Revista Observatório da Diversidade Cultural Volume 2 Nº1 (2015) www.observatoriodadiversidade.org.br/revista Revista Observatório da Diversidade Cultural Volume 2 Nº1 (2015) www.observatoriodadiversidade.org.br/revista CIDADE 210 Revista Observatório da Diversidade Cultural Volume 2 Nº1 (2015) www.observatoriodadiversidade.org.br/revista A cidade e os efeitos da crise do espaço público: Repensando os espaços da diversidade Marina de Melo Marinho Brochado1 Resumo “É preciso fazer das nossas cidades algo politicamente criativo e cultural e socialmente sustentável”. Esta é a conclusão de Carlos Fortuna no texto “culturas urbanas e espaços públicos: sobre as cidades e a emergência de um novo paradigma sociológico”. Para refletir sobre a necessidade desse modelo proposto por Fortuna e avaliar em que medida nossa cidade aproxima-se ou afasta-se dele, este artigo trata de algumas questões acerca da gestão e intervenção no espaço público, em especial no Viaduto Santa Tereza, realizadas pela prefeitura de Belo Horizonte e pelos movimentos sociais. Tendo em conta as considerações de Fortuna sobre a “cidade e a não-cidade”, o “dentro e fora” criados a partir das intervenções no espaço, relacionam-se os efeitos dessas intervenções e a violência urbana e analisa-se o modo como as comunicações digitais dos movimentos sociais colocam o assunto - a ocupação do espaço na pauta pública e os resultados disso. Palavras-Chave: gestão do espaço público, direito à cidade, direito à diferença Abstract “We need to make our cities something politically creative, culturally and socially sustainable”. This is the conclusion of Carlos Fortuna in his essay “Urban cultures and public spaces: about the cities and the emergence of a new sociological paradigm.” To reflect on this proposal and evaluate how do we approach or move away from that, this read will bring some questions about the management and intervention in public space, particularly in the Viaduct “Santa Tereza”, held by the municipality of Belo Horizonte and the social movements. Considering the terms “city and non-city,” the “in and out” created from the interventions in space, it will make a relationship between the effects of these interventions and urban violence. Finally, it will review how digital communications of social movements put it (space occupation) on the public agenda and the results of that. Keywords: management of public space, right to the city, right to difference 1 Graduada em Comunicação Social, pela PUC Minas e pós Graduada em Gestão Pública pela Fundação João Pinheiro. Esse texto foi produzido, inicialmente, como trabalho final de uma disciplina, feita como isolada pela autora, no mestrado da UFMG: Comunicação e Espaço Público. 211 Revista Observatório da Diversidade Cultural Volume 2 Nº1 (2015) www.observatoriodadiversidade.org.br/revista O VIADUTO – QUE CONJUGA A CIDADE COM A NÃO-CIDADE Ei você aí, me enxergue por favor! Agora que estou sofrendo você me abandona? Agora que me cortam, me remodelam, me limpam... Você finge que não me vê? Sou pedaço da cidade! Artéria pulsante que impulsiona... Carros, bicicletas, pessoas, criatividade, obscenidade... Eh o Duelo, eh a praia, eh o fora, eh reunião, eh samba e explosão! Também tem os pixador que sobe em marquise mermão Tem os que ficam, Os que moram, os que trabalham, os que apenas passam... To precisando de atenção! Parem de esperar! Parem de me olhar! Venham me ocupar! O viaduto precisa da gente pra respirar! #viadutoocupado (Nath Orleans, 2014) O Viaduto Santa Tereza, em Belo Horizonte, que liga os bairros Floresta e Santa Tereza ao centro da cidade, foi construído em 1929. Na década de 1990, foi tombado como patrimônio cultural do município. E, para muito além da engenharia, o viaduto foi apropriado por muitos moradores como palco de importantes manifestações culturais, políticas e democráticas, ganhando referência de lugar de encontro das diferenças. Uma das manifestações culturais que mais atraiu pessoas para região foi o “Duelo de MCs”, organizado pelo coletivo Família de Rua. Em uma entrevista para jornal “O Tempo”2, um dos membros da Família de Rua, conhecido como “Monge”, conta que, no final de 2006, o grupo começou a ocupar a área debaixo do viaduto. Ele relata que pararam ali, pela primeira vez, para se esconderem da chuva. E, apesar da falta de iluminação e limpeza, acharam que o local era interessante para continuar o Duelo de MC’s e ali seguiram realizando os Duelos por seis anos. Em junho de 2010, no final da avenida Arãao Reis, bem próximo ao viaduto, foi inaugurada uma casa de shows com propostas alternativas, “Nelson Bordelo”, que também favoreceu a cena cultural da região. A casa se diferenciava pela decoração, opções gastronômicas e ofertas musicais, dando espaço para bandas autorais da cidade. O Nelson Bordello surge como um QG desses novos agitadores da vida noturna no centro de Belo Horizonte, contribuindo para a propagação da cultura na região. (KENNEDY, 2010). 2 http://www.otempo.com.br/divers%C3%A3o/magazine/o-sil%C3%AAncio-no-viaduto-do-rap-1.670316 212 Revista Observatório da Diversidade Cultural Volume 2 Nº1 (2015) www.observatoriodadiversidade.org.br/revista Também em 2010, no mês de outubro, o grupo de teatro Espanca inaugura sua sede naquela região. Um grupo que se encontrou em 2004 e, desde então, se apresentam-se na cidade e se coloca atento e aberto às coisas da cidade. O espanca! é um grupo de pessoas a procura de uma arte que seja reflexo do tempo em que vivemos. Até hoje, estivemos essencialmente envolvidos em processos de criação de espetáculos de teatro. Estes espetáculos nos ajudaram, e ajudam, a refletir sobre nossa condição de estar no mundo. (ESPANCA, s/d) Pra completar, em 2012, a região começa a receber apresentações do grupo Samba da Meia Noite, manifestação cultural que celebra o candomblé e a umbanda. “É uma festa, que antes só ocorria nos terreiros e, agora, ganhou as ruas. Democratiza o acesso a um bem patrimonial, que é a cultura do samba de roda”, relatou a sambadeira Erika Rocha em entrevista à jornalista Ana Clara Brant ao jornal (BRANT, 2014). Ou seja, a região tinha uma movimentação de manifestações culturais diversificadas. Em 2013, no período das grandes manifestações que ocorreram em junho (que inicialmente surgiram para contestar os aumentos nas tarifas de transporte público), a área situada embaixo do viaduto, onde antes aconteciam os duelos, foi palco das assembleias horizontais populares, durante as quais os cidadãos se encontravam para discutir as pautas das manifestações e planejar algumas atuações. Dali saíram alguns grupos de trabalhos que atuavam em questões de interesse coletivo, principalmente, com foco local (no município). Ali muitos desejos se encontravam e, com criatividade, construía-se um jeito de estar na cidade. Ali parecia possível fazer o que Carlos Fortuna chama de “ler sociologicamente a cidade do avesso” e “reinventar o sentido do acto e do espaço público, participado e democrático” (2002, p.129). É um lugar onde as pessoas insistem em conjugar a “cidade” e a “não cidade” e ousam vivê-la, ou seja, é um local no centro da cidade onde o encontro com a periferia se faz possível. “com o cultural turn dos anos 80 (Chaney, 1994), o velho grito de Lefebvre sobre o “direito à cidade” está hoje assegurado. Mas é incompleto e é preciso dar-lhe consistência e juntar-lhe o direito à diferença. É aceitar que, em democracia, a cidade concede liberdade. Mas que é preciso juntarlhe criatividade. É defender que a política está presente na cidade, mas que é preciso reinventá-la para a aproximar da velha e abstracta polis, da participação cívica e da garantia dos direitos de cidadania. É admitir que, além da sua forma, da sua estética, do seu uso e função, a arquitectura deve também re-imaginar-se na sua relação com o espaço, o tempo, os sentidos e as pulsões da cidade. É indispensável reconhecer que nem o espaço é monolítico nem o tempo absoluto e linear. Por estas razões, ler sociologicamente a cidade de “baixo para cima” e “das margens para o centro” é, numa palavra, reinventar o sentido do acto e do espaço público, participado e democrático. É imaginar a conjugação da cidade com a “não”cidade e ousar vivê-la. (FORTUNA, 2002 p.129) 213 Revista Observatório da Diversidade Cultural Volume 2 Nº1 (2015) www.observatoriodadiversidade.org.br/revista Mas, infelizmente, o poder público parece não conseguir considerar “os sentimentos e pulsões da cidade”, e age de forma horizontal e burocrática, buscando invisibilizar o que ganhou uma organização e força para acontecer, mas “ofende a frágil sensibilidade do olhar burguês” (Engel apud Fortuna, 2002, p. 126). Em 2013, por uma dificuldade em conseguir apoio da prefeitura e fazer um acordo de ação conjunta, que cuide dos desafios e contradições naturais do espaço urbano, o Duelo de MCs suspendeu as apresentações, como relatado em matéria do jornal O Tempo. “O problema real é o descaso das instâncias municipal e estadual. Foram seis anos de muita dificuldade”, desabafa Monge. Falta de iluminação, de segurança preventiva, de lixeiras e de banheiros químicos são alguns dos itens enumerados por ele. “Apesar de todo o diálogo estabelecido, há uma dificuldade muito grande do poder público em dar conta desse contexto, da juventude ocupando o espaço público. Quando a gente foi percebendo que os problemas iam se afunilando mais, avisamos a polícia, por exemplo. Mas não havia condições para eles fazerem o policiamento de forma correta, tanto em se estruturar contingencialmente, quanto de material. Ficamos reféns disso”. (O SILÊNCIO..., 2013) O proprietário do Nelson Bordelo também encontrou dificuldade em regularizar o uso do espaço junto à prefeitura municipal, o que ocasionou o fechamento da casa em 2012, como relatado em entrevista concedida à Júlia Boynard, da revista VEJA (2012). Com ajuda de artistas que se apresentavam no ambiente, foi realizada uma festa para reabertura do local, o que, no entanto, não foi suficiente para permanência do bar que, até o fim de 2014, encontrava-se fechado. No final de 2013, o viaduto foi interditado para uma reforma, sem nenhum diálogo com os movimentos sociais e grupos culturais da região. A prefeitura, junto ao governo do Estado, tem uma proposta de criar um “corredor cultural”, que pretende associar a região do baixo centro de Belo Horizonte (onde o viaduto está localizado) à Praça da Liberdade. Do que já se conhece de equipamentos culturais da Praça da Liberdade, vê-se que a proposta é bastante diferenciada do que se tem no baixo-centro. Em geral, são espaços geridos por grandes empresas, com divulgação de trabalhos de artistas renomados. Além disso, o público que frequenta esses locais (do entorno da Praça da Liberdade) são da classe média e alta. Portanto, entende-se que a proposta do “corredor cultural” é de descaracterizar o espaço atual e torná-lo elitista, deixando de ser referência para o público que ali se encontra e aumentando, assim, as separações dos espaços da cidade. Os grupos e membros da sociedade civil que faziam uso do espaço se organizaram e em fevereiro de 2014 ocuparam a obra. Alguns levaram barracas e dormiram no local, outros cuidavam das programações culturais para movimentar o local e de chamar atenção para a falta de diálogo e transparência do poder público, além de uma organização para arrecadar mantimentos e produtos para estadia das pessoas. Tudo isso era comunicado por meio das 214 Revista Observatório da Diversidade Cultural Volume 2 Nº1 (2015) www.observatoriodadiversidade.org.br/revista mídias sociais. Criou-se nessa ocasião o perfil do “viaduto ocupado” no facebook. Depois de oito dias de ocupação contínua, quando já havia dado visibilidade à intervenção e iniciado uma conversa com a prefeitura, que se comprometeu a definir junto ao movimento uma comissão de acompanhamento da obra, foi acordada a desocupação do espaço. Apenas em agosto de 2014 aconteceu a primeira reunião da comissão. A prefeitura tomou providências em formalizar e receber a comissão só depois de uma audiência pública convocada em maio, durante a qual a sociedade civil denunciou irregularidade da obra que se iniciou sem aprovação do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico (IEPHA), já que o viaduto é um patrimônio público, e exigiu que se cumprissem os encontros com a comissão. Ainda assim, a prefeitura optou por abrir um chamamento público para criar a comissão, contrariando acordo feito anteriormente, quando já se havia definido a comissão3. Os relatos feitos em reuniões e postados na página do viaduto ocupado por representantes da comissão dizem de uma falta de consideração, diálogo e transparência com os mesmos: houve recusa à discussão de pautas como o uso de tinta anti-pixo na parte interna do viaduto - membros da comissão defendem o grafite como arte de rua e acreditam na importância da cidade dar espaço a esse tipo de manifestação -; conversas muito técnicas e focadas no projeto arquitetônico e de engenharia, desconsiderando-se, antes, o uso do espaço e não se propondo a dialogar sobre a gestão do espaço pós-obra. Além disso, os prazos de entrega da obra não eram bem esclarecidos. Alguns projetos como o Duelo Nacional e o encontro de fotografia “Erro 99” foram planejados para serem realizados no local, considerando uma data informada pela prefeitura em reunião da comissão. Mas a obra não havia sido concluída nas datas dos eventos (ocorridos em 22 e 23 de novembro de 2014) e, mesmo parecendo faltar pouco, a prefeitura alegou que a obra só poderia ser entregue em fevereiro de 2015. Por meio da pressão dos movimentos sociais, a prefeitura liberou o espaço para a realização dos dois eventos planejados e, na sequência, voltou a interditar o espaço para dar continuidade à obra. Alguns membros da comissão consideravam as reuniões pouco efetivas para pensar o uso do espaço e acreditavam que isso se dará na rua, com outros movimentos e não com prefeitura. Esse é um histórico das atuações realizadas nesse espaço público no centro de Belo Horizonte e as teorias de Carlos Fortuna nos ajudam a analisar para onde algumas intervenções sinalizam e de que forma é possível resistir, ousando viver o que é público com diversidade de públicos. A INTERVENÇÃO DO PODER PÚBLICO E A RETRAÇÃO DO ESPAÇO PÚBLICO A intervenção do poder público, sem diálogo, num espaço que estava sendo claramente apropriado de forma espontânea por parte da população e com intenções de uma organização 3 Detalhes sobre essa audiência estão registrados em post da página do facebook do Viaduto Ocupado de 30 julho de 2014. www.facebook.com/viadutoocupado 215 Revista Observatório da Diversidade Cultural Volume 2 Nº1 (2015) www.observatoriodadiversidade.org.br/revista política, interfere não só no espaço físico, mas no jeito de estar na cidade. A atuação do poder público parece caminhar para o que Fortuna chama de “crise” do espaço público das cidades. Ele sinaliza uma histórica disputa entre a cidade e a “não-cidade” que se refere, por sua vez, a espaços de exclusão e/ou invisibilidade. “O contraponto simbólico da “morte” do campo é a “morte” também simbólica de uma parte da cidade – a dos mais frágeis, pobres e incultos – às mãos da outra parte – a dos mais ricos e poderosos” (Fortuna, 2002 pág. 126). E, para compreender a “crise do espaço público” que essas separações geram, o autor faz uma análise dos contornos de participação social, cívica e cultural em Portugal pós-1974. Para isso, classifica alguns períodos em “ciclos de governação política das cidades”, que são organizados em função da vitalidade da sociedade civil e da capacidade de regulação estatal” (Fortuna 2002, p. 130). Ele classificou três ciclos: o primeiro ciclo de governação das políticas da cidade é da espontaneidade da sociedade civil. “Participar era a palavra de ordem mais mobilizadora, que continha uma carga simbólica muito particular: a de estar na rua, em grupo, soltando gestos e opiniões sobre a vida pública” (Fortuna 2012, p.30); Ou seja, um cenário muito próximo ao que estava sendo vivenciado no viaduto Santa Tereza até 2014, antes do local ser interditado para obras. O segundo ciclo de governação é o da institucionalização da vida política. Nesse ciclo, observouse em Portugal que os termos da discussão política foram sendo canalizados para o domínio do desenvolvimento socioeconômico e de infraestruturação do país e, assim, a esfera cultural ficava retida a um segundo plano. Aqui, não diferente, o que o poder público propõe, a partir da intervenção no viaduto, não passa pelo social ou cultural: “o viaduto será transformado em circuito de esportes radicais, terá a estrutura e o revestimento original recuperados.” (MOVIMENTO..., 2014). O terceiro ciclo de governação é o da europeização. Fortuna chama atenção para os efeitos da globalização, que acabam por provocar uma massificação e estetização dos consumos e a essa mesma lógica de mercado são submetidos os planejamentos urbanos. É importante observar que a proposta da PBH de criar um circuito cultural parece caminhar nesse sentido: excluir o que se deseja invisibilizar e colocar algo que possa despertar desejo de consumo. A participação pública dos cidadãos, grupos e movimentos sociais surge condicionada e, perante os efeitos sensíveis da globalização da economia, da cultura e da comunicação, o espaço público das cidades surge pautado pelos desígnios da massificação e da estetização dos consumos, do mesmo modo que o planejamento urbano e mesmo numerosas imagens identitárias e promocionais das cidades passam a sujeitar-se à lógica do mercado. (FORTUNA, 2002, p. 131) Quando o que é público é enquadrado na lógica de mercado, quem não tem capital fica 216 Revista Observatório da Diversidade Cultural Volume 2 Nº1 (2015) www.observatoriodadiversidade.org.br/revista cada vez mais sem espaço na cidade, reforçando os fragmentos do tecido social e cultural. Portanto, Fortuna aponta que a cidade vista de “cima pra baixo” promove uma organização também ao longo de um eixo horizontal “do centro e das margens”. E, no meio dessa disputa, o que o movimento “viaduto ocupado” faz é se colocar conscientemente, resistente “ao lado” ou “fora” do centro. E nesse caso, Fortuna apresenta o conceito de bell hooks, que diz que “estar à margem é ocupar um lugar de criatividade a partir do qual se constrói um outro sentido do mundo” (Hokks apud Fortuna, 2002, p.133). Isso é feito se opondo à estética do desaparecimento e dando espaço às diferenças. Este “outro sentido do mundo” revela, na verdade, uma cidadania disputada, de resistência, oposta à “estética do desaparecimento” de que fala Paul Virilio (1989). Mais do que um jogo de dualidades, este é um jogo de recombinações de referências, estilos de vida e práticas sociais que conduz à experiência de incoerência e diversidade culturais como condição urbana e, logo também, como imperativo imposto a uma renovada análise sociológica. (FORTUNA, 2002, p.133) Portanto, o que está colocado, tanto nas teorias e experiências apresentados por Fortuna, quanto na dinâmica da cidade de Belo Horizonte, são as fragmentações históricas e que parecem evoluir, dentro da cidade (da cidade com a “não cidade”). Diante disso, o desafio que se tem colocado e que é alvo do movimento “viaduto ocupado” é de conjugar/unir esses espaços e sujeitos segregados, de insistir no encontro das diferenças e na potencialidade das construções que esse encontro pode promover. A CIDADE E A CRIMINALIDADE “O direito é primeiro e o crime lhe é relativo antes de sê-lo criminoso”. Lacan Até então, foi apresentado o desejo de um grupo de Belo Horizonte em manter os locais de encontro na cidade e a forma como a prefeitura tem feito a gestão do espaço – que busca reforçar as separações entre os espaços e as pessoas. Aqui serão analisados alguns impactos desse tipo de gestão, como a sua relação com a criminalidade. Para tanto, iremos analisar alguns registros feitos pela professora de psicanálise Andrea Guerra que, a partir da escuta de jovens que apresentam algum envolvimento com a criminalidade4, desenvolve seus estudos. Um dos seus textos tem como título “Defunto?! Defunto ele era antes de entrar pra guerra”, frase de um jovem envolvido com o micro tráfico da comunidade onde mora. Nesse texto, Guerra, Aranha e Rocha (2014) discorrem sobre o contexto de homicídios no Brasil. No decorrer do texto, tratam da tentativa desses jovens em se inscrever na vida política, mas verifica-se 4 Refere-se a adolescentes que realizaram algum assalto, têm envolvimento com o tráfico e/ou cometeram homicídio. 217 Revista Observatório da Diversidade Cultural Volume 2 Nº1 (2015) www.observatoriodadiversidade.org.br/revista que essa consiste na exclusão e no abandono. Segundo Agamben (2002, p.9), o homo sacer (homem sagrado) apresentaria a figura originária através da qual se constitui a dimensão política. A sacralidade da vida, que hoje se faria valer contra o poder soberano como um direito humano, por exemplo, exprime, ao contrário e em sua origem, a sujeição da vida a um poder de morte; uma relação, portanto, de abandono. (apud GUERRA, 2014) Dessa forma, vemos que a tentativa de invisibilizar parte da sociedade tem se concretizado. E como resposta à invisibilidade, tudo vale para se tentar existir, até matar e morrer. As autoras trazem, ainda na introdução do texto, a seguinte conclusão: “a epidemia homicida que assola os jovens brasileiros exige uma tomada de posição ativa por parte da população.” (GUERRA, et al, 2014). Em outro texto, Guerra (2011) observa que o capital é o “mestre contemporâneo”. Os adolescentes dizem com clareza como o dinheiro é determinante, inclusive, para se fazer (in)justiça. E assim, eles entendem o que está colocado: para estar na cidade é preciso dinheiro, de outra forma, ficarão apenas na não cidade e ainda apanhando, literalmente, por não ter dinheiro. M: Também a diferença que tem da gente que mora na favela e os de classe média é, tipo assim, por causa dos rico. Rico, tipo assim, vai preso ali agora armado, fumando, nem algemado eles não é não. Nós não, se nois for preso com um baseadinho... Co: Ele entra ali, sai pela outra porta e vai embora. Tem dinheiro né? Pega um de nós com um fino de bagulho e uma bala de calibre 22. Eles vão querer o revólver pra começar. Aí vai bater muito... M: O rico não. A: Então tem essa diferença? Co: É lógico que tem. Brasil, quem tem dinheiro vive, quem não tem corre. Se pegar e você não tem dinheiro, aí é couro. (sic) (GUERRA, 2011 p.1) Considerando-se que a proposta de “europeização” diz de um modelo que busca adequar-se à lógica do capital, diante disso, o desejo das pessoas em relação aos espaços e o envolvimento delas na construção dos mesmos acabam não tendo lugar. Diminuir as possibilidades de uma construção coletiva interfere nas possibilidades de construção das identidades e relações dos sujeitos. Principalmente na adolescência, se o desejo se resume ao consumo e/ou não ganha possibilidade de construção nas várias relações (na relação com o pai, na relação sexual e, como estamos vendo, na relação com a cidade), corre-se o risco do crime apresentar-se como única possibilidade de relação. No momento em que há o estancamento pelo Outro social da dialética que permitiria a extração de uma identificação resolutiva na adolescência, podese formular como resposta a construção de objeto criminogênico, assinalado 218 Revista Observatório da Diversidade Cultural Volume 2 Nº1 (2015) www.observatoriodadiversidade.org.br/revista um impasse sem superação no confronto com a angústia de castração na puberdade, somado ao fracasso da função paterna em transmitir forma de gozo e orientação ao desejo. Assim, fixa-se fórmula e lugar para o sujeito. (Guerra, 2012 p.1) Ou seja, vimos que a construção de um sentido coletivo é algo disputado e, no caso de Belo Horizonte, o poder público esforça-se na tentativa de “europeização” dos espaços, reforçando a exclusão de alguns. É interessante notar aqui que o discurso dos adolescentes envolvidos com a criminalidade tem relação com a forma de fazer do poder público, de quem entende que o espaço público é para alguns, para os que têm condições de consumi-lo. E, nessa busca, alguns que não têm isso dado arriscam-se. A sociedade reclama da violência, mas parece não ter consciência do que a promove. Portanto, não é possível tratar a violência sem repensar a cidade e o que esta oferece de possibilidades de construção de sentido para a vida. A COMUNICAÇÃO E AS POSSIBILIDADES DE RESSIGNIFICAÇÃO DO ESPAÇO Na tentativa de ressignificar o espaço público, Fortuna defende não ser possível limitar o entendimento da vida urbana no tempo e no espaço. Para buscar essa compreensão que considere a plasticidade da sociedade, ele analisa as “zonas de intermediação cultural”, que consideram a complexidade dos contatos que se confluem e se contaminam mutuamente no espaço urbano. Ele identifica a existência de quatro zonas de intermediação urbanas: Terceiras culturas; Relações sociais de estranhamento e tolerância; Domesticidade e práticas socioculturais; Espaços sociais de proximidade relacional. Aqui ficaremos apenas com a primeira zona de intermediação, referente às terceiras culturas, que permite refletir sobre as possibilidades oferecidas pelas novas mídias para repensar esses lugares. Fortuna classifica as terceiras culturas como sendo o “território transnacional de negociação de problemas e conflitos decorrentes do contacto intercultural” (Fortuna, 2002 p. 135 apud Featherstone, 1997). Ele aponta que os protagonistas das terceiras culturas atuam na retradução e acomodação dos sentidos e significados da cultura local e global, podendo agregar várias referências. Podemos dizer que no território transnacional amplia-se a disputa de sentidos, ao mesmo tempo em que se estendem as possibilidades de interferências, dando assim um lugar para as diferenças. Essas trocas podem se refletir no relacionamento entre as pessoas e os lugares. Para isso, Fortuna chama atenção para a necessidade do uso de linguagens e discursos que convoquem uma atuação solidarista que considere a diversidade cultural e a alteridade. Ao potenciar a aproximação entre entidades distantes e opostas, as terceiras culturas e o possível ethos em emergência podem converter-se em agentes da revitalização dos espaços e dos encontros públicos das cidades. O requisito de base para que a hipótese frutifique é que o encontro de posições, discursos e narrativas dissonantes accione códigos alternativos e linguagens solidaristas 219 Revista Observatório da Diversidade Cultural Volume 2 Nº1 (2015) www.observatoriodadiversidade.org.br/revista que capacitem os sujeitos para o diálogo com a diversidade cultural e a alteridade. (FORTUNA, 2002 p.135) Esse parece ser o esforço das comunicações realizadas pelo movimento “viaduto ocupado”, que se depara com os que querem o espaço para realizar o duelo, outros que buscam condições de praticar esportes radicais, os que têm a região como abrigo (pessoas com trajetória de rua), os que pretendem manter a referência do local como espaço para articulações políticas e, ainda, os que pretendem colocar o espaço num circuito cultural. O movimento não tem um líder e não se escolhem os membros, estes se encontram no desejo de manter o espaço como “algo politicamente criativo e cultural e socialmente sustentável”. Ao invés de se propor a delimitar o uso do espaço, o convite é para somar esforços e negociar essa ocupação, reconfigurando a proposta elitista e segregadora executada pela prefeitura, cada um com seu desejo e juntos. É interessante notar que a internet possibilita que as pessoas, em um primeiro momento, não muito próximas ao espaço, interessem-se pela discussão e propostas colocadas “na nuvem” (no caso do “viaduto ocupado”, principalmente o facebook) e, a partir disso, passem a contribuir e a se envolver em novas formas de se relacionar com a cidade. Esse é, portanto, um importante canal de articulações e coordenação de ações. CONCLUSÃO A partir do que foi discutido, fica posto que, ou repensamos a forma como os espaços públicos estão sendo planejados e executados, ou continuaremos criando cidades e “não cidades”, reforçando a lógica do “dentro e fora” e, assim, quem está fora, na não cidade, disputará com quem tem e com quem não tem o “seu” espaço. Os que têm criatividade poderão resistir com ela! E como estamos vendo, no caso do viaduto Santa Tereza, esse tipo de resistência consegue alguns efeitos. Não fosse isso, provavelmente a região já teria outra cara e outra ocupação. E o que parece que o movimento entendeu e a prefeitura ainda não é que a arquitetura importa menos, diante do desejo de continuar reforçando aquele espaço enquanto lugar de encontro de diferentes públicos e manifestações culturais. Certamente, as novas mídias possibilitam muitas trocas e contribuem para que as pessoas se organizem e atuem no espaço público, na rua. No caso do “viaduto ocupado”, o facebook é onde as pessoas articulam as reuniões presenciais e compartilham os desejos e esforços de uma ocupação onde a diferença tenha lugar. Se não fosse essa plataforma, certamente, esses compartilhamentos seriam mais difíceis ou, talvez, não aconteceriam. O que parece necessário é ampliar o convite para que a cidade seja pensada, desejada e ocupada por todos. Precisamos querer e insistir que a política se proponha a isso, ou viveremos apenas vidas privadas e limitadas. 220 Revista Observatório da Diversidade Cultural Volume 2 Nº1 (2015) www.observatoriodadiversidade.org.br/revista REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BOYNARD, J. 3 perguntas para Bernardo Guimarães. Veja BH. 2012. Disponível em: http:// vejabh.abril.com.br/musica-e-noite/noite/3-perguntas-bernardo-guimaraes-696856.shtml Acesso em 19 dez. 2014 BRANT, A.C. Projeto ‘Samba da meia-noite’ reúne todas as tribos próximo ao Viaduto Santa Tereza. Jornal Estado de Minas. 2014. Disponível em: http://divirta-se.uai.com.br/app/noticia/ musica/2014/02/10/noticia_musica,151369/projeto-samba-da-meia-noite-reune-todas-astribos-proximo-ao-viaduto-s.shtml ESPANCA. Quem Somos. s/d. Disponível em: http://espanca.com/c/quem-somos/ FORTUNA, Carlos. Culturas urbanas e espaços públicos: Sobre as cidades e a emergência de um novo paradigma sociológico. 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