Departamento de Ciências Sociais
O DIREITO À CIDADE: TEORIA E HISTÓRIA
Aluno: João Manoel Bentes Nonato da Silva e Krystal de Freitas Gayoso Neves
Orientadora: Maria Alice Rezende de Carvalho
Introdução
O presente estudo, iniciado no primeiro semestre de 2012, tem suas origens no projeto
Fronteiras – Repensando as cidades no século XXI. Tal projeto, desde o primeiro semestre de
2013, conheceu um desdobramento dedicado à análise do subúrbio carioca em geral – tendo
como primeiro estudo de caso, em um futuro próximo, o bairro de Madureira. Sob a coordenação
da professora Maria Alice Rezende de Carvalho, o projeto é interdisciplinar em seu foco,
propondo-se às análises socioeconômica, histórico-cultural e geográfica dos subúrbios.
Nesse contexto, meu foco inicial recaiu sobre a compreensão teórica e a mensuração
empírica da qualidade de vida urbana. Assim, em um primeiro momento, delineei a noção de
“direito às capacidades da vida urbana” – uma leitura do conceito de direito à cidade, de Henry
Lefebvre (2011), sob a perspectiva das capacidades, de Amartya Sen (2007). Em seguida, após
esse percurso teórico, passei a debruçar-me sobre o desenvolvimento do subúrbio do Rio de
Janeiro, a partir de uma análise histórica e sociológica.
O objetivo de tal análise era enriquecer minha compreensão sobre o desenvolvimento
histórico do Rio de Janeiro e seus subúrbios, a fim de problematizá-lo mais adequadamente pela
ótica da Sociologia Urbana, permitindo, como objetivo último, a modelagem e testagem empírica
do rendimento heurístico do conceito de “capacidades da vida urbana”. Essa última etapa,
contudo, não pôde ser realizada de forma satisfatória, devido à falta de recursos e, sobretudo, de
tempo para a testagem empírica do conceito – uma vez que este semestre se trata já do último
antes de minha formatura.
Preferiu-se, portanto, investir mais profundamente na análise histórico-sociológica do
desenvolvimento dos subúrbios do Rio de Janeiro ao longo dos séculos XX e XXI, e sua relação
com questões sociais de moradia e mobilidade. Entendeu-se que, neste momento, tal foco seria
mais produtivo e mais interessante na transição do presente projeto para a próxima bolsista.
Justificação
Em seu clássico Evolução urbana do Rio de Janeiro, Maurício Abreu (2011, p.15) nota que
“a estrutura de uma cidade capitalista não pode ser dissociada das práticas sociais e dos conflitos
existentes entre as classes urbanas”. Nesse sentido, percebe-se um duplo processo: por um lado, a
luta de classes marca a forma de ocupação do solo urbano; por outro, reciprocamente, a forma de
organização espacial reforça a tendência de concentração de renda e de poder, o que realimenta
os conflitos de classe. Dá-se, assim, a reificação do espaço social, isto é, “a distribuição no
espaço físico de diferentes espécies de bens ou serviços e também de agentes individuais e de
grupos fisicamente localizados (enquanto corpos ligados a um lugar permanente) e dotados de
oportunidades de apropriação desses bens e desses serviços mais ou menos importantes (em
função de seu capital e também da distância física desses bens, que depende também de seu
capital)” (BOURDIEU, 1997, p.161).
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A evolução urbana do Rio de Janeiro evidencia esse processo. De fato, seu
desenvolvimento foi, a um só tempo, causa e consequência das acentuadas disparidades
encontradas na sociedade brasileira. Deriva desse assimétrico e arbitrário desenvolvimento
(apoiado ora no Estado, ora no mercado) a crescente elitização da centralidade urbana carioca e a
consequente periferização das classes de baixa renda – periferização que deve ser entendida como
um distanciamento não apenas físico, mas também social, do centro urbano, tendo por efeito a
reduzida acessibilidade “ao consumo de bens e serviços que, embora produzidos socialmente pelo
Estado, localizam-se apenas nas áreas mais privilegiadas da metrópole, beneficiando, portanto,
principalmente aqueles que aí residem” (ABREU, 2011, p.15). Reifica-se, desse modo – à força
do capital e/ou do Estado –, o espaço social urbano do Rio de Janeiro.
Diante de tais circunstâncias, o direito à cidade se perde: por um lado, os cidadãos de baixa
renda se veem cada vez mais distantes, em todos os aspectos, da centralidade urbana; por outro,
eles têm cada vez menos participação e autonomia para decidirem os rumos da cidade, bem como
seus próprios rumos. Esses indivíduos apresentam, pois, diversas privações e desvantagens em
relação às suas liberdades substantivas. Assim, embora o direito formal à cidade seja garantido
pelo Estatuto da Cidade, é difícil crer que tal direito seja uma realidade efetiva.
Ainda persistem, como empecilhos à plena efetivação desse direito, diversos mecanismos
de exclusão e de segregação, dos mais evidentes aos mais sutis – inclusive a violência simbólica
(BOURDIEU, 1997), coação que silenciosamente induz os indivíduos segregados a reconhecer e
legitimar sua posição inferior no espaço social (reificado) através da aceitação e da reprodução do
discurso dominante, proferido pelas classes que detêm poder econômico, influência política e
status social. Incluem-se, entre esses mecanismos permeados pela violência simbólica, os
movimentos arbitrariamente orquestrados de periferização das classes de baixa renda, bem como
a limitada mobilidade urbana reservada aos habitantes dessas regiões periféricas. Existe, ademais,
uma multiplicidade de outros fatores, tais como, por exemplo, a discriminação de minorias e a
ausência de adaptações e equipamentos próprios para portadores de necessidades especiais, entre
outros tantos.
Observando, afinal, esse vastíssimo panorama, é válido que se questione e que se
investigue se, e quanto, todos e cada um desses elementos e circunstâncias influem nas liberdades
substantivas dos cidadãos no âmbito urbano – principalmente nas oportunidades de livre escolha
e ação daqueles que, sem outras alternativas reais, precisam se submeter a tais condições dia após
dia.
Hipóteses
A principal hipótese aqui defendida é, em linhas gerais, basicamente a seguinte: as
condições inadequadas, historicamente consolidadas, de ordem ambiental, urbanística, logística,
socioeconômica e política do Rio de Janeiro representam, para os cidadãos por elas afetados,
em maior ou menor grau, empecilhos à plena efetivação do direito à cidade e à vida urbana.
Reformulando e aprofundando tal hipótese à luz da perspectiva das capacidades e do
conceito proposto de “direito às capacidades da vida urbana”, tem-se que: as condições
inadequadas, historicamente consolidadas, de ordem ambiental, urbanística, logística,
socioeconômica e política, do Rio de Janeiro impõem, aos cidadãos por elas afetados, em maior
ou menor grau, três tipos, normalmente interrelacionados ou emparelhados, de interferência nas
capacidades da vida urbana: (1) assimetrias no acesso a direitos, bens, recursos e meios em
geral; (2) dificuldades ou desvantagens – de caráter pessoal, ambiental, social ou relacional –
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de conversão desses meios em oportunidades e liberdades substantivas; e (3) restrições do
campo de efetivas e livres escolhas e ações.
Objetivos
Os primeiros momentos do presente projeto tiveram como objetivo analisar, através de uma
abordagem teórica, o rendimento conceitual e heurístico da perspectiva das capacidades adotada.
A intenção era a de discutir e aperfeiçoar o conceito proposto de “direito às capacidades da vida
urbana” e, de maneira geral, aprofundar o debate metodológico referente à perspectiva das
capacidades, delineando-o e adaptando-o para o estudo sociológico da vida urbana. Num esforço
interdisciplinar, buscou-se esboçar um quadro analítico-normativo, bem como um modelo
metodológico adequado, a partir da perspectiva das capacidades e do quadro geral das teorias
sociais e políticas relacionadas à realidade urbana.
Já o objetivo central dessa última etapa de pesquisa foi mobilizar um conhecimento
histórico e crítico acerca do desenvolvimento histórico dos subúrbios do Rio de Janeiro ao longo
dos séculos XX e XXI. Buscou-se, mais especificamente, compreender a interação entre tal
processo e o surgimento de questões sociais envolvendo moradia e mobilidade –ambas questões
centrais ao direito à cidade, bem como ao proposto “direito às capacidades da vida urbana”.
Metodologia
A análise histórico-sociológica do desenvolvimento do subúrbio do Rio de Janeiro foi feita
com base em uma ampla bibliografia, sendo consultados desde fontes jornalísticas (vide, por
exemplo, OBSERVATÓRIO DE METRÓPOLES, 2007), passando por estudos sociológicos
(CARVALHO; BURGOS, 2011) e antropológicos (DAMATTA, 1986), até relatos históricos
(LESSA, 2005) e etnográficos (MAIOLINO, 2008).
Dentro dessa temática, em coerência com a linha de pesquisa adotada desde o início, foi
mantido o foco em dois aspectos em particular: as intervenções urbanísticas e o processo de
suburbanização do Rio de Janeiro (ABREU, 2011); e a organização do transporte coletivo e a
mobilidade urbana na capital carioca (LESSA, 2005).
Conclusões
A evolução urbana do Rio de Janeiro deu-se de modo a intensificar desigualdades já muito
profundamente presentes na sociedade brasileira. O processo histórico de desenvolvimento
urbano do Rio, arbitrariamente dirigido, criou e/ou reforçou problemas de ordem geográfica,
urbanística, logística, socioeconômica e política, que ainda hoje afetam boa parcela da população
de toda a Região Metropolitana do Rio de Janeiro – principalmente a população das classes
baixas. Nesse contexto, são problemas centrais as intervenções urbanísticas e a forma como
ocorreu a subsequente suburbanização do Rio, bem como a ineficiência de seu transporte público.
Todas esses elementos e circunstâncias servem como empecilhos à efetivação do direito à
cidade, uma vez que, por um lado, o processo de suburbanização impede o pleno uso da
centralidade urbana e, por outro, o caráter arbitrário – e, talvez, até mesmo autoritário – desse
processo impede que a população suburbana participe das decisões sobre os rumos da cidade,
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bem como sobre os próprios rumos (afinal, um e outro se confundem). Assim, não se observa, na
prática, a aplicação real das diretrizes defendidas desde 2001 pelo Estatuto da Cidade.
Há, pelo contrário, claras assimetrias, dificuldades e desvantagens – marcadas por relações
de poder no contexto social urbano – em relação ao acesso e à distribuição de bens, direitos e
serviços garantidos pelo Estatuto, tais como: a moradia; a infraestrutura urbana; o trabalho; o
lazer; a participação democrática nos projetos de desenvolvimento urbano; o atendimento ao
interesse social; a oferta equânime de equipamentos urbanos e comunitários, de transporte e de
serviços públicos; a justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do processo de
urbanização; etc.
Essas assimetrias, dificuldades e desvantagens se refletem na limitação e na privação das
liberdades substantivas experimentadas pelos cidadãos no âmbito urbano. Em outras palavras,
reduzem-se, para cada indivíduo afetado, em maior ou menor grau, as capacidades do âmbito
urbano. Nesse sentido, propõe-se como ideal normativo o direito às capacidades da vida urbana,
uma reinterpretação do direito à cidade sob a perspectiva das capacidades.
É através dessa ótica ampla que deve ser elaborado um quadro analítico-normativo através
do qual se pense a construção de um modelo metodológico que possibilite, eventualmente, a
estruturação de uma pesquisa empírica que permita a avaliação das liberdades humanas
substantivas no âmbito urbano do Rio de Janeiro.
Referências bibliográficas
ABREU, Mauricio de A. Evolução urbana do Rio de Janeiro. 4. ed. Rio de Janeiro: Instituto
Municipal de Urbanismo Pereira Passos, 2011.
BOURDIEU, Pierre. Efeitos de lugar. In: BOURDIEU, Pierre et al. A miséria do mundo. Vários
tradutores. Petrópolis: Editora Vozes, 1997.
CARVALHO, Maria Alice Rezende de; BURGOS, Marcelo Baumann. Morar Carioca:
diagnóstico social participativo. Rio de Janeiro: Central – Núcleo de Estudos e Projetos da
Cidade, 2011.
DAMATTA, Roberto. O que faz o brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 1986.
LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. 5. ed. Tradução de Rubens Eduardo Frias. São Paulo:
Centauro Editora, 2011.
LESSA, Carlos. O Rio de todos os Brasis: uma reflexão em busca de auto-estima. 3. ed. Rio de
Janeiro: Record, 2005.
MAIOLINO, Ana Lúcia Gonçalves. Espaço urbano: conflitos e subjetividade. Rio de Janeiro:
Mauad Editora, 2008.
OBSERVATÓRIO DAS METRÓPOLES. Aumento dos custos da mobilidade urbana. Rio de
Janeiro, setembro, 2007. Disponível em: <http://www.observatoriodasmetropoles.ufrj.br/
noticia_rolante-023.htm> Acesso em: 04/06/2015.
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Tradução de Laura Teixeira Motta. São
Paulo: Companhia das Letras, 2007.
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