Os Três Problemas Gregos e Construções com Régua e Compasso Carlos H. B. Gonçalves [email protected] V Seminário Nacional de História da Matemática Rio Claro, 14 de abril de 2003 Resumo Este trabalho é uma introdução à investigação que estamos conduzindo sobre a história dos três problemas clássicos de construção, a Duplicação do Cubo, a Quadratura do Círculo e a Trissecção do Ângulo. Esses problemas ocuparam um lugar central na matemática da Antiga Grécia. Diversas soluções foram apresentadas pelos geômetras gregos, utilizando cônicas e outras curvas como a concóide e a quadratriz, mas nenhuma solução foi conseguida por meio apenas de régua e compasso. Somente no século XIX é que se demonstrou que esses três problemas não podem ser resolvidos com régua e compasso. Abstract This paper presents an introduction to the investigation we are conducting on the three classical problems of construction, the Cube Duplication, the Quadrature of the Circle and the Angle Trisection. These were central problems in the ancient Greek mathematics. Greek geometers succeeded in presenting a number of solutions to these questions, by means of conics e other curves such as the conchoid and the quadratix, but none of them was able to find a solution by means of straightedge and compass alone. It was only in the 19th century that these problems were shown not to admit a straightedge-and-compass solution. I. História Para esboçar uma história dos três problemas de construção na Antiga Grécia, vamos examinar alguns testemunhos provenientes de estudiosos que estavam inseridos na tradição matemática da Grécia Clássica. Examinaremos textos de Téon de Smirna, Eutócios de Ascalon e Pápus de Alexandria, dentre outros. Nesses textos, encontram-se testemunhos a respeito dos três problemas e soluções que os antigos gregos descobriram. O estudo desses textos, do ponto de vista da investigação em história da matemática, possibilita analisar a posição dos três problemas no contexto grego; a relevância deles para o desenvolvimento da matemática grega; as dificuldades conceituais que os matemáticos gregos enfrentaram; as especificidades do pensamento matemático grego; e a reconstrução de conteúdos perdidos. Além do interesse direto para o historiador da matemática, estudos com esse enfoque – isto é, feitos através da leitura e exame de fontes primárias – têm se mostrado, na nossa experiência, estimulantes e enriquecedores na formação e aperfeiçoamento de professores de matemática de todos os níveis. Traduzimos os textos seguintes a partir da coletânea em grego [GMW]. Quadratura Plutarco1, pensador do século I, faz a menção mais afastada no tempo que temos à nossa disposição 1 Plutarco de Chaironea (c.45--c.125). a respeito do assunto. Encontra-se em um de seus escritos, De exilio, em que ele liga Anaxágoras2, filósofo do século V a.C., ao problema da quadratura do círculo: Nenhum lugar tira a alegria de um homem, nem a virtude nem a sabedoria. Assim é que Anaxágoras esboçou a quadratura do círculo na prisão. Outra referência ao problema da quadratura do círculo é encontrada na comédia As Aves, de Aristófanes3: METON. Eu, colocando aqui minha régua nessa curva, ali meu compasso---entende? PEISTHETAIROS. Não entendo. METON. Com a régua reta medirei, pondo-a aqui, a fim de que o círculo torne-se, para ti, um quadrado. O fato de o problema da quadratura ser mencionado em uma comédia nos parece mostrar que o assunto era popular na Atenas do século V a.C. O próximo trecho é de Proclo 4, filósofo e matemático do século V, no Comentário sobre o Livro I dos Elementos de Euclides. A respeito da proposição 45, que pede a construção de um paralelogramo com um ângulo dado e com área igual à área de uma figura dada, ele diz: E penso que os antigos, levados a partir desse problema, investigaram também a quadratura do círculo. Pois se é encontrado um paralelogramo igual a qualquer polígono, é também digno de investigação se não é possível mostrar as figuras retilíneas iguais às contidas por curvas. Duplicação O trecho seguinte é de Téon de Smirna5, pensador que viveu na primeira metade do século II. Fala de Eratóstenes6 e da duplicação do cubo. Eratóstenes, em sua obra intitulada Platônico, diz que, tendo o deus emitido um oráculo ao povo de Delos, ordenando que para uma remoção da praga deveriam construir um altar o dobro do existente, os arquitetos caíram em muita perplexidade procurando como se deve tornar um sólido o dobro de outro sólido, e foram perguntar sobre isso para Platão. Este disse-lhes que o deus ordenou isso ao povo de Delos não porque precisasse de um altar duplicado, mas, propondo a tarefa, porque recriminasse os gregos que não se preocupavam com matemática e faziam pouco caso de geometria. O próximo texto é um pedaço de uma suposta carta de Eratóstenes para o rei Ptolomeu III 7. Foi preservada por Eutócios de Ascalon8, que viveu no começo do século VI, no seu Comentário à obra ‘Sobre a Esfera e o Cilindro’, de Arquimedes. Eratóstenes saúda rei Ptolomeu. 2 3 4 5 6 7 8 Anaxágoras de Clazomene (m.428 a.C). Aristófanes (c.447/6--c.386/380). Proclo de Constantinopla (411--485). Téon de Smirna (c.70 -- c. 135). Smirna é hoje Izmir, na Turquia. Eratóstenes de Cirene (c.276 -- c.194). Ptolomeu Euergetes, (m. 221 a.C). Foi rei do Antigo Egito de 246 a 221. Eutócios de Ascalon (c.480 -- c.540). Ascalon é hoje Ashqelon, na Palestina. Dizem que um dos antigos poetas trágicos apresentou Mino preparando um túmulo para Glauco, e sabendo que era em todas as direções de 100 pés de medida, disse: Tomaste pequeno um leito de um túmulo real; seja o dobro, e do belo não desviarás dobrando cada aresta do túmulo rapidamente. E parece ter cometido um erro; pois tendo sido dobrados os lados o plano torna-se o quádruplo, e o sólido o óctuplo. E procurava-se junto aos geômetras algum modo de alguém dobrar o sólido dado permanecendo na mesma forma, e chamava-se esse mesmo problema duplicação do cubo; pois tendo sido suposto um cubo procuravam dobrá-lo. Tendo todos estado em dificuldade por muito tempo, primeiro Hipócrates de Quios9 concebeu que caso se encontrem de duas linhas retas, das quais a maior é o dobro da menor, dois meios proporcionais para tomar em contínua proporção, estaria duplicado o cubo, de modo que o quebra-cabeças foi transformado em outro não menor do que ele. E depois de um tempo dizem que algumas pessoas de Delos impulsionadas por um oráculo ordenando duplicar um dos altares caíram no mesmo quebra-cabeças, e os que foram enviados para os geômetras junto a Platão na Academia julgaram conveniente encontrar com esses o que era procurado. E fatigando-se aplicaram-se e procuraram tomar dois meios proporcionais de dois dados e Arquitas de Tarantum10 diz ter encontrado através dos semi-cilindros, e Eudoxo11 através das chamadas linhas curvas; e aconteceu a todos eles ter resolvido o problema teoricamente, e trabalhar com as mãos para cair em uma manipulação não puderam exceto em pequeno grau o Menaecmo 12 e isso com dificuldade. E foi encontrada por nós uma solução mecânica fácil, com a qual encontraremos de dois dados não somente dois meios, mas quantos se peçam. O trecho seguinte também é da mesma obra de Eutócios: Sobre a Síntese da Proposição 1 Isso tendo sido tomado, uma vez que por análise as coisas do problema progrediram para ele (Arquimedes), tendo a análise ido parar em dever-se encontrar dois meios proporcionais em contínua proporção com duas dadas (grandezas), disse na síntese: “Tenham sido encontrados.” O encontrar deles por ele não encontramos de todo escrito, e temos topado com escritos de muitos homens célebres anunciando esse problema, dos quais rejeitamos o escrito de Eudoxo de Cnido, uma vez que ele diz no preâmbulo tê-lo encontrado através de linhas curvas, e na demonstração além de não ter usado linhas curvas, também, encontrando uma proporção dividida, usou-a como contínua. Assim era descabido supor, o que digo a respeito de Eudoxo, e também a respeito dos ocupados moderadamente com a geometria. Então a fim de que se torne manifesto o pensamento dos homens que vieram a nós, o modo da descoberta de cada um será escrito a seguir. A Proposição 1 é a primeira proposição do Livro II de Sobre a Esfera e o Cilindro, de Arquimedes, cujo enunciado é Dado um cone ou um cilindro, encontrar uma esfera igual ao cone ou ao cilindro. Igual significa, nesse contexto, de mesmo volume. Síntese é o raciocínio a partir dos dados originais de um problema. Contrapõe-se a análise, que é o raciocínio a partir da suposição de o problema estar resolvido. Na Proposição 1 em questão, Arquimedes supõe o problema resolvido e raciocina por análise, reduzindo o problema inicial à determinação de dois meios proporcionais. Na síntese, apenas diz “Tenham sido encontrados” os dois meios proporcionais, mas não indica como foram encontrados. 9 10 11 12 Hipócrates de Quios (c.470 -- c.410). Arquitas de Tarantum (c.428 -- c.350). Tarantum é hoje Tarento, na Itália. Eudoxo de Cnido (c.408--c.355). Menaecmo (f.c.350 a.C). Logo em seguida, Eutócios passa a descrever como diversos matemáticos resolveram o problema de encontrar dois meios proporcionais. Trissecção e Classificação dos Problemas de Construção O trecho seguinte menciona o problema da trissecção, em um contexto bastante interessante, o da classificação dos problemas de construção. Vê-se que a classificação dos problemas de acordo com o tipo de solução que exigem, como, por exemplo, saber se uma construção pode ser feita com régua e compasso, é um tema que ocupa os estudiosos da matemática há muitos séculos. No trecho de Pápus13, matemático do século IV, os problemas são classificados em planos, sólidos ou lineares. Os geômetras antigos que desejavam cortar o ângulo retilíneo dado em três iguais ficaram perplexos por esta razão. Dizemos que há três gêneros dos problemas de geometria, e alguns deles são chamados planos, outros sólidos e outros lineares. Então os possíveis de resolver por meio de reta e periferia de círculo seriam chamados, apropriadamente, planos; pois as linhas por meio de que esses problemas são solucionados têm a gênese em um plano. Certos problemas se resolvem tendo sido tomada para a solução uma das secções do cone ou mais, e esses têm sido chamados sólidos; pois para a construção são necessárias superfícies de figuras sólidas, digo cônicas, forçosamente. E um terceiro gênero de problemas restou, o chamado linear; pois outras linhas diferentemente das citadas são tomadas na construção, tendo a gênese mais intrincada e com mais restrições, engendradas a partir de superfícies menos determinadas e de movimentos de intersecção. Essas são as linhas encontradas nos chamados lugares em superfícies, diferentes e mais intrincadas, das quais muitas foram encontradas por Demétrio de Alexandria em suas Considerações Lineares e por Fílonos de Tuania a partir de plektóides entrelaçadas e de outras superfícies de todos os tipos, tendo em relação a elas muitas e admiráveis propriedades . . . Pois ainda não eram conhecidas deles as secções do cone, e por isso ficaram perplexos; posteriormente, então, através das cônicas trissectaram o ângulo, depois de ter necessitado para a solução a nêusis abaixo. Os problemas planos são os que se resolvem pelo uso de retas e circunferências apenas. São os problemas que admitem solução com régua e compasso. Os problemas sólidos são resolvidos com o auxílio das cônicas. Pápus os chama sólidos porque as cônicas são obtidas de objetos sólidos, a saber, as superfícies cônicas. O terceiro tipo de problemas é o dos lineares, assim chamados porque dependem de outras linhas (com o sentido de curvas) para a sua solução14. II. Soluções Duplicação do Cubo O problema da duplicação do cubo pode ser reduzido ao problema de encontrar dois meios 13 Pápus de Alexandria (c.290 -- c.350) A palavra usual para régua é kanôn. O significado primeiro dessa palavra é vara reta, usada, portanto, para traçados retos e não para medir segmentos. É a palavra para reta que aparece no texto de Aristófanes citado acima. Dessa idéia de retidão derivou nossa palavra cânone. 14 O compasso é referido como diabètes. É um substantivo derivado do verbo grego diabàino , que literalmente significa fazer um movimento de afastar os pés, que é o movimento de abrir o compasso. No grego clássico, bàino toma o significado de andar. Pode-se inferir que o compasso grego diabètes não tinha uma estrutura muito diferente do nosso compasso. Outra palavra interessante é tòrnos, que dá origem à nossa palavra torno e que em grego significava tanto torno como instrumento de carpinteiro para desenhar círculos, provavelmente um pino na ponta de um fio, como o compasso que muitos professores usam hoje em dia para desenhar circunferências na lousa. proporcionais entre dois números dados, isto é, à interpolação geométrica de dois termos entre dois números dados. Vimos nos textos acima que Hipócrates de Quios é tido como o primeiro matemático a fazer essa redução. O raciocínio é direto. Imagine que temos um cubo de aresta a . Queremos encontrar dois números x e y tais que a seqüência (a, x, y,2a ) seja uma progressão geométrica. Dessa forma, os números x e y seriam os dois meios proporcionais entre a e 2a . Assim, podemos escrever a x y = = x y 2a Concluímos que 3 3 a x y 1 a a ⇔ = ⇔ 2a 3 = x 3 = x y 2a 2 x x Interpretando o resultado, vemos que x é a medida da aresta de um cubo cujo volume é o dobro do volume do cubo inicial. Evidentemente, os gregos não conduziram um raciocínio nos termos que acabamos de apresentar. Na verdade, nada se sabe de como mostraram que o problema da duplicação do cubo se reduz ao de encontrar dois meios proporcionais. Apareceram posteriormente muitas soluções para o problema de determinar dois meios proporcionais. Eutócios atribui -- provavelmente de maneira equivocada -- a solução seguinte a Platão. Trata-se de um mecanismo, indicado na figura pelas hastes fixas AB , AE e EF . A haste restante CD é móvel e desliza paralelamente a AB pelos pontos C e D . Tomamos um triângulo retângulo GIH , tal que GI é o dobro de IH . Com o auxílio do mecanismo, podemos J determinar os pontos e K nos prolongamentos de GI e HI , como indica o esquema acima. O resultado é que os triângulos retângulos HIJ , JIK e KIG são semelhantes, de forma que HI JI KI = = JI KI GI ou seja, JI e KI são dois meios proporcionais inseridos entre HI e GI . Portanto, dado um cubo de aresta HI , o cubo de aresta JI terá o dobro de seu volume. Quadratura do Círculo Em seguida, leremos uma solução para o problema da quadratura do círculo do terceiro tipo mencionado por Pápus, através da curva chamada quadratriz. Esta solução, segundo Eutócios, é devida a Dinostratus15 e a Nicomedes16, independentemente. Alguns autores atribuem a descoberta da curva a Híppias17, que pode tê-la usado para retificar e para quadrar o círculo. Considere o quadrado ABCD . Apliquemos um movimento de rotação ao segmento AB , em torno do ponto A e com um ângulo de 90 o no sentido horário, de forma que a imagem do movimento seja o segmento AD . A figura mostra alguns passos intermediários desse movimento. Apliquemos ao segmento BC translação, levando-o a AD . um movimento de Suponhamos que a rotação seja feita com velocidade angular constante e a translação com velocidade linear constante, de forma que os dois segmentos cheguem à posição AD simultaneamente. A cada instante, desde o início até o final dos movimentos, determinamos a intersecção dos dois segmentos movimentados, do que resulta a curva de extremidades B e E da figura. Tal curva é uma quadratriz. A quadratura do círculo pode ser feita a partir do seguinte resultado: Sendo l BD o comprimento do arco de circunferência de extremidades B e D , vale a relação l BD AB = AB AE Em outras palavras, a seqüência ( AE , AB, l BD ) é uma progressão geométrica. Assim, dada uma circunferência, construímos sua quadratriz --- mecanicamente ---, obtendo o segmento correspondente AE . Como AB é o raio da circunferência, basta encontrarmos um número l tal que ( AE , AB, l) constituam uma progressão geométrica. Como l é um quarto de circunferência, podemos agora construir um triângulo retângulo satisfazendo o seguinte teorema, devido a Arquimedes Qualquer círculo é igual a um triângulo retângulo em que um dos catetos é igual ao raio e o outro é igual à circunferência. Tendo o triângulo, construímos um quadrado de mesma área e o círculo terá sua quadratura concluída. 15 16 17 Dinostratus (c.390--c.320). Nicomedes (c.280--c.210). Híppias de Elis (c.460--c.400). Elis fica no Peloponeso. Trissecção do Ângulo Esta solução, por nêusis, é reportada por Pápus. Não sabemos quem a concebeu primeiro. Seja ∠ABC o ângulo dado, isto é, o ângulo que queremos dividir em três partes congruentes. Completemos o retângulo ABCD . Tomemos E na semi-reta DA de forma que a medida de EF seja o dobro da medida de AB . Pode-se demonstrar que o ângulo ∠FBC tem medida igual a um terço do ângulo dado. Para isso, considere o ponto médio de EF , indicado no desenho por G . Como o triângulo FAE é EF = AB , i.e., o triângulo BAG é isósceles. Assim, retângulo, concluímos que AG = 2 m (∠ABC ) = m (∠DAB ) = m (∠ABE ) + m (∠AEB ) = m (∠BGA) + m (∠AEB ) = m (∠GAE ) + 2m (∠AEB ) = 3m (∠AEB ) = 3m (∠FBC ) Bibliografia [GMW] Thomas, Ivor., Greek Mathematical Works, Loeb Classical Library, 2 volumes, Cambridge-Massachusetts, London, 1998.