UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS DE RIBEIRÃO PRETO DEPARTAMENTO DE BIOLOGIA A importância da cutia Dasyprocta azarae como hospedeiro intermediário do carrapato-estrela Amblyomma spp. no campus da USP – Ribeirão Preto, SP Vinicius Alberici Roberto Monografia apresentada ao Departamento de Biologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, como parte das exigências para a obtenção do título de Bacharel em Ciências Biológicas RIBEIRÃO PRETO – SP 2013 UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, CIÊNCIAS E LETRAS DE RIBEIRÃO PRETO DEPARTAMENTO DE BIOLOGIA A importância da cutia Dasyprocta azarae como hospedeiro intermediário do carrapato-estrela Amblyomma spp. no campus da USP – Ribeirão Preto, SP Vinicius Alberici Roberto Monografia apresentada ao Departamento de Biologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, como parte das exigências para a obtenção do título de Bacharel em Ciências Biológicas Orientador: Dr. Carlos Alberto Perez RIBEIRÃO PRETO – SP 2013 “C'est même des hypothèses simples qu'il faut le plus se défier, parce que ce sont celles qui ont le plus de chances de passer inaperçues” Jules Henri Poincaré Thermodynamique, 1892 Agradecimentos Ao Dr. Carlos Alberto Perez, por contribuir inigualavelmente para minha formação acadêmica, profissional e pessoal; pelos saberes comigo compartilhados, pelo respeito, reconhecimento e companheirismo, sou grato. À Pró-Reitoria de Pesquisa da Universidade de São Paulo pela bolsa de Iniciação Científica concedida. À Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, que me acolheu nos últimos cinco anos e me ofereceu incontáveis oportunidades de desenvolvimento e lembranças das mais importantes. À Prefeitura do Campus USP de Ribeirão Preto, pelo suporte dado à equipe durante a realização dos trabalhos, especialmente ao Prof. Dr. José Moacir Marin, prefeito quando os trabalhos se iniciaram; Prof. Dr. Wagner Eustáquio Paiva Avelar, vice-prefeito; Prof. Dr. Osvaldo Luiz Bezzon, atual prefeito; bem como à Alexandra Lacerda dos Santos Soares, Selma Lúcia de Carvalho, Luci Aparecida Ferreira Castrechini e Alessandra Bagatim Alves. À Seção de Transportes, pela disposição e pelo comprometimento em nos atender da melhor forma possível durante os trabalhos, em especial: Fátima Aparecida Lúcio Júlio, Maria Antônia Contart Campinas, Ahmad Sarkis Kanaan, Carlos Roberto Simão, Christovão Inácio dos Santos, José Joaquim de Araújo, José Luiz Paul Júnior, José Márcio Zanetti, Nelson Luiz de Assis, Thiago Luiz David Pereira e Zélio Carlos da Silva. À Seção de Parques e Jardins, pela colaboração, em especial: Paulo Roberto Barbosa, Dalton Aparecido Mataruco, Sérgio Donizete Rodrigues, Geraldo Avelar, José Rodrigues, Sebastião de Oliveira, Pedro da Silva, Flávio Carvalho, Paulo Ozório, José Festucci, Maurício Balatori, Geraldo Precinotto, Luiz Flávio Barucci e Helen Rosangela Forni. À Seção de Oficinas, pela confecção dos materiais utilizados nesta pesquisa. Ao Médico Veterinário Helder Tambellini, pelo apoio imprescindível na obtenção de dados e por disponibilizar o Biotério Central da USP-RP para manutenção dos animais em cativeiro. Ao Dr. Hertz Figueiredo dos Santos pelo empréstimo de materiais utilizados para captura dos animais e por nos atender prontamente sempre que solicitado. Ao Me. Gilberto Sabino-Santos Jr., pelo apoio na implementação dos métodos de coleta, processamento e armazenamento de material biológico coletado em campo para posterior análise laboratorial. Aos colegas do NEC – Núcleo de Estudos do Carrapato-estrela de Ribeirão Preto – André Bordinassi Medina, Daiane Arruda de Almeida Dupim e Felipe Trevisan Ortiz, afinal, somos uma equipe. Aos meus pais, Edvaldo Targa Roberto e Lizete Carmem Alberici Roberto, por terem me dado toda a estrutura física e psíquica necessárias à minha caminhada; por terem sido o alicerce sobre o qual eu me construí e por serem o reflexo no qual me espelho; pela educação que me deram e pelo amor com que me criaram, sou e serei sempre grato. Ao meu irmão, Thiago Alberici Roberto, por nunca ter deixado de discutir comigo sobre a vida, o universo e tudo mais. À minha namorada, Marina Almeida Martinelli, pelo carinho, paciência e amizade; por ter preenchido a minha vida com alegria e por ter acreditado em mim quando eu mesmo não acreditava; por me amar e me deixar amá-la como eu amo. À XXT e a seus ilustres moradores, residentes ou não, que tantas vezes me receberam e fizeram desta a minha segunda casa. À 45ª turma da Biologia – USP-RP, a gente tem tudo pra dar certo! Lista de Abreviaturas CA: comprimento da cauda CC: comprimento cabeça-corpo DP: desvio-padrão ED: Educação Física EEFERP: Escola de Educação Física e Esporte de Ribeirão Preto ESALQ: Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz E.U.A.: Estados Unidos da América FFCLRP: Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto FMB: Febre Maculosa Brasileira IC: intervalo de confiança m.a.: milhões de anos MC: massa corporal MT: Mata do Museu MUS: Música n: número de animais NEC: Núcleo de Estudos do Carrapato-estrela de Ribeirão Preto O: comprimento da orelha interna PCARP: Prefeitura do campus de Ribeirão Preto PÉ: comprimento da pata posterior com unha USP-RP: Universidade de São Paulo – Ribeirão Preto UTM: Universal Transversa de Mercator Lista de Figuras Figura 1. Distribuição conhecida de Amblyomma cajennense nas regiões Neártica e Neotropical, baseada em revisão literária e de coleções da Argentina e do Brasil. Os registros na América do Norte incluem E.U.A. (Texas e Flórida) e México; na América Central incluem Belize, Nicarágua, Guatemala, Costa Rica, Panamá, El Salvador, Honduras, Cuba, Jamaica, Trinidad e Tobago e outras Pequenas Antilhas; na América do Sul incluem Colômbia, Venezuela, Guiana, Suriname, Guiana Francesa, Peru, Bolívia, Brasil, Paraguai e Argentina. Os registros com pontos mais claros no mapa (Uruguai e sul do Brasil) são apontados como identificações errôneas. Adaptado de Estrada-Peña et al. (2004). ............................................................................................. 10 Figura 2. Distribuição conhecida de Amblyomma dubitatum na América do Sul (pontos escuros). Os números representam províncias biogeográficas definidas por Morrone (2006): (15) Amapa; (21) Pantanal; (24) Cerrado; (25) Chaco; (26) Pampa; (28) Brazilian Atlantic Forest; (29) Parana Forest; (30) Araucaria angustifolia Forest. Adaptado de Nava et al. (2010). ..................................................................................... 11 Figura 3. Dinâmica sazonal de Amblyomma cajennense de vida livre no sudeste brasileiro. Notar o maior número de formas imaturas (larvas e ninfas) na estação seca (abril a setembro) e o maior número de adultos na estação chuvosa (outubro a março). Fonte: Labruna (2000). ................................................................................................... 12 Figura 4. Imagem de satélite do campus da USP de Ribeirão Preto. Fonte: Google Earth (2012). ................................................................................................................... 30 Figura 5. Armadilha do tipo Tomahawk, iscada com atrativo alimentar e armada em local de captura, no campus da USP - Ribeirão Preto. .................................................. 33 Figura 6. Localização das armadilhas do tipo Tomahawk utilizadas na captura de indivíduos da espécie D. azarae no campus da USP – Ribeirão Preto. ED = Educação Física, MUS = Música, MT = Mata do Museu. Fonte: Google Earth (2012). ............... 34 Figura 7. Procedimentos realizados em Biotério com os animais capturados da espécie Dasyprocta azarae no campus da USP-RP. A) Contenção manual do animal realizada dentro da gaiola metálica com o auxílio de uma tábua de madeira; B) Manipulação do animal após aplicação do anestésico, com a utilização de luvas de raspa de couro; C) Marcação do animal com brinco de identificação numerado na orelha direita, com o auxílio de um alicate apropriado; D) Retirada de 1ml de sangue do animal, por punção cardíaca. Data das fotografias: A) 04/06/2012; B) 01/06/2012; C) 11/12/2012; D) 04/06/2012. ..................................................................................................................... 37 Figura 8. Manutenção dos animais no Biotério Central. A) Gaiola metálica coberta com pano preto para evitar o estresse do animal; B) Bandeja removível contendo maravalha para acomodar os carrapatos que se desprendem naturalmente após o ingurgitamento e fita adesiva nas laterais para impedir sua fuga; C) Cutia dentro de gaiola contendo frutos e vasilhames com água; D) Cutia sendo liberada no mesmo local de captura, após uma semana em biotério. Data das fotografias: A) 01/06/2012; B) 05/12/2012; C) 04/06/2012; D) 06/06/2012. ........................................................................................... 38 Figura 9. A) Carrapatos acondicionados em Eppendorf com chumaço de algodão umedecido com água; B) Estufa com temperatura e umidades medidas por higrômetro digital. Laboratório do Núcleo de Estudos do Carrapato-estrela de Ribeirão Preto....... 39 Lista de Tabelas Tabela 1. Classificação dos hospedeiros e sua relação com os parasitas. Adaptado de Croll (1968). ................................................................................................................... 14 Tabela 2. Especificidade carrapato-hospedeiro. Adaptado de Hoogstraal e Aeschlimann (1982). ............................................................................................................................ 16 Tabela 3. Parasitismo por Amblyomma cajennense em espécies de animais domésticos e silvestres (nomes populares). Adaptado de Rohr (1909), Robinson (1926) e Aragão (1936). ............................................................................................................................ 18 Tabela 4. Coordenadas geográficas (UTM) dos pontos de instalação das armadilhas do tipo Tomahawk utilizadas na captura de indivíduos da espécie Dasyprocta azarae (cutia) no campus da USP – Ribeirão Preto. ED = Educação Física, MUS = Música, MT = Mata do Museu, EEFERP = Escola de Educação Física e Esportes de Ribeirão Preto, FFCLRP = Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto.. .................... 35 Tabela 5. Data e local de captura de cada indivíduo da espécie Dasyprocta azarae no campus da USP-RP, de janeiro de 2012 a janeiro de 2013. Grupo A = coletas realizadas no período de larvas do carrapato-estrela; Grupo B = coletas realizadas no término do período de ninfas do carrapato-estrela, Grupo C = coletas realizadas o período de adultos do carrapato-estrela. ........................................................................................... 41 Tabela 6. Dados biométricos dos animais capturados da espécie D. azarae. CC Comprimento cabeça-corpo, CA – comprimento da cauda. PÉ - comprimento da pata posterior com unha, O - comprimento da orelha interna, MC – Massa corporal, DP – desvio-padrão; n – número de animais amostrados; IC – intervalo de confiança. ......... 42 Tabela 7. Número de carrapatos (larvas, ninfas e adultos) por cutia capturada no campus da USP-RP......................................................................................................... 43 Tabela 8. Índices de infestação por larvas de carrapatos-estrela (Amblyomma spp.) em cutias (D. azarae) capturadas no campus da USP-RP, segundo Margolis et al., 1982 e Bush et al., 1989. n – número de indivíduos. ................................................................. 44 Tabela 9. Índices de infestação por ninfas de carrapatos-estrela (Amblyomma spp.) em cutias (D. a azarae) capturadas no campus da USP-RP, segundo Margolis et al., 1982 e Bush et al., 1989. n – número de indivíduos. ................................................................. 44 Tabela 10. Índices de infestação por estádios imaturos (larvas e ninfas) de carrapatosestrela (Amblyomma spp.) em cutias (D. azarae) capturadas no campus da USP-RP, segundo Margolis et al., 1982 e Bush et al., 1989. n – número de indivíduos............... 44 Tabela 11. Larvas e ninfas identificadas, após ecdise, para cada animal capturado. .... 46 Tabela 12. Dados biométricos dos animais capturados da espécie D. azarae e comparação com os obtidos por Iack-Ximenes (1999). CC - Comprimento cabeçacorpo, CA – comprimento da cauda. PÉ - comprimento da pata posterior com unha, O comprimento da orelha interna, MC – Massa corporal, n = número de animais amostrados. ..................................................................................................................... 50 Sumário Resumo ............................................................................................................................ 1 1. Introdução ................................................................................................................... 2 2. Revisão Bibliográfica.................................................................................................. 5 2.1. Caracterização geral dos carrapatos ...................................................................... 5 2.2. Biologia do carrapato-estrela Amblyomma spp. ................................................... 7 2.2.1. Distribuição geográfica de A. cajennense e A. dubitatum .............................. 9 2.2.2. Dinâmica sazonal de A. cajennense e A. dubitatum ..................................... 12 2.2.3. Especificidade parasitária ............................................................................. 14 2.2.4. Amblyomma cajennense e seus hospedeiros ................................................. 18 2.2.5. Amblyomma dubitatum e seus hospedeiros .................................................. 22 2.3. Biologia do gênero Dasyprocta Illiger, 1811 ...................................................... 23 2.4. Parasitismo em Dasyprocta Illiger, 1811 ............................................................ 26 2.5. Hospedeiros reservatórios e amplificadores de R. rickettsii ................................ 28 3. Objetivos .................................................................................................................... 29 3.1. Objetivo geral ...................................................................................................... 29 3.2. Objetivos específicos ........................................................................................... 29 4. Material e Métodos ................................................................................................... 30 4.1. Caracterização da área de estudo ......................................................................... 30 4.2. Delineamento amostral ........................................................................................ 32 4.3. Captura dos animais ............................................................................................ 33 4.4. Contenção química e biometria ........................................................................... 36 4.5. Manutenção em biotério e soltura dos animais ................................................... 38 4.6. Identificação dos ectoparasitos ............................................................................ 39 4.7. Análise dos dados ................................................................................................ 40 5. Resultados ................................................................................................................. 41 5.1. Captura e biometria ............................................................................................. 41 5.2. Prevalência, intensidade e abundância de parasitismo por Amblyomma spp. ..... 43 5.3. Identificação das espécies de Amblyomma spp. .................................................. 46 6. Discussão ................................................................................................................... 47 7. Conclusões ................................................................................................................. 57 8. Referências Bibliográficas ....................................................................................... 58 Resumo Este estudo teve como objetivo identificar o potencial de parasitismo de Amblyomma spp. (carrapatos-estrela) em indivíduos da espécie Dasyprocta azarae (cutia) no campus da Universidade de São Paulo de Ribeirão Preto. Entre os meses de janeiro de 2012 e janeiro de 2013 foram realizadas coletas acompanhando a sazonalidade do carrapatoestrela. Os animais capturados foram mantidos em biotério e os seus carrapatos contados e identificados. Foram avaliadas a prevalência, intensidade média, intensidade máxima e abundância média de infestação por Amblyomma spp. Todos os indivíduos capturados (n=12) apresentaram-se parasitados por estádios imaturos de Amblyomma spp, totalizando 1690 larvas e 665 ninfas de carrapatos-estrela. A prevalência de infestação de 100% sugere forte relação entre o ambiente ocupado pelas cutias e pelos carrapatos. A intensidade e abundância médias de infestação foram 234,80 ± 256,01, com intensidade máxima de 707 carrapatos em um único animal. Foram encontradas apenas formas imaturas (larvas e ninfas) de carrapatos, o que corrobora a hipótese da espécie de cutia estudada ser hospedeira secundária de Ambylomma cajennense, espécie que representou a maior porcentagem de parasitismo (99,14%), quando comparada a Amblyomma dubitatum (0,86%). A relação de parasitismo entre o carrapato-estrela e as cutias pode ser um indicativo de desequilíbrio ambiental no campus da USP-RP. Palavras-chave: parasitologia, carrapato-estrela, Amblyomma, cutia, Dasyprocta azarae, hospedeiro secundário. 1 1. Introdução Parasitas estão presentes em quaisquer populações naturais e são essenciais ao equilíbrio de suas comunidades (CROLL, 1968). Carrapatos são ectoparasitas que dependem da presença de uma ou mais espécies de vertebrados para se estabelecer em um ecossistema, mas apenas a presença dos hospedeiros não é suficiente, pois fatores abióticos determinam sua sobrevivência e desenvolvimento no ambiente (ESTRADAPEÑA et al., 2004). Mudanças ambientais podem afetar populações de hospedeiros e parasitas, criando novas relações de parasitismo ou alterando e até extinguindo relações já existentes; desta forma, o estudo da fauna de ectoparasitos de uma região pode indicar modificações no ambiente em uma escala temporal (LABRUNA et al., 2002b). Um dos efeitos mais significativos da fragmentação e degradação de ambientes naturais é a alteração na composição da fauna ao longo do tempo; enquanto algumas espécies são extintas localmente, outras colonizam o fragmento e passam a fazer parte de sua biota (JORDANO et al., 2006), pois as espécies afetadas podem responder de diferentes maneiras à fragmentação (ROBINSON et al., 1992). Fatores como a homogeneização da oferta de alimentos e de habitat são geralmente negativos para a fauna, causando declínio de suas populações; contrariamente, algumas alterações podem levar ao favorecimento de determinadas espécies: a substituição de ambientes naturais por paisagens agropastoris pode favorecer o aumento populacional de espécies sinantrópicas com alta capacidade reprodutiva, pouca exigência quanto ao habitat e de dieta generalista como as capivaras e os gambás (PINTO, 2003; FERRAZ et al., 2006). A capivara, Hydrochoerus hydrochaeris (Linnaeus, 1766), por exemplo, expandiu sua presença em muitas áreas naturais antropizadas, provavelmente devido a algumas de suas características, como o curto período de gestação, fácil adaptação em habitats alterados e dieta generalista, além da ausência de predadores naturais e da proibição de caça (QUEIROGAS, 2010). O mesmo autor afirma que as modificações ambientais de origem antrópica beneficiaram não apenas os animais capazes de se adaptar a áreas modificadas, mas também seus parasitos. No interior do estado de São Paulo, capivaras são abundantes em áreas endêmicas para a Febre Maculosa Brasileira (FMB), uma doença transmitida ao homem pela picada de carrapatos do gênero Amblyomma (Acari: Ixodidae), notadamente Amblyomma cajennense Fabricius, 1787, 2 espécie conhecida popularmente por carrapato-estrela e vetor da Rickettsia rickettsii (Wolbach, 1919), a bactéria causadora da FMB. É crescente a preocupação com doenças emergentes que surgem a partir do contato entre a vida selvagem, os animais domésticos e o homem (LAFFERTY, 1997). Carrapatos são reconhecidamente transmissores de agentes biológicos (e.g. vírus, bactérias e protozoários) e para entender a ecologia das zoonoses por eles transmitidas é necessário investigar a interação entre patógenos, vetores e hospedeiros (PAULASKAS et al., 2009). Entretanto, segundo Bossi et al. (2002), a maioria dos estudos sobre ectoparasitas incluem inventários, descrições taxonômicas e relatos de associações entre parasitas e seus hospedeiros, mas poucos avaliam as interações sob uma abordagem ecológica. As infestações de carrapatos-estrela em dois campi da Universidade de São Paulo, na ESALQ em Piracicaba e, mais recentemente, em Ribeirão Preto, são exemplos de desequilíbrios ambientais resultantes dos processos supracitados, decorrentes da atividade humana. O município de Ribeirão Preto, particularmente, sofreu grande alteração em sua paisagem natural, marcada pela degradação e fragmentação das áreas florestais, notadamente devido aos ciclos econômicos do café e da cana-de-açúcar no século passado e, mais recentemente, à expansão urbana (KOTCHETKOFFHENRIQUES, 2003). Como relata Perez (2007), a partir da realização do diagnóstico ambiental do campus “Luiz de Queiroz” foi possível identificar um conjunto de indicadores que classificam determinadas áreas como de alto risco para infestação pelo carrapato-estrela, tais como: histórico de reclamações de picadas de carrapatos pelos frequentadores do campus; proximidade de locais de pesquisa e trabalho a matas ciliares; corpos d‟água e alimento em abundância para os hospedeiros e relatos de observação de capivaras e gambás. Dessa forma, verifica-se que o campus de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo encontra-se em uma área propícia para a proliferação do carrapato-estrela, pois atende às características acima citadas, conforme corroborado por Ortiz (2012). Visando prevenir problemas de saúde pública, faz-se necessário identificar os hospedeiros primários e secundários do carrapato-estrela em áreas endêmicas para FMB, visto que eles podem ser utilizados como indicadores biológicos dos níveis de infestação no ambiente (PEREZ, 2008). Este estudo foi realizado com o objetivo de 3 identificar a importância da espécie Dasyprocta azarae Lichtenstein, 1823 (cutia) na manutenção do ciclo de vida do carrapato-estrela e na dispersão de seus estádios imaturos no ambiente. As informações obtidas poderão elucidar o papel das cutias na epidemiologia da FMB e os impactos das modificações ambientais nas relações estabelecidas entre a comunidade de mamíferos hospedeiros e o carrapato-estrela no campus da USP-RP. 4 2. Revisão Bibliográfica 2.1. Caracterização geral dos carrapatos Carrapatos são artrópodes ectoparasitas que se alimentam, em todas as fases pósembrionárias, de sangue, linfa e/ou restos tissulares presentes na pele de animais vertebrados (VIEIRA et al., 2004). Apresentam características morfológicas distintas, como a presença de hipostômio e quelíceras denticulados, órgão de Haller e placas espiraculares (BARROS-BATTESTI et al., 2006). São de grande importância médicoveterinária, por serem vetores de arbovírus, bactérias e protozoários (BAKER, 1999), além de causarem injúrias aos hospedeiros pela introdução de toxinas, e por poderem provocar irritação e infecção nos locais em que se fixam (FLECHTMANN, 1975). São ácaros incapazes de locomoção a grandes distâncias, mas podem ser transportados por seus hospedeiros, o que, aliado a elevadas taxas reprodutivas, os torna organismos com alta capacidade de dispersão nos mais variados ambientes (RHOR, 1909). A revisão mais recente da sistemática dos carrapatos foi realizada por Guglielmone et al. (2010). Segundo estes autores, são reconhecidas atualmente 896 espécies de carrapatos, divididas em três famílias: Argasidae (193 spp.), Ixodidae (702 spp.) e Nuttalliellidae (1 spp.). No Brasil, existem 61 espécies de carrapatos, sobretudo da família Ixodidae, representada na região Neotropical pelos gêneros Amblyomma, Dermacentor, Haemaphysalis, Ixodes e Rhipicephalus (BARROS-BATTESTI et al., 2006). Segundo Nava et al. (2009), a origem dos carrapatos é incerta, devido à escassez de registros fósseis, os mais antigos datando do retáceo m dio m a . As hipóteses correntes na literatura baseiam-se em evidências (morfológicas, ecológicas e biogeográficas) obtidas a partir das espécies atuais, variando entre os períodos Paleozóico superior e Mesozóico inferior 3 a 2 m a , embora alguns autores sugiram origens mais remotas, no Devoniano (OLIVER, 1989), ou mais recentes, no Cretáceo (KLOMPEN et al., 1996). Mans et al. (2011) encontraram indivíduos da espécie Nuttalliella namaqua Bedford, 1931, única representante da família Nuttalliellidae, na África do Sul; dada à posição basal desta família em relação às demais, eles sugerem que as linhagens ancestrais de carrapatos originaram-se na região, antiga Gondwana, no Permiano médio (260-270 m.a.), como parasitas de terapsídeos (ancestrais de mamíferos). De acordo com os autores, a diversificação de vertebrados e 5 diápsidos após o evento de extinção em massa do Permo-Triássico (251 m.a.) ocorreu paralelamente aos eventos de especiação que originaram a maioria das espécies de carrapatos. A caracterização dos carrapatos ixodídeos aqui apresentada baseia-se em Barros-Battesti et al. (2006): os indivíduos da família Ixodidae apresentam um ciclo de vida constituído por um estádio inativo (ovo) e três estádios móveis e hematófagos (larva, ninfa e adulto). As larvas são hexápodes e as ninfas e os adultos são octópodes, sendo facilmente distinguíveis pelo tamanho. Os machos possuem um escudo esclerotizado que cobre toda a região dorsal, razão pela qual os ixodídeos são chamados de “carrapatos duros”, diferentemente dos argasídeos, que por não possuírem escudo são chamados de “carrapatos moles” Os ixodídeos alimentam-se durante vários dias sobre o hospedeiro, período denominado de repasto sanguíneo, após o qual descem ao solo e sofrem a ecdise. A maioria das espécies de carrapatos ixodídeos é trioxena, pois completa o ciclo de vida em três hospedeiros, não necessariamente da mesma espécie. Após a cópula e repasto, a fêmea desce do hospedeiro e põe milhares de ovos no solo, morrendo em seguida, enquanto o macho permanece no hospedeiro e copula com várias fêmeas. 6 2.2. Biologia do carrapato-estrela Amblyomma spp. O gênero Amblyomma Koch, 1844 possui 130 espécies válidas (GUGLIELMONE et al., 2010), sendo que 45 espécies são endêmicas da região Neotropical (VOLTZIT, 2007) e 33 ocorrem no Brasil (BARROS-BATTESTI et al., 2006), constituindo assim o gênero com maior número de espécies de carrapato no país. Pela ornamentação característica dos machos, as espécies do gênero Amblyomma são comumente chamadas de “carrapatos-estrela”, sendo que os mais frequentemente encontrados no interior do estado de São Paulo são Amblyomma cajennense (Fabricius, 1787) e Amblyomma dubitatum Neumann, 1899. Segundo Guglielmone et al. (2010), Amblyomma cajennense (Fabricius, 1787) é a espécie tipo do gênero Amblyomma Koch, 1844, embora os autores comentem sobre a hipótese de que ela comporte um complexo de espécies crípticas1. A espécie A. dubitatum Neumann, 1899 é frequentemente citada como seu sinônimo-júnior, Amblyomma cooperi Nuttall and Warburton, 1908. A. cajennense é considerada de grande relevância para a saúde pública no Brasil, por ser importante vetor da bactéria R. rickettsii, agente etiológico da Febre Maculosa Brasileira (FMB) (HORTA et al., 2009), enquanto A. dubitatum parece desempenhar um papel secundário na epidemiologia da FMB, tendo sido isolada, a partir de um exemplar desta espécie parasitando capivaras, uma riquétsia do grupo da febre maculosa numa área endêmica para FMB em Pedreira, SP (LEMOS et al., 1996). Além disso, A. dubitatum é um potencial vetor de Rickettsia parkeri e Rickettsia bellii em áreas endêmicas para FMB (LABRUNA et al., 2004) e recentemente foi relatado o parasitismo de imaturos e adultos dessa espécie no homem (LABRUNA et al., 2007). A espécie A. cajennense é notadamente mais abordada na literatura e será tratada aqui com maiores detalhes. Seu ciclo de vida pode ser resumido da seguinte maneira, de acordo com os trabalhos de Rohr (1909) e Guglielmone et al. (2006): Em geral, são necessários 30 a 40 dias de incubação dos ovos em temperatura ambiente para o início da eclosão das larvas, que se estende por cerca de 20 dias; temperaturas extremas (0ºC e 30ºC) estão fora da faixa ideal de incubação dos ovos. As larvas apresentam uma cor pardo-amarelada e formam aglomerados em pontas de capim 1 Espécies crípticas podem ser definidas como populações naturais reprodutivamente isoladas, mas morfologicamente semelhantes ou idênticas (MAYR, 1977) 7 e gravetos à espera de hospedeiros; quando um animal toca o local a maioria sobe e, após 3 a 7 dias de repasto sanguíneo, as larvas se desprendem e abrigam-se no solo dos ambientes visitados pelo hospedeiro, onde ocorre a ecdise, que pode levar de 4 a 8 semanas. Após a mesma as ninfas sobem em um novo hospedeiro, no qual se alimentam por 5 a 7 dias, retornando ao solo após o repasto e sofrendo nova ecdise, podendo demorar de 4 a 8 semanas até que se tornem adultos. Os adultos sobem em um novo hospedeiro após o endurecimento da cutícula e a cópula ocorre sobre o hospedeiro. As fêmeas alimentam-se por 7 a 10 dias, em um processo denominado ingurgitamento, e ao desprenderem-se do hospedeiro elas descem ao solo e põem mais de 7.000 ovos, durante aproximadamente 25 dias. Alguns dias após o término da oviposição a fêmea morre, enquanto os machos podem permanecer no hospedeiro por várias semanas, podendo copular com outras fêmeas. Rechav et al. (1997) relatam que os machos de A. cajennense produzem um feromônio de agregação enquanto se alimentam, capaz de atrair ninfas e adultos de ambos os sexos, o que torna o hospedeiro mais atrativo para outros carrapatos da mesma espécie, podendo assim favorecer o sucesso reprodutivo dos machos. 8 2.2.1. Distribuição geográfica de A. cajennense e A. dubitatum Estrada-Peña et al. (2004) revisaram 1277 registros de ocorrência de A. cajennense nas regiões Neártica e Neotropical, a partir de dados publicados na literatura e de coleções da Argentina e do Brasil, com base nos quais propuseram um novo mapa de distribuição geográfica para a espécie (Figura 1). Segundo os autores, a distribuição de A. cajennense nas Américas parece limitar-se ao norte (27ºN) e ao sul (29ºS), sobretudo devido a baixas temperaturas e diferentes padrões sazonais de precipitação. No Brasil, a maioria dos registros do carrapato-estrela provém de zonas com temperaturas médias anuais de 20ºC (18-26ºC); as baixas temperaturas restringem o estabelecimento de populações no sul do país. Semelhante distribuição foi encontrada por Labruna et al. (2005); os autores revisaram o parasitismo por Amblyomma spp. em Carnivora e elaboraram um mapa de distribuição geográfica, de acordo com os biomas brasileiros, para cinco espécies do gênero – Amblyomma ovale, Amblyomma tigrinum, Amblyomma aureolatum, Amblyomma parvum e Amblyomma cajennense. A espécie A. cajennense teve a maioria dos registros nos biomas da região central do país, Cerrado e Pantanal, mas também em alguns trechos degradados de Floresta Atlântica. Nava et al. (2010) revisaram os registros de ocorrência de A. dubitatum com base em dados publicados na literatura e coleções na Argentina, Brasil e Uruguai, resultando em um mapa de distribuição da espécie nas províncias biogeográficas da América do Sul, definidas por Morrone (2006) (Figura 2). A espécie apresenta a maioria dos registros no nordeste da Argentina, sudeste do Brasil, leste do Paraguai e parte do norte do Uruguai, notadamente nas províncias Pampa, Chaco, Cerrado, Floresta Atlântica e Floresta de Araucárias. Os autores apontam ainda que a distribuição de A. dubitatum é mais restrita do que a de seu principal hospedeiro, a capivara (H. hydrochaeris), o que sugere que fatores ambientais (e.g. clima e vegetação), além da presença de hospedeiros, influenciam na distribuição geográfica desse ácaro, tal como verificado para três outras espécies do gênero, entre elas A. cajennense (ESTRADAPEÑA et al., 2004). 9 Figura 1. Distribuição conhecida de Amblyomma cajennense nas regiões Neártica e Neotropical, baseada em revisão literária e de coleções da Argentina e do Brasil. Os registros na América do Norte incluem E.U.A. (Texas e Flórida) e México; na América Central incluem Belize, Nicarágua, Guatemala, Costa Rica, Panamá, El Salvador, Honduras, Cuba, Jamaica, Trinidad e Tobago e outras Pequenas Antilhas; na América do Sul incluem Colômbia, Venezuela, Guiana, Suriname, Guiana Francesa, Peru, Bolívia, Brasil, Paraguai e Argentina. Os registros com pontos mais claros no mapa (Uruguai e sul do Brasil) são apontados como identificações errôneas. Adaptado de Estrada-Peña et al. (2004). 10 Figura 2. Distribuição conhecida de Amblyomma dubitatum na América do Sul (pontos escuros). Os números representam províncias biogeográficas definidas por Morrone (2006): (15) Amapa; (21) Pantanal; (24) Cerrado; (25) Chaco; (26) Pampa; (28) Brazilian Atlantic Forest; (29) Parana Forest; (30) Araucaria angustifolia Forest. Adaptado de Nava et al. (2010). 11 2.2.2. Dinâmica sazonal de A. cajennense e A. dubitatum A hipótese de que certas estações do ano sejam especialmente favoráveis a determinados estádios do carrapato-estrela vem sendo discutida na literatura há décadas. Aragão (1936) notou que nas estações secas e frias o carrapato-estrela A. cajennense tornava-se praga no Brasil, sobretudo suas formas imaturas (larvas e ninfas). Recentemente, diversos estudos sobre a dinâmica sazonal desta espécie foram realizados no Rio de Janeiro (SERRA-FREIRE, 1982 apud OLIVEIRA et al., 2000), em Minas Gerais (OLIVEIRA et al., 2000) e em São Paulo (LABRUNA, 2000; LABRUNA et al., 2002a) e demonstraram que os estádios de vida-livre de A. cajennense apresentam uma geração por ano, com predominância de imaturos (larvas e ninfas) nas estações secas e frias (outono/inverno) e de adultos nas estações quentes e chuvosas (primavera/verão) (Figura 3). Figura 3. Dinâmica sazonal de Amblyomma cajennense de vida livre no sudeste brasileiro. Notar o maior número de formas imaturas (larvas e ninfas) na estação seca (abril a setembro) e o maior número de adultos na estação chuvosa (outubro a março). Fonte: Labruna (2000). Labruna et al., 2003 atribuíram este padrão sazonal à diapausa comportamental2 das larvas no período que antecede o início da estação seca, garantindo assim que os adultos entrem em atividade durante o período quente e chuvoso, com condições climáticas favoráveis à postura e incubação dos ovos e ao desenvolvimento da cobertura 2 Diapausa comportamental pode ser definida como “ausência de comportamento de busca por hospedeiros (BELOZEROV, 1982 apud LABRUNA et al., 2003). 12 vegetal, que protege ovos e larvas da dessecação. Segundo os autores, é provável que o início e o término da diapausa sejam controlados, respectivamente, pela maior ou menor incidência solar diária, como já demonstrado para insetos (NETO et al., 1976). Os estudos realizados por Souza et al. (2006) em São Paulo e Guedes e Leite (2008) em Minas Gerais sugerem diferenças entre a dinâmica sazonal de A. cajennense e de A. dubitatum. Adultos desta espécie tiveram aumento populacional a partir de agosto, antes do relatado na literatura para A. cajennense, com declínio a partir de março-abril. Quanto aos estádios imaturos, observou-se a presença de larvas e ninfas entre outubro e março, período em que as larvas de A. cajennense encontram-se, em princípio, em diapausa comportamental, o que levou os autores a considerarem tais imaturos como pertencentes à espécie A. dubitatum. Embora estes estudos tenham mostrado resultados que indicam um padrão sazonal diferenciado para as duas espécies, com prolongamento da disponibilidade de estádios de A. dubitatum em relação à população de A. cajennense, não foram encontradas formas imaturas em alguns períodos do ano, o que poderia sugerir a ocorrência de diapausa comportamental em larvas não alimentadas para as duas espécies de carrapatos estudadas. 13 2.2.3. Especificidade parasitária Rohr (1909) classificou os hospedeiros de ixodídeos como habituais e acidentais, justificando essa divisão como uma maneira de mostrar que os nomes comumente dados aos carrapatos (e.g. carrapato de boi, carrapato de cão, carrapato de coelho) constituem designações impróprias; para o autor, hospedeiro habitual é a espécie frequentemente parasitada pelo carrapato, enquanto o acidental é o hospedeiro parasitado quando o carrapato não encontra seu hospedeiro habitual, devido às condições ambientais. Croll (1968) classificou os hospedeiros em quatro categorias: definitivos (primários), intermediários (secundários), paratênicos e vetores (Tabela 1). Hospedeiros paratênicos, embora sejam parasitados por formas infestantes (imaturas), tornando-as disponíveis para hospedeiros definitivos (primários), não devem ser confundidos com hospedeiros intermediários (secundários), pois nestes há desenvolvimento do parasita, sendo, portanto, essenciais ao seu ciclo de vida. Tabela 1. Classificação dos hospedeiros e sua relação com os parasitas. Adaptado de Croll (1968). Hospedeiro Estádio do parasita Necessidade Papel no ciclo de vida Definitivo (primário) Adulto Essencial Desenvolvimento e maturação sexual Intermediário (secundário) Imaturo Essencial Desenvolvimento e transmissão Paratênico Imaturo “Ecológica” “Ecológico” Vetor Imaturo Essencial Transmissão Para que ocorra o estabelecimento de uma população de carrapatos trioxenos em um determinado ambiente é necessária tanto a presença dos hospedeiros primários, que satisfazem as condições necessárias para a reprodução dos indivíduos adultos, quanto a dos hospedeiros secundários, preferencialmente parasitados por formas imaturas (BARROS-BATTESTI et al., 2006). Aragão (1936) notou que algumas espécies do gênero Amblyomma apresentavam um “parasitismo muito disseminado” ou um “ecletismo no parasitismo” das fases imaturas, enquanto outras espécies parasitavam, especialmente durante a fase adulta, grupos restritos de animais. O autor apontou também que nos animais parasitados por 14 carrapatos existe predominância de determinada fase do desenvolvimento (larva, ninfa ou adulto) sobre as demais, denominando este fenômeno como “predileção parasitária” e atribuindo-a à época do ano e à biologia do carrapato. Hoogstraal e Aeschlimann (1982) definem “especificidade parasita-hospedeiro” como uma associação entre uma espécie de carrapato e outra de vertebrado (ou grupo de espécies de vertebrados), que seja essencial para a reprodução e sobrevivência das populações do carrapato. Segundo os autores, vertebrados que apresentam comportamentos gregários e associados a locais de descanso e reprodução são geralmente parasitados por carrapatos com maior grau de especificidade, enquanto vertebrados errantes, com grandes áreas de vida e baixas densidades populacionais são em geral parasitados por carrapatos com médio a baixo grau de especificidade. Foram definidas seis categorias de especificidade parasitária, variando de estritamente específica a generalista (Tabela 2). Segundo Croll (1968), o grau de especificidade de um parasita é diretamente proporcional às suas demandas fisiológicas, de tal maneira que estas devem ser supridas pelo hospedeiro. Baer (1951), entretanto, afirma que a ausência de parasitismo por determinada espécie pode ter causas ecológicas, pelo simples fato do hospedeiro não ter entrado em contato com estádios infestantes; o autor defende o uso criterioso da expressão “imunidade natural”, já que um hospedeiro não infestado não necessariamente possui anticorpos que o protejam de determinado parasita, podendo ser parasitado ao entrar em contato com este. Gaafar et al. (1985) vê a baixa especificidade de parasitismo das formas imaturas como uma vantagem evolutiva, que confere às formas infestantes a capacidade de completarem seu desenvolvimento em mais de um hospedeiro. 15 Tabela 2. Especificidade carrapato-hospedeiro. Adaptado de Hoogstraal e Aeschlimann (1982). CATEGORIAS DE ESPECIFICIDADE Total-Estrita (Strict-Total) Adultos e imaturos (larvas e ninfas) são estritamente específicos para um grupo limitado de hospedeiros. TAXA ARGASIDAE Todos os gêneros IXODIDAE Aponomma e Boophilus3, Margaropus Total-Moderada (Moderate-Total) Adultos e imaturos (larvas e ninfas) são estritamente específicos para um grupo não tão limitado de hospedeiros (dados disponíveis são frequentemente imprecisos). ARGASIDAE Ornithodoros IXODIDAE Ixodes, Amblyomma, Rhipicephalus Estágio-Estágio-Estrita (Strict-Stage-Stage) Adultos e imaturos são isoladamente específicos para diferentes grupos limitados de hospedeiros. IXODIDAE Ixodes, Amblyomma, Hyalomma, Dermacentor, Nosomma, Rhipicephalus Estágio-Estágio-Estrita/Moderada (Strict-Moderate-Stage-Stage) a) Adultos são estritamente específicos para determinado grupo de hospedeiros; imaturos são moderadamente específicos para um grupo diferente de hospedeiros. IXODIDAE b) Imaturos são estritamente específicos para determinado grupo de hospedeiros; adultos são moderadamente específicos para um grupo diferente de hospedeiros. Estágio-Estágio-Moderada (Moderate-Stage-Stage) Adultos e imaturos são moderadamente específicos para diferentes grupos limitados de hospedeiros. IXODIDAE Indeterminada (Nonparticular) Adultos e imaturos são generalistas quanto aos hospedeiros. IXODIDAE 3 Trabalhos taxonômicos recentes não consideram estes gêneros válidos. Algumas espécies do gênero Aponomma foram posicionadas em Bothriocroton e as demais no gênero Amblyomma. Já o gênero Boophilus foi classificado como sinônimo de Rhipicephalus (Guglielmone et al., 2010). 16 Ainda de acordo com Hoogstraal e Aeschlimann (1982), a maioria dos carrapatos ixodídeos apresenta certo grau de especificidade; embora o gênero Amblyomma seja classificado como de especificidade total-moderada e estágio-estágioestrita, A. cajennense pertence à categoria “indeterminada”, ou seja, é pouco específico. Lopes et al. (1998) analisou a especificidade de A. cajennense em seis diferentes espécies de animais domésticos – coelho (Oryctolagus cuniculus), rato (Rattus norvegicus), galinha (Gallus gallus domesticus), pato (Anas platyrhynchus), codorna (Coturnix coturnix) e pomba (Streptopelia decorata). Cada potencial hospedeiro foi infestado com uma carga de larvas (n=500), ninfas (n=150) ou adultos (cinco machos, cinco fêmeas), de modo que para cada espécie doméstica houvesse animais infestados com apenas uma das fases de desenvolvimento dos carrapatos. Os coelhos apresentaram as maiores intensidades de parasitismo por larvas e ninfas, mas apenas cinco fêmeas parcialmente ingurgitadas foram obtidas de dois desses animais; destas, apenas duas produziram ovos, não viáveis. O estudo demonstrou que A. cajennense apresenta menor especificidade nos estádios imaturos, sobretudo nas larvas, e que nenhuma das espécies domésticas analisadas é capaz de sustentar o ciclo de vida do carrapato-estrela, embora possam ser importantes na dispersão de larvas e ninfas em áreas infestadas. A baixa especificidade dos estádios imaturos de A. cajennense, embora necessite ser confirmada em mais estudos, pode ser uma explicação do alto potencial de sobrevivência e da vasta distribuição geográfica da espécie, condizendo com resultados de diversos estudos que apontam o carrapato-estrela como a espécie mais encontrada sob a forma de vida-livre no ambiente (CANÇADO, 2008; PEREZ, 2007; OGRZEWALSKA, 2009), oferecendo os maiores riscos de disseminação de patógenos, tanto para animais domésticos quanto para o homem. 17 2.2.4. Amblyomma cajennense e seus hospedeiros O primeiro registro sistematizado na literatura sobre os hospedeiros dos carrapatos ixodídeos no Brasil foi realizado por Rohr (1909). Segundo o autor, os mamíferos são os vertebrados mais frequentemente parasitados pelos ixodídeos, seguidos pelas aves, os “r pteis” e raramente os anfíbios Dentre as ordens de mamíferos conhecidas, apenas cetáceos e pinípedes não apresentam registro de parasitismo por carrapatos. Os hospedeiros registrados por Rohr (1909) para A. cajennense incluem tanto animais domésticos como silvestres, além do homem. Robinson (1926) e Aragão (1936) confirmam o amplo parasitismo de A. cajennense, acrescentando outros registros (Tabela 3). Tabela 3. Parasitismo por Amblyomma cajennense em espécies de animais domésticos e silvestres (nomes populares). Adaptado de Rohr (1909), Robinson (1926) e Aragão (1936). Hospedeiros de Amblyomma cajennense Domésticos Silvestres Rohr (1909) cavalo, boi, cão, porco, veado, porco-do-mato, cachorro do mato, anta, carneiro, cabra, coelho capivara, cutia, tamanduá-bandeira, quati, tatu Robinson (1926) cavalo, boi, cão, porco, veado, cateto, cachorro do mato, anta, capivara, carneiro, coelho tamanduá-bandeira, tamanduá-mirim, quati, tatu, sapo Aragão (1936) cavalo, boi, cão, porco, carneiro, cabra, coelho, gato, codorna, peru, galinha veado mateiro, veado catingueiro, cervo, porco-domato, cachorro do mato, cutia, tamanduá-bandeira, tamanduá-mirim, quati, tatu, coelho do mato, sagui, onça-pintada, onça-parda, gato do mato, paca, morcego, guariba, macaco, porco-espinho, mocó, seriema, cobra, lagarto Estrada-Peña et al. (2004), após uma revisão da literatura sobre os hospedeiros de A. cajennense, concluiram que a espécie é generalista – com relatos de parasitismo por adultos e imaturos em diversas ordens de mamíferos silvestres, dentre elas: Didelphimorphia (Didelphidae), Cingulata (Dasypodidae), Pilosa (Myrmecophagidae), Carnivora (Canidae e Procyonidae), Perissodactyla (Tapiridae), Artiodacytla (Tayassuidae e Cervidae), além de animais domésticos (cavalo, gado e cachorro). Os autores citam a presença de estádios imaturos em diversas famílias de roedores (Caviidae, Muridae, Dasyproctidae, Chinchillidae, Capromyidae e Echimyidae), além de aves passeriformes, que parecem ser hospedeiros secundários, contribuindo para 18 dispersar formas imaturas, mas não adultos. Alguns dos principais trabalhos revisados por Estrada-Peña et al (2004) serão detalhados a seguir: Labruna et al. (2002b) relatam parasitismo por A. cajennense em nove espécies de mamíferos de diferentes ordens (Pilosa, Primates, Carnivora, Artiodactyla e Rodentia); com exceção de Myrmecophaga tridactyla (Pilosa) e Pecari tajacu (Artiodactyla), espécies em que foram encontrados adultos, todos os demais hospedeiros abrigavam apenas estádios imaturos (larvas e ninfas) do carrapato estrela. Os autores acreditam que a abundância de infestação por A. cajennense em uma variedade de animais silvestres pode estar relacionada à disponibilidade de hospedeiros primários (cavalos, gado, anta, capivara, porco-do-mato) no ambiente, bem como às condições ambientais favoráveis aos estádios de vida-livre do carrapato. Labruna et al. (2005) realizaram uma revisão dos carrapatos parasitas de carnívoros silvestres no Brasil e encontraram A. cajennense em dez espécies, distribuídas nas famílias Felidae (4 spp.), Canidae (4 spp.) e Procyonidade (2 spp.). A. cajennense foi a segunda espécie mais comum entre hospedeiros da ordem Carnivora, sendo a maioria dos registros de fases imaturas (larvas e ninfas), o que, segundo os autores, confirma a baixa especificidade dos estádios imaturos deste carrapato. Vários trabalhos relatam parasitismo por formas adultas de A. cajennense em M. tridactyla (tamanduá-bandeira), na Serra da Canastra (MG) (BOTELHO et al., 1989), no Parque Nacional das Emas (GO) (BECHARA et al., 2002) e no Pantanal sul-matogrossense (MARTINS et al., 2004). Em geral a infestação é baixa e associada com outras espécies do gênero, como A. calcaratum e A. nodosum – espécies encontradas em sua fase adulta quase que exclusivamente em tamanduás – ou A. parvum, carrapato encontrado em várias espécies de hospedeiros, inclusive humanos. Nos estudos realizados no Pantanal sul-mato-grossense por Bechara et al. (2000) e Pereira et al. (2000) A. cajennense foi a espécie de carrapato mais encontrada em animais silvestres – Blastocerus dichotomus (cervo-do-pantanal), Mazama gouazoubira (veado-catingueiro), Nasua nasua (quati), M. tridactyla (tamanduá-bandeira), Tamandua tetradactyla (tamanduá-mirim), H. hydrochaeris (capivara), além de animais domésticos como o cavalo, gado e cão. Ito et al. (1998) relatam a presença de ninfas e adultos de A. cajennense em P. tajacu (cateto) e Tayassu pecari (queixada), atribuindo a 19 disseminação desta espécie de carrapato no Pantanal sul-mato-grossense ao contato de animais domésticos infestados com animais silvestres. Semelhante conclusão é tomada por Szabó et al. (2003), pois o autor considera os cavalos e outros hospedeiros primários como fonte de infestação de A. cajennense para a espécie B. dichotomus (cervo-do-pantanal). Entre os mais amplos trabalhos realizados no Pantanal sul-mato-grossense figura o de Cançado (2008), que encontrou adultos de A. cajennense parasitando Sus scrofa (porco-monteiro). Segundo o autor, os valores de prevalência e intensidades encontrados, associados à alta taxa de sobrevivência de larvas eclodidas a partir de ovos das fêmeas ingurgitadas coletadas sugerem que o porco-monteiro é um importante hospedeiro e amplificador para o carrapato-estrela na região estudada. Nesse mesmo trabalho foram encontrados adultos e imaturos de A. cajennense nas seguintes espécies: Canis familiaris (cão doméstico), Cerdocyon thous (cachorro-do-mato), Procyon cancrivorus (mão-pelada), Leopardus pardalis (jaguatirica), N. nasua (quati), Ozotoceros bezoarticus (veado-campeiro), D. azarae (cutia), Trichomys sp. (rabudo), T. pecari (queixada), P. tajacu (cateto), M. tridactyla (tamanduá-bandeira), T. tetradactyla (tamanduá-mirim), tatu (Dasypodidae), além de animais domésticos como bovinos e cavalos, e também o homem. O autor indica também outras espécies registradas no Pantanal com parasitismo por A. cajennense, tais como Panthera onca (onça-pintada), Puma concolor (suçuarana), M. gouazoubira (veado-catingueiro), B. dichotomus (cervo-do-pantanal), H. hydrochaeris (capivara), Tapirus terrestres (anta) e ouriço. Relatos de parasitismo por carrapatos em pequenos roedores são vastos na literatura (LINARDI et al., 1991a; LINARDI et al., 1991b; LINARDI et al., 1991c; BARROS-BATTESTI et al., 1998; BITTENCOURT; ROCHA, 2003), mas a dificuldade na identificação de estádios imaturos leva os autores a classificarem os carrapatos coletados apenas como pertencentes ao gênero Amblyomma. Salvo estes casos, a ocorrência de formas imaturas de A. cajennense tem sido reportada em algumas espécies de roedores das famílias Cricetidae – Akodon arviculoides e Zygodontomys lasiurus (=Necromys lasiurus), Oryzomys utiaritensis (=Olygoryzomys nigripes) e Oxymycterus roberti (LINARDI et al., 1987); Oryzomys russatus (=Euryoryzomys russatus) e Nectomys squamipes (BOSSI et al., 2002); Oryzomys megacephalus (=Hylaeamys megacephalus) (REIS et al., 2008) – Echimyidae – Proechimys iheringi 20 (=Trinomys iheringi) (BOSSI et al., 2002) e Caviidae – Galea musteloides (GUGLIELMONE; NAVA, 2010), este último relato na Bolívia. Perez et al. (2008) reportaram parasitismo por adultos de A. cajennense em H. hydrochaeris (capivara) e por imaturos (larvas e ninfas) em Didelphis albiventris (gambá-de-orelha-branca), além de 13 espécies de aves parasitadas por larvas e ninfas de Amblyomma spp., com destaque para Coragyps atratus (urubu), que apresentou maior prevalência e intensidade de infestação por carrapatos deste gênero dentre as aves. Rojas et al. (1999) reportou pela primeira vez o parasitismo de formas imaturas de A. cajennense em 28 espécies de pássaros da ordem Passeriformes. Entretanto, Ogrzewalska (2009) considera os resultados obtidos neste trabalho duvidosos, pois a identificação dos carrapatos foi realizada apenas por comparação morfológica. A autora encontrou estádios imaturos de A. cajennense em apenas seis espécies de aves, com maior prevalência em Não-Passeriformes do que em Passeriformes, em um ambiente com grande abundância deste carrapato, o que a levou a concluir que A. cajennense exibe certa restrição quanto ao parasitismo em aves. 21 2.2.5. Amblyomma dubitatum e seus hospedeiros São poucos os relatos de parasitismo por esta espécie, muitos dos quais se referem ao seu sinônimo-júnior A. cooperi. É reconhecida por vários autores quanto à preferência de estádios imaturos e adultos pela capivara H. hydrochaeris (ARAGÃO, 1936; ROBINSON, 1926; EVANS et al., 2000; LABRUNA et al., 2002; PEREZ et al., 2008; NAVA et al., 2010), considerada como o seu principal hospedeiro primário. Nava et al. (2010) realizaram uma revisão de literatura do parasitismo por A. dubitatum e encontraram relatos de estádios imaturos e adultos nas seguintes espécies: T. terrestris (anta), M. gouazoubira (veado-catingueiro), T. pecari (queixada), S. scrofa (javali), C. thous (cachorro-do-mato), Myocastor coypus (ratão-do-banhado), Allouata caraya (bugio-preto), Glossophaga soricina (morcego-beija-flor), além de gado, cavalos e homem. Larvas e ninfas também foram coletadas nas espécies: D. albiventris (gambá-de-orelha-branca), Didelphis aurita (gambá-de-orelha-preta), Lagostomus maximus (viscacha) e em Lundomys molitor e Scapteromys tumidus (roedores cricetídeos); também há registro de uma ninfa em Rhea americana (ema). Estudos devem ser feitos com objetivo de avaliar se tais espécies são relevantes para o ciclo de vida de A. dubitatum ou se são apenas hospedeiros acidentais ou paratênicos para o carrapato. 22 2.3. Biologia do gênero Dasyprocta Illiger, 1811 Rodentia Bowdich, 1821 é a ordem mais ampla dentre os mamíferos viventes, com 33 famílias, 481 gêneros e 2.277 espécies válidas reconhecidas até 2005, que representam cerca de 42% da biodiversidade de espécies de mamíferos do mundo (CARLETON; MUSSER, 2005). No Brasil são descritos 74 gêneros e 238 espécies (REIS et al., 2010). Os roedores diferenciam-se dos demais mamíferos pela capacidade de roer os alimentos, conferida por uma dentição específica composta de um único par de incisivos (superiores e inferiores) com crescimento contínuo, mas caninos ausentes, formando-se um grande espaço vazio (diastema) entre os incisivos e os pré-molares (EISENBERG; REDFORD, 1999; NOWAK, 1999). As cutias são roedores da família Dasyproctidae Bonaparte, 1838, pertencentes ao gênero Dasyprocta Illiger, 1811. Embora a família forme um grupo monofilético, com dois únicos gêneros, Dasyprocta Illiger, 1811 e Myoprocta Thomas, 1903, claramente distinguíveis entre si pela morfologia e utilização de habitat, as relações filogenéticas inter-específicas e supra-específicas não estão bem estabelecidas, sobretudo devido à grande variabilidade cromática das pelagens (OJASTI, 1972). Os registros fósseis de Dasyproctidae remontam ao Eoceno (55 m.a.), sendo considerados os registros mais antigos de roedores histricognatos na América do Sul (WYSS et al, 1993). Atualmente são reconhecidas 11 espécies válidas dentro do gênero Dasyprocta, cinco das quais ocorrem no Brasil: D. azarae, D. fuliginosa, D. leporina, D. prymnolopha e D. punctata (WOODS; KILPATRICK, 2005). Entretanto, a taxonomia do gênero é controversa. Iack-Ximenes (1999) realizou a mais recente revisão taxonômica da família Dasyproctidade e, a partir da análise de 1214 espécimens (peles e crânios), reconheceu dozes espécies do gênero Dasyprocta no Brasil, distribuídas em três grupos – azarae, cristata e leporina – com base no tipo e na saturação dos pêlos da garupa4. 4 Nos Dasyproctidae, a garupa é tanto um campo tricogenético (hipertricose ou aumento significativo no comprimento dos pêlos), quanto cromogenético (área pigmentada), por isso denominada por IackXimenes (1999) como campo tricocromogenético, 23 O grupo azarae é caracterizado por uma garupa com pêlo aguti – padrão homogêneo de faixas intercaladas de eumelanina (pigmento marrom escuro) e feomelanina (pigmento avermelhado). É representado apenas por uma espécie, D. azarae, cuja distribuição está associada a regiões de matas decíduas e semidecíduas, ocorrendo da região Centro-Oeste ao sul do Brasil (Mato Grosso, Goiás, Minas Gerais, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul). O grupo cristata é caracterizado por uma garupa negra, cujos pêlos são eumelânicos com faixa subterminal ou terminal de feomelanina. É representado por quatro espécies, D. cristata, D. nigriclunis e duas não descritas – Dasyprocta sp.1 e Dasyprocta sp.2. Ocorre no oeste do país (Amazonas, Acre, Rondônia, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul), e ao leste, no interior da Bahia e Goiás, em floresta ombrófila, zona de contato com savana e savana estépica florestada. O grupo leporina é caracterizado por uma garupa alaranjada, composta por pêlos aguti modificados saturados de feomelanina. É representado pelas espécies D. aguti, D. aurea, D. catrinae, D. croconota, D. leporina, D. prymnolopha e a não descrita Dasyprocta sp.3. Distribui-se por toda a costa do país até o norte de São Paulo, restrito na região amazônica à margem direita do rio Madeira e à margem esquerda do rio Negro, e associada à floresta ombrófila. Os animais do gênero Dasyprocta são descritos como de tamanho muito grande entre os roedores, com dorso posterior longo e fortemente curvado, membros anteriores menores que os posteriores, patas anteriores com quatro dígitos e posteriores com três e cauda vestigial nua; possuem incisivos com coloração alaranjada, olhos relativamente pequenos, orelhas curtas, quatro pares de mamas e coloração da pelagem do dorso posterior (garupa) variando nas diferentes espécies, podendo ser oliváceo-agrisalhada, amarelo-alaranjada, laranja-avermelhada, castanho-escura ou até preta (BONVICINO et al. 2008; ROSSANEIS et al., 2010). As cutias são animais cursoriais de habitat terrestre, que pode variar entre florestas pluviais, florestas semidecíduas, cerrados e até caatingas, geralmente com distribuição associada a cursos de água (EMMONS; FEER, 1997; BONVICINO et al., 2008). São diurnas, com maior atividade associada ao início da manhã e final da tarde, porém, em ambientes perturbados (e.g. caça) podem apresentar atividade noturna (DEUTSCH; PUGLIA, 1988). Vivem em pares monogâmicos, atingindo a maturidade sexual aos seis meses; a gestação dura de 105 a 120 dias, podendo ocorrer até duas 24 gestações por ano, com o número de filhotes variando de um a três (ROSSANEIS et al., 2010). As cutias possuem uma dieta baseada em frutos e sementes e apresentam um comportamento escavador (scatter-hoarding) de enterrar sementes e outros itens alimentares em pequenas quantidades em diversos locais e procurá-los no futuro, principalmente durante períodos de escassez de alimentos (SMYTHE, 1978). Tal comportamento evita a competição intra e interespecífica por recursos alimentares, além de propiciar a dispersão de sementes de grande porte de árvores neotropicais, já que nem todas as sementes enterradas são recuperadas (SANTOS, 2005; JORGE, 2007). As cutias podem ser consideradas espécies cinegéticas, pois são facilmente caçadas e possuem carne muito apreciada (SMYTHE, 1978). Embora nenhuma das espécies que ocorrem no Brasil esteja ameaçada5, a espécie D. aguti é considerada “Quase ameaçada” no Estado de São Paulo6, o que é questionável já que a distribuição desta espécie está associada à região amazônica. A espécie D. azarae é colocada na categoria Dados deficientes na Lista Vermelha da IUCN, devido à incerteza taxonômica, porém suspeita-se que ela seja uma espécie ameaçada (CATZEFLIS et al., 2012). 5 6 Instrução Normativa MMA nº 03, de 27 de maio de 2003. Decreto Estadual nº 56.031 de 20 de Julho de 2010. 25 2.4. Parasitismo em Dasyprocta Illiger, 1811 De forma geral, há pouca informação na literatura sobre o parasitismo em Dasyprocta. Macedo (2008) informa que a fauna parasitológica de Dasyprocta tem sido investigada na região amazônica, mas que para outras regiões do país ainda há poucos estudos, a maioria consistindo em análises coproparasitológicas. Segundo Durette-Desset et al. (2006), doze espécies de nematódeos gastrointestinais já foram registrados parasitando cutias das espécies D. leporina, D. fuliginosa e D. azarae, mas recentemente tais helmintos foram observados também em D. prymnolopha (MACEDO, 2008), e novas espécies têm sido descritas (GONÇALVES et al., 2007). Baas et al. (1976) apud Brown-Uddenberg et al. (2004) citam o parasitismo por cestódeos gastrointestinais em D. punctata e D. azarae. Já a maior parte dos relatos de parasitismo por protozoários provém de D. leporina (MENDONÇA et al., 2006, LAINSON et al., 2007, REGINATTO et al., 2008). Sabe-se que algumas espécies do gênero participam como reservatórios e hospedeiros intermediários de endoparasitas, como Trypanosoma cruzi (RIBEIRO; BARRETO, 1977), Leishmania (Leishmania) amazonenses (BASANO et al., 2004), Babesia sp. e filarídeos (THOISY et al., 2000). Quanto aos ectoparasitos, existe relato de parasitismo em Dasyprocta sp. por pulgas (Siphonaptera) dos gêneros Rhopalopsyllus e Polygenis (LINARDI; GUIMARÃES, 2000) e piolhos (Phthiraptera) do gênero Gyropus (KELLOGG, 1914). Cucchi-Stefanoni et al. (2008) registraram a morte de duas cutias (D. mexicana) mantidas em cativeiro, provocada por anemia decorrente de severas infestações por pulgas do gênero Echidnophaga, causadoras de lesões cutâneas e dermatite em roedores. Rohr (1909) cita a espécie D. aguti como hospedeira para as seguintes espécies de carrapatos: Ixodes fuscipes, Haemaphysalis proxima7, A. brasiliense e A. cajennense. Aragão (1936) cita a espécie D. aguti como hospedeira para Ixodes fuscipes e relata um fato curioso: a confusão entre as fases imaturas ou “micuins” do carrapato-estrela A. cajennense e do ácaro, Trombicula brasiliensis (=Tetranychus molestissimus), chamado 7 Segundo Guglielmone et al. (2010), esta espécie é um sinônimo-júnior de Haemaphysalis leporipalustris (Packard, 1869). 26 pelos franceses de “pou d‟Agouti” piolho de cutia , justamente por parasitar abundantemente as cutias. Robinson (1926), por sua vez, lista as espécies D. aguti e D. croconata como hospedeiras de A. brasiliense e A. scutatum, respectivamente. Estrada-Peña et al., 2004 indicam a família Dasyproctidae como possíveis hospedeiros do carrapato-estrela A. cajennense; em estudo recente realizado no Pantanal sul-mato-grossense, Cançado (2008) encontrou ninfas e adultos das espécies A. cajennense e A. parvum em D. azarae. 27 2.5. Hospedeiros reservatórios e amplificadores de R. rickettsii Diversos animais silvestres, além de animais domesticados, são apontados como hospedeiros do carrapato-estrela. Alguns destes hospedeiros também são identificados como reservatórios e amplificadores da R. rickettsii, como as capivaras (TRAVASSOS; VALLEJO-FREIRE, 1942a, b; SOUZA et al., 2009) e os gambás (MOREIRA; MAGALHÃES, 1935; HORTA et al., 2009),. Isto porque, embora a bactéria seja transmitida hereditariamente entre gerações sucessivas de uma população de carrapatos, apenas este mecanismo não é suficiente para mantê-la ativa ao longo do tempo, uma vez que também é patogênica para o carrapato vetor (NIEBYLSKI et al., 1999; LABRUNA et al., 2008; LABRUNA et al., 2011). O hospedeiro amplificador mantém a bactéria em níveis altos em sua corrente sanguínea por alguns dias ou semanas, garantindo que novos carrapatos se infectem e amplificando a infecção pela bactéria na população. Labruna (2006) define cinco principais pré-requisitos para uma espécie tornar-se um importante reservatório e amplificador de R. rickettsii. São eles: ser abundante na área endêmica, ser um bom hospedeiro do carrapato vetor, ser suscetível à infecção por R. rickettsii, manter a bactéria circulante e ter alta taxa de renovação populacional. Segundo Schmidt e Ostfeld (2004), hospedeiros podem variar significativamente quanto à competência como reservatórios de patógenos. Para explicar o papel ecológico da comunidade de hospedeiros na transmissão de doenças transmitidas por vetores, estes autores cunharam o termo “efeito de diluição”: a presença de hospedeiros com baixa competência de infectar vetores dilui o efeito dos reservatórios altamente competentes. Como resultado, a probabilidade do vetor parasitar um hospedeiro reservatório e infectar-se com o patógeno aumenta, bem como o risco de transmissão da doença naquele local. 28 3. Objetivos 3.1. Objetivo geral Identificar a fauna de carrapatos associada aos indivíduos da espécie Dasyprocta azarae (cutia) capturados no campus da USP-RP; 3.2. Objetivos específicos Avaliar prevalência, intensidade (média e máxima) e abundância média de infestação por Amblyomma spp. (carrapato-estrela) nos indivíduos da espécie Dasyprocta azarae (cutia) capturados; Testar a seguinte hipótese: a espécie Dasyprocta azarae (cutia) é um hospedeiro secundário de Amblyomma spp. (carrapato-estrela). 29 4. Material e Métodos 4.1. Caracterização da área de estudo O estudo foi realizado no campus da Universidade de São Paulo de Ribeirão Preto (Figura 4). O município é situado no nordeste do Estado de São Paulo, inserido em sua maioria na Bacia Hidrográfica do rio Pardo e, em menor extensão, do MogiGuaçu. As informações a seguir foram extraídas de Kotchetkoff-Henriques (2003): Ribeirão Preto apresenta altitude que varia de 500 a 800 metros, com verão chuvoso e inverno seco, enquadrando-se na categoria Aw, segundo a classificação climática de Köppen-Geiger; no período de 1981 a 2002 a temperatura média anual foi de 22,6ºC, enquanto que no período de 1937 a 2002 as médias anuais da precipitação pluviométrica e da umidade relativa do ar foram, respectivamente, 1467,9 mm e 71,82%. Figura 4. Imagem de satélite do campus da USP de Ribeirão Preto. Fonte: Google Earth (2012). O campus da USP-RP está localizado no terreno da antiga Fazenda Monte Alegre, propriedade de Francisco Schimidt, o “Rei do af ”, e ocupa uma área de aproximadamente 585 hectares dentro do perímetro urbano do município de Ribeirão Preto (ZAIDAN, 2006). O campus recebe água dos córregos Laureano e Monte Alegre, que nascem no próprio município, abrigando ainda um lago artificial e quatro nascentes (Plano ambiental do campus da USP-RP, 2007). 30 Devido aos plantios de café e cana-de-açúcar, a vegetação existente no campus não é remanescente de mata primária (MARQUES, 2007); de acordo com o que consta no Plano ambiental do campus da USP-RP (2007), ocorrem no campus pequenas extensões de matas secundárias em estágio de sucessão inicial ou avançado, com espécies nativas e exóticas, além de bosques de composições variadas. Merece destaque a “Floresta da USP”, área de 75 ha que resultou de um projeto de reflorestamento com base em 80 espécies florestais nativas, iniciado em 1998 por uma parceria entre a PCARP – Prefeitura do Campus de Ribeirão Preto – e a FFCLRP – Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto – com o apoio de entidades governamentais e não governamentais. Há ainda no campus um fragmento de mata secundária (Mata do Museu) em que ocorreu regeneração natural da vegetação, além de plantio de espécies nativas e exóticas para pomar, viveiro de mudas e ornamentação (ESTEVES, 2006; MARQUES, 2007). 31 4.2. Delineamento amostral O estudo foi realizado entre os meses de janeiro de 2012 e janeiro de 2013. Como um dos objetivos foi testar a hipótese da espécie D. azarae (cutia) ser parasitada apenas por estádios imaturos de Amblyomma spp., as coletas acompanharam a sazonalidade da espécie de carrapato-estrela com maior representatividade no campus da USP-RP – A. cajennense (ORTIZ, 2012). A fim de garantir um número significativo de animais capturados (prováveis hospedeiros) para cada período correspondente ao pico de atividade dos estádios de desenvolvimento do ácaro, foram definidos três períodos de coleta: I. Março a junho de 2012 (maior atividade de larvas) II. Julho a outubro de 2012 (maior atividade de ninfas) III. Novembro de 2012 a janeiro de 2013 (maior atividade de adultos) O período de janeiro a fevereiro de 2012 foi reservado para o preparo do material necessário à execução das coletas. 32 4.3. Captura dos animais Os animais foram capturados utilizando-se armadilhas do tipo Tomahawk – gaiolas de arame galvanizado com um sistema de desarme automático e suporte para iscas suspensas (frutas), de dimensões iguais a 77cm de comprimento x 32cm de largura x 35cm de altura (Figura 5). As capturas foram realizadas mediante Licença Sisbio/ICMBio nº 19838-2. Figura 5. Armadilha do tipo Tomahawk, iscada com atrativo alimentar e armada em local de captura, no campus da USP - Ribeirão Preto. Os pontos de instalação das armadilhas foram georreferenciados utilizando-se aparelho de sistema de posicionamento global portátil (GPSMAP® 60CSx, Garmin, E.U.A.) e podem ser observados na Figura 6. As coordenadas geográficas destes pontos são apresentadas na Tabela 4. O presente trabalho não teve como objetivo comparar diferentes áreas de amostragem quanto ao sucesso de captura ou quanto aos índices de infestação por carrapatos-estrela. Desta forma, o esforço de coleta entre as áreas não foi igualado. 33 Figura 6. Localização das armadilhas do tipo Tomahawk utilizadas na captura de indivíduos da espécie D. azarae no campus da USP – Ribeirão Preto. ED = Educação Física, MUS = Música, MT = Mata do Museu. Fonte: Google Earth (2012). As armadilhas foram distribuídas em áreas que atendessem obrigatoriamente a três critérios: (a) provável ocorrência dos hospedeiros, (b) provável infestação por carrapatos-estrela e (c) ausência atividades de controle para carrapatos-estrela. Para satisfazer o primeiro critério foram considerados relatos de visualização de cutias por funcionários ou moradores do campus, além da fitofisionomia da área, proximidade de corpo d‟água e presença de recursos alimentares e.g. árvores frutíferas). Tais informações foram obtidas a partir de visitas a campo, previamente à instalação das armadilhas, por meio de entrevistas com funcionários e moradores, além de busca por vestígios (frutos e sementes consumidos, pegadas e fezes) dos animais. As visitas foram realizadas preferencialmente no horário de forrageio da espécie, a fim de facilitar a observação de indivíduos. Para atender ao segundo critério foram priorizadas as áreas próximas às matas ciliares dos córregos Laureano e Monte Alegre, visto que nessas áreas foram encontrados altos níveis de infestação pelo carrapato-estrela (ORTIZ, 2012). A Área 3 – Mata do Museu (Figura 6) foi escolhida mesmo sendo relativamente distante de corpos d‟água e, portanto, menos sujeita a infestação por carrapato-estrela, por apresentar outras condições favoráveis a presença de cutias. 34 Contudo, ao decorrer da primeira campanha verificou-se um elevado número de furtos de armadilhas nas margens do lago, fato que, somado ao início do tratamento de matas ciliares com carrapaticida em meados de agosto de 2012, resultou na exclusão desta área dos locais de amostragem de hospedeiros. A área “Floresta da USP” tamb m foi excluída da amostragem, pois embora satisfizesse plenamente o terceiro critério, apresentava restrições quanto aos demais (poucos relatos de visualização de animais e baixa infestação por carrapatos-estrela). Além disso, a presença constante de seres humanos no local não só aumentava a probabilidade de furto de armadilhas, o que ocorreu na área mais de uma vez, mas também representava uma ameaça aos animais por ventura capturados. Após o roubo de uma das armadilhas instaladas na Área 1 (EEFERP), em junho de 2012, as coletas foram interrompidas e a área foi excluída da amostragem nos meses seguintes. Tabela 4. Coordenadas geográficas (UTM) dos pontos de instalação das armadilhas do tipo Tomahawk utilizadas na captura de indivíduos da espécie Dasyprocta azarae (cutia) no campus da USP – Ribeirão Preto. ED = Educação Física, MUS = Música, MT = Mata do Museu, EEFERP = Escola de Educação Física e Esportes de Ribeirão Preto, FFCLRP = Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto. Armadilha ED 1 ED 2 MUS 1 MUS 2 MUS 3 MT 1 MT 2 MT 3 Local Área 1 (EEFERP) Área 2 (Música - FFCLRP) Área 3 (Mata do Museu) Coordenadas geográficas (UTM 23K) 203948.00 m E 7655876.00 m S 203695.00 m E 7655798.00 m S 204192.00 m E 7655966.00 m S 204137.00 m E 7655939.00 m S 204115.00 m E 7655954.00 m S 204051.00 m E 7656120.00 m S 203999.00 m E 7656167.00 m S 203979.00 m E 7656169.00 m S As armadilhas foram cevadas – com atrativo alimentar, mas desarmadas – por uma semana antes da coleta e, após esse período, foram armadas e vistoriadas duas vezes ao dia, às 7h30 e às 13h. Este horário coincide com o período de forrageio das cutias, que é diurno (SMYTHE, 1978; EMMONS; FEER, 1997). Como atrativos alimentares foram utilizados diferentes frutos (abacate, banana, manga e mamão). Para minimizar o estresse e possível óbito do animal durante as manipulações, após a captura as armadilhas foram cobertas com panos de tecido preto a fim de impedir que os animais observassem o ambiente externo, conferindo condições de penumbra ideais para o transporte dos mesmos até o Biotério Central da USP-RP. 35 4.4. Contenção química e biometria A contenção química teve como objetivo facilitar a manipulação dos animais e inibir a dor durante a realização dos procedimentos. Para tal, aplicou-se via intramuscular uma associação de cloridrato de cetamina (10-21mg/kg) e cloridrato de xilazina (1mg/kg) com seringas descartáveis de 3ml (0,70x25mm), cujo efeito sedativo anestésico é eficaz, sendo comumente utilizada em roedores, particularmente em cutias (SANTOS, 2005; MACEDO, 2008; CID, 2011). Para garantir uma aplicação segura dos anestésicos, os animais foram contidos manualmente dentro de gaiola metálica utilizando-se um aparador de madeira a fim de permitir a ação do médico veterinário (Figura 7, A). Após o animal ser sedado, este era posicionado em decúbito lateral em uma mesa metálica previamente higienizada para a realização dos demais procedimentos. Luvas de raspa de couro foram utilizadas para garantir a segurança durante a manipulação dos animais (Figura 7, B). A biometria foi feita de acordo com as medidas adotadas por Bonvicino et al. (2008) (comprimento cabeça-corpo, comprimento da cauda, comprimento da pata posterior com unha, comprimento da orelha interna e massa corporal). Os animais tiveram o sexo identificado e foram marcados com brincos de identificação numerados, para o reconhecimento em caso de recaptura (Figura 7, C), de acordo com Mangini e Nicola (2006). Amostras de tecido sanguíneo foram retiradas por punção cardíaca (Figura 7, D), com seringas descartáveis de 1ml (0,38x13mm), para posterior análise sorológica visando detectar a presença de R. rickettsii. Por fim, os animais foram examinados quanto à fixação dos carrapatos no corpo. Após o término dos procedimentos os animais foram devolvidos às gaiolas (cobertas com panos pretos para reduzir a incidência de luz e, consequentemente, o estresse dos animais) e monitorados até que se observasse a plena recuperação das funções fisiológicas normais (alimentação/excreção). O tempo total dos procedimentos (da aplicação do anestésico até a recuperação total do animal) foi de, aproximadamente, 30 minutos. 36 Figura 7. Procedimentos realizados em Biotério com os animais capturados da espécie Dasyprocta azarae no campus da USP-RP. A) Contenção manual do animal realizada dentro da gaiola metálica com o auxílio de uma tábua de madeira; B) Manipulação do animal após aplicação do anestésico, com a utilização de luvas de raspa de couro; C) Marcação do animal com brinco de identificação numerado na orelha direita, com o auxílio de um alicate apropriado; D) Retirada de 1ml de sangue do animal, por punção cardíaca. Data das fotografias: A) 04/06/2012; B) 01/06/2012; C) 11/12/2012; D) 04/06/2012. 37 4.5. Manutenção em biotério e soltura dos animais Os animais com ectoparasitos fixados foram mantidos por sete dias em gaiolas metálicas de 100cm de comprimento, 60cm de largura e 60cm de altura, providas de bandeja removível na parte inferior contendo maravalha (Figura 8, A e B) para acomodar os carrapatos ingurgitados que naturalmente se desprendessem dos hospedeiros. Os parâmetros luminosidade, temperatura, ventilação e umidade do ar não foram controlados, permanecendo os naturais; a alimentação foi à vontade, com pelo menos três variedades de frutos da época e, quando possível, de ocorrência no campus da USP-RP (e.g. jatobá, abacate, manga, mamão, banana, goiaba); também foi oferecida água, não filtrada, à vontade. Diariamente as gaiolas foram higienizadas e o alimento e a água repostos (Figura 8, C). Após uma semana de permanência no biotério, os animais foram soltos no mesmo ponto em que foram capturados (Figura 8, D). Figura 8. Manutenção dos animais no Biotério Central. A) Gaiola metálica coberta com pano preto para evitar o estresse do animal; B) Bandeja removível contendo maravalha para acomodar os carrapatos que se desprendem naturalmente após o ingurgitamento e fita adesiva nas laterais para impedir sua fuga; C) Cutia dentro de gaiola contendo frutos e vasilhames com água; D) Cutia sendo liberada no mesmo local de captura, após uma semana em biotério. Data das fotografias: A) 01/06/2012; B) 05/12/2012; C) 04/06/2012; D) 06/06/2012. 38 4.6. Identificação dos ectoparasitos Os carrapatos que se desprenderam foram contados e acondicionados adequadamente em microtubos plásticos tipo Eppendorf tampados com chumaço de algodão ligeiramente umedecido com água (Figura 9, A) e mantidos em estufa equipada de termo-higrômetro digital (Figura 9, B) com o objetivo de monitorar as condições ideais de temperatura (27 ± 2ºC) e umidade relativa (75 ± 5%) para favorecer a ecdise dos carrapatos. Figura 9. A) Carrapatos acondicionados em Eppendorf com chumaço de algodão umedecido com água; B) Estufa com temperatura e umidades medidas por higrômetro digital. Laboratório do Núcleo de Estudos do Carrapato-estrela de Ribeirão Preto. Posteriormente, procedeu-se à identificação dos ectoparasitas em lupa estereoscópica; os adultos foram identificados a partir da chave dicotômica proposta por Onofrio et al. (2006), enquanto que a identificação das ninfas seguiu a chave dicotômica proposta por Martins (2009). 39 4.7. Análise dos dados Os dados obtidos após a manutenção dos animais em cativeiro foram analisados de acordo com parâmetros de prevalência, intensidade média, intensidade máxima, e abundância média, de acordo com Margolis et al. (1982) e Bush et al. (1997): Prevalência (%): Número de hospedeiros infestados / Número total de hospedeiros examinados; Intensidade Média: Número total de ectoparasitas / Número de hospedeiros infestados; Intensidade Máxima: Número total de ectoparasitas no hospedeiro mais infestado; Abundância Média: Número total de ectoparasitas / Número total de hospedeiros. Para efetuar a análise dos índices de infestação, os animais capturados foram divididos em três grupos – A, B e C. O grupo A correspondeu aos animais capturados no período de março a junho de 2012 (maior atividade de larvas do carrapato-estrela); o grupo B correspondeu aos animais capturados no período de julho a setembro de 2012 (maior atividade de ninfas do carrapato-estrela), e o grupo C correspondeu aos animais capturados no período de novembro de 2012 a janeiro de 2013 (maior atividade de adultos do carrapato-estrela). Para comparar os valores médios de larvas e ninfas obtidas em relação a todos os animais coletados utilizou-se o teste U de Mann-Whitney, teste não paramétrico para amostras independentes, por se tratar de uma comparação entre dois grupos (larvas e ninfas) com valores que não apresentam distribuição normal. Já a comparação entre os índices de infestação dos Grupos A, B e C foi feita utilizando-se o teste Kruskal-Wallis, teste não paramétrico para amostras independentes, por se tratar de uma comparação entre três grupos com valores que também não apresentam distribuição normal. A comparação grupo a grupo foi feita pelo Método de Dunn, teste post hoc de comparações múltiplas que considera grupos com tamanho (n) diferentes. 40 5. Resultados 5.1. Captura e biometria Foram capturados 12 animais, oito deles próximos ao Departamento de Música da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP), três na Mata do Museu e um próximo à Escola de Educação Física e Esporte de Ribeirão Preto (EEFERP); as coordenadas geográficas dos locais de captura, bem como as datas de captura podem ser observadas na Tabela 5. Foram capturados cinco animais no período de maior atividade de larvas (Grupo A), dois no término do período de maior atividade de ninfas e início de atividade de adultos (Grupo B) e cinco no período de maior atividade de adultos (Grupo C) de carrapato-estrela Amblyomma spp. Não houve recapturas. Devido a problemas de logística, falta de pessoal na equipe e roubo de armadilhas, não houve coletas entre os meses de julho e setembro de 2012, de forma que as coletas durante o período de ninfas (Grupo B) ficaram restritas ao mês de outubro de 2012. Tabela 5. Data e local de captura de cada indivíduo da espécie Dasyprocta azarae no campus da USPRP, de janeiro de 2012 a janeiro de 2013. Grupo A = coletas realizadas no período de larvas do carrapato-estrela; Grupo B = coletas realizadas no término do período de ninfas do carrapato-estrela, Grupo C = coletas realizadas o período de adultos do carrapato-estrela. Data de captura Local de captura Coordenadas geográficas (UTM 23K) 1º Março de 2012 EEFERP 203695 m E, 7655798 m S 2º Maio de 2012 Mata do Museu 204051 m E, 7656120 m S 3º Maio de 2012 Música (FFCLRP) 204192 m E, 7655966 m S 4º Junho de 2012 Música (FFCLRP) 204192 m E, 7655966 m S 5º Junho de 2012 Mata do Museu 204051 m E, 7656120 m S 6º Outubro de 2012 Música (FFCLRP) 204115 m E, 7655955 m S 7º Outubro de 2012 Música (FFCLRP) 204138 m E, 7655940 m S Grupo Animal A B 41 Data de captura Local de captura Coordenadas geográficas (UTM 23K) 8º Dezembro de 2012 Música (FFCLRP) 204115 m E, 7655955 m S 9º Dezembro de 2012 Mata do Museu 204051 m E, 7656120 m S 10º Dezembro de 2012 Música (FFCLRP) 204115 m E, 7655955 m S 11º Dezembro de 2012 Música (FFCLRP) 204138 m E, 7655940 m S 12º Janeiro de 2013 Música (FFCLRP) 204138 m E, 7655940 m S Grupo Animal C Dos 12 animais capturados, apenas dez puderam ser mantidos em biotério, sendo dois machos e oito fêmeas. Devido a um atraso na confecção e entrega das gaiolas, o 1º animal capturado foi solto no mesmo dia da captura. O 5º animal foi encontrado morto na armadilha, sem os membros posteriores e parte da região pélvica, provavelmente vítima de ataque de um ou mais cães ferais que habitam o campus. O 11º animal capturado escapou da gaiola no penúltimo dia de manutenção no biotério, o que impossibilitou a realização de procedimentos de biometria, mas não impediu a utilização dos dados referentes à infestação por carrapato-estrela. Os valores médios dos dados obtidos com a biometria, bem como as medidas de dispersão a eles associadas (desvios-padrão, coeficiente de variação e intervalos de confiança a 95%) podem ser observados na Tabela 6. Todos os indivíduos capturados foram identificados como pertencentes à espécie Dasyprocta azarae. Tabela 6. Dados biométricos dos animais capturados da espécie D. azarae. CC - Comprimento cabeçacorpo, CA – comprimento da cauda. PÉ - comprimento da pata posterior com unha, O comprimento da orelha interna, MC – Massa corporal, DP – desvio-padrão; n – número de animais amostrados; IC – intervalo de confiança. CC (mm) CA (mm) PÉ (mm) O (mm) MC (g) Média (n) DP 481,64 (11) 23,20 (10) 111,70 (10) 38,82 (11) 3019,00 (10) 85,36 4,96 8,88 8,61 1160,10 Coeficiente de Variação 18% 21% 8% 22% 38% IC 95% (inferior) 431,19 20,12 105,19 33,73 2299,96 IC 95% (superior) 532,08 26,28 116,21 43,91 3738,04 42 5.2. Prevalência, intensidade e abundância de parasitismo por Amblyomma spp. Todos os animais capturados (n=12) apresentaram-se parasitados por estádios imaturos de Amblyomma spp.; o número de carrapatos encontrados em cada animal pode ser visualizado na Tabela 7. Nos casos em que o animal não pode ser mantido em biotério (n=2), foram contabilizados apenas os carrapatos visivelmente fixados ao corpo do animal, sobretudo nas regiões nuas (e.g. ventre, orelhas); por estes números não serem fiéis representantes da situação real de infestação, eles não foram utilizados no cálculo dos índices de infestação. Tabela 7. Número de carrapatos (larvas, ninfas e adultos) por cutia capturada no campus da USP-RP. Grupo A B C Animal 1º 2º 3º 4º 5º 6º 7º 8º 9º 10º 11º Estádio de desenvolvimento dos carrapatos Larvas Ninfas 6 0 705 2 186 1 535 6 0 1 61 163 76 428 7 12 9 4 17 4 35 41 Total 6 707 187 541 1 224 504 19 13 21 76 12º 53 3 56 Total 1690 665 2355 A partir destes valores foram calculadas a prevalência, intensidade média, intensidade máxima e abundância média de infestação por larvas e ninfas do carrapato-estrela Amblyomma spp. para cada grupo de animais (A, B e C) capturados e mantidos em Biotério (Tabelas 8 a 10). 43 Tabela 8. Índices de infestação por larvas de carrapatos-estrela (Amblyomma spp.) em cutias (D. azarae) capturadas no campus da USP-RP, segundo Margolis et al., 1982 e Bush et al., 1989. n – número de indivíduos. Grupo (n) A (3) B (2) C (5) Total (10) Prevalência¹ (%) 100,00 100,00 100,00 100,00 Intensidade Média² 475,33 ± 264,56 68,50 ± 10,60 24,20 ± 19,52 168,40 ± 246,80 Intensidade Máxima³ 705,00 76,00 53,00 705,00 Abundância Média4 475,33 ± 264,56 68,50 ± 10,60 24,20 ± 19,52 168,40 ± 246,80 ¹ Número de hospedeiros infestados/ Número total de hospedeiros examinados; ² Número total de carrapatos (larvas)/ Número de hospedeiros infestados; ³ Número total de carrapatos (larvas) no hospedeiro mais infestado; 4 Número total de carrapatos (larvas)/ Número total de hospedeiros examinados Tabela 9. Índices de infestação por ninfas de carrapatos-estrela (Amblyomma spp.) em cutias (D. a azarae) capturadas no campus da USP-RP, segundo Margolis et al., 1982 e Bush et al., 1989. n – número de indivíduos. Grupo (n) A (3) B (2) C (5) Total (10) Prevalência¹ (%) 100,00 100,00 100,00 100,00 Intensidade Média² 3,00 ± 2,65 295,50 ± 187,38 12,80 ± 16,18 66,40 ± 136,45 Intensidade Máxima³ 6,00 428,00 41,00 428,00 Abundância Média4 3,00 ± 2,65 295,50 ± 187,38 12,80 ± 16,18 66,40 ± 136,45 ¹ Número de hospedeiros infestados/ Número total de hospedeiros examinados; ² Número total de carrapatos (ninfas)/ Número de hospedeiros infestados; ³ Número total de carrapatos (ninfas) no hospedeiro mais infestado; 4 Número total de carrapatos (ninfas)/ Número total de hospedeiros examinados Tabela 10. Índices de infestação por estádios imaturos (larvas e ninfas) de carrapatos-estrela (Amblyomma spp.) em cutias (D. azarae) capturadas no campus da USP-RP, segundo Margolis et al., 1982 e Bush et al., 1989. n – número de indivíduos. Grupo (n) A (3) B (2) C (5) Total (10) Prevalência¹ (%) 3(100) 2(100) 5(100) 10(100) Intensidade Média² 478,33 ± 265,60 364,00 ± 197,99 37,00 ± 27,56 234,80 ± 256,01 Intensidade Máxima³ 707 504 76 707 Abundância Média4 478,33 ± 265,60 364,00 ± 197,99 37,00 ± 27,56 234,80 ± 256,01 ¹ Número de hospedeiros infestados/ Número total de hospedeiros examinados; ² Número total de carrapatos (larvas e ninfas)/ Número de hospedeiros infestados; ³ Número total de carrapatos (larvas e ninfas) no hospedeiro mais infestado; 4 Número total de carrapatos (larvas e ninfas)/ Número total de hospedeiros examinados 44 Foi constatada diferença estatisticamente significativa pelo teste U de MannWhitney entre os valores médios de larvas e ninfas obtidas em relação a todos os animais coletados (Tabela 7) (T = 76,000, p = 0,031). Também foi constatada diferença estatisticamente significativa pelo teste de Kruskal-Wallis entre os valores de intensidade e abundância médias de infestação por larvas de Amblyomma spp. dos três grupos (Tabela 8) (H2 = 7,636, p = 0,022), mas a comparação grupo a grupo feita pelo Método de Dunn (teste post hoc) resultou em diferença estatisticamente significativa apenas entre os Grupos A e C (Q = 2,714, p < 0,05). Não foi constatada diferença estatisticamente significativa pelo teste de Kruskal-Wallis entre os valores de intensidade e abundância médias de infestação por ninfas (Tabela 9) (H2 = 5,576, p = 0,062), nem por imaturos de Amblyomma spp, ou seja, larvas e ninfas somadas (Tabela 10) (H2 = 4,684, p = 0,096). 45 5.3. Identificação das espécies de Amblyomma spp. Foram identificados 566 carrapatos adultos e 246 ninfas, provenientes, respectivamente, de 665 ninfas e 1690 larvas que sofreram ecdise em laboratório, representando assim percentuais de 85,11% de ninfas e 14,56% de larvas. Foi verificada a mortalidade de 99 ninfas (14,89%) e 1444 (85,44%) larvas antes de atingirem o próximo estádio de desenvolvimento, o que dificultou a identificação, sendo contabilizadas apenas como pertencentes ao gênero Amblyomma. A Tabela 11 indica o número de adultos e ninfas das duas espécies encontradas – A. cajennense e A. dubitatum – para cada cutia capturada. Tabela 11. Larvas e ninfas identificadas, após ecdise, para cada animal capturado. Larvas Grupo A B C Ninfas Animal A. cajennense A. dubitatum A. cajennense A. dubitatum 2º 108 0 2 0 3º 59 0 0 1 4º 64 0 2 0 6º 6 0 125 1 7º 2 0 379 1 8º 0 0 11 0 9º 0 0 3 0 10º 0 0 4 0 11º 2 0 33 3 12º 4 1 1 0 Total 245 (99,6%) 1 (0,4%) 560 (98,9%) 6 (1,1%) Os carrapatos encontrados no 1º e 5º animais capturados foram identificados como Amblyomma spp. Verificou-se que a espécie mais comumente encontrada, tanto de larva quanto de ninfa, foi A. cajennense, com 99,6% e 98,9%, respectivamente, sendo que A. dubitatum representou apenas 0,4% das larvas 1,1% das ninfas identificadas. A porcentagem total de imaturos de A. cajennense foi de 99,14%, enquanto A. dubitatum totalizou 0,86%. 46 6. Discussão A escassez de estudos semelhantes na literatura dificultou inicialmente a definição dos períodos de amostragem. Em geral, publicações sobre carrapatos e seus hospedeiros resultam de avaliações de parasitismo em humanos (GUGLIELMONE et al., 2006), animais domésticos (LABRUNA et al., 2002a) ou animais silvestres coletados com diferentes propósitos, tais como resgate de fauna (SZABÓ et al., 2003) e inspeções veterinárias em zoológicos (DANTAS-TORRES et al., 2010) ou núcleos de reabilitação de fauna silvestre (BRUM et al., 2003), nos quais a avaliação de parasitismo nem sempre é o objetivo principal do estudo. Nos casos em que o objetivo principal é avaliar o parasitismo de determinado táxon, em geral são escolhidos táxons abrangentes, por exemplo, estudos de parasitismo por carrapatos em aves (ROJAS et al., 1999, ARZUA et al., 2003) ou pequenos mamíferos (LINARDI et al., 1987; LINARDI et al., 1991a; LINARDI et al., 1991b; LINARDI et al., 1991c; BARROS-BATTESTI et al., 1998; BOSSI et al., 2002; BITTENCOURT; ROCHA, 2003; REIS et al., 2008). Outros trabalhos visam identificar a fauna de ectoparasitas associada a uma ou mais espécies em determinada região, por exemplo, o Pantanal sul-mato-grossense (ITO et al., 1998; PEREIRA et al., 2000; CANÇADO, 2008). Em todos esses casos não há intenção por parte dos autores de classificar as espécies analisadas como hospedeiros primários ou secundários dos carrapatos. Mesmo estudos com foco em determinado gênero ou espécie de hospedeiro (BECHARA et al., 2000; BECHARA et al., 2002; MARTINS et al., 2004; SILVA et al., 2006) em geral realizam coletas sem considerar a sazonalidade do parasita – ao longo do ano ou concentradas em determinada estação, não sendo possível comparar propriamente os índices de parasitismo por estádios imaturos ou adultos do parasita. Tendo em vista os objetivos deste estudo, optou-se por realizar coletas de acordo com a sazonalidade de A. cajennense, buscando assim garantir um número significativo de animais capturados para cada período correspondente ao pico de atividade de larvas, ninfas e adultos do carrapato-estrela. Entretanto, a lacuna na amostragem no período de julho a setembro de 2012 impediu que o número de animais obtido fosse os mesmo para cada período de coleta, de maneira que apenas dois animais foram capturados no 2º período (ninfas), em comparação a cinco capturados 47 no 1º (larvas) e outros cinco capturados no 3º períodos (adultos). Além disso, apenas três animais capturados no primeiro período puderam ser mantidos em biotério. Como resultado, o tamanho das amostras de cada período ficou muito reduzido, o que gerou ruídos na análise estatística dos índices de infestação, como explanado posteriormente. Embora não haja estudos populacionais de D. azarae no campus da USP-RP, o presente trabalho figura como um importante indicativo quanto às áreas de ocorrência desta espécie, cabendo a futuras pesquisas investigar a densidade populacional e o esforço apropriado de coleta. As áreas de coleta mostraram-se adequadas ao objetivo do estudo, visto que, por serem utilizadas por capivaras para o pastejo, as matas ciliares são favoráveis ao desenvolvimento do carrapato estrela (VIEIRA et al., 2004), hipótese corroborada para o campus da USP-RP por Ortiz (2012) e também para o campus “Luiz de Queiroz” por Perez (2007). É provável que cutias que habitem a “Floresta da USP” ou outra área do campus com menores níveis de infestação pelo carrapato-estrela não sejam parasitadas ou apresentem menores intensidades de infestação; coletas nessas áreas devem ser realizadas a fim de verificar esta possibilidade. Apesar da área 2 (Mata do Museu) não se tratar de mata ciliar, três animais foram capturados. Frequentemente via-se as cutias atravessando o espaço entre as Áreas 2 e 3 (Música), local que conta com a presença de duas espécies de árvores frutíferas provavelmente de alta relevância na dieta de D. azarae – o jatobá Hymenaea courbaril e o abacateiro Persea americana –, tendo em vista estudos realizados com outras espécies do mesmo gênero, como o de Orsini (2011) para D. prymnolopha e o de Santos (2005) para D. leporina. Desta forma, os animais que frequentam a Área 2 provavelmente infestam-se de carrapatos-estrela quando forrageiam na mata ciliar da Área 3, pois são muito próximas. Quanto ao horário de coleta, embora inicialmente as armadilhas também ficassem armadas no período vespertino/noturno, após dois incidentes envolvendo cães ferais e que resultaram na morte de dois animais (uma cutia e um gambá) capturados, limitou-se o horário de coleta para o período matutino. Cães ferais podem ser responsáveis por afugentar e predar várias espécies de mamíferos de pequeno e médio porte (GALETTI; SAZIMA, 2006) e, ao formarem matilhas, podem predar inclusive mamíferos de grande porte (RODRIGUES, 2002). Ademais, a pressão de 48 predação exercida por cães ferais representa uma ameaça para a biodiversidade em geral, já que possuem grandes densidades populacionais em comparação com outros carnívoros (PASCHOAL, 2008). Campos (2004) estimou o consumo de mamíferos por cães no campus “Luiz de Queiroz” entre 16,76 e 25,42kg/indivíduo/ano, e por gatos entre 2,01 e 2,95kg/indivíduo/ano. Segundo o autor, a predação de animais silvestres por cães e gatos errantes compromete as populações já existentes em baixas densidades; a análise da dieta desses animais mostrou que mamíferos são os segundo grupo mais consumido (25,15% para cães e 20,51% para gatos). Todas as cutias foram identificadas como pertencentes à espécie Dasyprocta azarae, distinguível das demais espécies do gênero pelo padrão de coloração de cor olivácea e garupa acinzentada (EMMONS; FEER, 1997); o que está de acordo com a distribuição desta espécie, associada a regiões de matas decíduas e semidecíduas, ocorrendo da região Centro-Oeste ao sul do Brasil, incluindo São Paulo (IACKXIMENES, 1999). Embora De Vivo et al. (2011) aponte também a ocorrência de D. leporina no Estado de São Paulo, segundo Iack-Ximenes (1999) a distribuição deste táxon é associada à Floresta Ombrófila, restrita ao leste dos estados do Rio de Janeiro e Pernambuco, e à região Amazônica. Os dados biométricos obtidos indicam uma amostra relativamente heterogênea, com desvios-padrão e intervalos de confiança altos, sugerindo alta variabilidade entre as medidas, o que provavelmente resultou do pequeno número de indivíduos coletados. Os coeficientes de variação, ou seja, o quanto os desvios-padrão representam das respectivas médias foram próximos a 20%, exceto pelos valores de massa corpórea (CV=38%), que provavelmente tiveram maior variabilidade pela presença de uma fêmea prenhe (1º animal). Este resultado é importante, pois pode ser indicativo de uma população saudável, com adultos se reproduzindo. Entretanto, houve certa dificuldade em estabelecer critérios quanto aos pontos delimitadores das medidas de comprimento, notadamente do corpo-cabeça e da orelha; de tal forma que é provável haver medições com algum erro, prejudicando a comparação com outros estudos. Segundo Iack-Ximenes (1999), a grande variabilidade no modo de tomar as medidas corpóreas entre os coletores torna este tipo de informação menos preciso quando comparado a medidas cranianas, por exemplo. Além disto, as medidas foram tomadas por membros diferentes da equipe, às vezes 49 com instrumentos de medida imprecisos, e nenhuma categoria etária foi utilizada; a medição de indivíduos imaturos pode ter contribuído para explicar as diferenças encontradas com o trabalho de Iack-Ximenes (1999) (Tabela 12). De qualquer forma, os valores de biometria estão próximos dos descritos para a espécie, o que contribuiu para a identificação. Tabela 12. Dados biométricos dos animais capturados da espécie D. azarae e comparação com os obtidos por Iack-Ximenes (1999). CC - Comprimento cabeça-corpo, CA – comprimento da cauda. PÉ - comprimento da pata posterior com unha, O - comprimento da orelha interna, MC – Massa corporal, n = número de animais amostrados. Valor mínimo- máximo (n) CC (mm) CA (mm) PÉ (mm) O (mm) MC (g) Presente estudo Iack-Ximenes (1999) 330-600 (11) 18-29 (10) 90-122 (10) 20-55 (11) 900-4800 (10) 428-580 (12) 10-35 (17) 101-110 (10) 25-45 (12) 2350-3460 (12) A diferença estatística encontrada entre os valores médios de larvas e ninfas obtidas em relação a todos os animais coletados indica que as larvas provavelmente provocam maiores níveis de infestação em cutias do que as ninfas, o que é evidenciado pelos valores de infestação máxima, tendo sido encontradas 705 larvas em um único animal no período de larvas (Grupo A) em comparação a 428 ninfas em um único animal no período de ninfas (Grupo B). Contudo, seria necessário um maior número de animais coletados em cada período para assegurar-se desta afirmação. Como 100% dos animais examinados mostraram-se infestados por Amblyomma spp., a intensidade e a abundância médias de infestação foram as mesmas. A diferença estatística observada entre os valores de intensidade e abundância médias de infestação por larvas entre os três grupos, particularmente entre o Grupo A e o Grupo C, corrobora a presença de mais larvas no campo no período da primeira coleta (Grupo A), em relação aos demais períodos (Grupos B e C). Já a ausência de diferença estatisticamente significativa entre os valores de intensidade e abundância médias de infestação por ninfas entre os três grupos se deveu provavelmente ao pequeno “n” amostral dos grupos, pois a presença de ninfas no período de coleta do grupo B está bem descrita na literatura e foi verificada em campo pela equipe de trabalho. 50 Estes resultados refletem a sazonalidade do carrapato-estrela no ambiente, que afeta diretamente a infestação nos hospedeiros, de forma que estes são mais intensamente parasitados pelos estádios de desenvolvimento mais ativos no ambiente. Este padrão sazonal é fortemente relacionado a fatores climáticos como incidência solar, temperatura, umidade relativa do ar e precipitação, que são maiores no período de maior atividade de adultos e menores no período de maior atividade de larvas e ninfas. Embora alguns trabalhos já tenham demonstrado esta relação em animais domésticos, como em cavalos (LABRUNA et al., 2002a), este é o primeiro registro de sazonalidade de carrapato-estrela em um animal silvestre, a cutia. Quanto aos parâmetros de infestação, o estudo realizado por Cançado (2008) no Pantanal foi o único encontrado na literatura que avaliou prevalência e abundância de parasitismo em cutias; entretanto, o número de animais coletados por este autor foi três vezes menor (n=4). Embora a prevalência de parasitismo por estádios imaturos de Amblyomma spp. no presente estudo tenha sido idêntica à encontrada por Cançado (2008), o número total de imaturos foi consideravelmente maior no presente estudo, totalizando 2355 larvas e ninfas (abundância média a apenas 13 ninfas (abundância média 235 imaturos/cutia), comparadas 3 ninfas/cutia), observadas por Cançado (2008). Este valor muito provavelmente está subestimado, pois o autor não manteve os animais em biotério, examinando-os a procura de carrapatos somente durante a captura e liberando-os em seguida. A prevalência de infestação encontrada no presente estudo foi superior à relatada para gambás da espécie D. albiventris capturados no campus “Luiz de Queiroz” e submetidos à semelhante metodologia de manutenção em biotério (ADRIANO et al., 2007; PEREZ et al., 2008). A prevalência de parasitismo por Amblyomma spp. em gambás (n=26) foi de 80,76%. Em ambos os estudos foram encontrados apenas os estádios imaturos (larvas e ninfas) parasitando os animais. Rojas et al., (1999) apresentou dados sobre o parasitismo de A. cajennense em aves, com 15% de prevalência de imaturos em Passeriformes e 0% de prevalência em não Passeriformes. Segundo os autores, a explicação reside no fato de que existe uma variação no nível de infestação por Amblyomma spp., que depende da ecologia e do comportamento do hospedeiro. No estudo em particular, os não passeriformes eram representados majoritariamente por beija-flores, cujo comportamento de forrageio 51 (busca por néctar) não oferece possibilidade de encontro com carrapatos, em oposição aos Passeriformes, cujo forrageio dá-se muitas vezes no solo, aumentando assim a probabilidade de tais encontros. Esta hipótese, somada à influência do habitat na seleção do hospedeiro pelo ectoparasito (PAROLA; RAOULT, 2001) poderia explicar a diferença observada na prevalência de infestação por Amblyomma spp. em gambás e em cutias; estas são roedores que ocupam predominantemente ambientes florestais (EMMONS; FEER, 1997) e estão permanentemente em contato com o solo, enquanto que os gambás são mamíferos altamente sinantrópicos, que se adaptam facilmente a ambientes antropizados, rurais ou urbanos, mas que utilizam árvores como esconderijo (ADRIANO et al., 2007), não permanecendo, portanto, sujeitos constantemente à infestação por carrapato-estrela. A intensidade e abundância médias de imaturos de Amblyomma spp. em cutias também foram superiores às relatadas em gambás. Como alguns gambás não se apresentaram infestados, a intensidade média foi superior à abundância média (167,14 e 135); em cutias os valores foram iguais (234,8). Por outro lado, a intensidade máxima foi maior em gambás, totalizando 916 imaturos (larvas e ninfas) no indivíduo mais infestado. Esta diferença pode ter ocorrido devido ao maior índice de infestação por carrapato-estrela no campus da ESALQ (PEREZ, 2007) em comparação com o da USP-RP (ORTIZ, 2012). Embora o presente estudo seja o único realizado com hospedeiros no campus da USP-RP, devem ser priorizadas comparações em situações idênticas ou semelhantes de infestação pelo carrapato-estrela, pois a prevalência de infestação é resultado das interações estabelecidas entre hospedeiros e parasitas, as quais dependem intrinsecamente das condições ambientais do habitat compartilhado entre eles, variando de acordo com o recorte espaço-temporal. Por outro lado, deve ser evitada a comparação dos valores de intensidade (média e máxima) e abundância média com estudos que não apresentem metodologia de manutenção dos indivíduos em biotério, pois tais valores são sempre subestimados. Apenas 14,56% das larvas ingurgitadas obtidas sofreram ecdise e se transformaram em ninfas. Isto pode ser explicado pela baixa eficiência da estufa 52 utilizada quanto ao controle das condições ideais de temperatura e umidade relativa que favorecem a ecdise dos estádios imaturos. Mesmo assim, a maioria das ninfas (84,21%) sofreu ecdise e se transformou em adultos. Esta diferença poderia estar relacionada a uma possível maior sensibilidade das larvas às flutuações climáticas – segundo Randolph e Craine (1995), apenas cerca de 10% das larvas de Ixodes ricinus sobrevive na natureza, sendo que as ninfas apresentam taxa de sobrevivência de 20%. A presença de A. cajennense e A. dubitatum em cutias foi um resultado esperado, visto que são as duas espécies de carrapato-estrela encontradas no campus da USP-RP (ORTIZ, 2012). A espécie com maior percentual de parasitismo, tanto de larvas quanto de ninfas, foi A. cajennense, o que confirma a baixa especificidade dos imaturos (LOPES et al., 1998, ESTRADA-PEÑA et al., 2004) e sugere D. azarae como um possível hospedeiro secundário para esta espécie de carrapato-estrela no campus da USP-RP. Semelhante situação foi relatada por Perez (2007) para mamíferos hospedeiros no campus “Luiz de Queiroz”, em que gambás apresentaram-se parasitados por imaturos das mesmas espécies, com maior proporção de A. cajennense. Entretanto, as cutias mostraram-se impróprias para o parasitismo por adultos de carrapato-estrela; embora indivíduos tenham sido coletados em plena sazonalidade de adultos de A. cajennense, estes não foram encontrados parasitando-os. A maior especificidade dos adultos de A. cajennense pode ser explicada pela hipótese de suas demandas metabólicas serem maiores do que as das fases imaturas e, portanto, supridas apenas por grandes mamíferos como a anta, o cavalo e a capivara. Embora a especificidade possa estar relacionada às demandas metabólicas dos parasitas (CROLL, 1968), não foram encontrados estudos que testassem esta hipótese para o carrapato-estrela. Apesar dos resultados obtidos indicarem que as cutias preencham apenas os requisitos fisiológicos necessários ao desenvolvimento das fases imaturas, Cançado (2008) encontrou indivíduos adultos das espécies A. cajennense e A. parvum em cutias capturadas no Pantanal. Infelizmente, o autor não comenta se os adultos coletados estavam ingurgitados e se suas progênies tiveram sucesso, o que seria necessário para sugerir a cutia como um hospedeiro primário para as espécies encontradas. 53 Embora já existissem relatos de parasitismo por A. cajennense em cutias (ROHR, 1909; CANÇADO, 2008), o presente estudo fornece o primeiro registro de parasitismo por A. dubitatum. Esta espécie foi muito pouco representativa, com apenas sete indivíduos (1 larva, 6 ninfas). Embora a revisão realizada por Nava et al. (2010) aponte diversas espécies parasitadas por este carrapato, faltam elementos para classificá-las como hospedeiros primários ou secundários, essenciais ao ciclo de vida. Devido à escassez de informações na literatura, não é possível realizar muitas inferências sobre a relação de parasitismo estabelecida entre A. dubitatum e D. azarae no campus da USP-RP. Quanto ao potencial de participação das cutias na epidemiologia da FMB, este estudo indica a espécie D. azarae como um bom hospedeiro para o carrapato vetor A. cajennense, satisfazendo apenas segunda condição definida por Labruna (2006). Desta forma, outros estudos – ecológicos, populacionais, imunológicos – devem ser realizados com o objetivo de averiguar os demais pré-requisitos, quais sejam: ser abundante na área endêmica, ter alta taxa de renovação populacional, ser suscetível à infecção por R. rickettsii e manter a bactéria circulante. Embora amostras de tecido sanguíneo tenham sido colhidas para análises sorológicas visando detectar a presença de R rickettsii, estas ainda não foram realizadas pelo laboratório responsável. Estudos imunológicos são importantes para poder afirmar se a ausência de parasitismo por determinada espécie de carrapato é justificada pela presença de anticorpos – “imunidade natural” – ou se tem causas ecológicas, como apontado por Baer (1951). Mesmo que as cutias não sejam reservatórios competentes de R. rickettsii, elas podem estar envolvidas na epidemiologia da FMB, por meio do “efeito diluição”, tal como proposto por Schmidt e Ostfeld (2004). Allan et al. (2003) relatam os impactos da diminuição deste efeito no aumento do risco de transmissão da Doença de Lyme, borreliose cujo agente etiológico é uma bactéria (Borrelia burgdorferi), transmitida pelo carrapato Ixodes scapularis. Os estádios imaturos deste vetor alimentam-se em uma variedade de mamíferos hospedeiros, entre eles um roedor silvestre generalista (Peromyscus leucopus), que é o reservatório mais competente para B. burgdorferi. Recentemente, as atividades humanas fragmentaram a paisagem florestal do nordeste dos E.U.A., reduzindo a riqueza da mastofauna e provocando um aumento da 54 densidade populacional de P. leucopus. A redução na disponibilidade de reservatórios incompetentes em pequenos fragmentos aumentou a probabilidade dos carrapatos infestarem-se com a bactéria, aumentando também o risco de transmissão da doença. De forma semelhante, as cutias poderiam estar cumprindo uma função ecológica importante no campus da USP-RP, sendo que o decréscimo populacional da espécie poderia contribuir para que o “efeito diluição” fosse reduzido, aumentando a probabilidade dos carrapatos-estrela se infectarem com R. rickettsii em reservatórios competentes (e.g. capivaras e gambás) e, consequentemente, o risco de transmissão da doença para os frequentadores do campus. A riqueza/diversidade da comunidade de hospedeiros pode estar relacionada não só à transmissão de patógenos, mas também ao grau de infestação por carrapatos. Ogrzewalska (2009), por exemplo, encontrou uma relação inversa entre a riqueza/diversidade de aves e a prevalência de carrapatos da espécie A. nodosum em um estudo realizado no Pontal do Paranapanema (SP). A autora atribuiu esta relação aos efeitos da fragmentação florestal na comunidade de hospedeiros, de forma que em ambientes alterados certas espécies generalistas e tolerantes são favorecidas, em detrimento de outras espécies que só sobrevivem em ambientes conservados; dependendo da sensibilidade do hospedeiro, a fragmentação pode atuar aumentando ou diminuindo os níveis de infestação pelos parasitas. A escassez de estudos sobre a comunidade faunística do campus da USP-RP impede que sejam feitas comparações com outros ambientes. Outro fator que pode influenciar a relação entre parasitas e seus hospedeiros é o compartilhamento de habitat entre animais domésticos e silvestres ou entre presas e predadores. Labruna et al. (2005) encontraram Rhipicephalus microplus parasitando sete espécies da ordem Carnivora, o que não indica necessariamente que todas sejam hospedeiros para este carrapato, já que elas convivem no ambiente do hospedeiro primário de R. microplus (gado), atuando inclusive como predadores, no caso de P. onca e P.concolor (CHEIDA et al., 2011). A abundância de animais domésticos (cães e gatos) no campus da USP-RP pode estar alterando as relações de parasitismo entre carrapatos, hospedeiros silvestres e patógenos causadores de zoonoses. Os resultados aqui apresentados indicam as cutias como importantes hospedeiros secundários de A. cajennense. Entretanto, em ambientes com menores 55 níveis de infestação pelo carrapato-estrela essa relação pode ser menos intensa ou até inexistente. Fatores como a presença de hospedeiros primários e de animais domésticos, bem como a antropização, a fragmentação de habitat e a diversidade da comunidade de hospedeiros secundários podem influenciar significativamente a relação de parasitismo entre as cutias e os carrapatos. Embora as cutias não satisfaçam todas as condições definidas por aro e O‟Doherty 999 para serem tomadas como espécies indicadoras, a relação de parasitismo entre elas e os carrapatos pode ser utilizada como um forte indicativo da saúde dos ecossistemas no campus da USP-RP. Ademais, estudos devem ser realizados buscando compreender como o parasitismo por carrapatos-estrela afeta a população de cutias no ambiente, pois o estudo de ectoparasitas em animais silvestres é essencial para verificar os potenciais impactos do parasitismo na conservação da vida selvagem (DANTAS-TORRES et al., 2010). 56 7. Conclusões - Foram identificadas duas espécies de carrapatos-estrela parasitando cutias no campus da USP-RP: Amblyomma cajennense e Amblyomma dubitatum, representando, respectivamente, 99,14% e 0,86% do total de carrapatos coletados; - Foram encontradas apenas formas imaturas (larvas e ninfas) de carrapatos, o que reforça a hipótese da espécie de cutia estudada ser hospedeira secundária de Ambylomma cajennense no campus da USP-RP; - Este estudo consiste no primeiro registro de parasitismo por Amblyomma dubitatum em Dasyprocta azarae; - A prevalência de infestação por Amblyomma spp. observada em doze indivíduos da espécie Dasyprocta azarae coletados foi elevada (100%), o que sugere forte relação entre o ambiente ocupado pelas cutias e pelos carrapatos no campus da USP-RP. - A intensidade e abundância médias de infestação por Amblyomma spp. foram de 234,80 ± 256,01, com intensidade máxima de 707 imaturos (larvas e ninfas) em um único indivíduo da espécie Dasyprocta azarae. 57 8. 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