipo de comunicação interativa, e sua principal característica é a capacidade de emissão de mensagens de muitos para muitos, em tempo real ou escolhido. Essa nova forma de comunicação é conceituada como “autocomunicação em massa” (CASTELLS, 2009, p. 55, tradução nossa). É comunicação em massa porque tem o potencial de alcançar uma audiência global, mas é ao mesmo tempo autocomunicação, pois o próprio emissor da mensagem a gere de acordo com suas preferências e conhecimentos; ele mesmo define quem será seu receptor em potencial, e pode, a qualquer momento, recuperar e alterar mensagens específicas das redes eletrônicas de comunicação. O conceito de auto-comunicação em massa considera que sujeitos comunicativos não são entidades isoladas: eles antes interagem entre eles mesmos ao formar redes de comunicação que produzem significado compartilhado. Portanto, nós passamos da comunicação em massa direcionada para uma audiência ativa que constrói o significado da comunicação ao contrastar sua experiência com fluxos unidirecionais de informação que recebem. Esse processo dá origem ao que o autor denomina de audiência criativa, que surge quando as pessoas combinam a multiplicidade de mensagens que recebem com seus próprios significados e projetos de comunicação, o que é possível graças às tecnologias de autocomunicação em massa, que permitem maior iniciativa e interação entre as pessoas. Esse novo ambiente de comunicação torna-se a fonte preferencial de mensagens que levam à construção de significado nas mentes das pessoas. Já que a construção de significado determina a ação, em grande parte, o significado da comunicação torna-se a fonte de poder social ao formar a mente humana (CASTELLS, 2009). 2 – Mobilização em prol do meio ambiente Ao apresentar reflexões sobre as novas teorias dos movimentos sociais, Maria da Glória Gohn (2010), afirma que os movimentos sociais contemporâneos desenvolvem-se em um novo cenário, e que há novos sujeitos sociopolíticos em ação. A forma de atuação desses protagonistas de ações coletivas dá-se agora em redes. Assim como surgiram novos sujeitos, novos olhares sobre a forma de ação dos movimentos sociais foram influenciados por autores que destacavam a questão do agir comunicativo presente nas ações dos movimentos e suas possibilidades de geração de novas formas de relação e de produção. Os olhares dos teóricos dos novos movimentos sociais voltam-se também para a questão do engajamento dos indivíduos e grupos. O tema do voluntariado ressurge, e analisase como os movimentos sociais atraem o engajamento do voluntário. Levanta-se, então, a categoria “mobilização social” para a construção de ações coletivas. Uma reestruturação das formas de organização e de protesto das ações coletivas e dos movimentos sociais surge na contemporaneidade devido ao processo de globalização, apoiada com a crescente importância das redes e fluxos das novas tecnologias da informação e comunicação (GOHN, 2012). Marques e Nogueira (2012) afirmam que a sociedade civil organizada estimulou o surgimento de novos atores sociais, como ONGs, novos movimentos sociais, associações, grupos de defesa de minorias, redes comunitárias, conselhos e organizações ambientalistas. Os movimentos sociais aparecem como peças-chave nos processos de mudanças sociais, já 85 que “o repertório de lutas que eles constroem, demarca interesses, identidades, subjetividades e projetos de grupos sociais” (GOHN apud MARQUES; NOGUEIRA, 2012, p. 143). Dentre esses movimentos sociais encontram-se os movimentos ambientais, que buscam a preservação do meio ambiente por meio da mudança de valores e comportamentos da sociedade, bem como mudanças institucionais por parte dos governantes. O movimento ambientalista consegue grande adesão do público, por circular entre diversas identidades culturais da contemporaneidade; as temáticas levantadas por ele são globais e locais ao mesmo tempo, isto é, o objetivo geral tem uma visão global, mas o processo de mudança inicia-se e é fortificado na instância local (SOUZA, 2003). O ambientalismo não é só movimento de conscientização. Ele procura influenciar a legislação e as decisões governamentais. É o pragmatismo e a atitude dos movimentos ambientais que surpreendem quando comparados com ações de política internacional, pois as pessoas “percebem que são capazes de exercer influência sobre decisões importantes aqui e agora, sem que para isso seja necessário qualquer tipo de mediação ou postergação” (CASTELLS, 2006, p. 163). Os movimentos ambientais, assim como qualquer movimento social, procuram atingir a mudança social. Esta tem múltiplas dimensões, mas basicamente decorre de uma mudança de mentalidade dos indivíduos e coletividades. E o modo como pensamos é o que determina como agimos. “E mudanças em comportamento individual e ação coletiva, impactam e modificam, gradualmente, mas definitivamente, normas e instituições que estruturam práticas sociais” (CASTELLS, 2009, p. 299, tradução nossa). É por meio da mudança de mentalidade das pessoas que o movimento ambientalista procura atingir seus objetivos. Para isso, deve comunicar, fazer ouvir seus valores, seus ideais, e o que espera mudar na sociedade – a relação do homem com a natureza. Desta forma, na sociedade em rede, a construção de significados ocorre, em boa parte, através da comunicação midiática, e, portanto, o processo de mudança social exige a reprogramação das redes de comunicação em termos de seus códigos culturais e em termos dos valores e interesses sociais e políticos que elas comunicam (CASTELLS, 2009). Castells (2005) afirma que a maioria dos movimentos sociais do mundo utiliza a Internet como um espaço privilegiado de ação e organização. O autor aponta três características fundamentais no uso da Internet pelos movimentos sociais. A primeira é que a internet é “a estrutura organizativa e o instrumento de comunicação que permite a flexibilidade e a temporalidade da mobilização, mantendo, porém, ao mesmo tempo, um caráter de coordenação e uma capacidade de enfoque dessa mobilização” (CASTELLS, 2005, p. 277). A segunda característica é que os movimentos sociais da sociedade em rede desenvolvemse em torno da criação de valores, e, portanto, dependem de sua habilidade de comunicação e de estimular a aceitação de determinadas ideias, princípios e valores. Neste ponto, a Internet tem se mostrado fundamental, pois é um meio de comunicação que potencializa a emissão e divulgação de mensagens (CASTELLS, 2005). E a terceira característica específica dos movimentos sociais e do uso da Internet como mídia privilegiada reside no fato de que: 86 [...] cada vez mais, o poder funciona em redes globais e as pessoas têm suas vivências e constroem seus valores, suas trincheiras de resistência e de alternativa em sociedades locais. O grande problema que se coloca é como, a partir do local, se pode controlar o global [...]. A Internet permite a articulação dos projetos alternativos locais através de protestos globais [...], é a conexão global-local, que é a nova forma de controle e de mobilização social em nossa sociedade (CASTELLS, 2005, p. 278-279). O uso cada vez maior da Internet por parte dos movimentos ambientalistas não significa que o uso das mídias consideradas de massa (televisão, rádio, jornais, revistas) foi deixado de lado. Significa apenas que a flexibilidade que as redes digitais de comunicação oferecem, proporcionam visibilidade e mobilização em escala global, mais interação com o público e, portanto, maior possibilidade de alcançar as demandas desses movimentos. Portanto, “de sua ênfase original de alcançar a audiência de massa, o movimento mudou para estimular a participação em massa dos cidadãos ao se aproveitar da capacidade de interação oferecida pela Internet” (CASTELLS, 2009, p. 327, tradução nossa). 3 – Análise do Instituto Socioambiental O Instituto Socioambiental (ISA) é: [...] uma organização da sociedade civil brasileira, sem fins lucrativos, fundada em 1994, para propor soluções de forma integrada a questões sociais e ambientais com foco central na defesa de bens e direitos sociais, coletivos e difusos relativos ao meio ambiente, ao patrimônio cultural, aos direitos humanos e dos povos. Desde 2001, o ISA é uma Oscip – Organização da Sociedade Civil de Interesse Público – com sede em São Paulo (SP) e subsedes em Brasília (DF), Manaus (AM), Boa Vista (RR), São Gabriel da Cachoeira (AM), Canarana (MT), Eldorado (SP) e Altamita (PA) (INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL, 2013. Disponível em: http://www.socioambiental.org/ pt-br/o-isa. Acesso em 06 mai. 2013). Organização sem fins lucrativos, o ISA atua na defesa de direitos dos povos indígenas, remanescentes de quilombos, comunidades tradicionais, entre outros. Desenvolve programas que buscam a defesa de direitos socioambientais, o monitoramento e proposição de alternativas às políticas públicas. Realiza pesquisa, difusão e documentação de informações socioambientais. Participa do desenvolvimento de modelos participativos de sustentabilidade socioambiental e estimula o fortalecimento institucional de parceiros locais. Dentre os programas em andamento coordenados pelo Instituto, podemos citar o Programa Xingu, Vale do Ribeira, Rio Negro – que visam ao desenvolvimento socioambiental dessas áreas; há ainda o Projeto Povos Indígenas do Brasil, que apresenta o levantamento de informações feito sobre os indígenas brasileiros; o Programa de Política e Direito Socioambiental que trabalha com a elaboração de políticas públicas voltadas à garantia de um meio ambiente ecologicamente equilibrado e condições dignas de vida às populações indígenas e tradicionais. Já o Programa Monitoramento de Áreas Protegidas produz e disponibiliza informações sobre Terras Indígenas, Unidades de Conservação, terras militares, glebas do INCRA, reservas garimpeiras e outras terras de interesse público3. Cada programa conta com blogs com 87 informações e notícias sobre as atividades desenvolvidas e assuntos afins dos programas. O site do Instituto na Internet contém áreas que apresentam o que é o ISA, quais os programas e projetos que desenvolve e colabora, além de notícias sobre questões sociais, ambientais, defesa de povos indígenas e áreas de interesse social para o país. Há ainda a apresentação de campanhas, redes e organizações não governamentais que o ISA apóia, coordena e participa na área “Campanhas e Redes”, como a campanha Cílios do Ribeira, a campanha Y Ikatu Xingu, a Rede Amazônica de Informação Socioambiental Georreferenciada, a Rede Rio Negro, a Rede de ONGs da Mata Atlântica, o Fórum Amazônia Sustentável, a iniciativa Conexões Sustentáveis, o Plano de Desenvolvimento Regional Sustentável – Xingu, a Associação Brasileira de Organizações não Governamentais (ABONG) e a RCA – Rede de Cooperação Alternativa. O ISA produz e divulga informações sobre as áreas de interesse em que atua, bem como sobre assuntos gerais que dizem respeito a direitos sociais e do meio ambiente. O Instituto possui uma área de Comunicação que é: [...] responsável pela produção e divulgação de informações de interesse do ISA para a imprensa especializada e em geral, para o público em geral, pesquisadores, antropólogos e formadores de opinião entre outros, por meio do site e de um sistema de envio, por e-mail, das notícias e reportagens produzidas pela equipe (INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL, 2013. Disponível em: http:// www.socioambiental.org/pt-br/o-isa. Acesso em 06 mai. 2013). A produção e disseminação de informações são, portanto, vitais para a atuação dos projetos do Instituto. Para que essa troca de informações seja potencializada, o ISA conta com ferramentas de interatividade na Internet. A interatividade com o Instituto Socioambiental ocorre por meio das redes sociais: Facebook, Twitter, You Tube, Google +, Pinterest, Issuu, Linkedin e Foursquare. Nesses espaços digitais, além dos usuários poderem comentar as noticias e demais publicações feitas pelo ISA, eles podem repassar essas informações a mais pessoas que se utilizam dessas redes sociais, aumentando as possibilidades de disseminação de informações. Ao proporcionar a interação dos usuários por meios de redes sociais, o ISA fomenta o que Castells (2009) conceitua como “auto-comunicação de massa”. Isto é, os usuários da Internet geram mensagem, conteúdo, de acordo com suas preferências pessoais, e têm a possibilidade, ao mesmo tempo, de sua mensagem alcançar um grande número de pessoas (característica da comunicação em massa), e de direcionar esta mensagem a receptores em potencial, escolhidos pelos próprios usuários. O uso da interatividade das redes sociais da Internet possibilita ao Instituto a ampliação de sua esfera de atuação, ao ter multiplicados suas ideias e valores pelos próprios usuários do site. Esta característica pode ser identificada como uma forma de poder para os movimentos ambientais, já que se utilizam do dinamismo e interatividade proporcionados pela Internet para ampliarem suas mensagens. Identifica-se, desta forma, o poder para criar redes, conforme elaborado por Castells (2009). 88 INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL, 2013. Disponível em: http://www.socioambiental.org/pt-br/oisa. Acesso em 06 mai. 2013. Pode-se identificar no Instituto Socioambiental a capacidade de construir e programar redes de acordo com os objetivos estabelecidos pela organização, uma vez que o ISA conta com uma base de comunicação estruturada na Internet. Desta forma, o Instituto busca alcançar seu objetivo – informar e mobilizar sobre questões sociais e ambientais – por meio da programação / reprogramação das redes de comunicação. Outra característica apresentada pelo ISA é a capacidade para conectar diferentes redes e assegurar sua cooperação, ao compartilhar objetivos e combinar recursos. Além da participação em projetos, programas, e de parcerias permanentes com demais organizações que promovem a defesa do meio ambiente e de direitos sociais, como ONGs, Oscips e institutos, o ISA faz uso da interatividade das redes sociais da Internet para a divulgação de suas ideias e valores. Há a criação de redes de colaboração e compartilhamento de informação entre a organização-usuários e entre usuários-usuários, já que as redes sociais permitem tal interação, bem como o site institucional do ISA. Ao estimular a troca de informação entre os usuários do site, o Instituto Socioambiental aumenta o potencial de aceitação de suas ideias e valores, e de exercer, portanto, a transformação da mente das pessoas para provocar mudança de atitudes em busca da sustentabilidade ambiental e social. Considerações Finais A construção de significados e a formação de valores é o meio fundamental para que movimentos sociais alcancem seus objetivos – a mudança social. Ganha destaque neste contexto o movimento ambientalista, que busca não apenas mudanças e melhorias governamentais e legais, mas também mudanças de comportamentos da população em geral. Esse tipo específico de movimento social utiliza-se da comunicação de ideias, valores e argumentos para conscientizar, mobilizar as populações, e desta forma, instituir as mudanças desejadas. Esta comunicação conta cada vez mais com as novas tecnologias da informação e comunicação, como a Internet, que amplia sua possibilidade de interação e organização. Uma organização que compõem o movimento ambiental, como o Instituto Socioambiental, ao utilizar a Internet para a divulgação de seus programas e de informações sobre meio ambiente, direitos dos povos indígenas, dentre outras temáticas de interesse ambiental e social, faz com que suas ideias e valores alcancem uma infinidade de públicos. O ISA conta com as redes sociais da Internet para não só informar, mas conscientizar e engajar seu público para a mudança de atitudes na defesa dos direitos sociais e ambientais da população brasileira. Identifica-se aqui uma forma de mobilização baseada no espaço digital de comunicação. Após a análise de elementos da obra de Manuel Castells no que se refere ao poder da comunicação na sociedade em rede, verifica-se que o poder de construir redes é a fonte suprema de poder (CASTELLS, 2009), e este é conseguido por meio da disseminação de valores e ideias que moldam a mente das pessoas. Portanto, podemos afirmar que o Instituto Socioambiental, enquanto uma organização integrante do movimento ambiental voltado para a proposta de soluções e defesa de direitos ambientais e sociais, que promove a divulgação de informações sobre essas temáticas via Internet, e que busca exercer a transformação das mentes das pessoas utilizando-se de redes digitais de comunicação, exerce uma forma de poder na 89 contemporaneidade. No entanto, não podemos considerar o poder exercido por esta organização do movimento ambiental em específico como algo nocivo, pois a transformação da mente das pessoas almejada pelo ISA é no sentido de informar e conscientizar seu público (sociedade civil, empresários, governos) para que este tome decisões mais acertadas e considere cada atitude com o objetivo da defesa e do exercício de direitos nas áreas ambiental e social. Podemos verificar, portanto, que a Internet, enquanto espaço para a divulgação dos objetivos, ideias e valores de movimentos ambientais, mostra-se um meio de comunicação eficaz, já que proporciona não somente o fluxo de informação de um para muitos, mas também de muitos para muitos, e de muitos para alguns escolhidos, de acordo com as preferências do usuário. A Internet é o espaço preferencial para a comunicação do Instituto Socioambiental e colabora com o objetivo de construção de significados que leva o público do site à ação, que estimula seu engajamento na busca de soluções para problemáticas sociais e ambientais. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRINGEL, Breno; DOMINGUES, José Mauricio. Teoria crítica e movimentos sociais: intersecções, impasses e alternativas. In: GOHN, Maria da Glória; BRINGEL, Breno M (orgs.). Movimentos sociais na era global. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2012. CASTELLS, Manuel . Communication Power. New York: Oxford University Press, 2009. _________________. 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Discute a inovação na produção do artesanato do bordado. Trata-se de um estudo conduzido pela perspectiva de aglomerações territoriais, onde se privilegiou o conceito de inovação referente ao processo de produção e de capacitação. Identificou-se, através da análise de estrutura de governança, o nível de intensidade das relações de cooperação entre os produtores locais do setor em relação aos representantes de cooperativas e associações que integram o aglomerado, bem como as ações governamentais que visam o desenvolvimento da atividade artesanal do bordado. Como metodologia adotou a abordagem de pesquisa qualitativa, mas utilizou-se uma grande quantidade de dados quantitativos originados de entrevistas e aplicações de questionários interpretados e analisados pelo Programa estatístico SPSS. 92 PaLaVras-CHaVe INOVAÇÃO; AGLOMERAÇÃO PRODUTIVA; ESTRUTURA DE GOVERNANÇA; ARTESANATO aBsTraCT The article analyzes the production of handmade embroidery manual Passira city, located in Rural Pernambuco. Discusses innovation in the production of crafts of embroidery. This is a study conducted by the prospect of territorial agglomerations, where the study focused on the process of innovation and production capability. It was identified through the analysis of governance structure, the intensity level of cooperation between local producers in the sector in relation to representatives of cooperatives and associations that comprise the cluster, as well as government actions aimed at the development of activity handmade embroidery. The methodology adopted the qualitative research approach, but used a large amount of quantitative data derived from interviews and questionnaires applications. KEY-WORdS INNOVATION; PRODUCTIVE CONCENTRATION; GOVERNANCE STRUCTURE; CRAFTS 1. Introdução O artesanato é uma atividade de reduzido resultado econômico mas de grande repercussão social dado o crescente número de famílias que tem a sobrevivência garantida pela renda oriunda deste trabalho. No Brasil, aproximadamente 73% dos municípios produzem o artesanato de bordado sendo 21,4% produzido em Pernambuco. Este Estado ocupa a 16ª posição no ranking da produção de artesanato no país (IPEA, 2012). Este trabalho é resultado da pesquisa realizada através do projeto intitulado: “As Características de um Arranjo Produtivo Local: o conceito e a prática exercidos no espaço econômico e social do Agreste de Pernambuco”. O projeto foi financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, e as atividades foram realizadas na Universidade Federal Rural de Pernambuco – UFRPE. O objeto dessa pesquisa foi o trabalho artesanal do bordado em Passira – PE. A produção artesanal de bordado manual é patrimônio cultural do município e do estado de Pernambuco. O município de Passira, localizado no Semiárido de Pernambuco tem no Artesanato de Bordado uma atividade que garante uma parcela da renda da população trabalhadora. O município, com população total de 28.628 habitantes, encontra-se a 77 km distantes da Região Metropolitana do Recife (IBGE, 2010). A produção se caracteriza pela ornamentação de tecido associada à renda renascença que também é especialidade de outros municípios pernambucanos como Pesqueira e Poção. A maioria dos artesãos são agricultores que produzem pela cultura tradicional e como complementação de renda e, aproximadamente, 90% das atividades são realizadas por mulheres. O objetivo deste trabalho é discutir a inovação no processo de produção artesanal do bordado. A inovação será tratada a partir das informações sobre capacitação e do design das peças produzidas. A discussão passa pela compreensão do artesanato como negócio informal no contexto das aglomerações territoriais. A definição de aglomeração territorial tem como base os ensinamentos de Marshall (1920), frisando-se que as externalidades positivas promovidas pela cooperação e integração entre os agentes permitem ganhos por menores que sejam. Embora, o bordado seja organizado por um trabalho informal e autônomo, suas regras estão estabelecidas nas condições de produção capitalista. Ou seja, de alguma forma as peças de bordado vendidas produzem valor de troca e, como tal, participam do mercado, embora, na maioria das vezes, a renda atribuída ao artesão seja considerada pequena em relação à minuciosidade de seu trabalho. Por outro lado, o artesanato promove a inclusão do trabalhador num processo produtivo e organizado e garante a inserção nos direitos à cidadania. Normalmente os programas de apoio ao artesanato se incluem entre as ações governamentais de maior amplitude social, embora nos últimos tempos esteja havendo ênfase do incentivo ao trabalho rentável nos programas sociais (Cohn,1979). Nestas condições, pesquisou-se como os artesãos se relaciona com as demais entidades de apoio, através do estudo sobre inovação colaborativa. A inovação no bordado se processa pela qualificação do artesão através de uma ação colaborativa. Como resultado do processo de qualificação na atividade de produção, percebe-se a interação entre os agentes de forma 93 cooperada visando a produção econômica. O debate sobre inovação tem prestigiado a questão da qualificação e tecnologia. A qualificação encontra-se presente nos trabalhos de Lastres e Cassiolato (2002, 2006) e a tecnologia está especialmente baseada em Schumpeter (1998) e nos neo-schumpeteriamos. De certa forma têm-se discutido pouco a respeito da inovação em relação às atividades informais e o artesanato. A análise dos primeiros resultados comprovou a hipótese do baixo índice de inovação no artesanato de bordado no mercado local e outros revelaram a importância da organização de atividades associadas para alavancar o mercado e outras atividades correlatas. 2. Metodologia A hipótese central da pesquisa baseia-se na ideia de que o processo de produção manual do artesanato de bordado pelos artesãos possui como suporte as inter-relações sociais entre as organizações, o governo local e a cultura tradicional. Considerou-se, então, que a pesquisa qualitativa é mais apropriada para a realização deste estudo, embora foram usados dados quantitativos para complementar a análise da realidade interpretada através do programa SPSS. A metodologia qualitativa envolve a prática da observação intensa, o registro detalhado do que ocorre no ambiente estudado, utilizando-se de interpretações e análises narrativas. Para a coleta de dados foram aplicados questionários durante a Feira Anual de Artesanato de Passira em 2011, onde os artesãos se encontravam reunidos em estandes de vendas. A aplicação foi realizada de forma alternada entre um estande e outro, tendo a representação de aproximadamente 50% do total de estandes pesquisados. Nesta ocasião o número do Universo era de aproximadamente 130 e foram escolhidos 63 para a entrevista e considerou a seleção de número 1. A amostragem é sistemática considerando que se atribuiu probabilidade de seleção igual a um número limitado de amostra da pesquisa. Também foi realizada a caracterização socioeconômica do município através do levantamento de dados em instituições oficiais. A metodologia consistiu também na análise estatística, no qual os dados levantados foram organizados e analisados através do Programa Estatístico SPSS. Por meio dele foram interpretados os dados estatísticos, empíricos e teóricos. 3. Fundamentação teórica da temática abordada 94 O artesanato é a produção de peças com finalidade de uso cuja técnica perpassa gerações, sendo um produto concentrado no conjunto de tradições cultural, técnica, na forma de pensar, sentir e expressar a realidade local. As técnicas de produção de artesanato são passíveis de alterações, modificações, substituições, adaptações de acordo com as perspectivas do grupo que produz. O mercado consumidor exige a modificação na produção artesanal, uma vez que o comércio dos produtos artesanal precisam se adequar aos modelos estéticos midiáticos (Horodyski e Ruschmann, 2007). O artesanato, com as transformações tecnológicas, faz parte da economia criativa ou indústria criativa, sendo esta o processo de criação, produção e comercialização de determinados produtos e serviços, tendo o capital intelectual, o conhecimento como o motor da produção. Essa economia está relacionada com a geração de ideias que rompe com o modelo clássico de produção capitalista. Participante do mercado, a economia criativa, através dos direitos de propriedade intelectual, gera riqueza e emprego (Santos, 2006). Nas últimas décadas, as políticas, os programas, projetos sociais tem como objetivo o aspecto econômico, assim, tem focado suas ações nas Pequenas Empresas (PE) e no Setor Informal (SI) com o intuito de diminuir o desemprego e a pobreza. Por sua vez, outros enfatizam o lado benevolente do governo nas questões de política de apoio ao emprego e renda. Os formuladores de políticas em países em desenvolvimento tem considerado primordialmente a questão social em detrimento de uma política voltada para o desenvolvimento econômico (Tendler, 2003). De acordo com Tendler (2003), essa informalidade no cluster de confecção do Agreste de Pernambuco é sustentada por acordo político. Os pequenos trabalhadores que não pagam impostos nem se adéquam às regulamentações governamentais recebem proteção política contra a fiscalização em troca de votos. Desta forma, a informalidade se torna mais fascinadora do que a formalidade. Os custos para o processo de formalização, a legislação ambiental e os impostos trabalhistas são visto como a origem deste problema dado às dificuldades do trabalhador em acumular capital inicial. As relações entre empresas dentro de uma cadeia produtiva são governadas pelo que melhor se posiciona detendo o poder de decisão. Entres os aspectos de governança discutidos na cadeia produtiva, podem-se citar os dois mais importantes: o que produzir e como produzir. Em geral, “cadeia produtiva engloba todos os processos produtivos e serviços envolvidos, desde a matéria-prima, na produção de um determinado tipo de produto final até a comercialização do mesmo”. Esses parâmetros são fixados pelos compradores. Assim, a governança é uma estratégia utilizada para resolver e/ou tomar decisões sobre uma série de organizações privadas e governamentais (Souza et al, 2005). Outra relação existente que explica a importância da atuação governamental e institucional é entre o crescimento econômico e inovação. De acordo com Shumpeter (1939) a concorrência entre empresas na obtenção de tecnologia gera um impacto positivo na economia, uma vez que essa tecnologia materializada como inovação cria oportunidades para que novas transformações sejam aplicadas. Essa dinâmica faz com que os agentes empreendedores do mercado sejam reproduzidos, difundindo a inovação. Neste caso, a inovação é vista como processo endógeno ao crescimento econômico, diferentemente dos neoclássicos, onde a tecnologia era compreendida exogenamente ao modelo de crescimento econômico. Ou seja, para os neoclássicos o crescimento econômico se dá através de um processo linear no qual apenas a escala economia se modifica, sem alterar a sua composição. De acordo com Silva (2004) esse enfoque é criticado pelos evolucionistas, nos quais propõem uma visão menos racional e equilibrada e aponta a questão da perspectiva história como processo de mudança no sistema de inovação. Para eles, é a variedade institucional que implica os diferentes caminhos percorridos pela economia dos países. Neste sentido, alguns fatores influenciam as diferentes amplitudes de adoção de inovação e difusão como “o sistema 95 96 educativo do país, a dotação e qualidade de instituições ligadas à investigação, as relações laborais ou funcionamento dos organismos públicos” (p. 127). A organização do trabalho artesanal é configurada em rede entre instituições e empresas que pela proximidade territorial beneficiam a produção através da ação coletiva. Identificam-se como aglomerados onde todos os atores interagem com o cluster ou com o sistema produtivo em foco. Essa aproximação entre os agentes do setor contribuem para a vantagem competitiva que facilita a adoção à inovação, o aumento da produtividade e de outros fatores produtivos (Porter, 1998). As unidades de produção, segundo Marshall (1920), tendem a se situar geograficamente próximas dos fornecedores de matérias-primas e dos consumidores. As vantagens referentes à localização das unidades de produção se encontram na disponibilidade e qualidade de recursos naturais, proximidade de fontes de matérias-primas e insumos de produção e fácil acessibilidade por vias alternativas de transporte. Marshall ainda destacava a importância de se ter na localidade uma demanda de alto poder aquisitivo e de mão-de-obra especializada. A mão de obra especializada é garantida dentro ou fora da empresa. De acordo com a Redesist (Cassiolato e Lastres, 2006), as empresas fornecedoras de produtos e serviços estão organizadas com base na interação com organizações voltadas à “capacitação técnica, treinamentos de recursos humanos, informação, pesquisa, desenvolvimento e engenharia, promoção e financiamento” (p.10). Esses aspectos são fundamentais na promoção da inovação em uma determinada produção. A capacitação é desenvolvida através do processo de aprendizagem que possui dois aspectos: o primeiro se refere ao caminho percorrido para a acumulação de capacidade tecnológica, no qual essa capacidade se desenvolve em diferentes direções e velocidades, podendo ser alterada com o tempo; o segundo aspecto diz respeito às transformações do conhecimento técnico (tácido) do indivíduo em “sistemas físicos, processos de produção, procedimento, rotinas e produtos e serviços da organização” (Figueiredo, 2004, p.328). A capacitação no campo da gestão do artesanato é realizada através de cursos direcionados às habilidades do processo de produção como “cálculo de preço, técnicas de vendas, produção de feiras e eventos ou de forma mais abrangente, comercialização, exportação, embalagem, design, associativismo, cooperativismo, empreendedorismo, marketing, etc”. No Brasil, a transmissão do conhecimento das técnicas e do oficio do artesão foi realizada pela tradição familiar, da comunidade e por freiras imigrantes da Europa disseminando para artesãs brasileiras. Na maioria dos casos, as capacitações oferecidas por algum programa são referentes às técnicas de design específicas conduzidas por profissionais de regiões e culturas variadas (Freeman, 2010). Essa estrutura da “economia baseada no conhecimento” tem demonstrado o crescente interesse dos órgãos públicos nas atividades de ciência e tecnologia. Nas últimas décadas, o foco nos sistemas de inovação evidencia a preocupação com os estudos direcionados à C, T&I, para compreensão de sua dinâmica, da consequência dos avanços científicos e da mudança tecnológica. A inovação e a mudança tecnológica dizem respeito ao reconhecimento de que inovação e conhecimento estão cada vez mais manifestados como membros da dinâmica e do crescimento dos países, das regiões, organizações, instituições, etc. (Cassiolato & Szapiro, 2002; Conde & Araújo-Jorge, 2003). Uma vez que a aplicação de uma invenção tecnológica ou a modificação de um produto já existente só é possível através da aquisição de novas informações e conhecimentos, Lastres e Cassiolato (2002) identificam o papel fundamental das tecnologias da informação (TI), consideradas responsáveis pela transmissão dos conhecimentos codificados. Assim, “o aprendizado é a fonte principal da mudança, ocorrendo através de diferentes processos e é a base de acumulação das competências das firmas” (Lastres e Cassiolato, 2002, p.6). Segundo Schumpeter (1997), o conceito sobre inovação está ligado ao papel central do empreendedor, na empresa, seja um indivíduo ou uma organização/instituição, onde este agente econômico trás para o mercado um novo bem, através de um processo de modificação do produto ou combinado com outro fator de produção mais eficaz ou pela aplicação prática de alguma inovação tecnológica. Schumpeter ainda menciona outros casos que combinados geram uma inovação, como “a abertura de um novo mercado; a captação de uma nova fonte de matéria-prima ou de bens semimanufaturados; e o estabelecimento de uma nova organização” (p. 70). O modelo de inovação atual é reconhecido por um “modelo de sistemas abertos” e agregados em rede. A intenção é que os grupos com atividade de P&D, ou seja que contribuem na produção do conhecimento, trabalhem de forma colaborativa e associada com os diversos agentes da cadeia produtiva. Assim, inovação é resultado de ação conjunta e cooperada entre os diversos atores sociais, internos e externos à organização, como fornecedores e clientes (Rothwell, 1995; O’Conoor, 2006 apud Bueno e Balestrin, 2012). O quadro atual sobre inovação mostra que as transformações no processo inovativo são dependentes de um processo interativo de ordem social. Essa interação ocorre em diferentes condições, como pesquisa, desenvolvimento tecnológico e difusão, mas ainda em diferentes setores de uma determinada organização como marketing, logística, produção e entre diferentes organizações e associações, além de ligações com fontes externas à empresa ou à indústria de informação científica e tecnológica. A inovação possui aspectos que a identificam sendo um ato dependente, originada por aprendizados cumulativos de capacitação, reservada a localidade e apoiada por instituições (Cassiolato e Lastres, 2002, 2005). 4. Resultados e discussão O município de Passira-PE possui acesso pela BR-408, PE-90 e PE-95 (MAPA, 4.1). O turismo local gerado pela intensa produção manual de artesanato de bordado que gera renda ao município é dificultado pelas péssimas condições de infraestrutura, como a situação das estradas de acesso ao município para escoamento da produção e a inexistência de transportes específicos dificultam a visitação no município. Assim, constata-se que o município não é uma região de integração com os outros municípios vizinhos, obstando o desenvolvimento do artesanato como negócio local. 97 Mapa 4.1: Localização do Município de Passira-PE Fonte: Elaborado pelo grupo de pesquisa CARISMA da UFRPE. 98 Apesar da maior parte da renda do município de Passira ser da atividade agropecuária e da pecuária, o município possui 1.200 artesãos que se organizam individualmente, em parcerias e cooperação com instituições e organizações. 48% da renda dos trabalhadores que alternam entre a atividade artesanal e outra está entre 1 e 2 salários mínimos. Percebe-se, desta forma, a importância econômica que essa atividade reflete para as famílias como complemento de renda, sendo 34% dos trabalhadores casados (pesquisa de campo, 2011). Como promoção do trabalho artesanal, ocorre no município de Passira a Feira Anual de Artesanato Manual de Bordado, divulgada e apoiada pelo SEBRAE (Sistema Brasileiro de Empresas) que, de acordo com a Prefeitura de Passira (2011) é o evento mais importante para o artesanato da região. Porém, de acordo com a Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Cultura, Turismo e Esporte, o apoio oferecido pela Prefeitura local é frágil, limitado à promoção da Feira Anual de Artesanato de Passira (pesquisa de campo, 2011). Esses agentes são os responsáveis pela organização, infraestrutura e divulgação do evento. A estrutura de governança no município de Passira referente ao artesanato de bordado se dá pela relação de poder entre Estado e os artesãos. Uma vez que o poder de troca se dá pela relação entre hierarquias e instituições que favorecem a cooperação (Suzigan, Garcia e Furtado, 2007). Um dos programas governamentais que estimula a produção do artesanato é o Programa do Artesanato Brasileiro (PAB) que tem como finalidade a geração de renda, melhoria de condições de vida para o artesão, seja no âmbito cultural, social e econômico (PAB, 2012). Sua atuação está vinculada à elaboração de políticas públicas envolvendo institutos da esfera federal, estadual, municipal e entidades privadas com ações que valorizem o trabalho do artesão. Segundo os artesãos entrevistados, a produção do bordado é realizada de forma independente, onde 72% não recebem ou nunca receberam apoio institucional (Gráfico 4.1). Gráfico 4.1: Apoio Institucional aos Artesãos de Passira - PE Fonte: Pesquisa de campo, 2011. Verifica-se com os dados acima que as políticas públicas direcionadas para a atividade artesanal e para os artesãos não alcançam os trabalhadores de Passira. Por outro lado, estima-se que em 2010 a Feira tenha movimentado cerca de R$ 200.000,00 e interferi anualmente no PIB do município (Gráfico 4.2). O que se pode dizer que a atividade artesanal aumenta a economia do município. Gráfico 4.2 PIB Anual de Passira – PE Fonte: CONDEPE/Fidem (2010). Percebe-se no gráfico acima que o PIB de Passira (PE) está em constante crescimento, o que se pode entender que a economia do município está se tornando mais dinâmica do que era antes. Trata-se de uma aglomeração artesanal, onde se reúnem os agentes econômicos, políticos e sociais numa determinada localidade (SEBRAE, 2003). Outro aspecto importante para análise da estrutura de governança é o trabalho exercido por associações e/ou cooperativas. Essas instituições tem por finalidade a organização de alguma produção no mercado local. De acordo com os dados coletados, 81% dos artesãos não participam de associações, apresentando a fragilidade na cooperação entre os trabalhadores dessa atividade econômica no município (Gráfico 4.3). 99 Gráfico 4.3: Particição dos Artesãos de Passira em Associações/Cooperativas Fonte: Pesquisa de Campo, 2011. Sendo a acumulação de capacitação uma variável de forte influência no desenvolvimento de inovações, o município de Passira não promove fortes parcerias com instituições governamentais ou empresas que favoreçam treinamentos e/ou qualificações para os artesãos (Gráfico 4.4). Gráfico 4.4: Capacitação recebida pelos Artesãos Fonte: Pesquisa de campo, 2011. No município de Passira (PE), a atividade artesanal é exercida por pessoas que tem o ensino médio (55%), o que representa 7,2 anos de estudo. Segundo Cassiolato & Szapiro (2002) e Conde & Araújo-Jorge (2003) a inovação é exercida por pessoas com nível educacional acima de 7 anos de estudo, reconhecendo-se que inovação e o conhecimento estão cada vez mais manifestados como membros da dinâmica e do crescimento dos países, das regiões, organizações, instituições, etc. No caso de passira, a inovação na atividade artesanal é exercida por profissionais que exercem a criatividade visando a produção do valor, ou seja por meio do design. O conceito de design é desconhecido pela maioria dos artesãos, mesmo àqueles que a prática o desenvolve na sua produção (Freeman, 2010). No caso dos artesãos do município de Passira – PE, uma região de capitalismo tardio, onde a agricultura ainda se manifesta como a principal atividade, a prática inovativa é frágil. O trabalho dos artesãos se limita ao processo manual, apesar de utilizarem produtos industrializados como a linha e o linho. A atividade artesanal do município não utiliza nenhuma 100 tecnologia no processo de produção das peças, motivado pela tradição cultural. Essa barreira existente entre os artesãos existe há décadas, onde os artesãos e filósofos debatiam sobre a desvalorização do artesanato com a substituição do trabalho manual por máquinas no século XIX com o início da Revolução Industrial (Freeman, 2010). Existem peças que duram três meses para serem finalizadas, onde a ausência de máquinas no processo de produção diminui a produtividade (Pesquisa de campo, 2011). Podese dizer que as inovações no trabalho dos artesãos se limitam à produção de novos modelos de peças e criação. Pois, conforme o Manual de Oslo (2004) e Pintec (2010) a inovação está ligada à produção de um novo bem ou aprimorado ou a um novo processo de produção. Como o processo de produção artesanal de Passira é ausente de máquinas, as novas ideias e a criatividade decorrente de novas capacitações são o ponto forte da inovação no local. A atividade artesanal do município de Passira se enquadra nesse padrão informal onde os trabalhadores executam as atividades de forma independente. O município possui um Centro Cultural e Comercial do Bordado, porém o comércio do bordado não se concentra na localidade, sua produção é destinada para outros municípios (29%) como Gravatá, Caruaru e Bezerros. O bordado de Passira ainda é exportado para vários países como Estados Unidos, França, Inglaterra, Espanha, Portugal, Alemanha, Venezuela, Cuba, entre outros. Há produtores que transportam as peças pelos correios por semestre (Pesquisa de campo, 2011). Embora a produção artesanal de bordado de Passira (PE) seja direcionada para o mercado externo, 74% dos insumos adquiridos pelos artesãos para a execução da atividade são advindos da localidade. Esta realidade pode favorecer o mercado local, uma vez que sendo os trabalhadores do mesmo município, os insumos adquiridos no próprio local de produção e uma estrutura local, o Centro Cultural e Comercial do Bordado, a atividade econômica no município pode ser organizada e cooperada entre os artesãos. O artesanato manual de bordado, embora seja realizado pela tradição cultural da população local de Passira e como complementação de renda, possui uma sistematização de produção mensal. Essa produção é relativa quando o tamanho da peça e sua complexidade são considerados, porém 41% dos artesãos vendem mais de 50 peças mensalmente. 5. Considerações Finais De acordo com os dados, percebe-se que a produção do bordado em Passira é identificada com a tradição cultural, no qual os princípios básicos da produção manual se perpétuam. Com isso, é forte a barreira na introdução da tecnologia no processo de produção, uma vez que a contemplação do trabalho manual é marcada pelos consumidores. Este obstáculo à inovação tecnológica repecurti na renda do trabalhador, pois a frágil produtividade acasiona pouco lucro. A produção no município agrega valor ao produto artesanal através do design. Essa técnica demonstra que as peças produzidas valorizam a qualidade e a minuciosidade do trabalho manual. No entanto, o design é uma técnica de produção que se requer tempo e dedicação para seu aprendizado. Como muitos dos artesãos possuem baixa qualificação, esse método de produção a restrito e limitado. 101 Além disso, constatou-se a ocorrência de frágil cooperação entre os diversos agentes. Embora a produção do artesanato local tenha conquistado um espaço no mercado externo, ainda existe a necessidade de serem firmados incentivos de apoio financeiro ao artesão para a expansão da produção. Os Programas de desenvolvimento cultural são investidos no país para apresentar o conceito do design artesanal para os artesãos de uma forma que se preserve a identidade cultural objetivando sua sustentabilidade. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BALESTRIN, Alsones; BUENO, Bruna. Inovação Colaborativa: uma abordagem aberta no desenvolvimento de novos produtos. RAE, São Paulo. v. 52, n.5. set/ out 2012. p. 571-530. CASSIOLATO, José E.; SZAPIRO, Marina. Arranjos e Sistemas Produtivos e Inovativos Locais no Brasil. Rede de Pesquisa em Sistemas Produtivos e Inovativos Locais, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Setembro, 2002. ____________________; LASTRES, Helena M. M. Inovação, Informação e Conhecimentos: a importância de distinguir o modo da moda. Revista de Ciência da Informação, v.7, n.1. Fevereiro, 2006. COHN, G. (org.). Weber. São Paulo, Ática, 1979. ____________________;__________ __________. Sistemas de Inovação e Desenvolvimento: as implicações de política. 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Mai/ago, São Carlos, 2007. TENDLER, Judith. Pequenas Empresas, o Setor Informal e o “Pacto com o Diabo”. Revista Política e Trabalho - Revista de Ciências Sociais. João Pessoa, número 19. Setembro, 2003. 103 Agenda Social VOLUME NÚMERO ISSN 1981-9862 ELETRONIC JOURNAL www.revistaagendasocial.com.br JOVens: novos sujeitos de direitos. Young people: new individuals of rights BadarÓ, Lúbia (1). 1.UniversidadeFederalFluminense([email protected]) . RESUMO 104 7 2 aBsTraCT Esteestudobuscaumareflexãoarespeito da Política Nacional de Juventude, que surgiu após o Estatuto da Criança e do Adolescente e passou a garantir direitos aosjovensde15a29anos.Aopromover uma apreciação sobre o processo de construção de uma Política de Juventude, foitraçadoumpequenopercursohistórico para entender como se deu o atendimento infanto-juvenil antes das leis que hoje lhes garantem direitos. Foram ressaltados os fatores que fizeram os jovens com maioridade penal terem sido alijados do Estatuto da Criança e do Adolescente e quais os propulsores da elaboração, mais tarde, de uma legislação exclusiva para a juventude. Discutiu-se, ainda, o formato institucional adquirido pela Política da Juventude. This study seeks a reflection about the National Youth Policy, which emerged after the Statute of Children and Adolescents, and went on to secure rights for young people aged 15 to 29 years. By promoting an analysis of the process of building a Youth Policy, was drawn a study historical to understand how was the service before the juvenile laws that guarantee their rights today. Emphasis was placed on the factors that made young people with criminal majority have been jettisoned from the law the Child and Adolescent and development, later, of law the youth. We discussed also the format institutional the Youth Policy. PaLaVras-CHaVe JOVENS; DIREITOS; POLÍTICAS. KEY-WORdS YOUNG; RIGHTS; POLICY. INTRODUÇÃO O Estatuto da Criança e do Adolescente/ECA completará, em 13 de julho de 2013, vinte e três anos. Alguns dirão que ainda é muito jovem, outros que ele já chegou à maturidade. A forma de ver o jovem também é marcada por uma antítese similar, ‘jovens demais para’, ‘velhos demais para’. Existe uma idéia de que um indivíduo com 18 anos, que já assumiu a maioridade civil e penal, não precisa de um sistema de garantia de direitos. A própria Doutrina da Proteção Integral os deixou de fora e, apesar da luta da época estar voltada à garantia de direitos infanto-juvenis, apenas as crianças e adolescentes conquistaram o direito de serem contemplados pela Constituição de 88 e pelo ECA. A juventude que estava e está nas ruas, nas periferias, na cidade e na zona rural não foi considerada jovem o bastante para ser alçada ao estatuto de ‘sujeito de direitos’. Alguns dirão que vários estudos alicerçaram a escolha daqueles de 0 a 17 anos, devido a fatores ligados ao desenvolvimento biopsicossocial. Outros lembrarão que os adolescentes também são jovens e que o ECA abraçou uma parte da juventude, os jovens-adolescentes. Correto. Mas, os jovem-jovens e os jovens-adultos também demandam políticas e programas sociais específicos. É necessário um olhar diferenciado aos problemas que enfrentam. Cuidamos, protegemos, incentivamos, garantimos direitos e, depois que completam a maioridade, não podemos abandoná-los. O ciclo de desenvolvimento não está completo e a autonomia não se adquire instantaneamente com o simples findar de fases. Os índices de mortalidade, desemprego, violência e analfabetismo são fato e, por si só, justificam a proteção social e a garantia de direitos à juventude. O Estatuto se consolidou e garantiu a definição e implantação de políticas e programas para a criança e o adolescente, como atuou para que esses não fossem só vistos como ‘menores’ e sim ‘sujeitos de direitos’. No entanto, ‘meninos e meninas’, depois de algum tempo, foram obrigados a se despedirem de programas e projetos sociais, pois já estavam crescidos demais para o atendimento garantido pela nova legislação. Entretanto, 15 anos após o nascimento do Estatuto, o campo de definição política ainda estava fértil, pois surgiu no panorama brasileiro a Política Nacional da Juventude/ PNJ. Essa, tal qual o seu irmão, o ECA, direcionou-se aos jovens, porém com um diferencial de atendimento, incluiu em seus programas e ações aqueles de 18 a 29 anos. Este artigo irá traçar algumas considerações a respeito da PNJ, tentando compreendêla, ver como demonstra a sua relevância. Neste estudo, parte-se do entendimento de que seu trânsito em meio a outras políticas tão mais experientes não é isento de dilemas e que, certamente, há gargalos e entraves capazes de prejudicar a sua consolidação através de seus programas. Acredita-se, no entanto, que uma análise mais apurada pode contribuir para as superações dos problemas que enfrenta. 105 1. O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DOS DIREITOS DAS JUVENTUDES NO BRASIL A discussão sobre as políticas de juventude perpassa a história do atendimento infantojuvenil ou mesmo da sua ausência, das doutrinas que regeram essa temática e da legislação progressista que surgiu impulsionada pela Constituição de 88, o Estatuto da Criança e do Adolescente/ ECA. Essa lei complementar conquistou a garantia de direitos para parte da juventude e fez avançar algumas discussões sobre o atendimento dos jovens. Porém, lançou para uma ‘zona nebulosa’ o debate acerca daqueles jovens que já adquiriram a maioridade (KERBAUY, 2005), especialmente porque a questão social da juventude ficou pulverizada em meio à discussão sobre os problemas das crianças e adolescentes em condições de risco e periculosidade. Treze anos após o nascimento do ECA, um Projeto de Emenda Constitucional_ PEC da Juventude_ propôs a inclusão do termo ‘juventude’ na Carta Magna de 88, especificamente no capítulo referente aos Direitos e Garantias Fundamentais, e recomendou a criação de um Estatuto da Juventude_ Projeto de Lei 27/2007_ e de um Plano Nacional para esse grupo social_ Projeto de Lei nº 4530/2004, estipulando metas a serem atingidas em dez anos. Em 2005, finalmente, foi lançada a Política Nacional da Juventude/ PNJ e o Programa Nacional de Inclusão de Jovens, o ProJovem (CONJUVE, 2010). A partir daí, as políticas para esse segmento deixaram de figurar no campo ‘do estado de coisas’ (RUA, 1998), foram reconhecidos diversos problemas contemporâneos que atingem a juventude e foi montada uma arquitetura para dar conta da implementação de ações e programas estratégicos, como o desenvolvimento do ProJovem. Para entender como os jovens acima a partir de 18 anos ficaram fora do sistema de garantias de direitos que surgiu com a nova Carta Magna e com a Lei 8.069/90 é preciso traçar um percurso histórico, ainda que breve, a respeito da atenção dada pelo Estado à infância e juventude. Da mesma forma, é preciso buscar uma reflexão sobre como, mais tarde, a questão social da Juventude conseguiu chegar à arena de debate e se firmar como uma política que, por meio de seus programas, passou a atuar na frente em questão. Sob essas perspectivas, iremos discutir como as demandas da Juventude chegaram à agenda pública, como os atores sociais contribuíram nesse processo e qual o formato institucional adquirido pela Política da Juventude. 1.1. A Inclusão das Demandas das Juventudes na Agenda Pública Na perspectiva ampliada de exclusão social, invisíveis, as crianças e os jovens viveram órfãos de pátria durante um grande período (KEHL, 2000). Frente às desigualdades sociais do país, o que se impôs, historicamente, foi a ausência do discernimento da função social do Estado. Com relação à juventude, a sua invisibilidade foi uma realidade durante décadas. 106 De tal forma que, antes do processo de industrialização do Brasil, nem mesmo havia uma definição clara sobre a juventude, pois eram considerados adultos todos os que não eram mais crianças e que o padrão corporal já os afastava dessa fase. O termo adolescência surgiu mais tarde, referindo-se à puberdade, quando também se evidenciou a existência de uma ‘juventude operária’ que ingressava precocemente no trabalho (ZUCCHETTI e BERGAMASCHI, 2007). Diante da lacuna deixada pelo Estado, as Entidades Filantrópicas e a Igreja, respectivamente impulsionadas pelas ideias apregoadas pelo Movimento Higienista e pela crença religiosa_ que compreendia a caridade e a catequese como ações de agrado divino_ foram as únicas instituições que, até os anos 20, através das Santas Casas de Misericórdia e outros congêneres, promoveram o atendimento à infância pobre (SPOSATI et al, 1991; BOSI, 1992; PEREIRA, 1999; DAMASCENO, 2006). Por parte do governo, as crianças e jovens empobrecidos e atingidos pelo contexto brasileiro das desigualdades sociais, quando muito, eram apenas culpabilizados pelas mazelas provocadas pela própria ausência do Estado. Só recebiam a sua atenção, ainda que de forma repressiva ou mínima, se sofriam ou provocavam algum delito penal.1 Embora a precariedade fosse uma constante, o Estado não oferecia à clientela nem mesmo os serviços públicos educacionais e de saúde.2 Em decorrência do ‘custo econômico’ dos problemas sociais_ intensificados pelo aumento populacional sem a respectiva infraestrutura habitacional, de saúde e proteção social_ e da necessidade de garantir a ‘força de trabalho em potencial’ que algumas medidas de proteção e tutelares foram estabelecidas pelo governo, amparado nesse ínterim pelo Código de Menores promulgado em 1927.3 Após esse período, além dos avanços na legislação social de proteção ao trabalhador e de alguns organismos voltados à profissionalização, uma das medidas de destaque foi a criação, em 1941, do Serviço de Assistência ao Menor/ SAM4 e mais tarde, em 1964, da Política Nacional do Bem-Estar do Menor/ PNBEM5 e sua respectiva Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor/ FUNABEM. 1 Na situação de descumprimento da lei, visto que a legislação vigente até a primeira década do século XX atribuía ao indivíduo de 14 a 18 anos a responsabilidade penal pelos seus atos. Nessa situação ou mesmo quando eram vítimas de delitos penais provocados por outros, embora o Estado os assumisse como encargo, fazia-o minimamente e de forma deturpada, tal como o tratamento a eles infligido nos estabelecimentos correcionais disciplinares, cujas Casas de Correção são exemplos. 2 As únicas iniciativas nesse sentido se deram a partir de 1855 com as escolas de aprendizes e artífices, asilos e institutos para surdos. 3 É preciso ressaltar que o Código de Menores não era uma legislação que teve ampla aceitação na época, especialmente porque ele limitava o número de horas dedicadas pelos menores de dezoito anos nas fábricas e, conseqüentemente, reduzia os lucros obtidos com esse trabalho. Segundo Vianna (1999, apud SANTANA, 2008), julgando as crianças e os jovens como mãode-obra imprescindível à estruturação da economia brasileira e insatisfeitos com as intervenções do Estado, nesse momento representado pelo Juizado de Menores, o empresariado argumentava que a jornada de cinco horas diárias de trabalho forçaria a ociosidade dos jovens-adolescentes, que ficariam nas ruas em pleno abandono e com riscos de serem seduzidos por situações perigosas. 4 Esse sistema nacional integrava instituições privadas e públicas e se destinava a guardar e educar em internatos, patronatos ou escolas de aprendizagem de ofícios os meninos pobres, especialmente os chamados ‘menores’, aqueles que se encontravam em situação de abandono ou delinqüência. (RIZZINI I., 1993; CUNHA 1999; SPOSATI et al, 1991; DAMASCENO, 2006). 5 A Política Nacional do Bem-Estar do Menor (PNBEM) oportunizou a criação da Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (FUNABEM)_ que pretendia desenvolver ações para a reintegração dos ‘carentes biopsicosocioculturalmente’ à sociedade através de técnicas pedagógicas e psicológicas_ e suas ‘filiais’ estaduais, as Fundações Estaduais do Bem-Estar do Menor (FEBEMs)_ centros de triagem e internação. No entanto, o Regime Militar, que se deu concomitante a PNBEM, interpôs a impossibilidade dos ideais dessa política se concretizassem a contento, tendo em vista que a sua concepção progressista não encontrou um palco propício frente à repressão e autoritarismo. 107 Com o início do processo de abertura política, surgem espaços para novas concepções conduzidas por novos atores sociais, especialmente os que encaravam a infância e juventude como sujeitos sociais, e não meros delinqüentes, força de trabalho em potencial, menores, meninos carentes ou em situação irregulares. O dilema dos chamados ‘meninos e meninas de rua’ ou ‘menores abandonados’, que afligia especialmente os movimentos sociais, encontrou campo fértil durante o processo de redemocratização brasileira para ser combatido junto à Doutrina da Situação Irregular, abrindo caminho para as mudanças que viriam mais tarde. Novos paradigmas dominaram e a Doutrina das Nações Unidas para a Proteção dos Direitos da Infância, mais conhecida como Doutrina da Proteção Integral, passou a vigorar dando margens ao estabelecimento de direitos a toda criança e adolescente (sujeitos na faixa etária de 0 a 17 anos), direitos consolidados na Constituição e detalhados no Estatuto. Mesmo que as agências das Nações Unidas tenham, desde 1985_ Ano Internacional da Juventude, promovido algumas ações para a sua institucionalização, diferente de outros países latino-americanos, no Brasil elas tiveram pouca repercussão, visto que o foco das mobilizações no país se voltou para problemática das crianças e dos adolescentes, especialmente aqueles marginalizados ou em situação de risco (ANDRADE, 2010). No caso da demanda para a instituição de uma política para a juventude, entendemos que, com a elevação dos direitos das crianças e dos adolescentes ao status de direito constitucional e com o avanço proporcionado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, tornou-se nítido após 1990 que a juventude carecia de uma legislação específica, pois a nova legislação não os atendia completamente, visto que apenas uma parte dos jovens foi contemplada pelo ECA, aqueles adolescentes-jovens, de 15 a 17 anos, deixando descoberta a parcela que vai até os 29 anos, os jovens-jovens e os jovens-adultos. Além disso, críticas ao ECA passaram a propor a redução da maioridade penal6 sob a alegação que essa poderia coibir casos de violência e criminalidade. Essa falácia, de certa forma, lançou novamente na arena pública a discussão sobre a temática da juventude. Aliás, de modo geral, os problemas ligados à violência foram propulsores de debates a respeito dos jovens. Entretanto, à medida que fica claro que a questão da violência transcende a questão econômica, o foco da discussão sofre alterações. Quando se tem a consciência de que jovens em situações privilegiadas também podem ocasionar atrocidades, como no caso do índio Galdino e outros casos bárbaros promovidos por eles (SPOSITO, 2003), o debate passa a se dar mais a respeito de possíveis medidas para diminuir a ociosidade dos jovens e para fomentar o empreendedorismo juvenil. Entende-se, aqui, que a preocupação maior não foi direcionada aos problemas sofridos pelos jovens e, sim, a respeito do que poderiam causar à sociedade, caso a sua situação não fosse resolvida. Nos governos que se estabeleceram após o Estatuto da Criança e do Adolescente, alguns programas e projetos foram desenvolvidos pelo Estado na tentativa de atuar em parte 6 Observa-se, nesse momento, a persistência da visão preconceituosa da juventude como ‘risco social’, especialmente atribuída a jovens pobres, deixando uma pista de que resquícios da Doutrina da Situação Irregular ainda encontravam espaços apesar da Proteção Integral apregoada pela nova doutrina estabelecida na área da infância e adolescência. 108 com problemas específicos da juventude, tais como as intervenções efetuadas no Governo Fernando Henrique Cardoso (FHC), que abriram uma pauta para a discussão sobre a geração de políticas para a juventude. Nota-se, porém, que a temática entrou de fato na agenda, com a transição para o governo do Partido dos Trabalhadores/ PT, quando o tema se tornou mais visível especialmente pelo diálogo estabelecido com organizações da sociedade civil voltadas ao trabalho com os jovens (SPOSITO e CORROCHANO, 2005). Quando as questões conseguem ascender ao debate, algumas vertentes de atuação podem ser escolhidas e passam a ser desenvolvidas no formato de políticas ou mesmo programas (PINHEIRO, 2009). No caso da juventude, a inserção na pauta da agenda governamental7 das múltiplas expressões da questão social que afetam os jovens brasileiros foi essencial para o surgimento da Política Nacional de Juventude e do ProJovem. A respeito disso, cabe a reflexão sobre as possibilidades de um problema específico se transformar numa política e de que forma a sociedade civil e suas demandas conseguem interferir nessas decisões. É certo que um interesse social específico pode se tornar um bem público instituído. No caso da juventude, essa temática conseguiu alçar o estatuto de questão relevante para ser elevada a um debate, culminando na definição de políticas para essa clientela. No entanto, nem todo interesse social consegue conquistar esse status de política instituída. Se o objetivo é saber como a questão surgiu e como foi inclusa na agenda do governo ou, conforme Fleury (2003, p.2), como se deu o “reconocimiento de nuevos problemas que aparecen en la arena política a partir de la trasformación de las necesidades en demandas”, é necessário desvendar se esse era um antigo problema que inquietava a sociedade ou mesmo um problema emergente, quais os conflitos de interesses existentes na ocasião e como os atores conseguiram influenciar a decisão política (LABRA, 2007). O contexto político-econômico também é vital para o surgimento de uma política. Por isso, um olhar nesse sentido é fundamental para verificar se a conjuntura política da época era ou não propícia à discussão da questão. Quando se pondera sobre como ocorre a transformação das demandas em políticas públicas, esbarra-se em diferentes concepções que se propõem a explicar o fenômeno. Segundo o recorte Marxista, para uma questão se tornar uma política pública é preciso que os interesses organizados sejam “filtrados pelo Estado”. Já na visão neomarxista, para que isso ocorra é preciso que elas sejam vocalizadas pelos interesses organizados, que devem se instituir “como representantes legítimos delas”. Habermas, por sua vez, diz que os processos de deliberação dessas políticas são “influenciados pelas estratégias comunicacionais” (apud CASTRO, 2008). Vê-se que aqui não se fala de estratégias apenas de transmissão, mas de estratégias de comunicação, que, por sua vez, significa na concepção de Freire “co-participação dos sujeitos no ato de pensar” (LIMA, 2001). 7 Na inserção de uma problemática ou tema na agenda do governo, operam três processos interdependentes. O primeiro é o problema (problem stream), ou seja, qual a questão central que precisa ser resolvida. A partir dessa definição da problemática que se pretende intervir, inicia-se o processo político em si (political stream) e são traçadas as alternativas de política (policy stream) (KINGDON,1995). 109 A respeito das múltiplas expressões da questão social que operam sobre os jovens, vimos que a juventude se tornou uma temática de interesse social, suas demandas para a elaboração de uma Política de Juventude conseguiram ser vocalizadas nos debates empreendidos e foram, finalmente, absorvidas pelo Estado. Como vimos, havia um incômodo com a situação dos jovens serem esquecidos ou minimamente incluídos nas políticas destinadas à criança e ao adolescente e por não encontrarem aportes em programas federais voltados para seus dilemas contemporâneos, tais como a questão da entrada no trabalho e o acesso ao ensino médio ou superior, fato que demandava intervenções nessa esfera. Inicialmente, a partir dessa demanda, ao lado de iniciativas locais propiciadas pela descentralização, alguns projetos alternativos foram desenvolvidos pela sociedade civil. No entanto, a invisibilidade da juventude criava entraves ao apoio e financiamento dos programas voltados a esse segmento, por isso se intensificaram as mobilizações para que a temática entrasse na agenda do governo e para que fosse desenhada uma política para esse grupo. De acordo com Diógenes e Sá, foi a constituição de esferas e fóruns públicos que “qualificou crítica e propositivamente um debate que inaugurou novos marcadores de desafios e de propostas de ação para política públicas de juventude (PPJ)”. Quando a juventude foi colocada no centro do debate público e foi lançada uma discussão sobre “a condição de ator invisível e silenciado, a juventude galvanizou a atenção dos pesquisadores, gestores e agentes da sociedade como um todo” (2011, p.139). Pereira aponta que as demandas e anseios das juventudes conseguiram chegar à cena pública por conseqüência de novas possibilidades surgidas. A inclusão de jovens em políticas sociais, os avanços no financiamento da Educação Básica e o acesso à universidade permitiram que jovens dos setores populares tomassem contato com o Estado brasileiro, antes conhecido apenas pela presença das forças de segurança pública. (2011, p. 206) Ao analisarmos a repercussão da discussão na arena estatal, verificamos que quando assuntos ligados às juventudes se aproximaram da esfera do governo federal, o Estado direcionou parte da sua atenção também para esse segmento, desenvolvendo algumas ações para esse público-alvo, tal como o Projeto Agente Jovem de Desenvolvimento Social e Humano, criado em 2000, pelo governo FHC. Isso se deu não só porque o governo reconhecia que diversos fatores sócio-econômicos contribuíam ainda mais para a exclusão social de jovens, mas porque existia o entendimento de que a sociedade desejava que a União cumprisse o seu papel na prevenção da violência e contenção da marginalidade, agindo, de certa forma, tal qual os projetos alternativos desenvolvidos no âmbito local e pelas organizações não-governamentais, fundações e institutos ligados a empresas privadas em nome da ‘responsabilidade social’ (COSTANZI, 2009). Por mais que uma questão tenha entrado na agenda governamental, ela pode passar ou não para a fase de formulação, podendo “ficar paralisada ad infinitum” (LABRA, 2007, p.16). No caso da gestão FHC, apesar da questão da juventude não ficar totalmente paralisada, já que algumas ações pontuais foram empreendidas, naquele momento também não se efetivou 110 na íntegra uma política para a juventude. Porém, um pouco mais tarde, impulsionado pelas organizações da sociedade civil, entidades estudantis e juventudes partidárias, que desejavam que o Poder Público desse respostas institucionais para a questão, criando organismos gestores para a formulação e execução de políticas específicas para a juventude, que o governo Lula estabeleceu uma política direcionada aos jovens (INSTITUTO Cidadania, 2004). 1.2 A Institucionalização da Política de Juventude Como ocorrem diferentes fases na produção das políticas públicas, não necessariamente em ordem linear, é importante reconhecer as contingências próprias de cada uma dessas, especialmente se a intenção de um estudo é delimitar uma ou outra etapa que será objeto de investigação e, assim, promover uma avaliação a partir de critérios realísticos (LABRA, 2007; ARRETCHE, 2002). A fase da formulação é aquela que ocorre quando se examina o problema e as possíveis soluções, escolhem-se as alternativas e a decisão final é tomada, vindo geralmente acompanhada da aprovação e promulgação de uma lei (LABRA, 2007). Mas o processo de decision making também não é linear nem é isento de conflitos, nesse momento há uma série de acordos e ajustes para atender os interesses em jogo (LINDBLOM, apud LABRA, 2007). Na dinâmica da formulação das políticas existem diversos elementos que podem alterar o curso do processo, como as influências do contexto econômico e político, a mobilização dos atores, o apoio da mídia, a abrangência da questão, os costumes, tornando esse ainda mais complicado (LABRA, 2007). Se for considerado, ainda, que os formuladores por vezes não possuem dados completos e fidedignos da realidade e que concebem estratégias muitas vezes com base em conjecturas, será possível entender a complexidade desse procedimento (ARRETCHE, 2002). Ainda para entendimento desse processo, é preciso ter ciência de que mesmo que a decisão seja tomada, essa pode se dar de forma diferente dos propósitos daqueles que as impulsionaram, já que na dinâmica da sua promulgação perpassam várias instâncias não só do executivo como do legislativo e ocorrem pressões internas e externas, como a daqueles que serão atingidos diretamente por aquela política ou que almejam outra prioridade na agenda. Sobre isso, é importante ponderar que a liberdade sem restrição de se formular uma política não é uma premissa que vigora nessa etapa, já que essa é permeada de barganhas e negociações, de tal modo que “seu desenho final não será necessariamente o mais adequado, mas - sim - aquele em torno do qual foi possível obter algum grau de acordo ao longo do processo decisório” (ARRETCHE, 2002, p.6). Do mesmo modo, o potencial de aceitação de uma proposta pelos implementadores costuma ser mais visado pelos formuladores do que a própria relevância e efetividade da mesma. Por conta da aquiescência de uma proposta, já se tornou prática consolidada a criação de estratégias para a sua aceitação, tal como a criação de incentivos, embora existam problemas 111 na manutenção dos mesmos. Interessante na análise desse momento de formulação é a observação sobre as mudanças ocorridas no projeto inicial e naquele promulgado, os debates empreendidos, os argumentos e contra-argumentos dos formuladores e dos beneficiários diretos, as lutas político-partidárias e os avanços ou retrocessos obtidos nessa dinâmica. No caso da Política de Juventude, caso se considere que a institucionalização dessa política iniciou no governo FHC também há que se aceitar que o início da recente trajetória da formulação de políticas para a juventude foi marcada por um conjunto diversificado de ações efêmeras pautadas no ‘ensaio e erro’, pois é certo que, para esse segmento, até então inexistiam concepções estratégicas que permitiam “delinear prioridades e formas orgânicas e duradouras de ação institucional” capazes de compatibilizar “interesses e responsabilidades entre organismos do Estado e da sociedade civil” (SPOSITO e CARRANO, 2003, p.22). Essa análise do panorama da intervenção estatal na área da juventude baliza que, naquele momento, não se estabeleceram o que se poderia chamar de políticas públicas, mas um conjunto de programas desconexos pautados na focalização e marcados pelo viés da estereotipação dos jovens (KERBAUY, 2005). É possível apontar a frágil institucionalidade das políticas para os jovens empreendidas no governo FHC (SPOSITO e CARRANO, 2003; RUA, 1998), pois o que houve, naquele período, foi uma profusão de ações desarticuladas, com inclusive a superposição de projetos em uma mesma área e para uma mesma clientela. Por mais que tenha ocorrido uma preocupação mais sistematizada do governo FHC para formular políticas voltadas para a juventude, somente em 2003 houve uma organização maior para discutir a formulação da Política Nacional de Juventude (KERBAUY, 2005). Considerando, então, que a formulação das políticas para a juventude iniciou no governo Lula, cuja plataforma política do governo já buscava reunir atores e construir diretrizes para propor uma política para garantir os direitos dos jovens, o ano de 2003 passa a ser delimitado como o marco desse processo, porque assim que foi empossado o novo governo designou um grupo interministerial para a definição de ações e construção de uma política e programas direcionados aos jovens. Esse marco abriga a inclusão, como participantes determinantes desse processo de formulação, dos atores da sociedade civil, pois, como já apontamos, nesse período ocorreu a sua participação ativa, principalmente através da atuação do Instituto Cidadania. Nesse ínterim, alguns projetos para a juventude iniciados no governo anterior também foram reformulados e adequados pelo governo Lula à nova política que ainda estava nascendo. Com as demandas para a juventude já incluídas na plataforma política do governo Lula, restou à Secretaria Nacional de Juventude, criada para este fim, articular a política nacional voltada para os jovens e formular programas específicos seguindo as diretrizes da mesma e de seu órgão de controle social, o Conselho Nacional de Juventude. Com a Política Nacional de Juventude estabelecida em 2005 por meio da Medida Provisória 238 assinada pelo Presidente da República, aprovada pelo Congresso Nacional e transformada em lei, foram criados (e até mesmo redesenhados) diversos programas e projetos 112 sob a responsabilidade de diferentes Ministérios. Depara-se também nesse percurso com a tramitação no Congresso, desde 2003, da chamada PEC da Juventude, propondo a inclusão do termo juventude no capítulo dos Direitos e Garantias Fundamentais da Constituição Federal. A PEC da Juventude foi aprovada pelo Senado Federal somente em 2008, sendo determinante nessa luta pela sua aprovação a 1ª Conferência Nacional de Juventude realizada naquele ano. Nota-se, especialmente nessa área, através dessa breve análise da fase de formulação da política de juventude, que, além da concretização do desenho jurídico dessa política ter sido posterior aos seus primeiros programas, a trajetória percorrida por essa política, apesar de longa, foi vitoriosa, visto que a mesma conseguiu ser alçada ao patamar de política de Estado. Isso não ocorre com todas as questões incluídas na agenda governamental. A incerteza é uma característica comum da fase de formulação, quanto mais complexa é a questão, ainda mais duvidosos são caminhos para a formulação da sua política, podendo inclusive não se efetivar de fato. No campo da produção de políticas para a juventude, podemos afirmar que, por mais que tenha tardado e tenham se estabelecidos acordos e parcerias, efetuado ajustes e criado estratégias para a sua aceitação, nessa esfera o processo foi relativamente linear, culminando com a formulação da política e de seus programas e projetos, quer sejam novos ou adaptados. É pertinente esclarecer que por mais que uma política seja formulada para ser implementada de uma forma, dificilmente ela ocorrerá tal como foi idealizada, especialmente porque nesse momento também incidem fatores internos e externos que podem alterar sua execução. A implementação é evolução, pois, na prática, em grande parte o que acontece é o redesenho da política, modificando seus objetivos, equalizando-os com os recursos existentes/ disponibilizados ou, ao contrário, alocando mais recursos para dar conta de objetivos pendentes (LABRA, 2007). A etapa da implementação é ‘um divisor de águas’, um momento em que os formuladores, ou seja, os políticos, afastar-se-iam para os implementadores/ administradores, darem seguimento às ações, executando a política (LABRA, 2007). No entanto, essa separação não ocorre plenamente, pois as lutas políticas para o controle da gestão, para distribuição de cargos, para a definição do lócus de execução e para a aplicação dos recursos financeiros são comuns nesse momento. Além disso, a implementação de uma política nacional em um país que, além de ter uma enorme extensão territorial, possui um sistema administrativo descentralizado torna o desafio muito grande. Ocorre que existe uma grande dificuldade de se implementar em âmbito nacional - num país federativo, multipartidário e com entes subnacionais com autonomia política - um programa federal que tem como proposta a cooperação dos três níveis de governo (ARRETCHE, 2002). Esse é um dilema que se intensifica caso o programa contemple parcerias público x privado, visto a ampla rede de organizações não-governamentais. A execução transforma as políticas públicas, principalmente porque, para atingir determinados objetivos de uma política, diferentes estratégias são estabelecidas de acordo com 113 as preferências e decisões dos formuladores, e não daqueles encarregados de operacionalizálas. Entretanto, esses que não participaram do processo de formulação podem, ao executarem a política com uma margem de autonomia, produzir resultados distintos daqueles almejados pelos formuladores, pois dificilmente há uma convergência dos ideais desses com os daqueles (ARRETCHE, 2002). Da mesma forma, “a implementação modifica o desenho original das políticas, pois esta ocorre em um ambiente caracterizado por contínua mutação” (ARRETCHE, 2002, p.9). O grau de sucesso de uma política/ programa também está amarrado ao grau de sucesso no alcance da ação cooperativa dos agentes implementadores e diversas medidas de incentivos são tomadas para conquistar a adesão desses atores. E esse “não é um problema a ser constatado pelo avaliador, mas um dado da realidade a ser incorporado à análise” (ARRETCHE, 2002, p.5). Isso é especialmente factível na Política Nacional de Juventude, pois com ela foram redesenhados diversos programas e projetos, inclusive o ProJovem, que passou por uma mutação, incorporou outros programas/ projetos e transformou em 2007 no ProJovem Integrado. Independente da relevância da reformulação de antigos projetos/ programas que se deu na esfera das políticas para os jovens, a ocorrência de mudanças em ações já iniciadas não se constitui uma novidade no país, muito menos na área da Política de Juventude. Em outra vertente, é importante considerar que problemas detectados na implementação nem sempre são provenientes da dinâmica complexa dessa fase, pois a política pode ter sido mal formulada e conter erros de concepção que inviabilizariam o seu desenvolvimento de forma ótima (LABRA, 2007). Caso os problemas não sejam provenientes da sua formulação, aí sim há que se investigar os gargalos e entraves que causam falhas em políticas bem formuladas. Por fim, a implantação de uma Política Nacional de Juventude representa de fato um avanço no país. Por isso, é importante que ela seja replicada em todas unidades da federação e que eventuais erros conceituais e problemas de formulação e de implementação sejam analisados e corrigidos, visto que esses também podem comprometer sobremaneira a garantia dos direitos das juventudes. REFERÊNCIAS 114 ANDRADE. Carla Coelho de. Juventude e políticas públicas no Brasil. Revista Desafios do Desenvolvimento. nº 60. Ipea: 2010. BRASIL. 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Pelotas [28]: 213 - 234, janeiro/ junho 2007. 116 Agenda Social ELETRONIC JOURNAL VOLUME NÚMERO 7 2 ISSN 1981-9862 www.revistaagendasocial.com.br UMa anÁLise da inCLUsÃO de aTiVidades fÍsiCas PrOGraMadas na POLÍTiCa PÚBLiCa de saÚde An analysis of the inclusion of planned physical activity in public health policy RAMSAUER, eduardo (1); reis, Maria José (2); JOHnsOn, Guilhermo alfredo (3). 1. MestreemGestãodePolíticasPúblicas(UNIVALI)([email protected]); 2. Universidade do Vale do itajaí e Universidade federal de santa Catarina (masereis@hotmail. com); (3) Universidade federal da Grande dourados ([email protected]). RESUMO O presente texto tem como objetivo analisar, através das representações sociais de gestores e agentes públicos do Sistema Único de Saúde de uma cidade do litoral norte de Santa Catarina, as possibilidades e os desafios para a implantação de Núcleos de Saúde Integral, bem como para nelesincluirapráticadeatividadesfísicas programadas. Após breve discussão teórica sobre a associação entre a prática de atividadesfísicasesaúde,contextualizada ao município onde foi realizada a pesquisa, registramos a aprovação pelos entrevistados pela inclusão de um educador físico. Apontamos observações analíticas com relação ao desempenho das políticas públicas municipais de saúde, em destaque para o Programa de Saúde da Família, finalizando com proposições visando o aprimoramento dessas políticas públicas. PaLaVras-CHaVe POLÍTICAS DE SAÚDE; EDUCAÇÃO FÍSICA; ANÁLISE. aBsTraCT This text aims is to analyze, through the social representations of managers and officials of the Health System in a town on the northern coast of Santa Catarina, the opportunities and challenges for the deployment of the Integral Health Centers, and also the inclusion of the practice of planned physical activities. After a brief theoretical discussion on the association between the practice of physical activity and health, contextualized on the municipality where the research was conducted, we recorded of those interviewed by the inclusion of a physical educator. We point analytical observations regarding the performance of local health policies, especially in the Family Health Program, finalizing with propositions aimed at improving public policies. KEY-WORdS HEALTH POLICIES; PHYSICAL EDUCATION; ANALYSIS. 117 Introdução A política pública de saúde, o Sistema Único de Saúde (SUS) foi criado a partir da Constituição Federal de 1988, que definiu ser dever do Estado garantir a saúde da população brasileira. O Congresso Nacional sancionou a lei Orgânica da Saúde (LOS) em 1990, que explicita o funcionamento do referido Sistema. Os princípios norteadores do SUS, que foram definidos a partir da VIII Conferência Nacional de Saúde, em 1986, e assegurados no texto constitucional são, sinteticamente, a universalidade, entendida como o direito de todos os brasileiros à atenção de suas necessidades de saúde; a eqüidade, que significa a garantia de cobertura de ações e serviços de saúde de acordo com a necessidade que cada caso requeira, sem qualquer discriminação e a integralidade, que significa reconhecer o todo indivisível de cada indivíduo. O Programa Saúde da Família (PSF), por sua vez, que foi implantado em 1994, é constituído por uma equipe multiprofissional, composta por médicos, enfermeiros auxiliares, dentistas e auxiliares do consultório dentário que atuam em unidades de saúde ou nos domicílios. Este Programa, ao mesmo tempo em que propõe uma equipe de saúde, visa à construção de vínculos comunitários de co-responsabilidade, facilitando o reconhecimento, o atendimento e o acompanhamento dos problemas vinculados à saúde das pessoas e de suas famílias nas respectivas localidades (OLIVEIRA e ALBUQUERQUE, 2008). Em 2005, a Secretaria de Atenção Básica do Ministério da Saúde propôs a inserção de ações voltadas para a saúde mental, a reabilitação, e atividade física e saúde na Equipe Saúde da Família visando, deste modo, a implantação dos Núcleos de Saúde Integral, respeitando as especificidades locais (BRASIL, 2005). A referida proposta é baseada em ações voltadas para a integralidade da atenção, a multiprofissionalidade e a interdisciplinaridade para compartilhar responsabilidades na promoção da saúde, na humanização da atenção e promoção do auto-cuidado como mecanismo privilegiado para fortalecimento da cidadania (PAIM, 2001). O presente texto focaliza o Programa Saúde da Família (PSF) no município de Jaraguá do Sul (SC) e busca averiguar, em termos mais específicos, através das representações sociais1 de gestores e agentes públicos do Sistema Único de Saúde (SUS), as possibilidades e os desafios para inclusão da prática de atividades físicas programadas, através da efetivação dos Núcleos de Saúde Integral. As informações de campo foram obtidas por meio de entrevistas realizadas com dois desses gestores, um agente de saúde e com o presidente do Conselho Municipal de Saúde do município. Esta proposta se justifica considerando-se, entre outros aspectos, que hábitos sedentários preocupam pelo somatório de doenças ligadas à falta do auto-cuidado levando, deste modo, um contingente de pessoas a doenças não transmissíveis, pelas características hereditárias ou pela inatividade. A atividade física, inserida na estrutura organizacional de grupos de trabalho representados por uma equipe que atua em relação a um programa social, deve ser encaminhada por um profissional, o educador físico. Este terá como meta estabelecer um vínculo entre a comunidade e o trabalho de prevenção à saúde, contribuindo para o fortalecimento da cidadania, através de ações que promovam as práticas corporais de movimento, propiciando a melhoria da qualidade de vida da população, na redução de problemas decorrentes das doenças que diminuem a expectativa de vida (BAGRICHEVSKY, PALMA, ESTEVÃO, 2006). Atividade física e saúde: uma associação que necessita ser relativizada 1. Trata-se, de acordo com Moscovici (2003, p.21), inspirado no conceito original de representações coletivas 118 de Durkheim e Mauss, de um sistema de valores, idéias e práticas que estabelecem delimitações e apreciações, tanto em relação ao mundo natural quanto ao social, fornecendo-lhes um código para nomeá-los, classificá-los e interpretá-los. Para mais informações sobre a trajetória de construção do conceito de representações sociais consultar, entre outros, Anadon e Machado (2001). Como afirma Minayo (2006), saúde é um termo bastante genérico, portador de muito significados e utilizado nos mais diferentes sentidos, segundo interesses específicos. De acordo com a autora, este conceito se amplia paradoxalmente na mesma medida em que se aprofundam os campos teóricos e práticos da medicina. De seu próprio interior surgiu a reflexão sobre o sentido ampliado de saúde. Na verdade, tal processo ocorreu a partir de escritores e militantes médicos, em sintonia com o pensamente político e crítico da metade do século XIX. “Esses autores [...] chamavam a atenção para a imbricação entre a situação real vivenciada e as condições mínimas preconizadas para a vida, o trabalho e a saúde das sociedades específicas” (MINAYO, 2006, p.93). É esta visão de saúde como fruto de um conjunto complexo de condicionamentos sóciosanitários que foi reafirmada na Saúde Pública, no Brasil, e que teve amplo desenvolvimento através do “Movimento Sanitário”, constituído de modo especial pelo pessoal técnico da área da saúde, cuja mobilização foi uma das principais responsáveis pela criação do SUS (PAIM, 2008; ROSEN, 1994). Como destaca Minayo (1993), a VIII Conferência Nacional de Saúde, que norteou a perspectiva adotada pelo SUS, definiu a saúde nos seguintes termos: Em sentido mais abrangente, a Saúde é resultante das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso aos serviços de saúde. É assim, antes de tudo, o resultado das formas de organização social da produção, as quais podem gerar desigualdades nos níveis de vida (p.10). Focalizar, portanto, a saúde através de outro ângulo, não centrado na medicalização e na hospitalização, gera conseqüências valiosas para a saúde de um modo geral e para a saúde pública em particular, descentralizando os conteúdos biológicos da doença para o entendimento das questões sociais que a relação saúde-doença compromete. Por outro lado, conforme McArdle e Katch (apud NOGUEIRA e PALMA, 2003), a associação entre a prática de atividades físicas e saúde já ocorria desde a Antiguidade Clássica, manifestando-se na modernidade, entre outros prováveis acontecimentos, com a instalação no Departamento de Anatomia, Fisiologia e Treinamento Físico da Universidade de Harvard (USA), em 1892, do primeiro “laboratório formal de fisiologia do exercício”. Com base na mesma associação, como informam esses autores, no início do século XX, na Europa e nos Estados Unidos, foram iniciados processos de desenvolvimento de uma fisiologia do esforço e de um campo de investigação para a obtenção de elementos científicos na comparação de exercícios físicos e saúde. Somos, portanto, como afirmam Nogueira e Palma (2003), herdeiros de uma longa tradição que leva em conta a contribuição da atividade física regular como fator de promoção à saúde. De acordo com Ferreira (2001), parece indiscutível a influência do exercício físico nas condições de saúde, pressuposto que encontra suporte teórico em estudos de diversos autores, “a tal ponto que alguns vêm entendendo o incentivo a essa prática como ação importante na área de saúde pública” (p.42). Entretanto, a associação sem reservas entre exercício físico e saúde, segundo ainda Ferreira (2001, p.43), “numa relação de causalidade, pode nos levar ao campo do ‘otimismo ingênuo’ [...], uma vez que os benefícios do exercício dependem da forma como é praticado”. Existem, inclusive, conforme esse autor, vários estudos que argumentam que o desenvolvimento da aptidão física não corresponde necessariamente a uma melhoria do status de saúde, e que nem todas as repercussões do exercício físico e do desporto são a ela benéficas. Portanto, como conclui Ferreira (2001, p.43), “o exercício físico deve ser encarado como um meio potencial para se contribuir positivamente para a saúde, quando praticado de forma correta e adequada”. 119 Paralelamente é possível afirmar que: Se por um lado é parcialmente aceitável a generalização de que há benefícios orgânicos decorrentes de algumas modalidades de exercício, por outro, esta argumentação torna-se discutível na medida que pretende sustentar uma política conservadora, uma dimensão moral que responsabiliza cada pessoa por seu próprio adoecimento e desconsidera a dinâmica sistêmica e multifacetada que influencia os estados de enfermidade humana. (BAGRICHEVSKY, PALMA e ESTEVÃO, 2006, p.27). Do mesmo modo, em trabalho anterior, Bagrichevsky et al. (2003) já se mostravam preocupados em registrar a necessidade emergencial de se repensar as propostas teóricometodológicas na Educação Física. Essas propostas balizam intervenções ditas de “promoção à saúde”, buscando coaduná-las às perspectivas críticas, fecundamente disseminadas na Saúde Coletiva. De acordo com estes autores, ainda é notória a prevalência de enfoques em pesquisa que exploram mais os determinantes biológicos, em detrimento da abordagem dos elementos sócio-culturais, econômicos e políticos, intervenientes no processo saúde-doença. Isto é, a dimensão destacada nessa tendência é a biológica, que defende a existência de uma relação de “causa e efeito”, quase exclusiva, entre exercício e saúde. O que se constata, na realidade brasileira – observado até mesmo em países com alto grau de desenvolvimento na referida área – é a falta de participação da população fisicamente ativa em atividades regulares de exercícios programados (LOVISOLO, 2003). Conforme o mesmo autor, ... ao longo do tempo, fomos convencidos sobre as necessidades de bebermos água tratada, de termos esgotos e banheiros, de lavar as mãos após fazermos nossas necessidades fisiológicas, de vacinar-nos, de escovar os dentes várias vezes por semana, de tomar vitamina C, de fazermos higiene corporal todos os dias, enfim, fomos convencidos a adotar muitos hábitos que contribuem para termos saúde, e talvez saudebilidade. Contudo, as pesquisas informam que o hábito da atividade física tem pouca penetração. Em vários países, não passa de vinte e cinco o percentual de pessoas que realiza atividade física e outros registram percentuais ainda menores. Como as pessoas não se conscientizam sobre uma recomendação repetida de tantas e tão variadas formas? Como a pastoral da higiene teve êxito e a atividade física parece fracassar? (LOVISOLO, 2003, p.106). No caso do Brasil, entretanto, é necessário ressaltar, como fazem Nogueira e Palma (2003), que em um país em que a jornada de trabalho é excessiva, não raro desempenhada sobre condições ergométricas inadequadas, com baixa remuneração e com os direitos sociais ameaçados, não parece muito promissora a idéia de uma relação entre atividade física e saúde com o objetivo, como é muitas vezes salientado, de aumento da produtividade das empresas. Além disso, ao centrar no indivíduo a responsabilidade sobre fazer ou não atividade física, desconsidera-se a importância do empenho social na busca de políticas públicas que propiciem o acesso gratuito a atividades deste tipo (TUBINO, 2001). Tal fato traz implicações delicadas no campo do conhecimento e da intervenção, uma vez que essa interpretação adota um olhar parcial e distorcido da realidade. Não levam em conta outros fatores contextuais relevantes, aos quais as pessoas estão submetidas, e que não podem ser dissociados de seus cotidianos: distribuição desigual de renda, nível de (des) emprego, condições sanitárias básicas, condições de moradia e alimentação, indisponibilidade de tempo livre, acesso a serviços de saúde e educação, entre outros. Esses também são aspectos que moldam as condições da vida humana e, portanto, precisam ser igualmente considerados em qualquer pesquisa que busca estabelecer inferências mais consistentes sobre a saúde populacional (BAGRICHESKY, PALMA e ESTEVÃO, 2006; NUNES, 1989; CAVALCANTI, 1984). 120 Em síntese, e este é o pressuposto básico que norteou nossa investigação, com base nos diferentes autores citados, o debate em torno da adesão às atividades físicas regulares não se encerra no campo da Educação Física, dos esportes e mesmo da saúde. Deve, necessariamente, incluir aspectos sociais e políticos mais amplos, como a questão da jornada de trabalho e, sobretudo, a disponibilidade de políticas públicas que orientem, estimulem e ofereçam oportunidade à população, de modo especial a de baixa renda, que não tem acesso aos programas voltados para essas práticas posto que, em sua maioria, devem ser pagos. Este é, a rigor, um dos caminhos que devem nortear a constituição dos Núcleos de Saúde Integral relacionados aos PSF, e que podem auxiliar no cumprimento ao preceito consagrado na Constituição Federal promulgada em 1988, em seu artigo 196, que estabelece que “a saúde é um direito de todos e dever do Estado” (OLIVEIRA e ALBUQUERQUE, 2008; PAIM, 2008). O PSF em Jaraguá do Sul (SC) O município de Jaraguá do Sul tem atualmente uma população de aproximadamente 130 mil habitantes. A situação do Município em relação ao SUS e mais especificamente ao PSF, conforme Ramsauer (2007) está orientada pela habilitação concedida através da Norma Operacional Básica (NOB) 01/962, e pela portaria municipal nº 2466, de abril de 1998. A partir de 2003, conta com o processo de expansão do Programa de Saúde da Família (PSF), através da LEI N° 2648/2000, no uso das atribuições que foram conferidas ao Prefeito Municipal em exercício (2000-2004). Assim, em maio de 2003, amparado por documentos legais (NOAS/02.), Jaraguá do Sul obteve sua habilitação jurídica para a “Plena Gestão de Atenção Básica Ampliada”. De acordo com os propósitos estabelecidos pelo SUS, o PSF foi a opção do município para a reorganização da Atenção Básica, devendo ter como suporte, na perspectiva da gestão municipal, a sujeição à sua base territorial, à clientela, ao trabalho de equipe multidisciplinar e ao período integral dos profissionais, ampliando a disponibilidade dos postos de saúde locais às comunidades, um fator que seria determinante para geração de co-responsabilidade entre equipe de saúde e comunidade (PAIM, 2001). A saúde básica do Município de Jaraguá do Sul que iniciou com uma equipe de PSF, teve seu número ampliado em 2003, passando a contar com cinco equipes, ampliadas para oito, ao final daquela gestão municipal. No final da gestão seguinte (2004-2008) a rigor, apesar da afirmação de seus gestores de que estariam em funcionamento 12 dessas equipes, apenas nove delas estavam atuando com uma equipe completa de profissionais. Essas equipes eram compostas por um médico, um dentista, um enfermeiro, dois auxiliares de enfermagem, quatro agentes de saúde e um auxiliar de consultório dentário por equipe. Na gestão municipal atual (2008-2012), de acordo com o projeto municipal de expansão do PSF no Município, está em funcionamento o mesmo número de equipes da gestão anterior, com a projeção para um total de 18 equipes até o término da gestão e com prognósticos otimistas quanto à possibilidade de incorporação e ampliação de Núcleos de Saúde Integral. Representações sociais dos gestores e agentes de saúde sobre os Núcleos de Saúde Integral com equipes interdisciplinares O Núcleo de Saúde Integral é uma proposta do Ministério da Saúde, apresentada em 2005, que visa um modelo de assistência à saúde mais eficiente do que era posto em prática até aquele momento. Essa tentativa se materializa ao incorporar mais profissionais, que possam atuar com vínculos mais estreitos com o perfil da comunidade, permitindo interagir com possibilidades de soluções mais viáveis no atendimento à saúde, em seu sentido pleno. Para fins da nossa investigação entrevistamos, com um rol de perguntas semi2 NOB 01/96, publicada no Diário Oficial da União do dia 06/11/96. 121 estruturadas (MINAYO, 1993), interlocutores qualificados em nível local3. Nessa perspectiva, incluímos os gestores públicos de diversos espaços decisórios das políticas públicas em estudo (da Diretoria da Secretaria de Saúde, da Coordenação do Programa de Saúde da Família e da Presidência do Conselho Municipal de Saúde), assim como um médico de Unidade de Saúde Básica4. Na presente abordagem consideramos a representação social uma forma de conhecimento socialmente elaborada e compartilhada, que tem objetivo prático e contribui para a construção de uma realidade comum a um conjunto social. Também designada “saber de senso comum”, distingue-se do conhecimento científico, porém é tida como objeto de estudo igualmente legítimo, devido a sua importância na vida social e à elucidação que possibilita dos processos cognitivos e das interações sociais (JODELET, 2001). Nesse contexto, a representação é uma construção e uma expressão do sujeito, que pode ser considerado do ponto de vista epistêmico (processos cognitivos) ou psicodinâmico (mecanismos motivacionais), mas também social ou coletivo – que será a perspectiva da presente investigação –, na medida em que são considerados para a análise o pertencimento e a participação social e cultural do sujeito (MINAYO, 2008; JODELET, 2001). A postura favorável de todos os entrevistados em relação à necessidade da criação destes Núcleos e a eficácia da formação de equipes de saúde multidisciplinares que atuem de modo interdisciplinar são inquestionáveis. Da mesma maneira, os mesmos entrevistados, entendem que a região analisada necessita dessas práticas para que ocorram mudanças no atual modelo de assistência à saúde. O entrevistado E1 defende a formação da referida equipe, faz referência à recomendação de sua constituição pelo Ministério da Saúde, em 2005, e aponta como ganhos a interação de conhecimentos de pessoas ligadas à equipe: ... o Ministério da Saúde publicou em 2005 uma portaria que estabelece algumas equipes multidisciplinares como sendo suporte para equipes de saúde da família... contando com profissional de Educação Física, Nutricionista, formando um Núcleo de Saúde Integral... um núcleo desses fica responsável mais ou menos por cinco equipes de saúde da família para fazer esta interlocução: isso ajuda mais no conhecimento técnico-científico para adequar as situações e atender melhor a população (E1). Paralelamente, o entrevistado constata que essas equipes não estão ainda instaladas no Município. Todavia, afirma que sua instalação é urgente, e que já há iniciativas neste sentido para que seja deixada de lado a assistência que rotula de “medicocêntrica”, conforme a formulação transcrita a seguir: ... temos que sair urgentemente do modelo de assistência especialmente medicocêntrica... nós temos capacidade técnica e científica quer dizer ‘n’ profissionais... a discussão de buscarmos a interdisciplinaridade é uma questão que a gente vem tentando trabalhar (E1). Em consonância com os demais entrevistados, E2 mostra-se favorável à inclusão das práticas interdisciplinares. Enfatiza, também, que o município de Jaraguá do Sul carece dessas ações, mesmo com novas Unidades da Saúde da Família distribuídas de acordo com a necessidade dos Bairros e das Comunidades. ... é muito importante, tem que ocorrer; nós temos que ter hoje uma equipe multidisciplinar sim, até para que o atendimento desse paciente seja uma integralidade... o médico faz uma referência, por exemplo, a uma especialidade 3 122 Para fins de conservar o sigilo indispensável a pesquisa científica designaremos cada um dos entrevistados com as siglas E1, E2, E3 e E4. É importante registrar que os entrevistados assinaram Termo de Consentimento Livre Esclarecido, sendo que os discursos foram gravados com seu consentimento, e que as abordagens transcorreram no primeiro semestre de 2007. 4 O critério para escolha do profissional médico foi aleatório e determinado pela disposição em participar da pesquisa. e não temos a contra-referência (E2). Vale destacar que para a entrevistada, o caráter multidisciplinar da referida equipe deve ocorrer de dois modos específicos. Tanto em relação às diferentes especialidades médicas, quanto através da participação de outros profissionais, tais como os educadores físicos, nutricionistas e fisioterapeutas, assumindo, este último, o sentido expresso pelo Ministério da Saúde (2005) em relação aos Núcleos de Saúde Integral. Para E3, é igualmente relevante a existência de uma equipe profissional do tipo em questão. Enfatiza também como um progresso a iniciativa do Governo Federal de incorporar o dentista no Programa de Saúde da Família, mas afirma que ainda não consegue visualizar esse processo em Jaraguá do Sul, a não ser de modo muito limitado. ... é relevante, eu creio que sim... eu me deparo com problemas de ordem social, psicológica, psiquiátrica, então quando se amplia uma equipe, seja com nutricionista, assistente social, psicólogo, etc.; isso tudo vem ajudar muito a gente. São ferramentas para melhor atendimento; isso, se vem ocorrendo, eu acho que de uma maneira mais tímida (E3). Por outro lado, salienta, como na entrevistada anterior, o sentido de multidisciplinaridade em relação às diferentes especialidades médicas, sendo fundamental o conhecimento básico que elas podem oferecer ao clínico geral para o melhor atendimento de saúde às comunidades. Contudo, para E4, esse suporte de novas disciplinas não está visível no Município. O que se percebe, a seu ver, é o atendimento individualizado por parte de um profissional, estando as práticas de saúde no Município muito longe da interdisciplinaridade. Em síntese, as opiniões dos entrevistados variam em relação aos sentidos atribuídos à interdisciplinaridade, proposta pela portaria ministerial, bem como no que diz respeito às razões apontadas para a inclusão das equipes interdisciplinares no PSF. Coincidem, entretanto, em pelo menos três aspectos. Em primeiro lugar, quanto aos indiscutíveis ganhos em relação à saúde da população, através da formação de equipes interdisciplinares. Em segundo lugar, quanto ao não funcionamento destas equipes, em Jaraguá do Sul, pelo menos de acordo com a integração de vários tipos de profissionais não médicos no atendimento à população. Por último, quanto à necessidade de que elas sejam criadas e colocadas a serviço do PSF, no município. A inclusão de atividades físicas programadas no PSF Os quatro entrevistados foram tacitamente a favor da realização de atividades físicas orientadas para a promoção da saúde da população. De acordo com E1, o Ministério da Saúde priorizou uma forma de encorajar a comunidade através de uma proposta lançada no decorrer do ano 2000, a “Agenda Brasil”. Esta Agenda está voltada para um conjunto de ações, cuja prioridade é estabelecida com as comunidades, visando hábitos saudáveis através de atividades físicas periódicas, como caminhadas orientadas, exercícios laborais, todos orientados por profissionais de Educação Física competentes e vinculados a um trabalho social. Destaca também a iniciativa de um Município adjacente, Pomerode (também localizado na região norte do Estado), pelas práticas oferecidas à população local a um determinado grupo que apresenta doenças não transmissíveis, como Diabetes e Hipertensão. Os profissionais de saúde oferecem a análise, por via capilar, e estabelecem uma orientação na prática da atividade de acordo o aumento ou a baixa da glicose sangüínea, estabelecendo uma interação entre o médico, pessoal da enfermagem e o especialista em educação física. Conforme o entrevistado, ... a “Agenda Brasil” estimula atividades físicas, hábitos saudáveis, práticas orientadas; ... não é só para o profissional de enfermagem, mas para o 123 profissional em educação física que está lá para fazer e orientar as pessoas da comunidade (E1). O entrevistado enfatiza, também, além da eficácia no atendimento da saúde através das práticas interdisciplinares, os ganhos em termos de custos financeiros. Com isso se tem benefícios ainda maiores porque se eu tenho um hipertenso bem orientado nas suas corretas atividades físicas, eu reduzo o custo do medicamento. O diabético a mesma coisa; alimentando-se corretamente, fazendo as suas atividades físicas direito... o custo do paciente se torna menor, porque eu não vou ter um dia depois um paciente descompensado precisando de uma internação hospitalar, quando o custo se eleva (E1). No seu discurso, E2, por sua vez, prioriza o sentido de saúde como primeiramente a busca do bem estar. Estímulos extra-profissionais da área específica, como é o caso da prática de uma atividade física qualquer são, a seu ver, muito válidos. Destaca, também, que a maioria dos profissionais da saúde e dos pacientes focaliza muito a doença como um problema prioritário e de atenção maior, abandonando assim, a prevenção e seu bem estar antecipado. A seu ver, ... benefícios são todos, eu acho até que pela gente mesmo, nós como seres humanos, mesmo a gente trabalhando e fazendo a nova atividade profissional, você como profissional quer ter o seu bem estar... nós que somos profissionais que estamos aqui, mas como os pacientes eles focam muito a doença e esquecem esse lado do bem estar (E2). Sua opinião, portanto, sobre a prática de uma atividade física não difere da dos outros entrevistados, enfatizando a necessidade das comunidades exercerem o papel de protagonistas, sendo bem orientados por um profissional na área de educação física. Que esse profissional tenha em mente um projeto social capaz de propiciar a comunidade, através de seus conhecimentos, atividades de natureza preventiva e de promoção da saúde. Lamenta, contudo, que não haja no município nada nesta direção, a exceção das atividades destinadas a “Terceira Idade”, na modalidade de hidroginástica. Atividades deste tipo deveriam ser descentralizadas. Eu acho que os profissionais da saúde têm que ter uma participação muito importante nisso, principalmente onde está o PSF, porque isso aproxima a comunidade com o profissional. Mas infelizmente em nosso município ainda não têm (E2). E3 aponta, igualmente, a atividade física como necessidade urgente, devido aos diversos diagnósticos por ele constatados no Posto de Saúde. Destaca que nos seus atendimentos, as patologias mais freqüentes são crônicas degenerativas, isto é, processos patológicos permanentes como diabetes méllitus, hipertensão arterial sistêmica, osteoartrose e problemas osteomusculares. Ao mesmo tempo, segundo ele, “se vê pela anamnese que a pessoa tem um componente de sedentarismo muito grande”. Reitera, ainda, a referida necessidade, nos seguintes termos: ... eu acho que tudo que a gente fala hoje dentro do consultório médico está relacionado à atividade física. Como o problema que acabei de atender de uma costureira que está com o intestino preso, como se ela fosse viajar a São Paulo todos os dias, sentada, sem atividade física, completamente sedentária, fazendo seu trabalho. ... a atividade física neste caso seria interessante. ... Eu acho que o professor de educação física incorporado nessa interdisciplinaridade seria muito interessante para a melhoria da saúde da população (E3). 124 Já E4, por seu turno, apesar de afirmar que não tem grande conhecimento sobre a inclusão do profissional da educação física na equipe interdisciplinar, afirma que sua inclusão é fundamental, levando em conta uma suposta displicência a este respeito. A gente que tem certo conhecimento sobre saúde, quase todos somos muito relaxados com essa questão da atividade física... Isso é com certeza um trabalho importante levar esse conhecimento a cada comunidade, a cada bairro (E4). O mesmo entrevistado refere-se, ainda, ao fato de ter feito um curso numa Faculdade da região justamente sobre a importância da atividade física e de nossos hábitos de alimentação, considerada como “muito pesada na nossa região”. Ao mesmo tempo, faz considerações sobre o pouco desgaste físico das pessoas nas atividades industriais, ao contrário das atividades agrícolas, nas quais se exigia mais atividade física. Pelo que foi apresentado sobre esta questão, pode-se, afirmar, em síntese, que há absoluto consenso entre os entrevistados a respeito da oportunidade e da necessidade da inclusão de um profissional de educação físicas nos Núcleos de Saúde Integral. Vale ressaltar, também, que embora os entrevistados não questionem a relação causal positiva entre exercício físico e saúde, como é o caso de alguns profissionais desta área já citados anteriormente, sem levar em conta outros fatores intervenientes nessa relação, uma das entrevistadas amplia o próprio conceito de saúde ao tratar desta relação, tomando-o de um modo mais amplo como sinônimo de bem estar. Desafios para a efetivação dos Núcleos de Saúde Integral Apesar de todas as manifestações favoráveis à implantação dos Núcleos de Saúde Integral no município em estudo, agregando as referidas equipes multidisciplinares, vários foram os obstáculos apontados. As discussões sobre sua implantação, de acordo com E1, vêm ocorrendo desde 2005, sendo a primeira providência necessária para sua implantação a realização de concurso público para a contratação do pessoal necessário para compô-la, uma vez que não consta do quadro da Secretaria de Saúde de Jaraguá do Sul parte destes profissionais, como os professores de Educação Física, fisioterapeutas, nutricionistas e psicólogos. Conforme a fala do entrevistado, Hoje o psicólogo está restrito ao Centro de Atendimento Psíquico Social (CAPS)... Se conseguirmos dar um aporte maior às estratégias da saúde da família (a respeito destes profissionais), diminui a chegada de pessoas ao CAPS; ... a gente consegue tratar isso na atenção básica. Os pequenos transtornos comportamentais a gente consegue resolver prioritariamente na atenção básica (E1). Do ponto de vista estratégico e estrutural, entretanto, E1 considera que os valores gastos com a assistência à saúde em Jaraguá do Sul são o “grande ralo” da saúde pública no município. Em sua opinião, ... desde pagamentos de internações hospitalares, até os pagamentos que a Secretaria vem fazendo direto para os hospitais, para a manutenção dos profissionais dentro dos hospitais. Isto tem um custo extremamente elevado. Se a gente começa a reduzir o bolo do recurso, a gente tem que tentar diminuir uma área de atuação. A nossa única alternativa é reduzir a hospitalização em Jaraguá do Sul, aumentando o aporte dos recursos na atenção básica, nessas novas práticas de assistência (E1). E2 também levanta questões orçamentárias, observando que há déficit grande no Município. Considera, entretanto, que além do problema financeiro, há aspectos mais ligados à disponibilidade e motivação da equipe de saúde que devem ser consideradas de modo independente da questão orçamentária, conforme manifesta no depoimento transcrito abaixo. ... tem coisas que não precisam de dinheiro para serem executadas”. ... 125 entra a boa vontade, a capacidade e a integração que você tem com a sua comunidade. O Núcleo de Saúde Integral tem recurso para isso; se faz um projeto, ele tem um incentivo. Não é um incentivo total, porque o município entra com a contrapartida. É muito difícil o incentivo que venha ser suficiente para executar todas as ações pré-determinadas e sempre tem a contrapartida financeira. Mas eu penso que não precisa desse financeiro; precisa de uma equipe bem unida e que nós profissionais da saúde sejamos abertos para executar com boa vontade. O que eu acho é que na equipe de Jaraguá do Sul a motivação dos profissionais está caindo um pouco (E2). De modo similar aos dois entrevistados citados acima, E3 faz referência às questões orçamentárias como o mais sério obstáculo a ser vencido no atendimento à saúde. No entanto, vê na implantação dos Núcleos de Saúde Integral a possibilidade de potencializar recursos. Nem a Prefeitura tem condições de manter cada postinho para ter uma nutricionista, etc. Essa é a melhor proposta; eu poderia em determinado momento com a minha equipe sentar com esses profissionais e discutir os problemas da minha área e sendo feitas soluções programáticas, integrações, estratégia dessa equipe dentro de minha área (Médico do SUS). Este entrevistado além de se posicionar a favor das mudanças, compara as ações de saúde desenvolvidas em Jaraguá do Sul com as do Município de Joinville (SC), as quais estão melhor estruturadas e implementadas. O entrevistado E4, por sua vez, aponta, duas questões a serem consideradas: a necessidade de participação das comunidades sobre a tomada de decisão relativa à incorporação do Núcleo de Saúde Integral, e a interferência mais ativa do Legislativo Municipal na aprovação de leis nesse sentido, como acontece no Município de Joinville. Por outro lado, considera a necessidade de aprimoramento na relação entre o Conselho Municipal de Saúde e a Secretaria Municipal de Saúde. Nesse sentido relata embates por ele vivenciados no Conselho Municipal com os Gestores, os quais costumam encaminhar institucionalmente os projetos antes das discussões. De seu ponto de vista, “toda nova proposta requer uma nova discussão, o que normalmente não ocorre... a gente vê nos movimentos sociais, fizemos vários enfretamentos... muitas coisas são impostas e não são discutidas” (E4). Ressalta, também, nestes termos, que a nova proposta tem que ser discutida a respeito da viabilidade pelos Gestores, Comunidade e Conselho Municipal de Saúde, formalizando, assim, uma política de adesão ao projeto, sendo mais tarde encaminhada a Câmara de Vereadores para a votação em plenário. No seu entender, é uma proposta de grande contribuição à política de saúde do Município. A partir das considerações dos entrevistados sobre a instalação de Núcleos de Saúde Integral, é possível apontar que embora haja consenso sobre a importância e os ganhos em termos de saúde da população, há algumas providências tanto do ponto de vista organizativo como orçamentário que precisariam ser tomadas para viabilizar sua instalação em Jaraguá do Sul. Dentre elas destaca-se, em primeiro lugar, a contratação dos novos profissionais indicados na proposta original do Ministério da Saúde (profissionais de educação física, nutricionistas, fisioterapeutas, psicólogos, entre outros). Em segundo lugar, parece indiscutível para a maioria dos entrevistados a necessidade de lidar com a questão orçamentária que, na perspectiva de um deles implicaria em diminuir a hospitalização, para onde é encaminhada a maioria dos gastos com saúde no município. Em terceiro lugar, que esta proposta seja discutida com a sociedade local, para incluir seu encaminhamento ao Poder Legislativo para aprovação, bem como sua dotação orçamentária. Por último, que se possa contar com a motivação de equipes bem integradas para colocá-las em ação, bem como a iniciativa dos gestores para sua concretização. Considerações finais 126 Os entrevistados, apesar de reconhecerem avanços no atendimento à população do Município em relação ao funcionamento do SUS, à progressiva universalização e a eqüidade no atendimento à população, tornam evidentes suas críticas, voltadas de modo específico para o PSF. Por um lado, porque ele deixa a desejar em outros aspectos apontados em suas formulações apresentadas anteriormente, tais como a persistência de uma perspectiva “medicocêntrica”; a excessiva ênfase na hospitalização; a insuficiência orçamentária ou a sua má gestão; e até mesmo a desmotivação dos profissionais da saúde em relação ao atendimento à população. Por outro lado, devido à ausência da implantação de certas estratégias de saúde, como é o caso da inclusão de outros profissionais para comporem os Núcleos de Saúde Integral. Quanto à participação da população na elaboração e no acompanhamento de novos projetos de expansão do atendimento do SUS, os entrevistados apontam três aspectos fundamentais que indicam a limitação nesta co-participação, apesar de esforços neste sentido estarem sendo feitos, através do processo de Educação Continuada desenvolvido no Município, voltado para as questões relativas à saúde da população. Em primeiro lugar, a não participação social em todas as etapas de implementação dos Programas ou estratégias de saúde do SUS; em segundo lugar, a não complementação do cadastro da população, para realizar o exercício da territorialização, ou seja, o registro e conhecimento da população em termos comunitários locais por meio de suas características sociais e condições básicas de saúde; por último, a falta de investimento na preparação e formação de profissionais para o trabalho interdisciplinar visando consolidar as equipes multidisciplinares. Diante destas e de outras críticas que coincidem com as apresentadas por outros estudos referidos anteriormente, foram encaminhadas pelos entrevistados algumas sugestões, sintetizadas a seguir. a) a necessidade de ampla discussão com a sociedade e com o legislativo municipal sobre as novas medidas a serem tomadas no sentido da implantação das equipes para composição dos Núcleos de Saúde Integral; b) o encaminhamento dos resultados desta discussão no sentido de que sejam tomadas as devidas providências para a implantação e organização destas equipes. Desde a abertura de concurso público para a contratação dos profissionais das diversas especialidades que fazem parte do campo da saúde, bem como a disponibilidade orçamentária, vislumbrando a diminuição dos gastos com hospitalização; c) incremento substancial no financiamento da atenção básica, estabelecendo maior pontualidade nos repasses financeiros, incentivando a interação entre hospitais e equipes de saúde básica, com vistas à diminuição da hospitalização; d) a necessidade urgente de maior investimento na educação para a saúde e nas práticas preventivas para a população de um modo geral, sem dúvida um dos aspectos fundamentais em todo o processo de implantação e avaliação do SUS. Assim sendo, em que pesem as avaliações críticas a respeito do SUS, bem como os aspectos positivos apontados, como um todo, e do PSF em particular, a implantação dos Núcleos de Saúde Integral no município de Jaraguá do Sul torna-se igualmente necessária e urgente, como mais uma demanda a ser atendida pelo Estado brasileiro. Uma demanda legítima, como várias outras, para que seja atingido o tão propalado direito integral à saúde, extensivo à população brasileira de um modo geral, sobretudo àqueles segmentos sociais de baixa renda que não podem e não devem pagar para a ela terem acesso. Para finalizar, vale reafirmar, em termos da inclusão nestes Núcleos de atividades físicas programadas, que não há uma relação de causa e efeito inquestionável entre essas atividades e a garantia plena de uma vida saudável. Em outros termos, que a discussão sobre a referida inclusão deve colocar em pauta aspectos sociais e políticos mais abrangentes. Entre eles, as condições de trabalho da população; o acesso a outras políticas públicas, tais como as que garantam certo patamar de renda; uma educação que inclua uma visão crítica sobre as condições gerais de vida; adequadas condições de moradia, bem como a participação em atividades de 127 lazer e espaços adequados para sua implementação. Referências Bibliogrâficas ANADON, Marta; MACHADO, Paulo Batista. Reflexões teórico-metodológicas sobre as representações sociais. Editora UNEB, 2001. Salvador: BAGRICHEVSKY, Marcos; PALMA, Alexandre; ESTEVÃO, Adriana. Saúde coletiva e educação física: aproximando campos, garimpando sentidos. In: _________ ; DA ROS, Marcos (Orgs.) A saúde em debate na educação física. Vol. 2. Blumenau: Nova Letra, 2006. ______. Considerações teóricas acerca das questões relacionadas à promoção da saúde. In: _________ (Orgs.). A saúde em debate na Educação Física. Vol. 1. Blumenau: Edibes, 2003. CAVALCANTI, Kátia Brandão. Esporte para todos: um discurso ideológico. 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Demonstrating and ensuring education’s historical-ontological nature as a vital necessity of humanity’s and human species’ self-development is an essential task nowadays, since such comprehension and clarity bring about the possibility for the educator to know where they stand, to create and guide their educational activities in order to establish emancipation-based practices. In the anti-hegemonic battle, the labor versus capital perspective must be strengthened. PaLaVras-CHaVe EMANCIPAÇÃO; CLASSES VALORES. 130 SOCIAIS; KEY-WORdS EMANCIPATION; SOCIAL CLASSES; WORTH. I. Introdução Numa sociedade de classes, a educação é uma educação de classes. De modo que não haveria possibilidade de transformar o existente, pois a classe que detêm o controle sobre os meios de produção material e espiritual, controla a reprodução social. A única alternativa que restaria seria apenas aperfeiçoar e melhorar o que existe, já que o complexo social da educação acabaria reproduzindo as desigualdades sociais. A questão é que essa é a forma histórica adquirida pelo complexo social da educação numa dada forma de sociabilidade, que corresponde a um determinado período histórico-social que denominamos de capitalismo. Essa não é a natureza histórico-ontológica (essencial) da educação. Cabe-nos, portanto, demonstrar e ratificar, junto com Tonet (2005) e Saviani (2008), guardadas suas especificidades substanciais – pois há discordâncias fundamentais entre eles –, qual seria essa natureza essencial da educação e a partir daí, da reposição do seu verdadeiro significado, que se faz urgente e imprescindível, delinear os critérios parametradores às atividades educativas de caráter emancipador (TONET, 2005, p. 225-237), demonstrando de que modo podemos atuar na imediaticidade para edificar as condições para a transformação radical da totalidade social, que é, essencialmente, mediata. Também demonstraremos que é necessário um posicionamento de classe, de homem e de mundo (paidéia, no sentido grego) a fim de fortalecer a perspectiva do trabalho contra o capital. Mudanças de método, aulas, conteúdos, materiais, de relação ensino-aprendizagem sem esse posicionamento consciente, consequente e embasado racional, histórica, científica, filosófica e politicamente podem causar mais problemas do que auxiliar a superá-los, como demonstra a experiência de tentativa de implantação da Pedagogia Histórico-Crítica de Saviani por intermédio das políticas educacionais do Estado do Paraná (MAGALHÃES; SILVA JUNIOR, 2011), (BACZINSKI; PITON; TURMENA, 2008). Hoje, mais do que em qualquer outro período da história humana, torna-se uma tarefa revolucionária fortalecer e afirmar o posicionamento de classe contra-hegemônico a fim de demonstrar que ainda que a emancipação humana esteja no horizonte da humanidade, é a possibilidade de vislumbrá-lo que nos anima a caminhar. Mais do que nunca, caminhar é preciso, ratificando, cultivando e construindo os meios e valores necessários para a realização daquele fim. Assim, nunca é demais enfatizar a importância crucial da luta entre as perspectivas ideológicas do capital e do trabalho, porque dela resulta as tendências futuras para “que os indivíduos façam suas as objetivações comuns ao gênero humano, para poderem construir-se como membros desse gênero” (TONET, 2005, p. 231). II. A natureza histórico-ontológica da educação: educação no sentido amplo O ser humano tem uma dupla natureza: natural (biofísica; espécie) e social (autoconstrução humana; gênero). O orgânico é o repor o mesmo, que é a vida e o inorgânico é o tornar-se outro. O salto qualitativo, que faz a síntese dialética e processual entre esses dois 131 momentos é o surgimento do ser social, que é produzir, criar o novo, intervindo no mundo. A educação, em seu sentido amplo, é parte do processo de tornar-se homem do homem. Se num primeiro momento, quando as atividades necessárias para a produção e reprodução social são simples e pouco numerosas, assim como a demografia e o espaço correspondente ocupado pelos seres humanos, a educação se realiza mediante o trabalho. Porém, com a complexificação da vida social e das funções ligadas a sua reprodução, com a diversificação das atividades e dos meios de produção material, surge a necessidade de desenvolver conhecimentos, técnicas, habilidades, valores, comportamentos, etc. específicos, que devem ser transmitidos e assimilados pelas demais gerações a fim de que possam, a partir daí, desenvolver e criar outros, pois a satisfação das primeiras necessidades significa a criação de novas, de modo que o trabalho funda mas não esgota o ser social. É assim que entendemos as continuidades e descontinuidades na processualidade e historicidade humanas e no fazer-se homem dos homens, pois assim como a complexificação do ser social necessita do momento do orgânico e inorgânico (a continuidade) para a produção/ criação do novo (a descontinuidade na continuidade), assim também é necessário criar o complexo social da educação como forma de garantir a transmissão/assimilação do patrimônio histórico-cultural acumulado pela humanidade, construindo as bases para os avanços e novas intervenções/produções dos homens na história. Vemos, portanto, que a natureza essencial da educação é que ela é histórico-ontológica, ou seja, imanente à processualidade de tornar-se homem do homem, da sua produção enquanto gênero humano, em outras palavras, incorporação das objetivações que constituem o patrimônio histórico-cultural das gerações anteriores ao longo do seu desenvolvimento histórico-social, apropriando-se, desta forma, dos conhecimentos, técnicas, habilidades, valores, comportamentos, etc. que lhe permite transcender os limites histórico-sociais de outras gerações. Nesse sentido, como afirma Tonet, “não se trata apenas de tomar posse de algo que já está pronto e acabado. Trata-se, também, neste processo, de apropriar-se do que já existe e de, ao mesmo tempo, recriá-lo e renová-lo, configurando, desse modo, o próprio indivíduo em sua especificidade” (TONET, 2005, p. 214). Do mesmo modo, Saviani confirma o caráter histórico-ontológico da educação ao dizer que “o que não é garantido pela natureza tem que ser produzido historicamente pelos homens, e aí se incluem os próprios homens. (...) a natureza humana não é dada aos homens, mas é por ele produzida sobre a base da natureza biofísica” (SAVIANI, 2008, p. 13). Logo, a educação, em seu sentido amplo, isto é, enquanto complexificação das sociabilidades humanas e da reprodução social, “é o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens” (SAVIANI, 2008, p. 13), para que, assim, seja possível identificar os “elementos culturais que precisam ser assimilados pelos indivíduos da espécie humana para que eles se tornem humanos” (SAVIANI, 2008, p. 13), constituindo-os como membros do gênero humano. 132 III. Posicionamento de classe, de homem e de mundo (paideia, no sentido grego) A clareza e domínio sobre a natureza histórico-ontológica da educação deve ser um pressuposto, orientando o educador na tomada de posição e nas decisões referentes às atividades educativas e aos meios mais adequados e aproximativos ao fim a se objetivar, demonstrando que os meios precisam estar de acordo com os fins, qualificando-os. As escolhas realizadas, ainda que limitadas e delimitadas pelas circunstâncias e condições histórico-sociais que independem da vontade dos indivíduos, “poderão influenciar as outras dimensões sociais em sentidos diversos, ou seja, mais no sentido de frear ou de impulsionar a mudança” (TONET, 2005, p. 216). Ao orientar suas ações educativas, mesmo tendo por base a natureza específica e essencial da educação, o educador também faz um posicionamento de classe, dado que o que os indivíduos são “coincide (...) com sua produção, tanto com o que produzem como também com o modo como produzem. O que os indivíduos são, portanto, depende das condições materiais de sua produção”, (MARX; ENGELS, 2007, p. 87) do lugar que ocupam na estrutura socioprodutiva fundada na divisão social do trabalho. Sendo assim, numa forma de sociabilidade fundada sobre a propriedade privada dos meios e bens de produção material e espiritual, aprofundando as desigualdades sociais entre os homens, mantida e reproduzida através da divisão social, hierárquica, jurídica e política do trabalho, os educadores precisam assumir seu lugar enquanto classe social, porque dela decorre uma determinada (determinação reflexiva, síntese de múltiplas determinações) e condicionada concepção de homem, de sociedade e de mundo, como também de conhecimentos, habilidades, valores, comportamentos, objetivos, etc., a serem buscados e realizados. O posicionamento de classe é constituinte do processo das relações de poder e força estabelecido entre a perspectiva do capital e do trabalho, uma luta que dependendo das condições de organização e mobilização das classes, dos momentos e acontecimentos históricos-sociais específicos produzidos, pode utilizar do Poder (aparelhos repressivos de estado) ou da persuasão (aparelhos ideológicos de estado) para atingir seus objetivos. Porém, dentre eles o mais eficaz e que encontra menos resistência organizada, é a ideologia e, no caso, a de classe, pois justifica o modo como os homens vivem, pensam, sentem, criando e inculcando determinados valores que passam a influenciar de maneira decisiva na escolha entre alternativas feitas pelos indivíduos, ainda que ela seja, como frisamos, limitada e relativa. Nesse contexto, a educação adquire um importante papel, podendo contribuir para aperfeiçoar o existente, ou para questioná-lo, procurando reconstituir seus nexos causais e as condições para romper com ele e superá-lo, o que dependerá do posicionamento de classe do educador, reforçando uma ou outra perspectiva, pois sua matéria prima são as consciências dos sujeitos. Eis uma das características da educação, seu objeto é ao mesmo tempo sujeito, de modo que não se trata de uma relação apenas entre sujeito e objeto, mas entre sujeito e objeto que é também sujeito, dado que o ato educativo corresponde “a ação sobre uma consciência visando induzi-la a agir de determinada forma” (TONET, 2005, p. 218) e não de outra. De modo que o educador pode contribuir para frear ou acelerar a mudança porque questiona os fundamentos objetivos, histórico-ontológicos dos valores humanos. No entanto, é importante destacarmos que a perspectiva do trabalho é a única capaz de 133 realizar a transcendência positiva, rompendo definitivamente com o capital e o capitalismo ao superar o trabalho assalariado, a propriedade privada, a existência das classes sociais, a divisão social do trabalho e o Estado, tornando todos os homens trabalhadores, produtores livremente associados, como demonstraram Marx e Engels (1989), restituindo à educação seu caráter verdadeiramente histórico-ontológico, criando as condições objetivas e subjetivas à realização da paideia humana, no seu sentido grego, que não se restringe à cultura, convertida, atualmente, num simples conceito antropológico descritivo. Para os gregos, a paideia significava um alto conceito de valor, um ideal objetivo, consciente, e não um aspecto exterior da vida. Na paidéia grega está presente a ideia de uma educação do homem de acordo com a verdadeira forma humana, com o seu autêntico ser (ontologia). Não se pode evitar o emprego de expressões modernas como: civilização, cultura, tradição, literatura ou educação; nenhuma delas, porém, coincide realmente com o que os gregos entendiam por paideia. Cada um daqueles termos se limita a exprimir um aspecto daquele conceito global e, para abranger o campo total do conceito grego, teríamos de empregá-los todos de uma só vez. 1 IV. Da natureza essencial da educação às atividades educativas de caráter transformador: não basta um método revolucionário A partir do momento que o educador domina a compreensão da natureza essencial da educação, tendo realizado sua tomada de posição perante as perspectivas de homem e de mundo que deseja contribuir para edificar, consciente das implicações contidas nessa escolha, e de que embora a hegemonia das condições da produção e reprodução social esteja nas mãos da classe capitalista, é possível criar as condições para propiciar o desenvolvimento de atividades educativas de caráter transformador, isto porque, como esclarece Tonet, A existência do antagonismo de classe (...) também implica no surgimento – sob formas explícitas ou implícitas – de outras propostas, com outros fundamentos, outros valores e outros objetivos. De modo que o campo da educação, como aliás toda a realidade social, é um espaço no qual se trava uma incessante luta, ainda que a hegemonia esteja sempre nas mãos das classes dominantes. Essas outras propostas, no entanto, sempre terão um caráter restrito, pontual, isolado. No caso da sociedade atual, uma proposta de educação emancipadora só poderá ser explicitada em seus elementos gerais, mas nunca poderá ser levada à prática como um conjunto sistematizado. A disputa certamente pode e deve ser efetuada, posto que o processo histórico, sendo constituído de atos humanos individuais marcados por algum grau de liberdade, não tem os seus resultados previamente determinados. E deve ser efetuada nos mais diversos campos: das ideias, dos conteúdos, dos programas, dos métodos, dos recursos, dos espaços, das tecnologias, das políticas educacionais, etc. Não se pode nutrir, todavia, a ilusão de estruturar uma educação emancipadora como um conjunto sistematizado e amplamente praticável em oposição a uma educação conservadora. (TONET, 2005, p. 223) 134 1 Ver JAEGER, Werner Wilhelm. Paideia – a formação do homem grego. Trad. Artur M. Parreira. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 3 – 20) A utilização de um método revolucionário não seria garantia para transição do senso comum à consciência filosófica (SAVIANI, 2007, 2008), (LAZARINI, 2010), muito menos a exigência de sua aplicação através de uma pedagogia tornada política educacional, como o caso da Pedagogia Histórico-Crítica (MAGALHÃES; SILVA JUNIOR, 2011) e as experiências resultantes de sua implantação no estado do Paraná (BACZINSKI; PITON; TURMENA, 2008), justamente por estar na contramão da formação histórico-científica, político-social da maioria dos professores da rede de ensino, cujas ideias, valores inculcados e reproduzidos que guiam sua práxis os aproxima muito mais da perspectiva do capital do que do trabalho, ainda que digam e acreditem, ingenuamente, no contrário. Não basta utilizar um método novo, trabalhar os conteúdos de outra forma, tentar estabelecer uma relação ensino aprendizagem diferenciada. O embasamento de todos esses meios e recursos deve pautar-se na clareza e domínio da natureza essencial da educação e de suas possibilidades e limites na sociabilidade capitalista, bem como num posicionamento de classe e na escolha de uma perspectiva de mundo, envolvendo uma concepção de homem e de sociedade (paideia). Não desconsideramos que a educação escolar sistematiza e socializa o saber acumulado pelos homens. Porém, justamente por ser um dos aparelhos ideológicos de estado e estar sobre a hegemonia da classe dominante, esse saber é apropriado por ela, colocado a serviço dos seus interesses, legitimado e autenticado cientificamente através do método epistemológico/ gnoseológico e não ontológico, não havendo possibilidade de trabalhar em termos de “conteúdos concretos”, entendido por Saviani como a captura do movimento do real em suas múltiplas relações através da reflexão dialética, da mediação do abstrato, do concreto pensado, pensando por contradição. Afinal, os conflitos, as contradições, para a ciência social positiva são explicados como disfunções e como tais devem ser corrigidas, amenizadas, consertadas. 2 Sendo o método epistemológico/gnosiológico o norteador da elaboração do saber que é produzido empiricamente, socialmente, a passagem do senso comum à consciência filosófica, requisitada por Saviani, fica comprometida, porque pressupõe a ontologia, a historicidade, a totalidade social e a dialética. Um agravante desse quadro conjuntural é a transformação da ideologia das classes dominantes em “senso comum”, demonstrando as contradições implicadas na conjuntura histórico-social complexa desse conceito: a concepção de mundo hegemônica é exatamente aquela que, mercê de sua expressão universalizada e seu alto grau de elaboração, logrou obter o consenso das diferentes camadas que integram a sociedade, vale dizer, logrou converter-se em senso comum. É nesta forma, isto é, de modo difuso, que a concepção dominante (hegemônica) atua sobre a mentalidade popular articulando-a em torno dos interesses dominantes e impedindo ao mesmo tempo a expressão elaborada dos interesses populares, o que concorre para inviabilizar a organização das camadas subalternas enquanto classe. O senso comum é, pois, contraditório, dado que se constitui num amálgama integrado por 2 Ver, SOUZA, Iael de. Da necessidade de uma ciência do social: condições e circunstâncias históricosociais e perspectiva hegemônica de atuação. Picos: PI, 2013. (no prelo) 135 elementos implícitos na prática transformadora do homem de massa e por elementos superficialmente explícitos caracterizados por conceitos herdados da tradição ou veiculados pela concepção hegemônica acolhidos sem crítica. (SAVIANI, 2004, p. 2) De modo que a educação escolar é política, ideológica e hegemonicamente conservadora, e mesmo as tentativas de implementação de uma nova política educacional, através de uma pedagogia e de um método revolucionários, acabam esbarrando nas limitações históricocientífico, político-filosóficas dos profissionais da educação, formados, ao longo do seu processo de escolarização, via de regra, pela perspectiva hegemônica do capital, cujo “pensamento e atuação críticos” não ataca os problemas sócio-produtivos-educacionais em sua raiz, tendo como teto os limites da cidadania; da conquista por “mais” direitos, “mais” igualdade e “mais” liberdade; a participação cidadã e outras correlatas, sem confrontar, visceralmente, o próprio capital e seu sistema metabólico de reprodução social, mantendo as bases da desigualdade social e da sociabilidade capitalista. Se a consciência de classe passa pela questão do domínio do saber, como afirma Saviani (2008, p. 78), isso é extremamente complicado, ainda mais se considerarmos a exposição realizada, em linhas gerais, dos instrumentos lógico-metodológicos sobre os quais se estrutura e é sistematizado esse saber e conhecimento científico, como também o escolar. Mas ainda fica pior, a partir do momento que Saviani afirma que: a passagem do senso comum à consciência filosófica é condição necessária para situar a educação numa perspectiva revolucionária. Com efeito, é esta a única maneira de convertê-la em instrumento que possibilite aos membros das camadas populares a passagem da condição de ‘classe em si’ para a condição de ‘classe para si’. Ora, sem a formação da consciência de classe não existe organização e sem organização não é possível a transformação revolucionária da sociedade. (SAVIANI, 2004, p. 6) E arremata: “O povo precisa da escola para ter acesso ao saber erudito, ao saber sistematizado e, em consequência, para expressar de forma elaborada os conteúdos da cultura popular que correspondem aos seus interesses” (SAVIANI, 2008, p. 80). O problema é que se essa “expressão de forma elaborada dos conteúdos da cultura popular” for realiada através do método científico vigente, embasado na episteme e na gnoseologia e não na ontologia, como deveria ser, a superação da contradição presente na construção do senso comum, cuja tônica é a reprodução da idelogia da classe dominante, tornase inviável. Parece que chegamos a uma encruzilhada e é chegado o momento de tomar uma outra direção, que não diz muito respeito aos instrumentos lógico-metodológicos, mas aos requisitos essenciais para o desenvolvimento de atividades educativas de caráter emancipador. 136 V. Considerações finais: sobre a possibilidade de atividades educativas de caráter emancipador Como vimos, considerando a forma de sociabilidade histórico-social atual, a perspectiva hegemônica é a conservadora, positivista, funcionalista. Porém, seu controle e poder jamais são absolutos, ainda que procure ostentar o contrário. Sempre há brechas, porque a realidade é contraditória, dialética, processual e as escolhas individuais, ainda que relativas e determinadas circunstancialmente, porque condicionadas histórica e socialmente, influenciam nas consequências das ações humanas. Daí a imprevisibilidade do “rio tempestuoso da fortuna”, como dizia Nicolau Maquiavel, e a possibilidade de mudanças radicais e rupturas pela profunda e substancial transformação no curso dos acontecimentos. Tonet nos lembra que as escolhas são fundadas em valores, sejam elas conscientes ou inconscientes e que o fim último que deve guiar o educador em suas ações educativas é, “obviamente, o valor por excelência” (TONE, 2005, p. 230). Contudo, ressalva que “não se trata de quaisquer valores, mas de valores histórica e socialmente fundados, ou seja, valores que tendo a sua base no processo real apontam para uma forma superior de sociabilidade” (TONET, 2005, p. 231). De modo que “não há receituário do que seja a atividade educativa emancipadora, (...) não está pré-estabelecido o que seja uma atividade educativa emancipadora nas suas expressões cotidianas. Tem-se, hoje, apenas parâmetros gerais. De modo que é preciso criar” (TONET, 2005, p. 231). Ainda assim, o que antecede e funda essas ações educativas emancipadoras é a imprescindível clareza da natureza ontológica essencial da educação. Assim, retomando a questáo da cria;áo das atividades educativas emancipadoras, Tonet (2005) afirma que ainda que ela seja subjetiva, é uma subjetividade objetivada, pois parte da necessária e adequada compreensão da objetividade e processualidade histórico-social do real, ou seja, das múltiplas determinações e mediações existentes entre os objetos, que por estarem no mundo com ele se relacionam e são afetados por essas relações – sociais e de produção. Daí decorre o primeiro requisito, segundo o autor, para uma atividade educativa de caráter emancipador, traduzindo o próprio fim maior da educação, ou seja, o conhecimento, o mais profundo e sólido possível da natureza do fim que se pretenda atingir, no caso, a emancipação humana. Se é verdade que o fim qualifica (não justifica) os meios e se é verdade que a educação é uma mediação entre o indivíduo e a sociedade, então não há dúvida de que só se pode saber quais meios são adequados quando se tem clareza acerca do fim a alcançar. (TONET, 2005, p. 226) Por sua vez, pressupõe um posicionamento de mundo em consonância com o lugar ocupado na produção social, e a coragem para assumi-lo e mantê-lo, arcando com as consequências que certamente virão, pois há um preço a pagar ao compreender e denunciar a essência do modo de produção capitalista e do metabolismo do capital, uma luta de classes permanente, encarniçada e virulenta, a travar, a fim de construir as condições que permitirão ir além do capital e da sociabilidade capitalista, superando-os radicalmente. O segundo requisito corresponde “a apropriação do conhecimento a respeito do processo histórico real, em suas dimensões universais e particulares”, uma vez que “quem faz educação, necessita de uma frequência constante e intensa ao saber produzido pelas Ciências Sociais” (TONET, 2005, p. 232), ainda que esse saber também não baste, já que aquelas são produzidas sobre a hegemonia da ciência positivista, e da teoria epistemológica/gnoseológica e não da ontologia que, por sua vez, tem por princípio a totalidade social, inseparável “da afirmação de que o processo de produção material é a matriz ontológica do ser social” (TONET, 2005, p. 137 233). Assim, é necessário “passar a limpo” a produção das Ciências Sociais tendo por base essa matriz. O terceiro “está no conhecimento da natureza essencial do campo específico da educação” (TONET, 2005, p. 233), qual seja, “possibilitar ao indivíduo a apropriação daquelas objetivações que constituem o patrimônio comum da humanidade”, tendo como pressuposto a “luta pelas condições que permitam atingir o mais plenamente possível este objetivo. Dessa forma o indivíduo se constituirá como um ser pertencente ao gênero humano e contribuirá para a reprodução deste” (TONET, 2005, p. 236). O quarto e penúltimo requisito diz respeito “ao domínio dos conteúdos específicos, próprios de cada área do saber” (TONET, 2005, p. 234), articulados com a prática social. É esse domínio do saber, sua difusão e articulação com os problemas sociais vividos pelos homens que faz de um educador um “educador emancipador”, porque além de dominar, difundir e construir um conhecimento mediado pela objetividade do real, todo educador que se posicione numa perspectiva ontológica, também contribui para a formação de outros valores, atitudes, comportamentos, objetivos, enfim, de uma outra paideia. Por fim, o quinto e último requisito das atividades educativas de caráter emancipador está na “articulação da atividade educativa com as lutas desenvolvidas pelas classes subalternas, especialmente com as lutas daqueles que ocupam posições decisivas na estrutura produtiva” (TONET, 2005, p. 235). Cabe ao educador-pesquisador-intelectual, como defende e demonstra Giroux (1997), auxiliar a perspectiva do trabalho e os trabalhadores na captura, aproximação e reflexão da processualidade, objetividade e historicidade do real, já que encontram sérios entraves para avançar nesse árduo e penoso trabalho devido o lugar que ocupam na produção social. Conforme Tonet, O avanço no cumprimento da tarefa mais essencial da educação que, como vimos, é a apropriação daquelas objetivações que constituem o patrimônio comum da humanidade, não depende só e nem principalmente da atividade educativa, mas do progresso na luta, realizada pelo conjunto das classes subalternas, para contrapor-se à hegemonia do capital Ou seja, muitas das condições para a realização da atividade educativa são externas ao campo da própria educação e só podem ser conquistadas com uma luta mais ampla, no entanto a concretização desta articulação é, hoje, uma tarefa extremamente difícil e complexa. (...) A realização desta tarefa essencial é sempre o momento determinante da atividade educativa. Outros momentos – atividades sindicais, lutas econômicas, políticas, etc. – são imprescindíveis e, em certas circunstâncias, poderão até assumir o papel de momento predominante. É preciso ter bem claro, porém, que de modo algum se pode inverter a relação entre esses dois momentos, sob pena de eliminar o caráter emancipador da atividade educativa. (TONET, 2005, p. 236 e 237) Evidencia-se, portanto, que a transformação radical da sociedade não é papel da educação, mas do trabalho na perspectiva da ontologia do ser social, na forma histórico-social do trabalho associado, que não é o foco da análise, embora conectado, através de múltiplas determinações, a ela, mas que exige uma reflexão específica e outras mediações objetivas para 138 ser compreendido, não comportadas aqui. Logo, à educação, em sentido amplo, cabe a contribuição na construção dos meios qualitativamente adequados para a maior aproximação possível do fim, que é a emancipação humana. Isso significa dizer que não são quaisquer meios, como já foi frisado, nem qualquer patrimônio histórico-cultural, mas aquele selecionado através do critério dos valores, conhecimentos, objetivos fundamentais que fundamentam o desenvolvimento, o mais pleno e integral possível, do ser social, numa perspectiva histórica-ontológica. Referências Bibliográficas BACZINSKI, Alexandra V. de M; PITON, Ivania M.; TURMENA, Leandro. Caminhos e descaminhos da prática docente: uma análise da Pedagogia Histórico-Crítica e das diretrizes curriculares do Estado do Paraná. Revista HISTEDBR On-Line, Campinas, n. 31, p. 142-152, set. 2008. GIROUX, Henry A. Os professores como intelectuais: rumo a uma pedagogia crítica da aprendizagem. Trad. Daniel Bueno. Porto Alegre: Artmed, 1997. LAZARINI, Ademir Quintilho. A relação entre capital e educação escolar na obra de Dermeval Saviani. (Tese de Doutorado). Universidade Federal de Santa Catarina. Centro de Ciências da Educação. Programa de Pós-Graduação em Educaçao. Florianópolis, Santa Catarina, 2010. MAGALHÃES, Carlos Henrique Ferreira; SILVA JUNIOR, João dos Reis. Desafios para objetivação da Pedagogia Histórico-Crítica na prática escolar. Linhas Críticas, Brasília, DF, v. 17, n. 32, p. 113-135, jan./abr. 2011. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã: crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stiner, e do socialismo alemão em seus deferentes profetas (18451846). Supervisão editorial, Leandro Konder; tradução, Rubens Enderle, Nélio Schneider, Luciano Cavini Martorano. São Paulo: Boitempo, 2007. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista – incluindo os prefácios às diversas edições do Manifesto e, entre outros anexos, Princípios do Comunismo e Para a História da Liga dos Comunistas, de Engels. Marco Aurélio Nogueira (Organização e Introdução). Trad. Marco Aurélio Nogueira; Leandro Konder. 2ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1989. SAVIANI, Dermeval. Pedagogia HistóricoCrítica – primeiras aproximações. 10 ed. rev. Campinas, SP: Autores Associados, 2008. (Coleção educação contemporânea) _________________. Educação – do senso comum à consciência filosófica. 15ª ed. Campinas; SP: Autores Associados, 2004. (Coleção educação contemporânea) TONET, Ivo. Educação, Cidadania e Emancipação Humana. Ijuí: Ed. Unijuí, 2005. (Coleção fronteiras da educação) 139 Agenda Social VOLUME NÚMERO ISSN 1981-9862 ELETRONIC JOURNAL www.revistaagendasocial.com.br PasseiO de sOMBrinHas: POÉTiCas UrBanas, sUBJeTiVidades COnTeMPOrÂneas e MOdOs de esTar na Cidade. Umbrellas Tour: urban poetics, contemporary subjectivities and ways of being in the city. aZeVedO, Maria Thereza. 1.ProfessoradoDepartamentodeArteseProgramadePósGraduaçãoemEstudosdeCultura Contemporânea-ECCO da Universidade Federal do Mato Grosso UFMT. RESUMO Tomandocomoreferênciaapoéticaurbana Sombras que passeiam, uma ação do Coletivo à deriva, da UFMT ligado ao Grupo de Pesquisa Artes Híbridas Intersecções, contaminações transversalidades, o artigo propõe uma reflexão sobre possíveis processos de subjetivação e singularização engendradas por ações coletivas em territórios inventados por meio da arte. Deleuze e Guattari apoiam a discussão. PaLaVras-CHaVe CIDADE; POéTICAS URBANAS; SOMBRAS QUE PASSEIAM; COLETIVO À DERIVA. 140 7 2 aBsTraCT Referring to urban intervention Sombras que passeiam a action occurred at UFMT by Coletivo à deriva on the Research Group Arts hybrid crosses transversalities, contamination, the article proposes a reflection on the possible processes of subjectivity and singularity generated by actions collective territories invented through art. Deleuze and Guattari support the discussion. KEY-WORdS CITY; POETIC URBAN; WALKING SHADOWS; SUBJECTIVITIES. A cidade enquanto um sistema complexo regulado pela produção, pelas relações formalizadas de trabalho e de família, pelos valores de consumo impulsionados pelas mídias, pelas burocracias que às vezes impedem o fluxo das coisas, cria um universo de sociabilidades obrigatórias, cheia de funções, horários e distribuição de tarefas, de regras inventadas para controlar-nos uns aos outros. Isso fortalece em nós uma subjetividade capitalística. As subjetividades para Guattari (2008) são engendradas pelas determinações políticas, éticas, econômicas, tecnológicas, culturais, sociais, pela mídia, pelas instituições. É no conjunto de todos estes subjetivadores misturados e vivenciados que a nossa subjetividade é constituída como um jogo em movimento que lida com uma multiplicidade de instâncias e relações de saber e de poder. Guattari observa que: O que caracteriza os modos de produção capitalísticos é que eles não funcionam unicamente no registro dos valores de troca, valores que são de ordem do capital, das semióticas monetárias ou dos modos de financiamento. Eles funcionam também através de um modo de controle da subjetivação... (GUATTARI, 2008, p.16). Costa e Magalhães afirmam que “o processo de subjetivação capitalístico efetiva-se, na medida em que o projeto social dominante se apropria e controla os meios de vida, se estabelecendo, se rotinizando”. Para elas isso apoia na fabricação de subjetividades serializadas. E Peter Pal Pelbart diz “a depreciação da vida atinge um grau extremo: esvaziada de suas determinações qualitativas, ela se oferece como matéria bruta para a infinita manipulação calculadora.” Desta forma, ações artísticas na cidade surgem como possibilidades de engendramento de devires singularizadores que nos aproximam da vida. Sombras que passeiam: desvios de rota. Desviar das rotas conhecidas e sedimentadas como mapas fixos da cidade pode subverter a geografia calculada e funcionar como um processo de desterritorialização, ou como linha de fuga na tentativa de ensaiar devires e desabrochar potencias criativas de singularização na relação com a cidade. Um exercício de reconfiguração dos modos de estar na cidade, na contramão desta subjetividade capitalística. Assim, uma das quatro propostas para intervenção urbana do projeto de pesquisa em interface com a extensão: Intervenções artísticas no espaço da Universidade: Ação, reflexão, diálogo e ressignificação desenvolvido na Universidade Federal de Mato Grosso, com o apoio da FAPEMAT, foi um passeio de sombrinhas pelo campus Cuiabá da UFMT. A proposição decorreu de uma conversa com um grupo de alunos para observação da maneira como viam o espaço do campus Cuiabá da UFMT. Uma aluna do grupo observado disse que para caminhar pelo campus era preciso correr de uma arvore para outra, mencionando certo trajeto demarcado pelas arvores do 141 142 caminho. Assim, imaginei que seria interessante se existissem sombras móveis que protegessem as pessoas do sol e as acompanhassem até o seu destino. Daí surgiu a ação sombras que passeiam, um passeio de sombrinhas pelo campus, criando desvios nas costumeiras rotas. É bom lembrar que a cidade de Cuiabá tem uma temperatura bastante elevada e o clima é muito seco. Muitas vezes é superior a 40 graus e a umidade do ar chega a 12 por cento. Cuiabá já foi chamada “cidade verde” devido ao grande número de arvores principalmente as frondosas mangueiras dos quintais das casas de seus habitantes. Hoje o número de arvores caiu vertiginosamente, por causa das construções, sacrificando o clima da cidade e interferindo nos modos de vida da população, que não anda mais a pé pelas ruas. É de carro e com frequentes idas aos shoppings por causa do ar condicionado. Para o passeio de sombrinhas pelo campus trinta e seis pessoas entre alunos, professores, técnicos e moradores do bairro vizinho da universidade participaram da experiência coletiva que consistiu num simples caminhar juntos de sombrinhas coloridas, pegando atalhos. Neste perambular, surgiram conversas fugazes, comentários sobre folhas caídas no chão, gatos que povoam o campus, passarinhos que piam mais alto do que os outros. No desvio do caminho principal, que é o caminho determinado pelos muitos carros que passam velozes com uma só pessoa, sem olhar para os lados, paramos para observação dos movimentos cotidianos, às vezes, braços dados debaixo da mesma sombrinha. Este andar por aí sem roteiro fixo, pode lembrar a flânerie de Baudelaire, a figura do vagabundo observador, perambulador. O flâneur circulava sem destino pelas ruas de Paris deixando-se encantar com tudo que a compunha, como se a cidade fosse um filme ou uma exposição de arte que instigasse sua curiosidade e proporcionasse certo êxtase estético. Envolver-se numa flânerie é envolver-se com a deriva, com o desvio. Mas a ação de passear com as sombrinhas pode também lembrar as psicogeografias dos situacionistas que construíam mapas afetivos a partir das derivas e da criação de situações. A Internacional Situacionista (IS) considerada por Mario Perniola como a última vanguarda do século XX foi um movimento de intelectuais e artistas europeus que se constituiu em torno de uma crítica radical ao urbanismo e à cidade contemporânea – transformada em espetáculo e à passividade dos citadinos reduzidos à condição de espectadores. Os situacionistas faziam uma reivindicação de transformação no cotidiano urbano através da participação e intervenção de seus habitantes. Estas práticas tinham como princípio uma apropriação do espaço que ultrapassava a lógica da definição de funções. Para os situacionistas, era preciso explorar o espaço e suas possibilidades contrapondo-se à passividade diante dos usos pré-definidos, decorrentes da estruturação das cidades. Henri Lefébvre, pensador do fenômeno urbano, que foi ligado ao grupo até o início dos anos 60, ressalta a possibilidade de criar situações como uma experiência que é capaz de revelar a cidade. A cidade dos homens lentos Milton Santos comenta em A natureza do espaço (1996 pag. 260) que “durante séculos acreditávamos que os homens mais velozes detinham a inteligência do mundo. (...) Agora estamos descobrindo que, nas cidades, o tempo que comanda ou vai comandar, é o tempo dos homens lentos.” Os homens lentos de Santos são aqueles que estão à margem e não participam da correria urbana em busca de “não sei que”, não estão inseridos no mundo dos acelerados do trabalho, dos motorizados das ruas, dos que produzem muito e dos que querem vender mais. Estes deixam marcas das relações de poder nos espaços, marcas que podem ser lidas através das práticas pactuadas com o que é permitido e o que é aprovado. Os homens lentos têm outra maneira de se apropriar da cidade, subvertem o modo permitido e o tempo acelerado a partir das práticas de desvio. As experiências com intervenções urbanas aqui chamadas de poéticas urbanas realizadas neste projeto são exercícios de homens lentos, como em Sombras que passeiam em que flanamos de sombrinhas 1coloridas pelo campus da universidade sem roteiro fixo e por caminhos não traçados, o que nos possibilitou experimentar e descobrir outro espaço e outro tempo diverso daquele que convivemos no cotidiano. Foucault observa que: Estamos na época do simultâneo, estamos na época da justaposição, do próximo e do longínquo, do lado a lado, do disperso. Estamos numa época em que o mundo se experimenta, acredito menos como uma grande via que se desenvolveria através dos tempos do que como uma rede que religa pontos e que entrecruza sua trama. (FOUCAULT, 2006, p. 411) A cidade, desta maneira, pode ser percebida por meio dessas lógicas de justaposição, do próximo e do longínquo, do lado-a-lado e do disperso, pois é composta de várias camadas de tempo e camadas de espaço, de utopias e heterotopias. Para Foucault, (2006, p. 413) as utopias são os posicionamentos sem lugar real e as heterotopias são lugares reais, variadas formas de posicionamento que ele os distingue por princípios. Um dos princípios da heterotopia é o poder de justapor em um só lugar real, vários espaços, vários posicionamentos que são em si incompatíveis. O ralentamento dos movimentos de algumas das ações pode levar à percepção dessas camadas, dessas justaposições, de outros tempos e lugares possíveis. Na intervenção Lual no Bosque, por exemplo, um grupo de quase sessenta pessoas se juntou no bosque do campus, que de dia, é um belo lugar de passagem, com sombra e luz filtrada pelas árvores, mas à noite, um escuro e perigoso espaço para quem o atravessa. Inventamos, então, um encontro com lanternas, à noite, ao som de um concerto de percussão com música de câmara. Foi criado um cenário para este encontro que vislumbrou outras possibilidades para este espaço. Corpografias urbanas A experiência de caminhar juntos pelo campus com sombrinhas coloridas pode estar sintonizada também com o conceito de corpografias urbanas trabalhado 143 por Paola Berenstein Jacques. Para Jacques, uma corpografia urbana é um tipo de cartografia realizada pelo e no corpo, ou seja, a memória urbana inscrita no corpo, o registro de sua experiência na cidade, uma espécie de grafia urbana, da própria cidade vivida, que fica inscrita mas também configura o corpo de quem a experimenta. (JACQUES, 2008) Ela entende que um estudo das relações entre corpo e cidade pode mostrar caminhos alternativos, desvios, linhas de fuga, micropolíticas. Para Felix Guattari é indispensável o trabalho coletivo dentro do que ele chama de “ecosofia” que é a junção das três ecologias, a social, ambiental e a subjetividade humana: “Parece-me essencial que se organizem assim novas práticas micropoliticas e microssociais, novas solidarieda-des, uma nova suavidade juntamente com novas praticas estéticas.” (GUATTARI, 1992, p. 35) Assim, essas poéticas urbanas estariam dentro desta proposta de ecologia de que fala Guattari, pois é uma prática artística colaborativa e está entre as novas formas criativas de participação social. A intervenção urbana, como situação criada na cidade por coletivos artísticos, interrompe o fluxo da padronização e do estigma, propõe outra forma de olhar e pensar sobre os espaços urbanos; instiga a participação, potencializa a criatividade dos sujeitos envolvidos no processo. Guattari observa que “a organização material das cidades, os personagens do espaço urbano são máquinas enunciadoras. Geram um discurso que nos atravessa, manipulam em nós impulsos cognitivos e afetivos, produzindo, portanto, subjetividades”. ( GUATTARI, 1992) Cidade, multiplicidades A cidade aqui é vista como um espaço multíplice, onde se embatem as diferenças, lugar dos encontros e desencontros, constroem-se histórias, numa rede de memórias e significações e lugar de experimentação da alteridade no interior do qual novas subjetividades podem ser geradas. A multiplicidade é definida por Italo Calvino, como “método de conhecimento e principalmente como rede de conexões entre os fatos, entre as pessoas e entre as coisas do mundo.” ( CALVINO, 1990 p. 121) São muitas as experiências de intervenções urbanas realizadas no tempo presente que se proliferam de várias formas e em várias circunstâncias e possibilitam a intersecção entre artes e o exercício da interdisciplinaridade que supõe o exercício da intersubjetividade. Coletivos organizados no mundo inteiro se articulam através da intervenção urbana: flashs mobs1, mp3, da performance, na construção plástica, os stensils, o grafitti, cultura jamming, a mídia tática, mídia radical, e ações táticas. São estratégias de visibilidade silenciosa ou barulhenta de apropriação das cidades entupidas de carros que se deslocam a 100 por hora carregando uma só pessoa. Se Michel de Certeau afirma que o espaço é um lugar 144 1 Os flash Mobs são aglomerações instantâneas de pessoas em um local público, para realizar determinada ação inusitada, previamente combinada, após o que, as pessoas se dispersam tão rapidamente quanto se reuniram. A expressão geralmente se aplica a reuniões organizadas através de e-mails ou dos meios de comunicação social praticado,( 1996, p. 202) ao caminhar pelo campus da universidade de sombrinhas talvez estivéssemos praticando o lugar, uma forma de explorar o cotidiano da universidade e construir um conhecimento crítico sobre os usos do espaço urbanos. Em Sombras que passeiam estávamos praticando um lugar. Estes desvios provocados pelas intervenções são como linhas de fuga. Se a cidade é um sistema em mutação com várias camadas de tempo e de espaço: “Conhecer a cidade significa, pois, acessar o emaranhado de relações que a constitui. Tais relações conectam visibilidades, enunciações, linhas de força e linhas de fuga”. (ALZAMORA, Geane, ALENCAR Renata 2009) Devemos inventar nossas próprias linhas de fuga. Mesmo que para alguns indivíduos ou grupos nunca seja possível construí-las. Outros já as perderam. As linhas de fuga são uma questão de cartografia. Elas nos compõem, assim como compõem nosso mapa. Elas se transformam e podem mesmo penetrar uma na outra. (DELEUZE, GUATTARI, 2008). Intervenção urbana, poéticas urbanas Estas práticas coletivas de intervenção urbana interrompem o fluxo da padronização e do estigma, propõe outra forma de olhar e pensar sobre os espaços urbanos; instiga a participação e a convivência. Com esta compreensão é possível perceber interconexões entre a cidade e as práticas artísticas heterogêneas formuladas dentro dos princípios da complexidade e da multiplicidade. As situações criadas como intervenções estão no âmbito das experiências com práticas artísticas contemporâneas, que inclui artistas e não artistas e buscam por meio de processos colaborativos, também o exercício do estar junto. Para Deleuze: “Os processos são os devires, e estes não se julgam pelo resultado que os findaria, mas pela qualidade de seus cursos e pela potência de sua continuação”. (1992, p.183) É na força das intersecções entre várias artes: cênicas, artes do corpo, visuais, plásticas, performances, música, entre outras, que esses coletivos se apropriam da cidade e compartilham sensibilidades. Essas propostas de relações com a cidade por meio de intervenções artísticas aproximam-se do pensamento de Helio Oiticica o “deslanchador de invenções” na busca de conjugar arte e vida, pois seus processos têm como fundamento a concepção da Arte como experiência e a cidade como o lugar por excelência para os experimentos, que estimulam a apropriação crítica e inventiva destes tempos e espaços. Suely Rolnik observa que: Todo ambiente sócio-cultural é feito de um conjunto dinâmico de universos. Tais universos afetam as subjetividades, traduzindo-se como sensações que mobilizam um investimento de desejo em diferentes graus de intensidade. Relações se estabelecem entre as várias sensações que vibram na subjetividade a cada momento, formando constelações de forças cambiantes. (ROLNIK, 1999) 145 Se para Duchamp: “A arte é um caminho que leva para regiões que o tempo e o espaço não regem” (apud GUATTARI, 1992 p. 129), essas vivências em coletivos propiciam outras formas de relação com o tempo e com o espaço que não as obrigatórias e estandardizadas e estão no foco da arte relacional, uma arte que toma como horizonte teórico a esfera das interações humanas e seu contexto social, “mais que a afirmação de um espaço simbólico autônomo e privado- dá conta de uma mudança radical dos objetivos culturais e estéticos culturais e políticos postos em jogo pela arte moderna.” ( BORRIAUD, 2008, p. 13) A arte relacional é “Uma forma de arte que parte da intersubjetividade e tem como tema central o estar junto.” (BORRIAUD 2008 p. 14) Poderíamos dizer que essas intervenções de certa forma são artes relacionais, pois criam espaços livres, durações cujo ritmo se opõe a vida cotidiana, favorecem o intercâmbio humano diferente das zonas de comunicação impostas. (BOURRIAUD, 2008 p. 16) Neste projeto, a cidade é compreendida como uma rede, uma grande malha hipertextual, lugar do acontecimento e da experiência coletiva, espaço em movimento, mutante, que se configura e reconfigura de acordo com as ações dos sujeitos que nela habitam. Se “a cidade produz o destino da humanidade” com afirma Guattari (1992, p. 173), no caso da intervenção aqui apontada, os entrelaçamentos e as situações inusitadas provocadas pela ação de flanar de sombrinhas, podem tornar possível novas formas de apropriação da cidade e engendramento de novas singularidades. Referências bibliográficas. ALZAMORA, Geane, ALENCAR Flashmob: reflexões preliminares sobre uma experiência em rede http://www.cult.ufba.br/ enecult2009/19558-1.pdf BOURRIAUD, Nicolas La estética relacional Buenos Aires: Editora Adriana Hidalgo 2008. CALVINO, Italo. Seis Propostas para o próximo milênio. Trad: Ivo Barroso, São Paulo: Companhia das Letras,1990 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. 1. 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Editora Praxis,Marília,2010.Autordolivro“OnovoperfilmetalúrgicodoABC”.EditoraFecilcam,Campo Mourão,2012.([email protected]). RESUMO aBsTraCT Neste artigo discutiremos o complexo processo de reestruturação produtiva desencadeado na região do ABC paulista a partir de 1992. Relacionaremos a emergência do novo perfil operário e a reconfiguração dos espaços/territórios como um duplo movimento inerente ao metabolismo de produção e reprodução social do capitalismo contemporâneo, processos que combinados encontramse indelevelmente na base da construção identitária desse novo segmento operário. In this article we will discuss the complex restructuring process triggered in the ABC region of São Paulo from 1992. Will relate the emergence profile of the new worker and the reconfiguration of spaces / territories as a double movement inherent in the metabolism of social production and reproduction of contemporaneous capitalism, processes which combined are indelibly on the basis of identity construction of this new worker segment. PaLaVras-CHaVe REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA; JUVENTUDE; ESPAÇO/TERRITÓRIO; SOCIABILIDADE 148 KEY-WORdS PRODUCTIVE REESTRUTURING; YOUTH; SPACE/TERRITORY; SOCIABILITY. identity construction of this new worker segment. Key Words: productive restructuring, youth, space/territory, sociability. 1. Reestruturação produtiva no ABC e “metrópole contemporânea” Anthony Giddens (1991), em “As conseqüências da modernidade” (1991), pontua que o conteúdo sócio-histórico moderno é marcado por descontinuidades, por rupturas substantivas capazes de separar as civilizações modernas das ordens sociais tradicionais, pois a essência da modernidade estaria relacionada ao: A-) ritmo de mudança nítido, que a era da modernidade põe em movimento [...] a rapidez da mudança em condições de modernidade é extrema. Se isso é mais óbvio no que toca à tecnologia, permeia também todas as outras esferas; B-) Conforme diferentes áreas do globo são postas em interconexão, ondas de transformações sociais penetram virtualmente toda a superfície da terra; 1 Doutor em C-) Sociologia Faculdade Ciências simplesmente e Letras - Unesp/Araraquara. Professor em do algumaspela formas sociaisdemodernas não serem encontradas Colegiado de História da Universidade Estadual do Paraná/Paranavaí. Coordenador do Curso de períodos históricos precedentes, tais como o sistema político do EstadoEspecialização em Ciências Humanas - CEICH. Membro da Comissão Executiva da Rede de Nação, a dependência por atacado da produção de fontes de energia Estudos do Trabalho - RET e Co-organizador do livro "Trabalho, Educação e Sociabilidade". Editora inanimadas, ou a completa transformação em mercadorias de produtos e Praxis, Marília, 2010. Autor do livro “O novo perfil metalúrgico do ABC”. Editora Fecilcam, Campo Mourão, 2012. trabalho assalariado. Os avanços no campo da ciência, particularmente àquelas relacionadas às novas tecnologias de base mecânico/informática, além de proporcionar maior competitividade aos setores produtivos e de serviços, sua disseminação por todos os cantos do planeta contribuiu para superação das arcaicas formas de vida política, econômica e social baseada em tradicionalismos que vão sendo celeremente superados pela lógica societária capitalista. É essa permanente e contraditória dinâmica social moderna que confere significado a afirmação de que “tudo que era sólido e estável se esfuma, tudo o que era sagrado é profanado”. A emergência do jovem-adulto flexível2 do ABC paulista, relaciona-se neste caso, justamente a esse processo histórico, considerando-se evidentemente o contexto e os traços que definem nossa contemporaneidade. Na esteira desse processo, ao defender a centralidade do trabalho enquanto categoria ontológica, Ricardo Antunes (1997) indicou que as metamorfoses sofridas pela classe operária era a causa fundamental da sua fragmentação, a (des) reconstrução da sua forma “símbolo” tal qual a conhecíamos quando do período de hegemonia da clássica indústria taylorista/fordista, e da consequente fragilização em organizar e desenvolver ações coletivas, tal qual se caracterizam os movimentos de massas na Europa do pós-guerra, ou no Brasil, em fins da década de 1970. Por outro lado, o autor enfatizou que o processo de desproletarização do trabalho industrial, atestado pela contração numérica do operário fabril fordista, não significou a superação do proletariado enquanto fonte insubstituível à criação do valor, mas que a expansão do trabalho assalariado precário, parcial, temporário, terceirizado; enfim, a subproletarização, reconstituiu em novas bases a criação do sobretrabalho conforme se verifica no expressivo contingente de operários “expulsos” do território fabril, processo intensificado com a disseminação do complexo da reestruturação produtiva que concebido por Taiichi Ohno (1997), implicava na incorporação seletiva de novas técnica/tecnologias, um novo layout para a produção que passou a ser organizada na forma de “U”, uma nova concepção 2 Trata-se de um novo segmento metalúrgico que emergiu do processo de reestruturação produtiva verificado nas montadoras da região do ABC paulista entre os anos de 1992 e 2010. O operário jovem-adulto flexível corresponde à parcela de “colaboradores” que, situados entre 15 e 35 anos de idade, podem ser considerados legítimos filhos da re-estruturação produtiva. Se por um lado tem a escolarização, a qualificação profissional e a condição salarial situada bem acima da média nacional, 149 transformações sociais penetram virtualmente toda a superfície da terra; C-) algumas formas sociais modernas simplesmente não serem encontradas em para a gestão deperíodos pessoal históricos que procurou combinar e coerção, além da precedentes, taisconsentimento como o sistema político do Estadocriação e expansão de inúmeras empresas terceirizadas cuja conexão em rede Nação, a dependência por atacado da produção de fontes de energia possibilitou o fluxo rápido e impiedosa inanimadas, oudeprocurou a informação completacombinar transformação em subordinação mercadorias dedessas produtos para a gestão de pessoal que consentimento e coerção, alémàsdae indústrias monopolistas ligadas ao setor montador. trabalho assalariado. criação e expansão de inúmeras empresas terceirizadas cuja conexão em rede Poroconta processo, a região do paulista vivenciou profundas possibilitou fluxodesse rápido de informação e ABC impiedosa subordinação dessas às transformações econômicas, sociais e políticas na medida em que havia se indústrias monopolistas ligadas ao setor montador. Os avanços no campo da ciência, particularmente àquelas relacionadas consolidado Por enquanto berço processo, da primeira “geração” das paulista indústrias automobilísticas conta desse a região do ABC profundas às novas tecnologias de base mecânico/informática, além de vivenciou proporcionar maior instaladas no Brasil a partir do período JK. Decorrente desse “modelo” dese transformações econômicas, sociais e políticas na medida em que havia competitividade aos setores produtivos e de serviços, sua disseminação por todos os desenvolvimento se ergueu uma determinada forma de ocupação espacial urbana consolidado enquanto berço da primeira “geração” das indústrias automobilísticas cantos do planeta contribuiu para superação das arcaicas formas de vida política, caoticamente centrada necessidades da indústria o que converteu ade instaladas Brasil nas a partir do período JK. monopolista, Decorrente econômica no e social baseada em tradicionalismos que vão desse sendo “modelo” celeremente região no locus, no espaço privilegiado de reprodução da vida social um desenvolvimento se ergueu umacapitalista. determinada forma de ocupação espacialdeurbana superados pela lógica societária expressivo segmento do nas proletariado brasileiro. caoticamente centrada necessidades da indústria monopolista, o que converteu a É essa permanente e contraditória dinâmicaeconômica social moderna que confere Foi, portanto, no contexto da de abertura além região no locus, no espaço privilegiado reprodução da vidaque, social de do um significado a afirmação de que “tudo que era sólido e estável se esfuma, tudo que fechamento Ford motores (1991), obrasileiro. ABC assistia um processo de demissãooem expressivo da segmento do proletariado 2 era sagrado é profanado”. A montadoras emergência do jovem-adulto flexível do ABC massa no setor. conjuntonodas demitidos mais de cinco Foi, No portanto, contexto da foram abertura econômica que, alémmildo paulista, relaciona-se neste caso, justamente a esse processo histórico, trabalhadores: 57.939 operários no oano de assistia 1990, houve uma diminuição para fechamento dadeFord motores (1991), ABC um processo de demissão em considerando-se evidentemente o contexto e os traçosnaque definem nossa 52.959 em 1992. Tal redução refletiu-se imediatamente cadeia produtiva, massa no setor. No conjunto das montadoras foram demitidos mais de cinco mil contemporaneidade. desencadeando de operários 46.564 novas demissões entre os metalúrgicos do ABC trabalhadores: um de total 57.939 no ano de 1990, houve uma diminuição para (Dieese subseção ABC, 2000). Em 1987, o Brasil havia exportado 346 mil veículos, esteira processo, ao defender a centralidade trabalho 52.959 emNa1992. Tal desse redução refletiu-se imediatamente na cadeiadoprodutiva, e desencadeando em 1991 esse volume despencou para 193 demissões mil (Anfavea,1995:22). enquanto categoria ontológica, Ricardo Antunes indicou do queABC as um total de 46.564 novas entre(1997) os metalúrgicos As formas desertificação fabril ou desindustrialização regional metamorfoses sofridas pela classe operária erahavia a causa fundamental da já sua (Dieese subseção ABC,de2000). Em 1987, o Brasil exportado 346 mil veículos, haviam sido esse verificadas em cidadespara importantes como Detroittale qual Michigan, regiões avolume (des) reconstrução da sua “símbolo” a conhecíamos efragmentação, em 1991 despencou 193forma mil (Anfavea,1995:22). consideradas berço dade indústria automobilística Estadostaylorista/fordista, Unidos da regional América. quando do As período da clássica indústria e da formas dehegemonia desertificação fabril nos ou desindustrialização já Erguidas como símbolo de sucesso da indústria fordista Ford e General consequente fragilizaçãoem emcidades organizar e desenvolver talMotors qual se haviam sido verificadas importantes como ações Detroitcoletivas, e Michigan, regiões respectivamente-, a partir de de 1990, sofreram contundente processo de retração caracterizam os movimentos massas na Europa do Estados pós-guerra, ou no em consideradas berço da indústria automobilística nos Unidos daBrasil, América. econômica, desemprego em massa e o correlato empobrecimento daquela fins da década 1970. de sucesso da indústria fordista - Ford Erguidas comodesímbolo e General Motors 3 população, esse passou a1990, assombrar aque região do ABCde .processo Porfantasma outro lado, ode autor enfatizou o processo desproletarização do respectivamente-, a partir sofreram contundente de retração Uma das características da barbárie social contemporânea conforme trabalho industrial, atestadoem pelamassa contração do operário fabril fordista, não econômica, desemprego e numérica o correlato empobrecimento daquela 3 analisou Viviane Forrester (1997) ao fonte impacto social pelodo significou aesse superação dopassou proletariado enquanto à criação população, fantasma a relaciona-se assombrar a região do insubstituível ABC . provocado desemprego, dinâmica acelerada odafechamento de precário, antigas plantas consideradas valor, mas Uma que adas expansão docom trabalho assalariado parcial, temporário, características barbárie social contemporânea conforme pouco competitivas à luz da nova concorrência global. De acordo com a autora, ado terceirizado; enfim, a subproletarização, reconstituiu em novas bases a criação analisou Viviane Forrester (1997) relaciona-se ao impacto social provocado pelo desocupação permanente combinada à falta de perspectiva e ausências de projetos sobretrabalho conforme se verifica expressivo contingente operários desemprego, dinâmica acelerada com o no fechamento de antigas plantas de consideradas para o futuro, reverbera de forma contundente no contingente mais jovem dadoa “expulsos” do território fabril, processo intensificado com a disseminação pouco competitivas à luz da nova concorrência global. De acordo com a autora, população. fenômeno produz perdas não no plano por material, masOhno na complexo Tal dapermanente reestruturação produtiva que só concebido (1997), desocupação combinada à falta de perspectiva e Taiichi ausências de própria projetos subjetividade desse segmento, considerando a desorientação provocada peloda implicava na incorporação novas técnica/tecnologias, layout para o futuro, reverbera deseletiva forma de contundente no contingente um maisnovo jovem sentimento deTal serfenômeno “descartável”, o “não sujeito” sem nesse mundo. para a produção que passouproduz a ser organizada forma de “U”, uma nova população. perdas nãona só noespaço plano material, mas concepção na própria Contudo, a partir do governo Lula (2002), o sindicalismo de São subjetividade desse segmento, considerando a desorientação provocada pelo 2 Bernardo do Campo passou a influenciar de forma propositiva nas negociações entre Trata-se de um novo segmento metalúrgico que emergiu do processo de reestruturação produtiva sentimento de ser “descartável”, o “não sujeito” sem espaço nesse mundo. capital e nas Estado, permitindo minorar os Lula efeitos provocados pela verificado montadoras regiãodo do ABC paulista entre(2002), osdeletérios anos o de sindicalismo 1992 e 2010. O de operário Contudo, a dapartir governo São jovem-adulto flexível corresponde àmontadoras parcela de “colaboradores” que, situados entre 15 e 35 anos de reestruturação produtiva. Nas houveram demissões negociadas através Bernardo doser Campo passoulegítimos a influenciar dere-estruturação forma propositiva nas negociações entre idade, podem considerados filhos produtiva. Sepaulatinamente por um lado tem a dos Planos de Demissões Voluntárias e a da velha guarda metalúrgica capital e Estado, permitindo minorar os efeitos deletérios provocados pela escolarização, a qualificação profissional e a condição salarial situada bem acima da média nacional, foi perdendo terreno para o segmento metalúrgico jovem adulto-flexível. Através dedas reestruturação Nasa montadoras negociadas através por outro, são os produtiva. que têm sofrido intensidade do houveram processo de demissões emulação advinda da aplicação novos investimentos públicos para aoperária produção e setor serviços do ABCde estratégias de de captura da subjetividade meio de de novas formas aderegião gestão/coerção dos Planos Demissões Voluntárias e a por velha guarda metalúrgica paulatinamente 3 pessoal, processo revelador forma de ser “pedagógica” novo metabolismo produtivofoi perdendo terreno paradaonova segmento metalúrgico jovemdoadulto-flexível. Através de social do capital na época do trabalho flexível. Neste artigo, utilizaremos trechos dos depoimentos novos investimentos públicos para a produção e setor de serviços a região do ABC coletados numa importante fábrica produtora de ônibus e caminhões situada na cidade de São ÉBernardo instigantedooCampo. documentário de Michel Moore, intitulado Roger e EU (Roger and me, EUA-1989). Roger Smith, presidente da Companhia General Motors, levou a cabo o fechamento da fábrica no1 localizada na cidade de Flint – Estado de Michigan. Foram demitidos mais de 40 mil operários e a 3 É instigante o documentário de Michel intitulado Roger Sua e EUrede (Roger and me, EUA-1989). cidade entrou em colapso, mergulhou numMoore, profundo caos social. de comércio e serviços Roger Smith, presidente da Companhia General Motors, levou a cabo o fechamento da fábrica no1 sofreu falência, contribuindo para o aumento das taxas de alcoolismo, suicídio, violência urbana, localizada na cidade de Flint – Estadocrise de Michigan. Forametc.. demitidos mais de 40 mil operários e a ações de despejos de antigos operários, na saúde pública cidade entrou em colapso, mergulhou num profundo caos social. Sua rede de comércio e serviços sofreu falência, contribuindo para o aumento das taxas de alcoolismo, suicídio, violência urbana, ações de despejos de antigos operários, crise na saúde pública etc.. 150 população. Tal fenômeno produz perdas não só no plano material, mas na própria subjetividade desse segmento, considerando a desorientação provocada pelo sentimento de ser “descartável”, o “não sujeito” sem espaço nesse mundo. Contudo, a partir do governo Lula (2002), o sindicalismo de São Bernardo do Campo passou a influenciar de forma propositiva nas negociações entre capital e Estado, permitindo minorar os efeitos deletérios provocados pela reestruturação produtiva. Nas montadoras houveram demissões negociadas através dos Planos de Demissões Voluntárias e a velha guarda metalúrgica paulatinamente foi perdendo terreno para o segmento metalúrgico jovem adulto-flexível. Através de novos investimentos públicos para a produção e setor de serviços a região do ABC paulista conheceu entre, os anos de 1992 e 2010, profundas transformações no seu espaço urbano. Decorrente dessa modernização, além de novas e amplas avenidas a 3 É instigante o documentário Michel Moore, intitulado Roger EU (Roger and me, EUA-1989). região passou a contar decom uma notável rede de e shopping centers e quatro Roger Smith, presidente da Companhia General Motors, levou a cabo o fechamento da fábrica no1 destacadas universidades, entre as quais, três são públicas: USCS - Universidade localizada na cidade de Flint – Estado de Michigan. Foram demitidos mais de 40 mil operários e a Municipal Caetano do num Sul, profundo Uni-ABC Federal doe Grande cidade entrou de em São colapso, mergulhou caos(Universidade social. Sua rede de comércio serviços ABC), FSA (Fundação Sto André) e FEI (Faculdade de Engenharia Industrial). Esta sofreu falência, contribuindo para o aumento das taxas de alcoolismo, suicídio, violência urbana, última, mesmo de que particular, goza prestigio ações de despejos antigos operários, crisede naenorme saúde pública etc.. em face do reconhecimento dos cursos oferecidos nas diferentes áreas das engenharias. Do mesmo modo, a região passou a contar com inúmeras escolas técnicas públicas e privadas, cursos oferecidos pelo Sistema “S” (Senai, Senac, Sesi) e uma rede extraordinária formada por escolas de informática ou línguas estrangeiras frequentadas por um número expressivo de jovens operários. Refletindo esse processo de reconfiguração do espaço urbano, particularmente da expansão do setor de serviços, é revelador o novo perfil social dos habitantes encontrados na região ABC. De acordo com o levantamento feitor por Iram Rodrigues (2005): “O Grande ABC é uma das regiões mais ricas do país. Sua renda per capita, medida em dólar, era de 13.054 em 2000. Apenas para efeito de comparação, a renda per capita brasileira é de 3.620 dólares, ao passo que no estado de São Paulo ela é de aproximadamente 6 mil dólares e na região da Grande São Paulo, de cerca de 6.400 dólares; a renda per capita na região do ABC é maior que a da Espanha (12.209) e um pouco inferior à do Reino Unido (14.170). Além disso, o Produto Interno Bruto dos municípios que compõem o Grande ABC é superior ao PIB individual de dezenove estados da federação” (Iram Rodrigues, 2005:4). Como parte desse movimento contraditório, na esteira do processo de reestruturação produtiva, os espaços das cidades da região do ABC sofreram relevantes transformações enquanto lugares, ambientes de (re) produção e vivência cotidiana. Considerado como sendo o território de existência do jovem metalúrgico, mais ainda, refletindo as peculiaridades que norteiam o seu modo de vida contemporâneo, o redimensionamento e a resignificação dos espaços ganha destaque na análise desenvolvida por Fani Alessandri Carlos (2001) ao afirmar que: “[...] os diversos elementos que compõem a existência comum dos homens inscrevem-se em um espaço; deixam suas marcas. Lugar onde se manifesta a vida, o espaço é condição, meio e produto da realização da sociedade humana em toda a sua multiplicidade. Reproduzido ao longo de um processo histórico ininterrupto de constituição da humanidade do homem, este é também o plano da reprodução. Ao produzir sua existência, a sociedade reproduz, continuamente, o espaço. Se de um lado o espaço é um conceito abstrato, de outro tem uma dimensão real e concreta como lugar de realização da vida humana, que ocorre diferentemente no tempo e no lugar e que ganha 151 materialidade por meio do território” (Fani Carlos, 2001:11)4. Tratou-se inicialmente de um intenso processo de transformações internas do espaço fabril e do seu entorno, mas que gradativamente remodelou as próprias paisagens urbanas das cidades sede dessas indústrias. Um processo intensamente vivenciado nos países capitalistas centrais, em fins da década de 1970, e cujos ventos passaram a soprar no Brasil dos anos 1990 quando da adoção de políticas fiscais promotoras de uma maior abertura da economia brasileira em direção do mercado internacional, tal qual se caracterizaram os governos Collor de Melo e Fernando Henrique Cardoso. Fani Carlos (2001), ao debruçar-se sobre as novas dimensões, redesenhos e ocupações do espaço urbano contemporâneo, fornece-nos algumas das pistas, dos traços que, relevantes, são cruciais ao entendimento dessa nova dinâmica social/produtiva/geo-espacial aqui indicada, dessa lógica expansiva de reocupação e ampliação dos espaços pelo capital. Ao analisar as transformações recentes das cidades, das mudanças nos espaços urbanos consolidados quando da expansão da grande indústria taylorista/fordista, temos a indicação de que tal processo acompanha o movimento de acumulação e condiz com as novas necessidades dos grupos transnacionais em expandir/completando o circuito composto pelas esferas da produção-circulaçãoconsumo. De forma instigante, a autora nos mostra que: [...] “Neste contexto, se pode dizer que a metrópole aparece, hoje, como manifestação espacial concreta do processo de constituição da sociedade urbana, apoiado no aprofundamento da divisão espacial do trabalho, na ampliação do mercado mundial, na eliminação das fronteiras entre Estados, na expansão do mundo da mercadoria [...] no momento atual a realidade urbana se generaliza em um processo conflituoso e contraditório, que engloba as esferas da reprodução social” (Fani Carlos, 2001: 31-32). Vemos, portanto, que as questões analisadas por Fani Carlos são relevantes porque procuram associar o processo das mudanças ao nível macro (Estado, economia, fronteiras nacionais, centros de comando, etc.) às novas formas de ocupação dos espaços urbanos, pois, “a competição intercapitalista e a fluidez do capital-dinheiro com relação ao espaço também forçam racionalizações geográficas em termos de localização, como parte da dinâmica da acumulação” (Harvey, 2006:214). Esse processo de transformação econômica da região, de reconfiguração geo-espacial das cidades metamorfoseadas em “metrópole contemporânea”, reafirma os lugares concebidos, por excelência, em espaços de vivências e experiências cotidianas, de inserção social estranhada do jovem metalúrgico do ABC. De modo a complementar a tese exposta por Fani Carlos (2001), a nova 4 O individuo que segue do centro de São Bernardo do Campo rumo à cidade de Santo André, seguindo pela Avenida Pereira Barreto, na entrada da cidade irá se deparar com a enorme fachada de um majestoso, imponente e moderno Shopping Center. Como que alçado à condição de cartão postal, é uma espécie de “Arco do Triunfo”, Portão de Brademburgo da cidade, do principal acesso de SBC sentido Santo André sua existência logo é captada pela visão que impõe aos transeuntes. 152 arquitetura do espaço urbano é apreendida por Rita Velloso (2005) como sendo um espaço “De interfaces tecnológicas e rascunhos de experiências”: “[...] graças à compreensão das partes constitutivas de um objeto arquitetônico, alcançada por meio do movimento do corpo que explora o espaço físico, conforma-se para o habitante uma situação que cumpre papel sintético de estruturar a experiência subjetiva, na qual a motilidade é responsável por conferir à arquitetura não apenas status de medium, mas também de componente estruturante de identidade e permanências” (Velloso, 2005:4). Por sua vez, em consonância com a tese de Veloso (2005), instigante é o estudo de Regina Maria P. Meyer (2000) quando procura apreender alguns aspectos dessas tendências recentes, seus fundamentos e significados, caracterizando as atuais configurações das anteriores cidades industriais ou “metrópoles modernas”, agora convertidas em “metrópoles contemporâneas”. A autora expõe a dinâmica segundo a qual tais transmutações não se reduzem a forma de ser “arquitetônica” das cidades em espaços geográficos meramente receptores-reflexos, mas como um processo que apresenta novas peculiaridades, coadunadas com as formas de acumulação do capital à época do trabalho flexível: [...] “é correto afirmar que sua organização física (da cidade) responde a exigências de todo tipo: econômica, funcionais, simbólicas, estratégicas e outras, todas elas impostas pelo sistema produtivo que, desde a emergência da metrópole moderna, não abandonou seu incessante “impulso renovador” [...] o “impulso renovador” se tornou a essência da própria dinâmica metropolitana. Converteu-se numa dimensão observável e analisável, na medida em que se materializou no padrão de modernização imposto pela pressão de um crescimento sem trégua exigido pelo capitalismo industrial [...] alcançando no final do século XX uma nova fase de seu percurso. A materialização de novos padrões de modernização oferece hoje uma face nova à metrópole” (Meyer, 2000:04-05). Portanto, é também na “arquitetura”, para além das suas formas e estilos, que a autora sugere a tese de que nela temos subsumidos novos elementos constituintes, decorrentes mesmo das novas relações sociais, das forças motrizes capazes de emulando, forçar o individuo a tomar iniciativas, mover-se. No caso do trabalho flexível, ser participativo e propositivo, cooperar com a empresa nos seus diferentes projetos e ações, tornou-se condição sine qua non para a tentativa de se manter no posto de trabalho. Por tratar-se de uma sociedade contraditória é que ganha relevância a preocupação de Veloso (2005) em destacar os lugares como sendo parte (s), do (s) ambiente (s) em que os indivíduos não só se relacionam, mas os espaços do cotidiano em que também possam, interagindo, endossar, ou ainda recusar, repelir ou recriar os conteúdos que lhe são apresentados nesses diferentes “espaços/territórios” recriados com o complexo de reestruturação produtiva. Sendo 153 espaços onde se desenvolve as contradições sociais, a metrópole contemporânea, eleva-se também a condição de território de novas possibilidades. Trata-se dos novos espaços onde a forma arquitetônica encontra-se intimamente vinculada, é intrínseca às formas de sociabilidade, da tessitura que compõe o modo de vida nesses novos lugares/ambientes urbanos. Espaços/territórios onde se desenvolvem formas de sociabilidades, e onde encontramos subsumidas também, as ideologias que afirmam, negam ou se adaptam às relações sociais cotidianas. Processo ideológico definido por Terry Eagleton (1997): “[...] como processo material geral de produção de ideias, crenças e valores na vida social [...] ideias e crenças (verdadeiras ou falsas) que simbolizam as condições e experiências de vida de um grupo ou classe específico, socialmente significativo [...] promoção e legitimação dos interesses de tais grupos sociais em face de interesse opostos [...] promoção e legitimação de interesses sociais, restringindo-a, porém, às atividades de um poder social dominante [...] ideias e crenças que ajudam a legitimar os interesses de um grupo ou classe dominante mediante, sobretudo, a distorção e a dissimulação [...] as crenças falsas ou ilusórias, considerando-as, porém, oriundas não dos interesses de uma classe dominante, mas da estrutura material do conjunto da sociedade como um todo” (Eagleton, 1997:38-40). Com isso, temos que a ideologia (as) não pode ser apreendida como construção abstrata, carente de materialidade ou apartada da vida real, pois “[...] a produção de ideias, de representações, da consciência, está, em princípio, imediatamente entrelaçada com a atividade material e com o intercâmbio material dos homens, com a linguagem da vida real. Ou ainda, de acordo com o formulador do materialismo histórico; [...] os homens são os produtores de suas representações, de ideias e assim por diante, mas os homens são reais, ativos, tal como são condicionados por um determinado desenvolvimento de suas forças produtivas e pelo intercâmbio a que ele corresponde (Marx, 2007: 93-94). Ao encontro das premissas acima enunciadas, no esforço de apreender o conteúdo ideológico apresentado nos “espaços/territórios”, temos que a interpretação da essencialidade da “arquitetura” urbana, das suas contradições e significados, expressa um processo subordinado ao conjunto das relações sociais que traduzem os sentidos sócio/histórico das relações cotidianas nas cidades. Dessa forma, em consonância com o conceito de “motilidade” utilizado por Veloso (1995) e a definição marxiana do que é ideologia, encontramos nos novos “espaços/territórios” da região do ABC paulista os lugares das convivências “impostas” (aquelas que se desenvolvem no interior da fábrica flexível com o processo de reestruturação produtiva), ou “espontânea/condicionado” reproduzidas nos “espaços/territórios” como as escolas, universidade, família, vida afetiva, relação com os amigos, etc. Processo prenhe de motilidade e que contribui para a permanência/superação/reconfiguração das relações sociais que repletas de elementos racionais/irracionais, constrói/desconstrói, promete/descumpre a 154 possibilidade de emancipação do gênero humano, mas que também atua no sentido de definir a identidade do metalúrgico jovem-adulto flexível. Trata-se de uma tendência composta por múltiplas dimensões, que refletem, repercutem e se desdobram na “instauração do cotidiano”, um processo intrínseco às formas da acumulação flexível contemporânea, cujas “profundas e rápidas transformações em suas formas ocorrem concomitantemente com uma profunda transformação da vida cotidiana, que agora constitui paisagem em metamorfoses” (Fani Carlos, 2001:30). Ou seja, estamos diante de um único movimento contraditório da sociedade capitalista que na sua múltipla processualidade, redesenha determinadas localidades, cidades ou regiões, numa dinâmica que, conforme salientamos, acompanha as novas formas de acumulação, processo inerente à reestruturação produtiva, pois sua disseminação implica (re) construir novos espaços, que, acompanhando as determinações do seu uso pelo capital, ampliam e redefinem os ambientes de vivência cotidiana. Diante do que foi exposto até aqui, podemos aferir que concomitantemente à emergência do segmento metalúrgico jovem-adulto flexível, processo correlato ao complexo de reestruturação produtiva, verificou-se significativas transformações nos espaços/territórios urbanos. A cidade/região do ABC incorporou mudanças arquitetônicas, um novo território social do qual se forjou a identidade desse segmento metalúrgico. Vale ressaltar, identidade transmutada em diferentes aspectos quando comparada com a velha guarda operária. Basta recordar que a tessitura identitária dos antigos operários foi forjada nas ações coletivas de massa como os movimentos grevistas em fins dos anos 70. O jovem metalúrgico dos dias atuais, por sua vez, surgiu da ofensiva do capital, do novo corolário flexível que compõe o complexo da reestruturação produtiva e do propositivismo sindical, das ações fundamentadas na tese da parceria entre capital e trabalho. 1.2 A identidade do jovem metalúrgico do abc É no bojo desse processo de transformação do espaço urbano, da correlata ampliação por excelência dos territórios, aqui entendidos como sendo lugares de vivência, dos ambientes que se caracterizam por ser quase uma extensão do cotidiano fabril, os lugares por excelência de (re) produção e de (re) definição de alguns dos aspectos relativos ao modo de vida que se apresentam as particularidades das formas de sociabilidade do operário jovem-adulto flexível. Disso decorre que compreender o espaço enquanto o “lugar de realização da vida humana [...] lugar que ganha materialidade por meio do território”, conforme salientou Fani Carlos (2001:11), significa reconhecê-lo como a instância/referência social contemporânea onde, de fato, são tecidas as relações sociais desse novo segmento metalúrgico. Conforme temos salientado, valorizar o reconhecimento dessa dimensão social dos lugares/espaços se faz necessário, pois é nesses ambientes de convivências que se estabelecem alguns dos parâmetros e das referências que compõem a identidade dessa nova geração operária. Trata-se, portanto, de considerar que a “ocupação” dos lugares/espaços, converte-os em território das vivências cotidianas. 155 É por isso que, ao enfatizarmos alguns dos aspectos sociais relacionados à nova faceta da “arquitetura urbana”, queremos reforçar a premissa de que a, “metrópole contemporânea” é “o espaço físico [...] que cumpre o papel sintético de estruturar a experiência subjetiva [...] é responsável por conferir à arquitetura não apenas status de médium, mas também de componente estruturante de identidade e permanências” (Velloso, 2005:04). Ou seja, mormente ao processo de “reestruturação-espacial” das cidades, de transmutação da vida urbana em vida na “metrópole contemporânea”, esse movimento avassalador impulsionado pela “força da grana que ergue e destrói coisas belas”, na verdade, “responde as exigências de todo tipo: econômica, funcional, simbólica, estratégica, e outras, todas elas impostas pelo sistema produtivo” (Meyer, 2000:04). Com base nesses pressupostos, temos que a metrópole contemporânea se impõe como sendo o palco privilegiado de construção da identidade do jovemadulto flexível. Da identidade aqui entendida como sendo um: “[...] processo de construção de significados com base em um atributo cultural, ou ainda um conjunto de atributos culturais inter-relacionados, o (s) qual (s) prevalece (m) sobre outra fonte de significado. Para um indivíduo ou ainda um ator coletivo, pode haver identidades múltiplas. No entanto, essa fonte de pluralidade é fonte de tensão e contradição, tanto na auto-representação quanto na ação social” (Castells, 1999:22). A partir da interpretação de Manuel Castells (1999), vemos que os diferentes signos definidores de uma determinada tessitura social não são imutáveis; ao contrário, expressam um processo permanente de (des-re) construção, um dialético, intenso, agudo momento de formação/confrontação entre “atributos culturais, ou um conjunto de atributos culturais inter-relacionados”, cujos embates e contradições estão na base da tessitura que compõe a identidade dos indivíduos, grupos ou classes sociais. É um processo que, no seu bojo, não só se desnudam alguns elementos sociais constitutivos dessas novas tendências, mas também se desvela dialeticamente que, pari-passu às mudanças e permanências, é do seio dessa nova realidade que, gradativamente, o novo em construção pode irromper seu invólucro para se apresentar como sendo expressão do presente, do agora, das novas tendências sociais. Em seu estudo sobre as formas de coexistência entre as duas gerações operárias, a anterior e a posterior ao processo de reestruturação, Kimi Tomizaki (2007) nos apresenta alguns dados relevantes à compreensão da nova identidade metalúrgica. Assim, informa-nos que: “A primeira geração, na maioria absoluta, tem origem rural e foi introduzida em uma fábrica tipicamente taylorista/fordista. Trata-se, portanto, de trabalhadores formados pelo “trabalho pesado”, que, por conseqüência, valorizam a força física como recurso identitário 156 importante. Alem disso, os aspectos que definem a masculinidade e a virilidade são bastante visíveis, tanto na forma conservadora de se vestir ou de cortar e manter o cabelo quanto no cultivo dos hábitos de beber (geralmente cachaça) e fumar. A segunda geração (no caso os jovensadultos flexíveis aqui estudados), por sua vez, fortemente influenciada pela cultura escolar e gozando de padrões de vida da classe média, apresenta outra relação com o corpo. A força física é mais eufemizada; o cuidado com as roupas, por exemplo, causa estranheza entre os mais velhos, além dos brincos, cabelos longos (ou cabeça raspada) e outros acessórios inimagináveis para a primeira geração, tais como anéis, pulseiras, colares e as inevitáveis tatuagens” (Tomizaki, 2007:168-169). Com base em nossa pesquisa de campo acrescentaríamos às informações trazidas por Tomizaki a existência de diferentes formas de linguagem exaustivamente utilizadas pelos jovens, seja na forma de comunicação verbal ou gestual. Ao mesmo tempo, contribui para o entendimento da identidade do operário jovem-adulto flexível o fato de que, na coleta de depoimentos, com o intuito de sempre deixá-los mais tranqüilos, soltos, com algum controle sobre a situação, adotamos como critério que cabia ao depoente a escolha do local para nossa conversa. É interessante destacar que quando perguntávamos o local de preferência para a realização da atividade a maioria respondia de pronto: “Tem um shopping aqui perto. Vamos lá, pode ser?” Como essa atitude se repetia, passei a perguntar: “Você sempre vem aqui”? Márcia, por exemplo, nos respondeu: “quase sempre”. Insistíamos: “Você pode nos falar um pouco mais sobre esse quase sempre”? A resposta é bastante elucidativa: “olha, minha vida é uma correria, quase não tenho tempo pra nada. Quando tenho, venho aqui. Aqui você tem as lojas se precisar comprar alguma coisa, tem a praça da alimentação e tem o cinema. Tá tudo aqui, você não perde tempo correndo por ai”. Em seu relato, Jorge, outro jovem operário nos informou sobre seu relacionamento com a namorada: “[...] a vida dela era corrida também. Então ela pegava o fretado (ônibus), ela acordava às cinco da manhã, ia pra Universidade e depois ia direto pro curso de inglês, ficava lá uma parte da tarde, trabalhava até onze horas da noite mais ou menos. Como eu saía da universidade às dez e quarenta da noite, nesses vinte minutos eu conseguia sair de carro e buscá-la lá às onze horas, exatamente no horário que ela saía. E neste pequeno tempo, meia hora, quarenta minutos eu passeava com ela, eu ia no Habib’s com ela, ou deixava ela na casa dela...ficava namorando um pouquinho, a gente sempre se via”. A gente sempre se via [...] a gente sempre dava um jeito de se encontrar” . 157 Manter-se organizado, antever e planejar, encontrar rapidamente as respostas sem perder a objetividade e a eficiência, eis aqui uma demonstração cabal de como se aplicam alguns dos princípios dos 5s (Seiri: Senso de utilização. Seiton: Senso de organização. Seisō: Senso de limpeza. Seiketsu: Senso de padronização. Shitsuke: Senso de auto-disciplina) na vida cotidiana. Disso decorre que, a partir da constatação de Manuel Castells (1999), temos a possibilidade de apreender que os diferenciados traços de aparência física, novos comportamentos, atitudes, hábitos e costumes, escolaridade, qualificação profissional, aspectos físicos e sociais, constituem enquanto traços que, entranhados, são indicativos do modo de vida do jovem-adulto flexível. Ou ainda, revelam-se como aspectos de uma nova identidade que, em construção, acompanham a transição, as metamorfoses das cidades em metrópoles contemporâneas concomitantemente ao processo de expansão da reestruturação produtiva. Da emergência do jovem metalúrgico que convive conflitivamente com o antigo perfil metalúrgico forjado na indústria taylorista/fordista strictu sensu. 1.3 Consumismo, comportamentos e fetiches É por isso que, como parte das formas de sociabilidade contemporânea, momento de tensão e confronto entre diferentes identidades operárias, fazem-se oportunas algumas das reflexões que procuram abordar tendências, fundamentos e significados recentes que guardam relação com as problemáticas aqui analisadas. Em suas ponderações sobre a “sociedade de consumo”, Isleide Fontenelle (2002) e Valquíria Padilha (2006), trazem à baila aspectos relevantes para a compreensão das novas formas de sociabilidade/identidade no capitalismo contemporâneo. Discorrendo inicialmente sobre as múltiplas contradições sociais recentes, sobre a modernidade fundada na busca de realização do valor, privilegiando as esferas da circulação e do consumo, analisam o elo que vincula nossa contemporaneidade aos elementos caracterizadores da sociedade capitalista tal qual se estruturou nos países industrializados durante o século XIX, instante de consolidação da “metrópole moderna” (Fani Carlos, 2001). Dessa forma, indicam que a instauração da “cultura do consumo” remonta à emergência das lojas de departamentos, processo que, ao reconfigurar os hábitos do cotidiano, determinam a formação de novos valores sociais, base sobre a qual se assentaram as relações interpessoais. Como parte dessas tendências, a própria concepção dos espaços e do seu uso sofreram fortes impactos a partir da emergência da grande indústria conforme temos afirmado. Assim, a disseminação da “cultura do descartável” (expressão já presente na vida da “metrópole contemporânea”), vista como desdobramento da sociedade de consumo, ao interpenetrar de diferentes modos o conjunto das relações humanas tende a impor mediações ancoradas em valores sociais oriundos desse novo padrão de consumo. Trata-se de um processo impulsionado pelas novas possibilidades de diversificação, de ampliação da produção de mercadorias numa dinâmica diretamente vinculada à emergência do trabalho flexível, que, a partir da intensificação do grau de exploração do trabalho vivo, permite ao capital obter aumento dos índices de produtividade. 158 Enquanto o capital – como é próprio da sua natureza – reduz os homens à condição de coisa (força de trabalho), esse processo de homogeneização massificada dos indivíduos, ao retirar parte essencial daquilo que lhe dá sentido de vida, reduz a existência humana à lógica intrínseca do trabalho alienado. Nesse caso, a busca pela satisfação individual é canalizada quase que totalmente para a esfera do consumo. Já nos Manuscritos Econômico-Filosóficos, Karl Marx (1844), numa análise crítica à interpretação da economia política indica alguns dos fundamentos históricos sobre os quais se assentam as relações trabalho-abstrato/propriedade privada. A partir dai, discorre sobre a origem (ou razão essencial) do processo de alienação que, à época moderna, resulta do contraditório processo histórico (portanto, não natural) de dissociação da relação homem/trabalho, pois: “O trabalhador se torna tanto mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto mais a sua produção aumenta em poder e extensão. O trabalhador se torna uma mercadoria tão barata quanto mais mercadorias ele cria. Com a valorização do mundo das coisas, aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens. O trabalhador não produz somente mercadorias; ele produz a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria [...] A efetivação do trabalho tanto aparece como desefetivação que o trabalhador é desefetivado até morrer de fome [...] sim, o trabalho mesmo se torna um objeto, do qual o trabalhador só pode se apossar com os maiores esforços e com as mais extraordinárias interrupções. A apropriação do objeto tanto aparece como estranhamento que, quanto mais objetos o trabalhador produz, tanto menos pode possuir e tanto mais fica sob o domínio do seu produto, do capital” (Marx, 2004:80-81). É, portanto, nesse contexto de produção moderna, de excessos de mercadorias - particularmente em nosso tempo presente - que as classes, segmentos de classes ou grupos sociais específicos são incitados a introjetar comportamentos que, ao reafirmar um determinado modo de vida, faz com que a identidade do individuo, grupo ou classe social seja fundada/reforçada na idéia de um hedonismo calcado no consumo desenfreado, no consumismo propriamente dito5. 5 Para José Saramago (2000), “as pessoas não saem de dentro de moldes”, não podem viver o tempo todo sendo “moldadas”, ou seja, é preciso recuperar o verdadeiro sentido da vida, é possível, é preciso resistir!. O conceito de trabalho alienado empregado em nosso texto parte do entendimento de que “alienação é sempre alienação em face de alguma coisa e, mais precisamente, em face das possibilidades concretas de desenvolvimento genérico da humanidade” (Heller, 1989:37). Nesse sentido, vemos quão é revelador o filme intitulado “A classe operária vai ao paraíso” dirigido por Elio Petri (1971), particularmente na cena em que o operário metalúrgico “Lulu”, (Gian Maria Volontè) após o fracasso da greve, demitido e abandonado pela mulher e pelo filho, vê-se sozinho. No quarto, seu olhar penetrante e reflexivo faz uma varredura pelo ambiente. Transbordando em exaustão, seus olhos transcorrem lentamente pelo teto, descem pelas paredes e, inertes, focalizam as mobílias repletas de brinquedos. Com a cabeça pesada realiza leves movimentos, ora para esquerda hora para a direita, ora para cima ora para baixo. Desiludido, observa tudo em sua volta. É como se a cena sugerisse o momento máximo do “absurdo”, as formas de alienação da época contemporânea sendo reveladas. Lulu, o ex-metalúrgico vê-se negado enquanto humano-genérico, e com seu olhar de “morto-vivo” pergunta a si mesmo: “Em que mundo eu vivo? Qual o sentido disso tudo”?. 159 Um processo de exacerbação das diferentes formas de fetiches correlatos à produção de mercadorias em grande escala, revelador de que “durante o tempo de trabalho, o operário não mais se pertence; não é mais ele mesmo, transformado não só em objeto, mas em objeto pertencente a outro, ele é, ao mesmo tempo, reificado e alienado” (Goldmann, 1979:142). Segundo Fontenelle (2002), o termo fetichismo foi criado no século XVIII, por volta de 1750, oriundo da palavra fetiche, por sua vez derivada do português feitiço, artifício. Jean Baudrillard foi buscar a etimologia do termo fetiche, surgido na França do século XVII, para nos mostrar como ele sofreu, nos nossos dias, uma distorção semântica, pois, “O termo, usualmente utilizado para se referir a uma propriedade sobrenatural do objeto, significa, em sua origem, o inverso: “fabrico, um artefato, um trabalho de aparências e de signos”. O português feitiço vem do latim facticius (fazer), cujo sentido é “imitar por sinais”, como, por exemplo, “fazer-se devoto”. Por isso, o que é forte no sentido da palavra é o aspecto de fingimento, de disfarces, de inscrição artificial, numa palavra, de um trabalho cultural de signos na origem do estatuto do objeto-feitiço e, portanto, em parte também no fascínio que ele exerce” (Fontenelle, 2002: 280-281). Não é por acaso que as imagens transmitidas, tanto aquelas relativas ao corpo quanto as que se manifestam pelas ideias, atitudes e pelos comportamentos do jovem-adulto flexível nos fornecem pistas sobre o seu novo conteúdo social identitário. São ilustrativas de alguns dos signos que compõem nossa contemporaneidade, aqui entendida como processo de vigência plena da modernidade, da modernidade do capital. De forma conflitiva, esse novo conteúdo social identitário, peculiar ao novo perfil operário, na fábrica, é apreendido pelos operários antigos da seguinte maneira: “O jovem hoje, ele só pensa em comprar carro, roupa [...] o dia inteiro andando, e assim ficam, daqui a pouco chega:” “ô mano, ô vagabundo, vem aqui”, esses papos assim”. Ou ainda, segundo depoimento coletado por Tomizaki (2005): “[...] Ele sai do Senai, vai fazer uma faculdade... Então, ele pensa: ‘Pô! Eu estando aqui já é um caminho pra poder estar lá em cima! Pegar um cargo de chefia, vir pra área administrativa.’ Então, ele vem com esse pensamento”. Nesse contexto, no momento em que o jovem-adulto flexível é visto pelos mais antigos como sendo a síntese portadora de um comportamento marcadamente consumista, individualista, preferimos percebê-lo como expressão das peculiaridades da sociabilidade capitalista contemporânea, que condiciona a existência/identidade/reconhecimento do indivíduo ao que é capaz de consumir, sejam as mercadorias, sejam as “idéias difundidas” como parte da ideologia do capital à época do trabalho flexível. 160 Mais ainda, não podemos nos esquecer de que o jovem metalúrgico é profundo conhecedor dos dramas relativos à fase de “estagiário”, momento em que passou por entre as “portas do inferno” na busca da sua efetivação no emprego. Nesse caso, como sugere Padilha (2006), consumir pode representar uma tentativa de se perceber importante, um “instante fetichante” em que a vida parece ter algum sentido. Contudo, tais comportamentos, idéias e atitudes correspondem, ao que tudo indica, à manifestação cabal do processo de desefetivação, pois, “com a valorização do mundo das coisas aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens” (Marx, 2004:81). A partir desse pressuposto, Goldmann analisou: “[...] a economia mercantil, em particular a economia capitalista, tende a substituir na consciência dos produtores o valor de uso pelo valor de troca, e as relações humanas concretas e significativas por relações abstratas e universais entre vendedores e compradores; tende, assim a substituir, no conjunto da vida humana, o qualitativo pelo quantitativo” (Goldmann, 1979:125). Sendo assim, uma marca de nossa contemporaneidade - como consequência das formas mais agudas de manifestação desse comportamento social alienado - é dada pela intensificação, pelo acirramento brutal das disputas entre os próprios operários pela manutenção do emprego. Um dos significados dessa nova forma de emulação diz respeito à incorporação do conteúdo ideológico que, subsumida, no conceito de empregabilidade, à época do trabalho flexível, é exaustivamente disseminada pelas empresas, particularmente nas indústrias automobilísticas encontradas na região do ABC paulista. Com isso, desnuda-se o fato de que, estando o conhecimento e a ciência, de modo geral, vinculados direta ou indiretamente ao processo de acumulação/produção de mercadorias, as relações sociais, em face da racionalidade instrumental alienada, tendem cada vez mais a incorporar/reproduzir, no cotidiano, formas alienadas de sociabilidade, cujos fundamentos estão na base das “rusgas” entre o antigo e o novo perfil operário: “[...] à medida que a reificação foi fazendo progressos, a ruptura entre a realidade social e a busca do humano acentuou-se a tal ponto - pelos menos no mundo capitalista - que a expressão dessa busca teve de ceder lugar à simples constatação e descrição de uma realidade social reificada inumana e privada de significação” (Goldmann, 1979:137). É com base nesses pressupostos teóricos que devemos compreender, por exemplo, o empenho de Valquíria Padilha (2006) em analisar as tendências da “sociedade de consumo” como sacramentadas em espaços como os shoppings centers, momento em que os freqüentadores dessas “catedrais” se enredam em novas formas de sociabilidade alienada: “A sociedade do consumo faz com que os indivíduos organizem sua vida – o trabalho, o lazer, a família, as 161 relações – fora do mundo e da sua história, num mundo fundado no privado, fechado e abstrato dos signos, por intermédio das mercadorias e do consumo” (Padilha, 2006:102). Nesse processo, a publicidade, ao manipular/construir “vontades”, direcionando-as fundamentalmente para o consumo, não só facilita o fluxo das mercadorias, fechando o circulo da acumulação (produção-circulação-consumo), mas também, sofisticadamente, projeta a “sociedade de massa” como uma sociedade sem classes sociais antagônicas, projeta uma imagem da sociedade capitalista “sem sua essência”, que são as contradições e os interesses de classes distintas. Essa constatação não escapa a Valquíria Padilha, quando destaca que; “[...] procurando um paradoxal movimento de personificação das pessoas, acabando por fazer desaparecer, na verdade, a hierarquia social [...] a publicidade vende de tudo a todos, indistintamente, como se a sociedade de massa fosse uma sociedade sem classes” (Padilha, 2006:104). Vê-se, portanto, que atualmente a publicidade desempenha importante papel ao alcançar um número cada vez maior de consumidores, apresentando a eles uma infinidade de mercadorias e “ideias” disponíveis em escala sempre ampliada num processo em que, do centro à periferia do planeta, alcançando os mais recônditos lugares, visa “provocar” desejos de consumo por meio do uso de sofisticadas linguagens e técnicas de manipulação: “O desejo da marca em fazer-se presente na “mídiarealidade”, através de acontecimentos surpreendentes, vai ao encontro do funcionamento de mídia de notícias, em que se misturam, cada vez mais, informação e diversão. E os profissionais de marketing embaralham ainda mais essas fronteiras, em busca do tom de “realidade” que precisam imprimir às suas marcas” (Fontenelle, 2002:266). Ou seja, é preciso se comunicar, ser verdadeiro, ser notícia. É nesse contexto onde tudo se encontra conectado que a indústria montadora aqui tomada como referência criou uma série de informativos direcionados aos colaboradores, fornecedores e ao público externo, um caminho mais estreito e direto, facilitador da comunicação e da aproximação entre capital e trabalho. Com isso, cria-se uma rede de co-responsabilidades na medida em que todos devem ser percebidos, sentir-se pertencentes ao grupo - direção, gerência, colaboradores e fornecedores-, os responsáveis mesmo pelo aumento da produtividade, pela melhor qualidade das mercadorias produzidas na nova fábrica flexível e pela participação ampliada no competitivo mercado global. Ou seja, prosperarem “juntos” enquanto uma invejável “grande família coorporativa” segundo definição de Taichi Ohno (1997). Nesse peculiar contexto de nossa modernidade, da cotidianidade vivida na metrópole contemporânea e da disseminação do processo de reestruturação produtiva. Do aumento da produtividade e da inédita oferta de mercadorias, da pasteurização das relações sociais em meio a massificação impulsionadora das formas de estranhamento entre o “ser” e o “ter”, que problemáticas relativas às 162 formas de sociabilidade contemporânea, particularmente as identidades e os conflitos entre o antigo metalúrgico e o jovem-adulto flexível, devem ser percebidas. Se a atual “crise de valores” são fomentadas por uma nova moral que dissemina/justifica as atitudes consumistas e individualistas, é do seio dessa luta permanente de todos contra todos, de negação contingente da cooperação enquanto essência humana que se assentam algumas das facetas da barbárie social contemporânea, pois o capital precisa reeditar em nosso tempo alguns dos princípios modernos caracterizados do self-made-man. Uma espécie de versão caricata do competitivo Robinson Crusoé que agora, rompendo o isolamento de sua ilha, conecta-se com a multidão solitária que trafega pela rede. Talvez isso explique a afirmação do Dr. Drauzio Varela ao afirmar que o grande mal da depressão está no fato de que ela se tornou permanente. E assim, todos juntos se convertem em cidadãos consumidores; seja das mercadorias em excesso, seja a solidão compartilhada, ou no limite, uns aos outros. Por outro lado, os defensores do liberalismo clássico, ao reinterpretá-lo, invertem a ideia original da canção e só fazem ressoar a máxima de que “é preciso saber viver”. Uma manifesta tentativa ideológica de fazer prevalecer, tão somente, uma forma de sociabilidade ungida pelos valores do mercado. Referências Bibliográficas Referências Bibliográficas Alves, Giovanni. Trabalho e Subjetividade: ensaio sobre o metabolismo social da produtiva do Capital. Tese de Livre-docência. Unesp: Marília, 2007. Scritta,1996. Alves, reestruturação Giovanni. Trabalho e Subjetividade: _____O novo e precário mundo do Trabalho. 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